A mendiga e o Andarilho - Portal do Mestrado em Estudos Fronteiriços

Transcrição

A mendiga e o Andarilho - Portal do Mestrado em Estudos Fronteiriços
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM ESTUDOS FRONTEIRIÇOS
CAMPUS DO PANTANAL
A MENDIGA E O ANDARILHO:
A RECRIAÇÃO POÉTICA DE FIGURAS POPULARES
NAS FRONTEIRAS DE MANOEL DE BARROS
LUCIENE LEMOS DE CAMPOS
CORUMBÁ, MS
2010
LUCIENE LEMOS DE CAMPOS
A MENDIGA E O ANDARILHO:
A RECRIAÇÃO POÉTICA DE FIGURAS POPULARES
NAS FRONTEIRAS DE MANOEL DE BARROS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Mestrado em
Estudos Fronteiriços da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal, como
requisito parcial para obtenção do Título de
Mestre.
Linha de Pesquisa: Ocupação e Identidade
Fronteiriça
Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
CORUMBÁ, MS
2010
In memoriam, dedico este trabalho ao meu
“bugre velho” pantaneiro do Poconé ―
Corumbá ― Angelino de Campos ― que me
contou muitas histórias dos ermos do Pantanal
e agora observa suas águas lá dos ermos do
céu, passarinhando canções.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe pelo amor, presença, dedicação e pela coragem para, ao lado
do meu pai, desbravar novas trilhas sempre.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues, principalmente pela
amizade com que me cativou, mas também, e sempre, pelo incentivo para ousar,
persistir, acreditar, pelas orientações e ensinamentos, sem os quais as dúvidas
teriam paralisado o desejo de conhecer mais.
A todos os professores do mestrado, que me abriram uma nova perspectiva
frente ao entendimento da Literatura e da concepção das fronteiras.
Aos Professores Drs. Tito, Wilson e Angela pelos ensinamentos na Banca de
Qualificação.
Às Professoras Dras. Kelcilene e Rita Baltar pelo incentivo e observações do
texto para a qualificação.
Ao Fernando Almeida e esposa, Teresa Cristina, pelo apoio de sempre.
Aos colegas do mestrado, que dividiram as angústias e alegrias do percurso;
em especial, a Gerson de Morais, amigo sempre presente, pelo apoio e irrestrita
amizade.
Ao Daltro, que me brindou com sua produção artística.
A Alfio Pozzi, José Lourenço, Waldir Diniz, João Urquidi, Eneo Nóbrega e a
Senhora Astrogilda Freire pelas fontes de pesquisa que me propiciaram.
A Eunice, funcionária da UFMS, Luis Felipe Fontoura e Dorvanil pelo apoio e
carinho.
A todos que entenderem meus objetivos e souberam respeitar a necessidade
de solidão e reclusão para os estudos.
Aprendi a teoria das idéias e da razão pura.
Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos.
Aos homens de grande saber. Achei que os
eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam
das coisas simples da terra.
(BARROS, 2008, X)
CAMPOS, Luciene Lemos de. A mendiga e o andarilho – a recriação poética de
figuras populares nas fronteiras de Manoel de Barros. Corumbá, MS, 154 f.
Dissertação (Mestrado, Estudos Fronteiriços) – CPAN / UFMS.
RESUMO
Desenvolvemos este estudo a partir da proposição de que a noção de fronteira, na
poética de Manoel de Barros, indicia um entre-lugar, na coalescência do concreto
com a representação. Tal limes delineia caminho que o poeta percorre para construir
identidades. A obra de Barros recria figuras populares da região fronteiriça de
Corumbá: dentre outras, comerciantes, andarilhos, mendigos, loucos, trabalhadores,
prostitutas, migrantes, desvalidos, trastes, maltrapilhos. Nossa pesquisa verifica as
similaridades, quanto ao registro histórico, quando confrontamos as narrativas de
cronistas e o estudo de historiadores com a recriação poética dessas figuras de
Poemas concebidos sem pecado (1937) às Memórias inventadas (2004, 2006,
2008). Para tanto, nos anexos, reproduzimos crônicas, excertos de historiadores,
depoimentos, pinturas e fotografias que ilustram e homologam nossas conclusões.
De início, propomos dois problemas: um, poético, no âmbito da estética, e outro —
com duas vertentes, uma poética, outra histórica —, ideológico. Consideramos que
as figuras da mendiga e do andarilho constituem paradigmas e emblemas
da ars poetica de Barros. A mendiga é símbolo da despossuída; e o andarilho,
personificado no peregrino, é metáfora de perspectiva despojada da existência. Essa
mundividência dialoga, em oposição e em complementariedade, com as imagens
pictográficas e com os registros cronísticos e históricos. Ao retomar, nos seus
diversos livros, os excluídos da ordem social, Barros mostra o grau de sofisticação
gerado pelas engrenagens do capitalismo avançado que, mais que negar a esses
indivíduos a existência civil de cidadão, deles extirpa até mesmo a condição de
humanidade. Desse modo, a História se presentifica, tornada poesia, e a poesia ―
enlutada, mas em euforia pela descoberta ― des-vela e mostra, no âmbito da
Corumbá fronteiriça recriada pelo poeta, a face da História como limes, fratura,
hífen, sutura e entre-lugar.
Palavras-chave: Fronteira; História; Identidade; Ideologia; Literatura.
CAMPOS, Luciene Lemos de. A mendiga e o andarilho – a recriação poética de
figuras populares nas fronteiras de Manoel de Barros. Corumbá, MS, 154 f.
Dissertação (Mestrado, Estudos Fronteiriços) – CPAN / UFMS.
ABSTRACT
This study was developed based on the proposition that the notion of frontier in
Manoel de Barros's poetics recreates popular characters in the frontier region of
Corumbá: tradesmen, wanderers, beggars, mad people, workers, prostitutes,
migrants, destituted people, rascals, ragged men. Our research verifies the
similarities as for the historical register, when we compare the chroniclers' narratives
and the historians' study to the poetical recreation of these characters both in
Poemas concebidos sem pecado (1937) and in Memórias Inventadas (2004, 2006,
2008). For that, in the annexes, we reproduced chronicles, historians' excerpts,
depositions, paintings and photographs, which illustrate and confirm our conclusions.
Firstly, we propose two problems: one of them poetical , in the sphere of aesthetics,
and the other - with two courses: the poetical and the historical-sociological. We
consider that the characters of the beggar and the wanderer constitute paradigms
and emblems in Barros's poetical ars. The beggar is the symbol of dispossessed;
and the wanderer, personified in pilgrim, is the metaphor of perspective divested of
existence. The view of the world dialogues, in opposition and completeness, with the
pictographic images and with the chronical and historical registers. When
resuming, in his diverse books, those who are socially excluded, Barros shows the
level of sophistication generated by the gears of the advanced capitalism which,
besides denying these fellows the civil existence as citzen, also excise from them the
condition of humankind. This way, History is made present by turning into poetry, and
poetry, draped in mourning, but in euphoria by the discovery - unveils and shows in
the circuit of the frontier Corumbá, recreated by the poet, the face of History like
limes, fracture, hyphen, suture and inter-place.
Key words: Frontier; History; Identity; Ideology; Literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................
10
1
CONCEPÇÕES DE FRONTEIRA...............................................................
17
2
A OBRA DE BARROS E A HISTÓRIA DE CORUMBÁ...............................
34
3
RECRIAÇÃO POÉTICA DE FIGURAS POPULARES EM MANOEL DE
BARROS...............................................................................
49
PERSONAGENS REAIS E FICCIONAIS NA OBRA DE MANOEL DE
BARROS.......................................................................................................
83
CONCLUSÃO.....................................................................................................
89
REFERÊNCIAS...................................................................................................
93
ANEXOS.............................................................................................................
100
ÍNDICE ...............................................................................................................
152
4
INTRODUÇÃO
Nasci na Nhecolândia, Fazenda Firme, no ano de 1964. Brinquei fazendo
casas de areia com poucas outras crianças que havia por lá. Passava horas
observando o movimento das formigas que carregavam as folhas das limeiras
novas, as sobras das carneadas ou fragmentos de outros insetos.
Quando havia festa de São Sebastião, no pátio da Fazenda, eram muitas as
pessoas que apareciam: os mascates com as carretas abarrotadas de mercadorias,
famílias de outras fazendas e regiões; eram muitas as histórias que se contavam.
Gostava de ouvi-las, principalmente aquelas em que as testemunhas é que as
relatavam.
Uma narrativa de que me lembro é sobre Antoninha-me-leva, contada por um
peão aos companheiros. À época, não entendi muito bem o que o peão contou, mas
aquela história ficou gravada em minha lembrança.
Assim como essa, outras histórias sempre surgiam nas rodas do mate, do
tereré, nos dias de carneada ou nas noites de lua, quando se podiam ver, na branca
areia, as cobras em busca das presas.
Os que vinham com frequência à cidade, faziam as vezes dos jornais A
Tribuna, O Momento, A Gazeta, Diário da Manhã entre outros. Eram os casos mais
interessantes sobre o comércio, os prostíbulos, os tipos que perambulavam pela
cidade, a moda, a travessia no Porto da Manga, as pontes carcomidas pelas águas,
os fazendeiros e suas moradias na cidade, as viagens dos filhos ao Rio de Janeiro e
São Paulo — lugares para onde os aquinhoados mandavam os filhos a fim de se
formarem doutores.
Mesmo residindo em Corumbá, desde os cinco anos, era na fazenda onde
passava as férias de inverno e de verão. Nessas viagens, Totozinho levava a
criançada dos peões, do capataz, do fazendeiro com a responsabilidade de quem
carrega um tesouro.
Nossa chegada era sempre barulhenta e divertida: ninhos de jacarés
ameaçados, buracos de tatus em perigo, pássaros vigiados até o nascimento dos
filhotes: canarinhos, sabiás, tordos, joão-pinto, trinca-ferro, rouba-garfo, cardeal,
11
bicos-de-prata, galos-de-campina, periquitos, papagaios, quero-queros, biguás,
emas, curicacas e milhares de pequenas corujas, caburés.
Muitas foram as histórias que ouvi os mais velhos contarem, de outras
participei. Lembro-me das figuras de Kilingue, lavador de carros nas calçadas das
ruas Treze com a Frei Mariano; Palmiro Anão, o eterno guarda, com seu cacetete
correndo atrás de quem o importunasse; Lili Tiroteio, veneno na língua e andar
rebolante; Romildão, camisa aberta e saco sujo às costas; Totó, inimigo imaginário
de Garrastazu Médici com quem debatia em plenária; Maria Fedida, embolada com
todo tipo de trapo e chagas nas pernas; Tanaca, bandeira de santo, pedindo
esmolas para festas dos padroeiros; Maria Pretinha, também conhecida como Mariado-Saco ou Sacolita, atravessando as ruas de Corumbá e ganhando caminho em
direção à Bolívia, incansavelmente; Sinimbu, foice e verbo contra os guris da rua;
Sebastião Perna-seca, bafo de pinga, revólver faz-de-conta no gatilho e meia cidade
dizimada sob seus pés, na ladeira do Porto Geral.
Além desses, as pessoas mais velhas se lembram de Carne-Seca, espeto em
punho e velocidade a toda prova; Agostinho Peixeiro, vestido de trapos o ano inteiro
e de Don Juan no Carnaval: terno de linho branquíssimo; Maria Cachorrinha e Maria
Mulata, musas das noites da cidade; Josetti e Maria Bolacha, eternas damas das
calçadas; Bola Sete, animada e divertida figura, talvez uma alusão à bola da sinuca;
Carrapato, calmaria sem limites; Bamburrá e Cemitério, místicos curandeiros; Máriopega-sapo, o encantado pelas jias do laguinho da Praça Independência, o Jardim do
passeio aos domingos; Cegonha Alemão; Chico Chaga, Chico Sapo; Chiquinha
Passa-Bem; Jujuba; Pega-Polícia, Rubafo e, também, hippes, mochileiros,
personagens de passagem, anônimos ou nominados pela população local.1
Muitos são os nomes, muitas são as histórias registradas nas lembranças,
nos arquivos pessoais e em algumas poesias e crônicas2. São personagens e
histórias que vêm do início do século XX e chegam aos nossos dias. Há, em
Corumbá, desde sempre, uma constância de moradores de rua, de andarilhos, de
mendigos, de loucos mansos. Na atualidade, no segundo semestre de 2009,
conforme dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Ações Sociais, contam-se
1
Nos anexos, apresentamos crônicas, iconografia e fotografias de algumas das personagens
recriadas na obra de Manoel de Barros, ou de personagens posteriores similares a elas.
2
Renato Báez (ver anexo 1) dedica um capítulo de sua obra Corumbá: Figuras e Fatos (1964) aos
“tipos populares” de Corumbá.
12
trinta e um indivíduos, maiores de dezoito anos, em situação de rua. Trataremos, no
entanto, de alguns daqueles que perambularam na cidade e região e que são
invocados na obra de Manoel de Barros. Ressalte-se que, neste estudo, não nos
interessa o registro civil dessas figuras populares, certidão de nascimento ou a
origem de seus pseudônimos, mas a recriação dessas figuras em criações literárias
de cronistas e poetas.
Com o propósito de contribuir para as discussões que vêm ocorrendo, no
meio acadêmico, acerca dos conceitos de fronteira e de identidade, em diversas
áreas do conhecimento, a partir de enfoques diferenciados, nossa pesquisa,
eminentemente bibliográfica, visa à verificação das similaridades e a descoberta de
variâncias quanto ao registro histórico, quando confrontamos a crônica de
historiadores, as narrativas orais, com a recriação poética de figuras populares na
obra de Manoel de Barros. Dentre as recriações poéticas barreanas, daremos
especial enfoque às figuras de Maria Bolacha, Bola-Sete, Antoninha-me-leva e Maria
pelego-preto, personagens presentes também nas lembranças, no imaginário, na
historiografia e nas memórias poéticas.
Nossa constatação, na pesquisa empreendida, é que a obra de Manoel de
Barros recupera e incorpora muitas dessas figuras populares da história de Corumbá
(comerciantes, andarilhos, mendigos, loucos mansos, prostitutas, migrantes, dentre
outras), recriando-as como personagens poéticas e ficcionais. Os personagens3
recriados na poética de Manoel de Barros compõem também a memória e o
imaginário de muitas pessoas da fronteira Brasil-Bolívia da região de Corumbá.
Alguns estudiosos consideram que o grande arsenal dos romancistas e dos
poetas é a memória, de onde eles extraem os elementos da invenção. É o caso de
Manoel de Barros. Nossa proposta de trabalho é buscar, em teses, artigos,
dissertações e na História da região fronteiriça de Corumbá, o registro cronístico de
figuras populares que viveram, nesse espaço de encontro e de divisa, na primeira
metade do século XX, e que se presentificam, ficcional e poeticamente, na obra de
Barros.
Luiz Alberto Brandão, no livro Grafias da Identidade, afirma:
3
Valemo-nos da distinção de gênero para diferenciar os personagens históricos, aqueles que
existiram na concretude civil dos quais temos registros em fontes primárias, de as personagens,
consistindo estas em criações ficcional ou poéticas, ainda que inspiradas em figuras reais.
13
Tradição e memória são dois conceitos freqüentemente associados.
A existência da tradição se deve à capacidade de reter referências
de um passado comum. Fazemos parte de uma mesma tradição – o
mesmo grupo, a mesma família, a mesma nação – se o
compartilhamento de nossas recordações revela a semelhança do
perfil de nossas vivências pretéritas. A memória é, pois, o elemento
que molda a tradição, que a mantém viva e reforça seu poder de
atuação. (Brandão, 2005, p. 71).
De acordo com Brandão (2005, p. 82), a memória seria “uma espécie de
cimento que une e uniformiza referências dispersas e fragmentadas”. Assim, a
memória nos ajudaria a definir quem somos e essencial para definir nossa
identidade seriam as experiências acumuladas.
Dessa forma, voltamo-nos para o estudo da ocupação e identidade
fronteiriças sob o ângulo da observação das personagens recriadas na poética de
Manoel de Barros. São figuras que também estão na memória historiográfica, no
imaginário coletivo e em registros pictográficos.
No percurso desta pesquisa, observamos a necessidade de se organizar o
acervo de documentos na cidade de Corumbá, visto que, devido à circunstância de a
cidade ter pertencido ao estado de Mato Grosso, muitos de seus registros
encontram-se hoje em Cuiabá. Cria alguns óbices, dada à distância entre as duas
cidades e, vez por outra, surgem afirmações, apressadas, de que a região fronteiriça
de Corumbá careça de identidade, mesmo considerando que
[...] os marcos geográficos não dão conta da tarefa de delimitar o
espaço fronteiriço, uma vez que, rotineiramente, eles são
persuadidos a ser esquecidos, ou ignorados. O espaço é apropriado,
concreta e simbolicamente, já nos ensinou Claude Raffestin, e, por
isso, sua delimitação transgride, usualmente, a física da geografia.
(OLIVEIRA, M., 2009, p. 84).
A partir de obras que abordam a história de Corumbá, quanto ao registro de
figuras populares na região, voltamo-nos, pois, para estudo que apresente aspectos
sociais e culturais dessa região fronteiriça, tais como esses aspectos e aquelas
figuras são representados na poesia de Manoel de Barros. Entendemos o poético,
quanto ao recorte delineado, uma invenção ficcional calcada na memória afetiva do
poeta que pode – e deve, nos termos do estudo a que nos propomos fazer – ser
homologado pelos estudos históricos.
14
Notamos que, entre as figuras retomadas por Manoel de Barros, avultam os
tipos humanos da mendiga e do andarilho, personagens populares nessa região. As
figuras da mendiga e do andarilho, personagens às quais nos voltaremos com
especial atenção, terminam por evocar arquétipos4 que indiciam a visão de mundo
do poeta.
A mendiga e o andarilho integram o espaço da “fronteira” barreana e,
metaforicamente, representam a poesia e o poeta. Assim sendo, esta dissertação –
A mendiga e o Andarilho: a recriação poética de figuras populares nas fronteiras de
Manoel de Barros – é constituída de textos que resultaram das pesquisas efetivadas
acerca dos Estudos Fronteiriços.
Ao empreendermos este estudo, moveu-nos a crença de que, ao – em sua
poética – recuperar e incorporar figuras históricas de Corumbá e da Bolívia, da
fronteira com o Brasil, Manoel de Barros preenche lacunas historiográficas, com o
que nos permite – quanto à região – uma nova visão sobre a vida privada e o estudo
das peculiaridades do primeiro quarto do século vinte.
Desse modo, propusemo-nos, de início, dois problemas, um, poético, no
âmbito da estética, e outro – com duas vertentes, uma poética, outra histórica –,
sociológico:
1. Qual o motivo da incorporação, por Barros, em seus poemas, de figuras
populares de Corumbá?
2. Qual o sentido ideológico dessa incorporação?
No que tange ao segundo problema, acreditamos que o indiciado aqui
propiciará a outros pesquisadores estudos inovadores acerca da poética barreana.
Desnecessário dizer que Manoel de Barros que nasceu em Cuiabá, em 1916,5
mas radicou-se em Corumbá onde tem uma fazenda; é o poeta da região do
Pantanal mais reconhecido, com estudos sobre a sua obra em diversas
universidades brasileiras, européias e norte-americanas. A universalidade de sua
poesia transcende e questiona fronteiras, o que é um aspecto a mais que nos
estimulou no presente estudo.
4
5
Utilizamos arquétipo, aqui, no sentido de certo patrimônio comum de imagens e concepções de
mundo das comunidades da infância de Barros e que carregam, em si, a mundividência de
Corumbá e do Pantanal, tornadas paradigma e emblema constitutivo da ars poética do poeta nas
figuras da mendiga, transmutada na despossuída símbolo, e do andarilho, personificado no
peregrino, metáfora de uma visão despojada da existência.
Há registro de que Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em 1937. Ver anexo 28.
15
Buscamos em pesquisa bibliográfica o perfil dos personagens reais, para
comparar os registros da memória afetiva corumbaense com as personagens
literárias. Valemo-nos, ainda, da comparação entre tais personagens, na poética de
Barros; tais personagens surgem em Poemas Concebidos Sem Pecado (PCSP),
mas são retomados em praticamente todas as obras posteriores de Barros. As
manifestações culturais que retomam os personagens populares são demonstradas,
neste trabalho, com quadros de Daltro (artista plástico corumbaense).6
Diante de tal perspectiva, nosso corpus contempla a poética de Manoel de
Barros, considerando que através dela é possível observar lacunas que remetem
tanto ao ficcional quanto ao factual, sem que esses se tornem adversos e
excludentes.
A partir dessa proposição, traçamos os seguintes objetivos:
a) Identificar em crônicas e na historiografia as figuras populares da região
fronteiriça de Corumbá, recriadas na produção literária de Manoel de
Barros;
b) Delinear um conceito de fronteira a partir da poética de Manoel de Barros.
Assim, este estudo se compõe de duas partes distintas. Na primeira,
apresentamos concepções de fronteira como proposição interdisciplinar que
considere as obras literárias, a variedade epistemológica e a geografia social – ou
seja, o múltiplo, o diverso, o humano; quanto aos registros históricos, as figuras
populares que Barros menciona em sua obra, em especial nos Poemas concebidos
sem pecado (1937) e na trilogia Memórias inventadas (2003, 2006, 2008).
Na segunda parte, estabeleceremos relações de proximidade entre o
registrado na história oficial e o recriado na poética de Manoel de Barros, visando a
instaurar um diálogo entre ficção e História. Desse modo, na presente pesquisa,
indiciamos na ars poetica de Barros, o sentido ideológico da retomada das figuras
populares, tema que pretendemos aprofundar em estudos posteriores. Nossa
proposição é de que tal retomada se insere na valorização que o poeta faz do
insignificante, do descartável e do que a civilização despreza.
6 Os quadros estão reproduzidos nos anexos 9 a 15. Os anexos 16 e 17 apresentam capas de obras
literárias de escritores pantaneiros.
16
Na categoria do insignificante, os estudiosos têm colocado os pequenos
seres do Pantanal e os marginalizados da sociedade. Em nosso estudo, procuramos
compreender, no âmbito da poética de Manoel de Barros, o lugar do insignificante na
sociedade.
Cabe ressaltar que esta dissertação compõe-se de quatro capítulos nos quais
procuramos identificar o conceito de fronteira a partir da produção poética de Manoel
de Barros e a relação dessa poética barreana com o espaço geográfico e cultural da
fronteira Oeste (Brasil - Bolívia).
Sob esse prisma, buscou-se preencher sensível lacuna, nos estudos da
produção poética de Manoel de Barros, assim como coligir acervo para futuros
pesquisadores.
1 CONCEPÇÕES DE FRONTEIRA
Tema de investigação caro a historiadores e cientistas sociais, a conceituação
de “fronteira” faz referência, entre outros, a campos geográficos, históricos,
demográficos, sociológicos, linguísticos, filosóficos e culturais. As fronteiras podem
ser construídas no espaço e no tempo; podem se caracterizar como culturais,
sociais, entre gêneros, econômicas e tecnológicas; podem ser divisão, limite, mas
podem ser intersecção ou traço que une. Marca limite físico ou simbólico, fixa a
identidade, determina a alteridade. Este capítulo tem como proposta apresentar
diferentes significados que a palavra fronteira assume, em especial quando a
analisamos sob o ângulo dos estudos literários, e como o sema é definido na poética
barreana.
Questões preliminares problematizam nossa busca pelo caráter do sema
“fronteira” em Barros:
1ª - O fato de o poeta Manoel de Barros ter crescido em Corumbá, uma
cidade na fronteira do Brasil com a Bolívia, impacta de que modo a noção de
fronteira que emerge da sua obra?
2ª - O muro, do poema homônimo, cumpre algum papel alegórico como marco
de fronteira?
3ª - Podemos inferir da noção de fronteira estabelecida por Barros, na sua
obra, uma metáfora que, ao denunciar, divide a produção literária em cosmopolita e
em provinciana?
Cabe-nos observar que o muro barreano, como marco de fronteira, é linde
com três configurações:
1ª - cerceadora: estabelece o cerceamento da liberdade ― quando limita,
embora simultaneamente pareça violar o sentimento de pertença que impõe;
2ª - preservadora: possibilita preservar a identidade ― quando impede que o
externo interfira no local, separando, no espaço, internos de externos;
3ª - delimitadora: delimita e conforma a soberania de quem o construiu.
Para homologar nossas conclusões, recorreremos a outros poemas de Barros
em que o sema “fronteira” aparece como discurso ou como sentido indiciado.
18
1.1 Fronteira: limes e dissociação
As fronteiras têm despertado sentimentos contraditórios: muitas vezes,
ofendem quem está de um lado; outras, tranquilizam quem está de outro lado. Para
permitir uma abrangência maior acerca do conceito de fronteira e subsidiar este
estudo, repassemos visões teóricas de diferentes áreas do conhecimento.
Conforme nos ensina o geógrafo André Roberto Martin,
É imprescindível [...] uma clarificação histórica, uma vez que,
efetivamente, a fronteira ‘em si’, isolada, não existe, mas o que existe
sim são ‘as fronteiras’, no plural, formadas historicamente umas em
relação às outras. (MARTIN, 1992, p. 13).
Com uma visada historicizante, as autoras de Limites e fronteiras
internacionais: uma discussão histórico-geográfica consideram que
Há um consenso na literatura de que é com o advento do Estado
Moderno que a fronteira linear, precisamente delimitada e
demarcada, vai se tornar imprescindível, já que para se impor o
Estado precisou, inicialmente, lançar as bases de sua soberania
territorial. Essa visão, no entanto, parte já da concepção moderna de
fronteira como limite dos estados nacionais. A relação entre limite e
soberania territorial não foi imediata, pois no mundo feudal (europeu)
os argumentos que embasavam o poder dos reis sobre o reino eram
de tipo feudal e não nacional. (STEIMAN e MACHADO, 2002, p.
4).
Para o geógrafo Márcio Cataia,
As fronteiras não decorrem só do espaço, mas também do tempo:
extensão e duração formam o conceito de limite. É o tempo que dá
significado à forma, ou seja, mais importante que a forma das
fronteiras é a sua formação. Sendo histórica, resulta de eleições [...].
As fronteiras, mesmo quando apoiadas em marcos naturais, são o
resultado de eleições sociais e não de imposições naturais. De fato,
nos albores da história, os elementos naturais condicionavam os
homens e suas atividades, impondo-lhes barreiras físicas. (CATAIA,
2007, p. 11).
Por seu lado, Jacques Leenhardt, aprofunda o debate conceitual:
19
Se a fronteira é menos uma linha do que um espaço – como deixa
entender a palavra latina limes (daí limite), que em Ovídio ou em Tito
Lívio designa o caminho que separa dois campos, o espaço que
permite não transgredir nenhuma das proibições acerca dos
respectivos espaços, espaços de ajuntamento, articulação, como se
viu no caso das faceries –, então a limes, o limite, designa um
intervalo, uma borda sem apropriação, mas dotada de todos os
valores políticos, simbólicos, religiosos que a mitologia grega reúne
sob a égide de Hermes. (LEENHARDT, 2001, p. 19).
Já para Pierre Bourdieu,
A fronteira nunca é mais do que o produto de uma divisão a que se
atribuirá o maior ou menor fundamento na ‘realidade’ segundo os
elementos que ela reúne, tenham entre si semelhanças mais ou
menos numerosas e mais ou menos fortes (dando-se por entendido
que se pode discutir sempre acerca dos limites de variação entre os
elementos não idênticos que a taxionomia trata como semelhantes).
(BOURDIEU, 2007, p. 114).
Foucher,7 citado por Torrecilha, trabalha a fronteira em três dimensões:
As fronteiras são as estruturas espaciais elementares, de forma
linear, com função de descontinuidade geopolítica e de delimitação,
de marco, nos três registros do real, do simbólico e do imaginário. A
descontinuidade se aplica entre as soberanias, as histórias, as
sociedades, as economias, os Estados [...] as línguas e as nações.
Na função de realidade, corresponde ao limite espacial do exercício
de uma soberania nas suas modalidades específicas: linha aberta,
entreaberta ou fechada. Na simbólica, remete à pertinência a uma
comunidade política inscrita num território que é o seu; têm um
sentido identitário. O imaginário conota a relação com o outro,
vizinho, amigo ou inimigo, e portanto a relação consigo mesma, com
a própria história e com seus mitos fundadores, ou destruidores.
(Foucher apud TORRECILHA, 2004, p. 15).
O percurso de leitura apresentado não se configura como único e findo.
Nosso objetivo não é traçar uma reflexão linear e totalizadora. Mesmo porque os
termos, idéias, noções e conceitos a que o vocábulo fronteira remete são díspares e
não se inscrevem de uma forma tão clara e coerente, ao se comparar os vários
discursos. E ainda, a concepção de fronteira é complexa, já que ela é histórica e
móvel.
Examinamos a concepção de fronteira proposta pela obra de Barros a partir
de dois poemas, sintomaticamente nomeados “O muro”: o primeiro deles aparece
7
FOUCHER, M. Fronts et Frontières: un tour de monde géopolitique. Paris: Fayard, 1991. cf. Torrecilha.
20
em Face imóvel, cuja primeira edição é de 1942, e o segundo surge em Poemas
rupestres, de 2004.
Verifiquemos, antes, a definição do vocábulo muro no Dicionário de
símbolos de Chevalier e Gheerbrant:
Muro, Muralha: No Egito, é na altura da muralha que se apóia seu
valor simbólico: ela significa uma elevação acima do nível comum.
Ela está ligada ao simbolismo do vertical mais do que ao do
horizontal. Mas a construção de fortalezas não exclui a primeira
interpretação no sentido de defesa das fronteiras. O famoso Muro
branco separava o Egito alto do baixo.
Talvez seja também como símbolo de separação que se deve
interpretar o famoso Muro das Lamentações. Assim chegar-se-ia à
significação mais fundamental do muro: separação entre os irmãos
exilados e os que ficaram; separação-fronteira-propriedade entre
nações, tribos, indivíduos; separação entre famílias; separação entre
Deus e a criatura; entre o soberano e o povo; separação entre os
outros e eu. O muro é a comunicação cortada, com a sua dupla
incidência psicológica: segurança, sufocação; defesa, mas prisão. O
muro se aproxima aqui do simbolismo do elemento feminino e
passivo da matriz. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 626627).
Manoel de Barros, no poema “O muro”, da obra Poemas Rupestres, trata
dos vários conceitos de fronteira e insere uma reflexão acerca do espaço social que
o outro ocupa. A imagem do muro aparece definida no título do poema,
caracterizado pelo determinante “O”, o que conota valor qualificativo: “O muro”. Não
se trata, portanto, de limite qualquer. O sintagma nominal, informado pelo eu-lírico,
remete à extremidade de uma casa, um pomar; é o obstáculo com o qual os
“ladrões” poderiam se deparar se quisessem entrar no local, mas é também o
espaço onde a voz poética se edifica.
No plano da expressão, é informado tanto o imaginado quanto o real. Cada
vez mais alto, o muro simboliza não somente um limite marcado, uma proteção,
como também o distanciamento, a comunicação interrompida, não efetivada, a
impossibilidade ou a probabilidade de interação do eu com os outros. Muitos são os
muros construídos com o objetivo de serem barreiras artificiais contra guerras,
inimigos, contra bandidos e forasteiros, como também são utilizados para separar,
segregar, para esconder tesouros e mazelas. Eis o poema:
21
O MURO
O menino contou que o muro da casa dele era
da altura de duas andorinhas.
(Havia um pomar do outro lado do muro.)
Mas o que intrigava mais a nossa atenção
principal
Era a altura do muro
Que seria de duas andorinhas.
Depois o garoto explicou:
Se o muro tivesse dois metros de altura
qualquer ladrão pulava
Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão
pulava.
Isso era.
(BARROS, 2004, p. 59).
Usualmente, o termo fronteira é associado à separação, à exclusão do
indesejado, de “qualquer ladrão” que, de uma maneira ou outra, ameace o objeto de
cobiça em um espaço demarcado. Mais difícil de mensurar a altura do muro quando
se insere a imagem da liberdade, conotada pela altura de duas andorinhas – aves
migratórias que, para muitos povos, simboliza o indivíduo sem fronteiras, a
mobilidade, o migrante, a liberdade e a renovação da vida; “duas andorinhas”
remetem a idéia de par, casal, união, solidariedade, conceito oposto ao que o senso
comum atribui a muro.
Nesse caso, a fronteira parece representar a possibilidade de congregação e
não de efetivação de diferenças: duas andorinhas compõem a pluralização da
liberdade, a medida dessa fronteira. Daí “a altura de duas andorinhas” subverter o
conceito de limite demarcado com que se tem associado a marca fronteiriça
representada pelo muro.
Diferente da célebre frase — “uma andorinha só não faz primavera” ou “não
faz verão” —, o eu poético reafirma: “duas andorinhas”, para conferir credibilidade à
sentença “da altura de duas andorinhas”. O muro torna-se símbolo de divisão, a
impossibilidade de se tentar entender o que está no outro lado. No poema de Barros,
a fronteira parece representar congregação e não efetivação de diferenças: duas
andorinhas compõem a pluralização da liberdade, a medida dessa fronteira. Assim,
no poema, o conceito de fronteira é paradoxal: o muro separa o espaço da
propriedade, mas — inusitada — também une os diferentes. Desse modo, tem-se
uma extremidade in-conformada com a principal concepção vigente.
22
A fronteira, nesse poema, é complementar; é onde há condição compactuada
e, é marco imaginário, se avaliar a sua altura “Que seria de duas andorinhas”.
As considerações de Raffestin corroboram nosso raciocínio:
A ordem e a desordem não são, paradoxalmente, noções opostas e
não representam mais do que momentos de um processo
semelhante ao da cinemática da fronteira. A fronteira não é uma
linha, a fronteira é um dos elementos da comunicação biossocial que
assume função reguladora. Ela é a expressão de um equilíbrio
dinâmico que não se encontra somente no sistema territorial, mas em
todos os sistemas biossociais. (RAFFESTIN, 2005, p. 13).
Através do discurso do eu-lírico, entrevemos um raciocínio cujo alcance
parece ter sido imposto pela História, o das certezas cristalizadas. Nesse caso,
remete à oposição entre a dinâmica e mobilidade das andorinhas, e o espaço fixo,
demarcado. Logo, o recorte de natureza horizontal, espaço que separa dois povos,
torna-se transponível para os indivíduos cuja mobilidade não se limita às certezas
pré-concebidas. Já a andorinha, por toda parte, está associada à fertilidade,
equilíbrio, alternância de ciclos; é ser que vive em bando na fronteira entre céu e
terra. Se faz muito frio ou calor, as andorinhas mudam de moradia.
O eu-lírico informa ao interlocutor:
Mas o que intrigava mais a nossa atenção
principal
Era a altura do muro
Que seria de duas andorinhas.
(BARROS, 2004, p. 59).
Muros que protegem ou separam, de certa forma, asseguram ou tentam
compor uma identidade, que, no entanto, já surge em diluição. No poema de Barros,
percebe-se, o marco fronteiriço é mais abstrato que concreto; a capacidade de o
menino imaginar, inventar, faz com que a barreira fronteiriça seja transposta. O que
evidencia uma inversão do estabelecido: o muro assegura o domínio, o status, mas
não impede a capacidade inventiva, a transgressão.
Os muros tornaram-se símbolos de uma sociedade dividida em classes,
lados, blocos, pólos antagônicos. Mas, em meio a tantas divisões a que esse marco
fronteiriço remete, vislumbra-se, na poesia de Barros, a possibilidade de que a
fronteira se efetive entre realidade e imaginação, tradição e renovação.
23
A eleição do espaço pantaneiro constitui o locus de enunciação da poética de
Barros, sem, contudo, deixar de evidenciar questões urbanas, cosmopolitas,
universais e atemporais. Em “O muro” (2004), parece que o eu poético vislumbra um
mundo além dos muros:
O menino contou que o muro da casa dele era
da altura de duas andorinhas.
(Havia um pomar do outro lado do muro.)
(BARROS, 2004, p. 59).
O pomar, enunciado entre parênteses, é o espaço fechado, o paraíso perdido
de onde o poeta extrai a sua essência poética. Eis aí outra fronteira instaurada: os
muros das urbes delimitam a poesia do lado de cá e o pomar (à parte) concretiza a
poesia do lado de lá, a periférica. Ao investir no questionamento da separação real
ou imaginária a que esse linde alude, observa-se o limite materializado entre o
cosmopolita e o provinciano, o centro e a periferia. Desse modo, o muro assume não
somente o sentido de defesa física do terreno, mas também do elemento que
relativiza a alteridade. O sentido ambíguo da identidade é apresentado no poema, o
narrador parece estar na extremidade de um reino e, então esclarece ao interlocutor:
“(Havia um pomar do outro lado do muro.)” (BARROS, 2004, p. 59).
Nesse contexto, uma das principais constatações acerca desse poema “O
muro”, de Manoel de Barros, é que o poeta reformula a história de seu tempo,
apresentando uma imagem que reflete o fato de que “[a] fronteira vai muito mais
além do fato geográfico que ela realmente é, pois ela não é só isso” (RAFFESTIN,
2005, p. 10).
No poema “O Muro”, de Face Imóvel, o eu enunciador assim se expressa:
O MURO
Não possuía mais a pintura de outros tempos.
Era um muro ancião e tinha alma de gente.
Muito alto e firme, de uma mudez sombria.
Certas flores do chão subiam de suas bases
Procurando deitar raízes no seu corpo entregue ao tempo.
Nunca pude saber o que se escondia por detrás dele.
[...]
(BARROS, 2010, p. 40-41).
24
Nesse poema, o abandono social parece relacionar-se com o que havia por
detrás desse muro. Há uma identificação com o espaço enunciado, mas há também
uma assimetria entre o vivenciado e o narrado. O muro erige-se opaco, restritivo,
sombrio, ainda que contenha a beleza que o tempo e as flores lhe emprestam. Alémmuro o que existe só se pode supor, e o eu-lírico supõe que seja abandono. Se as
andorinhas indiciam limite pela abstração, o muro de Face imóvel erige-se na
concretude, de bases firmes no chão onde deita raízes e a partir do qual ganha
existência, e identidade, como “alma de gente”.
Ao que parece, o poeta percebe, no poema de 1942, os duros limites
impostos pelas restrições com as quais o eu-lírico convive, para depois, no poema
de 2004, desrealizar tais limites, erigindo-os pelo símbolo, pela metáfora das
andorinhas. O outro lado, antes pressuposto, emerge como quintal que representa a
urbe. É como se o poeta migrasse, de um muro ao outro, para a constatação de que
as fronteiras se enraizaram pela padronização cosmopolita, cabendo ao poeta desconstruir o sistema elitista do poder conveniente ao cânone, ainda que
Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão
pulava.
Isso era.
(BARROS, 2004, p. 59).
A relação com o espaço tem repercussões no processo de construção da
identidade, a qual depende das relações dialógicas do eu com os outros. Ao tratar
do conceito de fronteira, faz-se necessário refletir acerca da questão da identidade.
Nas palavras de Stuart Hall:
A identidade [...] preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ –
entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos
a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que
internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de
nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os
lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A
identidade, então costura (ou, para usar uma metáfora médica,
‘sutura’) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.12).
As identidades poéticas foram, parafraseando Hall, “suturadas” tanto pelo
movimento de concentração e tradição quanto pela dispersão e expansão de idéias.
Assim, cabe ao poeta que observa o mundo com olhos de menino deslocar padrões
25
pré-estabelecidos. Nesse sentido, o discurso do reconhecimento aparece não só no
âmbito individual, mas também na esfera pública.
A alteridade, apresentada no poema (2004) de Barros, mostra-se afastada da
racionalidade do adulto e, conotativamente, identificada com o modo como a criança
concebe e se relaciona com o meio que a cerca. Desse modo, o pomar, espaço
almejado, “do outro lado do muro” (BARROS, 2004, p. 59), é compartilhado no plano
da imaginação. Há um obstáculo no caminho: o muro, responsável pela limitação do
desejo; mas esse poema narrado em primeira pessoa torna-se, pois, como um
elogio à criatividade inventiva de quem traz o olhar infantil, o qual tem consciência
da sua própria invenção: uma fronteira paradoxal, onde o impossível é possível. A
fronteira surge, então, como um reino a ser desencantado: ”Isso era”.
A forma verbal no pretérito imperfeito do indicativo faz lembrar a narração das
fábulas, contos fantasiosos: “era”.
Entretanto, no poema da obra Face Imóvel, o muro representa um ancião,
desencantado e abandonado: “Não possuía mais a pintura de outros tempos”
(BARROS, 2010, p. 40).
No poema intitulado “Caso de amor”, da obra Memórias Inventadas: a
infância, o eu-lírico identifica-se com uma estrada, um caminho que “não tem
indiferença pelo seu (meu) passado” (BARROS, 2003, XII), é o lugar em que, talvez,
retome o indivíduo de outrora, o qual faz um percurso em busca de si mesmo:
[...] Esta estrada melhora muito
de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que
ela bota sentido em mim [...].
(BARROS, 2003, XII).
A fronteira na poética barreana talvez seja um entre-lugar, resultante do que é
concreto e do que é representação, com o qual o eu-lírico ora com ele se identifica,
ora dele se afasta. É o limes que delineia dois campos, dois territórios, mas é o
caminho, a estrada que o poeta precisa percorrer para perceber e manter sua
identidade:
[...] Esta estrada melhora muito
de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que
ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a
escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença
pelo meu passado [...].
(BARROS, 2003, XII).
26
Nossas identidades refletem as experiências históricas em comum e os
códigos culturais partilhados. Dessa forma, a estrada na poética barreana torna-se o
limes, o trajeto que separa dois campos, é a faixa que separa a diacronia, presente e
pretérito, e os espaços, “aqui” e “a escola”. Assim, a estrada remete ao caminho por
onde perpassa a história poética de Manoel de Barros. A fronteira, então, nesse
poema, significa um espaço de convivência da alteridade sem que esta seja um
estrangeiro, ádvena.
Na obra Memórias inventadas: a terceira infância, o eu-lírico retoma o
espaço geográfico da cidade onde o poeta viveu durante alguns anos.
[...]. Há canoas embicadas e mulheres
destripando peixes. Ao lado os meninos brincam de
canga-pés. Das pedras ainda não sumiram os orvalhos.
Batelões mascateiros balançam nas águas do rio.
Procuro meus vestígios nestas areias. Queria saber
o sonho daquelas garças à margem do rio. Mas não
foi possível. Agora não quero saber mais nada, só
quero aperfeiçoar o que não sei.
(BARROS, 2008, V).
O mote do poema não é somente o lugar e seus habitantes, mas a voz
poética que, ao final de suas andanças, “só” pretende “aperfeiçoar o que não sei”
(negrito nosso). No mesmo diapasão de um eu que narra e se recorda da infância,
há um adulto que se ressente: “Agora não quero saber mais nada”. Em suma, o eulírico pressente que a sua é uma poesia deslocada dos padrões vigentes na urbe.8
Desloca-se também no espaço, da cidade para a natureza, e da natureza para o
onírico:
Queria saber
o sonho daquelas garças à margem do rio. Mas não
foi possível.
(BARROS, 2008, V).
O poeta esticou o campo semântico das palavras nativas do locus enunciado
em sua poética além-muro, mas está fora do cânone, domínio da nação.
Alceste de Castro, em Literatura Corumbaense, sentencia o seguinte acerca
de Manoel de Barros e de sua poética:
8
Diversos trabalhos enfatizam esse deslocamento, cf Grácia-Rodrigues (2006), Béda (2002) e Silva
(1998).
27
Modesto, os grandes críticos ainda não o definiram. Mas, quando ele
for compreendido, estudado, pesquisado, veremos que ele é um dos
mais raros, felizes e magníficos momentos da moderna literatura
brasileira. (CASTRO, 1981, p. 48).
Como bem observou Alceste de Castro, a obra de Manoel de Barros tem sido
“vorazmente” estudada neste século, em várias áreas e em diversos países, o que a
torna além-fronteira.
Desse modo, talvez seja adequado ratificar que o percurso de leitura
apresentado não se configura como único e findo, uma vez que nosso objetivo não é
exaurir tais reflexões acerca dos conceitos de fronteiras e identidades. Até porque,
enquanto produto humano, a Literatura, parece-nos, apresenta-se como importante
elemento para os Estudos Fronteiriços. Ainda que a concepção de fronteiras seja
complexa, já que essas são móveis, posto que históricas, posto que humanas ―
acreditamos que é justamente isso, tal como depreendemos da leitura proposta
neste capítulo, que a poesia de Barros demonstra.
1.2 A fronteira como constructo da identidade
O conceito de identidade pode ser analisado em diferentes áreas de estudo.
No verbete do dicionário de semiótica (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p. 27, 140,
251-252 e 440), o conceito de “identidade” é tratado como a relação de
pressuposição recíproca com o termo oposto “alteridade”, significando, em síntese, a
oposição entre “o mesmo” e “o outro”.
Paul Ricoeur afirma que a
identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois
definir-se é, em última análise, narrar. Uma coletividade ou um
indivíduo se definiria, portanto, através de histórias que ela narra a si
mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a
própria essência da definição implícita na qual esta coletividade se
encontra. (RICOEUR, 1997, p. 432).
De acordo com Zilá Bernd,
[...] identidade é uma entidade [que] se constrói simbolicamente no
próprio processo de sua determinação. A consciência de si toma sua
forma na tensão entre o olhar sobre si próprio — visão do espelho,
28
incompleta — e o olhar do outro ou do outro de si mesmo — visão
complementar. (BERND, 2003, p. 17).
Para Machado e Haesbaert,
A construção e reconstrução de identidades não constituem um
processo linear. Trata-se de um processo eivado de contradições e
ambigüidades, os símbolos envolvidos nem sempre tendo a mesma
eficácia. Altamente complexo, o jogo de identidades pode ser
facilitado ou dificultado, de acordo com as condições sociais em que
se dá. (MACHADO e HAESBAERT, 2005, p. 93).
A identidade, na obra barreana, parece-nos, é resultado do vivido, do
realizado, do imaginado, do sentimento de lugar e do trajeto percorrido.
A propósito, destacamos o pensamento, anterior em mais de dois séculos, de
Rousseau:
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo
cercado um terreno, lembrou-se de dizer 'isto é meu' e encontrou
pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes,
guerras, assassínios, misérias e horrores não poupariam ao gênero
humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso,
tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse
impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de
todos e que a terra não pertence a ninguém’. (ROUSSEAU, 1989, p.
259).
Formulados em 1755, no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os
homens, os conceitos de Rousseau acerca de igualdade e desigualdade impostos
pela fronteira, pelo limite que a propriedade cria, coadunam-se com certas relações
no século XXI, em especial quando o que se observa são os interesses políticos,
econômicos e territoriais do “neo-colonizador”, se o que está em jogo são “seus”
limites e “suas” propriedades, ou seja, a autonomia real de suas “neo-colônias”. O
discurso político que oculta a dominação é mimetizado e problematizado por Barros.
Examinemos isso em poema de O livro das Ignorãças:
DIA UM
1.1
Ontem choveu no futuro.
Águas molharam meus pejos
Meus apetrechos de dormir
Meu vasilhame de comer.
Vogo no alto da enchente à imagem de uma rolha.
Minha canoa é leve como um selo.
Estas águas não têm lado de lá.
Daqui só enxergo a fronteira do céu.
29
(Um urubu fez precisão em mim?)
Estou anivelado com a copa das árvores.
Pacus comem frutas de carandá nos cachos.
(BARROS, 2001a, p. 33).
Nesse poema, os cursos das águas parecem atuar como um fator
preponderante para se observar uma nova abordagem acerca do sema fronteira. No
locus fronteiriço enunciado por Manoel de Barros, a estabilidade e instabilidade da
fronteira parecem contrariar o postulado pela cartografia “Estas águas não têm lado
de lá”, possibilitando ao eu-lírico uma identidade que se distancia à dos poetas, seus
contemporâneos: “Minha canoa é leve como um selo”. A canoa, meio de locomoção
e comunicação do eu poético, é também um símbolo de identidade do poeta “bugre
velho” que, na obra Livro de pré-coisas, enuncia:
[...]
Quando meus olhos estão sujos da civilização, cresce
por dentro deles um desejo de árvores e aves.
Tenho gozo de misturar nas minhas fantasias o
verdor primal das águas com as vozes civilizadas.
(BARROS, 1997, p. 12).
A experiência do eu poético aparece como algo que está para além de uma
invenção de palavras. Novamente, nesse poema, tem-se um eu que anuncia o
espaço com o qual se identifica, um eu que “bebe” as vozes civilizadas, mas não
perde o sentimento de pertença ao “verdor primal das águas”. Nesse sentido, o
significado de fronteira não traz ideia de fim, mas de começo de uma poética cuja
identidade é a soma de um eu mais os outros. Dessa forma, as diferenças entre o
centro e a periferia, a cidade e o Pantanal, e a existência dessas fronteiras, talvez,
sejam essenciais para se efetivarem as identidades.
De acordo com Kelcilene Grácia-Rodrigues,
Para o poeta, o bugre é um ser intocado pela civilização, integrado
ao meio ambiente, conhecedor das recônditas belezas da natureza: é
um sujeito simples que vê o mundo com um olhar sem máculas. O
homem civilizado não tem empatia com natureza, porque a olha
apenas como matéria para ser explorada e gerar riqueza. Para o
bugre, a natureza compõe o seu ser e destruir o meio ambiente
significa exterminar a si mesmo. É justamente o fato de Manoel de
Barros se sentir bugre que explica a vocação da sua poesia em
exaltar aquilo que normalmente não tem valor para a sociedade.
(GRÁCIA-RODRIGUES, 2006, p. 58).
30
Dessa forma, ao assumir-se “bugre”, o eu-lírico – e o poeta, ao falar de si, da
infância em inúmeras entrevistas que concedeu nos últimos anos – assegura sua
identidade de pantaneiro, de fronteiriço, mesmo que sua poesia não tenha como fim
fazer folclore, descrever paisagem ou defender temas ecológicos.
Na produção literária de Manoel de Barros, no espaço configurado, o euenunciador erige identidades líricas como resultado do vivido, do realizado, do
imaginado, do sentimento de lugar, do trajeto percorrido e do limes delineado como
entre-lugar.
1.3 A fronteira: entre-lugar
Em vários momentos de sua produção poética, Barros parece acentuar que a
territorialidade é fator marcante para integração ou exclusão do poeta “provinciano”
no espaço “cosmopolita”. Assim, a integração de poetas que não pertençam ao
cânone é um processo naturalmente lento, face ao jogo de interesses e influências
locais e mundiais que acabam por “ditar” as regras da produção literária de uma
nação, portanto fechar uma fronteira à literatura interiorana significa fechá-la
também às informações vindas do interior, da província. Logo, à barreira, aqui
representada pelo muro, cabe controlar o que pertence e aquilo que não pertence a
um determinado espaço.
No poema ”O muro” (2004), Barros consegue fundir os dois pensamentos.
Lembrando-nos de que há abstração quanto à igualdade, quando esta for concebida
no espaço além do muro, do pomar e da poesia. Nesse sentido, não é o muro que
faz a casa do menino diferente, mas a altura que a separa do pomar. A fronteira,
assim, é um espaço definido por uma prática onde a alteridade inventa suas leis, é
um terceiro espaço, o espaço do meio, é o “entre-lugar” (SANTIAGO, 2000, p. 9) da
interação, da complementaridade. O muro simboliza o limite demarcado entre dois
territórios, mas relativiza a alteridade.
Segundo Silviano Santiago,
O escritor latino-americano brinca com os signos de um outro
escritor, de uma outra obra. As palavras do outro têm a
particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus
31
olhos, seus dedos, e a escritura do segundo texto é em parte a
história de uma experiência sensual com o signo estrangeiro.
(SANTIAGO, 2000, p. 21).
Após percorrer alguns estudos referentes às fronteiras, verificamos nos
poemas “O muro”, de Manoel de Barros, a forma como o poeta concretiza esse
marco fronteiriço: símbolo visível do limite de um espaço que não pertence a
nenhum dos dois lados.
A fronteira na poética barreana talvez seja um “entre-lugar”, resultante do que
é concreto e do que é representação, com o qual o eu-lírico ora com ele se
identifica, ora dele se afasta. É o limes que delineia dois campos, dois territórios,
mas é o caminho que o poeta precisa percorrer para perceber suas identidades.
Retomemos a análise do poema “O muro” (2004), no qual Barros,
conotativamente, enuncia conceito que, por metonímia, transforma-se em fronteira;
uma fronteira que, talvez, marque a passagem da Modernidade para um período
ainda não claramente caracterizado pelo cânone.
Parece-nos que os territórios, além de dominados, instrumentos de controle,
de inclusão ou exclusão do diferente, são também apropriados, concreta e
simbolicamente, numa infinidade de significados. Nesse sentido, o território é
mutável de acordo com as forças sociais que nele operam modificações; logo, é
produto das relações de poder de quem constrói muros, de quem efetiva as faixas
de fronteiras.
Conforme sentencia Barros: “Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa
dar noção” (BARROS, 2000, p. 68). Mas, refletir acerca dos conceitos de fronteira é
falar, às vezes, de contrastes, é aludir a conceitos geopolíticos, jurídicos, culturais
entre outros e, ao mesmo tempo, discorrer, sob a ótica da literatura, acerca do
simbólico, do “mágico” a que o sema fronteira remete.
Na poética de Manoel de Barros, o vivido, as Memórias e a narração do
vivido se entrelaçam em busca das identidades do eu poético. Há, no poema
seguinte, uma confissão desse eu enunciador:
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
32
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas
de orvalho.
(BARROS, 2000, p. 61).
O universo poético de Manoel de Barros, de certa maneira, opõe-se ao
espaço urbano e, ao mesmo, tempo reflete o local e o universal; resultando certa
estranheza aos padrões até então consagrados pelo cânone. Ao postular uma
poesia diferente, almejar “monumentar as pobres coisas do chão mijadas / de
orvalho”, evidencia uma peculiaridade da região fronteiriça onde o poeta viveu; as
relações de poder levam ao estabelecimento de novas trajetórias poéticas.
O eu-lírico apresenta-se como um ser que tem tradição. O sentido de
tradição, nesse caso, está associado à noção de sentido histórico, o qual envolve
uma percepção de contemporaneidade “venho dos nobres que empobreceram”
(BARROS, 2000, p. 61). Desse modo, narra-se não apenas uma história, mas
também apresenta uma visão de mundo que vai além da tradição, do retorno aos
brasões familiares.
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(BARROS, 2000, p. 61).
Prosseguindo nosso raciocínio, o eu-lírico parece almejar inovação ao
“monumentar os insetos!” quando emprega a expressão verbal “Hei”.
Há um espaço que possui uma teia histórica de relações e uma identidade
definida: “Venho de nobres que empobreceram” (BARROS, 2000, p. 61) e “Hei de
monumentar os insetos” (BARROS, 2000, p. 61).
O conceito de entre-lugar a que nos referimos, enunciado por Silviano
Santiago, crítico literário e cultural brasileiro, torna-se pertinente neste estudo.
Entendemos o entre-lugar como o espaço da hibridização cultural, o espaço que
33
permeia o local e o universal; o hífen que justapõe e, ao mesmo tempo, separa;
como um espelho onde o outro é refletido.9
9
BHABHA, Homi (2003) e CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos (2007) também têm estudos em que
tratam, cada um a seu modo, do conceito de entre-lugar.
2 A OBRA DE BARROS E A HISTÓRIA DE CORUMBÁ
A obra de Manoel de Barros nos mostra um poeta que se volta para o
passado, para o seu pequeno território familiar, com o qual teve e tem muita
intimidade. Dessa forma, “[o] quintal onde a gente brincou” (BARROS, 2003, XIV) é
a fonte de onde jorra a sua poesia, é o espaço que indicia a fonte e forja a
identidade do menino Nequinho e do jovem Cabeludinho, seu alter-ego. O quintal é
cenário superlativo tornado metonímia do itinerário que o poeta vai retomar nas
memórias que inventa, pois tudo o que ele não inventa é falso (BARROS, 2003,
epígrafe), conforme um de seus versos mais célebres.
Do seu “quintal” doméstico, o aprendiz de poeta, Cabeludinho, e o poeta
bugre-velho, Manoel, faz a fonte dos “achadouros” (BARROS, 2003, XIV) e das
figuras que reinventa para compor sua poética. A partir desse microcosmo “maior do
que a cidade” (BARROS, 2003, XIV), o poeta engendra uma representação do
mundo em que os despossuídos, invocados no palimpsesto das lembranças,
ganham papel de maior realce.10 E das lesmas pantaneiras e das figuras humildes
que estão nas crônicas dos historiadores, Barros ― para nos valermos da
terminologia aristotélica ― edifica poesia que dialoga com a memória historiográfica
e a supre com o possível, a poesia, tornado História, memória do real.
Em sua produção poética, Manoel de Barros dialoga com autores oriundos
das mesmas águas e do mesmo barro do Pantanal, tanto historiadores quanto
literatos. Entre esses, há clara reciprocidade dialógica com o poeta Lobivar Matos e
com o cronista histórico Ulisses Serra. Entretanto, em Serra e em Lobivar, a
memória tem outra dimensão e se dá de forma diversa quanto àquela com a qual
Barros trabalha, em especial na ambígua e indefinível coalescência entre o poético e
o histórico.
A partir de tal consideração, nosso propósito neste capítulo é verificar de que
modo as condições históricas do primeiro quartel do século XX se apresentam em
Poemas concebidos sem pecado (primeira obra de Barros, lançada em 1937,
10
Grácia-Rodrigues (2006, p. 70) vê em PCSP um “romance de formação” e nas obras posteriores de
Barros “ideário, voltado para as coisas que a sociedade de consumo considera sem importância,
como as lesmas e as lagartixas, construído com matéria-prima oriunda dos marginalizados, dos
loucos, dos poetas, das crianças, e alicerçado na experiência de vida dos despossuídos de bens
materiais”.
35
identificada, aqui, também como PCSP), de que maneira são recriados cenários e
personagens em Livro de Pré-coisas (obra de Barros lançada em 1985) e de como
o histórico, o cenário e as personagens são representados em Memórias
inventadas – a infância (BARROS, 2003), obra em que o poeta, por meio dos
“achadouros do poético” (BARROS, 2003, XIV), volta-se para a infância e resgata,
das
lembranças,
suas
experiências
de
quando
menino.
Desse
modo,
empreendemos algumas reflexões acerca da literatura de Manoel de Barros.
2.1 Os achadouros da poética e do poeta
A obra que marca a estréia de Manoel de Barros, o volume Poemas
concebidos sem pecado (PCSP), foi lançada quando contava o poeta dezenove
anos. Conhecido pela alcunha carinhosa de Nequinho, Barros nascera em Cuiabá e
a família se mudara para uma fazenda, na Nhecolândia, antes que o bebê
completasse dois meses. Nequinho cresceu entre os deslimites do Pantanal e as
molecagens em Corumbá. O município desenvolvera-se economicamente de forma
acelerada desde o final da Guerra do Paraguai, tendo como fator predominante a
condição de entreposto comercial que sediava atacadistas de secos e molhados e
concentrava a exportação de produtos pantaneiros como o charque, o couro de boi e
o sal.
Embora não seja um livro sobre o Pantanal, conforme adverte o próprio
narrador ao anunciar as “pré-coisas” de sua poesia, Manoel de Barros, em Livro de
Pré-coisas, trabalha com elementos da flora, da fauna e da cultura pantaneira. Para
elucidar o seu fazer poético, recria cenários e personagens, imitando, em mimesis, o
Pantanal e a cidade de Corumbá.
Em Memórias inventadas – a infância, Barros desvela a situação ― à
margem da história oficial ― dos migrantes e imigrantes da região fronteiriça de
Corumbá e, ao mesmo tempo, empreende um diálogo autointertextual com o seu
primeiro livro. No poema “O escrínio”, de PCSP, Barros descreve Corumbá:
Um poeta municipal já me chamara a cidade de escrínio. Que àquele
tempo encabulava muito porque eu não sabia o seu significado
direito. Soava como escárnio. Hoje eu sei que escrínio é coisa
relacionada com jóia, cofre de bugigangas [...] Por aí assim. Porém a
cidade era em cima de uma pedra branca enorme E o rio passava lá
embaixo com piranhas camalotes pescadores e lanchas carregadas
36
de couros vacuns fedidos. Primeiro vinha a Rua do Porto: sobrados
remontados na ladeira, flamboyants, armazéns de secos e molhados
E mil turcos babaruches nas portas comendo sementes de abóbora...
Depois, subindo a ladeira, vinha a cidade propriamente dita, com a
estátua de Antônio Maria Coelho, herói da Guerra do Paraguai, cheia
de besouros na orelha.
(BARROS, 2005, p. 39).
O espírito empreendedor dos primeiros tempos da cidade tem registros nas
crônicas de Abílio Leite de Barros (Gente pantaneira, 1998),11 na historiografia de
Fernando Leite (Corumbá - Histórica e Turística, 1978), em estudos acadêmicos
(como A cidade e o rio: Escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza – o
caso de Corumbá (MS), 2006, de Elaine Cancian, para mencionar apenas um
estudo), nos diversos volumes com anotações de cunho histórico de Renato Báez, e
ao menos em um romance de envergadura, o Raízes do Pantanal, de Augusto
César Proença, obra vencedora do Prêmio Brasília de Ficção de 1985 e que foi
lançada, em 1989, pela Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, em co-edição com o
Instituto Nacional do Livro.12
O ciclo de crescimento econômico de Corumbá sofre um baque nos anos 20,
o que é amplificado quando a ligação comercial do município com a capital de Mato
Grosso perde importância para o eixo Cuiabá - Campo Grande.13 Além dos
imigrantes, parece aumentar em quantidade, na cidade dos ermos do Pantanal, os
desempregados, os párias, os andarilhos. A potencialização dos recursos
econômicos, pelo qual a cidade passara, é destacada por Corrêa (2006, pp. 68-81),
em capítulo cujo título é “Estratégia política do comércio portuário de Corumbá”. Mas
o transporte fluvial, já em 1919, perdia importância diante do ferroviário, e a cidade
ficava à margem das trocas comerciais:
Além da perda do controle na distribuição de mercadorias nas
regiões agora servidas pela estrada de ferro, os comerciantes
corumbaenses também ficaram à mercê dos funcionários da ferrovia
que não mantinham com regularidade a circulação dos trens de
carga, que traziam mercadorias duas vezes por semana para
Corumbá, via Porto Esperança. Segundo denúncias, esse fluxo de
mercadorias, em 1919, sofria, às vezes, atrasos de um a dois meses,
o que causava ainda mais prejuízos aos comerciantes de Corumbá,
e uma nova dependência da cidade às atividades da ferrovia.
(CORRÊA, 2006, p. 104).
11
Ver também, de Abílio Leite de Barros, Pantanal pioneiros: álbum gráfico e genealógico de
pioneiros na ocupação do Pantanal, Brasília, Senado Federal, 2007.
12
Observamos reflexões acerca da cultura pantaneira nos anexos 13, 14, 15, 19, 20, 21 e 22.
13
A ligação rodoviária Cuiabá - Campo Grande é do final dos anos 50 (cf. CORRÊA, 1973, p. 22).
37
A cidade, cujo desenvolvimento se deu com a presença dos migrantes, com a
exploração do porto fluvial, como entreposto de comércio, e com a atividade da
pecuária extensiva no Pantanal, em particular com a desenvolvida na região da
Nhecolândia, estanca, com os seus dirigentes não demonstrando interesse em
viabilizar alternativas para o novo contexto histórico. Metáfora viva desse momento,
tornada ontologia identitária, encontramos na afirmação feita por Alceste de Castro
de que “Corumbá é uma cidade jaboti. Vagarosa no progresso. E quando vem a
borrasca enfia-se na couraça e espera a tempestade passar” (CASTRO, 1981, p.
17).
Ao nos voltarmos para a poesia de Barros, verificamos nela personagens,
temas e espaço geográfico que sugerem ao leitor a Corumbá do primeiro quartel do
século XX. Assim, forma-se uma rede de textos que dialogam entre os fatos
narrados pela historiografia e os recriados nas Memórias do poeta, o qual fixa cenas
de uma cidade que prosperou e, ao tornar-se centro, paradoxalmente, estagnou.
2.2 Do esplendor ao crepúsculo
Ao compulsar análises esparsas e estudos segmentados, parece-nos
vislumbrar ― à falta de estudo consolidado da história de Corumbá ― um período
de esplendor que tem início após a Guerra do Paraguai e que se esvai nas primeiras
décadas do século XX, quando muitas transformações econômicas marcam, nessa
região fronteiriça do Brasil com a Bolívia, o cotidiano das pessoas simples. O
historiador Marco Aurélio Machado de Oliveira assim comenta:
Por volta dos anos l920-30, a cidade que se notabilizava por ser
formada por estrangeiros de diversas nacionalidades, passava,
lateralmente, a se tornar provinciana, em si e para si mesma, pois,
com o deslocamento do eixo econômico Corumbá-Cuiabá para
Campo Grande - Cuiabá as dinâmicas atividades comerciais
intraregionais começaram a entrar em colapso. (OLIVEIRA, M.,
2005, p. 351).
A prosperidade, que se dera com a atração de migrantes e pelos imigrantes,
fora dinamizada após a Guerra do Paraguai:
38
Ao final do século XIX a população de Corumbá contava com cerca
de 20 nacionalidades diferentes convivendo em torno de um intenso
comércio regional e internacional. Eram franceses, italianos,
portugueses, sírios, libaneses, paraguaios, macedônios, entre tantos
outros. Suas atividades limítrofes estavam plenamente tomadas pela
Bacia Platina, o que derivou um intercâmbio muito intenso com o Rio
de Janeiro, além da Argentina, países da Europa e, também,
obviamente, com o Paraguai. (OLIVEIRA, M., 2005, p. 351).
Estudiosos e cronistas como Edvaldo Cesar Moretti (2003), Lécio G. Souza
([198-?]) e Jesus Hernadez Martin (2003) apresentam o mesmo quadro. Moretti14
registra:
Em meados do século, com a instalação da Ferrovia Noroeste do
Brasil, ligando o centro industrial em pleno desenvolvimento – São
Paulo – em Mato Grosso, especificamente a Campo Grande e a
região pantaneira, o domínio monopolista sobre a região transfere-se
da região platina para o Sudeste brasileiro. Verifica-se, neste
período, a falência das empresas de charque da região. O interesse
do monopólio agora é pelo gado em pé, transportado pela Ferrovia
Noroeste do Brasil para ser abatido nos frigoríficos instalados em
São Paulo.
Concomitantemente, ocorre a decadência de Corumbá, enquanto
centro da região e o desenvolvimento de Campo Grande, enquanto
entreposto comercial da região Mato-Grossense. (MORETTI, 2003,
p. 341-342).
Entretanto, Brazil (2000), em “A cidade portuária de Corumbá e o mito da
decadência”, contesta a idéia de que a cidade tenha experimentado crise econômica
da dimensão expressa pelo vocábulo “decadência”; a historiadora argumenta que tal
palavra configura a idéia do “inevitável fim do mundo” Ocidental, que teria sido
propalada por pesquisadores universitários neopositivistas. Para a estudiosa, essa
visão sobre Corumbá ficou ultrapassada em decorrência de novas pesquisas que
surgiram sobre o desenvolvimento econômico da cidade (cf. BRAZIL, 2000).
Como quer que seja, o fato é que o menino Nequinho, o jovem poeta Manoel
e as memórias de Barros registram um espaço em que o contraponto à riqueza
material e à exuberância natural surge uma famélica leva de maltrapilhos, de
prostitutas e de andarilhos que busca o alimento do dia. Vemos uma cidade que vai
do esplendor ao declínio. Tais ecos das transformações urbanas reverberam na
poesia do ainda adolescente Manoel, que registra ― no calor da hora ―
14
As citações, sempre, conforme os respectivos originais.
39
personagens, tipos, histórias e sentimentos. Setenta anos depois, o poeta, para
inventar suas memórias, mergulha em lembranças que homologam a imagem de
terminalidade contida no sema “decadência”. Para tanto, com empatia transforma os
mendigos, os caminhantes sem rumo, os loucos, os estrangeiros sem eira nem beira
― enfim, aqueles que nada possuem em matéria de sua poesia.
2.3 O eu-lírico em palimpsesto
A cidade de Corumbá é assim apresentada na obra Livro de Pré-coisas:
[...]
Aqui é o Portão de Entrada para o Pantanal.
Estamos por cima de uma pedra branca enorme que
o rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe.
Já posso ver na semi-escuridão os canoeiros que
voltam da pescaria.
Descendo a Ladeira Cunha e Cruz embico no Porto.
Aqui é a cidade velha.
O tempo e as águas esculpem escombros nos
sobrados anciãos.
(BARROS, 1997, p. 11).
Ao que nos parece, os sobrados anciãos remetem ao abandono, já que “o
tempo e as águas esculpem” destroços de um período em que esse Porto
simbolizava a prosperidade do comércio local.
Na obra Memórias inventadas – a infância, o eu enunciador se lembra de
que “[p]elo arruado passavam comitivas de boiadeiros e muitos andarilhos”
(BARROS, 2003, VI). Local de passagem, no arruado o avô do menino15 instala um
comércio, com destaque para os mantimentos: “Vendia toucinho, freios, rapadura e
tais” (BARROS, 2003, VI). É espaço que se urbaniza devido à pecuária, mas que
mantém presente a natureza do Pantanal: “Atrás da Venda estava o rio” (BARROS,
2003, VI). Entretanto, o negócio não vinga ― e o que prospera são os desocupados:
[...] A Venda ficou no tempo abandonada. Que nem uma cama
ficasse abandonada. É que os boiadeiros agora faziam atalhos por
outras estradas. A Venda por isso ficou no abandono de morrer. Pelo
arruado só passavam agora os andarilhos. E os andarilhos paravam
15
A referência ao avô não corresponde à realidade. O avô do poeta viveu em Cuiabá, Mato Grosso.
40
sempre para uma prosa com o meu avô. E para dividir a vianda que
a mãe mandava para ele.
(BARROS, 2003, VI).
O tempo que transcorre no discurso enunciado é um tempo cronológico
passado que parece dialogar com o momento da enunciação, o abandono pretérito
antigo corroendo a distância temporal para, como abandono que vinca a alma do eulírico enunciador, se fazer presente. E o poeta lembra e explica: os boiadeiros
seguem por outros caminhos, a “Venda” está ferida de morte, não há mais negócios
a fazer ― o que resta são os andarilhos, sem posses, a não ser a da fome, daí que
proseiam com o avô visando partilhar a refeição que ele fará.
O eu-lírico, nesse “abandono de morrer” (BARROS, 2003, VI), retrata a
percepção do olhar infantil para a Corumbá em que, menino, o poeta viveu: a cidade
se esvazia economicamente, perpassa por sobre os seus habitantes o drama de
atividades que se encerram, do trabalho que não há, da renda que deixa de existir.
No espaço degradado pela miséria que, marcados pela imprevisibilidade dos fatos,
os andarilhos ficam à volta do arruado, tornam-se “a paisagem do meu avô”
(BARROS, 2003, VI), param ali sempre para “uma prosa”.
Diferente das comitivas de boiadeiros, que “agora faziam atalhos por outras
estradas” (BARROS, 2003, VI), os andarilhos parecem adaptados à dinâmica das
mudanças sociais e econômicas, dada a sua condição de “andar atoamente”, andar
a esmo, sem raízes, sem estarem em lugar que seja seu.
Na obra Livro de Pré-coisas, no poema “Carreta pantaneira”, temos uma
reiteração do anotado pelos cronistas e historiadores:
[...] Os bois, desprezados, iam engordando nos
pastos. Até que os donos, não resistindo tanta gordura, os mandavam pro açougue. Fazendeiro houve,
aquele um, que, havendo de passear pela Europa, enviou bilhete ao gerente: “Venda carreta, bois de carro,
cangas de boi”.
(BARROS, 1997, p. 31).
Obra sobre boiadeiros e peões no Pantanal trata das comitivas em um tempo
posterior ao rememorado pelo poeta, e constata:
Quanto aos boiadeiros e às comitivas, sua relação com tais
mudanças transitava pela incorporação lenta de hábitos que não
transformaram radicalmente a essência de sua profissão e de seu
41
universo mental, ainda que estivesse ocorrendo um crescimento do
‘mercado de trabalho’. Alguns aspectos dessa atividade
sobreviveram
quase incólumes
às
mudanças
históricas,
especialmente àquelas inseridas no campo das técnicas. As
comitivas, com o decorrer dos anos, diminuíram em termos
numéricos e a área de viagem foi reduzida, mas a presença e a
atuação delas ainda sobrevive como a única alternativa em regiões
ermas e afastadas das rodovias, ferrovias e hidrovias. (LEITE,
2003, p. 38).
Se as comitivas decrescem em número e em importância ao longo do século,
o momento inicial, do impacto das mudanças regionais e na economia de Corumbá,
cria circunstância histórica que gera efeito na sensibilidade do poeta adolescente. Se
o relato das mudanças pouco impacta em PCSP, a rememoração do tempo antigo,
no Barros que inventa suas memórias, documenta o processo e o revive, atualizado,
retirando dos desvalidos sociais criados pela decadência a fonte da sua poesia.
Nesse sentido, andarilhos e passarinhos se irmanam na paisagem doméstica,
com a figura do avô fazendo a transição entre o familiar e o mundo exterior:
[...] Tudo isso mais os passarinhos e os andarilhos
era a paisagem do meu avô. Chegou que ele disse uma vez:
Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser
poesia.
Dom de ser poesia é muito bom!
(BARROS, 2007, VI, sublinhado no
original).
Ou ainda, no poema “No tempo de andarilho”, o poeta atenta para a constante
passagem de viajantes, andarilhos e hippies pela região:
Prospera pouco no Pantanal o andarilho. Seis meses,
durante a seca, anda. Remói caminhos e descaminhos.
Abastece de perna as distâncias. E, quando as estradas
somem, cobertas por águas, arrancha. [...]
(BARROS, 1997, p. 47).
Temos, assim, um processo em que o poeta que rememora se identifica
com o passado rememorado, com o poeta que foi na juventude, com o cronotopos
evocado e, ao mesmo tempo, aproxima a Poesia da História.
Em Livro de Pré-coisas, o narrador faz algumas reflexões acerca da
ocupação, dos costumes e da cultura pantaneira. Eis um exemplo:
42
Nos primórdios
[...]
O homem havia sido posto ali nos inícios para
campear e hortar. Porém só pensava em lombo de cavalo. De forma que só campeava e não hortava.
Daí que campear se fez de preferência por ser atividade livre e andeja. Enquanto que hortar prendia o
ente no cabo da enxada. O que não era bom.
No começo contudo enxada teve seu lugar. Prestava
para o peão encostar-se nela a fim de prover seu cigarrinho de palha. Depois, com o desaparecimento do cigarro de palha, constatou-se a inutilidade das enxadas.
(BARROS, 1997, p. 37-38).
Entre a realidade histórica e o poema que conota tal realidade, medeia um
tempo cronológico de mais de meio século. Entre o referente retomado e a evocação
poética que a refaz como memória, o concreto da história tornou-se outro. Outro é
também o eu-lírico. Do Cabeludinho de antanho ao memorialista de agora ocorreu
um processo no qual o eu-lírico como que se desfez de si mesmo, para agora se
reencontrar. A identidade original dissolveu-se em uma identidade nova, outra, que
recobriu, com muitas camadas, o eu primevo. As referências identitárias, estáveis,
foram desestabilizadas pela vida, pelas leituras, por mudanças ideológicas. É um
processo: o poeta aos poucos deixa suas raízes e as transforma, as reelabora, as
simboliza, as desrealiza e as simboliza no outro em que ele se transformou. A
identidade passa por processo de se des-conhecer. Agora, com as Memórias
inventadas, o eu-lírico se reencontra consigo mesmo, se resgata, como que desfaz
o des-conhecer, construindo uma identidade compósita que sincroniza o palimpsesto
de si mesmo.16
Verifiquemos a trajetória do eu-lírico, discursivizado como eu-poético no
poema “Caso de amor” (Barros, 2007, XII). Trata-se de uma reflexão acerca de um
limes que surge caracterizado como “estrada deserta”. Com esse ermo, que indicia a
possibilidade de uma trajetória, o eu-poético se identifica, se reconhece, e com a
trajetória compartilha a sua solidão:
16
A memória autointertextual ― no entrecruzar com a história, o espaço e o tempo ― é, segundo
Rauer (2006, p. 88), peculiar palimpsesto: “as ações [...], assim como os pensamentos, [...], são
inolvidáveis, da memória podendo ser recuperadas a qualquer momento. Essa recuperação e
fusão do passado com o presente [...] é uma acronia do eterno. [...] o palimpsesto, sob o ponto de
vista da memória e do tempo histórico, [é] retomada contínua e circular de planos de expressão e
de planos de conteúdo, na qual se torna impossível determinar em que ponto principia e qual é a
última re-escritura.”
43
Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por
desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que
os espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada
melhora muito de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde
pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela
manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la.
Ela não tem indiferença pelo meu passado. Eu sinto mesmo que ela
me reconhece agora, tantos anos depois [...].
(BARROS, 2003, XII).
A estrada é o caminho percorrido entre o passado e o presente:
a) do lugar: “Eu ando por aqui desde pequeno”, “sobre suas pedras agora
raramente um cavalo passeia”;
b) do eu-lírico: ”Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou
voltando agora para revê-la”;
c) da solidão e do abandono: “nem cachorro passa mais por nós.”
Dessa maneira, o poeta estabelece uma relação interdiscursiva com os registros
historiográficos e com as próprias reminiscências, registrando-as nas Memórias
Inventadas. As estradas, as ladeiras da Corumbá do seu passado também ficaram
abandonadas e carecem de consideração, de reconhecimento.
Nota-se, do mesmo modo, nesse jogo de conotações, a referência a Carlitos,
que ora nos remete à imagem do progresso, modernidade, ora à singeleza do
excluído que se traduz em lirismo e arte:
[...] Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu também sou
como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem cachorro passa
mais por nós. Mas eu ensino para ela como se deve comportar na
solidão. Eu falo: deixe deixe meu amor, tudo vai acabar. Numa boa: a
gente vai desaparecendo igual quando Carlitos vai desaparecendo
no fim de uma estrada... Deixe, deixe, meu amor.
(BARROS, 2003, XII).
Carlitos é o vagabundo engraçado, bondoso e oprimido pela vida; sempre à
procura de alguma estabilidade, é personagem popular e reconhecida em várias
partes do mundo. Talvez seja esse o desejo do poeta ao fim de sua estrada: estar
inserido no cânone, ter o seu reconhecimento literário.
No entanto, observamos que as ações narradas pelo poeta não têm a
finalidade de se efetivar como registro, descrever o lugar ou reproduzir o
concretizado pela historiografia, mas, ao “remexer” o seu quintal, expressa, através
44
da ficção, as memórias do quintal pantaneiro, traduzindo os seus sabores e expondo
os dissabores oriundos do progresso e do abandono.17
O desnudar das Memórias Inventadas: a infância desvela a situação, à
margem da história oficial, dos desvalidos que surgiram na decadência de Corumbá
ao longo da primeira metade do século XX. Ao mesmo tempo, empreende um
diálogo com o primeiro livro de Manoel de Barros, PCSP. O desvelar e o intertexto,
uma vez que a autointertextualidade é o procedimento do poeta quanto às
informações explicitadas no plano da expressão, parece-nos que já estão presentes
no Livro de Pré-coisas. Temos, assim, ao longo da obra de Barros, um retrato
recuperado pelo eu-lírico ― que revê seu espaço e vivencia as mudanças ocorridas
em ambos, no cenário e no eu-lírico enunciador e protagonista ― ao mesmo tempo
em que anuncia as “pré-coisas” de sua poesia.
2.4 Poesia, veia da história; história, o veio da poesia
Aristóteles, no Capítulo IX da sua Arte Poética, trata da diferença que existe
entre a Poesia e a História:
[...] não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de
representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível
segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem
o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem
poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso
deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa)
― diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as
que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e
mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o
universal, e esta o particular. (ARISTÓTELES, 1993, pp. 53-54; tratase do parágrafo 50, que abre o capítulo IX).
O poeta sabe que pode falar a mentira e a verdade, misturando-as pela
virtude da semelhança. Assim, o eu-lírico conta-nos uma mentira muito próxima da
verdade e, ao mesmo tempo, leva-nos a observar as verdades homologadas pela
historiografia. Dessa forma, a literatura torna-se um meio de representação dessa
realidade, pois quem conta as memórias é um narrador que não tem compromisso
com a verdade histórica. O leitor é informado de que, por serem inventadas, ele dirá
17
Ver anexo 17: Lembranças, de José de Barros.
45
sem falsidade o que não prometera. Quanto a isso, Barros não tem meias palavras:
“Tudo o que não invento é falso” (BARROS, 2003, epígrafe).
Realizado esse pacto autor-narrador-leitor, as memórias inventadas não são
identificadas como falsas. Não se trata, entretanto, de um testemunho autêntico,
espelhamento do que é registrado pelos historiadores. Trata-se de uma concepção
subjetiva de um eu em cujo presente há marcas de determinado passado no qual o
eu-lírico busca sentido para a sua poesia. Assim, pode o eu-lírico, como
personagem encenada no poema, informar tanto o real, o vivido, quanto o
imaginado, o inventado.18
E o que há de real nessas memórias?
Parece-nos que há correspondências entre o autor, o eu-lírico, o narrador, o
narrado, o espaço lembrado, o documentado pelos historiadores e o concebido pela
memória coletiva.
Dito de outra maneira, há uma reconstituição verossímil dos dados
registrados pela história oficial. Verifiquemos, em uma passagem paradigmática, o
modo como Barros recupera, nas lembranças evocadas, o espaço da sua infância,
transformando-o, com os seus habitantes, em cenário poético. Corumbá é
rememorada, na prosa-poética “Achadouros”, no seguinte contexto: “[...] Aquilo que
a negra Pombada, remanescente de escravos do Recife, nos contava. Pombada
contava aos meninos de Corumbá sobre achadouros”. (BARROS, 2003, XIV).
Nota-se que o eu-lírico se inclui entre os meninos a quem a negra Pombada
contava as histórias. Dessa forma, Barros revela-se como enunciador de uma
história particular que, por mimesis, reconstrói o “nós” da história coletiva. O poeta,
que “nasceu de treze” (BARROS, 2003, VII), ao completar oitenta e cinco anos
realiza um percurso contrário ao do tempo objetivo para rememorar o espaço de sua
vivência poética. Nos poemas narrativizados que constituem as suas Memórias
inventadas, Barros acentua a relação de identidade entre sujeito da enunciação e
sujeito do enunciado. O eu, ao se contar ― em paradoxo possível somente no
âmbito da arte ― converte-se em outro.19
Ecléa Bosi, em Memória e Sociedade: lembranças de velhos, assim
discorre:
18
Nos anexos 23 a 28, reproduzimos entrevistas, fotos e declarações do poeta Manoel de Barros e
sobre Barros. No anexo 23 reproduzimos uma foto do poeta com “sua” personagem Bernardo.
19
O raciocínio deste parágrafo deve-se às análises de Linhares (2006).
46
[...] Quando a sociedade esvazia seu tempo de experiências
significativas, empurrando-o para a margem, a lembrança de tempos
melhores se converte num sucedâneo da vida. E a vida atual só
parece significar se ela recolher de outra época o alento. O vínculo
com outra época, a consciência de ter suportado, compreendido
muita coisa, traz para o ancião alegria e uma ocasião de mostrar sua
competência. Sua vida ganha uma finalidade de encontrar ouvidos
atentos, ressonância. (BOSI, 1994, p. 82).
A nosso ver, o tempo significativo que alenta o poeta Barros é o tempo vivido
pelo jovem poeta Manoel e seu alter-ego Cabeludinho. Esse tempo fora registrado
na primeira obra, PCSP, na qual já o título indicia uma época virginal, de liberdade,
de descobertas sem o peso das normas, sem a internalização dos interditos,
reiterado na obra Livro de Pré-coisas, na qual Barros apresenta o roteiro para
excursão na sua poética. Acreditamos que, nos volumes das Memórias inventadas,
o memorado confunde-se com o intertexto da retomada da própria obra inaugural.
As marcas do declínio econômico da cidade surgem matizadas pela
afetividade da lembrança. No poema VI de “A infância” (BARROS, 2003), o poeta
anota: “A Venda ficou no tempo abandonada. [...] no abandono de morrer. [...] E os
andarilhos paravam sempre para uma prosa com o meu avô”. A proximidade e
cumplicidade entre o avô e os deserdados emergem da refeição compartilhada, em
gesto relatado com empatia pelo eu-lírico. Por outro lado, o único substantivo
grafado com letra inicial maiúscula é “Venda”. Assim, o poeta indicia a importância
do comércio referenciado, selecionando ainda vocábulo homófono e homógrafo ao
verbo “vender” (no presente do subjuntivo e, em especial e mais significativo, no
imperativo afirmativo), definindo no âmbito da recordação a importância dos eventos
capitalistas vivenciados pela comunidade.
É desse modo que a criança ― o eu-lírico que é o sujeito na cena
relembranda ― embora more no ermo e tenha “o ermo no olhar” (BARROS, 2003),
descortina as verdades então vigentes. O poeta, ao evocar suas lembranças, revela
aspectos da realidade da região fronteiriça do Brasil com a Bolívia. Conforme alguns
registros, o ciclo de crescimento econômico referenciado sofreu um baque nas
primeiras décadas do século XX, quando o eixo comercial Corumbá - Cuiabá perdeu
importância para o eixo Cuiabá - Campo Grande.
Os desempregados, os párias, os andarilhos, os bêbados, os deserdados, as
prostitutas e os loucos são os tipos que também passam a compor o cenário dessa
região fronteiriça. Barros recria figuras pertencentes à oligarquia local (o avô) e
47
figuras não pertencentes à oligarquia local e, portanto, não incluídas ― do ponto de
vista da elite social e dos interesses mercantis do capitalismo ― na sociedade (os
andarilhos).
Dessa forma, entre o fato e a ficção, entre o poético e a biografia, a obra do
poeta Manoel de Barros ― assim nos parece ― abre muitas possibilidades de
interpretação na interface com a História, efeito de sentido ainda mais evidente
quando compulsamos comparativamente a poesia de Barros com a obra de outros
autores corumbaenses, em especial aqueles que recriam como personagens
literárias figuras populares da história da cidade. Desse modo, observamos que, nos
volumes das Memórias inventadas, a poesia de Manoel de Barros trata do destino
do homem, da sombra da infância se projetando no adulto, da busca da felicidade
que só parece possível se o homem se iguala ao ínfimo, ao sem valor e aos despossuídos de qualquer posse. O “des”, em Barros, é matéria de poesia, pois
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.
(BARROS, 2002b, p. 27).
Ao retomar, nos diversos livros que lançou nos últimos setenta anos, os
desvalidos, os trastes, os loucos, os trabalhadores humildes, os mendigos, os
maltrapilhos, os andarilhos e outros excluídos da ordem social, Barros mostra o grau
de sofisticação gerado pelas engrenagens sociais do capitalismo avançado que,
mais que negar a esses indivíduos a existência civil na condição de cidadão, deles
extirpa até mesmo a condição de humanidade. E é assim, na obra de Manoel de
Barros, que a História se presentifica, tornada poesia, e sua poesia ― enlutada, mas
em euforia pela descoberta ― des-vela e mostra a face da História.
Nosso propósito central, neste capítulo, o de verificar como os andarilhos que
perambulam na “fronteira” de Barros constituem contrapartida inelutável da
decadência econômica do município no primeiro quartel do século XX, coloca-nos
diante de algumas questões: a) Seria elemento significativo da poética de Barros
valer-se de fatos que os historiadores registram e analisam quando voltam seus
olhos para a história da cidade?; b) De que modo os textos históricos, as crônicas e
a memória da gente da região pantaneira permeia a poética de Manoel de Barros?;
c) Entre o registro do que aconteceu e a invenção do que poderia acontecer, qual o
papel das memórias do poeta?; e, d) O que ressuma do intertexto com outros
autores corumbaenses?
48
Barros, ao rememorar o passado, estabelece um diálogo intertextual com os
textos dos cronistas, não pela cronologia, mas pela relação com o que é narrado: o
foco do poeta adulto rememora o olhar infantil, as coisas lembradas, o microcosmo
infantil, espaço que identifica o eu-lírico que anota suas Memórias.
Quanto a isso, Béda comenta:
Podemos dizer que não se pode anular a identidade entre o eu lírico
e o eu do poeta, mas também não seria apropriado identificar
enunciação lírica direta e restritivamente com o real, com a vivência
pura. Poesia e autobiografia não se excluem; antes, aliam-se para
ser a representante do ‘eu’ que busca algo, que não está satisfeito
com o que è ‘comum’ a todos. Em Manoel de Barros: sublimação dos
pequenos. (BÉDA, 2009, p. 128).
Por sua vez, ao dialogar com fatos que os historiadores registram e analisam
quando voltam seus olhos para a história da região da fronteira Oeste, a poesia de
Manoel de Barros torna-se, um recurso para re-construir o olhar sobre o que o poeta
não inventa, pois que “tudo o que não inventa (o) é falso” (BARROS, 2003). Desse
modo, ao sublimar os pequenos em sua poesia, por mimesis, desnuda a realidade
vigente a um leitor futuro, pois conforme nos ensina Umberto Eco:
Quem diz que escreve apenas para si mesmo não é que minta. É
assustadoramente ateu. Até mesmo de um ponto de vista
rigorosamente laico. Infeliz e desesperado aquele que não sabe se
dirigir a um leitor futuro. (ECO, 2004, p.304-305).
Dessa forma, constatamos que, ao valer-se de fatos que os cronistas e os
historiadores registram e analisam, na poética barreana, a História se presentifica
tornada poesia. Em outras palavras, ao evocar e reconstituir suas lembranças na
escrita de suas memórias, Barros constrói a história pela poesia, fazendo com que a
poesia alimente a História e que a História irrigue o poético.
3 RECRIAÇÃO POÉTICA DE FIGURAS POPULARES
NA OBRA DE MANOEL DE BARROS
O poeta Manoel de Barros empreende um diálogo intertextual, e
autointertextual, com diversos escritores da região fronteiriça de Corumbá, quando
se volta para aspectos da realidade humana que florescia nos becos, no porto, nas
ruas e nos prostíbulos. Barros elege os seres abandonados, os loucos, as
prostitutas, as coisas miúdas e simples e, muitas vezes, a pobreza como matéria
para sua poesia.
O conceito de pobreza, na poesia de Barros, configura-se como dificuldade de
acesso à sobrevivência digna e a bens mínimos, por escolha, jeito livre de viver, ou
por condição social.
O estudo de tal condição deve observar as fronteiras que se definiram ao
longo da história das cidades fronteiriças do Brasil e da Bolívia.
Conforme Tito Carlos Machado de Oliveira,
A condição fronteiriça marca a região, criando a possibilidade de
formação de outra identidade. A hegemonia das circulações advindas
das complementaridades [...] entre brasileiros e bolivianos consolida
um cotidiano que, mesmo absorvido de modo diverso no conjunto
populacional, as pessoas convergem para um comportamento
coletivo muito próximo [...]. (OLIVEIRA, 2009, p. 37).
Cabe-nos ressaltar que, ao considerarmos a recriação poética de figuras
populares na obra de Barros como mote para compreender essa “condição
fronteiriça”, concluímos que as fronteiras apresentam-se não só como espaço de
passagem entre dois territórios geográficos, mas também como espaços
privilegiados para travessias lingüísticas e culturais em que as re-criações poéticas
se cruzam, se divergem e se hibridizam. É uma espécie de hífen que liga as
narrativas orais, a historiografia e a poesia em um desdobramento identitário
possível.
Da obra O fazedor de amanhecer (2001), os versos seguintes elucidam
nosso raciocínio:
50
[...]
Andarilho também.
Não posso ver a palavra andarilho que
eu não tenha vontade de dormir debaixo
de uma árvore.
Que eu tenha vontade de olhar com
espanto, de novo, aquele homem do saco
a passar como um rei de andrajos nos
arruados de minha aldeia.
E tem mais uma: as andorinhas,
pelo que sei, consideram os andarilhos
como árvore.
(BARROS, 2001c).
O andarilho é, nesse poema, aquele que atravessa as fronteiras lingüísticas; é
um anônimo cuja trajetória harmoniza-se com a mendicância, a loucura e o prazer
de errar. Remete à criação do discurso poético.
De acordo com Karime Hauaji, o ensaísta quebequense Pierre Quellet, na
estesia migrante, distingue quatro classes de personagens, todas ligadas a uma
forma de “alteropercepção”.
A primeira diz respeito ao estrangeiro, ao exilado ou ao viajante, que
dá lugar ao fluxo migratório, construindo o discurso subjetivo. A
segunda, aos artistas, escritores e pensadores, permite um tipo de
migração metafórica, própria da experiência estética ou cognitiva. A
terceira, a do louco ou demente, que nos remete à migração
psicológica. Finalmente, a do excluído, marginal ou itinerante, cuja
identidade é colocada em cheque pela ausência de um espaço de
existência ou de um campo de pertencimento.
[...] Por vezes, os loucos serão também vagabundos, os vagabundos
viajantes e os viajantes escritores. De certo modo, a arte, ou melhor,
a escrita consistirá para eles em um ponto de convergência,
funcionando como um verdadeiro abrigo para suas confissões.
(HAUAJI, 2009, p. 42).
Ao estudar a poesia de Manoel de Barros, Wânessa Cruz — em sua
dissertação de Mestrado — afirma:
São cinco as obras de Manoel de Barros que mais documentam a
temática do andarilho, do peregrinante: Livro de Pré-coisas, O
guardador de águas, Livro sobre nada, Poemas rupestres e Matéria
de poesia. O poeta, ao destacar a figura do caminhante, da desfigura
errante, parece, entretanto, enveredar pelo rumo da alienação
desobrigada de compromissos com a sociedade, quando o que se
quer revelar na verdade é o caos em que o mundo se encontra. A
figura do erradio é uma forma de se chegar às mesmas questões que
circunscrevem o humano. (CRUZ, 2009, p. 110).
51
A figura do andarilho, na poética de Barros, revela a poesia e é, ao mesmo
tempo, ― nos arruados de sua “aldeia” ― a figura popular do “homem do saco”,
personagem das narrativas orais de um espaço geográfico definido.
O discurso que constrói a figura do andarilho propicia a revelação de uma
poesia que dialoga com narrativas e lembranças presentes, também, na obra de
outros escritores dessa região fronteiriça.
Antonio Candido nos ensina que, para François Mauriac,
[...] o grande arsenal do romancista é a memória, de onde ele extrai
os elementos da invenção, e isto confere acentuada ambigüidade às
personagens, pois elas não correspondem a pessoas vivas, mas
nascem delas. Cada escritor possui as suas ‘fixações da memória’,
que preponderam nos elementos transpostos da vida. (CANDIDO,
2007, p. 67).
Sabemos que o texto ficcional não deve ser explicado pela biografia do autor.
Entretanto, no caso dos poemas em que re-cria figuras populares, Barros acentua o
contexto cultural e espacial da região do Pantanal, de Corumbá e de cidades
bolivianas por onde passou, hibridizando aspectos históricos com aspectos poéticos.
Dessa maneira, acreditamos, Barros transfigura a realidade de sua “aldeia”
para construir suas personagens poéticas. Obviamente, “quando se fala em cópia do
real, não se deve ter em mente uma personagem que fosse igual a um ser vivo”
(Candido, 2007, p. 69). A convergência do factual e ficcional, na obra de Manoel de
Barros, é que torna possível tal recriação poética.
Em As lições de R.Q., do Livro sobre nada (2000, p. 75), temos um exemplo
claro dessa re-invenção barreana.
No paratexto que acompanha o poema, Barros anota:
Nota: Um tempo antes de conhecer Picasso, eu tinha visto na aldeia
boliviana de Chiquitos, perto de Corumbá, uma pintura meio primitiva
de Rômulo Quiroga. Era um artista iluminado e um ser obscuro. Ele
mesmo inventava as suas tintas. Trazia dos cerrados: seiva de casca
de angico (era o seu vermelho); caldos de lagartas (era o seu verde);
polpa de jatobá maduro (era o seu amarelo).usava pocas de piranha
derretidas para dar liga aos seus pigmentos. Pintava sobre sacos de
aninhagem. Mostrou-me um ancião de cara verde que havia pintado.
Eu disse: mas verde não é a cor da esperança? Como pode estar em
rosto de ancião? A minha cor é psíquica ― ele disse E as formas
incorporantes. Lembrei que Picasso depois de ver as formas
bisônticas na África, rompeu com a formass naturais, com os efeitos
de luz natural, com os conceitos de espaço e de perspectiva,etc etc.
52
E depois quebrou planos, ao lado de Braque, propôs a
simultaneidade das visões, a cor psíquica e as formas incorporantes.
Agora penso em Rômulo Quiroga. Ele foi apenas e só uma paz na
terra. Mas eu vi latejar rudemente nos seus traços milagres de Klee.
Salvo não seja.
(BARROS, 2000, p. 74).
Apoiando-se em uma similaridade real, o poeta aproxima a personagem reinventada do espaço geográfico que lhe é familiar, conhecido. Ao mesmo tempo em
que, no poema de Barros, Rômulo Quiroga inventa suas tintas com as coisas do
“cerrado”, o vate re-inventa a personagem.
De acordo com Cruz (2009, p. 73), existe “efetivamente um Rômulo Quiroga,
pintor de paredes, que trabalha há anos para a família do poeta”. Aliás, a invocação
do migrante surge já em Poemas concebidos sem pecado, com Cabeludinho tendo
entre os seus amigos um “Bolivianinho”:
[...]
─ Só jogo se o Bolivianinho ficar no quíper
─Tá bom, meu gol é daqui naquela pedra
plog plog, bexiga boa
─ Eu só sei que meu pai é chalaneiro
mea mãe é lavadeira
e eu sou beque de avanço do Porto de Dona Emília
[...]
(BARROS, 2005, p. 15).
Além do fato de eleger, como matéria para poesia, os andarilhos, os
caminhantes sem rumo, os erráticos, os peregrinos, os migrantes, os loucos mansos
que perambulam a esmo pelas fronteiras, a produção literária de Manoel de Barros
oferece possibilidades para várias interpretações, em diversos campos do
conhecimento.
Assim, a produção poética barreana pode e deve, no âmbito dos Estudos
Fronteiriços, ser homologada pelos estudiosos que também almejam compreender a
ocupação e a identidade fronteiriças.
3.1 O migrante
O migrante é o indivíduo que, por necessidade de sobrevivência, imposição
ou mesmo por opção, passa a conviver com uma realidade sociocultural diferente. O
53
que caracteriza o sujeito migrante é o seu deslocamento no espaço, deixa um
espaço geográfico para, às vezes, se fixar― ou não ― em outro território. Assim, o
sujeito migrante parece assimilar várias identidades, pois que identifica com os
lugares por onde passa e dele reproduz algum costume ou comportamento. O
migrante tende a modificar sua identidade de origem e, portanto, a não se identificar
com um único espaço: o “eu” acaba por escapar à vista, dando lugar a um “outro”
ampliado.
O caráter temporal e a presença limitada do migrante em determinado
espaço, muitas vezes depende essencialmente das condições econômicas ou das
condições naturais, como as secas, as enchentes entre outras, as quais podem
intensificar ou reduzir o processo migratório em determinados períodos.
A condição de migrante, situado enquanto categoria social excluída dos
privilégios de cidadania faz-nos refletir acerca dos aspectos paradoxais da fronteira.
Na obra O Livro das Ignorãças, de Manoel de Barros, há uma
EXPLICAÇÃO DESNECESSÁRIA
Na enchente de 22, a maior de todas as enchentes
do Pantanal, canoeiro Apuleio vagou três dias e três noites
por cima das águas, sem comer sem dormir – ele teve
um delírio frásico. A estórea aconteceu que um dia,
remexendo papéis na Biblioteca do Centro de Criadores
da Nhecolândia, em Corumbá, dei com um pequeno
Caderno de Armazém, onde se anotavam compras fiadas
de arroz, feijão, fumo etc. [...]
(BARROS, 2001, p. 31).
Nessa “Explicação”, notamos que o território descrito é vital à poesia e, ao
mesmo tempo, é o espaço poético de deslocamento do outro. Além disso, não se
devem ignorar as evidências factuais recorrentes na poética barreana quando se
efetivam estudos voltados para as questões fronteiriças.
Não se trata aqui de evidenciar territorialidades, mas ao focalizar o entorno, a
“Nhecolândia, em Corumbá” (BARROS, 2001, p.31), o poeta faz emergir identidades
com as quais, com o passar do tempo, cada vez menos se identifica, visto que o
tempo e os constantes deslocamentos entre o centro e a periferia transformaram-no
em outro; agora, conotativamente, metamorfizado em migrante, andarilho. Por isso,
o eu poético busca, nas suas Memórias, re-encontrar o menino Cabeludinho ou o
eu primevo.
54
Conforme afirma Stuart Hall,” [...] a identidade está profundamente envolvida
no processo de representação” (HALL, 2006, p. 61). Nesse sentido, o tempo e o
espaço simbólicos são também diretrizes fundamentais para a representação, para a
recriação poética do migrante, do ex-ótico.
De acordo com Marco Aurélio Machado de Oliveira,
Os outros [...] eram e são vistos como exóticos também em seu
sentido original: ex-ótico, ou seja, fora do lugar comum da visão,
estranho. Os que não eram e não são europeus, mas,
fundamentalmente, como seres e lugares a serem apossados por
esses valores e essas fronteiras. (OLIVEIRA, M., 2009, p. 82, grifo do
autor).
Assim, a poética de Barros está para aquele que fugiu do poder central, para
o abandono, como o migrante está para o ser marginalizado, que transgride a ordem
da fronteira, pois desobedece a lógica, desestabiliza o “olhar”.
Em O livro das ignorãças, eis um poema, que homologa tal raciocínio:
XIV
De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o
mato e a fome tomavam conta das casas, dos
seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados.
Ali me anonimei de árvore.
Me arrastei por beiradas de muros cariados desde
Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz
de La Sierra, na Bolívia.
[...]
Eu precisava de ficar pregado nas coisas vegetalmente
e achar o que não procurava.
(BARROS, 2001a, p. 101).
Verificamos, nesse poema, que, ao partir do local de origem, o eu-lírico
migrante deixa suas realizações e observa lugares estranhos ao seu “olhar”, de
certa forma, abdica-se de si mesmo, ”Ali me anonimei de árvore”, tornando-se um
anônimo, sem nome, sem identidade. Em suma, um estranho a si mesmo.
Ao romper laços de tempo e espaço com sua terra de origem, esse migrante
não se encontra em lugar nenhum, já que “precisava achar o que não procurava”
(BARROS, 2001a), torna-se, assim, um promotor de integração e de mudanças no
território em que se sente acolhido.
55
3.2 Personagens femininas
O tema da representação da figura feminina tem sido bastante estudado nos
últimos anos. Após o desenvolvimento da História Social, alguns estudiosos
buscaram recuperar personagens históricos até então invisíveis aos pesquisadores
e, talvez por isso, novas discussões tenham sido fomentadas acerca dos “papéis”
representados pela figura feminina na sociedade.
Nosso propósito, aqui, é mostrar como as figuras femininas fronteiriças são
representadas na obra de Manoel de Barros. Investigaremos a caracterização dos
tipos femininos a partir das figuras da mãe, da avó, das prostitutas e das mulheres
do povo. Verificaremos os papéis destinados a elas, o modo como são
caracterizadas pelo poeta e a função que desempenham no universo poético criado
por Barros. Como desdobramento dessa leitura, indiciaremos reflexões acerca das
fronteiras que permeiam as relações sociais, verificando de que modo o discurso
poético internaliza convenções morais e fixa identidades ao propor a alteridade
como um “outro” radicalmente diferente.
Nos poemas de Barros, as personagens femininas ora representam a
conduta domiciliar, como dona de casa cuja virtude está pautada no zelo pela
harmonia do lar ou como mulheres do povo e das prostitutas.
No dizer de Glaydson Silva, em seu estudo Representações Femininas e
Relações de Gênero na Ars Amatoria:
Ao tratar do intercâmbio que se estabelece entre Literatura e História,
ou, entre o texto literário e as percepções do ‘real’ nele expressas,
torna-se imprescindível problematizar, ainda que brevemente, o uso
que aqui se faz do conceito de representação, visto ser ele o
instrumental analítico no qual se centra essa leitura. Duncan
Kennedy20 concebe, acerca do termo, uma disjunção expressa entre
arte e mundo, ou, literatura e vida. Para o autor, o termo está ‘[...]
muito em evidência nas atuais discussões sobre a elegia amorosa
romana’ (1993, p. 1). Maria Wyke define a problemática em torno do
discurso da representação como ‘[...] uma necessidade de
determinar a relação entre a realidade da vida das mulheres e sua
representação na literatura’ (Cf. WYKE 1989, p. 25 apud KENNEDY
1993: 1)21, ela vê o realismo como uma qualidade própria do texto,
‘[...] não uma manifestação direta do mundo real’ (p. 27). Para Roger
20
KENNEDY, Duncan F. The arts of love: Five studies in the discourse of Roman love elegy.
New York: Cambrige University Press, 1993.
21
Maria Wyke, citada por Kennedy, não consta nas referências de Glaydson Silva.
56
Chartier as representações devem ser entendidas como ‘[...]
representações que os grupos modelam deles próprios ou dos
outros’ (1991, p. 183).22 Sobre a atualidade destas discussões, Judith
Hallet irá comentar que [...] debates sobre a mensagem ideológica da
elegia latina e sua adequação para a pesquisa feminista
prognosticam uma satisfatória transformação dos estudos de
literatura latina (1993, p. 64).23 Para a autora, estes debates
conduzem para as várias formas de representação das mulheres na
literatura do período; ainda que a elegia seja uma poesia dos meios
sociais mais abastados, de um meio predominantemente
aristocrático, com uma visão de mundo descrita dessa perspectiva
(KENEDY, 1993. p. 1), as mulheres que nela aparecem - matronas,
libertas ou escravas, ricas ou pobres – são iguais em sua ‘natureza’.
(SILVA, 2008, p. 2).
As representações femininas invocadas na poética de Manoel de Barros que
surgem como as figuras cujas virtudes estão pautadas no zelo pela harmonia do lar,
encenam personagens domesticadas e passivas, cujas condutas limitam a
testemunhar sem intervir.
Perrot, em sua obra História da vida privada, faz a seguinte afirmação:
As relações cotidianas entre pais e filhos variam imensamente na
cidade e no campo, onde as manifestações de ternura não são muito
apreciadas, conforme os meios sociais, as tradições religiosas e
mesmo políticas. A concepção que se tem da autoridade e da
apresentação de sua própria pessoa influi sobre as palavras e os
gestos do dia-a-dia. A família, desse ponto de vista, é o lugar onde
se processa uma evolução contraditória. De um lado, o controle do
corpo e da expressão emocional se aprofunda; isso se vê, por
exemplo, na história das lágrimas, a partir de então reservadas às
mulheres, às classes populares, à dor e à solidão, ou ainda na
intensificação da disciplina sobre a linguagem e as atitudes físicas
das crianças, intimidadas a ficar retas, a comer direito, e assim por
diante. De outro lado, a troca de carinhos entre pais e filhos é
tolerada, e até desejada, pelo menos na família burguesa. (PERROT,
1991, p. 157).
Cabe-nos observar que a década de 1930 – não será demais lembrar,
momento em que Barros publicou sua primeira obra, PCSP – foi um período de
muitas conquistas da mulher. Acerca dessa questão, Carlos Martins Júnior, no artigo
22
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v.r, n. 11, pp.
180-193, jan./abr., 1991. cf.Glaydson Silva.
23
HALLET, Judith. Feminist Theory, Historical periods, literary cannos, and the study of Greco-Roman
antiqquity. In: RABINOWITZ, Nancy Sorkin, RICHLIN, Amy. (Orgs.) Feminist theory and the
classics. New York: Routledge, 1993. p.44-72.
57
“O esforço de construção de representações femininas idealizadas nos jornais matogrossenses no Estado Novo”, assim anota:
Pouco a pouco, as conquistas femininas no exterior repercutiam no
Brasil, com o próprio Governo Provisório acatando algumas de suas
reivindicações. Em 1932, durante as eleições para a Assembléia
Constituinte, foi concedido o direito de voto às mulheres. Na
Constituição de 1934, a participação feminina na política se acentuou
e vários artigos da Constituição viriam a beneficiá-las, a exemplo da
regulamentação do trabalho feminino já previsto nos Decretos Leis
de 17 de maio de 1932. (MARTINS JÚNIOR, 2006, p. 117-133).
Samara, em seu estudo intitulado Mulheres pioneiras: histórias de vida na
expansão do povoamento paulista, acrescenta:
Para as historiadoras dedicadas ao estudo da condição feminina no
passado, essa questão aparece logo de início como um desafio, ou
mesmo um desejo de recuperar as mulheres na sua identidade social
e de mostrar sua presença no processo de tomada de decisões.
Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Susan Rogers sobre o mito
da dominação masculina e os ‘poderes’ femininos e de Michelle
Perrot sobre a mulher popular rebelde, entre muitos outros.
(SAMARA, 2002, p. 19).
Na obra Memórias inventadas: a infância (2003), no poema intitulado
“Fraseador”, Barros descreve uma cena no espaço privado do domus24 em que a
figura da mãe é personificada como coadjuvante:
Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze.
Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na
fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no futuro.
Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem
doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que
eu queria era ser fraseador.
Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe
inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor.
Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal de
fraseador bota mantimento em casa?
Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão
insistiu:
Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós
temos que botar uma enxada na mão desse menino pra
ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco
mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou
enxada.
24
Acrescentemos, aqui, apenas como uma observação à margem, a asserção de Kant, que dizia que
a casa, o domicílio, que encerra em suas paredes tudo o que a humanidade recolhe ao longo dos
séculos, é a única barreira contra o horror do caos, da noite e da origem obscura.
58
(BARROS, 2003, VII)
Estão associados, ao vocábulo ”mãe”, os verbos “inclinar” e “baixar”, os quais
podem conotar vários sentidos: desânimo, decepção, cansaço, alheamento,
submissão, resignação ou compreensão e tolerância diante da decisão do filho
“fraseador”. Entretanto, parece-nos que ao empregar os verbos “inclinar” e “baixar”,
associados ao sujeito verbal “A mãe”, o poeta apresenta a mulher como coadjuvante
nas decisões familiares, pois o filho mais velho questiona, até mesmo sugere uma
atitude, quase que um castigo: “nós temos que botar / uma enxada na mão desse
menino pra ele deixar de variar.” O pai, no entanto, deixa a questão para lá, “meio
vago”, e à mãe cabe tão somente “baixar a cabeça um pouco mais.”
O eu-lírico informa ao leitor que a cena rememorada ocorrera há mais de
setenta anos:
Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze.
Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que
moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que
queria ser no meu futuro.
(BARROS, 2003, VII).
Há, nesse poema, alguns índices que merecem destaque: a prática epistolar
era própria de pessoas alfabetizadas, com facilidade de redigir e, talvez, represente
um indício da vocação de escritor reiterada pelo eu enunciador; conforme muitos
historiadores,25 na zona rural o domínio da escrita era quase que exclusividade dos
homens.
A figura feminina representada, no poema, é a da mulher no universo
patriarcal rural; ela, na sua passividade e impotência, tenta ocultar suas emoções, o
que transparece no gesto de “baixar a cabeça”. A seleção vocabular transforma o
gesto único em exemplar da circunstância a que a figura feminina está submetida.
No poema “Fraseador”, existem duas histórias: uma individual e outra
coletiva.26 A individual recupera as reminiscências do poeta-narrador cuja família, à
época em que ele estudava no colégio, interno, no Rio de Janeiro (BARROS, 2003,
IV), morava na fazenda (BARROS, 2003, VII) e com a qual se correspondia,
provavelmente, através de cartas. A coletiva é gerida pelas questões políticas e
sociais do País no que tange às discussões acerca das conquistas femininas nesse
25
26
A informação é tão disseminada que se torna ocioso referendá-la com alguma abonação.
Não se trata, aqui, do conceito de Píglia (1994), de que “um conto sempre conta duas histórias”.
59
período. Descreve-se uma cena familiar comum, mas - ao que nos parece - subjaz
no poema narrado um engajamento ideológico acerca da condição da mulher na
família patriarcal rural.
Em outros poemas, a figura feminina surge como “transgressora”, é o
protótipo familiar liberal, ainda que não promova transformações na realidade
vigente. Essa representação emerge com as mulheres mais experientes, como a
“avó”, “Nhanhá”. Apesar de reações socialmente consideradas como típicas do
universo feminino, tais como o choro, a preocupação com os familiares e o cuidado
com a educação das crianças, é a avó que orienta o eu-lírico a infringir certos
padrões e conceitos. Esse espírito libertário surge tanto nos Poemas Concebidos
sem Pecado quanto nas Memórias inventadas: a infância.
Nhanhá, a avó que educa e orienta, surge em “Cabeludinho” (PCSP):
─ Vai desremelar esse olho, menino!
─ Vai cortar esse cabelão, menino!
Eram os gritos de Nhanhá.
(BARROS, 2005, p. 9).
Ela se entristece com a partida do neto:
[...]
Havia no casarão umas velhas consolando Nhanhá
que chorava feito uma desmanchada
─ Ele há de voltar ajuizado
─ Home-de-bem, se Deus quiser
(BARROS, 2005, p. 17).
A avó é o membro familiar com quem o eu-lírico parece se identificar, o que
depreendemos dos versos seguintes, em que o adolescente racionaliza sua
rebeldia:
Carta acróstica:
“Vovó aqui é Tristão
Ou fujo do colégio
Viro poeta
Ou mando os padres...”
Nota: Se resolver pela segunda, mande dinheiro
para comprar um dicionário de rimas e um
tratado
de versificação de Olavo Bilac e Guima, o do lenço.
(BARROS, 2005, p. 21).
60
Quando descobre que “o neto que foi estudar no Rio [...] voltou de ateu”
(Barros, 2003, VIII), é a avó aquela que mais sofre:
[...]
Nhanhá choraminga:
─ Tá perdido,diz que negro é igual com branco!”
(BARROS, 2005, p. 31).
Ao mesmo tempo, é a avó, no poema “Obrar”, que inspira o narrador a ser um
“transgressor” e “a não desprezar as coisas desprezíveis e nem os seres
desprezados”:
[...]
A vó então quis aproveitar o feito para ensinar que o cago não é uma
coisa desprezível.
Eu tinha vontade de rir porque a vó contrariava os ensinos do pai.
Minha avó, ela era transgressora.
(BARROS, 2003, II).
A mulher mais velha, na obra de Barros, ainda que submissa, parece
representar os atributos femininos de “choramingar”, ensinar as crianças, mas com
uma singularidade, a de desempenhar também a função paterna: a disciplina dos
filhos. Nos intertíscios do patriarcado, ou ainda mais o firmando, dá lições de
transgressão ao eu-lírico masculino, alter-ego do poeta.
Em sua Poética, Aristóteles argumenta que a poesia contém um teor mais
filosófico do que o discurso histórico, pois narra imaginativamente o que poderia ter
ocorrido e não se atém a um relato pretensamente fidedigno dos acontecimentos.
Barros, em entrevista a José Castello (1997), indicia que, em sua poesia,
retoma fatos da realidade e os recria poeticamente. Assim se dá no poema “Mariapelego-preto”, personagem recriada a partir de uma realidade de miséria que o
poeta presenciou:
Estado - E o que encontraram pelo caminho?
Manoel - Miséria. Em Santa Cruz de la Sierra, fomos abordados por
um menino que veio oferecer-nos mulher. Ele nos levou a uma casa
muito pobre e nos apresentou a suas três irmãs, três meninas
miseráveis. O menino pegava homens na rua para transar com as
irmãs, era assim que a família sobrevivia. Essa experiência rendeume um poema, que chamei de Maria-Pelego-Preto.
Estado - Ela existiu mesmo?
Manoel - Sim, uma das meninas tinha pentelhos que subiam até o
umbigo. Os pais exploravam esses pêlos como um fenômeno, uma
61
anormalidade. Cobravam ingressos só para exibi-los. (CASTELLO,
1997).
Sob esta perspectiva, a obra de Manoel de Barros constitui objeto de análises
para os estudos fronteiriços, visto que há em sua poesia significativas reflexões
acerca de fatos que ocorrem num tempo e num espaço peculiares, sendo que esses
fatos se repercutem por meio da “voz” do eu-lírico.
Na obra, A mulher na história do Brasil, Del Priore assim relata:
A prostituição, embora aparentemente transgressora, constituía-se
numa prática a serviço da ordem sócio-espiritual no mundo moderno.
No Brasil, no entanto, as características que a tornavam um ‘mal
necessário’, vão misturar-se com outras práticas consideradas pelas
autoridades como transgressoras, fazendo com que a igreja
enxergasse em cada mulher que infringisse as normas, uma
prostituta em potencial. Como não se isolava as prostitutas em
‘putarias e mancebias’, nem se as cobria com véus como era uso na
metrópole, na colônia os limites entre os comportamentos tidos por
desviantes e a prostituição eram tênues. (DEL PRIORE, 1994, p.
22).
Em Poemas Concebidos sem pecado, a personagem Maria-pelego-preto é
assim poetizada:
Maria-pelego-preto
Maria-pelego-preto, moça de 18 anos, era abundante de
pêlos no pente.
A gente pagava pra ver o fenômeno.
A moça cobria o rosto com um lençol branco e deixava
pra fora só o pelego preto que se espalhava quase até pra
cima do umbigo.
Era uma romaria chimite!
Na porta o pai entrevado recebendo as entradas...
Um senhor respeitável disse que aquilo era uma
indignidade e um desrespeito às instituições da família e da
Pátria!
Mas parece que era fome.
(BARROS, 2005, p. 51).
Não se expressa, nesse poema, apenas a representação de uma realidade
nem pretende o poeta somente instaurar a comoção do leitor. Ao que parece, há
uma voz, a do narrador, que denuncia a exploração da mulher, da pessoa humana,
em nome da miséria, da fome como justificativa para o sustento da família na
sociedade capitalista.
62
Maria-pelego-preto é encarada com certa simpatia pelo eu enunciador, pois
esta é apresentada como vítima de um sistema em que o diferente torna-se
fenômeno, aberração, em que a mulher é subjugada ao poder patriarcal.
Nesse sentido, o poeta, ao apresentar o que, parece, já se banalizou, tornouse comum na sociedade, “A gente pagava pra ver o fenômeno”, atenta para a
reflexão, a tomada de consciência do leitor, revelando uma sociedade fragmentada,
em que o “pentelho”, os pêlos pubianos da “moça de 18 anos” torna-se um bem
consumível mais significativo que o ser.
Entre o captado pelo olhar do poeta e a realidade vigente, ao que nos parece,
a casa – guardada pelo “pai entrevado” – é um microcosmo percorrido por fronteiras
para as quais convergem, e nas quais se confrontam o privado e o público: o sexo
está na cotação; o íntimo é revelado, mas o rosto fica encoberto pelo lençol branco,
talvez uma alusão simbólica à justiça: olhos vedados.
O poeta não se isentou de apresentar, nesse poema, uma sociedade que
sujeita a mulher ao papel de coadjuvante e que muitas vezes personifica a mulher
como “pecadora”, faz dela um objeto de compra e venda. Os homens, em bando, se
satisfazem em “avaliar” a mercadoria: “Era uma romaria chimite!”
Outra personagem feminina da obra de Barros que parece refletir o modo
como a sociedade patriarcal caracteriza a mulher é Antoninha-me-leva:
Antoninha-me leva
Outro caso é o de Antoninha-me-leva:
Mora num rancho no meio do mato e à noite
recebe os vaqueiros tem vez que de três e até
quatro comitivas
Ela sozinha!
Um dia a preta Bonifácia quis ajudá-la e
morreu.
Foi enterrada no terreiro com o seu casaco de
flores.
Nessa noite Antoninha folgou.
Há muitas maneiras de viver mas essa de
Antoninha era de morte!
Não é sectarismo, titio.
Também se é comido pelas traças, como os
vestidos.
A fome não é invenção de comunistas, titio.
Experimente receber três e até quatro
comitivas de boiadeiros por dia!
(BARROS, 2005, p. 73).
63
A mulher representada nesse poema é a prostituta. Sob a ótica do poeta,
trata-se de uma mulher que mora num lugar pobre e distante do mundo civilizado,
“num rancho no meio do mato”. Seu comportamento zoomorfizado parece
condizente com o meio. O vigor e a resistência física da personagem fogem aos
padrões das demais mulheres: “Um dia a preta Bonifácia quis ajudá-la e morreu”. Ao
que nos parece, há uma tomada de posição do narrador, que não compactua com a
ideologia vigente na sociedade da época, o que fica indiciado pelo verbo
“experimentar” do último verso do poema narrado. E o verbo, na ambiguidade entre
o subjuntivo e o imperativo, lança um desafio, pois que a atividade de Antoninha se
mostra grandiosa, quase épica no seu heroísmo.
De acordo com a obra A mulher na História do Brasil, de Del Priore,
[...] Deslocadas dos bordéis, como se usava na Europa, e à mercê
dos casamentos instáveis consagrados pelas condições de vida do
período, compreendemos melhor as prostitutas sob o pano de fundo
da pobreza, onde o meretrício era um ofício ou uma forma de
trabalho, ligada à mais imediata sobrevivência. (DEL PRIORE, 1994,
p. 26).
Em seus poemas, compostos de forma narrativizada (cf. Grácia-Rodrigues,
2006), Barros representa as mulheres do povo geralmente na cozinha ou próximas
aos afazeres domésticos. Em PCSP:
[...]
Um dia Nhanhá Gertrudes fazia bolo de arroz
Negra Margarida socava pilão.
E eu nem sei o que fazia mesmo.
Veio um negro risonho e disse sem perder o riso:
─ Vãobora comigo negra?
(BARROS, 2005, p. 40).
As mulheres do povo surgem representadas também em momentos em que
contam histórias, como no poema “Achadouros”, da obra Memórias Inventadas: a
infância:
[...] Aquilo que a negra Pombada, remanescente
de escravos do Recife, nos contava. Pombada contava aos meninos
de Corumbá sobre achadouros.
(BARROS, 2003, XIV, sublinhado no
original).
64
Surgem ainda, as mulheres, queixando-se das suas condições. Em PCSP, a
personagem Dona Maria representa as mulheres que buscam libertar-se de
condições não explicitadas. É mais um poema narrativizado:
Dona Maria
Dona Maria me disse: não agüento mais, já tô
pra comprar uma gaita, me sentar na calçada, e
ficar tocando, tocando...
─ Mas só pra distrair?
─ Que Mané pra distrair! O senhor não
está entendendo?
─ Entendo. A senhora vai ficar sentada na
calçada, de vestido sujo, cabelos despenteados,
esquálida, a soprar uma gaitinha rouca, não é?
[...]
(BARROS, 2005, p. 53).
De acordo com Del Priore (1994, p. 27) “Nas cidades coloniais, as “mal
procedidas” ganham suas vidas em praças, fontes, ruas e casas de comércio, até
esbarrar na repressão periódica de autoridades ou da vizinhança, incomodados com
suas brigas e ameaças”.
O nome Maria congrega vários sentidos e pertence a várias histórias, sacras
ou profanas, e representa o feminino real ou inventado. Na obra de Barros, ora
surge subjugada ao regime patriarcal, “Na porta o pai entrevado recebendo as
entradas...”, ora representa a mulher, nem casta nem obediente, mas que clama
pela liberdade em relação às convenções sociais: “não agüento mais, já tô pra /
comprar uma gaita, me sentar na calçada, e ficar tocando,/ tocando”.
Permite-nos aprofundar a análise, no aspecto que empreendemos nossa
leitura, o estudo A unidade dual: Manoel de Barros e a poesia, de Prioste:
O poeta reconhece o fingimento da palavra e apreende a realidade
como um cenário construído a partir do alicerce verbal. Percebe que
a fronteira com o falseio é muito tênue para ousar referendar um
discurso que se pretende claro e distinto quando tudo é muito mais
complexo e indefinível do que supõe qualquer filosofia. A
obscuridade compartilha da clareza em um infinito enlace no qual o
humano se embate sem a certidão fidedigna de uma verdade imune
ao contradito, ao dubitável e ao oblíquo. (PRIOSTE, 2006 p. 19).
65
A opção pelos marginalizados é uma tônica constante na poética de Manoel
de Barros.27 Ao narrar as histórias dessas personagens femininas, o poeta revelanos várias fronteiras construídas no espaço e no tempo. A realidade da concretude
histórica é apreendida como discurso, é discurso. Assim, torna-se esquiva,
indefinível, obscura; torna-se complexa e permeada pelas dúvidas inerentes à
linguagem, ao discurso construído, ao ideológico que emerge na ontologia da língua.
E assim o poeta se volta para as lembranças recuperadas, tornando-as
memórias que se expressam nos poemas narrativizados de PCSP e de todos os
volumes das Memórias inventadas. No recorte que observamos e descrevemos, a
evocação poética se fixa sobre as figuras femininas, tanto as do domus quanto
aquelas expostas nas ruas.
Nesse momento, as figuras singulares do poeta como que representam todas
as milhares de mulheres da América Latina que viveram e vivem no atraso, na
pobreza e nos ermos da solidão. Ainda hoje elas são vendidas como escravas, são
mutiladas, são torturadas e são prostituídas. A independência econômica é
conquista evidenciada, principalmente, nos grupos privilegiados das zonas urbanas.
Entre a autonomia e a heteronomia, muitas são as fronteiras sociais que prendem a
mulher à subalternidade, em prolongamento de situações que o poeta descrevia nos
anos trinta do século XX. Tal fronteira social tem deixado lacunas que merecem
estudos mais aprofundados na região fronteiriça de Corumbá. Apesar dos recentes
embates acerca dessa questão, o problema do tráfico humano, da exploração sexual
feminina, é uma constância nos veículos midiáticos quando se referem à região.
Com efeito, as personagens femininas da obra de Barros protagonizam uma
humanidade fragmentada pelo sexismo, pelo poder simbólico instituído em nome
dos costumes e da cultura. E ao revelar poeticamente o outro silenciado,
marginalizado, o poeta descortina o real, o concreto, sem se prender a descrições
emocionadas de situações sociais ou panfletos políticos.
Sua obra tem como efeito – para além do estético ou de qualquer
compromisso político – clamar pela humanização em um mundo no qual impera a
mecanização, a reificação e alienação. As fronteiras internas na sociedade, vincada
por diferenças gritantes de renda, de escolaridade, de acesso a bens culturais; as
fronteiras entre culturas distintas em que o outro, diferente em sua alteridade, torna27
Os anexos 9, 10, 11 e 12 mostram personagens de Corumbá, em quadros de Daltro, personagens
essas que compõem a galeria das personagens barreanas.
66
se um estranho absoluto; tais fronteiras, construídas ao longo da História,
presentificam-se na poesia de Manoel de Barros, quando a estudamos sob o
enfoque da representação mimética da figura feminina.
3.3 A mendiga
As cidades do Brasil e da Bolívia, como de qualquer outro lugar, não se
formam e se caracterizam apenas pelos prédios, anúncios luminosos, feiras,
tradições e veículos que entrecruzam os limites fronteiriços. É de particular
importância considerar “a alma móvel e errante das ruas” (SERRA, 1971, p. 127).
É ponto pacífico em roda de bar, estudo sociológico e debate edil que a
presença do andarilho, do maltrapilho, do “trapo sujo na vida” (Matos, 1936, p. 19),
que “ninguém o embuçala” (BARROS, 1997, p. 47), precisa ser controlada nas
cidades. Historicamente, essas figuras matizam o cenário e estimulam a fantasia do
povo. São os ditos “filósofos dos becos” (BARROS, 2000, p. 81) seres que têm
acesso aos limites da magia, como a “velha do saco”28 ou o “homem do saco”
(BARROS, 2000, p. 85), pavor e alegria das crianças.
Na região fronteiriça de Corumbá com Puerto Quijarro, devido às
peculiaridades territoriais e históricas, em parte, pela proximidade e atração exercida
por Corumbá, decorrente de sua infraestrutura e seu passado de entreposto
comercial, muitas são as personagens anônimas que vagaram e vagam pelas
estradas e ruas: loucos mansos, maltrapilhos, mendigos, andarilhos as quais ajudam
compor a paisagem humana desse espaço fronteiriço.
São os trastes biografáveis (Biografável- diz-se daquele do qual se pode
escrever uma história. É ser concreto e natural), tais como – entre outros andarilhos
– Maria Bolacha e Bola Sete muito presentes na literatura local. Expliquemo-nos. As
crônicas de Ulisses Serra, a poesia de Lobivar Matos, a obra de Manoel de Barros,
dentre outros, recuperam essas figuras populares, recriando-as como personagens
poéticas e ficcionais. O contorno dessa transmutação se faz de modo diverso em
cada autor e atende a fins estéticos e ideológicos diferentes. Buscamos nas artes
plásticas, em pesquisa bibliográfica e em fontes primárias o perfil desses
28
Expressão popular em Corumbá que se refere a pedintes maltrapilhos.
67
personagens, conforme coligidos pela História e pelas lembranças da população
fronteiriça, para comparar tais registros com os registros desses personagens nas
obras de Matos, Barros e Serra. Também empreendemos comparação entre o
mesmo personagem, tal como ele surge recriado na literatura local.
Apesar da alfândega, dos limites legais, que separam a cidade de Corumbá
das cidades bolivianas, elas têm em comum a mazela da pobreza, da indigência: o
pobre velho, “a velha do saco”; os errantes; os tipos populares que perambulam
pelas ruas e estradas; hippies, mochileiros e sacoleiros que vão e vêm com certa
frequência à região. Alguns se fixaram nas ruas, outros surgem esporadicamente do
lado de lá ou do lado de cá.
Nesse sentido, na medida em que são observados como diferentes ― assim
nos parece ―, uns se afastam, se separam; outros, algumas vezes são
desenraizados da sociedade ou tornam-se invisíveis aos poderes públicos de ambos
os lados.
Ao mapear as figuras populares na obra de Barros, centramo-nos na figura de
Maria Bolacha (ver “Dona Maria”, BARROS, 2005, p. 53), personagem real, misto de
mendiga meio louca, que viveu em Corumbá na primeira metade do século XX, para
verificarmos de que modo tal personagem é retomada nas obras de Lobivar Matos e
Ulisses Serra.
Além da autointertextualidade relatada, a poesia de Barros dialoga com outros
autores corumbaenses, em especial com Lobivar Matos e Ulisses Serra, em
movimento que parece recíproco, pois os dois escritores também incorporam em
suas obras os desvalidos e figuras populares de Corumbá, recriando-os como
personagens poéticas, ficcionais, a partir do referente histórico.
Na poesia de Lobivar, tais seres surgem como o “farrapo de homem”
(MATOS, 1936, p. 29), cuja dignidade a elite social despreza e cerceia. Nas crônicas
de Serra, 29 a personagem Maria Bolacha surge como uma heroína que arrosta os
impropérios da turba com a “resistência moral” que defende o direito à liberdade. E
assim os maltrapilhos emergem no discurso literário, em contraponto ao senso
comum de que a presença do andarilho, do “trapo sujo na vida” (MATOS, 1936, p.
29
De 1971, o livro Camalotes e guavirais, em edição de 2004, encontra-se disponível no site da
Academia sul-mato-grossense de Letras, sediada em Campo Grande. A página refere-se a essa
edição. No anexo 4, reproduzimos as páginas 127 a 129 da obra original, que se referem a Maria
Bolacha.
68
19), que “ninguém o embuçala” (BARROS, 1997, p. 47), precisa ser controlada na
cidade.
Os desvalidos das ruas de Corumbá que compõem o cenário urbano da
poesia de Barros constituem um drama encenado poeticamente que nos leva a
inquirir: tratam-se, tais indivíduos, de pessoas reais recriadas pela poesia ou são
personagens inventadas? Constituem projeção ficcional ou são produtos da
memória?
Eis como Serra relembra, em uma de suas crônicas, a figura da velha do
saco:
[...] andar de papagaio e de pano à cabeça [...] Maria Bolacha
simbolizou a resistência moral que o convívio sórdido das calçadas
não enodoou. A impropérios e a relho lutou ferozmente contra a
chacota, cobrando à turba inconsciente e alegre o seu inalienável
direito à liberdade das ruas. (SERRA, 2004, p. 115-117).
Descreve-se uma figura folclórica das ruas, que surge como “Maria Bolacha”
em Lobivar (MATOS, 1936, p. 19) e como “Dona Maria” em Barros (2005, p. 53).
Desse modo, a “velha do saco” transpõe a barreira do tempo e a lógica dos fatos
para vaguear, revivida pela memória, na crônica histórica e na poesia.
Ao retomarem Maria Bolacha, os três autores elegem uma figura cujo nome
carrega forte simbologia. Como já se afirmou, Maria é nome bíblico, comum, que
nem sempre singulariza, mas muitas vezes congrega em si vários seres e
denúncias. Como muitas são as “marias” da história da cidade, retomar essa “Maria”
tem a força de um símbolo, ao mesmo tempo em que, ao redor desse nome próprio,
se ligam, numa relação semântica, os elementos que constituem uma gama de
informações que individualizam e caracterizam a personagem:
Velha baixota, enrugada
Chinelos furados, dedos de fora
(MATOS, 1936, p. 19);
Dona Maria me disse: não agüento mais, já tô pra comprar uma
gaita, me sentar na calçada, e ficar tocando, tocando... [...] até que a
vida melhorasse.
(BARROS, 2005, p. 53-54).
É necessário observar que a figura de Maria Bolacha como que desperta uma
espécie de encantamento nos três autores que a tornam personagem. Talvez esse
enlevo advenha da condição de pária da figura histórica que inspira a criação da
69
personagem ou de certo carisma ou simpatia essencial que lhe era intrínseca. Além
do que, o registro poético não se restringe ao real: ele transmuta-o, ficcionalizando-o.
Embora defina Maria Bolacha como “trapo”, Lobivar, em sua poesia, mostra o
lado jocoso do determinante de Maria. De fato, ela é quem dá bolachas. Existe na
personagem uma contradição aparentemente insolúvel e fatal: apedrejada, Maria é,
sempre, aquela que dá bofetadas (bofetada é igual a “bolacha”, daí a sua alcunha).
Eis como ela reage à zombaria, na visão de cada um dos autores:
Vão para o diabo, cambada de senvergonha!
(MATOS, 1936, p. 19);
Mas, enquanto forças teve, disputou o direito às ruas, defendeu sua
dignidade e repeliu a rebenque e pedradas a alcunha
desmoralizante.
(SERRA, 2004, pp. 115-116);
Por favor, moço, mande esses meninos embora pra casa
deles. O senhor já me largou na sarjeta, já fez crescer visgo
no meu pé, e agora ainda manda os moleques me
xingarem...
(BARROS, 2005, p. 54).
A reação em Lobivar retrata a indignação da personagem, que se manifesta
com todo vigor. Serra descreve uma figura que envelhece, mas que antes de perder
as forças, rebatia os ataques à “sua dignidade”, configurados na “alcunha
desmoralizante”, com “rebenque e pedradas”.
Em Barros, o eu enunciador tem a proximidade do diálogo com essa Maria, e
provoca-a, tratando do momento em que ela morrerá, em que a sua gaita ficará
“cheia de formiga e areia”, em que ela “estará cheia de lacraias sem anéis”, e em
que, então, “ninguém suportará o cheiro do seu corpo” (BARROS, 2005, p. 54).
Questionada se não seria assim, surge uma Maria Bolacha civilizadamente educada,
que pede “por favor” e que responde ao eu-lírico como se respondesse ao próprio
poema que o leitor lê.
De certa forma, mais do que três visões diversas, parece que temos retratos
da mesma personagem em momentos distintos: ao longo de sua trajetória, em sua
reação típica, e já envelhecida e sem forças. Os textos como que dialogam e se
complementam. Há poesia, ficção e realidade reiteradas em um único “trapo”, “Maria
Bolacha” ou “Dona Maria”. No poema de Lobivar, repete-se:
70
Trapo num corpo sujo
Trapo sujo na vida.
(MATOS, 1936, p. 19).
Esses versos nos remetem à obra de Barros:
Depois as pessoas ficarão com pena da sua figura
esfarrapada, tocando uma gaitinha rouca, e jogarão moedas
encardidas em seu colo encardido, não é?
(BARROS, 2005, p. 53);
e ainda às crônicas de Ulisses:
Alquebrada pelos anos, extenuada pela luta e já doente, um dia
abandonou a arena das ruas e voltou, para sempre, à sua mansarda
no sítio nativo, da Mata do Segredo.
(SERRA, 2004, p. 115).
Tanto em Lobivar quanto em Barros surgem referências ao “trapo”, à “figura
esfarrapada”, semas que denotam empatia e que, assim, constituem ferina e ácida
crítica à exclusão, o que também se evidencia em Ulisses, com o vocábulo “luta” e a
expressão “arena das ruas”. A opção pelos marginalizados “trapo”, “traste” e
farrapo”, nos poemas e na crônica, descortina um cenário social que, talvez,
somente autores cônscios da importância de seu ofício pudessem transformar em
matéria para os seus escritos.
Lendo-os, temos a impressão de que essa figura peculiar, cujo nome é Maria,
ainda atravessa os becos e avenidas, sobe pelas ladeiras ou passeia pelo porto,
indiferente ao relógio da história, para constituir-se em personagem que denuncia a
face oculta das coisas e dos homens. Aqui, o implícito é mais importante que o
evidente à flor do discurso. A aproximação entre a figura histórica e a personagem
faz emergir uma literatura em que se destacam seres destituídos das mínimas
condições necessárias para um ser humano. Temos um molambo ambulante, um
“trapo”:
Trapo, s.m.
Pessoa que tendo passado muito trabalho e fome
deambula com olhar de água suja no meio das ruínas
Quem as aves preferem para fazer seus ninhos
Diz-se também de quando um homem caminha para
nada.
71
(BARROS, 2002a, p. 46, itálico no
original).
Lobivar, ao tratar desse “trapo” – que a sociedade, por conveniência, encobre
–, faz uma descrição que constitui uma metáfora:
Maria Bolacha
[...]
Saco vazio, sem cor, dependurado às costas...
(MATOS, 1936, p. 19).
“Saco vazio” significa, nesse poema, Maria sem recordações, destituída de
passado e de futuro, alheia à sociedade consumista, mas flagrada pela poesia.
Como, em outro contexto, teoriza Dufrenne (1969, p. 89): “[s]em nada perder de sua
sinceridade, o poeta é transcendido pelo que vive no momento em que o diz, pela
virtude do dizer”. E, assim, Lobivar se identifica com a sua personagem:
Agora, que sou farrapo de homem,
que queria ser homem,
que já tropecei por este mundo a fora,
que já cansei de ficar no chão,
não encontro ninguém que me tire da sarjeta.
(MATOS, 1936, p. 29).
Emite, ainda, juízo sobre a situação social que descreve:
é a mancha negra bulindo na cidade
mais branca do mundo. 30
(MATOS, 1936, p. 7).
Evidentemente, conforme nos ensina Candido (1985, p. 13), “[a]char, pois,
que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la, é correr o risco de
uma perigosa simplificação causal”. No caso de Lobivar e de Barros, temos ― e
seguimos a terminologia de Candido ― que a fantasia não é pura, referindo-se
constantemente a alguma realidade e sobre essa realidade emitindo considerações.
30
Corumbá, devido o calcário que impregna as rochas da morraria às margens do Rio Paraguai onde
a cidade foi edificada, é chamada de “Cidade Branca”.
72
É por terem o mesmo referente externo que os três autores como que, num efeito de
justaposição, parecem construir um único texto:
― Maria Bolacha! Maria Bolacha!
(MATOS, 1936, p. 19);
― Maria Gaiteira, fiu! Maria Gaiteira, fiu, fiu!
(BARROS, 2005, p. 54);
― Pêra aí, pestes, vão para o diabo, cambadas de senvergonha!
(MATOS, 1936, p. 19);
À tarde, pelo cansaço, com voz fraca e enternecida, ofegante, pedia
clemência.
(SERRA, 2004, p. 115);
― Por favor, moço, mande esses meninos embora pra casa
deles.
(BARROS, 2005, p. 54).
Com efeito, Maria Bolacha protagoniza uma humanidade apodrecida pela
miséria, pelo descaso. É câncer que corrói a realidade, molambo que arremessa o
“chicote”, seu “pedaço de pau”, e que “não queria dizer tanto”, eternizado ― em
Sarobá, em PCSP, e em Camalotes e Guavirais ― como “trapo” biografável, lírico.
Nesse caso, Lobivar precedeu Serra e Barros, ao reunir, em sua obra, o local
e o universal, o passional e o racional. Lobivar evoca fatos relevantes para o
momento histórico ― a década de 30 ―, não dissociando sua literatura da inserção
social, em obra cuja simplicidade de meios alcança extrema complexidade de fins,
resultando em um retrato social que é mais revelador do que o dos seus
contemporâneos.
Lobivar, Barros e Serra incluem em sua obra a personagem desvalida, e o
fazem como que retomando certa lição de Baudelaire, assim exposta por Schwarz
(1983, p. 46) no seu clássico Os pobres na literatura brasileira: “Já Baudelaire, por
sentimento dito filantrópico, aconselhava espancar os mendigos da rua, único meio
de forçá-los a reencontrar a dignidade perdida – quando tentassem o revide”.
É a necessidade de expor o real, o concreto, transfigurando-o poeticamente,
que singularizam Lobivar e Barros, não apenas pelo ambiente em que movimentam
suas personagens, não apenas pelas preocupações que manifestam como homens
e como artistas, mas porque suas obras não se prendem a descrições emocionadas
73
de situações sociais injustas ou protestos políticos ― o que os afasta da
mediocrização da sondagem social rasa. Embora cronista histórico, o texto de Serra
quase sempre se aproxima do ficcional e alcança o poético, tendo um veio
subterrâneo de compaixão e humanismo que também o afasta do memorialismo
incipiente. Em todos, parece estar presente a proposição de Manoel de Barros:
Palavra de um artista tem que escorrer
substantivo escuro dele.
(BARROS, 2002b, p. 17).
Nesse sentido, talvez não seja exagero afirmar que a personagem “Maria
Bolacha” é produto da memória dos três autores, “[u]ma revivescência melancólica
dos [...] tempos áureos” (SERRA, 2004, p. 116) da mocidade. Agressiva ou doce, a
memória da infância é doída e está presente como uma lembrança que suaviza a
própria dor. As “bolachadas” que agora eles devolvem à sociedade transcendem as
limitações temporal e espacial na descrição do outro humilhado e ofendido,
marginalizado e à margem.
Figura folclórica das ruas de Corumbá, "Maria Bolacha" (MATOS, 1936, p.
19), ou "Dona Maria" (BARROS, 2005, p. 53), como também era conhecida Maria
Bolacha, é personagem que transpõe a barreira do tempo e a lógica dos fatos para
vaguear nas obras de Lobivar, de Barros e de Serra, tornando-se personagem da
obra dos três autores: em Sarobá (MATOS, l936, poesias), em Poemas
concebidos sem pecado (BARROS, 1937) e em Camalotes e Guavirais (SERRA,
1971, crônicas).
Parece-nos que Maria Bolacha congrega todos os seres que perambulam
pelo espaço das cidades fronteiriças e que, de certa forma, são “invisíveis” aos
poderes públicos. Isso leva-nos a refletir acerca das fronteiras que extrapolam os
conceitos geopolíticos.
Ao trilhar pelas ruas, praças e pontes de ambos os lados, na zona fronteiriça,
percebemos intercâmbios estabelecidos pelos errantes e moradores locais. As
trocas entre lá e cá, o comércio das calçadas, as influências de ambos os lados e as
condições sociais ultrapassam barreiras, cruzam limites, às vezes de modo
silencioso e outras de forma gritante, concretizando uma fronteira economicossocial,
tornando-a viva, não apenas simbólica.
74
Parafraseando o que escreveu Lobivar Matos, essa é a nódoa que continua
“bulindo” nessas cidades fronteiriças.
Maria Bolacha é construção poética que dá a medida, na primeira metade do
século XX, de como um ser humano, na miséria, um “trapo” e “molambo”, pode
ganhar, mais que visibilidade, existência, com seu lamento cutucando a máconsciência social que faz-de-conta que não vê os excluídos do festim capitalista ou,
ainda, como a fronteira apresenta caráter contraditório, inerente a sua própria
essência: o que ela separa? O que põe em contato?
Observamos, em especial, que Manoel de Barros, cujo poema “Dona Maria”
humaniza a personagem, cede-lhe a palavra não como registro exterior, mas como
manifestação do seu íntimo humano, as fronteiras entre os domínios da realidade e
da ficção estreitadas, confundidas, manipuladas, em processo a cujo auge o poeta
chega com os seus volumes de Memórias inventadas, dos quais já lançou A
infância (2003), A segunda infância (2006a), Para crianças (2006b), e A terceira
infância (2008).
Bossé nos ensina que, “Assim como territórios, as fronteiras são fenômenos
sociais portadores e reveladores de uma consciência socioespacial” (BOSSÉ, 2004).
Talvez seja necessário consolidar projetos cuja ação dinâmica das redes de
atores locais (rede de solidariedade) possa favorecer o desenvolvimento da região e
que, mesmo de passagem, os tipos humanos presentes no espaço fronteiriço,
pertencem a ele. A convivência informal das comunidades não deve ser ignorada
pelos poderes públicos. Até porque, conforme sentencia Raffestin, “[...] o poder não
é uma categoria espacial nem uma categoria temporal, mas está presente em toda
‘produção’ que se apóia no espaço e no tempo”. (RAFFESTIN, 1993, p. 6).
Não obstante a diversidade de fatores que levam à errância na região
fronteiriça de Corumbá, as migrações humanas parecem possuir um ponto em
comum: vinculam-se às constantes transformações políticas e econômicas, à
exclusão social, à necessidade da mobilidade psicológica, entre outras. Assim, os
migrantes dessa região de fronteira adotam a mendicância ou realizam trabalhos
informais como guardadores e lavadores de carros, vendedores ambulantes não
documentados, catadores de materiais recicláveis entre outras atividades.
Sabe-se que a movimentação, a errância, o nomadismo não é característica
somente deste século e dessa região fronteiriça. É um fenômeno que já atravessou
os espaços temporais e geográficos ocupados pela humanidade; entretanto, não se
75
pode ignorar que a presença desses personagens torna-se cada vez mais evidente
nessa região.
Segundo dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Ações Sociais, foram
registrados, no segundo semestre de 2009, trinta e um (31) indivíduos, maiores de
18 anos, em situação de rua, na cidade de Corumbá. 31
Em suma, analisar as fronteiras sob o olhar da literatura seria vão, se não se
observassem os elementos sociológicos, políticos, históricos e econômicos que as
caracterizam e refletem na “alma móvel e errante das ruas”, desse espaço
fronteiriço, recriadas nas poesias de Manoel Barros e de Lobivar Matos, e nas
crônicas de seus contemporâneos.
3.4 O andarilho
Os andarilhos invocados na obra de Manoel de Barros surgem, entre outros
momentos, como o Bernardo, de “No tempo de andarilho”, de Livro de pré-coisas,
como o Andaleço, do poema “O andarilho”, de Livro sobre nada, e como “um
andarilho”, em “O olhar”, de Poemas Rupestres. Estudos acadêmicos e resenhas
jornalísticas apontam para a constante evocação do errante, do andarilho, do flâneur
e de outros tipos peregrinos na poesia de Barros.32 O próprio poeta, em entrevistas
(2006), trata do tema. Nos poemas, a figura do andarilho enfatiza o despojamento e
despersonalização do sujeito, e as personagens emergem do discurso como fonte e
origem do poético. Desses andarilhos emana poesia, em uma aura de singelo
franciscanismo e de desprendimento diante da sociedade de consumo, o que
confere certo idealismo à voz poética que os resgata. O andarilho, segundo nos
parece, torna-se peregrino. Neste sub-tópico, propomo-nos verificar de que modo a
figura evidente e discursivizada do andarilho configura, em Barros, a imagem
arquetípica do peregrino. Decorre dessa transformação da figura despojada do
caminhante em um símbolo com fortes ressonâncias culturais que o peregrino é, ao
mesmo tempo, poeticizado e laicizado.
31
Ver Dados quantitativos no anexo 29.
32
Landeira (2005) trata do poeta errante, embora em perspectiva algo diversa da nossa.
76
Para delinear este estudo, é imperativo deslindar a função da figura do
andarilho na obra de Barros e o modo pelo qual o andarilho, por efeito poético,
torna-se peregrino. Sendo assim, nos perguntamos:
a) qual a mensagem que a figura do andarilho inculca na poesia de
Barros?
b) esse peregrino, na romaria poética, instaurada por Barros, dirige-se
a qual santuário?
c) qual o papel estético que a figura do peregrino desempenha na ars
poetica de Barros?
Para prosseguir nosso estudo, é imprescindível considerarmos algumas
definições acerca do vocábulo peregrino. No dicionário de símbolos de Chevalier e
Gheerbrant, encontramos:
Peregrino – Símbolo religioso que corresponde à situação do
homem sobre a terra, o qual cumpre seu tempo de provações, para
alcançar, por ocasião da morte, a Terra Prometida ou o Paraíso
perdido. O termo designa o homem que se sente estrangeiro dentro
do meio em que vive, onde não faz outra coisa senão buscar a
cidade ideal. O símbolo exprime não apenas o caráter transitório de
qualquer situação, mas o desprendimento interior, em relação ao
presente, e a ligação a fins longínquos e de natureza superior. Uma
alma de peregrino pode significar também um certo irrealismo,
correlativo a um idealismo um tanto sentimental. Pode-se notar, com
relação ao símbolo do peregrino, as idéias de expiação, de
purificação, assim como homenagem Àquele (Cristo, Maomé, Osíris,
Buda) que santificou os locais de peregrinação. O peregrino ao
buscar esses lugares procura identificar-se com Aquele que os torna
ilustres. Por outro lado, o peregrino faz as suas viagens não no luxo,
mas na pobreza; coisa que responde à idéia de purificação. O bastão
ou bordão simboliza ao mesmo tempo a prova de resistência e o
despojamento. Todas essas condições preparam para a iluminação e
para a revelação divinas, que serão a recompensa no término da
viagem. A peregrinação se assemelha aos ritos de iniciação: ela
identifica com o mestre escolhido. (CHEVALIER e GHEERBRANT,
2002, p. 709).
Vale enfatizar que o andarilho presente na poética de Barros aproxima-se da
imagem de São Francisco, pois ambos, além da humildade e da empatia com a
natureza, abstêm-se dos valores consagrados pela sociedade e caminham em
busca de respostas para aquilo em que acreditam.33 Barros parece ter a imagem do
andarilho como a de um mestre, sendo tal mestre-andarilho identificado à trajetória
33
Orlando Antunes Batista (1989, p. 54-75) trata do franciscanismo na lírica de Barros.
77
de errâncias do poeta simbolista Rimbaud.34 Desse modo, o andarilho de Barros
constitui-se em metáfora da sabedoria do poeta caminhante, do ser semovente cujo
apostolado é desvelar os trajetos que convertam a poesia em ideal de purificação no
mundo referencial, dominado por valores capitalistas.
À medida que viaja, que palmilha pelo Pantanal, o andarilho desenraiza
conceitos, liberta-se deles, atravessa as fronteiras lingüísticas, dissolve barreiras
entre o ser e o ter, transgride os verbos e as idéias sistematizadas. Esse andarilho é
um ser que vive na fronteira e está na fronteira: seus caminhos tracejam becos e
ruas de Corumbá, convive com o migrante e com andarilhos bolivianos, tem um
linguajar misto, palmilha os inexistentes caminhos pantaneiros, nos quais os limites
entre a terra e a água são indefiníveis, indecifráveis, são fronteiras semoventes, o
que faz do espaço do poema cenário que revela e molda o andarilho.
Os andarilhos, de modo geral, são seres anônimos, cuja errância os
transforma em sujeitos sempre os mesmos, mesmo quando são muitos e diversos.
Em Barros, o andarilho, às vezes, é nomeado: em um poema, surge como Bernardo,
em outro, como Andaleço, e em outros, é tão só um andarilho.
Na enunciação poética, o poeta assim conceitua o caminhante em Livro de
pré-coisas: “O andarilho é um antipiqueteiro por vocação. Ninguém o embuçala.
Não tem nome nem relógio. Vagabundear é virtude atuante para ele. Nem é idiota
programado, como nós. O próprio esmo é que o erra” (BARROS, 1997, p. 47).
O andarilho desse poema remete ao errante, ao andante que tem consciência
das coisas que rejeita e por que pertence “de andar atoamente” (BARROS, 2000a,
p. 85). “Enquanto as águas não descem e as estradas não se mostram, Bernardo
trabalha pela bóia. Claro que resmunga. Está com raiva de quem inventou a enxada.
E vai assustando o mato como um feiticeiro”. (BARROS, 1997, p. 48).
A rejeição se dá no que se refere ao enraizado, por isso “vai assustando o
mato como um feiticeiro”. Não quer a linguagem do outro, o caminho do outro, quer
descobrir seu próprio caminho, falar com a sua própria voz. Por isso, “remói
caminhos e descaminhos”. E o poeta prossegue:
Os hippies o imitam por todo o mundo. Não faz entretanto brasão de
seu pioneirismo. Isso de entortar pente no cabelo intratável ele
34
Afonso de Castro, na obra A poética de Manoel de Barros, aponta os ecos de Rimbaud. E Barros
([2000b]), em entrevista, fala da importância de Rimbaud na sua visão de mundo.
78
pratica de velho. A adesão pura à natureza e a inocência nasceram
com ele. Sabe plantas e peixes mais que os santos.
(BARROS, 1997, p. 48).
A peregrinação será árdua, com privações e reflexões a cada passo, a cada
olhar desajustado em relação ao espaço onde anda atoamente, pois mesmo o ócio,
fundamental para o exercício da sua reflexão, necessita ser justificado. Assim, em “O
andarilho”, de Livro sobre nada, Manoel de Barros acrescenta uma nota de rodapé,
do lado esquerdo do poema, a qual nos parece homologar o nosso raciocínio,
incorporando novos elementos à figura do caminhante:
Penso que devemos conhecer algumas poucas cousas sobre a
fisiologia dos andarilhos. Avaliar até onde o isolamento tem o poder
de influir sobre seus gestos, sobre a abertura de sua voz, etc.
Estudar talvez a relação desse homem com as suas árvores, com as
suas chuvas, com as suas pedras. Saber mais ou menos quanto
tempo o andarilho pode permanecer em suas condições humanas,
antes de se adquirir do chão a modo de um sapo. Antes de se unir às
vergônteas como os parasitas. Antes de revestir uma pedra à
maneira do limo. Antes mesmo de ser apropriado por relentos como
os lagartos. Saber com exatidão quando que um modelo de pássaro
se ajustará à sua voz. Saber o momento em que esse homem
poderá sofrer de prenúncios. Saber enfim qual o momento em que
esse homem começa a adivinhar.
(BARROS, 2000a, p. 84).
O errante consciente rejeita o estabelecido. Ele procura novos caminhos e
procura a sua própria voz, como se uma voz apenas sua fosse o signo de sua
existência. Essa garantia de existência irmana-se, panteísta, com a natureza,
integra-se a ela e dela recebe – como o Atlas da mitologia recebe sua força da Terra
– a seiva de seu ser, os prenúncios que indicam que foi tocado por algo que o
transcende. Adivinhar, descobrir, divinizar a poesia: o vate-andarilho parece receber
uma missão. Sua trajetória harmoniza-se com a mendicância, a loucura e a
volubilidade do vento:
Eu já disse quem sou Ele.
Meu desnome é Andaleço,
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
79
A minha direção é a pessoa do vento.
(BARROS, 2000a, p. 85).
Franciscano no despojamento e irmanado à natureza, o andarilho, na obra de
Barros, tem a propriedade de se desprender dos valores consumistas e da rotina
produtivista do capitalismo: “Não tem nome nem relógio. Vagabundear é virtude
atuante para ele. Nem é idiota programado, como nós” (BARROS, 1997, p. 47).
Esses versos remetem a estes, de Livro sobre nada:
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
(BARROS, 2000a, p. 85).
Nota-se que, além do vagabundear que não “é idiota” e da inteligência de só
conhecer “ciências que analfabetam”, a busca da poesia, pelo andarilho, assemelhase à busca do Graal. Como se fosse um ser privilegiado por não ter assimilado”
estudamento de tomos”, é puro, virgem dos conceitos pré-estabelecidos. Desse
modo, o andarilho torna-se poeta e, como poeta, se torna apto para sua grande
missão: buscar a poesia, desvelar – na fonte das coisas – o seu Graal, a poesia
Nesse sentido, para Barros o fazer poético se torna um movimento de
contrição e uma atitude de despojamento. O que permite ao andarilho-poeta
converter o fazer poético em um ato quase apostólico é o comedimento e o
conhecimento empírico da simplicidade de se reconhecer no outro: “Eu já disse
quem sou Ele” (BARROS, 2000a, p. 85).
De certo modo, emula o seu mestre Rimbaud, que abolira fronteiras e já
buscara a liberdade da poesia, do poeta e do leitor para a descoberta. Talvez por
isso é que os verbos referentes ao andarilho estejam, em “O olhar”, no pretérito
imperfeito:
Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela Aldeia
80
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida.
(BARROS, 2004, p. 75).
Mas o que busca esse caminhante rimbaudiano?
Ao que parece, busca – nos ecos desse silêncio – “[a]valiar até onde o
isolamento tem o poder de influir [..] sobre a abertura de sua voz” (Barros, 2000a, p.
84), conforme anotou na já mencionada nota de rodapé do poema “O andarilho”, de
Livro sobre nada. O andarilho erra em apagada existência na busca de palavras
que lhe são símiles:
IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu,ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos em flor.
(BARROS, 1989).
Vemos que o poeta-andarilho, em sua romaria poética, tem por santuário a
palavra, “arcanos em flor”, e que a palavra que nasce da solidão peregrina o deixará
mais próximo de seu mestre. Ao transpor fronteiras, interrogar certezas, desenraizar
conceitos, tornar-se a “liberdade em trapos”, desprender-se do consumismo,
despojar-se de superfluidades, integrar-se e à natureza, analfabetar-se, “sofrer de
prenúncios”, o andarilho caminhante congrega em si o próprio esmo que erra. O
andarilho torna-se poeta ao tocar o transcendente que nasce de si, ao chegar a
momento no qual “começa a adivinhar” (BARROS, 2000a, p. 84).
Ao percorrer errante trajetória e desvelar o que deve ser revelado, o andarilho
se torna poeta que apresenta as chaves para a Terra Prometida. Tendo passado por
provações, estrangeiro na fronteira em que transita, ser em eterna disponibilidade e
transitoriedade, idealista em busca da Cidade ideal, puro em sua expiação
franciscana, iluminado pela revelação poética, o poeta-andarilho é um peregrino, tal
como o peregrino está definido por Chevalier e Gheerbrant (2002).
Esse, o poeta-peregrino, portador da Boa Nova contida na palavra poética
que transpõe fronteiras e interroga certezas, expressa-se em um mundo concreto no
qual panteísticamente se integra. É limo de pedra (BARROS, 2000a, p. 84), é
“adesão pura à natureza” (BARROS, 1997, p. 48),é “olhar cheio de sol” (BARROS,
81
2004, p.75).A transcendência emerge do natural, com o que temos um poetaperegrino cujo fazer poético deixa o transcendente e laiciza-se.
Peregrino, porém laico, o poeta busca do seu embate com as palavras a
transcendência – que o andarilho encontra na divinização revelada do natural
transfigurado, “[d]e tarde arborizo pássaros” –. Já vimos que o poeta procura é a
palavra adâmica, em sua origem primeva mais pura, a palavra em sua “fonte
recôndita”. (Barros, 1989). Desse modo, a peregrinação orienta o poeta, purifica-o a
fim de revelar a palavra fontana. Se no princípio era o verbo, a luz se faz com a
palavra primeira, encontra ao fim de uma busca regressiva à causa primeira – a
palavra fontana , assim considerada, é pois o próprio encontro com Deus. Por isso, o
peregrino-poeta está cônscio, depois da caminhada, de que pertence a uma estirpe
que tem o dever sagrado de espalhar poesia pelo mundo:
Poesia, s.f.
Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de
um homem
Designa também a armação de objetos lúdicos com
emprego de palavras imagens cores sons etc.
geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas
loucos e bêbados
(BARROS, 2002a, p. 43, itálico no
original).
Poeta, s.m. e f.
Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu
Espécie de um vazadouro para contradições
Sabiá com trevas
Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como
um rosto.
(BARROS, 2002a, p. 45, itálico no
original).
A peregrinação do poeta-andarilho orienta-o, purifica-o a fim de revelar – ou
desvelar – a palavra fontana, essa palavra original, primeva, ápice da busca, destino
da errância do caminhante peregrino. Buscar a poesia é peregrinar pelas palavras
em humano desatino, é andarilhar franciscano dissolvendo-se na natureza, é
82
eliminar fronteiras entre o eu e a alteridade, é desprender-se, despersonalizar-se,
para enfim emergir poeta.
Valemo-nos, para homologar e comprovar a nossa interpretação, do próprio
Manoel de Barros. O poeta, em entrevista que concedeu a Cláudia Trimarco, afirma:
“O andarilho é um ser errático - igual a poesia” (BARROS, 2006). Logo, na romaria
poética, o peregrino está para o poeta assim como a poesia está para a sua
consagração – e o possessivo “sua” implica em proposital ambigüidade, pois que a
consagração é tríplice: do peregrino, do poeta e da poesia.
O peregrino é, pois, aquele que realiza o eterno anseio do poeta maduro,
pronto para enfrentar a trilha, digno de nossa reverência, pois a poesia será seu
magno santuário terreal e nenhuma fronteira ou divisa haverá para ele, já que terá
também seus discípulos seguidores.
Barros, em entrevista já citada, afirma: “O andarilho é um ser errático igual a
poesia”. Temos, pois, uma igualdade entre andarilho e poesia, um e outro tendo em
comum a errância. O poeta se equivale ao Mestre, aquele ao qual “discípulos”
seguem, e o “magno santuário terreal” do poeta-peregrino é a poesia. Para construir
esse raciocínio, muitos são os andarilhos que perambulam nas fluidas e aquosas
fronteiras naturais que servem de referente ao cosmos poético de Barros. Vimos
aqui Andaleço, Bernardo e um andarilho não nomeado. Errante, franciscano, flâneur
que é espécime oposta ao flâneur moderno, baudelairiano, dele evola poesia, da
qual emerge a arquetípica imagem do peregrino, que é ao mesmo tempo poeticizado
e laicizado. Esse poeta-andarilho-peregrino realça, na poesia de Barros, o elogio do
inútil, do descartável, do miúdo desprezado pela sociedade de consumo, gerando o
poema da busca da palavra fontana, verbo primeiro, a poesia tornada força geratriz
do mundo, ainda que se manifeste por meio de “um pedacinho de arame” com o
qual o eu-lírico remexa suas memórias fósseis.
4 PERSONAGENS REAIS E FICCIONAIS EM MANOEL DE BARROS
Sabe-se que verossimilhança não é verdade, porém, entre os fatos
constatados pela historiografia e a re-criação poética das figuras populares da região
fronteiriça de Corumbá, parece-nos, há uma intenção de quem reinventa essas
personagens.
Bola-Sete, “o filósofo do beco”, recriado por Manoel de Barros na obra Livro
sobre Nada, é personagem que surge também nas histórias de cronistas como
Renato Báez, Silva Neto, Jorge Vancho Panovich e em muitas narrativas orais de
corumbaenses.35
Renato Báez (1964) afirma que, no período compreendido entre 1863 e 1963,
“viveram em Corumbá muitos tipos populares” e refere-se a eles como “almas da
rua” (BÁEZ, 1964, p. 119). Ao evocar esse passado “cheio de lendas e tradições”,
faz o seguinte registro:
‘BOLA SETE’ é como foi apelidado João Batista da Silva, nascido a
26 de junho de 1919 [...] BOLA SETE é anunciador voluntário de
partidas de futebol, de casas comerciais e de candidatos políticos a
cargos eletivos. É figura infalível nas portas de cinemas bares,
estádio etc. Além de pugilista amador, é carnavalesco, tendo
participado da Escola de Samba “Flamengo”, do popular Favito.
(BÁEZ, 1964, p. 135 negrito no original).
Francisco Ignácio Silva Neto assim o descreve:
[...] Ele era o ‘Bola Sete’, cujo verdadeiro nome, creio, ninguém
jamais soube. E foi justamente naquela esquina onde viveu grande
parte da sua curta vida maltrapilha, que conheci o ‘Bola’, cercado por
alguns conhecidos e por algumas crianças que gostavam das suas
brincadeiras e das suas piadinhas. (SILVA NETO, 1995, p. 69).
Jorge Vancho Panovich faz a seguinte referência ao personagem:
Bola-Sete era um cidadão muito popular em minha cidade. Vivia de
biscate para sobreviver. Tinha um vozeirão de fazer inveja a qualquer
locutor de rádio. Religiosamente, ele passava todos os dias, para
tomar um trago de aguardente, no armazém do Abud, um
descendente de libanês. Depois do trago de aguardente, Bola-Sete
35
Os textos aqui referenciados encontram-se completos nos anexos 1 a 3. Os anexos 4, 5, e 6
apresentam outros personagens populares por cronistas e pessoas da comunidade corumbaense.
84
largava seu vozeirão fazendo a seguinte propaganda: ‘compre no
armazém do Abud, que é o melhor da cidade’. (PANOVICH, 2007. p.
6).
Barros recria poeticamente tal personagem, retomando fatos da realidade
local, conforme observamos neste poema:
Um filósofo de beco
Bola-Sete é filósofo de beco.
Marimbondo faz casa no seu grenho – ele nem zine.
Eu queria fazer a biografia do orvalho – me disse.
E dos becos também.
É preciso refazer os becos, Senhor!
O beco é uma instituição que une o escuro do homem
com a indigência do lugar.
O beco é um lugar que eleva o homem até o seu melhor
aniquilamento.
Um anspeçada, amigo meu, de aspecto moscal, só
encontrou a salvação nos becos.
Antoninha-me-leva era Eminência nos becos de
Corumbá.
Senhor, quem encherá os bolsos de guimbas, de tampinhas de cerveja, de vidrinhos de guardar moscas –
senão os tontos de beco?
E quem levará para casa todos os dias de tarde a mesma
solidão – senão os doidos de beco?
(Algum doido de beco me descende?)
(BARROS, 2000, p. 81).
A personagem Bola-Sete é uma dentre tantas figuras populares, de escolha
comum a escritores da região fronteiriça de Corumbá, também recriada na poesia de
Manoel de Barros, aqui com um aspecto que a memória dos mais antigos evoca,
mas que os cronistas não registraram: o veio poético do andarilho torna-se
aforismas, que Barros nomeia como filosofia, modulando a expressão como “do
beco”, dando ao qualificativo um sentido existencial que transcende o factual,
derivado do fato do personagem e da personagem — junto com outras figuras
populares, moradores de rua e desocupados — estar sempre em um beco, ou
alameda, nas imediações do porto de Corumbá.36
Dentre os muitos questionamentos que nos fizemos antes e durante este
estudo, uma interrogação ecoa: qual a intenção poética de Manoel de Barros re-criar
tal personagem?
36
Em Ensaios fotográficos, encontramos o verso: Pra compensar tinha laia de poeta. (BARROS,
2007, p. 33).
85
Parece-nos resposta possível que a referência aos becos, às vielas da
fronteira física, talvez, seja uma forma de re-colocar em evidência não apenas o
espaço geográfico onde Bola-Sete se movimentou, mas também definir o entre-lugar
no qual se encontra o eu enunciador do poema ou, ainda, onde o poeta re-interpreta
suas identidades:
E quem levará para casa todos os dias de tarde a mesma
solidão – senão os doidos de beco?
(Algum doido de beco me descende?)
(BARROS, 2000, p. 81).
O beco, nesse poema, pode, também, ser interpretado como o espaço onde a
bola do jogo de sinuca é encurralada numa jogada complexa37. Desse modo, ao vate
cabe jogar com as palavras e deixar o leitor em uma “sinuca de bico”. Qual o
percentual dessa invenção?
Ao expressar o que os outros sentem, também o poeta está tornando seu
sentimento mais consciente e, por conseguinte, faz com que seus interlocutores
reflitam algo sobre si próprios. Para além de qualquer intenção especifica que a
poesia possa ter, nos poemas de Manoel de Barros há sempre expressão de algo
que apura nossa sensibilidade. Assim como “Cabeludinho” é alter-ego do Barros
menino, “Bola Sete” é alter-ego do poeta Manoel de Barros.
No poema “A Borra”, da obra Ensaios Fotográficos, o eu-lirico enuncia:
A BORRA
Prefiro as palavras obscuras que moram nos
fundos de uma cozinha — tipo borra, latas,cisco
Do que as palavras que moram nos sodalícios —
tipo excelência, conspícuo, majestade.
Também os meus alter-egos são todos borra,
ciscos, pobres-diabos
Que poderiam morar nos fundos de uma cozinha
— tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego
Preto etc.
Todos bêbedos ou bocós.
E todos condizentes com andrajos.
Um dia alguém me sugeriu que adotasse um
alter-ego respeitável — tipo um príncipe, um
almirante, um senador.
Eu perguntei:
37
Embora a tenhamos sempre em nosso horizonte, dado os pressupostos para a pesquisa, não nos
apoiamos exclusivamente no traço biográfico para interpretar a produção literária de Manoel de
Barros.
86
Mas quem ficará com os meus abismos se os
pobres-diabos não ficarem?
(BARROS, 2007, p. 61).
Para nós, a produção literária barreana apresenta relações com a história de
Corumbá, com o contexto que o poema foi produzido. A poesia de Manoel de Barros
contém memória pessoal e afetiva recriadas, transfiguradas nas várias personagens
e eu-liricos, quando remete a figuras que de fato existiram na Corumbá da infância e
da juventude do poeta.
Assim, o beco, no poema de Barros, é um espaço metafórico onde as
identidades do eu-lírico são firmadas, onde a poesia se presentifica e onde o poeta
se re-conhece. Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego Preto e “todos
condizentes com andrajos” são matéria de sua poesia. Mesmo sem deixar de
considerar as influências de outros poetas, Barros define seu projeto poético ao
eleger esses personagens como fonte de poesia. Dessa forma, dialoga com o tempo
histórico e o espaço geopolítico onde viveu o personagem Bola Sete e o Barros de
outrora.
Em outro poema, da obra Poemas Rupestres, o eu-lírico informa:
OS DOIS
Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do Amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.
(BARROS, 2004, p. 45).
Assim, os dois seres terão as identidades garantidas se “Algum doido de beco
empregar o seu amor em nós”.
Sabemos que o nada, o banal, o desprezível são elementos recorrentes na
poesia de Manoel de Barros; logo, o beco, o “extremo”, o ínfimo, é a origem do ser
letral que se assemelha com um “filósofo de beco”.
Ao filósofo é atribuída áurea intelectual de quem percebe o beco como
configuração espacial de uma humanidade sem saída. Filósofo do beco é alguém
87
que estuda o limite da existência humana. Mais, ainda – assim nos parece – é o
espaço da celebração da liberdade, da interação dos diferentes.
O beco é um lugar que eleva o homem até o seu melhor
aniquilamento.
(BARROS, 2000, p. 81).
Logo, os dois seres – o artista-poeta e o ser biológico Manoel – retomam
aspectos da realidade para se des-representar ou para re-criar, traduzir e produzir
revoluções que se ampliarão em outro tempo e outro espaço. Caso o interlocutor
aceite o convite do ser letral – “que você empregue seu amor em nós”.
O Barros da obra PCSP não é o mesmo das Memórias. O tempo observado
nas suas obras é o limite entre o que é factual e o que é evocação.
O trajeto poético percorrido desde a sua primeira obra, PCSP, é revisitado na
trilogia das Memórias Inventadas pelo bugre velho que confessa:
FONTES
Três personagens me ajudaram a compor estas
memórias. Quero dar ciências delas. Uma, a criança:
dois, os passarinhos: três, os andarilhos. A
criança me deu a semente da palavra. Os passarinhos
me deram desprendimento das coisas da terra. E os
andarilhos, a preciência da natureza de Deus.
Quero falar primeiro dos adarilhos, do uso em
primeiro lugar que eles faziam da ignorância.
Sempre eles sabiam tudo sobre o nada. E ainda
multiplicavam o nada por zero – o que lhes dava
uma linguagem de chão. Para nunca saber onde
chegavam. E para chegar sempre de surpresa.
Eles não afundavam estradas, mas inventavam
caminhos. Essa a pré-ciência que sempre vi nos
andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza.
Bem que eu pude prever que os que fogem da natureza
um dia voltam para ela. Aprendi com os passarinhos
a liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar
ter motor nas costas. E são livres para pousar em
qualquer tempo nos lírios ou nas pedras – sem se
machucarem. E aprendi com eles ser disponível
para sonhar. O outro parceiro de sempre foi a
criança que me escreve. Os pássaros, os andarilhos
e a criança em mim, são meus colaboradores dessas
Memórias inventadas e doadores de suas fontes.
(BARROS, 2008, I Fontes).
88
O tempo operou mudanças no menino Cabeludinho, alter-ego do poeta. O
poeta velho recupera a vida de infância, retomando o passado em dois tempos: o da
História e o da Poesia.38
A personagem Bola-Sete é figura popular, ao mesmo tempo, realidade e reinvenção, des-nomeada e nomeada, sem prestígio social e consagrada pela poesia,
é alter-ego do poeta. É mendigo, louco e é andarilho; palmilha nas fronteiras, nos
espaços intervalares, no beco, nas fissuras, no entre-lugar onde o personagem e a
personagem se hibridizam. Acreditamos que, além disso, na produção poética de
Manoel de Barros, há um sentido ideológico latente que leva o ser letral a re-criar
tais personagens.
38
Nos anexos 27 e 28 apresentamos fotografias do poeta em dois momentos de sua trajetória.
CONCLUSÃO
Este estudo abordou, no seu início, visões teóricas de diferentes áreas do
conhecimento acerca do conceito de fronteira, e apresentou o conceito de fronteira
na poética barreana como um entre-lugar resultante da soma do que é concreto e do
que é representação, a partir de análise do poema “O muro” e outros poemas que
homologam esse sentido.
Partindo dessa abordagem, tecemos — no segundo capítulo da pesquisa —
considerações sobre a obra de Barros e a História de Corumbá. Para tais
considerações valemo-nos de estudos acerca da poética de Barros e de fatos que
os cronistas e os historiadores registram e analisam a fim de constatarmos que, na
obra barreana, a História se presentifica tornada poesia. Não é proposta poética de
Barros contar a história da cidade e de seus habitantes, mas ao re-inventá-los perfaz
diluição de fronteiras entre História e ficção.
No terceiro capítulo, empreendemos reflexões a partir das figuras recorrentes
na produção poética barreana: o migrante, a mulher, a mendiga e o andarilho. Essa
análise reitera nosso entendimento de que a produção poética de Manoel de Barros
apresenta-se como o entre-lugar do contato, do entrelaçamento sem barreiras, entre
o passado e o presente, a realidade e a invenção, o factual e o ficcional.
Ao retomarmos, nos diversos livros de Manoel de Barros, os desvalidos, os
trastes, os loucos, os trabalhadores humildes, os mendigos, os maltrapilhos, os
“bolivianinhos”, os andarilhos e outros excluídos da ordem social, verificamos o grau
de sofisticação das engrenagens do capitalismo avançado que, mais que negar a
esses indivíduos a existência civil na condição de cidadão, deles — na visão do
poeta — extirpa até mesmo a condição de humanidade.
Constatamos que a produção literária de Manoel de Barros é atemporal. Mas
também podemos observar que o tempo operou mudanças em Nequinho, o Barros
menino, e no menino Cabeludinho, alter-ego do poeta. O poeta velho recupera a
vida de infância, retomando o passado sob as faces: da História e da Poesia; desse
modo, re-cria figuras populares e rememora a História de Corumbá, do Pantanal
revelando fronteiras diversas.
90
Constatamos que a produção literária de Manoel de Barros pode ser lida
como fronteira que, talvez, marque a passagem da Modernidade para um período
ainda não claramente caracterizado pelo cânone. Em sua produção poética, o eu
enunciador erige identidades líricas como resultado do vivido, do realizado, do
imaginado, do sentimento de lugar, do trajeto percorrido e do limes delineado como
entre-lugar.
Nos anexos, organizamos os materiais bibliográficos e pictográficos coletados
durante a pesquisa. Neles, temos a representação ou a recriação dos personagens
que se presentificam na obra de Barros. Nas crônicas, logramos encontrar as
mesmas figuras com as quais Barros forjou sua obra; nos registros pictográficos,
temos figuras populares similares às recriadas na obra de Manoel de Barros; nas
fotografias, temos a paisagem e moradores da Nhecolândia, região da infância do
poeta constantemente evocada — embora sem menção explícita — em seus versos.
A fronteira, suas gentes e seus territórios aparecem, neste estudo, visitadas
sob o prisma do olhar dos poetas, cronistas, historiadores, geógrafos, memorialistas,
artistas, fotógrafos anônimos, contadores de histórias. Sob tal prisma, buscou-se
preencher sensível lacuna quanto aos estudos literários da região fronteiriça de
Corumbá, assim como coligir acervo — mínimo, inicial — para futuros
pesquisadores.
Acreditamos ter alcançado com a presente dissertação os seguintes
resultados:
1. coligir subsídios e material primário para novas pesquisas;
2. abordar tema e enfoque originais quanto aos estudos fronteiriços e quanto
à análise da poética de Manoel de Barros;
3. empreender estudos fronteiriços a partir de texto poético, a fim de estender
este estudo aos professores de Literatura;
4. discutir o conceito de fronteira como proposição interdisciplinar que
considera as obras literárias, a variedade epistemológica e a geografia social — ou
seja, o múltiplo, o diverso, o humano;
5. refletir sobre a identidade regional a partir de corpus e referencial em que
entrecruzam o histórico e o literário;
6. estudar as fronteiras de Manoel de Barros, evidenciando aspecto pouco
iluminado pelas pesquisas na área de literatura, e que se mostrou muito rica para a
91
compreensão da ars poética do escritor e para desvendar o sentido ideológico
subjacente à sua poesia.
A produção literária de Manoel de Barros, entre outras definições, é também a
expressão das emoções e reflexões do poeta diante do mundo, da desumanização,
da reificação humana, do sexismo, da miséria, da exclusão, da necessidade da
Poesia ao lado das necessidades mais elementares. E isso ocorre na criança, e no
adulto, neste ou em outro espaço, em qualquer tempo. Sua literatura parte da
imaginação — invenção — e das experiências pessoais e sociais para recriar — não
transcrever — a realidade concreta. É arte que recusa o condicionamento do meio,
por isso, transgressora e revolucionária. Não existe no vácuo, independe de
classificações e de rótulos, nem se destina a protestos políticos.
A ars poética barreana, de marcas essencialmente humanas, sustém um
compromisso dos mais profundos, visto que, além do lúdico, do entretenimento que
proporciona, encerra também outras finalidades. O discurso que re-inventa a figura
do andarilho e da mendiga propicia a revelação de uma poesia que dialoga com
narrativas e lembranças presentes, também, na obra de outros escritores da região
fronteiriça de Corumbá.
Entendemos que a poesia de Barros evoca os despossuídos até transformálos, nas figuras da mendiga e do andarilho, em arquétipo de sua mitologia pessoal,
com o que elabora crítica à sociedade consumista e capitalista do século XX.
Manoel de Barros capta o mundo, como se tivesse antenas de formiga. Pode ter ou
não vivenciado determinadas experiências que inventa, mas delas se apodera como
se fosse sua. A matéria-prima de sua arte é a própria vida-pintura-cores-traçosimagens-palavra-mendiga-andarilho-fronteira-poesia.
Dentre os muitos aspectos que possam interessar aos Estudos Fronteiriços, a
produção literária de Manoel de Barros, apesar de não objetivar descrever a região
fronteiriça de Corumbá, ao tratar dos deslimites do Pantanal, da linguagem e do
humano configurado no homem desse limiar de milênio, proporciona significativos
debates acerca de transfigurações, recriações, identidades, ocupação e fronteiras.
A mendiga e o andarilho, figuras que integram o espaço das “fronteiras”
barreanas, são tornadas paradigma e emblema constitutivos da ars poética do
poeta. A mendiga, transmutada na despossuída símbolo, e o andarilho,
personificado no peregrino, metáfora de uma visão despojada da existência.
92
Ao bebermos dos vários estudos publicados acerca da produção literária de
Manoel de Barros, e, em especial, ao lermos o conjunto da obra do poeta,
concluímos que mais que invenção de palavras, mais que autobiografia de quem
não perde o sentimento de pertença ao “verdor primal das águas”, a produção
literária de Manoel de Barros urge ser leitura fundamental para aqueles que almejam
estudar a fronteira, o limes-fratura-hífen, a sutura/entre-lugar, o des, “essa torneira
aberta”: — “Qual antes melhor fechar essa torneira, bugre velho...”.
93
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98
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TORRECILHA, Maria Lúcia. A fronteira, as cidades e a linha. Campo Grande:
UNIDERP, 2004. 100 p.
100
ANEXOS 39
39
Arquivo pessoal se refere ao acervo da família de Luciene Lemos de Campos.
101
Anexo 1 – Ensaio histórico, de Renato Baez
BAEZ, Renato. Corumbá: Figuras & Fatos. São Paulo: Brasil, 1964. 166 p. 149
102
Anexo 1 - continuação
103
Anexo 1- continuação
104
Anexo 1- continuação
105
Anexo 1- continuação
106
Anexo 1- continuação
107
Anexo 1- continuação
108
Anexo 1- continuação
109
Anexo 1- continuação
110
Anexo 1 – continuação
111
Anexo 1 – continuação
112
Anexo 1 – continuação
113
Anexo 1 – continuação
114
Anexo 1 – continuação
115
Anexo 1 – continuação
116
Anexo 1 – continuação
117
Anexo 1 – continuação
118
Anexo 1 – continuação
119
Anexo 2 – Crônica, de Silva Neto
Fonte: Silva Neto (1995) “Era uma vez”
120
Anexo 2- continuação
121
Anexo 2- continuação
122
Anexo 3 – Crônica, de Panovich
In: Panovich (2007), em “ cada rua um conto e uma saudade.”
Arquivo pessoal
123
Anexo 4 – Crônica, de Ulisses Serra
In: Serra (1971) “Camalotes e Guavirais”
Aquivo pessoal
124
Anexo 4 - continuação
125
Anexo 4 - continuação
126
Anexo 5 – Crônica, de Augusto César Proença
In: Proença [s.d]. “Porto da Manga”. Publicada em CB <http://www.cidadebranca.fot.br>.
127
Anexo 5 – continuação
128
Anexo 6 – Lembranças, de Dona Astrogilda
Fonte: Arquivo pessoal
129
Anexo 7 – Autorização
130
Anexo 8 – Declaração de Cessão de Direitos de Imagem
131
Anexo 9 – A mendiga, pintura em tela
Pessoas desimportantes
dão pra poesia
qualquer pessoa ou escada.
(BARROS, 2001, p. 13).
Quadro: Daltro. Maria Konga, pintura em tela.
Arquivo pessoal.
132
Anexo 10 – Movimentos de Maria
O senhor já me largou na sarjeta,
já fez crescer visgo
no meu pé [...]
(BARROS, 2005, p. 54).
Quadro: Daltro. Movimento de Maria Konga – pintura em tela (Imagem cedida).
133
Anexo 11 – Aquarela
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas
só a poesia é verdadeira
(BARROS, 2000, p. 67).
Quadro: Daltro, Aquarela (Imagem cedida).
134
Anexo 12 – Navis
Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso
(BARROS, 2001, p. 13).
Quadro: Daltro. Navis 150. Pintura em tela (Imagem cedida)
135
Anexo 13 – Boiada
No conduzir de um gado, que é tarefa monótona,
de horas inteiras, às vezes de dias inteiros – é no uso
de cantos e recontos que o pantaneiro encontra o seu
ser. Na troca de prosa ou de montada, ele sonha por
cima das cercas.
(BARROS, 1997, p. 33)
Quadro: Daltro. Boiada, pintura em tela (Imagem cedida)
136
Anexo 14 – Travessia
No Pantanal ninguém pode passar régua. Sobremuito
quando chove. A régua é existidura de limite. E o Pantanal não tem limites
(BARROS, 1997, p. 29).
Quadro: Daltro. Boiada psicodélica. Pintura em tela (Imagem cedida)
137
Anexo 15 – Lavadeiras
Enfim, Cabeludinho, é você mesmo quem está aqui?
Onde andarão os seus amigos do Porto de Dona
Emília?
(BARROS, 2005, p. 35).
Quadro: Daltro. Lavadeiras e pipas. Pintura em tela (Imagem cedida)
138
Anexo 16 – Capa de livro
Acho que a gente deveria dar mais espaço
para esse tipo de saber.
(BARROS, 2002, p. 63).
Ilustração de capa: Fátima Larica
Arquivo Pessoal
139
Anexo 17- Capa de livro
Capa da obra Lembranças, de José de Barros.Brasília. Senado Federal, 1987. 92 p.
Arquivo pessoal
140
Anexo 18 – Fotografia
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do
que a cidade
A gente só descobre isso depois de grande.
(BARROS, 2003, XIV).
Fotografia: Nhecolândia (1966). Criança no pátio da Fazenda Firme.
Arquivo pessoal.
141
Anexo 19 – Curral
Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo
que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
gado. Os bois me criam.
(BARROS, 2001, p. 103).
Fotografia: Nhecolândia (1970). Curral, Fazenda Firme.
Arquivo Pessoal.
142
Anexo 20 – Navegando de trator
Dez anos de seca tivemos. Só trator navegando,
de estadão, pelos campos.
(BARROS, 1997, p. 31).
Fotografia: Nhecolândia [s.d]. Peões navegando de trator na Nhecolândia.
Arquivo pessoal
143
Anexo 21 – Lida de pantaneiro
Mas na hora do pega-pra-capar, pantaneiro puxa
na força, por igual.No lampino do sol ou no zero do
frio.
(BARROS, 1997, p. 34)
Fotografia: Nhecolândia (1952) – Charqueada de cachaço na Fazenda Firme.
Arquivo Pessoal.
144
Anexo 22 – Bugre Velho
Do que não sei o nome guardo as semelhanças.
Não assento aparelhos para escuta
E nem levanto ventos com alavanca.
[...]
Desculpem-me a falta de ignorãças.
(BARROS, 2001, p. 45).
Fotografia: Nhecolândia (1970).
Arquivo Pessoal.
145
Anexo 23 – Barros e Bernardo
É muito apoderado de chão esse Bernardo. Seu
instinto seu faro animal vão na frente. No centro
do escuro se espraiam
( BARROS, 1997, p. 41).
Fonte: Revista Poesia Sempre. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Ano 13, Número 21, 2005, p. 47.
in: Cruz (2009, p.115).
146
Anexo 24 – O fazedor de inutensílios
Achava que os passarinhos
são pessoas mais importantes
do que aviões
(BARROS, 2003).
Fonte: Revista Veja Centro-Oeste, Ano 24 – N. 43, 23 out , 1991, p. 3. - Arquivo Pessoal.
147
Anexo 25 – Artigo sobre quase nada
Só quem está em estado de palavra pode
enxergar as coisas sem feitio
(BARROS, 2002, p.35).
Fonte: Folha de Londrina. Terça-feira, 15 de outubro de 1996. Folha 2, p. 4.
148
Anexo 26 – O poeta
Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam,
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin
(BARROS, 2000, p.45).
Fonte: Folha de Londrina. Terça-feira, 30 de outubro de 1996. Folha 2, p. 1.
149
Anexo 27 – Manoel de Barros.
O filósofo Kekkegaard me ensinou que cultura é
o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia nada.
Não tinha as certezas científicas
(BARROS, 2006, XIV).
Fonte: Revista Veja Centro-Oeste, Ano 24 – N. 43, 23 out , 1991, p. 3. - Arquivo Pessoal.
150
Anexo 28 – O poeta e a família
In: BARROS, Abílio Leite de. Pantanal pioneiros: álbum gráfico e genealógico de pioneiros na
ocupação do Pantanal. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 237-238, 270 p.
151
Anexo 29 – Dados quantitativos
152
ÍNDICE
Folha de rosto .....................................................................................................
2
Página de aprovação ..........................................................................................
3
Dedicatória ..........................................................................................................
4
Agradecimentos ..................................................................................................
5
Epígrafe ..............................................................................................................
6
Resumo ...............................................................................................................
7
Abstract ...............................................................................................................
8
Sumário ...............................................................................................................
9
Introdução ...........................................................................................................
10
1 Concepções de Fronteira ................................................................................
17
1.1 Fronteiras: limes e dissociação .....................................................................
18
1.2 A fronteira como constructo da identidade ...................................................
27
1.3 A fronteira: entre-lugar ..................................................................................
30
2 A obra de Barros e a História de Corumbá .....................................................
34
2.1 Os achadouros da poética e do poeta ..........................................................
35
2.2 Do esplendor ao crepúsculo .........................................................................
37
2.3 O eu-lírico em palimpsesto ...........................................................................
39
2.4 Poesia, veia da História; História, o veio da Poesia .....................................
44
3. Recriação Poética de figuras populares na obra de Manoel de Barros ..........
49
153
3.1 O migrante ....................................................................................................
52
3.2 Personagens femininas ................................................................................
55
3.3 A mendiga .....................................................................................................
66
3.4 O andarilho ...................................................................................................
75
4 Personagens reais e ficcionais em Manoel de Barros .....................................
83
Conclusão ...........................................................................................................
89
Referências .........................................................................................................
93
Anexos ................................................................................................................
100
Anexo 1 – Ensaio histórico, de Renato Baez ...................................................... 101
Anexo 2 – Crônica, de Silva Neto .......................................................................
119
Anexo 3 – Crônica, de Panovich ......................................................................... 122
Anexo 4 – Crônica, de Ulisses Serra ..................................................................
123
Anexo 5 – Crônica, de Augusto César Proença .................................................
126
Anexo 6 – Lembranças, de Dona Astrogilda ......................................................
128
Anexo 7 – Autorização ........................................................................................ 129
Anexo 8 – Declaração de Cessão de Direitos de Imagem .................................
130
Anexo 9 – A mendiga, pintura em tela ................................................................ 131
Anexo 10 – Movimentos de Maria ......................................................................
132
Anexo 11 – Aquarela ..........................................................................................
133
Anexo 12 – Navis ................................................................................................ 134
154
Anexo 13 – Boiada .............................................................................................. 135
Anexo 14 – Travessia .........................................................................................
136
Anexo 15 – Lavadeiras .......................................................................................
137
Anexo 16 – Capa de livro .................................................................................... 138
Anexo 17 – Capa de livro .................................................................................... 139
Anexo 18 – Fotografia ......................................................................................... 140
Anexo 19 – Curral ...............................................................................................
141
Anexo 20 – Navegando de trator ........................................................................
142
Anexo 21 – Lida de pantaneiro ...........................................................................
143
Anexo 22 – Bugre velho ...................................................................................... 144
Anexo 23 – Barros e Bernardo ...........................................................................
145
Anexo 24 – O fazedor de inutensílios .................................................................
146
Anexo 25 – Artigo sobre quase nada .................................................................. 147
Anexo 26 – O poeta ............................................................................................
148
Anexo 27 – Manoel de Barros ............................................................................
149
Anexo 28 – O poeta e a família ..........................................................................
150
Anexo 29 – Dados quantitativos .........................................................................
151
Índice ..................................................................................................................
152

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