A mendiga e o Andarilho - Portal do Mestrado em Estudos Fronteiriços
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A mendiga e o Andarilho - Portal do Mestrado em Estudos Fronteiriços
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ESTUDOS FRONTEIRIÇOS CAMPUS DO PANTANAL A MENDIGA E O ANDARILHO: A RECRIAÇÃO POÉTICA DE FIGURAS POPULARES NAS FRONTEIRAS DE MANOEL DE BARROS LUCIENE LEMOS DE CAMPOS CORUMBÁ, MS 2010 LUCIENE LEMOS DE CAMPOS A MENDIGA E O ANDARILHO: A RECRIAÇÃO POÉTICA DE FIGURAS POPULARES NAS FRONTEIRAS DE MANOEL DE BARROS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos Fronteiriços da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre. Linha de Pesquisa: Ocupação e Identidade Fronteiriça Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues CORUMBÁ, MS 2010 In memoriam, dedico este trabalho ao meu “bugre velho” pantaneiro do Poconé ― Corumbá ― Angelino de Campos ― que me contou muitas histórias dos ermos do Pantanal e agora observa suas águas lá dos ermos do céu, passarinhando canções. AGRADECIMENTOS À minha mãe pelo amor, presença, dedicação e pela coragem para, ao lado do meu pai, desbravar novas trilhas sempre. Ao meu orientador, Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues, principalmente pela amizade com que me cativou, mas também, e sempre, pelo incentivo para ousar, persistir, acreditar, pelas orientações e ensinamentos, sem os quais as dúvidas teriam paralisado o desejo de conhecer mais. A todos os professores do mestrado, que me abriram uma nova perspectiva frente ao entendimento da Literatura e da concepção das fronteiras. Aos Professores Drs. Tito, Wilson e Angela pelos ensinamentos na Banca de Qualificação. Às Professoras Dras. Kelcilene e Rita Baltar pelo incentivo e observações do texto para a qualificação. Ao Fernando Almeida e esposa, Teresa Cristina, pelo apoio de sempre. Aos colegas do mestrado, que dividiram as angústias e alegrias do percurso; em especial, a Gerson de Morais, amigo sempre presente, pelo apoio e irrestrita amizade. Ao Daltro, que me brindou com sua produção artística. A Alfio Pozzi, José Lourenço, Waldir Diniz, João Urquidi, Eneo Nóbrega e a Senhora Astrogilda Freire pelas fontes de pesquisa que me propiciaram. A Eunice, funcionária da UFMS, Luis Felipe Fontoura e Dorvanil pelo apoio e carinho. A todos que entenderem meus objetivos e souberam respeitar a necessidade de solidão e reclusão para os estudos. Aprendi a teoria das idéias e da razão pura. Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. (BARROS, 2008, X) CAMPOS, Luciene Lemos de. A mendiga e o andarilho – a recriação poética de figuras populares nas fronteiras de Manoel de Barros. Corumbá, MS, 154 f. Dissertação (Mestrado, Estudos Fronteiriços) – CPAN / UFMS. RESUMO Desenvolvemos este estudo a partir da proposição de que a noção de fronteira, na poética de Manoel de Barros, indicia um entre-lugar, na coalescência do concreto com a representação. Tal limes delineia caminho que o poeta percorre para construir identidades. A obra de Barros recria figuras populares da região fronteiriça de Corumbá: dentre outras, comerciantes, andarilhos, mendigos, loucos, trabalhadores, prostitutas, migrantes, desvalidos, trastes, maltrapilhos. Nossa pesquisa verifica as similaridades, quanto ao registro histórico, quando confrontamos as narrativas de cronistas e o estudo de historiadores com a recriação poética dessas figuras de Poemas concebidos sem pecado (1937) às Memórias inventadas (2004, 2006, 2008). Para tanto, nos anexos, reproduzimos crônicas, excertos de historiadores, depoimentos, pinturas e fotografias que ilustram e homologam nossas conclusões. De início, propomos dois problemas: um, poético, no âmbito da estética, e outro — com duas vertentes, uma poética, outra histórica —, ideológico. Consideramos que as figuras da mendiga e do andarilho constituem paradigmas e emblemas da ars poetica de Barros. A mendiga é símbolo da despossuída; e o andarilho, personificado no peregrino, é metáfora de perspectiva despojada da existência. Essa mundividência dialoga, em oposição e em complementariedade, com as imagens pictográficas e com os registros cronísticos e históricos. Ao retomar, nos seus diversos livros, os excluídos da ordem social, Barros mostra o grau de sofisticação gerado pelas engrenagens do capitalismo avançado que, mais que negar a esses indivíduos a existência civil de cidadão, deles extirpa até mesmo a condição de humanidade. Desse modo, a História se presentifica, tornada poesia, e a poesia ― enlutada, mas em euforia pela descoberta ― des-vela e mostra, no âmbito da Corumbá fronteiriça recriada pelo poeta, a face da História como limes, fratura, hífen, sutura e entre-lugar. Palavras-chave: Fronteira; História; Identidade; Ideologia; Literatura. CAMPOS, Luciene Lemos de. A mendiga e o andarilho – a recriação poética de figuras populares nas fronteiras de Manoel de Barros. Corumbá, MS, 154 f. Dissertação (Mestrado, Estudos Fronteiriços) – CPAN / UFMS. ABSTRACT This study was developed based on the proposition that the notion of frontier in Manoel de Barros's poetics recreates popular characters in the frontier region of Corumbá: tradesmen, wanderers, beggars, mad people, workers, prostitutes, migrants, destituted people, rascals, ragged men. Our research verifies the similarities as for the historical register, when we compare the chroniclers' narratives and the historians' study to the poetical recreation of these characters both in Poemas concebidos sem pecado (1937) and in Memórias Inventadas (2004, 2006, 2008). For that, in the annexes, we reproduced chronicles, historians' excerpts, depositions, paintings and photographs, which illustrate and confirm our conclusions. Firstly, we propose two problems: one of them poetical , in the sphere of aesthetics, and the other - with two courses: the poetical and the historical-sociological. We consider that the characters of the beggar and the wanderer constitute paradigms and emblems in Barros's poetical ars. The beggar is the symbol of dispossessed; and the wanderer, personified in pilgrim, is the metaphor of perspective divested of existence. The view of the world dialogues, in opposition and completeness, with the pictographic images and with the chronical and historical registers. When resuming, in his diverse books, those who are socially excluded, Barros shows the level of sophistication generated by the gears of the advanced capitalism which, besides denying these fellows the civil existence as citzen, also excise from them the condition of humankind. This way, History is made present by turning into poetry, and poetry, draped in mourning, but in euphoria by the discovery - unveils and shows in the circuit of the frontier Corumbá, recreated by the poet, the face of History like limes, fracture, hyphen, suture and inter-place. Key words: Frontier; History; Identity; Ideology; Literature. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................... 10 1 CONCEPÇÕES DE FRONTEIRA............................................................... 17 2 A OBRA DE BARROS E A HISTÓRIA DE CORUMBÁ............................... 34 3 RECRIAÇÃO POÉTICA DE FIGURAS POPULARES EM MANOEL DE BARROS............................................................................... 49 PERSONAGENS REAIS E FICCIONAIS NA OBRA DE MANOEL DE BARROS....................................................................................................... 83 CONCLUSÃO..................................................................................................... 89 REFERÊNCIAS................................................................................................... 93 ANEXOS............................................................................................................. 100 ÍNDICE ............................................................................................................... 152 4 INTRODUÇÃO Nasci na Nhecolândia, Fazenda Firme, no ano de 1964. Brinquei fazendo casas de areia com poucas outras crianças que havia por lá. Passava horas observando o movimento das formigas que carregavam as folhas das limeiras novas, as sobras das carneadas ou fragmentos de outros insetos. Quando havia festa de São Sebastião, no pátio da Fazenda, eram muitas as pessoas que apareciam: os mascates com as carretas abarrotadas de mercadorias, famílias de outras fazendas e regiões; eram muitas as histórias que se contavam. Gostava de ouvi-las, principalmente aquelas em que as testemunhas é que as relatavam. Uma narrativa de que me lembro é sobre Antoninha-me-leva, contada por um peão aos companheiros. À época, não entendi muito bem o que o peão contou, mas aquela história ficou gravada em minha lembrança. Assim como essa, outras histórias sempre surgiam nas rodas do mate, do tereré, nos dias de carneada ou nas noites de lua, quando se podiam ver, na branca areia, as cobras em busca das presas. Os que vinham com frequência à cidade, faziam as vezes dos jornais A Tribuna, O Momento, A Gazeta, Diário da Manhã entre outros. Eram os casos mais interessantes sobre o comércio, os prostíbulos, os tipos que perambulavam pela cidade, a moda, a travessia no Porto da Manga, as pontes carcomidas pelas águas, os fazendeiros e suas moradias na cidade, as viagens dos filhos ao Rio de Janeiro e São Paulo — lugares para onde os aquinhoados mandavam os filhos a fim de se formarem doutores. Mesmo residindo em Corumbá, desde os cinco anos, era na fazenda onde passava as férias de inverno e de verão. Nessas viagens, Totozinho levava a criançada dos peões, do capataz, do fazendeiro com a responsabilidade de quem carrega um tesouro. Nossa chegada era sempre barulhenta e divertida: ninhos de jacarés ameaçados, buracos de tatus em perigo, pássaros vigiados até o nascimento dos filhotes: canarinhos, sabiás, tordos, joão-pinto, trinca-ferro, rouba-garfo, cardeal, 11 bicos-de-prata, galos-de-campina, periquitos, papagaios, quero-queros, biguás, emas, curicacas e milhares de pequenas corujas, caburés. Muitas foram as histórias que ouvi os mais velhos contarem, de outras participei. Lembro-me das figuras de Kilingue, lavador de carros nas calçadas das ruas Treze com a Frei Mariano; Palmiro Anão, o eterno guarda, com seu cacetete correndo atrás de quem o importunasse; Lili Tiroteio, veneno na língua e andar rebolante; Romildão, camisa aberta e saco sujo às costas; Totó, inimigo imaginário de Garrastazu Médici com quem debatia em plenária; Maria Fedida, embolada com todo tipo de trapo e chagas nas pernas; Tanaca, bandeira de santo, pedindo esmolas para festas dos padroeiros; Maria Pretinha, também conhecida como Mariado-Saco ou Sacolita, atravessando as ruas de Corumbá e ganhando caminho em direção à Bolívia, incansavelmente; Sinimbu, foice e verbo contra os guris da rua; Sebastião Perna-seca, bafo de pinga, revólver faz-de-conta no gatilho e meia cidade dizimada sob seus pés, na ladeira do Porto Geral. Além desses, as pessoas mais velhas se lembram de Carne-Seca, espeto em punho e velocidade a toda prova; Agostinho Peixeiro, vestido de trapos o ano inteiro e de Don Juan no Carnaval: terno de linho branquíssimo; Maria Cachorrinha e Maria Mulata, musas das noites da cidade; Josetti e Maria Bolacha, eternas damas das calçadas; Bola Sete, animada e divertida figura, talvez uma alusão à bola da sinuca; Carrapato, calmaria sem limites; Bamburrá e Cemitério, místicos curandeiros; Máriopega-sapo, o encantado pelas jias do laguinho da Praça Independência, o Jardim do passeio aos domingos; Cegonha Alemão; Chico Chaga, Chico Sapo; Chiquinha Passa-Bem; Jujuba; Pega-Polícia, Rubafo e, também, hippes, mochileiros, personagens de passagem, anônimos ou nominados pela população local.1 Muitos são os nomes, muitas são as histórias registradas nas lembranças, nos arquivos pessoais e em algumas poesias e crônicas2. São personagens e histórias que vêm do início do século XX e chegam aos nossos dias. Há, em Corumbá, desde sempre, uma constância de moradores de rua, de andarilhos, de mendigos, de loucos mansos. Na atualidade, no segundo semestre de 2009, conforme dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Ações Sociais, contam-se 1 Nos anexos, apresentamos crônicas, iconografia e fotografias de algumas das personagens recriadas na obra de Manoel de Barros, ou de personagens posteriores similares a elas. 2 Renato Báez (ver anexo 1) dedica um capítulo de sua obra Corumbá: Figuras e Fatos (1964) aos “tipos populares” de Corumbá. 12 trinta e um indivíduos, maiores de dezoito anos, em situação de rua. Trataremos, no entanto, de alguns daqueles que perambularam na cidade e região e que são invocados na obra de Manoel de Barros. Ressalte-se que, neste estudo, não nos interessa o registro civil dessas figuras populares, certidão de nascimento ou a origem de seus pseudônimos, mas a recriação dessas figuras em criações literárias de cronistas e poetas. Com o propósito de contribuir para as discussões que vêm ocorrendo, no meio acadêmico, acerca dos conceitos de fronteira e de identidade, em diversas áreas do conhecimento, a partir de enfoques diferenciados, nossa pesquisa, eminentemente bibliográfica, visa à verificação das similaridades e a descoberta de variâncias quanto ao registro histórico, quando confrontamos a crônica de historiadores, as narrativas orais, com a recriação poética de figuras populares na obra de Manoel de Barros. Dentre as recriações poéticas barreanas, daremos especial enfoque às figuras de Maria Bolacha, Bola-Sete, Antoninha-me-leva e Maria pelego-preto, personagens presentes também nas lembranças, no imaginário, na historiografia e nas memórias poéticas. Nossa constatação, na pesquisa empreendida, é que a obra de Manoel de Barros recupera e incorpora muitas dessas figuras populares da história de Corumbá (comerciantes, andarilhos, mendigos, loucos mansos, prostitutas, migrantes, dentre outras), recriando-as como personagens poéticas e ficcionais. Os personagens3 recriados na poética de Manoel de Barros compõem também a memória e o imaginário de muitas pessoas da fronteira Brasil-Bolívia da região de Corumbá. Alguns estudiosos consideram que o grande arsenal dos romancistas e dos poetas é a memória, de onde eles extraem os elementos da invenção. É o caso de Manoel de Barros. Nossa proposta de trabalho é buscar, em teses, artigos, dissertações e na História da região fronteiriça de Corumbá, o registro cronístico de figuras populares que viveram, nesse espaço de encontro e de divisa, na primeira metade do século XX, e que se presentificam, ficcional e poeticamente, na obra de Barros. Luiz Alberto Brandão, no livro Grafias da Identidade, afirma: 3 Valemo-nos da distinção de gênero para diferenciar os personagens históricos, aqueles que existiram na concretude civil dos quais temos registros em fontes primárias, de as personagens, consistindo estas em criações ficcional ou poéticas, ainda que inspiradas em figuras reais. 13 Tradição e memória são dois conceitos freqüentemente associados. A existência da tradição se deve à capacidade de reter referências de um passado comum. Fazemos parte de uma mesma tradição – o mesmo grupo, a mesma família, a mesma nação – se o compartilhamento de nossas recordações revela a semelhança do perfil de nossas vivências pretéritas. A memória é, pois, o elemento que molda a tradição, que a mantém viva e reforça seu poder de atuação. (Brandão, 2005, p. 71). De acordo com Brandão (2005, p. 82), a memória seria “uma espécie de cimento que une e uniformiza referências dispersas e fragmentadas”. Assim, a memória nos ajudaria a definir quem somos e essencial para definir nossa identidade seriam as experiências acumuladas. Dessa forma, voltamo-nos para o estudo da ocupação e identidade fronteiriças sob o ângulo da observação das personagens recriadas na poética de Manoel de Barros. São figuras que também estão na memória historiográfica, no imaginário coletivo e em registros pictográficos. No percurso desta pesquisa, observamos a necessidade de se organizar o acervo de documentos na cidade de Corumbá, visto que, devido à circunstância de a cidade ter pertencido ao estado de Mato Grosso, muitos de seus registros encontram-se hoje em Cuiabá. Cria alguns óbices, dada à distância entre as duas cidades e, vez por outra, surgem afirmações, apressadas, de que a região fronteiriça de Corumbá careça de identidade, mesmo considerando que [...] os marcos geográficos não dão conta da tarefa de delimitar o espaço fronteiriço, uma vez que, rotineiramente, eles são persuadidos a ser esquecidos, ou ignorados. O espaço é apropriado, concreta e simbolicamente, já nos ensinou Claude Raffestin, e, por isso, sua delimitação transgride, usualmente, a física da geografia. (OLIVEIRA, M., 2009, p. 84). A partir de obras que abordam a história de Corumbá, quanto ao registro de figuras populares na região, voltamo-nos, pois, para estudo que apresente aspectos sociais e culturais dessa região fronteiriça, tais como esses aspectos e aquelas figuras são representados na poesia de Manoel de Barros. Entendemos o poético, quanto ao recorte delineado, uma invenção ficcional calcada na memória afetiva do poeta que pode – e deve, nos termos do estudo a que nos propomos fazer – ser homologado pelos estudos históricos. 14 Notamos que, entre as figuras retomadas por Manoel de Barros, avultam os tipos humanos da mendiga e do andarilho, personagens populares nessa região. As figuras da mendiga e do andarilho, personagens às quais nos voltaremos com especial atenção, terminam por evocar arquétipos4 que indiciam a visão de mundo do poeta. A mendiga e o andarilho integram o espaço da “fronteira” barreana e, metaforicamente, representam a poesia e o poeta. Assim sendo, esta dissertação – A mendiga e o Andarilho: a recriação poética de figuras populares nas fronteiras de Manoel de Barros – é constituída de textos que resultaram das pesquisas efetivadas acerca dos Estudos Fronteiriços. Ao empreendermos este estudo, moveu-nos a crença de que, ao – em sua poética – recuperar e incorporar figuras históricas de Corumbá e da Bolívia, da fronteira com o Brasil, Manoel de Barros preenche lacunas historiográficas, com o que nos permite – quanto à região – uma nova visão sobre a vida privada e o estudo das peculiaridades do primeiro quarto do século vinte. Desse modo, propusemo-nos, de início, dois problemas, um, poético, no âmbito da estética, e outro – com duas vertentes, uma poética, outra histórica –, sociológico: 1. Qual o motivo da incorporação, por Barros, em seus poemas, de figuras populares de Corumbá? 2. Qual o sentido ideológico dessa incorporação? No que tange ao segundo problema, acreditamos que o indiciado aqui propiciará a outros pesquisadores estudos inovadores acerca da poética barreana. Desnecessário dizer que Manoel de Barros que nasceu em Cuiabá, em 1916,5 mas radicou-se em Corumbá onde tem uma fazenda; é o poeta da região do Pantanal mais reconhecido, com estudos sobre a sua obra em diversas universidades brasileiras, européias e norte-americanas. A universalidade de sua poesia transcende e questiona fronteiras, o que é um aspecto a mais que nos estimulou no presente estudo. 4 5 Utilizamos arquétipo, aqui, no sentido de certo patrimônio comum de imagens e concepções de mundo das comunidades da infância de Barros e que carregam, em si, a mundividência de Corumbá e do Pantanal, tornadas paradigma e emblema constitutivo da ars poética do poeta nas figuras da mendiga, transmutada na despossuída símbolo, e do andarilho, personificado no peregrino, metáfora de uma visão despojada da existência. Há registro de que Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em 1937. Ver anexo 28. 15 Buscamos em pesquisa bibliográfica o perfil dos personagens reais, para comparar os registros da memória afetiva corumbaense com as personagens literárias. Valemo-nos, ainda, da comparação entre tais personagens, na poética de Barros; tais personagens surgem em Poemas Concebidos Sem Pecado (PCSP), mas são retomados em praticamente todas as obras posteriores de Barros. As manifestações culturais que retomam os personagens populares são demonstradas, neste trabalho, com quadros de Daltro (artista plástico corumbaense).6 Diante de tal perspectiva, nosso corpus contempla a poética de Manoel de Barros, considerando que através dela é possível observar lacunas que remetem tanto ao ficcional quanto ao factual, sem que esses se tornem adversos e excludentes. A partir dessa proposição, traçamos os seguintes objetivos: a) Identificar em crônicas e na historiografia as figuras populares da região fronteiriça de Corumbá, recriadas na produção literária de Manoel de Barros; b) Delinear um conceito de fronteira a partir da poética de Manoel de Barros. Assim, este estudo se compõe de duas partes distintas. Na primeira, apresentamos concepções de fronteira como proposição interdisciplinar que considere as obras literárias, a variedade epistemológica e a geografia social – ou seja, o múltiplo, o diverso, o humano; quanto aos registros históricos, as figuras populares que Barros menciona em sua obra, em especial nos Poemas concebidos sem pecado (1937) e na trilogia Memórias inventadas (2003, 2006, 2008). Na segunda parte, estabeleceremos relações de proximidade entre o registrado na história oficial e o recriado na poética de Manoel de Barros, visando a instaurar um diálogo entre ficção e História. Desse modo, na presente pesquisa, indiciamos na ars poetica de Barros, o sentido ideológico da retomada das figuras populares, tema que pretendemos aprofundar em estudos posteriores. Nossa proposição é de que tal retomada se insere na valorização que o poeta faz do insignificante, do descartável e do que a civilização despreza. 6 Os quadros estão reproduzidos nos anexos 9 a 15. Os anexos 16 e 17 apresentam capas de obras literárias de escritores pantaneiros. 16 Na categoria do insignificante, os estudiosos têm colocado os pequenos seres do Pantanal e os marginalizados da sociedade. Em nosso estudo, procuramos compreender, no âmbito da poética de Manoel de Barros, o lugar do insignificante na sociedade. Cabe ressaltar que esta dissertação compõe-se de quatro capítulos nos quais procuramos identificar o conceito de fronteira a partir da produção poética de Manoel de Barros e a relação dessa poética barreana com o espaço geográfico e cultural da fronteira Oeste (Brasil - Bolívia). Sob esse prisma, buscou-se preencher sensível lacuna, nos estudos da produção poética de Manoel de Barros, assim como coligir acervo para futuros pesquisadores. 1 CONCEPÇÕES DE FRONTEIRA Tema de investigação caro a historiadores e cientistas sociais, a conceituação de “fronteira” faz referência, entre outros, a campos geográficos, históricos, demográficos, sociológicos, linguísticos, filosóficos e culturais. As fronteiras podem ser construídas no espaço e no tempo; podem se caracterizar como culturais, sociais, entre gêneros, econômicas e tecnológicas; podem ser divisão, limite, mas podem ser intersecção ou traço que une. Marca limite físico ou simbólico, fixa a identidade, determina a alteridade. Este capítulo tem como proposta apresentar diferentes significados que a palavra fronteira assume, em especial quando a analisamos sob o ângulo dos estudos literários, e como o sema é definido na poética barreana. Questões preliminares problematizam nossa busca pelo caráter do sema “fronteira” em Barros: 1ª - O fato de o poeta Manoel de Barros ter crescido em Corumbá, uma cidade na fronteira do Brasil com a Bolívia, impacta de que modo a noção de fronteira que emerge da sua obra? 2ª - O muro, do poema homônimo, cumpre algum papel alegórico como marco de fronteira? 3ª - Podemos inferir da noção de fronteira estabelecida por Barros, na sua obra, uma metáfora que, ao denunciar, divide a produção literária em cosmopolita e em provinciana? Cabe-nos observar que o muro barreano, como marco de fronteira, é linde com três configurações: 1ª - cerceadora: estabelece o cerceamento da liberdade ― quando limita, embora simultaneamente pareça violar o sentimento de pertença que impõe; 2ª - preservadora: possibilita preservar a identidade ― quando impede que o externo interfira no local, separando, no espaço, internos de externos; 3ª - delimitadora: delimita e conforma a soberania de quem o construiu. Para homologar nossas conclusões, recorreremos a outros poemas de Barros em que o sema “fronteira” aparece como discurso ou como sentido indiciado. 18 1.1 Fronteira: limes e dissociação As fronteiras têm despertado sentimentos contraditórios: muitas vezes, ofendem quem está de um lado; outras, tranquilizam quem está de outro lado. Para permitir uma abrangência maior acerca do conceito de fronteira e subsidiar este estudo, repassemos visões teóricas de diferentes áreas do conhecimento. Conforme nos ensina o geógrafo André Roberto Martin, É imprescindível [...] uma clarificação histórica, uma vez que, efetivamente, a fronteira ‘em si’, isolada, não existe, mas o que existe sim são ‘as fronteiras’, no plural, formadas historicamente umas em relação às outras. (MARTIN, 1992, p. 13). Com uma visada historicizante, as autoras de Limites e fronteiras internacionais: uma discussão histórico-geográfica consideram que Há um consenso na literatura de que é com o advento do Estado Moderno que a fronteira linear, precisamente delimitada e demarcada, vai se tornar imprescindível, já que para se impor o Estado precisou, inicialmente, lançar as bases de sua soberania territorial. Essa visão, no entanto, parte já da concepção moderna de fronteira como limite dos estados nacionais. A relação entre limite e soberania territorial não foi imediata, pois no mundo feudal (europeu) os argumentos que embasavam o poder dos reis sobre o reino eram de tipo feudal e não nacional. (STEIMAN e MACHADO, 2002, p. 4). Para o geógrafo Márcio Cataia, As fronteiras não decorrem só do espaço, mas também do tempo: extensão e duração formam o conceito de limite. É o tempo que dá significado à forma, ou seja, mais importante que a forma das fronteiras é a sua formação. Sendo histórica, resulta de eleições [...]. As fronteiras, mesmo quando apoiadas em marcos naturais, são o resultado de eleições sociais e não de imposições naturais. De fato, nos albores da história, os elementos naturais condicionavam os homens e suas atividades, impondo-lhes barreiras físicas. (CATAIA, 2007, p. 11). Por seu lado, Jacques Leenhardt, aprofunda o debate conceitual: 19 Se a fronteira é menos uma linha do que um espaço – como deixa entender a palavra latina limes (daí limite), que em Ovídio ou em Tito Lívio designa o caminho que separa dois campos, o espaço que permite não transgredir nenhuma das proibições acerca dos respectivos espaços, espaços de ajuntamento, articulação, como se viu no caso das faceries –, então a limes, o limite, designa um intervalo, uma borda sem apropriação, mas dotada de todos os valores políticos, simbólicos, religiosos que a mitologia grega reúne sob a égide de Hermes. (LEENHARDT, 2001, p. 19). Já para Pierre Bourdieu, A fronteira nunca é mais do que o produto de uma divisão a que se atribuirá o maior ou menor fundamento na ‘realidade’ segundo os elementos que ela reúne, tenham entre si semelhanças mais ou menos numerosas e mais ou menos fortes (dando-se por entendido que se pode discutir sempre acerca dos limites de variação entre os elementos não idênticos que a taxionomia trata como semelhantes). (BOURDIEU, 2007, p. 114). Foucher,7 citado por Torrecilha, trabalha a fronteira em três dimensões: As fronteiras são as estruturas espaciais elementares, de forma linear, com função de descontinuidade geopolítica e de delimitação, de marco, nos três registros do real, do simbólico e do imaginário. A descontinuidade se aplica entre as soberanias, as histórias, as sociedades, as economias, os Estados [...] as línguas e as nações. Na função de realidade, corresponde ao limite espacial do exercício de uma soberania nas suas modalidades específicas: linha aberta, entreaberta ou fechada. Na simbólica, remete à pertinência a uma comunidade política inscrita num território que é o seu; têm um sentido identitário. O imaginário conota a relação com o outro, vizinho, amigo ou inimigo, e portanto a relação consigo mesma, com a própria história e com seus mitos fundadores, ou destruidores. (Foucher apud TORRECILHA, 2004, p. 15). O percurso de leitura apresentado não se configura como único e findo. Nosso objetivo não é traçar uma reflexão linear e totalizadora. Mesmo porque os termos, idéias, noções e conceitos a que o vocábulo fronteira remete são díspares e não se inscrevem de uma forma tão clara e coerente, ao se comparar os vários discursos. E ainda, a concepção de fronteira é complexa, já que ela é histórica e móvel. Examinamos a concepção de fronteira proposta pela obra de Barros a partir de dois poemas, sintomaticamente nomeados “O muro”: o primeiro deles aparece 7 FOUCHER, M. Fronts et Frontières: un tour de monde géopolitique. Paris: Fayard, 1991. cf. Torrecilha. 20 em Face imóvel, cuja primeira edição é de 1942, e o segundo surge em Poemas rupestres, de 2004. Verifiquemos, antes, a definição do vocábulo muro no Dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant: Muro, Muralha: No Egito, é na altura da muralha que se apóia seu valor simbólico: ela significa uma elevação acima do nível comum. Ela está ligada ao simbolismo do vertical mais do que ao do horizontal. Mas a construção de fortalezas não exclui a primeira interpretação no sentido de defesa das fronteiras. O famoso Muro branco separava o Egito alto do baixo. Talvez seja também como símbolo de separação que se deve interpretar o famoso Muro das Lamentações. Assim chegar-se-ia à significação mais fundamental do muro: separação entre os irmãos exilados e os que ficaram; separação-fronteira-propriedade entre nações, tribos, indivíduos; separação entre famílias; separação entre Deus e a criatura; entre o soberano e o povo; separação entre os outros e eu. O muro é a comunicação cortada, com a sua dupla incidência psicológica: segurança, sufocação; defesa, mas prisão. O muro se aproxima aqui do simbolismo do elemento feminino e passivo da matriz. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 626627). Manoel de Barros, no poema “O muro”, da obra Poemas Rupestres, trata dos vários conceitos de fronteira e insere uma reflexão acerca do espaço social que o outro ocupa. A imagem do muro aparece definida no título do poema, caracterizado pelo determinante “O”, o que conota valor qualificativo: “O muro”. Não se trata, portanto, de limite qualquer. O sintagma nominal, informado pelo eu-lírico, remete à extremidade de uma casa, um pomar; é o obstáculo com o qual os “ladrões” poderiam se deparar se quisessem entrar no local, mas é também o espaço onde a voz poética se edifica. No plano da expressão, é informado tanto o imaginado quanto o real. Cada vez mais alto, o muro simboliza não somente um limite marcado, uma proteção, como também o distanciamento, a comunicação interrompida, não efetivada, a impossibilidade ou a probabilidade de interação do eu com os outros. Muitos são os muros construídos com o objetivo de serem barreiras artificiais contra guerras, inimigos, contra bandidos e forasteiros, como também são utilizados para separar, segregar, para esconder tesouros e mazelas. Eis o poema: 21 O MURO O menino contou que o muro da casa dele era da altura de duas andorinhas. (Havia um pomar do outro lado do muro.) Mas o que intrigava mais a nossa atenção principal Era a altura do muro Que seria de duas andorinhas. Depois o garoto explicou: Se o muro tivesse dois metros de altura qualquer ladrão pulava Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão pulava. Isso era. (BARROS, 2004, p. 59). Usualmente, o termo fronteira é associado à separação, à exclusão do indesejado, de “qualquer ladrão” que, de uma maneira ou outra, ameace o objeto de cobiça em um espaço demarcado. Mais difícil de mensurar a altura do muro quando se insere a imagem da liberdade, conotada pela altura de duas andorinhas – aves migratórias que, para muitos povos, simboliza o indivíduo sem fronteiras, a mobilidade, o migrante, a liberdade e a renovação da vida; “duas andorinhas” remetem a idéia de par, casal, união, solidariedade, conceito oposto ao que o senso comum atribui a muro. Nesse caso, a fronteira parece representar a possibilidade de congregação e não de efetivação de diferenças: duas andorinhas compõem a pluralização da liberdade, a medida dessa fronteira. Daí “a altura de duas andorinhas” subverter o conceito de limite demarcado com que se tem associado a marca fronteiriça representada pelo muro. Diferente da célebre frase — “uma andorinha só não faz primavera” ou “não faz verão” —, o eu poético reafirma: “duas andorinhas”, para conferir credibilidade à sentença “da altura de duas andorinhas”. O muro torna-se símbolo de divisão, a impossibilidade de se tentar entender o que está no outro lado. No poema de Barros, a fronteira parece representar congregação e não efetivação de diferenças: duas andorinhas compõem a pluralização da liberdade, a medida dessa fronteira. Assim, no poema, o conceito de fronteira é paradoxal: o muro separa o espaço da propriedade, mas — inusitada — também une os diferentes. Desse modo, tem-se uma extremidade in-conformada com a principal concepção vigente. 22 A fronteira, nesse poema, é complementar; é onde há condição compactuada e, é marco imaginário, se avaliar a sua altura “Que seria de duas andorinhas”. As considerações de Raffestin corroboram nosso raciocínio: A ordem e a desordem não são, paradoxalmente, noções opostas e não representam mais do que momentos de um processo semelhante ao da cinemática da fronteira. A fronteira não é uma linha, a fronteira é um dos elementos da comunicação biossocial que assume função reguladora. Ela é a expressão de um equilíbrio dinâmico que não se encontra somente no sistema territorial, mas em todos os sistemas biossociais. (RAFFESTIN, 2005, p. 13). Através do discurso do eu-lírico, entrevemos um raciocínio cujo alcance parece ter sido imposto pela História, o das certezas cristalizadas. Nesse caso, remete à oposição entre a dinâmica e mobilidade das andorinhas, e o espaço fixo, demarcado. Logo, o recorte de natureza horizontal, espaço que separa dois povos, torna-se transponível para os indivíduos cuja mobilidade não se limita às certezas pré-concebidas. Já a andorinha, por toda parte, está associada à fertilidade, equilíbrio, alternância de ciclos; é ser que vive em bando na fronteira entre céu e terra. Se faz muito frio ou calor, as andorinhas mudam de moradia. O eu-lírico informa ao interlocutor: Mas o que intrigava mais a nossa atenção principal Era a altura do muro Que seria de duas andorinhas. (BARROS, 2004, p. 59). Muros que protegem ou separam, de certa forma, asseguram ou tentam compor uma identidade, que, no entanto, já surge em diluição. No poema de Barros, percebe-se, o marco fronteiriço é mais abstrato que concreto; a capacidade de o menino imaginar, inventar, faz com que a barreira fronteiriça seja transposta. O que evidencia uma inversão do estabelecido: o muro assegura o domínio, o status, mas não impede a capacidade inventiva, a transgressão. Os muros tornaram-se símbolos de uma sociedade dividida em classes, lados, blocos, pólos antagônicos. Mas, em meio a tantas divisões a que esse marco fronteiriço remete, vislumbra-se, na poesia de Barros, a possibilidade de que a fronteira se efetive entre realidade e imaginação, tradição e renovação. 23 A eleição do espaço pantaneiro constitui o locus de enunciação da poética de Barros, sem, contudo, deixar de evidenciar questões urbanas, cosmopolitas, universais e atemporais. Em “O muro” (2004), parece que o eu poético vislumbra um mundo além dos muros: O menino contou que o muro da casa dele era da altura de duas andorinhas. (Havia um pomar do outro lado do muro.) (BARROS, 2004, p. 59). O pomar, enunciado entre parênteses, é o espaço fechado, o paraíso perdido de onde o poeta extrai a sua essência poética. Eis aí outra fronteira instaurada: os muros das urbes delimitam a poesia do lado de cá e o pomar (à parte) concretiza a poesia do lado de lá, a periférica. Ao investir no questionamento da separação real ou imaginária a que esse linde alude, observa-se o limite materializado entre o cosmopolita e o provinciano, o centro e a periferia. Desse modo, o muro assume não somente o sentido de defesa física do terreno, mas também do elemento que relativiza a alteridade. O sentido ambíguo da identidade é apresentado no poema, o narrador parece estar na extremidade de um reino e, então esclarece ao interlocutor: “(Havia um pomar do outro lado do muro.)” (BARROS, 2004, p. 59). Nesse contexto, uma das principais constatações acerca desse poema “O muro”, de Manoel de Barros, é que o poeta reformula a história de seu tempo, apresentando uma imagem que reflete o fato de que “[a] fronteira vai muito mais além do fato geográfico que ela realmente é, pois ela não é só isso” (RAFFESTIN, 2005, p. 10). No poema “O Muro”, de Face Imóvel, o eu enunciador assim se expressa: O MURO Não possuía mais a pintura de outros tempos. Era um muro ancião e tinha alma de gente. Muito alto e firme, de uma mudez sombria. Certas flores do chão subiam de suas bases Procurando deitar raízes no seu corpo entregue ao tempo. Nunca pude saber o que se escondia por detrás dele. [...] (BARROS, 2010, p. 40-41). 24 Nesse poema, o abandono social parece relacionar-se com o que havia por detrás desse muro. Há uma identificação com o espaço enunciado, mas há também uma assimetria entre o vivenciado e o narrado. O muro erige-se opaco, restritivo, sombrio, ainda que contenha a beleza que o tempo e as flores lhe emprestam. Alémmuro o que existe só se pode supor, e o eu-lírico supõe que seja abandono. Se as andorinhas indiciam limite pela abstração, o muro de Face imóvel erige-se na concretude, de bases firmes no chão onde deita raízes e a partir do qual ganha existência, e identidade, como “alma de gente”. Ao que parece, o poeta percebe, no poema de 1942, os duros limites impostos pelas restrições com as quais o eu-lírico convive, para depois, no poema de 2004, desrealizar tais limites, erigindo-os pelo símbolo, pela metáfora das andorinhas. O outro lado, antes pressuposto, emerge como quintal que representa a urbe. É como se o poeta migrasse, de um muro ao outro, para a constatação de que as fronteiras se enraizaram pela padronização cosmopolita, cabendo ao poeta desconstruir o sistema elitista do poder conveniente ao cânone, ainda que Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão pulava. Isso era. (BARROS, 2004, p. 59). A relação com o espaço tem repercussões no processo de construção da identidade, a qual depende das relações dialógicas do eu com os outros. Ao tratar do conceito de fronteira, faz-se necessário refletir acerca da questão da identidade. Nas palavras de Stuart Hall: A identidade [...] preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. (HALL, 2006, p.12). As identidades poéticas foram, parafraseando Hall, “suturadas” tanto pelo movimento de concentração e tradição quanto pela dispersão e expansão de idéias. Assim, cabe ao poeta que observa o mundo com olhos de menino deslocar padrões 25 pré-estabelecidos. Nesse sentido, o discurso do reconhecimento aparece não só no âmbito individual, mas também na esfera pública. A alteridade, apresentada no poema (2004) de Barros, mostra-se afastada da racionalidade do adulto e, conotativamente, identificada com o modo como a criança concebe e se relaciona com o meio que a cerca. Desse modo, o pomar, espaço almejado, “do outro lado do muro” (BARROS, 2004, p. 59), é compartilhado no plano da imaginação. Há um obstáculo no caminho: o muro, responsável pela limitação do desejo; mas esse poema narrado em primeira pessoa torna-se, pois, como um elogio à criatividade inventiva de quem traz o olhar infantil, o qual tem consciência da sua própria invenção: uma fronteira paradoxal, onde o impossível é possível. A fronteira surge, então, como um reino a ser desencantado: ”Isso era”. A forma verbal no pretérito imperfeito do indicativo faz lembrar a narração das fábulas, contos fantasiosos: “era”. Entretanto, no poema da obra Face Imóvel, o muro representa um ancião, desencantado e abandonado: “Não possuía mais a pintura de outros tempos” (BARROS, 2010, p. 40). No poema intitulado “Caso de amor”, da obra Memórias Inventadas: a infância, o eu-lírico identifica-se com uma estrada, um caminho que “não tem indiferença pelo seu (meu) passado” (BARROS, 2003, XII), é o lugar em que, talvez, retome o indivíduo de outrora, o qual faz um percurso em busca de si mesmo: [...] Esta estrada melhora muito de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim [...]. (BARROS, 2003, XII). A fronteira na poética barreana talvez seja um entre-lugar, resultante do que é concreto e do que é representação, com o qual o eu-lírico ora com ele se identifica, ora dele se afasta. É o limes que delineia dois campos, dois territórios, mas é o caminho, a estrada que o poeta precisa percorrer para perceber e manter sua identidade: [...] Esta estrada melhora muito de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu passado [...]. (BARROS, 2003, XII). 26 Nossas identidades refletem as experiências históricas em comum e os códigos culturais partilhados. Dessa forma, a estrada na poética barreana torna-se o limes, o trajeto que separa dois campos, é a faixa que separa a diacronia, presente e pretérito, e os espaços, “aqui” e “a escola”. Assim, a estrada remete ao caminho por onde perpassa a história poética de Manoel de Barros. A fronteira, então, nesse poema, significa um espaço de convivência da alteridade sem que esta seja um estrangeiro, ádvena. Na obra Memórias inventadas: a terceira infância, o eu-lírico retoma o espaço geográfico da cidade onde o poeta viveu durante alguns anos. [...]. Há canoas embicadas e mulheres destripando peixes. Ao lado os meninos brincam de canga-pés. Das pedras ainda não sumiram os orvalhos. Batelões mascateiros balançam nas águas do rio. Procuro meus vestígios nestas areias. Queria saber o sonho daquelas garças à margem do rio. Mas não foi possível. Agora não quero saber mais nada, só quero aperfeiçoar o que não sei. (BARROS, 2008, V). O mote do poema não é somente o lugar e seus habitantes, mas a voz poética que, ao final de suas andanças, “só” pretende “aperfeiçoar o que não sei” (negrito nosso). No mesmo diapasão de um eu que narra e se recorda da infância, há um adulto que se ressente: “Agora não quero saber mais nada”. Em suma, o eulírico pressente que a sua é uma poesia deslocada dos padrões vigentes na urbe.8 Desloca-se também no espaço, da cidade para a natureza, e da natureza para o onírico: Queria saber o sonho daquelas garças à margem do rio. Mas não foi possível. (BARROS, 2008, V). O poeta esticou o campo semântico das palavras nativas do locus enunciado em sua poética além-muro, mas está fora do cânone, domínio da nação. Alceste de Castro, em Literatura Corumbaense, sentencia o seguinte acerca de Manoel de Barros e de sua poética: 8 Diversos trabalhos enfatizam esse deslocamento, cf Grácia-Rodrigues (2006), Béda (2002) e Silva (1998). 27 Modesto, os grandes críticos ainda não o definiram. Mas, quando ele for compreendido, estudado, pesquisado, veremos que ele é um dos mais raros, felizes e magníficos momentos da moderna literatura brasileira. (CASTRO, 1981, p. 48). Como bem observou Alceste de Castro, a obra de Manoel de Barros tem sido “vorazmente” estudada neste século, em várias áreas e em diversos países, o que a torna além-fronteira. Desse modo, talvez seja adequado ratificar que o percurso de leitura apresentado não se configura como único e findo, uma vez que nosso objetivo não é exaurir tais reflexões acerca dos conceitos de fronteiras e identidades. Até porque, enquanto produto humano, a Literatura, parece-nos, apresenta-se como importante elemento para os Estudos Fronteiriços. Ainda que a concepção de fronteiras seja complexa, já que essas são móveis, posto que históricas, posto que humanas ― acreditamos que é justamente isso, tal como depreendemos da leitura proposta neste capítulo, que a poesia de Barros demonstra. 1.2 A fronteira como constructo da identidade O conceito de identidade pode ser analisado em diferentes áreas de estudo. No verbete do dicionário de semiótica (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p. 27, 140, 251-252 e 440), o conceito de “identidade” é tratado como a relação de pressuposição recíproca com o termo oposto “alteridade”, significando, em síntese, a oposição entre “o mesmo” e “o outro”. Paul Ricoeur afirma que a identidade não poderia ter outra forma do que a narrativa, pois definir-se é, em última análise, narrar. Uma coletividade ou um indivíduo se definiria, portanto, através de histórias que ela narra a si mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a própria essência da definição implícita na qual esta coletividade se encontra. (RICOEUR, 1997, p. 432). De acordo com Zilá Bernd, [...] identidade é uma entidade [que] se constrói simbolicamente no próprio processo de sua determinação. A consciência de si toma sua forma na tensão entre o olhar sobre si próprio — visão do espelho, 28 incompleta — e o olhar do outro ou do outro de si mesmo — visão complementar. (BERND, 2003, p. 17). Para Machado e Haesbaert, A construção e reconstrução de identidades não constituem um processo linear. Trata-se de um processo eivado de contradições e ambigüidades, os símbolos envolvidos nem sempre tendo a mesma eficácia. Altamente complexo, o jogo de identidades pode ser facilitado ou dificultado, de acordo com as condições sociais em que se dá. (MACHADO e HAESBAERT, 2005, p. 93). A identidade, na obra barreana, parece-nos, é resultado do vivido, do realizado, do imaginado, do sentimento de lugar e do trajeto percorrido. A propósito, destacamos o pensamento, anterior em mais de dois séculos, de Rousseau: O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer 'isto é meu' e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém’. (ROUSSEAU, 1989, p. 259). Formulados em 1755, no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, os conceitos de Rousseau acerca de igualdade e desigualdade impostos pela fronteira, pelo limite que a propriedade cria, coadunam-se com certas relações no século XXI, em especial quando o que se observa são os interesses políticos, econômicos e territoriais do “neo-colonizador”, se o que está em jogo são “seus” limites e “suas” propriedades, ou seja, a autonomia real de suas “neo-colônias”. O discurso político que oculta a dominação é mimetizado e problematizado por Barros. Examinemos isso em poema de O livro das Ignorãças: DIA UM 1.1 Ontem choveu no futuro. Águas molharam meus pejos Meus apetrechos de dormir Meu vasilhame de comer. Vogo no alto da enchente à imagem de uma rolha. Minha canoa é leve como um selo. Estas águas não têm lado de lá. Daqui só enxergo a fronteira do céu. 29 (Um urubu fez precisão em mim?) Estou anivelado com a copa das árvores. Pacus comem frutas de carandá nos cachos. (BARROS, 2001a, p. 33). Nesse poema, os cursos das águas parecem atuar como um fator preponderante para se observar uma nova abordagem acerca do sema fronteira. No locus fronteiriço enunciado por Manoel de Barros, a estabilidade e instabilidade da fronteira parecem contrariar o postulado pela cartografia “Estas águas não têm lado de lá”, possibilitando ao eu-lírico uma identidade que se distancia à dos poetas, seus contemporâneos: “Minha canoa é leve como um selo”. A canoa, meio de locomoção e comunicação do eu poético, é também um símbolo de identidade do poeta “bugre velho” que, na obra Livro de pré-coisas, enuncia: [...] Quando meus olhos estão sujos da civilização, cresce por dentro deles um desejo de árvores e aves. Tenho gozo de misturar nas minhas fantasias o verdor primal das águas com as vozes civilizadas. (BARROS, 1997, p. 12). A experiência do eu poético aparece como algo que está para além de uma invenção de palavras. Novamente, nesse poema, tem-se um eu que anuncia o espaço com o qual se identifica, um eu que “bebe” as vozes civilizadas, mas não perde o sentimento de pertença ao “verdor primal das águas”. Nesse sentido, o significado de fronteira não traz ideia de fim, mas de começo de uma poética cuja identidade é a soma de um eu mais os outros. Dessa forma, as diferenças entre o centro e a periferia, a cidade e o Pantanal, e a existência dessas fronteiras, talvez, sejam essenciais para se efetivarem as identidades. De acordo com Kelcilene Grácia-Rodrigues, Para o poeta, o bugre é um ser intocado pela civilização, integrado ao meio ambiente, conhecedor das recônditas belezas da natureza: é um sujeito simples que vê o mundo com um olhar sem máculas. O homem civilizado não tem empatia com natureza, porque a olha apenas como matéria para ser explorada e gerar riqueza. Para o bugre, a natureza compõe o seu ser e destruir o meio ambiente significa exterminar a si mesmo. É justamente o fato de Manoel de Barros se sentir bugre que explica a vocação da sua poesia em exaltar aquilo que normalmente não tem valor para a sociedade. (GRÁCIA-RODRIGUES, 2006, p. 58). 30 Dessa forma, ao assumir-se “bugre”, o eu-lírico – e o poeta, ao falar de si, da infância em inúmeras entrevistas que concedeu nos últimos anos – assegura sua identidade de pantaneiro, de fronteiriço, mesmo que sua poesia não tenha como fim fazer folclore, descrever paisagem ou defender temas ecológicos. Na produção literária de Manoel de Barros, no espaço configurado, o euenunciador erige identidades líricas como resultado do vivido, do realizado, do imaginado, do sentimento de lugar, do trajeto percorrido e do limes delineado como entre-lugar. 1.3 A fronteira: entre-lugar Em vários momentos de sua produção poética, Barros parece acentuar que a territorialidade é fator marcante para integração ou exclusão do poeta “provinciano” no espaço “cosmopolita”. Assim, a integração de poetas que não pertençam ao cânone é um processo naturalmente lento, face ao jogo de interesses e influências locais e mundiais que acabam por “ditar” as regras da produção literária de uma nação, portanto fechar uma fronteira à literatura interiorana significa fechá-la também às informações vindas do interior, da província. Logo, à barreira, aqui representada pelo muro, cabe controlar o que pertence e aquilo que não pertence a um determinado espaço. No poema ”O muro” (2004), Barros consegue fundir os dois pensamentos. Lembrando-nos de que há abstração quanto à igualdade, quando esta for concebida no espaço além do muro, do pomar e da poesia. Nesse sentido, não é o muro que faz a casa do menino diferente, mas a altura que a separa do pomar. A fronteira, assim, é um espaço definido por uma prática onde a alteridade inventa suas leis, é um terceiro espaço, o espaço do meio, é o “entre-lugar” (SANTIAGO, 2000, p. 9) da interação, da complementaridade. O muro simboliza o limite demarcado entre dois territórios, mas relativiza a alteridade. Segundo Silviano Santiago, O escritor latino-americano brinca com os signos de um outro escritor, de uma outra obra. As palavras do outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus 31 olhos, seus dedos, e a escritura do segundo texto é em parte a história de uma experiência sensual com o signo estrangeiro. (SANTIAGO, 2000, p. 21). Após percorrer alguns estudos referentes às fronteiras, verificamos nos poemas “O muro”, de Manoel de Barros, a forma como o poeta concretiza esse marco fronteiriço: símbolo visível do limite de um espaço que não pertence a nenhum dos dois lados. A fronteira na poética barreana talvez seja um “entre-lugar”, resultante do que é concreto e do que é representação, com o qual o eu-lírico ora com ele se identifica, ora dele se afasta. É o limes que delineia dois campos, dois territórios, mas é o caminho que o poeta precisa percorrer para perceber suas identidades. Retomemos a análise do poema “O muro” (2004), no qual Barros, conotativamente, enuncia conceito que, por metonímia, transforma-se em fronteira; uma fronteira que, talvez, marque a passagem da Modernidade para um período ainda não claramente caracterizado pelo cânone. Parece-nos que os territórios, além de dominados, instrumentos de controle, de inclusão ou exclusão do diferente, são também apropriados, concreta e simbolicamente, numa infinidade de significados. Nesse sentido, o território é mutável de acordo com as forças sociais que nele operam modificações; logo, é produto das relações de poder de quem constrói muros, de quem efetiva as faixas de fronteiras. Conforme sentencia Barros: “Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção” (BARROS, 2000, p. 68). Mas, refletir acerca dos conceitos de fronteira é falar, às vezes, de contrastes, é aludir a conceitos geopolíticos, jurídicos, culturais entre outros e, ao mesmo tempo, discorrer, sob a ótica da literatura, acerca do simbólico, do “mágico” a que o sema fronteira remete. Na poética de Manoel de Barros, o vivido, as Memórias e a narração do vivido se entrelaçam em busca das identidades do eu poético. Há, no poema seguinte, uma confissão desse eu enunciador: Venho de nobres que empobreceram. Restou-me por fortuna a soberbia. Com esta doença de grandezas: Hei de monumentar os insetos! (Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés dos seus discípulos. São Francisco monumentou as aves. 32 Vieira, os peixes. Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos. Charles Chaplin monumentou os vagabundos.) Com esta mania de grandeza: Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. (BARROS, 2000, p. 61). O universo poético de Manoel de Barros, de certa maneira, opõe-se ao espaço urbano e, ao mesmo, tempo reflete o local e o universal; resultando certa estranheza aos padrões até então consagrados pelo cânone. Ao postular uma poesia diferente, almejar “monumentar as pobres coisas do chão mijadas / de orvalho”, evidencia uma peculiaridade da região fronteiriça onde o poeta viveu; as relações de poder levam ao estabelecimento de novas trajetórias poéticas. O eu-lírico apresenta-se como um ser que tem tradição. O sentido de tradição, nesse caso, está associado à noção de sentido histórico, o qual envolve uma percepção de contemporaneidade “venho dos nobres que empobreceram” (BARROS, 2000, p. 61). Desse modo, narra-se não apenas uma história, mas também apresenta uma visão de mundo que vai além da tradição, do retorno aos brasões familiares. Venho de nobres que empobreceram. Restou-me por fortuna a soberbia. Com esta doença de grandezas: Hei de monumentar os insetos! (BARROS, 2000, p. 61). Prosseguindo nosso raciocínio, o eu-lírico parece almejar inovação ao “monumentar os insetos!” quando emprega a expressão verbal “Hei”. Há um espaço que possui uma teia histórica de relações e uma identidade definida: “Venho de nobres que empobreceram” (BARROS, 2000, p. 61) e “Hei de monumentar os insetos” (BARROS, 2000, p. 61). O conceito de entre-lugar a que nos referimos, enunciado por Silviano Santiago, crítico literário e cultural brasileiro, torna-se pertinente neste estudo. Entendemos o entre-lugar como o espaço da hibridização cultural, o espaço que 33 permeia o local e o universal; o hífen que justapõe e, ao mesmo tempo, separa; como um espelho onde o outro é refletido.9 9 BHABHA, Homi (2003) e CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos (2007) também têm estudos em que tratam, cada um a seu modo, do conceito de entre-lugar. 2 A OBRA DE BARROS E A HISTÓRIA DE CORUMBÁ A obra de Manoel de Barros nos mostra um poeta que se volta para o passado, para o seu pequeno território familiar, com o qual teve e tem muita intimidade. Dessa forma, “[o] quintal onde a gente brincou” (BARROS, 2003, XIV) é a fonte de onde jorra a sua poesia, é o espaço que indicia a fonte e forja a identidade do menino Nequinho e do jovem Cabeludinho, seu alter-ego. O quintal é cenário superlativo tornado metonímia do itinerário que o poeta vai retomar nas memórias que inventa, pois tudo o que ele não inventa é falso (BARROS, 2003, epígrafe), conforme um de seus versos mais célebres. Do seu “quintal” doméstico, o aprendiz de poeta, Cabeludinho, e o poeta bugre-velho, Manoel, faz a fonte dos “achadouros” (BARROS, 2003, XIV) e das figuras que reinventa para compor sua poética. A partir desse microcosmo “maior do que a cidade” (BARROS, 2003, XIV), o poeta engendra uma representação do mundo em que os despossuídos, invocados no palimpsesto das lembranças, ganham papel de maior realce.10 E das lesmas pantaneiras e das figuras humildes que estão nas crônicas dos historiadores, Barros ― para nos valermos da terminologia aristotélica ― edifica poesia que dialoga com a memória historiográfica e a supre com o possível, a poesia, tornado História, memória do real. Em sua produção poética, Manoel de Barros dialoga com autores oriundos das mesmas águas e do mesmo barro do Pantanal, tanto historiadores quanto literatos. Entre esses, há clara reciprocidade dialógica com o poeta Lobivar Matos e com o cronista histórico Ulisses Serra. Entretanto, em Serra e em Lobivar, a memória tem outra dimensão e se dá de forma diversa quanto àquela com a qual Barros trabalha, em especial na ambígua e indefinível coalescência entre o poético e o histórico. A partir de tal consideração, nosso propósito neste capítulo é verificar de que modo as condições históricas do primeiro quartel do século XX se apresentam em Poemas concebidos sem pecado (primeira obra de Barros, lançada em 1937, 10 Grácia-Rodrigues (2006, p. 70) vê em PCSP um “romance de formação” e nas obras posteriores de Barros “ideário, voltado para as coisas que a sociedade de consumo considera sem importância, como as lesmas e as lagartixas, construído com matéria-prima oriunda dos marginalizados, dos loucos, dos poetas, das crianças, e alicerçado na experiência de vida dos despossuídos de bens materiais”. 35 identificada, aqui, também como PCSP), de que maneira são recriados cenários e personagens em Livro de Pré-coisas (obra de Barros lançada em 1985) e de como o histórico, o cenário e as personagens são representados em Memórias inventadas – a infância (BARROS, 2003), obra em que o poeta, por meio dos “achadouros do poético” (BARROS, 2003, XIV), volta-se para a infância e resgata, das lembranças, suas experiências de quando menino. Desse modo, empreendemos algumas reflexões acerca da literatura de Manoel de Barros. 2.1 Os achadouros da poética e do poeta A obra que marca a estréia de Manoel de Barros, o volume Poemas concebidos sem pecado (PCSP), foi lançada quando contava o poeta dezenove anos. Conhecido pela alcunha carinhosa de Nequinho, Barros nascera em Cuiabá e a família se mudara para uma fazenda, na Nhecolândia, antes que o bebê completasse dois meses. Nequinho cresceu entre os deslimites do Pantanal e as molecagens em Corumbá. O município desenvolvera-se economicamente de forma acelerada desde o final da Guerra do Paraguai, tendo como fator predominante a condição de entreposto comercial que sediava atacadistas de secos e molhados e concentrava a exportação de produtos pantaneiros como o charque, o couro de boi e o sal. Embora não seja um livro sobre o Pantanal, conforme adverte o próprio narrador ao anunciar as “pré-coisas” de sua poesia, Manoel de Barros, em Livro de Pré-coisas, trabalha com elementos da flora, da fauna e da cultura pantaneira. Para elucidar o seu fazer poético, recria cenários e personagens, imitando, em mimesis, o Pantanal e a cidade de Corumbá. Em Memórias inventadas – a infância, Barros desvela a situação ― à margem da história oficial ― dos migrantes e imigrantes da região fronteiriça de Corumbá e, ao mesmo tempo, empreende um diálogo autointertextual com o seu primeiro livro. No poema “O escrínio”, de PCSP, Barros descreve Corumbá: Um poeta municipal já me chamara a cidade de escrínio. Que àquele tempo encabulava muito porque eu não sabia o seu significado direito. Soava como escárnio. Hoje eu sei que escrínio é coisa relacionada com jóia, cofre de bugigangas [...] Por aí assim. Porém a cidade era em cima de uma pedra branca enorme E o rio passava lá embaixo com piranhas camalotes pescadores e lanchas carregadas 36 de couros vacuns fedidos. Primeiro vinha a Rua do Porto: sobrados remontados na ladeira, flamboyants, armazéns de secos e molhados E mil turcos babaruches nas portas comendo sementes de abóbora... Depois, subindo a ladeira, vinha a cidade propriamente dita, com a estátua de Antônio Maria Coelho, herói da Guerra do Paraguai, cheia de besouros na orelha. (BARROS, 2005, p. 39). O espírito empreendedor dos primeiros tempos da cidade tem registros nas crônicas de Abílio Leite de Barros (Gente pantaneira, 1998),11 na historiografia de Fernando Leite (Corumbá - Histórica e Turística, 1978), em estudos acadêmicos (como A cidade e o rio: Escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza – o caso de Corumbá (MS), 2006, de Elaine Cancian, para mencionar apenas um estudo), nos diversos volumes com anotações de cunho histórico de Renato Báez, e ao menos em um romance de envergadura, o Raízes do Pantanal, de Augusto César Proença, obra vencedora do Prêmio Brasília de Ficção de 1985 e que foi lançada, em 1989, pela Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, em co-edição com o Instituto Nacional do Livro.12 O ciclo de crescimento econômico de Corumbá sofre um baque nos anos 20, o que é amplificado quando a ligação comercial do município com a capital de Mato Grosso perde importância para o eixo Cuiabá - Campo Grande.13 Além dos imigrantes, parece aumentar em quantidade, na cidade dos ermos do Pantanal, os desempregados, os párias, os andarilhos. A potencialização dos recursos econômicos, pelo qual a cidade passara, é destacada por Corrêa (2006, pp. 68-81), em capítulo cujo título é “Estratégia política do comércio portuário de Corumbá”. Mas o transporte fluvial, já em 1919, perdia importância diante do ferroviário, e a cidade ficava à margem das trocas comerciais: Além da perda do controle na distribuição de mercadorias nas regiões agora servidas pela estrada de ferro, os comerciantes corumbaenses também ficaram à mercê dos funcionários da ferrovia que não mantinham com regularidade a circulação dos trens de carga, que traziam mercadorias duas vezes por semana para Corumbá, via Porto Esperança. Segundo denúncias, esse fluxo de mercadorias, em 1919, sofria, às vezes, atrasos de um a dois meses, o que causava ainda mais prejuízos aos comerciantes de Corumbá, e uma nova dependência da cidade às atividades da ferrovia. (CORRÊA, 2006, p. 104). 11 Ver também, de Abílio Leite de Barros, Pantanal pioneiros: álbum gráfico e genealógico de pioneiros na ocupação do Pantanal, Brasília, Senado Federal, 2007. 12 Observamos reflexões acerca da cultura pantaneira nos anexos 13, 14, 15, 19, 20, 21 e 22. 13 A ligação rodoviária Cuiabá - Campo Grande é do final dos anos 50 (cf. CORRÊA, 1973, p. 22). 37 A cidade, cujo desenvolvimento se deu com a presença dos migrantes, com a exploração do porto fluvial, como entreposto de comércio, e com a atividade da pecuária extensiva no Pantanal, em particular com a desenvolvida na região da Nhecolândia, estanca, com os seus dirigentes não demonstrando interesse em viabilizar alternativas para o novo contexto histórico. Metáfora viva desse momento, tornada ontologia identitária, encontramos na afirmação feita por Alceste de Castro de que “Corumbá é uma cidade jaboti. Vagarosa no progresso. E quando vem a borrasca enfia-se na couraça e espera a tempestade passar” (CASTRO, 1981, p. 17). Ao nos voltarmos para a poesia de Barros, verificamos nela personagens, temas e espaço geográfico que sugerem ao leitor a Corumbá do primeiro quartel do século XX. Assim, forma-se uma rede de textos que dialogam entre os fatos narrados pela historiografia e os recriados nas Memórias do poeta, o qual fixa cenas de uma cidade que prosperou e, ao tornar-se centro, paradoxalmente, estagnou. 2.2 Do esplendor ao crepúsculo Ao compulsar análises esparsas e estudos segmentados, parece-nos vislumbrar ― à falta de estudo consolidado da história de Corumbá ― um período de esplendor que tem início após a Guerra do Paraguai e que se esvai nas primeiras décadas do século XX, quando muitas transformações econômicas marcam, nessa região fronteiriça do Brasil com a Bolívia, o cotidiano das pessoas simples. O historiador Marco Aurélio Machado de Oliveira assim comenta: Por volta dos anos l920-30, a cidade que se notabilizava por ser formada por estrangeiros de diversas nacionalidades, passava, lateralmente, a se tornar provinciana, em si e para si mesma, pois, com o deslocamento do eixo econômico Corumbá-Cuiabá para Campo Grande - Cuiabá as dinâmicas atividades comerciais intraregionais começaram a entrar em colapso. (OLIVEIRA, M., 2005, p. 351). A prosperidade, que se dera com a atração de migrantes e pelos imigrantes, fora dinamizada após a Guerra do Paraguai: 38 Ao final do século XIX a população de Corumbá contava com cerca de 20 nacionalidades diferentes convivendo em torno de um intenso comércio regional e internacional. Eram franceses, italianos, portugueses, sírios, libaneses, paraguaios, macedônios, entre tantos outros. Suas atividades limítrofes estavam plenamente tomadas pela Bacia Platina, o que derivou um intercâmbio muito intenso com o Rio de Janeiro, além da Argentina, países da Europa e, também, obviamente, com o Paraguai. (OLIVEIRA, M., 2005, p. 351). Estudiosos e cronistas como Edvaldo Cesar Moretti (2003), Lécio G. Souza ([198-?]) e Jesus Hernadez Martin (2003) apresentam o mesmo quadro. Moretti14 registra: Em meados do século, com a instalação da Ferrovia Noroeste do Brasil, ligando o centro industrial em pleno desenvolvimento – São Paulo – em Mato Grosso, especificamente a Campo Grande e a região pantaneira, o domínio monopolista sobre a região transfere-se da região platina para o Sudeste brasileiro. Verifica-se, neste período, a falência das empresas de charque da região. O interesse do monopólio agora é pelo gado em pé, transportado pela Ferrovia Noroeste do Brasil para ser abatido nos frigoríficos instalados em São Paulo. Concomitantemente, ocorre a decadência de Corumbá, enquanto centro da região e o desenvolvimento de Campo Grande, enquanto entreposto comercial da região Mato-Grossense. (MORETTI, 2003, p. 341-342). Entretanto, Brazil (2000), em “A cidade portuária de Corumbá e o mito da decadência”, contesta a idéia de que a cidade tenha experimentado crise econômica da dimensão expressa pelo vocábulo “decadência”; a historiadora argumenta que tal palavra configura a idéia do “inevitável fim do mundo” Ocidental, que teria sido propalada por pesquisadores universitários neopositivistas. Para a estudiosa, essa visão sobre Corumbá ficou ultrapassada em decorrência de novas pesquisas que surgiram sobre o desenvolvimento econômico da cidade (cf. BRAZIL, 2000). Como quer que seja, o fato é que o menino Nequinho, o jovem poeta Manoel e as memórias de Barros registram um espaço em que o contraponto à riqueza material e à exuberância natural surge uma famélica leva de maltrapilhos, de prostitutas e de andarilhos que busca o alimento do dia. Vemos uma cidade que vai do esplendor ao declínio. Tais ecos das transformações urbanas reverberam na poesia do ainda adolescente Manoel, que registra ― no calor da hora ― 14 As citações, sempre, conforme os respectivos originais. 39 personagens, tipos, histórias e sentimentos. Setenta anos depois, o poeta, para inventar suas memórias, mergulha em lembranças que homologam a imagem de terminalidade contida no sema “decadência”. Para tanto, com empatia transforma os mendigos, os caminhantes sem rumo, os loucos, os estrangeiros sem eira nem beira ― enfim, aqueles que nada possuem em matéria de sua poesia. 2.3 O eu-lírico em palimpsesto A cidade de Corumbá é assim apresentada na obra Livro de Pré-coisas: [...] Aqui é o Portão de Entrada para o Pantanal. Estamos por cima de uma pedra branca enorme que o rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe. Já posso ver na semi-escuridão os canoeiros que voltam da pescaria. Descendo a Ladeira Cunha e Cruz embico no Porto. Aqui é a cidade velha. O tempo e as águas esculpem escombros nos sobrados anciãos. (BARROS, 1997, p. 11). Ao que nos parece, os sobrados anciãos remetem ao abandono, já que “o tempo e as águas esculpem” destroços de um período em que esse Porto simbolizava a prosperidade do comércio local. Na obra Memórias inventadas – a infância, o eu enunciador se lembra de que “[p]elo arruado passavam comitivas de boiadeiros e muitos andarilhos” (BARROS, 2003, VI). Local de passagem, no arruado o avô do menino15 instala um comércio, com destaque para os mantimentos: “Vendia toucinho, freios, rapadura e tais” (BARROS, 2003, VI). É espaço que se urbaniza devido à pecuária, mas que mantém presente a natureza do Pantanal: “Atrás da Venda estava o rio” (BARROS, 2003, VI). Entretanto, o negócio não vinga ― e o que prospera são os desocupados: [...] A Venda ficou no tempo abandonada. Que nem uma cama ficasse abandonada. É que os boiadeiros agora faziam atalhos por outras estradas. A Venda por isso ficou no abandono de morrer. Pelo arruado só passavam agora os andarilhos. E os andarilhos paravam 15 A referência ao avô não corresponde à realidade. O avô do poeta viveu em Cuiabá, Mato Grosso. 40 sempre para uma prosa com o meu avô. E para dividir a vianda que a mãe mandava para ele. (BARROS, 2003, VI). O tempo que transcorre no discurso enunciado é um tempo cronológico passado que parece dialogar com o momento da enunciação, o abandono pretérito antigo corroendo a distância temporal para, como abandono que vinca a alma do eulírico enunciador, se fazer presente. E o poeta lembra e explica: os boiadeiros seguem por outros caminhos, a “Venda” está ferida de morte, não há mais negócios a fazer ― o que resta são os andarilhos, sem posses, a não ser a da fome, daí que proseiam com o avô visando partilhar a refeição que ele fará. O eu-lírico, nesse “abandono de morrer” (BARROS, 2003, VI), retrata a percepção do olhar infantil para a Corumbá em que, menino, o poeta viveu: a cidade se esvazia economicamente, perpassa por sobre os seus habitantes o drama de atividades que se encerram, do trabalho que não há, da renda que deixa de existir. No espaço degradado pela miséria que, marcados pela imprevisibilidade dos fatos, os andarilhos ficam à volta do arruado, tornam-se “a paisagem do meu avô” (BARROS, 2003, VI), param ali sempre para “uma prosa”. Diferente das comitivas de boiadeiros, que “agora faziam atalhos por outras estradas” (BARROS, 2003, VI), os andarilhos parecem adaptados à dinâmica das mudanças sociais e econômicas, dada a sua condição de “andar atoamente”, andar a esmo, sem raízes, sem estarem em lugar que seja seu. Na obra Livro de Pré-coisas, no poema “Carreta pantaneira”, temos uma reiteração do anotado pelos cronistas e historiadores: [...] Os bois, desprezados, iam engordando nos pastos. Até que os donos, não resistindo tanta gordura, os mandavam pro açougue. Fazendeiro houve, aquele um, que, havendo de passear pela Europa, enviou bilhete ao gerente: “Venda carreta, bois de carro, cangas de boi”. (BARROS, 1997, p. 31). Obra sobre boiadeiros e peões no Pantanal trata das comitivas em um tempo posterior ao rememorado pelo poeta, e constata: Quanto aos boiadeiros e às comitivas, sua relação com tais mudanças transitava pela incorporação lenta de hábitos que não transformaram radicalmente a essência de sua profissão e de seu 41 universo mental, ainda que estivesse ocorrendo um crescimento do ‘mercado de trabalho’. Alguns aspectos dessa atividade sobreviveram quase incólumes às mudanças históricas, especialmente àquelas inseridas no campo das técnicas. As comitivas, com o decorrer dos anos, diminuíram em termos numéricos e a área de viagem foi reduzida, mas a presença e a atuação delas ainda sobrevive como a única alternativa em regiões ermas e afastadas das rodovias, ferrovias e hidrovias. (LEITE, 2003, p. 38). Se as comitivas decrescem em número e em importância ao longo do século, o momento inicial, do impacto das mudanças regionais e na economia de Corumbá, cria circunstância histórica que gera efeito na sensibilidade do poeta adolescente. Se o relato das mudanças pouco impacta em PCSP, a rememoração do tempo antigo, no Barros que inventa suas memórias, documenta o processo e o revive, atualizado, retirando dos desvalidos sociais criados pela decadência a fonte da sua poesia. Nesse sentido, andarilhos e passarinhos se irmanam na paisagem doméstica, com a figura do avô fazendo a transição entre o familiar e o mundo exterior: [...] Tudo isso mais os passarinhos e os andarilhos era a paisagem do meu avô. Chegou que ele disse uma vez: Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia. Dom de ser poesia é muito bom! (BARROS, 2007, VI, sublinhado no original). Ou ainda, no poema “No tempo de andarilho”, o poeta atenta para a constante passagem de viajantes, andarilhos e hippies pela região: Prospera pouco no Pantanal o andarilho. Seis meses, durante a seca, anda. Remói caminhos e descaminhos. Abastece de perna as distâncias. E, quando as estradas somem, cobertas por águas, arrancha. [...] (BARROS, 1997, p. 47). Temos, assim, um processo em que o poeta que rememora se identifica com o passado rememorado, com o poeta que foi na juventude, com o cronotopos evocado e, ao mesmo tempo, aproxima a Poesia da História. Em Livro de Pré-coisas, o narrador faz algumas reflexões acerca da ocupação, dos costumes e da cultura pantaneira. Eis um exemplo: 42 Nos primórdios [...] O homem havia sido posto ali nos inícios para campear e hortar. Porém só pensava em lombo de cavalo. De forma que só campeava e não hortava. Daí que campear se fez de preferência por ser atividade livre e andeja. Enquanto que hortar prendia o ente no cabo da enxada. O que não era bom. No começo contudo enxada teve seu lugar. Prestava para o peão encostar-se nela a fim de prover seu cigarrinho de palha. Depois, com o desaparecimento do cigarro de palha, constatou-se a inutilidade das enxadas. (BARROS, 1997, p. 37-38). Entre a realidade histórica e o poema que conota tal realidade, medeia um tempo cronológico de mais de meio século. Entre o referente retomado e a evocação poética que a refaz como memória, o concreto da história tornou-se outro. Outro é também o eu-lírico. Do Cabeludinho de antanho ao memorialista de agora ocorreu um processo no qual o eu-lírico como que se desfez de si mesmo, para agora se reencontrar. A identidade original dissolveu-se em uma identidade nova, outra, que recobriu, com muitas camadas, o eu primevo. As referências identitárias, estáveis, foram desestabilizadas pela vida, pelas leituras, por mudanças ideológicas. É um processo: o poeta aos poucos deixa suas raízes e as transforma, as reelabora, as simboliza, as desrealiza e as simboliza no outro em que ele se transformou. A identidade passa por processo de se des-conhecer. Agora, com as Memórias inventadas, o eu-lírico se reencontra consigo mesmo, se resgata, como que desfaz o des-conhecer, construindo uma identidade compósita que sincroniza o palimpsesto de si mesmo.16 Verifiquemos a trajetória do eu-lírico, discursivizado como eu-poético no poema “Caso de amor” (Barros, 2007, XII). Trata-se de uma reflexão acerca de um limes que surge caracterizado como “estrada deserta”. Com esse ermo, que indicia a possibilidade de uma trajetória, o eu-poético se identifica, se reconhece, e com a trajetória compartilha a sua solidão: 16 A memória autointertextual ― no entrecruzar com a história, o espaço e o tempo ― é, segundo Rauer (2006, p. 88), peculiar palimpsesto: “as ações [...], assim como os pensamentos, [...], são inolvidáveis, da memória podendo ser recuperadas a qualquer momento. Essa recuperação e fusão do passado com o presente [...] é uma acronia do eterno. [...] o palimpsesto, sob o ponto de vista da memória e do tempo histórico, [é] retomada contínua e circular de planos de expressão e de planos de conteúdo, na qual se torna impossível determinar em que ponto principia e qual é a última re-escritura.” 43 Uma estrada é deserta por dois motivos: por abandono ou por desprezo. Esta que eu ando nela agora é por abandono. Chega que os espinheiros a estão abafando pelas margens. Esta estrada melhora muito de eu ir sozinho nela. Eu ando por aqui desde pequeno. E sinto que ela bota sentido em mim. Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la. Ela não tem indiferença pelo meu passado. Eu sinto mesmo que ela me reconhece agora, tantos anos depois [...]. (BARROS, 2003, XII). A estrada é o caminho percorrido entre o passado e o presente: a) do lugar: “Eu ando por aqui desde pequeno”, “sobre suas pedras agora raramente um cavalo passeia”; b) do eu-lírico: ”Eu acho que ela manja que eu fui para a escola e estou voltando agora para revê-la”; c) da solidão e do abandono: “nem cachorro passa mais por nós.” Dessa maneira, o poeta estabelece uma relação interdiscursiva com os registros historiográficos e com as próprias reminiscências, registrando-as nas Memórias Inventadas. As estradas, as ladeiras da Corumbá do seu passado também ficaram abandonadas e carecem de consideração, de reconhecimento. Nota-se, do mesmo modo, nesse jogo de conotações, a referência a Carlitos, que ora nos remete à imagem do progresso, modernidade, ora à singeleza do excluído que se traduz em lirismo e arte: [...] Eu estou imaginando que a estrada pensa que eu também sou como ela: uma coisa bem esquecida. Pode ser. Nem cachorro passa mais por nós. Mas eu ensino para ela como se deve comportar na solidão. Eu falo: deixe deixe meu amor, tudo vai acabar. Numa boa: a gente vai desaparecendo igual quando Carlitos vai desaparecendo no fim de uma estrada... Deixe, deixe, meu amor. (BARROS, 2003, XII). Carlitos é o vagabundo engraçado, bondoso e oprimido pela vida; sempre à procura de alguma estabilidade, é personagem popular e reconhecida em várias partes do mundo. Talvez seja esse o desejo do poeta ao fim de sua estrada: estar inserido no cânone, ter o seu reconhecimento literário. No entanto, observamos que as ações narradas pelo poeta não têm a finalidade de se efetivar como registro, descrever o lugar ou reproduzir o concretizado pela historiografia, mas, ao “remexer” o seu quintal, expressa, através 44 da ficção, as memórias do quintal pantaneiro, traduzindo os seus sabores e expondo os dissabores oriundos do progresso e do abandono.17 O desnudar das Memórias Inventadas: a infância desvela a situação, à margem da história oficial, dos desvalidos que surgiram na decadência de Corumbá ao longo da primeira metade do século XX. Ao mesmo tempo, empreende um diálogo com o primeiro livro de Manoel de Barros, PCSP. O desvelar e o intertexto, uma vez que a autointertextualidade é o procedimento do poeta quanto às informações explicitadas no plano da expressão, parece-nos que já estão presentes no Livro de Pré-coisas. Temos, assim, ao longo da obra de Barros, um retrato recuperado pelo eu-lírico ― que revê seu espaço e vivencia as mudanças ocorridas em ambos, no cenário e no eu-lírico enunciador e protagonista ― ao mesmo tempo em que anuncia as “pré-coisas” de sua poesia. 2.4 Poesia, veia da história; história, o veio da poesia Aristóteles, no Capítulo IX da sua Arte Poética, trata da diferença que existe entre a Poesia e a História: [...] não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) ― diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. (ARISTÓTELES, 1993, pp. 53-54; tratase do parágrafo 50, que abre o capítulo IX). O poeta sabe que pode falar a mentira e a verdade, misturando-as pela virtude da semelhança. Assim, o eu-lírico conta-nos uma mentira muito próxima da verdade e, ao mesmo tempo, leva-nos a observar as verdades homologadas pela historiografia. Dessa forma, a literatura torna-se um meio de representação dessa realidade, pois quem conta as memórias é um narrador que não tem compromisso com a verdade histórica. O leitor é informado de que, por serem inventadas, ele dirá 17 Ver anexo 17: Lembranças, de José de Barros. 45 sem falsidade o que não prometera. Quanto a isso, Barros não tem meias palavras: “Tudo o que não invento é falso” (BARROS, 2003, epígrafe). Realizado esse pacto autor-narrador-leitor, as memórias inventadas não são identificadas como falsas. Não se trata, entretanto, de um testemunho autêntico, espelhamento do que é registrado pelos historiadores. Trata-se de uma concepção subjetiva de um eu em cujo presente há marcas de determinado passado no qual o eu-lírico busca sentido para a sua poesia. Assim, pode o eu-lírico, como personagem encenada no poema, informar tanto o real, o vivido, quanto o imaginado, o inventado.18 E o que há de real nessas memórias? Parece-nos que há correspondências entre o autor, o eu-lírico, o narrador, o narrado, o espaço lembrado, o documentado pelos historiadores e o concebido pela memória coletiva. Dito de outra maneira, há uma reconstituição verossímil dos dados registrados pela história oficial. Verifiquemos, em uma passagem paradigmática, o modo como Barros recupera, nas lembranças evocadas, o espaço da sua infância, transformando-o, com os seus habitantes, em cenário poético. Corumbá é rememorada, na prosa-poética “Achadouros”, no seguinte contexto: “[...] Aquilo que a negra Pombada, remanescente de escravos do Recife, nos contava. Pombada contava aos meninos de Corumbá sobre achadouros”. (BARROS, 2003, XIV). Nota-se que o eu-lírico se inclui entre os meninos a quem a negra Pombada contava as histórias. Dessa forma, Barros revela-se como enunciador de uma história particular que, por mimesis, reconstrói o “nós” da história coletiva. O poeta, que “nasceu de treze” (BARROS, 2003, VII), ao completar oitenta e cinco anos realiza um percurso contrário ao do tempo objetivo para rememorar o espaço de sua vivência poética. Nos poemas narrativizados que constituem as suas Memórias inventadas, Barros acentua a relação de identidade entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado. O eu, ao se contar ― em paradoxo possível somente no âmbito da arte ― converte-se em outro.19 Ecléa Bosi, em Memória e Sociedade: lembranças de velhos, assim discorre: 18 Nos anexos 23 a 28, reproduzimos entrevistas, fotos e declarações do poeta Manoel de Barros e sobre Barros. No anexo 23 reproduzimos uma foto do poeta com “sua” personagem Bernardo. 19 O raciocínio deste parágrafo deve-se às análises de Linhares (2006). 46 [...] Quando a sociedade esvazia seu tempo de experiências significativas, empurrando-o para a margem, a lembrança de tempos melhores se converte num sucedâneo da vida. E a vida atual só parece significar se ela recolher de outra época o alento. O vínculo com outra época, a consciência de ter suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha uma finalidade de encontrar ouvidos atentos, ressonância. (BOSI, 1994, p. 82). A nosso ver, o tempo significativo que alenta o poeta Barros é o tempo vivido pelo jovem poeta Manoel e seu alter-ego Cabeludinho. Esse tempo fora registrado na primeira obra, PCSP, na qual já o título indicia uma época virginal, de liberdade, de descobertas sem o peso das normas, sem a internalização dos interditos, reiterado na obra Livro de Pré-coisas, na qual Barros apresenta o roteiro para excursão na sua poética. Acreditamos que, nos volumes das Memórias inventadas, o memorado confunde-se com o intertexto da retomada da própria obra inaugural. As marcas do declínio econômico da cidade surgem matizadas pela afetividade da lembrança. No poema VI de “A infância” (BARROS, 2003), o poeta anota: “A Venda ficou no tempo abandonada. [...] no abandono de morrer. [...] E os andarilhos paravam sempre para uma prosa com o meu avô”. A proximidade e cumplicidade entre o avô e os deserdados emergem da refeição compartilhada, em gesto relatado com empatia pelo eu-lírico. Por outro lado, o único substantivo grafado com letra inicial maiúscula é “Venda”. Assim, o poeta indicia a importância do comércio referenciado, selecionando ainda vocábulo homófono e homógrafo ao verbo “vender” (no presente do subjuntivo e, em especial e mais significativo, no imperativo afirmativo), definindo no âmbito da recordação a importância dos eventos capitalistas vivenciados pela comunidade. É desse modo que a criança ― o eu-lírico que é o sujeito na cena relembranda ― embora more no ermo e tenha “o ermo no olhar” (BARROS, 2003), descortina as verdades então vigentes. O poeta, ao evocar suas lembranças, revela aspectos da realidade da região fronteiriça do Brasil com a Bolívia. Conforme alguns registros, o ciclo de crescimento econômico referenciado sofreu um baque nas primeiras décadas do século XX, quando o eixo comercial Corumbá - Cuiabá perdeu importância para o eixo Cuiabá - Campo Grande. Os desempregados, os párias, os andarilhos, os bêbados, os deserdados, as prostitutas e os loucos são os tipos que também passam a compor o cenário dessa região fronteiriça. Barros recria figuras pertencentes à oligarquia local (o avô) e 47 figuras não pertencentes à oligarquia local e, portanto, não incluídas ― do ponto de vista da elite social e dos interesses mercantis do capitalismo ― na sociedade (os andarilhos). Dessa forma, entre o fato e a ficção, entre o poético e a biografia, a obra do poeta Manoel de Barros ― assim nos parece ― abre muitas possibilidades de interpretação na interface com a História, efeito de sentido ainda mais evidente quando compulsamos comparativamente a poesia de Barros com a obra de outros autores corumbaenses, em especial aqueles que recriam como personagens literárias figuras populares da história da cidade. Desse modo, observamos que, nos volumes das Memórias inventadas, a poesia de Manoel de Barros trata do destino do homem, da sombra da infância se projetando no adulto, da busca da felicidade que só parece possível se o homem se iguala ao ínfimo, ao sem valor e aos despossuídos de qualquer posse. O “des”, em Barros, é matéria de poesia, pois Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as soberbas coisas ínfimas. (BARROS, 2002b, p. 27). Ao retomar, nos diversos livros que lançou nos últimos setenta anos, os desvalidos, os trastes, os loucos, os trabalhadores humildes, os mendigos, os maltrapilhos, os andarilhos e outros excluídos da ordem social, Barros mostra o grau de sofisticação gerado pelas engrenagens sociais do capitalismo avançado que, mais que negar a esses indivíduos a existência civil na condição de cidadão, deles extirpa até mesmo a condição de humanidade. E é assim, na obra de Manoel de Barros, que a História se presentifica, tornada poesia, e sua poesia ― enlutada, mas em euforia pela descoberta ― des-vela e mostra a face da História. Nosso propósito central, neste capítulo, o de verificar como os andarilhos que perambulam na “fronteira” de Barros constituem contrapartida inelutável da decadência econômica do município no primeiro quartel do século XX, coloca-nos diante de algumas questões: a) Seria elemento significativo da poética de Barros valer-se de fatos que os historiadores registram e analisam quando voltam seus olhos para a história da cidade?; b) De que modo os textos históricos, as crônicas e a memória da gente da região pantaneira permeia a poética de Manoel de Barros?; c) Entre o registro do que aconteceu e a invenção do que poderia acontecer, qual o papel das memórias do poeta?; e, d) O que ressuma do intertexto com outros autores corumbaenses? 48 Barros, ao rememorar o passado, estabelece um diálogo intertextual com os textos dos cronistas, não pela cronologia, mas pela relação com o que é narrado: o foco do poeta adulto rememora o olhar infantil, as coisas lembradas, o microcosmo infantil, espaço que identifica o eu-lírico que anota suas Memórias. Quanto a isso, Béda comenta: Podemos dizer que não se pode anular a identidade entre o eu lírico e o eu do poeta, mas também não seria apropriado identificar enunciação lírica direta e restritivamente com o real, com a vivência pura. Poesia e autobiografia não se excluem; antes, aliam-se para ser a representante do ‘eu’ que busca algo, que não está satisfeito com o que è ‘comum’ a todos. Em Manoel de Barros: sublimação dos pequenos. (BÉDA, 2009, p. 128). Por sua vez, ao dialogar com fatos que os historiadores registram e analisam quando voltam seus olhos para a história da região da fronteira Oeste, a poesia de Manoel de Barros torna-se, um recurso para re-construir o olhar sobre o que o poeta não inventa, pois que “tudo o que não inventa (o) é falso” (BARROS, 2003). Desse modo, ao sublimar os pequenos em sua poesia, por mimesis, desnuda a realidade vigente a um leitor futuro, pois conforme nos ensina Umberto Eco: Quem diz que escreve apenas para si mesmo não é que minta. É assustadoramente ateu. Até mesmo de um ponto de vista rigorosamente laico. Infeliz e desesperado aquele que não sabe se dirigir a um leitor futuro. (ECO, 2004, p.304-305). Dessa forma, constatamos que, ao valer-se de fatos que os cronistas e os historiadores registram e analisam, na poética barreana, a História se presentifica tornada poesia. Em outras palavras, ao evocar e reconstituir suas lembranças na escrita de suas memórias, Barros constrói a história pela poesia, fazendo com que a poesia alimente a História e que a História irrigue o poético. 3 RECRIAÇÃO POÉTICA DE FIGURAS POPULARES NA OBRA DE MANOEL DE BARROS O poeta Manoel de Barros empreende um diálogo intertextual, e autointertextual, com diversos escritores da região fronteiriça de Corumbá, quando se volta para aspectos da realidade humana que florescia nos becos, no porto, nas ruas e nos prostíbulos. Barros elege os seres abandonados, os loucos, as prostitutas, as coisas miúdas e simples e, muitas vezes, a pobreza como matéria para sua poesia. O conceito de pobreza, na poesia de Barros, configura-se como dificuldade de acesso à sobrevivência digna e a bens mínimos, por escolha, jeito livre de viver, ou por condição social. O estudo de tal condição deve observar as fronteiras que se definiram ao longo da história das cidades fronteiriças do Brasil e da Bolívia. Conforme Tito Carlos Machado de Oliveira, A condição fronteiriça marca a região, criando a possibilidade de formação de outra identidade. A hegemonia das circulações advindas das complementaridades [...] entre brasileiros e bolivianos consolida um cotidiano que, mesmo absorvido de modo diverso no conjunto populacional, as pessoas convergem para um comportamento coletivo muito próximo [...]. (OLIVEIRA, 2009, p. 37). Cabe-nos ressaltar que, ao considerarmos a recriação poética de figuras populares na obra de Barros como mote para compreender essa “condição fronteiriça”, concluímos que as fronteiras apresentam-se não só como espaço de passagem entre dois territórios geográficos, mas também como espaços privilegiados para travessias lingüísticas e culturais em que as re-criações poéticas se cruzam, se divergem e se hibridizam. É uma espécie de hífen que liga as narrativas orais, a historiografia e a poesia em um desdobramento identitário possível. Da obra O fazedor de amanhecer (2001), os versos seguintes elucidam nosso raciocínio: 50 [...] Andarilho também. Não posso ver a palavra andarilho que eu não tenha vontade de dormir debaixo de uma árvore. Que eu tenha vontade de olhar com espanto, de novo, aquele homem do saco a passar como um rei de andrajos nos arruados de minha aldeia. E tem mais uma: as andorinhas, pelo que sei, consideram os andarilhos como árvore. (BARROS, 2001c). O andarilho é, nesse poema, aquele que atravessa as fronteiras lingüísticas; é um anônimo cuja trajetória harmoniza-se com a mendicância, a loucura e o prazer de errar. Remete à criação do discurso poético. De acordo com Karime Hauaji, o ensaísta quebequense Pierre Quellet, na estesia migrante, distingue quatro classes de personagens, todas ligadas a uma forma de “alteropercepção”. A primeira diz respeito ao estrangeiro, ao exilado ou ao viajante, que dá lugar ao fluxo migratório, construindo o discurso subjetivo. A segunda, aos artistas, escritores e pensadores, permite um tipo de migração metafórica, própria da experiência estética ou cognitiva. A terceira, a do louco ou demente, que nos remete à migração psicológica. Finalmente, a do excluído, marginal ou itinerante, cuja identidade é colocada em cheque pela ausência de um espaço de existência ou de um campo de pertencimento. [...] Por vezes, os loucos serão também vagabundos, os vagabundos viajantes e os viajantes escritores. De certo modo, a arte, ou melhor, a escrita consistirá para eles em um ponto de convergência, funcionando como um verdadeiro abrigo para suas confissões. (HAUAJI, 2009, p. 42). Ao estudar a poesia de Manoel de Barros, Wânessa Cruz — em sua dissertação de Mestrado — afirma: São cinco as obras de Manoel de Barros que mais documentam a temática do andarilho, do peregrinante: Livro de Pré-coisas, O guardador de águas, Livro sobre nada, Poemas rupestres e Matéria de poesia. O poeta, ao destacar a figura do caminhante, da desfigura errante, parece, entretanto, enveredar pelo rumo da alienação desobrigada de compromissos com a sociedade, quando o que se quer revelar na verdade é o caos em que o mundo se encontra. A figura do erradio é uma forma de se chegar às mesmas questões que circunscrevem o humano. (CRUZ, 2009, p. 110). 51 A figura do andarilho, na poética de Barros, revela a poesia e é, ao mesmo tempo, ― nos arruados de sua “aldeia” ― a figura popular do “homem do saco”, personagem das narrativas orais de um espaço geográfico definido. O discurso que constrói a figura do andarilho propicia a revelação de uma poesia que dialoga com narrativas e lembranças presentes, também, na obra de outros escritores dessa região fronteiriça. Antonio Candido nos ensina que, para François Mauriac, [...] o grande arsenal do romancista é a memória, de onde ele extrai os elementos da invenção, e isto confere acentuada ambigüidade às personagens, pois elas não correspondem a pessoas vivas, mas nascem delas. Cada escritor possui as suas ‘fixações da memória’, que preponderam nos elementos transpostos da vida. (CANDIDO, 2007, p. 67). Sabemos que o texto ficcional não deve ser explicado pela biografia do autor. Entretanto, no caso dos poemas em que re-cria figuras populares, Barros acentua o contexto cultural e espacial da região do Pantanal, de Corumbá e de cidades bolivianas por onde passou, hibridizando aspectos históricos com aspectos poéticos. Dessa maneira, acreditamos, Barros transfigura a realidade de sua “aldeia” para construir suas personagens poéticas. Obviamente, “quando se fala em cópia do real, não se deve ter em mente uma personagem que fosse igual a um ser vivo” (Candido, 2007, p. 69). A convergência do factual e ficcional, na obra de Manoel de Barros, é que torna possível tal recriação poética. Em As lições de R.Q., do Livro sobre nada (2000, p. 75), temos um exemplo claro dessa re-invenção barreana. No paratexto que acompanha o poema, Barros anota: Nota: Um tempo antes de conhecer Picasso, eu tinha visto na aldeia boliviana de Chiquitos, perto de Corumbá, uma pintura meio primitiva de Rômulo Quiroga. Era um artista iluminado e um ser obscuro. Ele mesmo inventava as suas tintas. Trazia dos cerrados: seiva de casca de angico (era o seu vermelho); caldos de lagartas (era o seu verde); polpa de jatobá maduro (era o seu amarelo).usava pocas de piranha derretidas para dar liga aos seus pigmentos. Pintava sobre sacos de aninhagem. Mostrou-me um ancião de cara verde que havia pintado. Eu disse: mas verde não é a cor da esperança? Como pode estar em rosto de ancião? A minha cor é psíquica ― ele disse E as formas incorporantes. Lembrei que Picasso depois de ver as formas bisônticas na África, rompeu com a formass naturais, com os efeitos de luz natural, com os conceitos de espaço e de perspectiva,etc etc. 52 E depois quebrou planos, ao lado de Braque, propôs a simultaneidade das visões, a cor psíquica e as formas incorporantes. Agora penso em Rômulo Quiroga. Ele foi apenas e só uma paz na terra. Mas eu vi latejar rudemente nos seus traços milagres de Klee. Salvo não seja. (BARROS, 2000, p. 74). Apoiando-se em uma similaridade real, o poeta aproxima a personagem reinventada do espaço geográfico que lhe é familiar, conhecido. Ao mesmo tempo em que, no poema de Barros, Rômulo Quiroga inventa suas tintas com as coisas do “cerrado”, o vate re-inventa a personagem. De acordo com Cruz (2009, p. 73), existe “efetivamente um Rômulo Quiroga, pintor de paredes, que trabalha há anos para a família do poeta”. Aliás, a invocação do migrante surge já em Poemas concebidos sem pecado, com Cabeludinho tendo entre os seus amigos um “Bolivianinho”: [...] ─ Só jogo se o Bolivianinho ficar no quíper ─Tá bom, meu gol é daqui naquela pedra plog plog, bexiga boa ─ Eu só sei que meu pai é chalaneiro mea mãe é lavadeira e eu sou beque de avanço do Porto de Dona Emília [...] (BARROS, 2005, p. 15). Além do fato de eleger, como matéria para poesia, os andarilhos, os caminhantes sem rumo, os erráticos, os peregrinos, os migrantes, os loucos mansos que perambulam a esmo pelas fronteiras, a produção literária de Manoel de Barros oferece possibilidades para várias interpretações, em diversos campos do conhecimento. Assim, a produção poética barreana pode e deve, no âmbito dos Estudos Fronteiriços, ser homologada pelos estudiosos que também almejam compreender a ocupação e a identidade fronteiriças. 3.1 O migrante O migrante é o indivíduo que, por necessidade de sobrevivência, imposição ou mesmo por opção, passa a conviver com uma realidade sociocultural diferente. O 53 que caracteriza o sujeito migrante é o seu deslocamento no espaço, deixa um espaço geográfico para, às vezes, se fixar― ou não ― em outro território. Assim, o sujeito migrante parece assimilar várias identidades, pois que identifica com os lugares por onde passa e dele reproduz algum costume ou comportamento. O migrante tende a modificar sua identidade de origem e, portanto, a não se identificar com um único espaço: o “eu” acaba por escapar à vista, dando lugar a um “outro” ampliado. O caráter temporal e a presença limitada do migrante em determinado espaço, muitas vezes depende essencialmente das condições econômicas ou das condições naturais, como as secas, as enchentes entre outras, as quais podem intensificar ou reduzir o processo migratório em determinados períodos. A condição de migrante, situado enquanto categoria social excluída dos privilégios de cidadania faz-nos refletir acerca dos aspectos paradoxais da fronteira. Na obra O Livro das Ignorãças, de Manoel de Barros, há uma EXPLICAÇÃO DESNECESSÁRIA Na enchente de 22, a maior de todas as enchentes do Pantanal, canoeiro Apuleio vagou três dias e três noites por cima das águas, sem comer sem dormir – ele teve um delírio frásico. A estórea aconteceu que um dia, remexendo papéis na Biblioteca do Centro de Criadores da Nhecolândia, em Corumbá, dei com um pequeno Caderno de Armazém, onde se anotavam compras fiadas de arroz, feijão, fumo etc. [...] (BARROS, 2001, p. 31). Nessa “Explicação”, notamos que o território descrito é vital à poesia e, ao mesmo tempo, é o espaço poético de deslocamento do outro. Além disso, não se devem ignorar as evidências factuais recorrentes na poética barreana quando se efetivam estudos voltados para as questões fronteiriças. Não se trata aqui de evidenciar territorialidades, mas ao focalizar o entorno, a “Nhecolândia, em Corumbá” (BARROS, 2001, p.31), o poeta faz emergir identidades com as quais, com o passar do tempo, cada vez menos se identifica, visto que o tempo e os constantes deslocamentos entre o centro e a periferia transformaram-no em outro; agora, conotativamente, metamorfizado em migrante, andarilho. Por isso, o eu poético busca, nas suas Memórias, re-encontrar o menino Cabeludinho ou o eu primevo. 54 Conforme afirma Stuart Hall,” [...] a identidade está profundamente envolvida no processo de representação” (HALL, 2006, p. 61). Nesse sentido, o tempo e o espaço simbólicos são também diretrizes fundamentais para a representação, para a recriação poética do migrante, do ex-ótico. De acordo com Marco Aurélio Machado de Oliveira, Os outros [...] eram e são vistos como exóticos também em seu sentido original: ex-ótico, ou seja, fora do lugar comum da visão, estranho. Os que não eram e não são europeus, mas, fundamentalmente, como seres e lugares a serem apossados por esses valores e essas fronteiras. (OLIVEIRA, M., 2009, p. 82, grifo do autor). Assim, a poética de Barros está para aquele que fugiu do poder central, para o abandono, como o migrante está para o ser marginalizado, que transgride a ordem da fronteira, pois desobedece a lógica, desestabiliza o “olhar”. Em O livro das ignorãças, eis um poema, que homologa tal raciocínio: XIV De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o mato e a fome tomavam conta das casas, dos seus loucos, de suas crianças e de seus bêbados. Ali me anonimei de árvore. Me arrastei por beiradas de muros cariados desde Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. [...] Eu precisava de ficar pregado nas coisas vegetalmente e achar o que não procurava. (BARROS, 2001a, p. 101). Verificamos, nesse poema, que, ao partir do local de origem, o eu-lírico migrante deixa suas realizações e observa lugares estranhos ao seu “olhar”, de certa forma, abdica-se de si mesmo, ”Ali me anonimei de árvore”, tornando-se um anônimo, sem nome, sem identidade. Em suma, um estranho a si mesmo. Ao romper laços de tempo e espaço com sua terra de origem, esse migrante não se encontra em lugar nenhum, já que “precisava achar o que não procurava” (BARROS, 2001a), torna-se, assim, um promotor de integração e de mudanças no território em que se sente acolhido. 55 3.2 Personagens femininas O tema da representação da figura feminina tem sido bastante estudado nos últimos anos. Após o desenvolvimento da História Social, alguns estudiosos buscaram recuperar personagens históricos até então invisíveis aos pesquisadores e, talvez por isso, novas discussões tenham sido fomentadas acerca dos “papéis” representados pela figura feminina na sociedade. Nosso propósito, aqui, é mostrar como as figuras femininas fronteiriças são representadas na obra de Manoel de Barros. Investigaremos a caracterização dos tipos femininos a partir das figuras da mãe, da avó, das prostitutas e das mulheres do povo. Verificaremos os papéis destinados a elas, o modo como são caracterizadas pelo poeta e a função que desempenham no universo poético criado por Barros. Como desdobramento dessa leitura, indiciaremos reflexões acerca das fronteiras que permeiam as relações sociais, verificando de que modo o discurso poético internaliza convenções morais e fixa identidades ao propor a alteridade como um “outro” radicalmente diferente. Nos poemas de Barros, as personagens femininas ora representam a conduta domiciliar, como dona de casa cuja virtude está pautada no zelo pela harmonia do lar ou como mulheres do povo e das prostitutas. No dizer de Glaydson Silva, em seu estudo Representações Femininas e Relações de Gênero na Ars Amatoria: Ao tratar do intercâmbio que se estabelece entre Literatura e História, ou, entre o texto literário e as percepções do ‘real’ nele expressas, torna-se imprescindível problematizar, ainda que brevemente, o uso que aqui se faz do conceito de representação, visto ser ele o instrumental analítico no qual se centra essa leitura. Duncan Kennedy20 concebe, acerca do termo, uma disjunção expressa entre arte e mundo, ou, literatura e vida. Para o autor, o termo está ‘[...] muito em evidência nas atuais discussões sobre a elegia amorosa romana’ (1993, p. 1). Maria Wyke define a problemática em torno do discurso da representação como ‘[...] uma necessidade de determinar a relação entre a realidade da vida das mulheres e sua representação na literatura’ (Cf. WYKE 1989, p. 25 apud KENNEDY 1993: 1)21, ela vê o realismo como uma qualidade própria do texto, ‘[...] não uma manifestação direta do mundo real’ (p. 27). Para Roger 20 KENNEDY, Duncan F. The arts of love: Five studies in the discourse of Roman love elegy. New York: Cambrige University Press, 1993. 21 Maria Wyke, citada por Kennedy, não consta nas referências de Glaydson Silva. 56 Chartier as representações devem ser entendidas como ‘[...] representações que os grupos modelam deles próprios ou dos outros’ (1991, p. 183).22 Sobre a atualidade destas discussões, Judith Hallet irá comentar que [...] debates sobre a mensagem ideológica da elegia latina e sua adequação para a pesquisa feminista prognosticam uma satisfatória transformação dos estudos de literatura latina (1993, p. 64).23 Para a autora, estes debates conduzem para as várias formas de representação das mulheres na literatura do período; ainda que a elegia seja uma poesia dos meios sociais mais abastados, de um meio predominantemente aristocrático, com uma visão de mundo descrita dessa perspectiva (KENEDY, 1993. p. 1), as mulheres que nela aparecem - matronas, libertas ou escravas, ricas ou pobres – são iguais em sua ‘natureza’. (SILVA, 2008, p. 2). As representações femininas invocadas na poética de Manoel de Barros que surgem como as figuras cujas virtudes estão pautadas no zelo pela harmonia do lar, encenam personagens domesticadas e passivas, cujas condutas limitam a testemunhar sem intervir. Perrot, em sua obra História da vida privada, faz a seguinte afirmação: As relações cotidianas entre pais e filhos variam imensamente na cidade e no campo, onde as manifestações de ternura não são muito apreciadas, conforme os meios sociais, as tradições religiosas e mesmo políticas. A concepção que se tem da autoridade e da apresentação de sua própria pessoa influi sobre as palavras e os gestos do dia-a-dia. A família, desse ponto de vista, é o lugar onde se processa uma evolução contraditória. De um lado, o controle do corpo e da expressão emocional se aprofunda; isso se vê, por exemplo, na história das lágrimas, a partir de então reservadas às mulheres, às classes populares, à dor e à solidão, ou ainda na intensificação da disciplina sobre a linguagem e as atitudes físicas das crianças, intimidadas a ficar retas, a comer direito, e assim por diante. De outro lado, a troca de carinhos entre pais e filhos é tolerada, e até desejada, pelo menos na família burguesa. (PERROT, 1991, p. 157). Cabe-nos observar que a década de 1930 – não será demais lembrar, momento em que Barros publicou sua primeira obra, PCSP – foi um período de muitas conquistas da mulher. Acerca dessa questão, Carlos Martins Júnior, no artigo 22 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v.r, n. 11, pp. 180-193, jan./abr., 1991. cf.Glaydson Silva. 23 HALLET, Judith. Feminist Theory, Historical periods, literary cannos, and the study of Greco-Roman antiqquity. In: RABINOWITZ, Nancy Sorkin, RICHLIN, Amy. (Orgs.) Feminist theory and the classics. New York: Routledge, 1993. p.44-72. 57 “O esforço de construção de representações femininas idealizadas nos jornais matogrossenses no Estado Novo”, assim anota: Pouco a pouco, as conquistas femininas no exterior repercutiam no Brasil, com o próprio Governo Provisório acatando algumas de suas reivindicações. Em 1932, durante as eleições para a Assembléia Constituinte, foi concedido o direito de voto às mulheres. Na Constituição de 1934, a participação feminina na política se acentuou e vários artigos da Constituição viriam a beneficiá-las, a exemplo da regulamentação do trabalho feminino já previsto nos Decretos Leis de 17 de maio de 1932. (MARTINS JÚNIOR, 2006, p. 117-133). Samara, em seu estudo intitulado Mulheres pioneiras: histórias de vida na expansão do povoamento paulista, acrescenta: Para as historiadoras dedicadas ao estudo da condição feminina no passado, essa questão aparece logo de início como um desafio, ou mesmo um desejo de recuperar as mulheres na sua identidade social e de mostrar sua presença no processo de tomada de decisões. Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Susan Rogers sobre o mito da dominação masculina e os ‘poderes’ femininos e de Michelle Perrot sobre a mulher popular rebelde, entre muitos outros. (SAMARA, 2002, p. 19). Na obra Memórias inventadas: a infância (2003), no poema intitulado “Fraseador”, Barros descreve uma cena no espaço privado do domus24 em que a figura da mãe é personificada como coadjuvante: Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa? Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada. 24 Acrescentemos, aqui, apenas como uma observação à margem, a asserção de Kant, que dizia que a casa, o domicílio, que encerra em suas paredes tudo o que a humanidade recolhe ao longo dos séculos, é a única barreira contra o horror do caos, da noite e da origem obscura. 58 (BARROS, 2003, VII) Estão associados, ao vocábulo ”mãe”, os verbos “inclinar” e “baixar”, os quais podem conotar vários sentidos: desânimo, decepção, cansaço, alheamento, submissão, resignação ou compreensão e tolerância diante da decisão do filho “fraseador”. Entretanto, parece-nos que ao empregar os verbos “inclinar” e “baixar”, associados ao sujeito verbal “A mãe”, o poeta apresenta a mulher como coadjuvante nas decisões familiares, pois o filho mais velho questiona, até mesmo sugere uma atitude, quase que um castigo: “nós temos que botar / uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar.” O pai, no entanto, deixa a questão para lá, “meio vago”, e à mãe cabe tão somente “baixar a cabeça um pouco mais.” O eu-lírico informa ao leitor que a cena rememorada ocorrera há mais de setenta anos: Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no meu futuro. (BARROS, 2003, VII). Há, nesse poema, alguns índices que merecem destaque: a prática epistolar era própria de pessoas alfabetizadas, com facilidade de redigir e, talvez, represente um indício da vocação de escritor reiterada pelo eu enunciador; conforme muitos historiadores,25 na zona rural o domínio da escrita era quase que exclusividade dos homens. A figura feminina representada, no poema, é a da mulher no universo patriarcal rural; ela, na sua passividade e impotência, tenta ocultar suas emoções, o que transparece no gesto de “baixar a cabeça”. A seleção vocabular transforma o gesto único em exemplar da circunstância a que a figura feminina está submetida. No poema “Fraseador”, existem duas histórias: uma individual e outra coletiva.26 A individual recupera as reminiscências do poeta-narrador cuja família, à época em que ele estudava no colégio, interno, no Rio de Janeiro (BARROS, 2003, IV), morava na fazenda (BARROS, 2003, VII) e com a qual se correspondia, provavelmente, através de cartas. A coletiva é gerida pelas questões políticas e sociais do País no que tange às discussões acerca das conquistas femininas nesse 25 26 A informação é tão disseminada que se torna ocioso referendá-la com alguma abonação. Não se trata, aqui, do conceito de Píglia (1994), de que “um conto sempre conta duas histórias”. 59 período. Descreve-se uma cena familiar comum, mas - ao que nos parece - subjaz no poema narrado um engajamento ideológico acerca da condição da mulher na família patriarcal rural. Em outros poemas, a figura feminina surge como “transgressora”, é o protótipo familiar liberal, ainda que não promova transformações na realidade vigente. Essa representação emerge com as mulheres mais experientes, como a “avó”, “Nhanhá”. Apesar de reações socialmente consideradas como típicas do universo feminino, tais como o choro, a preocupação com os familiares e o cuidado com a educação das crianças, é a avó que orienta o eu-lírico a infringir certos padrões e conceitos. Esse espírito libertário surge tanto nos Poemas Concebidos sem Pecado quanto nas Memórias inventadas: a infância. Nhanhá, a avó que educa e orienta, surge em “Cabeludinho” (PCSP): ─ Vai desremelar esse olho, menino! ─ Vai cortar esse cabelão, menino! Eram os gritos de Nhanhá. (BARROS, 2005, p. 9). Ela se entristece com a partida do neto: [...] Havia no casarão umas velhas consolando Nhanhá que chorava feito uma desmanchada ─ Ele há de voltar ajuizado ─ Home-de-bem, se Deus quiser (BARROS, 2005, p. 17). A avó é o membro familiar com quem o eu-lírico parece se identificar, o que depreendemos dos versos seguintes, em que o adolescente racionaliza sua rebeldia: Carta acróstica: “Vovó aqui é Tristão Ou fujo do colégio Viro poeta Ou mando os padres...” Nota: Se resolver pela segunda, mande dinheiro para comprar um dicionário de rimas e um tratado de versificação de Olavo Bilac e Guima, o do lenço. (BARROS, 2005, p. 21). 60 Quando descobre que “o neto que foi estudar no Rio [...] voltou de ateu” (Barros, 2003, VIII), é a avó aquela que mais sofre: [...] Nhanhá choraminga: ─ Tá perdido,diz que negro é igual com branco!” (BARROS, 2005, p. 31). Ao mesmo tempo, é a avó, no poema “Obrar”, que inspira o narrador a ser um “transgressor” e “a não desprezar as coisas desprezíveis e nem os seres desprezados”: [...] A vó então quis aproveitar o feito para ensinar que o cago não é uma coisa desprezível. Eu tinha vontade de rir porque a vó contrariava os ensinos do pai. Minha avó, ela era transgressora. (BARROS, 2003, II). A mulher mais velha, na obra de Barros, ainda que submissa, parece representar os atributos femininos de “choramingar”, ensinar as crianças, mas com uma singularidade, a de desempenhar também a função paterna: a disciplina dos filhos. Nos intertíscios do patriarcado, ou ainda mais o firmando, dá lições de transgressão ao eu-lírico masculino, alter-ego do poeta. Em sua Poética, Aristóteles argumenta que a poesia contém um teor mais filosófico do que o discurso histórico, pois narra imaginativamente o que poderia ter ocorrido e não se atém a um relato pretensamente fidedigno dos acontecimentos. Barros, em entrevista a José Castello (1997), indicia que, em sua poesia, retoma fatos da realidade e os recria poeticamente. Assim se dá no poema “Mariapelego-preto”, personagem recriada a partir de uma realidade de miséria que o poeta presenciou: Estado - E o que encontraram pelo caminho? Manoel - Miséria. Em Santa Cruz de la Sierra, fomos abordados por um menino que veio oferecer-nos mulher. Ele nos levou a uma casa muito pobre e nos apresentou a suas três irmãs, três meninas miseráveis. O menino pegava homens na rua para transar com as irmãs, era assim que a família sobrevivia. Essa experiência rendeume um poema, que chamei de Maria-Pelego-Preto. Estado - Ela existiu mesmo? Manoel - Sim, uma das meninas tinha pentelhos que subiam até o umbigo. Os pais exploravam esses pêlos como um fenômeno, uma 61 anormalidade. Cobravam ingressos só para exibi-los. (CASTELLO, 1997). Sob esta perspectiva, a obra de Manoel de Barros constitui objeto de análises para os estudos fronteiriços, visto que há em sua poesia significativas reflexões acerca de fatos que ocorrem num tempo e num espaço peculiares, sendo que esses fatos se repercutem por meio da “voz” do eu-lírico. Na obra, A mulher na história do Brasil, Del Priore assim relata: A prostituição, embora aparentemente transgressora, constituía-se numa prática a serviço da ordem sócio-espiritual no mundo moderno. No Brasil, no entanto, as características que a tornavam um ‘mal necessário’, vão misturar-se com outras práticas consideradas pelas autoridades como transgressoras, fazendo com que a igreja enxergasse em cada mulher que infringisse as normas, uma prostituta em potencial. Como não se isolava as prostitutas em ‘putarias e mancebias’, nem se as cobria com véus como era uso na metrópole, na colônia os limites entre os comportamentos tidos por desviantes e a prostituição eram tênues. (DEL PRIORE, 1994, p. 22). Em Poemas Concebidos sem pecado, a personagem Maria-pelego-preto é assim poetizada: Maria-pelego-preto Maria-pelego-preto, moça de 18 anos, era abundante de pêlos no pente. A gente pagava pra ver o fenômeno. A moça cobria o rosto com um lençol branco e deixava pra fora só o pelego preto que se espalhava quase até pra cima do umbigo. Era uma romaria chimite! Na porta o pai entrevado recebendo as entradas... Um senhor respeitável disse que aquilo era uma indignidade e um desrespeito às instituições da família e da Pátria! Mas parece que era fome. (BARROS, 2005, p. 51). Não se expressa, nesse poema, apenas a representação de uma realidade nem pretende o poeta somente instaurar a comoção do leitor. Ao que parece, há uma voz, a do narrador, que denuncia a exploração da mulher, da pessoa humana, em nome da miséria, da fome como justificativa para o sustento da família na sociedade capitalista. 62 Maria-pelego-preto é encarada com certa simpatia pelo eu enunciador, pois esta é apresentada como vítima de um sistema em que o diferente torna-se fenômeno, aberração, em que a mulher é subjugada ao poder patriarcal. Nesse sentido, o poeta, ao apresentar o que, parece, já se banalizou, tornouse comum na sociedade, “A gente pagava pra ver o fenômeno”, atenta para a reflexão, a tomada de consciência do leitor, revelando uma sociedade fragmentada, em que o “pentelho”, os pêlos pubianos da “moça de 18 anos” torna-se um bem consumível mais significativo que o ser. Entre o captado pelo olhar do poeta e a realidade vigente, ao que nos parece, a casa – guardada pelo “pai entrevado” – é um microcosmo percorrido por fronteiras para as quais convergem, e nas quais se confrontam o privado e o público: o sexo está na cotação; o íntimo é revelado, mas o rosto fica encoberto pelo lençol branco, talvez uma alusão simbólica à justiça: olhos vedados. O poeta não se isentou de apresentar, nesse poema, uma sociedade que sujeita a mulher ao papel de coadjuvante e que muitas vezes personifica a mulher como “pecadora”, faz dela um objeto de compra e venda. Os homens, em bando, se satisfazem em “avaliar” a mercadoria: “Era uma romaria chimite!” Outra personagem feminina da obra de Barros que parece refletir o modo como a sociedade patriarcal caracteriza a mulher é Antoninha-me-leva: Antoninha-me leva Outro caso é o de Antoninha-me-leva: Mora num rancho no meio do mato e à noite recebe os vaqueiros tem vez que de três e até quatro comitivas Ela sozinha! Um dia a preta Bonifácia quis ajudá-la e morreu. Foi enterrada no terreiro com o seu casaco de flores. Nessa noite Antoninha folgou. Há muitas maneiras de viver mas essa de Antoninha era de morte! Não é sectarismo, titio. Também se é comido pelas traças, como os vestidos. A fome não é invenção de comunistas, titio. Experimente receber três e até quatro comitivas de boiadeiros por dia! (BARROS, 2005, p. 73). 63 A mulher representada nesse poema é a prostituta. Sob a ótica do poeta, trata-se de uma mulher que mora num lugar pobre e distante do mundo civilizado, “num rancho no meio do mato”. Seu comportamento zoomorfizado parece condizente com o meio. O vigor e a resistência física da personagem fogem aos padrões das demais mulheres: “Um dia a preta Bonifácia quis ajudá-la e morreu”. Ao que nos parece, há uma tomada de posição do narrador, que não compactua com a ideologia vigente na sociedade da época, o que fica indiciado pelo verbo “experimentar” do último verso do poema narrado. E o verbo, na ambiguidade entre o subjuntivo e o imperativo, lança um desafio, pois que a atividade de Antoninha se mostra grandiosa, quase épica no seu heroísmo. De acordo com a obra A mulher na História do Brasil, de Del Priore, [...] Deslocadas dos bordéis, como se usava na Europa, e à mercê dos casamentos instáveis consagrados pelas condições de vida do período, compreendemos melhor as prostitutas sob o pano de fundo da pobreza, onde o meretrício era um ofício ou uma forma de trabalho, ligada à mais imediata sobrevivência. (DEL PRIORE, 1994, p. 26). Em seus poemas, compostos de forma narrativizada (cf. Grácia-Rodrigues, 2006), Barros representa as mulheres do povo geralmente na cozinha ou próximas aos afazeres domésticos. Em PCSP: [...] Um dia Nhanhá Gertrudes fazia bolo de arroz Negra Margarida socava pilão. E eu nem sei o que fazia mesmo. Veio um negro risonho e disse sem perder o riso: ─ Vãobora comigo negra? (BARROS, 2005, p. 40). As mulheres do povo surgem representadas também em momentos em que contam histórias, como no poema “Achadouros”, da obra Memórias Inventadas: a infância: [...] Aquilo que a negra Pombada, remanescente de escravos do Recife, nos contava. Pombada contava aos meninos de Corumbá sobre achadouros. (BARROS, 2003, XIV, sublinhado no original). 64 Surgem ainda, as mulheres, queixando-se das suas condições. Em PCSP, a personagem Dona Maria representa as mulheres que buscam libertar-se de condições não explicitadas. É mais um poema narrativizado: Dona Maria Dona Maria me disse: não agüento mais, já tô pra comprar uma gaita, me sentar na calçada, e ficar tocando, tocando... ─ Mas só pra distrair? ─ Que Mané pra distrair! O senhor não está entendendo? ─ Entendo. A senhora vai ficar sentada na calçada, de vestido sujo, cabelos despenteados, esquálida, a soprar uma gaitinha rouca, não é? [...] (BARROS, 2005, p. 53). De acordo com Del Priore (1994, p. 27) “Nas cidades coloniais, as “mal procedidas” ganham suas vidas em praças, fontes, ruas e casas de comércio, até esbarrar na repressão periódica de autoridades ou da vizinhança, incomodados com suas brigas e ameaças”. O nome Maria congrega vários sentidos e pertence a várias histórias, sacras ou profanas, e representa o feminino real ou inventado. Na obra de Barros, ora surge subjugada ao regime patriarcal, “Na porta o pai entrevado recebendo as entradas...”, ora representa a mulher, nem casta nem obediente, mas que clama pela liberdade em relação às convenções sociais: “não agüento mais, já tô pra / comprar uma gaita, me sentar na calçada, e ficar tocando,/ tocando”. Permite-nos aprofundar a análise, no aspecto que empreendemos nossa leitura, o estudo A unidade dual: Manoel de Barros e a poesia, de Prioste: O poeta reconhece o fingimento da palavra e apreende a realidade como um cenário construído a partir do alicerce verbal. Percebe que a fronteira com o falseio é muito tênue para ousar referendar um discurso que se pretende claro e distinto quando tudo é muito mais complexo e indefinível do que supõe qualquer filosofia. A obscuridade compartilha da clareza em um infinito enlace no qual o humano se embate sem a certidão fidedigna de uma verdade imune ao contradito, ao dubitável e ao oblíquo. (PRIOSTE, 2006 p. 19). 65 A opção pelos marginalizados é uma tônica constante na poética de Manoel de Barros.27 Ao narrar as histórias dessas personagens femininas, o poeta revelanos várias fronteiras construídas no espaço e no tempo. A realidade da concretude histórica é apreendida como discurso, é discurso. Assim, torna-se esquiva, indefinível, obscura; torna-se complexa e permeada pelas dúvidas inerentes à linguagem, ao discurso construído, ao ideológico que emerge na ontologia da língua. E assim o poeta se volta para as lembranças recuperadas, tornando-as memórias que se expressam nos poemas narrativizados de PCSP e de todos os volumes das Memórias inventadas. No recorte que observamos e descrevemos, a evocação poética se fixa sobre as figuras femininas, tanto as do domus quanto aquelas expostas nas ruas. Nesse momento, as figuras singulares do poeta como que representam todas as milhares de mulheres da América Latina que viveram e vivem no atraso, na pobreza e nos ermos da solidão. Ainda hoje elas são vendidas como escravas, são mutiladas, são torturadas e são prostituídas. A independência econômica é conquista evidenciada, principalmente, nos grupos privilegiados das zonas urbanas. Entre a autonomia e a heteronomia, muitas são as fronteiras sociais que prendem a mulher à subalternidade, em prolongamento de situações que o poeta descrevia nos anos trinta do século XX. Tal fronteira social tem deixado lacunas que merecem estudos mais aprofundados na região fronteiriça de Corumbá. Apesar dos recentes embates acerca dessa questão, o problema do tráfico humano, da exploração sexual feminina, é uma constância nos veículos midiáticos quando se referem à região. Com efeito, as personagens femininas da obra de Barros protagonizam uma humanidade fragmentada pelo sexismo, pelo poder simbólico instituído em nome dos costumes e da cultura. E ao revelar poeticamente o outro silenciado, marginalizado, o poeta descortina o real, o concreto, sem se prender a descrições emocionadas de situações sociais ou panfletos políticos. Sua obra tem como efeito – para além do estético ou de qualquer compromisso político – clamar pela humanização em um mundo no qual impera a mecanização, a reificação e alienação. As fronteiras internas na sociedade, vincada por diferenças gritantes de renda, de escolaridade, de acesso a bens culturais; as fronteiras entre culturas distintas em que o outro, diferente em sua alteridade, torna27 Os anexos 9, 10, 11 e 12 mostram personagens de Corumbá, em quadros de Daltro, personagens essas que compõem a galeria das personagens barreanas. 66 se um estranho absoluto; tais fronteiras, construídas ao longo da História, presentificam-se na poesia de Manoel de Barros, quando a estudamos sob o enfoque da representação mimética da figura feminina. 3.3 A mendiga As cidades do Brasil e da Bolívia, como de qualquer outro lugar, não se formam e se caracterizam apenas pelos prédios, anúncios luminosos, feiras, tradições e veículos que entrecruzam os limites fronteiriços. É de particular importância considerar “a alma móvel e errante das ruas” (SERRA, 1971, p. 127). É ponto pacífico em roda de bar, estudo sociológico e debate edil que a presença do andarilho, do maltrapilho, do “trapo sujo na vida” (Matos, 1936, p. 19), que “ninguém o embuçala” (BARROS, 1997, p. 47), precisa ser controlada nas cidades. Historicamente, essas figuras matizam o cenário e estimulam a fantasia do povo. São os ditos “filósofos dos becos” (BARROS, 2000, p. 81) seres que têm acesso aos limites da magia, como a “velha do saco”28 ou o “homem do saco” (BARROS, 2000, p. 85), pavor e alegria das crianças. Na região fronteiriça de Corumbá com Puerto Quijarro, devido às peculiaridades territoriais e históricas, em parte, pela proximidade e atração exercida por Corumbá, decorrente de sua infraestrutura e seu passado de entreposto comercial, muitas são as personagens anônimas que vagaram e vagam pelas estradas e ruas: loucos mansos, maltrapilhos, mendigos, andarilhos as quais ajudam compor a paisagem humana desse espaço fronteiriço. São os trastes biografáveis (Biografável- diz-se daquele do qual se pode escrever uma história. É ser concreto e natural), tais como – entre outros andarilhos – Maria Bolacha e Bola Sete muito presentes na literatura local. Expliquemo-nos. As crônicas de Ulisses Serra, a poesia de Lobivar Matos, a obra de Manoel de Barros, dentre outros, recuperam essas figuras populares, recriando-as como personagens poéticas e ficcionais. O contorno dessa transmutação se faz de modo diverso em cada autor e atende a fins estéticos e ideológicos diferentes. Buscamos nas artes plásticas, em pesquisa bibliográfica e em fontes primárias o perfil desses 28 Expressão popular em Corumbá que se refere a pedintes maltrapilhos. 67 personagens, conforme coligidos pela História e pelas lembranças da população fronteiriça, para comparar tais registros com os registros desses personagens nas obras de Matos, Barros e Serra. Também empreendemos comparação entre o mesmo personagem, tal como ele surge recriado na literatura local. Apesar da alfândega, dos limites legais, que separam a cidade de Corumbá das cidades bolivianas, elas têm em comum a mazela da pobreza, da indigência: o pobre velho, “a velha do saco”; os errantes; os tipos populares que perambulam pelas ruas e estradas; hippies, mochileiros e sacoleiros que vão e vêm com certa frequência à região. Alguns se fixaram nas ruas, outros surgem esporadicamente do lado de lá ou do lado de cá. Nesse sentido, na medida em que são observados como diferentes ― assim nos parece ―, uns se afastam, se separam; outros, algumas vezes são desenraizados da sociedade ou tornam-se invisíveis aos poderes públicos de ambos os lados. Ao mapear as figuras populares na obra de Barros, centramo-nos na figura de Maria Bolacha (ver “Dona Maria”, BARROS, 2005, p. 53), personagem real, misto de mendiga meio louca, que viveu em Corumbá na primeira metade do século XX, para verificarmos de que modo tal personagem é retomada nas obras de Lobivar Matos e Ulisses Serra. Além da autointertextualidade relatada, a poesia de Barros dialoga com outros autores corumbaenses, em especial com Lobivar Matos e Ulisses Serra, em movimento que parece recíproco, pois os dois escritores também incorporam em suas obras os desvalidos e figuras populares de Corumbá, recriando-os como personagens poéticas, ficcionais, a partir do referente histórico. Na poesia de Lobivar, tais seres surgem como o “farrapo de homem” (MATOS, 1936, p. 29), cuja dignidade a elite social despreza e cerceia. Nas crônicas de Serra, 29 a personagem Maria Bolacha surge como uma heroína que arrosta os impropérios da turba com a “resistência moral” que defende o direito à liberdade. E assim os maltrapilhos emergem no discurso literário, em contraponto ao senso comum de que a presença do andarilho, do “trapo sujo na vida” (MATOS, 1936, p. 29 De 1971, o livro Camalotes e guavirais, em edição de 2004, encontra-se disponível no site da Academia sul-mato-grossense de Letras, sediada em Campo Grande. A página refere-se a essa edição. No anexo 4, reproduzimos as páginas 127 a 129 da obra original, que se referem a Maria Bolacha. 68 19), que “ninguém o embuçala” (BARROS, 1997, p. 47), precisa ser controlada na cidade. Os desvalidos das ruas de Corumbá que compõem o cenário urbano da poesia de Barros constituem um drama encenado poeticamente que nos leva a inquirir: tratam-se, tais indivíduos, de pessoas reais recriadas pela poesia ou são personagens inventadas? Constituem projeção ficcional ou são produtos da memória? Eis como Serra relembra, em uma de suas crônicas, a figura da velha do saco: [...] andar de papagaio e de pano à cabeça [...] Maria Bolacha simbolizou a resistência moral que o convívio sórdido das calçadas não enodoou. A impropérios e a relho lutou ferozmente contra a chacota, cobrando à turba inconsciente e alegre o seu inalienável direito à liberdade das ruas. (SERRA, 2004, p. 115-117). Descreve-se uma figura folclórica das ruas, que surge como “Maria Bolacha” em Lobivar (MATOS, 1936, p. 19) e como “Dona Maria” em Barros (2005, p. 53). Desse modo, a “velha do saco” transpõe a barreira do tempo e a lógica dos fatos para vaguear, revivida pela memória, na crônica histórica e na poesia. Ao retomarem Maria Bolacha, os três autores elegem uma figura cujo nome carrega forte simbologia. Como já se afirmou, Maria é nome bíblico, comum, que nem sempre singulariza, mas muitas vezes congrega em si vários seres e denúncias. Como muitas são as “marias” da história da cidade, retomar essa “Maria” tem a força de um símbolo, ao mesmo tempo em que, ao redor desse nome próprio, se ligam, numa relação semântica, os elementos que constituem uma gama de informações que individualizam e caracterizam a personagem: Velha baixota, enrugada Chinelos furados, dedos de fora (MATOS, 1936, p. 19); Dona Maria me disse: não agüento mais, já tô pra comprar uma gaita, me sentar na calçada, e ficar tocando, tocando... [...] até que a vida melhorasse. (BARROS, 2005, p. 53-54). É necessário observar que a figura de Maria Bolacha como que desperta uma espécie de encantamento nos três autores que a tornam personagem. Talvez esse enlevo advenha da condição de pária da figura histórica que inspira a criação da 69 personagem ou de certo carisma ou simpatia essencial que lhe era intrínseca. Além do que, o registro poético não se restringe ao real: ele transmuta-o, ficcionalizando-o. Embora defina Maria Bolacha como “trapo”, Lobivar, em sua poesia, mostra o lado jocoso do determinante de Maria. De fato, ela é quem dá bolachas. Existe na personagem uma contradição aparentemente insolúvel e fatal: apedrejada, Maria é, sempre, aquela que dá bofetadas (bofetada é igual a “bolacha”, daí a sua alcunha). Eis como ela reage à zombaria, na visão de cada um dos autores: Vão para o diabo, cambada de senvergonha! (MATOS, 1936, p. 19); Mas, enquanto forças teve, disputou o direito às ruas, defendeu sua dignidade e repeliu a rebenque e pedradas a alcunha desmoralizante. (SERRA, 2004, pp. 115-116); Por favor, moço, mande esses meninos embora pra casa deles. O senhor já me largou na sarjeta, já fez crescer visgo no meu pé, e agora ainda manda os moleques me xingarem... (BARROS, 2005, p. 54). A reação em Lobivar retrata a indignação da personagem, que se manifesta com todo vigor. Serra descreve uma figura que envelhece, mas que antes de perder as forças, rebatia os ataques à “sua dignidade”, configurados na “alcunha desmoralizante”, com “rebenque e pedradas”. Em Barros, o eu enunciador tem a proximidade do diálogo com essa Maria, e provoca-a, tratando do momento em que ela morrerá, em que a sua gaita ficará “cheia de formiga e areia”, em que ela “estará cheia de lacraias sem anéis”, e em que, então, “ninguém suportará o cheiro do seu corpo” (BARROS, 2005, p. 54). Questionada se não seria assim, surge uma Maria Bolacha civilizadamente educada, que pede “por favor” e que responde ao eu-lírico como se respondesse ao próprio poema que o leitor lê. De certa forma, mais do que três visões diversas, parece que temos retratos da mesma personagem em momentos distintos: ao longo de sua trajetória, em sua reação típica, e já envelhecida e sem forças. Os textos como que dialogam e se complementam. Há poesia, ficção e realidade reiteradas em um único “trapo”, “Maria Bolacha” ou “Dona Maria”. No poema de Lobivar, repete-se: 70 Trapo num corpo sujo Trapo sujo na vida. (MATOS, 1936, p. 19). Esses versos nos remetem à obra de Barros: Depois as pessoas ficarão com pena da sua figura esfarrapada, tocando uma gaitinha rouca, e jogarão moedas encardidas em seu colo encardido, não é? (BARROS, 2005, p. 53); e ainda às crônicas de Ulisses: Alquebrada pelos anos, extenuada pela luta e já doente, um dia abandonou a arena das ruas e voltou, para sempre, à sua mansarda no sítio nativo, da Mata do Segredo. (SERRA, 2004, p. 115). Tanto em Lobivar quanto em Barros surgem referências ao “trapo”, à “figura esfarrapada”, semas que denotam empatia e que, assim, constituem ferina e ácida crítica à exclusão, o que também se evidencia em Ulisses, com o vocábulo “luta” e a expressão “arena das ruas”. A opção pelos marginalizados “trapo”, “traste” e farrapo”, nos poemas e na crônica, descortina um cenário social que, talvez, somente autores cônscios da importância de seu ofício pudessem transformar em matéria para os seus escritos. Lendo-os, temos a impressão de que essa figura peculiar, cujo nome é Maria, ainda atravessa os becos e avenidas, sobe pelas ladeiras ou passeia pelo porto, indiferente ao relógio da história, para constituir-se em personagem que denuncia a face oculta das coisas e dos homens. Aqui, o implícito é mais importante que o evidente à flor do discurso. A aproximação entre a figura histórica e a personagem faz emergir uma literatura em que se destacam seres destituídos das mínimas condições necessárias para um ser humano. Temos um molambo ambulante, um “trapo”: Trapo, s.m. Pessoa que tendo passado muito trabalho e fome deambula com olhar de água suja no meio das ruínas Quem as aves preferem para fazer seus ninhos Diz-se também de quando um homem caminha para nada. 71 (BARROS, 2002a, p. 46, itálico no original). Lobivar, ao tratar desse “trapo” – que a sociedade, por conveniência, encobre –, faz uma descrição que constitui uma metáfora: Maria Bolacha [...] Saco vazio, sem cor, dependurado às costas... (MATOS, 1936, p. 19). “Saco vazio” significa, nesse poema, Maria sem recordações, destituída de passado e de futuro, alheia à sociedade consumista, mas flagrada pela poesia. Como, em outro contexto, teoriza Dufrenne (1969, p. 89): “[s]em nada perder de sua sinceridade, o poeta é transcendido pelo que vive no momento em que o diz, pela virtude do dizer”. E, assim, Lobivar se identifica com a sua personagem: Agora, que sou farrapo de homem, que queria ser homem, que já tropecei por este mundo a fora, que já cansei de ficar no chão, não encontro ninguém que me tire da sarjeta. (MATOS, 1936, p. 29). Emite, ainda, juízo sobre a situação social que descreve: é a mancha negra bulindo na cidade mais branca do mundo. 30 (MATOS, 1936, p. 7). Evidentemente, conforme nos ensina Candido (1985, p. 13), “[a]char, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la, é correr o risco de uma perigosa simplificação causal”. No caso de Lobivar e de Barros, temos ― e seguimos a terminologia de Candido ― que a fantasia não é pura, referindo-se constantemente a alguma realidade e sobre essa realidade emitindo considerações. 30 Corumbá, devido o calcário que impregna as rochas da morraria às margens do Rio Paraguai onde a cidade foi edificada, é chamada de “Cidade Branca”. 72 É por terem o mesmo referente externo que os três autores como que, num efeito de justaposição, parecem construir um único texto: ― Maria Bolacha! Maria Bolacha! (MATOS, 1936, p. 19); ― Maria Gaiteira, fiu! Maria Gaiteira, fiu, fiu! (BARROS, 2005, p. 54); ― Pêra aí, pestes, vão para o diabo, cambadas de senvergonha! (MATOS, 1936, p. 19); À tarde, pelo cansaço, com voz fraca e enternecida, ofegante, pedia clemência. (SERRA, 2004, p. 115); ― Por favor, moço, mande esses meninos embora pra casa deles. (BARROS, 2005, p. 54). Com efeito, Maria Bolacha protagoniza uma humanidade apodrecida pela miséria, pelo descaso. É câncer que corrói a realidade, molambo que arremessa o “chicote”, seu “pedaço de pau”, e que “não queria dizer tanto”, eternizado ― em Sarobá, em PCSP, e em Camalotes e Guavirais ― como “trapo” biografável, lírico. Nesse caso, Lobivar precedeu Serra e Barros, ao reunir, em sua obra, o local e o universal, o passional e o racional. Lobivar evoca fatos relevantes para o momento histórico ― a década de 30 ―, não dissociando sua literatura da inserção social, em obra cuja simplicidade de meios alcança extrema complexidade de fins, resultando em um retrato social que é mais revelador do que o dos seus contemporâneos. Lobivar, Barros e Serra incluem em sua obra a personagem desvalida, e o fazem como que retomando certa lição de Baudelaire, assim exposta por Schwarz (1983, p. 46) no seu clássico Os pobres na literatura brasileira: “Já Baudelaire, por sentimento dito filantrópico, aconselhava espancar os mendigos da rua, único meio de forçá-los a reencontrar a dignidade perdida – quando tentassem o revide”. É a necessidade de expor o real, o concreto, transfigurando-o poeticamente, que singularizam Lobivar e Barros, não apenas pelo ambiente em que movimentam suas personagens, não apenas pelas preocupações que manifestam como homens e como artistas, mas porque suas obras não se prendem a descrições emocionadas 73 de situações sociais injustas ou protestos políticos ― o que os afasta da mediocrização da sondagem social rasa. Embora cronista histórico, o texto de Serra quase sempre se aproxima do ficcional e alcança o poético, tendo um veio subterrâneo de compaixão e humanismo que também o afasta do memorialismo incipiente. Em todos, parece estar presente a proposição de Manoel de Barros: Palavra de um artista tem que escorrer substantivo escuro dele. (BARROS, 2002b, p. 17). Nesse sentido, talvez não seja exagero afirmar que a personagem “Maria Bolacha” é produto da memória dos três autores, “[u]ma revivescência melancólica dos [...] tempos áureos” (SERRA, 2004, p. 116) da mocidade. Agressiva ou doce, a memória da infância é doída e está presente como uma lembrança que suaviza a própria dor. As “bolachadas” que agora eles devolvem à sociedade transcendem as limitações temporal e espacial na descrição do outro humilhado e ofendido, marginalizado e à margem. Figura folclórica das ruas de Corumbá, "Maria Bolacha" (MATOS, 1936, p. 19), ou "Dona Maria" (BARROS, 2005, p. 53), como também era conhecida Maria Bolacha, é personagem que transpõe a barreira do tempo e a lógica dos fatos para vaguear nas obras de Lobivar, de Barros e de Serra, tornando-se personagem da obra dos três autores: em Sarobá (MATOS, l936, poesias), em Poemas concebidos sem pecado (BARROS, 1937) e em Camalotes e Guavirais (SERRA, 1971, crônicas). Parece-nos que Maria Bolacha congrega todos os seres que perambulam pelo espaço das cidades fronteiriças e que, de certa forma, são “invisíveis” aos poderes públicos. Isso leva-nos a refletir acerca das fronteiras que extrapolam os conceitos geopolíticos. Ao trilhar pelas ruas, praças e pontes de ambos os lados, na zona fronteiriça, percebemos intercâmbios estabelecidos pelos errantes e moradores locais. As trocas entre lá e cá, o comércio das calçadas, as influências de ambos os lados e as condições sociais ultrapassam barreiras, cruzam limites, às vezes de modo silencioso e outras de forma gritante, concretizando uma fronteira economicossocial, tornando-a viva, não apenas simbólica. 74 Parafraseando o que escreveu Lobivar Matos, essa é a nódoa que continua “bulindo” nessas cidades fronteiriças. Maria Bolacha é construção poética que dá a medida, na primeira metade do século XX, de como um ser humano, na miséria, um “trapo” e “molambo”, pode ganhar, mais que visibilidade, existência, com seu lamento cutucando a máconsciência social que faz-de-conta que não vê os excluídos do festim capitalista ou, ainda, como a fronteira apresenta caráter contraditório, inerente a sua própria essência: o que ela separa? O que põe em contato? Observamos, em especial, que Manoel de Barros, cujo poema “Dona Maria” humaniza a personagem, cede-lhe a palavra não como registro exterior, mas como manifestação do seu íntimo humano, as fronteiras entre os domínios da realidade e da ficção estreitadas, confundidas, manipuladas, em processo a cujo auge o poeta chega com os seus volumes de Memórias inventadas, dos quais já lançou A infância (2003), A segunda infância (2006a), Para crianças (2006b), e A terceira infância (2008). Bossé nos ensina que, “Assim como territórios, as fronteiras são fenômenos sociais portadores e reveladores de uma consciência socioespacial” (BOSSÉ, 2004). Talvez seja necessário consolidar projetos cuja ação dinâmica das redes de atores locais (rede de solidariedade) possa favorecer o desenvolvimento da região e que, mesmo de passagem, os tipos humanos presentes no espaço fronteiriço, pertencem a ele. A convivência informal das comunidades não deve ser ignorada pelos poderes públicos. Até porque, conforme sentencia Raffestin, “[...] o poder não é uma categoria espacial nem uma categoria temporal, mas está presente em toda ‘produção’ que se apóia no espaço e no tempo”. (RAFFESTIN, 1993, p. 6). Não obstante a diversidade de fatores que levam à errância na região fronteiriça de Corumbá, as migrações humanas parecem possuir um ponto em comum: vinculam-se às constantes transformações políticas e econômicas, à exclusão social, à necessidade da mobilidade psicológica, entre outras. Assim, os migrantes dessa região de fronteira adotam a mendicância ou realizam trabalhos informais como guardadores e lavadores de carros, vendedores ambulantes não documentados, catadores de materiais recicláveis entre outras atividades. Sabe-se que a movimentação, a errância, o nomadismo não é característica somente deste século e dessa região fronteiriça. É um fenômeno que já atravessou os espaços temporais e geográficos ocupados pela humanidade; entretanto, não se 75 pode ignorar que a presença desses personagens torna-se cada vez mais evidente nessa região. Segundo dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Ações Sociais, foram registrados, no segundo semestre de 2009, trinta e um (31) indivíduos, maiores de 18 anos, em situação de rua, na cidade de Corumbá. 31 Em suma, analisar as fronteiras sob o olhar da literatura seria vão, se não se observassem os elementos sociológicos, políticos, históricos e econômicos que as caracterizam e refletem na “alma móvel e errante das ruas”, desse espaço fronteiriço, recriadas nas poesias de Manoel Barros e de Lobivar Matos, e nas crônicas de seus contemporâneos. 3.4 O andarilho Os andarilhos invocados na obra de Manoel de Barros surgem, entre outros momentos, como o Bernardo, de “No tempo de andarilho”, de Livro de pré-coisas, como o Andaleço, do poema “O andarilho”, de Livro sobre nada, e como “um andarilho”, em “O olhar”, de Poemas Rupestres. Estudos acadêmicos e resenhas jornalísticas apontam para a constante evocação do errante, do andarilho, do flâneur e de outros tipos peregrinos na poesia de Barros.32 O próprio poeta, em entrevistas (2006), trata do tema. Nos poemas, a figura do andarilho enfatiza o despojamento e despersonalização do sujeito, e as personagens emergem do discurso como fonte e origem do poético. Desses andarilhos emana poesia, em uma aura de singelo franciscanismo e de desprendimento diante da sociedade de consumo, o que confere certo idealismo à voz poética que os resgata. O andarilho, segundo nos parece, torna-se peregrino. Neste sub-tópico, propomo-nos verificar de que modo a figura evidente e discursivizada do andarilho configura, em Barros, a imagem arquetípica do peregrino. Decorre dessa transformação da figura despojada do caminhante em um símbolo com fortes ressonâncias culturais que o peregrino é, ao mesmo tempo, poeticizado e laicizado. 31 Ver Dados quantitativos no anexo 29. 32 Landeira (2005) trata do poeta errante, embora em perspectiva algo diversa da nossa. 76 Para delinear este estudo, é imperativo deslindar a função da figura do andarilho na obra de Barros e o modo pelo qual o andarilho, por efeito poético, torna-se peregrino. Sendo assim, nos perguntamos: a) qual a mensagem que a figura do andarilho inculca na poesia de Barros? b) esse peregrino, na romaria poética, instaurada por Barros, dirige-se a qual santuário? c) qual o papel estético que a figura do peregrino desempenha na ars poetica de Barros? Para prosseguir nosso estudo, é imprescindível considerarmos algumas definições acerca do vocábulo peregrino. No dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant, encontramos: Peregrino – Símbolo religioso que corresponde à situação do homem sobre a terra, o qual cumpre seu tempo de provações, para alcançar, por ocasião da morte, a Terra Prometida ou o Paraíso perdido. O termo designa o homem que se sente estrangeiro dentro do meio em que vive, onde não faz outra coisa senão buscar a cidade ideal. O símbolo exprime não apenas o caráter transitório de qualquer situação, mas o desprendimento interior, em relação ao presente, e a ligação a fins longínquos e de natureza superior. Uma alma de peregrino pode significar também um certo irrealismo, correlativo a um idealismo um tanto sentimental. Pode-se notar, com relação ao símbolo do peregrino, as idéias de expiação, de purificação, assim como homenagem Àquele (Cristo, Maomé, Osíris, Buda) que santificou os locais de peregrinação. O peregrino ao buscar esses lugares procura identificar-se com Aquele que os torna ilustres. Por outro lado, o peregrino faz as suas viagens não no luxo, mas na pobreza; coisa que responde à idéia de purificação. O bastão ou bordão simboliza ao mesmo tempo a prova de resistência e o despojamento. Todas essas condições preparam para a iluminação e para a revelação divinas, que serão a recompensa no término da viagem. A peregrinação se assemelha aos ritos de iniciação: ela identifica com o mestre escolhido. (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2002, p. 709). Vale enfatizar que o andarilho presente na poética de Barros aproxima-se da imagem de São Francisco, pois ambos, além da humildade e da empatia com a natureza, abstêm-se dos valores consagrados pela sociedade e caminham em busca de respostas para aquilo em que acreditam.33 Barros parece ter a imagem do andarilho como a de um mestre, sendo tal mestre-andarilho identificado à trajetória 33 Orlando Antunes Batista (1989, p. 54-75) trata do franciscanismo na lírica de Barros. 77 de errâncias do poeta simbolista Rimbaud.34 Desse modo, o andarilho de Barros constitui-se em metáfora da sabedoria do poeta caminhante, do ser semovente cujo apostolado é desvelar os trajetos que convertam a poesia em ideal de purificação no mundo referencial, dominado por valores capitalistas. À medida que viaja, que palmilha pelo Pantanal, o andarilho desenraiza conceitos, liberta-se deles, atravessa as fronteiras lingüísticas, dissolve barreiras entre o ser e o ter, transgride os verbos e as idéias sistematizadas. Esse andarilho é um ser que vive na fronteira e está na fronteira: seus caminhos tracejam becos e ruas de Corumbá, convive com o migrante e com andarilhos bolivianos, tem um linguajar misto, palmilha os inexistentes caminhos pantaneiros, nos quais os limites entre a terra e a água são indefiníveis, indecifráveis, são fronteiras semoventes, o que faz do espaço do poema cenário que revela e molda o andarilho. Os andarilhos, de modo geral, são seres anônimos, cuja errância os transforma em sujeitos sempre os mesmos, mesmo quando são muitos e diversos. Em Barros, o andarilho, às vezes, é nomeado: em um poema, surge como Bernardo, em outro, como Andaleço, e em outros, é tão só um andarilho. Na enunciação poética, o poeta assim conceitua o caminhante em Livro de pré-coisas: “O andarilho é um antipiqueteiro por vocação. Ninguém o embuçala. Não tem nome nem relógio. Vagabundear é virtude atuante para ele. Nem é idiota programado, como nós. O próprio esmo é que o erra” (BARROS, 1997, p. 47). O andarilho desse poema remete ao errante, ao andante que tem consciência das coisas que rejeita e por que pertence “de andar atoamente” (BARROS, 2000a, p. 85). “Enquanto as águas não descem e as estradas não se mostram, Bernardo trabalha pela bóia. Claro que resmunga. Está com raiva de quem inventou a enxada. E vai assustando o mato como um feiticeiro”. (BARROS, 1997, p. 48). A rejeição se dá no que se refere ao enraizado, por isso “vai assustando o mato como um feiticeiro”. Não quer a linguagem do outro, o caminho do outro, quer descobrir seu próprio caminho, falar com a sua própria voz. Por isso, “remói caminhos e descaminhos”. E o poeta prossegue: Os hippies o imitam por todo o mundo. Não faz entretanto brasão de seu pioneirismo. Isso de entortar pente no cabelo intratável ele 34 Afonso de Castro, na obra A poética de Manoel de Barros, aponta os ecos de Rimbaud. E Barros ([2000b]), em entrevista, fala da importância de Rimbaud na sua visão de mundo. 78 pratica de velho. A adesão pura à natureza e a inocência nasceram com ele. Sabe plantas e peixes mais que os santos. (BARROS, 1997, p. 48). A peregrinação será árdua, com privações e reflexões a cada passo, a cada olhar desajustado em relação ao espaço onde anda atoamente, pois mesmo o ócio, fundamental para o exercício da sua reflexão, necessita ser justificado. Assim, em “O andarilho”, de Livro sobre nada, Manoel de Barros acrescenta uma nota de rodapé, do lado esquerdo do poema, a qual nos parece homologar o nosso raciocínio, incorporando novos elementos à figura do caminhante: Penso que devemos conhecer algumas poucas cousas sobre a fisiologia dos andarilhos. Avaliar até onde o isolamento tem o poder de influir sobre seus gestos, sobre a abertura de sua voz, etc. Estudar talvez a relação desse homem com as suas árvores, com as suas chuvas, com as suas pedras. Saber mais ou menos quanto tempo o andarilho pode permanecer em suas condições humanas, antes de se adquirir do chão a modo de um sapo. Antes de se unir às vergônteas como os parasitas. Antes de revestir uma pedra à maneira do limo. Antes mesmo de ser apropriado por relentos como os lagartos. Saber com exatidão quando que um modelo de pássaro se ajustará à sua voz. Saber o momento em que esse homem poderá sofrer de prenúncios. Saber enfim qual o momento em que esse homem começa a adivinhar. (BARROS, 2000a, p. 84). O errante consciente rejeita o estabelecido. Ele procura novos caminhos e procura a sua própria voz, como se uma voz apenas sua fosse o signo de sua existência. Essa garantia de existência irmana-se, panteísta, com a natureza, integra-se a ela e dela recebe – como o Atlas da mitologia recebe sua força da Terra – a seiva de seu ser, os prenúncios que indicam que foi tocado por algo que o transcende. Adivinhar, descobrir, divinizar a poesia: o vate-andarilho parece receber uma missão. Sua trajetória harmoniza-se com a mendicância, a loucura e a volubilidade do vento: Eu já disse quem sou Ele. Meu desnome é Andaleço, Andando devagar eu atraso o final do dia. Caminho por beiras de rios conchosos. Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco. Carrego latas furadas, pregos, papéis usados. (Ouço harpejos de mim nas latas tortas.) Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita. Os loucos me interpretam. 79 A minha direção é a pessoa do vento. (BARROS, 2000a, p. 85). Franciscano no despojamento e irmanado à natureza, o andarilho, na obra de Barros, tem a propriedade de se desprender dos valores consumistas e da rotina produtivista do capitalismo: “Não tem nome nem relógio. Vagabundear é virtude atuante para ele. Nem é idiota programado, como nós” (BARROS, 1997, p. 47). Esses versos remetem a estes, de Livro sobre nada: Meus rumos não têm termômetro. De tarde arborizo pássaros. De noite os sapos me pulam. Não tenho carne de água. Eu pertenço de andar atoamente. Não tive estudamento de tomos. Só conheço as ciências que analfabetam. (BARROS, 2000a, p. 85). Nota-se que, além do vagabundear que não “é idiota” e da inteligência de só conhecer “ciências que analfabetam”, a busca da poesia, pelo andarilho, assemelhase à busca do Graal. Como se fosse um ser privilegiado por não ter assimilado” estudamento de tomos”, é puro, virgem dos conceitos pré-estabelecidos. Desse modo, o andarilho torna-se poeta e, como poeta, se torna apto para sua grande missão: buscar a poesia, desvelar – na fonte das coisas – o seu Graal, a poesia Nesse sentido, para Barros o fazer poético se torna um movimento de contrição e uma atitude de despojamento. O que permite ao andarilho-poeta converter o fazer poético em um ato quase apostólico é o comedimento e o conhecimento empírico da simplicidade de se reconhecer no outro: “Eu já disse quem sou Ele” (BARROS, 2000a, p. 85). De certo modo, emula o seu mestre Rimbaud, que abolira fronteiras e já buscara a liberdade da poesia, do poeta e do leitor para a descoberta. Talvez por isso é que os verbos referentes ao andarilho estejam, em “O olhar”, no pretérito imperfeito: Ele era um andarilho. Ele tinha um olhar cheio de sol de águas de árvores de aves. Ao passar pela Aldeia 80 Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos. O silêncio honrava a sua vida. (BARROS, 2004, p. 75). Mas o que busca esse caminhante rimbaudiano? Ao que parece, busca – nos ecos desse silêncio – “[a]valiar até onde o isolamento tem o poder de influir [..] sobre a abertura de sua voz” (Barros, 2000a, p. 84), conforme anotou na já mencionada nota de rodapé do poema “O andarilho”, de Livro sobre nada. O andarilho erra em apagada existência na busca de palavras que lhe são símiles: IV Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos. Ela pode ser o germe de uma apagada existência. Só trolhas e andarilhos poderão achá-la. Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu,ao fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão. Andei nas pedras negras de Alfama. Errante e preso por uma fonte recôndita. Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos em flor. (BARROS, 1989). Vemos que o poeta-andarilho, em sua romaria poética, tem por santuário a palavra, “arcanos em flor”, e que a palavra que nasce da solidão peregrina o deixará mais próximo de seu mestre. Ao transpor fronteiras, interrogar certezas, desenraizar conceitos, tornar-se a “liberdade em trapos”, desprender-se do consumismo, despojar-se de superfluidades, integrar-se e à natureza, analfabetar-se, “sofrer de prenúncios”, o andarilho caminhante congrega em si o próprio esmo que erra. O andarilho torna-se poeta ao tocar o transcendente que nasce de si, ao chegar a momento no qual “começa a adivinhar” (BARROS, 2000a, p. 84). Ao percorrer errante trajetória e desvelar o que deve ser revelado, o andarilho se torna poeta que apresenta as chaves para a Terra Prometida. Tendo passado por provações, estrangeiro na fronteira em que transita, ser em eterna disponibilidade e transitoriedade, idealista em busca da Cidade ideal, puro em sua expiação franciscana, iluminado pela revelação poética, o poeta-andarilho é um peregrino, tal como o peregrino está definido por Chevalier e Gheerbrant (2002). Esse, o poeta-peregrino, portador da Boa Nova contida na palavra poética que transpõe fronteiras e interroga certezas, expressa-se em um mundo concreto no qual panteísticamente se integra. É limo de pedra (BARROS, 2000a, p. 84), é “adesão pura à natureza” (BARROS, 1997, p. 48),é “olhar cheio de sol” (BARROS, 81 2004, p.75).A transcendência emerge do natural, com o que temos um poetaperegrino cujo fazer poético deixa o transcendente e laiciza-se. Peregrino, porém laico, o poeta busca do seu embate com as palavras a transcendência – que o andarilho encontra na divinização revelada do natural transfigurado, “[d]e tarde arborizo pássaros” –. Já vimos que o poeta procura é a palavra adâmica, em sua origem primeva mais pura, a palavra em sua “fonte recôndita”. (Barros, 1989). Desse modo, a peregrinação orienta o poeta, purifica-o a fim de revelar a palavra fontana. Se no princípio era o verbo, a luz se faz com a palavra primeira, encontra ao fim de uma busca regressiva à causa primeira – a palavra fontana , assim considerada, é pois o próprio encontro com Deus. Por isso, o peregrino-poeta está cônscio, depois da caminhada, de que pertence a uma estirpe que tem o dever sagrado de espalhar poesia pelo mundo: Poesia, s.f. Raiz de água larga no rosto da noite Produto de uma pessoa inclinada a antro Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem Designa também a armação de objetos lúdicos com emprego de palavras imagens cores sons etc. geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados (BARROS, 2002a, p. 43, itálico no original). Poeta, s.m. e f. Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu Espécie de um vazadouro para contradições Sabiá com trevas Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como um rosto. (BARROS, 2002a, p. 45, itálico no original). A peregrinação do poeta-andarilho orienta-o, purifica-o a fim de revelar – ou desvelar – a palavra fontana, essa palavra original, primeva, ápice da busca, destino da errância do caminhante peregrino. Buscar a poesia é peregrinar pelas palavras em humano desatino, é andarilhar franciscano dissolvendo-se na natureza, é 82 eliminar fronteiras entre o eu e a alteridade, é desprender-se, despersonalizar-se, para enfim emergir poeta. Valemo-nos, para homologar e comprovar a nossa interpretação, do próprio Manoel de Barros. O poeta, em entrevista que concedeu a Cláudia Trimarco, afirma: “O andarilho é um ser errático - igual a poesia” (BARROS, 2006). Logo, na romaria poética, o peregrino está para o poeta assim como a poesia está para a sua consagração – e o possessivo “sua” implica em proposital ambigüidade, pois que a consagração é tríplice: do peregrino, do poeta e da poesia. O peregrino é, pois, aquele que realiza o eterno anseio do poeta maduro, pronto para enfrentar a trilha, digno de nossa reverência, pois a poesia será seu magno santuário terreal e nenhuma fronteira ou divisa haverá para ele, já que terá também seus discípulos seguidores. Barros, em entrevista já citada, afirma: “O andarilho é um ser errático igual a poesia”. Temos, pois, uma igualdade entre andarilho e poesia, um e outro tendo em comum a errância. O poeta se equivale ao Mestre, aquele ao qual “discípulos” seguem, e o “magno santuário terreal” do poeta-peregrino é a poesia. Para construir esse raciocínio, muitos são os andarilhos que perambulam nas fluidas e aquosas fronteiras naturais que servem de referente ao cosmos poético de Barros. Vimos aqui Andaleço, Bernardo e um andarilho não nomeado. Errante, franciscano, flâneur que é espécime oposta ao flâneur moderno, baudelairiano, dele evola poesia, da qual emerge a arquetípica imagem do peregrino, que é ao mesmo tempo poeticizado e laicizado. Esse poeta-andarilho-peregrino realça, na poesia de Barros, o elogio do inútil, do descartável, do miúdo desprezado pela sociedade de consumo, gerando o poema da busca da palavra fontana, verbo primeiro, a poesia tornada força geratriz do mundo, ainda que se manifeste por meio de “um pedacinho de arame” com o qual o eu-lírico remexa suas memórias fósseis. 4 PERSONAGENS REAIS E FICCIONAIS EM MANOEL DE BARROS Sabe-se que verossimilhança não é verdade, porém, entre os fatos constatados pela historiografia e a re-criação poética das figuras populares da região fronteiriça de Corumbá, parece-nos, há uma intenção de quem reinventa essas personagens. Bola-Sete, “o filósofo do beco”, recriado por Manoel de Barros na obra Livro sobre Nada, é personagem que surge também nas histórias de cronistas como Renato Báez, Silva Neto, Jorge Vancho Panovich e em muitas narrativas orais de corumbaenses.35 Renato Báez (1964) afirma que, no período compreendido entre 1863 e 1963, “viveram em Corumbá muitos tipos populares” e refere-se a eles como “almas da rua” (BÁEZ, 1964, p. 119). Ao evocar esse passado “cheio de lendas e tradições”, faz o seguinte registro: ‘BOLA SETE’ é como foi apelidado João Batista da Silva, nascido a 26 de junho de 1919 [...] BOLA SETE é anunciador voluntário de partidas de futebol, de casas comerciais e de candidatos políticos a cargos eletivos. É figura infalível nas portas de cinemas bares, estádio etc. Além de pugilista amador, é carnavalesco, tendo participado da Escola de Samba “Flamengo”, do popular Favito. (BÁEZ, 1964, p. 135 negrito no original). Francisco Ignácio Silva Neto assim o descreve: [...] Ele era o ‘Bola Sete’, cujo verdadeiro nome, creio, ninguém jamais soube. E foi justamente naquela esquina onde viveu grande parte da sua curta vida maltrapilha, que conheci o ‘Bola’, cercado por alguns conhecidos e por algumas crianças que gostavam das suas brincadeiras e das suas piadinhas. (SILVA NETO, 1995, p. 69). Jorge Vancho Panovich faz a seguinte referência ao personagem: Bola-Sete era um cidadão muito popular em minha cidade. Vivia de biscate para sobreviver. Tinha um vozeirão de fazer inveja a qualquer locutor de rádio. Religiosamente, ele passava todos os dias, para tomar um trago de aguardente, no armazém do Abud, um descendente de libanês. Depois do trago de aguardente, Bola-Sete 35 Os textos aqui referenciados encontram-se completos nos anexos 1 a 3. Os anexos 4, 5, e 6 apresentam outros personagens populares por cronistas e pessoas da comunidade corumbaense. 84 largava seu vozeirão fazendo a seguinte propaganda: ‘compre no armazém do Abud, que é o melhor da cidade’. (PANOVICH, 2007. p. 6). Barros recria poeticamente tal personagem, retomando fatos da realidade local, conforme observamos neste poema: Um filósofo de beco Bola-Sete é filósofo de beco. Marimbondo faz casa no seu grenho – ele nem zine. Eu queria fazer a biografia do orvalho – me disse. E dos becos também. É preciso refazer os becos, Senhor! O beco é uma instituição que une o escuro do homem com a indigência do lugar. O beco é um lugar que eleva o homem até o seu melhor aniquilamento. Um anspeçada, amigo meu, de aspecto moscal, só encontrou a salvação nos becos. Antoninha-me-leva era Eminência nos becos de Corumbá. Senhor, quem encherá os bolsos de guimbas, de tampinhas de cerveja, de vidrinhos de guardar moscas – senão os tontos de beco? E quem levará para casa todos os dias de tarde a mesma solidão – senão os doidos de beco? (Algum doido de beco me descende?) (BARROS, 2000, p. 81). A personagem Bola-Sete é uma dentre tantas figuras populares, de escolha comum a escritores da região fronteiriça de Corumbá, também recriada na poesia de Manoel de Barros, aqui com um aspecto que a memória dos mais antigos evoca, mas que os cronistas não registraram: o veio poético do andarilho torna-se aforismas, que Barros nomeia como filosofia, modulando a expressão como “do beco”, dando ao qualificativo um sentido existencial que transcende o factual, derivado do fato do personagem e da personagem — junto com outras figuras populares, moradores de rua e desocupados — estar sempre em um beco, ou alameda, nas imediações do porto de Corumbá.36 Dentre os muitos questionamentos que nos fizemos antes e durante este estudo, uma interrogação ecoa: qual a intenção poética de Manoel de Barros re-criar tal personagem? 36 Em Ensaios fotográficos, encontramos o verso: Pra compensar tinha laia de poeta. (BARROS, 2007, p. 33). 85 Parece-nos resposta possível que a referência aos becos, às vielas da fronteira física, talvez, seja uma forma de re-colocar em evidência não apenas o espaço geográfico onde Bola-Sete se movimentou, mas também definir o entre-lugar no qual se encontra o eu enunciador do poema ou, ainda, onde o poeta re-interpreta suas identidades: E quem levará para casa todos os dias de tarde a mesma solidão – senão os doidos de beco? (Algum doido de beco me descende?) (BARROS, 2000, p. 81). O beco, nesse poema, pode, também, ser interpretado como o espaço onde a bola do jogo de sinuca é encurralada numa jogada complexa37. Desse modo, ao vate cabe jogar com as palavras e deixar o leitor em uma “sinuca de bico”. Qual o percentual dessa invenção? Ao expressar o que os outros sentem, também o poeta está tornando seu sentimento mais consciente e, por conseguinte, faz com que seus interlocutores reflitam algo sobre si próprios. Para além de qualquer intenção especifica que a poesia possa ter, nos poemas de Manoel de Barros há sempre expressão de algo que apura nossa sensibilidade. Assim como “Cabeludinho” é alter-ego do Barros menino, “Bola Sete” é alter-ego do poeta Manoel de Barros. No poema “A Borra”, da obra Ensaios Fotográficos, o eu-lirico enuncia: A BORRA Prefiro as palavras obscuras que moram nos fundos de uma cozinha — tipo borra, latas,cisco Do que as palavras que moram nos sodalícios — tipo excelência, conspícuo, majestade. Também os meus alter-egos são todos borra, ciscos, pobres-diabos Que poderiam morar nos fundos de uma cozinha — tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego Preto etc. Todos bêbedos ou bocós. E todos condizentes com andrajos. Um dia alguém me sugeriu que adotasse um alter-ego respeitável — tipo um príncipe, um almirante, um senador. Eu perguntei: 37 Embora a tenhamos sempre em nosso horizonte, dado os pressupostos para a pesquisa, não nos apoiamos exclusivamente no traço biográfico para interpretar a produção literária de Manoel de Barros. 86 Mas quem ficará com os meus abismos se os pobres-diabos não ficarem? (BARROS, 2007, p. 61). Para nós, a produção literária barreana apresenta relações com a história de Corumbá, com o contexto que o poema foi produzido. A poesia de Manoel de Barros contém memória pessoal e afetiva recriadas, transfiguradas nas várias personagens e eu-liricos, quando remete a figuras que de fato existiram na Corumbá da infância e da juventude do poeta. Assim, o beco, no poema de Barros, é um espaço metafórico onde as identidades do eu-lírico são firmadas, onde a poesia se presentifica e onde o poeta se re-conhece. Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego Preto e “todos condizentes com andrajos” são matéria de sua poesia. Mesmo sem deixar de considerar as influências de outros poetas, Barros define seu projeto poético ao eleger esses personagens como fonte de poesia. Dessa forma, dialoga com o tempo histórico e o espaço geopolítico onde viveu o personagem Bola Sete e o Barros de outrora. Em outro poema, da obra Poemas Rupestres, o eu-lírico informa: OS DOIS Eu sou dois seres. O primeiro é fruto do Amor de João e Alice. O segundo é letral: É fruto de uma natureza que pensa por imagens, Como diria Paul Valéry. O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidades. O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades frases. E aceitamos que você empregue o seu amor em nós. (BARROS, 2004, p. 45). Assim, os dois seres terão as identidades garantidas se “Algum doido de beco empregar o seu amor em nós”. Sabemos que o nada, o banal, o desprezível são elementos recorrentes na poesia de Manoel de Barros; logo, o beco, o “extremo”, o ínfimo, é a origem do ser letral que se assemelha com um “filósofo de beco”. Ao filósofo é atribuída áurea intelectual de quem percebe o beco como configuração espacial de uma humanidade sem saída. Filósofo do beco é alguém 87 que estuda o limite da existência humana. Mais, ainda – assim nos parece – é o espaço da celebração da liberdade, da interação dos diferentes. O beco é um lugar que eleva o homem até o seu melhor aniquilamento. (BARROS, 2000, p. 81). Logo, os dois seres – o artista-poeta e o ser biológico Manoel – retomam aspectos da realidade para se des-representar ou para re-criar, traduzir e produzir revoluções que se ampliarão em outro tempo e outro espaço. Caso o interlocutor aceite o convite do ser letral – “que você empregue seu amor em nós”. O Barros da obra PCSP não é o mesmo das Memórias. O tempo observado nas suas obras é o limite entre o que é factual e o que é evocação. O trajeto poético percorrido desde a sua primeira obra, PCSP, é revisitado na trilogia das Memórias Inventadas pelo bugre velho que confessa: FONTES Três personagens me ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciências delas. Uma, a criança: dois, os passarinhos: três, os andarilhos. A criança me deu a semente da palavra. Os passarinhos me deram desprendimento das coisas da terra. E os andarilhos, a preciência da natureza de Deus. Quero falar primeiro dos adarilhos, do uso em primeiro lugar que eles faziam da ignorância. Sempre eles sabiam tudo sobre o nada. E ainda multiplicavam o nada por zero – o que lhes dava uma linguagem de chão. Para nunca saber onde chegavam. E para chegar sempre de surpresa. Eles não afundavam estradas, mas inventavam caminhos. Essa a pré-ciência que sempre vi nos andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza. Bem que eu pude prever que os que fogem da natureza um dia voltam para ela. Aprendi com os passarinhos a liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar ter motor nas costas. E são livres para pousar em qualquer tempo nos lírios ou nas pedras – sem se machucarem. E aprendi com eles ser disponível para sonhar. O outro parceiro de sempre foi a criança que me escreve. Os pássaros, os andarilhos e a criança em mim, são meus colaboradores dessas Memórias inventadas e doadores de suas fontes. (BARROS, 2008, I Fontes). 88 O tempo operou mudanças no menino Cabeludinho, alter-ego do poeta. O poeta velho recupera a vida de infância, retomando o passado em dois tempos: o da História e o da Poesia.38 A personagem Bola-Sete é figura popular, ao mesmo tempo, realidade e reinvenção, des-nomeada e nomeada, sem prestígio social e consagrada pela poesia, é alter-ego do poeta. É mendigo, louco e é andarilho; palmilha nas fronteiras, nos espaços intervalares, no beco, nas fissuras, no entre-lugar onde o personagem e a personagem se hibridizam. Acreditamos que, além disso, na produção poética de Manoel de Barros, há um sentido ideológico latente que leva o ser letral a re-criar tais personagens. 38 Nos anexos 27 e 28 apresentamos fotografias do poeta em dois momentos de sua trajetória. CONCLUSÃO Este estudo abordou, no seu início, visões teóricas de diferentes áreas do conhecimento acerca do conceito de fronteira, e apresentou o conceito de fronteira na poética barreana como um entre-lugar resultante da soma do que é concreto e do que é representação, a partir de análise do poema “O muro” e outros poemas que homologam esse sentido. Partindo dessa abordagem, tecemos — no segundo capítulo da pesquisa — considerações sobre a obra de Barros e a História de Corumbá. Para tais considerações valemo-nos de estudos acerca da poética de Barros e de fatos que os cronistas e os historiadores registram e analisam a fim de constatarmos que, na obra barreana, a História se presentifica tornada poesia. Não é proposta poética de Barros contar a história da cidade e de seus habitantes, mas ao re-inventá-los perfaz diluição de fronteiras entre História e ficção. No terceiro capítulo, empreendemos reflexões a partir das figuras recorrentes na produção poética barreana: o migrante, a mulher, a mendiga e o andarilho. Essa análise reitera nosso entendimento de que a produção poética de Manoel de Barros apresenta-se como o entre-lugar do contato, do entrelaçamento sem barreiras, entre o passado e o presente, a realidade e a invenção, o factual e o ficcional. Ao retomarmos, nos diversos livros de Manoel de Barros, os desvalidos, os trastes, os loucos, os trabalhadores humildes, os mendigos, os maltrapilhos, os “bolivianinhos”, os andarilhos e outros excluídos da ordem social, verificamos o grau de sofisticação das engrenagens do capitalismo avançado que, mais que negar a esses indivíduos a existência civil na condição de cidadão, deles — na visão do poeta — extirpa até mesmo a condição de humanidade. Constatamos que a produção literária de Manoel de Barros é atemporal. Mas também podemos observar que o tempo operou mudanças em Nequinho, o Barros menino, e no menino Cabeludinho, alter-ego do poeta. O poeta velho recupera a vida de infância, retomando o passado sob as faces: da História e da Poesia; desse modo, re-cria figuras populares e rememora a História de Corumbá, do Pantanal revelando fronteiras diversas. 90 Constatamos que a produção literária de Manoel de Barros pode ser lida como fronteira que, talvez, marque a passagem da Modernidade para um período ainda não claramente caracterizado pelo cânone. Em sua produção poética, o eu enunciador erige identidades líricas como resultado do vivido, do realizado, do imaginado, do sentimento de lugar, do trajeto percorrido e do limes delineado como entre-lugar. Nos anexos, organizamos os materiais bibliográficos e pictográficos coletados durante a pesquisa. Neles, temos a representação ou a recriação dos personagens que se presentificam na obra de Barros. Nas crônicas, logramos encontrar as mesmas figuras com as quais Barros forjou sua obra; nos registros pictográficos, temos figuras populares similares às recriadas na obra de Manoel de Barros; nas fotografias, temos a paisagem e moradores da Nhecolândia, região da infância do poeta constantemente evocada — embora sem menção explícita — em seus versos. A fronteira, suas gentes e seus territórios aparecem, neste estudo, visitadas sob o prisma do olhar dos poetas, cronistas, historiadores, geógrafos, memorialistas, artistas, fotógrafos anônimos, contadores de histórias. Sob tal prisma, buscou-se preencher sensível lacuna quanto aos estudos literários da região fronteiriça de Corumbá, assim como coligir acervo — mínimo, inicial — para futuros pesquisadores. Acreditamos ter alcançado com a presente dissertação os seguintes resultados: 1. coligir subsídios e material primário para novas pesquisas; 2. abordar tema e enfoque originais quanto aos estudos fronteiriços e quanto à análise da poética de Manoel de Barros; 3. empreender estudos fronteiriços a partir de texto poético, a fim de estender este estudo aos professores de Literatura; 4. discutir o conceito de fronteira como proposição interdisciplinar que considera as obras literárias, a variedade epistemológica e a geografia social — ou seja, o múltiplo, o diverso, o humano; 5. refletir sobre a identidade regional a partir de corpus e referencial em que entrecruzam o histórico e o literário; 6. estudar as fronteiras de Manoel de Barros, evidenciando aspecto pouco iluminado pelas pesquisas na área de literatura, e que se mostrou muito rica para a 91 compreensão da ars poética do escritor e para desvendar o sentido ideológico subjacente à sua poesia. A produção literária de Manoel de Barros, entre outras definições, é também a expressão das emoções e reflexões do poeta diante do mundo, da desumanização, da reificação humana, do sexismo, da miséria, da exclusão, da necessidade da Poesia ao lado das necessidades mais elementares. E isso ocorre na criança, e no adulto, neste ou em outro espaço, em qualquer tempo. Sua literatura parte da imaginação — invenção — e das experiências pessoais e sociais para recriar — não transcrever — a realidade concreta. É arte que recusa o condicionamento do meio, por isso, transgressora e revolucionária. Não existe no vácuo, independe de classificações e de rótulos, nem se destina a protestos políticos. A ars poética barreana, de marcas essencialmente humanas, sustém um compromisso dos mais profundos, visto que, além do lúdico, do entretenimento que proporciona, encerra também outras finalidades. O discurso que re-inventa a figura do andarilho e da mendiga propicia a revelação de uma poesia que dialoga com narrativas e lembranças presentes, também, na obra de outros escritores da região fronteiriça de Corumbá. Entendemos que a poesia de Barros evoca os despossuídos até transformálos, nas figuras da mendiga e do andarilho, em arquétipo de sua mitologia pessoal, com o que elabora crítica à sociedade consumista e capitalista do século XX. Manoel de Barros capta o mundo, como se tivesse antenas de formiga. Pode ter ou não vivenciado determinadas experiências que inventa, mas delas se apodera como se fosse sua. A matéria-prima de sua arte é a própria vida-pintura-cores-traçosimagens-palavra-mendiga-andarilho-fronteira-poesia. Dentre os muitos aspectos que possam interessar aos Estudos Fronteiriços, a produção literária de Manoel de Barros, apesar de não objetivar descrever a região fronteiriça de Corumbá, ao tratar dos deslimites do Pantanal, da linguagem e do humano configurado no homem desse limiar de milênio, proporciona significativos debates acerca de transfigurações, recriações, identidades, ocupação e fronteiras. A mendiga e o andarilho, figuras que integram o espaço das “fronteiras” barreanas, são tornadas paradigma e emblema constitutivos da ars poética do poeta. A mendiga, transmutada na despossuída símbolo, e o andarilho, personificado no peregrino, metáfora de uma visão despojada da existência. 92 Ao bebermos dos vários estudos publicados acerca da produção literária de Manoel de Barros, e, em especial, ao lermos o conjunto da obra do poeta, concluímos que mais que invenção de palavras, mais que autobiografia de quem não perde o sentimento de pertença ao “verdor primal das águas”, a produção literária de Manoel de Barros urge ser leitura fundamental para aqueles que almejam estudar a fronteira, o limes-fratura-hífen, a sutura/entre-lugar, o des, “essa torneira aberta”: — “Qual antes melhor fechar essa torneira, bugre velho...”. 93 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira de. Tornar-se outro: o Topos canibal na literatura brasileira. São Paulo: Annablume, 2002. 295 p. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. Lílio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Ática, 1989. ARISTÓTELES. Arte poética. Trad. Eudoro de Souza. 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São Paulo: Brasil, 1964. 166 p. 149 102 Anexo 1 - continuação 103 Anexo 1- continuação 104 Anexo 1- continuação 105 Anexo 1- continuação 106 Anexo 1- continuação 107 Anexo 1- continuação 108 Anexo 1- continuação 109 Anexo 1- continuação 110 Anexo 1 – continuação 111 Anexo 1 – continuação 112 Anexo 1 – continuação 113 Anexo 1 – continuação 114 Anexo 1 – continuação 115 Anexo 1 – continuação 116 Anexo 1 – continuação 117 Anexo 1 – continuação 118 Anexo 1 – continuação 119 Anexo 2 – Crônica, de Silva Neto Fonte: Silva Neto (1995) “Era uma vez” 120 Anexo 2- continuação 121 Anexo 2- continuação 122 Anexo 3 – Crônica, de Panovich In: Panovich (2007), em “ cada rua um conto e uma saudade.” Arquivo pessoal 123 Anexo 4 – Crônica, de Ulisses Serra In: Serra (1971) “Camalotes e Guavirais” Aquivo pessoal 124 Anexo 4 - continuação 125 Anexo 4 - continuação 126 Anexo 5 – Crônica, de Augusto César Proença In: Proença [s.d]. “Porto da Manga”. Publicada em CB <http://www.cidadebranca.fot.br>. 127 Anexo 5 – continuação 128 Anexo 6 – Lembranças, de Dona Astrogilda Fonte: Arquivo pessoal 129 Anexo 7 – Autorização 130 Anexo 8 – Declaração de Cessão de Direitos de Imagem 131 Anexo 9 – A mendiga, pintura em tela Pessoas desimportantes dão pra poesia qualquer pessoa ou escada. (BARROS, 2001, p. 13). Quadro: Daltro. Maria Konga, pintura em tela. Arquivo pessoal. 132 Anexo 10 – Movimentos de Maria O senhor já me largou na sarjeta, já fez crescer visgo no meu pé [...] (BARROS, 2005, p. 54). Quadro: Daltro. Movimento de Maria Konga – pintura em tela (Imagem cedida). 133 Anexo 11 – Aquarela Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira (BARROS, 2000, p. 67). Quadro: Daltro, Aquarela (Imagem cedida). 134 Anexo 12 – Navis Os loucos de água e estandarte servem demais O traste é ótimo O pobre-diabo é colosso (BARROS, 2001, p. 13). Quadro: Daltro. Navis 150. Pintura em tela (Imagem cedida) 135 Anexo 13 – Boiada No conduzir de um gado, que é tarefa monótona, de horas inteiras, às vezes de dias inteiros – é no uso de cantos e recontos que o pantaneiro encontra o seu ser. Na troca de prosa ou de montada, ele sonha por cima das cercas. (BARROS, 1997, p. 33) Quadro: Daltro. Boiada, pintura em tela (Imagem cedida) 136 Anexo 14 – Travessia No Pantanal ninguém pode passar régua. Sobremuito quando chove. A régua é existidura de limite. E o Pantanal não tem limites (BARROS, 1997, p. 29). Quadro: Daltro. Boiada psicodélica. Pintura em tela (Imagem cedida) 137 Anexo 15 – Lavadeiras Enfim, Cabeludinho, é você mesmo quem está aqui? Onde andarão os seus amigos do Porto de Dona Emília? (BARROS, 2005, p. 35). Quadro: Daltro. Lavadeiras e pipas. Pintura em tela (Imagem cedida) 138 Anexo 16 – Capa de livro Acho que a gente deveria dar mais espaço para esse tipo de saber. (BARROS, 2002, p. 63). Ilustração de capa: Fátima Larica Arquivo Pessoal 139 Anexo 17- Capa de livro Capa da obra Lembranças, de José de Barros.Brasília. Senado Federal, 1987. 92 p. Arquivo pessoal 140 Anexo 18 – Fotografia Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade A gente só descobre isso depois de grande. (BARROS, 2003, XIV). Fotografia: Nhecolândia (1966). Criança no pátio da Fazenda Firme. Arquivo pessoal. 141 Anexo 19 – Curral Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo. Descobri que todos os caminhos levam à ignorância. Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me criam. (BARROS, 2001, p. 103). Fotografia: Nhecolândia (1970). Curral, Fazenda Firme. Arquivo Pessoal. 142 Anexo 20 – Navegando de trator Dez anos de seca tivemos. Só trator navegando, de estadão, pelos campos. (BARROS, 1997, p. 31). Fotografia: Nhecolândia [s.d]. Peões navegando de trator na Nhecolândia. Arquivo pessoal 143 Anexo 21 – Lida de pantaneiro Mas na hora do pega-pra-capar, pantaneiro puxa na força, por igual.No lampino do sol ou no zero do frio. (BARROS, 1997, p. 34) Fotografia: Nhecolândia (1952) – Charqueada de cachaço na Fazenda Firme. Arquivo Pessoal. 144 Anexo 22 – Bugre Velho Do que não sei o nome guardo as semelhanças. Não assento aparelhos para escuta E nem levanto ventos com alavanca. [...] Desculpem-me a falta de ignorãças. (BARROS, 2001, p. 45). Fotografia: Nhecolândia (1970). Arquivo Pessoal. 145 Anexo 23 – Barros e Bernardo É muito apoderado de chão esse Bernardo. Seu instinto seu faro animal vão na frente. No centro do escuro se espraiam ( BARROS, 1997, p. 41). Fonte: Revista Poesia Sempre. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Ano 13, Número 21, 2005, p. 47. in: Cruz (2009, p.115). 146 Anexo 24 – O fazedor de inutensílios Achava que os passarinhos são pessoas mais importantes do que aviões (BARROS, 2003). Fonte: Revista Veja Centro-Oeste, Ano 24 – N. 43, 23 out , 1991, p. 3. - Arquivo Pessoal. 147 Anexo 25 – Artigo sobre quase nada Só quem está em estado de palavra pode enxergar as coisas sem feitio (BARROS, 2002, p.35). Fonte: Folha de Londrina. Terça-feira, 15 de outubro de 1996. Folha 2, p. 4. 148 Anexo 26 – O poeta Sou um sujeito cheio de recantos. Os desvãos me constam, Tem hora leio avencas. Tem hora, Proust. Ouço aves e beethovens. Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin (BARROS, 2000, p.45). Fonte: Folha de Londrina. Terça-feira, 30 de outubro de 1996. Folha 2, p. 1. 149 Anexo 27 – Manoel de Barros. O filósofo Kekkegaard me ensinou que cultura é o caminho que o homem percorre para se conhecer. Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que só sabia que não sabia nada. Não tinha as certezas científicas (BARROS, 2006, XIV). Fonte: Revista Veja Centro-Oeste, Ano 24 – N. 43, 23 out , 1991, p. 3. - Arquivo Pessoal. 150 Anexo 28 – O poeta e a família In: BARROS, Abílio Leite de. Pantanal pioneiros: álbum gráfico e genealógico de pioneiros na ocupação do Pantanal. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 237-238, 270 p. 151 Anexo 29 – Dados quantitativos 152 ÍNDICE Folha de rosto ..................................................................................................... 2 Página de aprovação .......................................................................................... 3 Dedicatória .......................................................................................................... 4 Agradecimentos .................................................................................................. 5 Epígrafe .............................................................................................................. 6 Resumo ............................................................................................................... 7 Abstract ............................................................................................................... 8 Sumário ............................................................................................................... 9 Introdução ........................................................................................................... 10 1 Concepções de Fronteira ................................................................................ 17 1.1 Fronteiras: limes e dissociação ..................................................................... 18 1.2 A fronteira como constructo da identidade ................................................... 27 1.3 A fronteira: entre-lugar .................................................................................. 30 2 A obra de Barros e a História de Corumbá ..................................................... 34 2.1 Os achadouros da poética e do poeta .......................................................... 35 2.2 Do esplendor ao crepúsculo ......................................................................... 37 2.3 O eu-lírico em palimpsesto ........................................................................... 39 2.4 Poesia, veia da História; História, o veio da Poesia ..................................... 44 3. Recriação Poética de figuras populares na obra de Manoel de Barros .......... 49 153 3.1 O migrante .................................................................................................... 52 3.2 Personagens femininas ................................................................................ 55 3.3 A mendiga ..................................................................................................... 66 3.4 O andarilho ................................................................................................... 75 4 Personagens reais e ficcionais em Manoel de Barros ..................................... 83 Conclusão ........................................................................................................... 89 Referências ......................................................................................................... 93 Anexos ................................................................................................................ 100 Anexo 1 – Ensaio histórico, de Renato Baez ...................................................... 101 Anexo 2 – Crônica, de Silva Neto ....................................................................... 119 Anexo 3 – Crônica, de Panovich ......................................................................... 122 Anexo 4 – Crônica, de Ulisses Serra .................................................................. 123 Anexo 5 – Crônica, de Augusto César Proença ................................................. 126 Anexo 6 – Lembranças, de Dona Astrogilda ...................................................... 128 Anexo 7 – Autorização ........................................................................................ 129 Anexo 8 – Declaração de Cessão de Direitos de Imagem ................................. 130 Anexo 9 – A mendiga, pintura em tela ................................................................ 131 Anexo 10 – Movimentos de Maria ...................................................................... 132 Anexo 11 – Aquarela .......................................................................................... 133 Anexo 12 – Navis ................................................................................................ 134 154 Anexo 13 – Boiada .............................................................................................. 135 Anexo 14 – Travessia ......................................................................................... 136 Anexo 15 – Lavadeiras ....................................................................................... 137 Anexo 16 – Capa de livro .................................................................................... 138 Anexo 17 – Capa de livro .................................................................................... 139 Anexo 18 – Fotografia ......................................................................................... 140 Anexo 19 – Curral ............................................................................................... 141 Anexo 20 – Navegando de trator ........................................................................ 142 Anexo 21 – Lida de pantaneiro ........................................................................... 143 Anexo 22 – Bugre velho ...................................................................................... 144 Anexo 23 – Barros e Bernardo ........................................................................... 145 Anexo 24 – O fazedor de inutensílios ................................................................. 146 Anexo 25 – Artigo sobre quase nada .................................................................. 147 Anexo 26 – O poeta ............................................................................................ 148 Anexo 27 – Manoel de Barros ............................................................................ 149 Anexo 28 – O poeta e a família .......................................................................... 150 Anexo 29 – Dados quantitativos ......................................................................... 151 Índice .................................................................................................................. 152