A História de Hades, Perséfone
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A História de Hades, Perséfone
CISC CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA A História de Hades, Perséfone e o Metrô. Denize Dall Bello Muitas coisas realmente importantes na vida não podem ser quantificadas e, neste sentido, a ciência é metáfora. Sabemos que a metáfora ajuda muito no conhecimento e nas relações poéticas da vida, nos sentidos de prazer. (...) A quantificação não indica nada sobre as qualidades. As qualidades expressam-se por imagens que passam pelo conhecimento mitológico e poético. (Edgard Morin). 1 Conforme o título aponta, as imagens por mim escolhidas (se) pretendem contar parte das muitas experiências que tenho "sentido" na cidade de São Paulo. O episódio "viajem de e pelo metrô" e alguns dos sentidos construídos a partir desse acontecimento relacionam-se a uma série de outros "anteriores e posteriores" a esse. Seria impensável tentar, nesse texto, reuni-los e relacioná-los um a um; então, opto por relatar somente a "minha primeira descida às profundezas de um outro mundo." O Metrô: "achados e perdidos" Uma pequena parte da história da construção do metropolitano de São Paulo pode ser facilmente encontrada no endereço eletrônico www.metrosp.com.br Olhei algumas das seções que falavam sobre o nascimento do metrô com a linha azul em 1973. Alguns anos mais tarde, duas novas linhas foram construídas- linha vermelha (1988) e linha verde (1991)- a fim de que se pudesse cruzar com maior rapidez bairros muito afastados e diferentes. Disponíveis estavam/estão também informações gerais sobre sistemas de rádio, freios, som, refrigeração, sinalização, etc. 2 Contudo, nada disso me impressionou tanto quanto a leitura de um curtíssimo registro sobre o medo e a desconfiança de alguns freqüentadores e moradores da região central, também alguns padres do Mosteiro de São Bento que , na época, sentiram ao imaginar que, a alguns metros mais adiante e bem abaixo dos monumentos históricos, prédios de escritórios e caixas-fortes nos subsolos dos bancos, "gigantescos tatuzões" estavam supostamente "devorando" a terra. Poços e buracos abertos dentro da terra serviriam para a construção de longas trilhas –por certo, muito mais escuras que claras. Essa seria a "morada" do metrô: aquele que habita no subterrâneo. Há alguns meses, encaminhando-me para uma das suas 46 estações, desci as escadas de não sei qual estação e "vi" espantada que o homem "continuava a morar", mesmo que de passagem, na sua "casa primordial". As paredes estavam preenchidas com pinturas coloridas e o espaço tinha luz. Parei e fingindo muito mal um "ar de indiferença", olhei assustadíssima dois buracos que vinham não sei de onde e que, a uma certa distância dos olhos, sumiam. A pesar de, com e por causa do sonho iluminista para o progresso da civilização humana, esse "meio de transporte" me conduziu a ele: Hades (sua história e a de Perséfone). Antes de reproduzir o pequeno texto que escrevi correndo após a minha primeira viagem de metrô, gostaria de citar um trecho iluminador retirado do ensaio “Ariadne, a Senhora do Labirinto”, escrito por Chris Downing em 1980 e que diz assim: Pela minha experiência, os mitos que invadimos mais profundamente não são os que 3 escolhemos a partir de algum livro de mitos. Ao contrário, de algum modo profundo, esses mitos é que nos escolhem.(p.158) http://www.lourencocastanho.com.br/estacao/pag3.htm No homem tudo é caminho perdido.(Gaston Bachelard) ...O metrô é um grande animal subterrâneo, mitológico, sem forma, só feito de som. O urro forte vem em forma de som e arrebata a gente, empurra p/ frente numa velocidade a jato. Chega descabelado e nos leva pras profundezas do fundo do mundo e quando a gente pensa que ele vai nos cuspir com brutidão, ele pára e com um empurrãozinho suave, levinho, diz: "Anda menina, sobe, sobe para o céu, para o ar." Depressa eu desço dele e subo os milhares de degraus das escadas e vejo um outro mundo: o da superfície.(Não dá tempo p/ olhar pra trás) ...Me senti Perséfone raptada pelo deus das profundezas e que volta a cada estação do ano para a terra. 4 De onde vim, Cuiabá/Mato Grosso, não há como escapar do sol, da intensa claridade e das ruas, pouco largas, que vão dar sempre em outras ruas. Caminhando por essa "superfície horizontal", dificilmente a visão "topa" com ruas inteiras de prédios ou então com escadas que entram dentro da terra. Na minha cidade, não tem o metrô e eu já havia "me esquecido" de que era possível caminhar e, de certo modo, viver no subterrâneo. Em minha breve narrativa, que poderia ser dividida em mais ou menos três curtos blocos interdependentes, começo minha leitura pelo último, onde fica vivamente expressa minha vontade e busca pelas viagens internas como parte daquilo que entendo por "processo de enrolamento sobre si mesmo", conforme P.Teilhard de Chardin ou , então, no dizer de Edgar Morin, como parte do processo de "complexificação dos vínculos". Hades, Perséfone, mundo inferior são imagens que se intercomunicam. Hades, conhecido como "o invisível"; Perséfone, a virgem condenada a morrer e o mundo para onde vão, o mundo inferior, refere-se à alma. Quando parada na estação junto com tantas outras pessoas, de início senti uma leve corrente de vento passando por mim acompanhada de um bramido distante e, à medida que se aproximava mais e mais do lugar onde me encontrava , mais forte e perturbadora essa presença ficava. Então, depois de uma longa curva 5 , vi dois grandes olhos luminosos e faiscantes saírem de dentro de um dos buracos negros. Era o metrô ou Hades e vinha me buscar. Ao fugir comigo por entre os infinitos corredores escuros era como se estivéssemos descendo ao "mundo inferior", à alma e ao feminino. As viagens ao interior não são viagens fáceis de se fazer. Despertam sentimentos, sensações, pensamentos paradoxais e eu estava, agora, cheio deles. Patricia Berry (1980) fala dessa dor em aceitarmos a nossa própria violação e que, conforme minha descrição e no mito, eu, agora Perséfone, precisava ser rapidamente raptada. Era necessário que a violação acontecesse para que eu percebesse que as viagens deveriam dar-se não só no mundo das "superfícies quentes", da "vegetação", mas, principalmente, que eu passasse a me ocupar das profundezas, da noite e das sombras e das verticalidades, também. Era preciso, então, através da experiência com o metrô, que eu realizasse simbolicamente descidas, fosse arrancada das minhas certezas e do "mundo de Deméter". A meu ver, quando "decidimos" entrar em contato como o nosso mundo subterrâneo, a sensação é essa: a de sermos raptados. "A virgem condenada à morte", vive, porque o metrô ou Hades aproxima-se muito mais a uma longa serpente que liga "o visível ao invisível", "o subterrâneo à superfície" que propriamente a algo que desvincula e que , portanto, mata. O metrô não foi egoísta retendo-me nos seus túneis. Ao escapulir de onde estávamos para outros 6 espaços-tempo, foi inevitável que a uma certa altura do trajeto parasse numa determinada estação e me empurrasse para cima novamente, fazendo-me compreender que esses movimentos são movimentos de envolvimento e de distanciamento; são os dois lados do processo de vinculação, de hipercomplexificação do homem. O Metrô é uma Serpente que sonha. Bachelard (1990), no capítulo destinado a "A Serpente", encarregou-se de extrair de vários textos literários, poemas e contos, inúmeras imagens e metáforas que surgiram do arquétipo da serpente. Cita os anéis, a corda, a fita, o chicote, o rio como algumas dessas variações. A essa relação de imagens, junto a imagem do metrô como sendo também uma outra variação desse modelo. O metrô me apareceu como um "animal mitológico descabelado"; uma serpente feita de longa cabeleira vermelha, puro fogo. A sensação de ter sido tragada pelas portas e levada "até o fundo do mundo" é uma forte imagem dinâmica, própria da serpente. Do mesmo modo que esse réptil, além de perfurar a terra; o metrô aparece e desaparece muito ligeiro em baixo dos bairros da cidade. A propósito desses processos de deslocamento da serpente, Bachelard (1990) explicará que dizer onde inicia o princípio de seu deslocamento e onde desaparece, torna-se uma tarefa bastante embaraçosa. 7 Muito embora "a serpente seja um ser nu", na minha imaginação, o metrô-serpente necessita ter cabelos, porque possui um pouco de dragão. No lugar de asas ou de escamas, cabelos. Pareceume que, a certa velocidade, o metrô desprenderia seu pesado corpo de aço metálico dos trilhos e ensaiaria vôos rasantes magistrais. Sinto que tudo isso dificilmente seria percebido, caso o metrô não desprendesse de si o fascinante “bramido” ouvido durante os trajetos percorridos pelos viajantes dentro da terra. O som "hadeano", escuro e estremecedor, invade-nos de uma maneira bastante singular. Enquanto no carro ou no ônibus podemos impedir que parte da rua entre dentro dos veículos; com o metrô isso não acontece, porque ao parar nas estações e recolher as pessoas, essa serpente-máquina parte soberana, abafando vozes humanas, demais sons e ruídos. Se num futuro próximo fosse possível reduzir o poder desse "urro", o metrô perderia bastante da sua capacidade de nos "encantar". Em minha imaginação, o metrô é isso: uma grande serpente que sonha a gente. 8 Bibliografia: ALMEIDA, Maria da Conceição de. Complexidade, do casulo à borboleta. In: CASTRO, Gustavo de; CARVALHO, Edgard de Assis; ALMEIDA, Maria da Conceição de. Ensaios de Complexidade. Porto Alegre: Editora Sulina,1997. CHARDIN, P.Teilhard. O lugar do homem na natureza. Lisboa: Instituto Piaget, Lote 544. BACHELARD, Gaston. A Terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes,1990. BAITELLO, Norval. O animal que parou os relógios. São Paulo: Annablume.2a.ed.1999. BAITELLO, Norval. A cultura do ouvir. In: BENTES, I; ZAREMBA, L.(org). Rádio Nova. Constelações da radiofonia contemporânea. Rio de Janeiro: Publique, 1999. ________________________. Aulas:fevereiro/junho. São Paulo: PUC, 2001. BERRY, Patricia. O rapto de Deméter/Perséfone e a neurose. In: HILLMAN, James. Encarando os Deuses. São Paulo:Cultrix,1980. CONTRERA, Malena. O Pânico na mídia. São Paulo: PUC, 2001.(Tese de Doutorado) DOWING, Chris. Ariadne, a senhora do labirinto. In: HILLMAN, James. 9 Encarando os Deuses. São Paulo: Cultrix, 1980. MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. PESSIS-PASTERNAK, Guita. Do Caos à Inteligência Artificial. 2.ed.São Paulo: Unesp, 1993. Signature Not Verified Digitally signed by Cisc DN: cn=Cisc, o=Centro Interdisciplinar de Semiotica da Cultura/Midia, c=BR Date: 2002.06.18 17:00:25 -03'00' Cisc 10