DIREITO DE PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE: novos
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DIREITO DE PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE: novos
Coordenadores Marcos Wachowicz João Luis Nogueira Matias DIREITO DE PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE: novos desafios para o Século XXI Fundação Boiteux Florianópolis 2010 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI D598 Direito de propriedade e meio ambiente : novos desafios para século XXI [Recurso eletrônico] / Marcos Wachowicz, João Luis Nogueira Matias (coordenadores). – Florianópolis : Fundação Boiteux, 2010. 1 CD-ROM Inclui bibliografia ISBN:978-85-7840-031-6 1. Direito de propriedade. 2. Direito ambiental. 3. Empresas – Ética profissional. 4. Economia – Aspectos morais e éticos. 5. Meio ambiente. I. Wachowcz, Marcos. II. Matias, João Luis Nogueira. CDU: 347.78 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 Editora Fundação Boiteux Conselho Editorial Luiz Carlos Cancellier de Olivo João dos Passos Martins Neto Eduardo de Avelar Lamy Horácio Wanderley Rodrigues Miriam Marques Moreira Reibnitz Secretária executiva Thálita Cardoso de Moura Capa, projeto gráfico Studio S Diagramação e revisão Heloísa Gomes Medeiros [email protected] Thais dos Santos Casagrande [email protected] Endereço UFSC – CCJ - 2º andar – Sala 216 Campus Universitário – Trindade Caixa Postal: 6510 – CEP: 88036-970 Florianópolis – SC E-mail: [email protected] Site: www.funjab.ufsc.br 2 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI SUMÁRIO PREFÁCIO.................................................................................................................................................................7 PARTE I – PROPRIEDADE....................................................................................................................................9 A PROPRIEDADE E A ÉTICA EMPRESARIAL: A DISTINÇÃO ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E A TEORIA DA SOCIAL RESPONSIBILITY........................................................................................................10 João Luis Nogueira Matias O CASO MAYAGNA INTERAMERICANO DE AWAS TINGNI DIREITOS CONTRA HUMANOS: A NICARÁGUA DEMARCAÇÃO DE PERANTE TERRAS O SISTEMA ANCESTRAIS INDÍGENAS.................................................................................................................... .........................................31 Jayme Benvenuto A TUTELA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL: COMPLEXIDADES E DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI............................................................................................................................................................................50 Marcos Wachowicz PROPRIEDADE INTELECTUAL, VIDA, SAÚDE E MEIO AMBIENTE............................................................62 Afonso de Paula Pinheiro Rocha PROPRIEDADE INTELECTUAL, MEDIDAS DE FRONTEIRA E PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO: EM BUSCA DO EQUILÍBRIO ENTRE INTERESSE PÚBLICO E DIREITO DOS TITULARES.............................86 Heloísa Gomes Medeiros O PORTEIRO E O POLICIAL: DIREITOS AUTORAIS E CONTROLE SOCIAL NA INTERNET..............................................................................................................................................................107 Alexandre Pesserl 3 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI PARA ALÉM DAS PLANTAS: AS RELAÇÕES ENTRE BIODIVERSIDADE, DIREITO AUTORAL E DIVERSIDADE CULTURAL COMO CAMINHO PARA A SUSTENTABILIDADE.........................................120 Guilherme Coutinho Silva Vivian C. K. Dombrowski A PROPRIEDADE E O DIREITO À MORADIA..................................................................................................138 Guilherme Ricken Kleiber Gomes Reis O SIM E O NÃO NA ORDEM ECONÔMICA: IRONIA, PROPRIEDADE E LIVRE INICIATIVA A PARTIR DOS PARADOXOS NORMATIVOS DO TEXTO CONSTITUCIONAL DE 1988.............................................154 Mário André Machado Cabral O OLHAR DE ADVOGADOS (AS) POPULARES: O DIREITO À TERRA E À PLURALIDADE DE MOVIMENTOS SOCIAIS......................................................................................................................................175 Martha Priscylla Monteiro Joca Martins Luciana Nogueira Nóbrega A PROTEÇÃO INTELECTUAL DA BIODIVERSIDADE DA AMAZÔNIA E NECESSIDADE DO COMBATE À BIOPIRATARIA...................................................................................................... ............................................205 Martasus Gonçalves Almeida HÁ UM DIREITO FUNDAMENTAL À FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE?...........................................221 Daniel Gomes de Miranda PARTE II – PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE.........................................................................................234 APROXIMAÇÕES E DIVERGÊNCIAS ENTRE MEIO AMBIENTE E DIREITOS HUMANOS NO CENÁRIO INTERNACIONAL.................................................................................................................................................235 Danielle Annoni Fernanda da Silva Lima A SEGURANÇA SANITÁRIA E O REGULAMENTO SANITÁRIO INTERNACIONAL................................271 Amanda Silva Madureira 4 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO NOS 20 ANOS DA CONSTITUICAO BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DA CLÁUSULA DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO ECOLÓGICO A PARTIR DE CASOS CONCRETOS..........................................................................................283 Carolina Medeiros Bahia Fábio Fernandes Maia COMPATIBILIDADE DA PROPRIEDADE URBANA COM A PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE – UM ESTUDO SOBRE A UTILIZAÇÃO DO IPTU COMO INSTRUMENTO FISCAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL..........................................................................................................................................................301 Denise Lucena Cavalcante Ana Carolina Ponte Vidal COMÉRCIO vs. MEIO AMBIENTE: SOBRE O ARTIGO 27.3(b) DO ACORDO TRIPS E A CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA.................................................................................................................319 André Soares Oliveira ASPECTOS EXTRAFISCAIS DAS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS E POSSIBILIDADES DE INSTITUIÇÃO DE TRIBUTOS AMBIENTALMENTE ORIENTADOS NO BRASIL........................................................................335 Maíra Acotirene Dario da Cruz VALORAÇÃO DE RECURSOS AMBIENTAIS PARA FINS DE DESAPROPRIAÇÃO: UMA ANÁLISE DO ARTIGO 120, § 4º DO CÓDIGO AMBIENTAL DE SANTA CATARINA...........................................................358 Reginaldo Pereira DESENVOLVIMENTO URBANO E O DESAFIO DA PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE NATURAL EM FORTALEZA...................................................................................................................................................377 Ana Stela Vieira Mendes Henrique Botelho Frota NOVOS SUJEITOS COLETIVOS DE DIREITO E DIREITO À CIDADE: A ATUAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA ELABORAÇÃO DO PLANO DIRETOR DE FORTALEZA.........................................................403 Christianny Diógenes Maia Henrique Botelho Frota O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE COMO UM DEVER AMBIENTAL DE TODOS OS SERES HUMANOS: A IMPORTÂNCIA DA EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA AMBIENTAL PELO O HOMEM.......................................423 Daise Oliveira Magalhães 5 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE: A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PONDERAÇÃO E DA PROPORCIONALIDADE PARA SOLUCIONAR COLISÕES NORMATIVAS À LUZ DO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL.........................................................................................................................................440 Germana Parente Neiva Belchior O DIREITO AMBIENTAL E ECONÔMICO NA PRODUÇÃO DE PLANTAS ALÓGAMAS TRANSGÊNICAS...................................................................................................................................................468 Cristiane Derani Patrícia Santos Précoma Pellanda O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL APLICADO AO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL............................................................................................................................................................487 David Barbosa de Oliveira BIODIVERSIDADE E PROPRIEDADE INTELECTUAL: O CASO DA ―TERRA PRETA‖ ENCONTRADA NA AMAZÔNIA E A TITULARIDADE DO DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL...............................503 Amanda Queiroz Sierra Carla Sofia Pereira 6 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI PREFÁCIO O livro Direito de Propriedade e Meio Ambiente: novos desafios para o século XXI vem na continuidade das pesquisas realizadas no âmbito do projeto de integração dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. Assim é que a presente obra condensa as os trabalhos realizados no Brasil e no exterior pelos professores e pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e da Universidade Federal do Ceará – UFC. Cabe aqui evidenciar que o PROJETO CASADINHO do CNPq é que possibilitou mobilidade e a reunião dos participantes dos Programas de Pós-Graduação das duas universidades. Os Direitos de Propriedade sobre coisas materiais e imateriais tutelam os bens mais essenciais para o desenvolvimento da sociedade contemporânea ganhando relevo e novas dimensões teóricas. O Meio Ambiente como se verá nos temas escolhidos delineiam novos contornos da disciplina em suas mais variadas matizes doutrinarias. A pesquisa agora publicada na presente obra coletiva aglutina temas de ampla discussão no país e no exterior na área do Direito da Propriedade e Meio Ambiente. Nos diferentes artigos aqui coletados e para uma melhor sistematização, optou-se por uma estrutura em duas partes: A primeira parte contempla essencialmente estudos sobre o Direito de Propriedade, abordando temas como a propriedade empresarial, a função social da propriedade, a ordem econômica, o direito à moradia e novas formas de propriedade, em especial a propriedade intelectual. A segunda parte contempla estudos sobre o Direito de Propriedade e Meio Ambiente na qual se analisa as aproximações e divergências entre o meio ambiente e direitos humanos no cenário internacional, como também, questões sobre o Estado de Direito Ambiental, questões tributárias ambientais, a função sócio-ambiental da propriedade e ambientalismo cultural. 7 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Os artigos agora publicados cumprem com excelência o aprofundamento das pesquisas devotadas aos Direito da Propriedade e Meio Ambiente, bem como provocam debates sobre seus fundamentos constitutivos e matizes ideológicas. Nosso agradecimento a todos que contribuíram direta e indiretamente para a conclusão desta empreitada, evitando a menção de nomes a fim de não incorrer em omissão indesculpável. Entrega-se esta obra coletiva à comunidade acadêmica, no desejo de instigar o debate, para o fortalecimento e evolução do pensamento jurídico. O resultado o leitor tem agora diante de si. Marcos Wachowicz Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC João Luis Nogueira Matias Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em Direito na Universidade Federal do Ceará – UFC 8 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I PARTE I PROPRIEDADE 9 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A PROPRIEDADE E A ÉTICA EMPRESARIAL: A DISTINÇÃO ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E A TEORIA DA SOCIAL RESPONSIBILITY João Luis Nogueira Matias1 SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais. 2. A teoria da ―social responsibility‖: caracterização e críticas. 2.1 A visão crítica de Robert Reich e Peter Barnes. 3. A função social da empresa: princípio jurídico decorrente da função social da propriedade. 3.1 A função social da empresa como princípio jurídico. 3.2 A compatibilização entre a busca pelo lucro e a atuação ética. 3.3. A aplicação do princípio da função social da empresa. 4. A distinção entre as teorias: diferentes aspectos da ética empresarial. 5. Conclusão. RESUMO Contemporaneamente a doutrina tem discutido a atuação empresarial em padrões éticos, em busca de novos paradigmas para o exercício da atividade empresarial. No direito NorteAmericano, a teoria mais utilizada para justificar tal procedimento é a teoria da ―Social responsibility‖, embora a sua aceitação não seja unânime. O mesmo fundamento não pode ser utilizado no direito nacional, cuja justificativa para o novo comportamento emrpesarial é definido pela função social da empresa. Merecem ser destacados tanto a origem diferenciada de ambas as teorias como a diferente conformação dos ordenamentos em exame. Palavras-chave: Função social da empresa. Teoria da social responsibility. Ética nos negócios. ABSTRACT Nowadays the doctrine has proposed an ethical way for doing business. In the North American law, the most prestigious theory about this is ―Social responsibility‖, though there is not consensus about it. That theory is not the best basement in the Brazilian Law, where the same argument can not be used. The best basement in Brasil for the exigence of the new way doing business is the firm social function. Must be considered the distinct origin of the theories as the different shape of the legal systems. 1 Juiz Federal. Professor do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFC.Coordenador do Projeto Casadinho UFC/UFSC/CNPq. Doutor em Direito Público pela UFPE (2003). Doutor em Direito Comercial pela USP (2009). 10 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Key Words: Social responsibility. Firm social function. Ethics and business. 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Contemporaneamente caminha-se para a afirmação de consenso sobre a necessidade da atuação empresarial em padrões éticos, o que importa na exigência de comportamento que não leve à busca do lucro pelo lucro, a qualquer preço. Postula-se que o exercício da atividade econômica empresarial seja realizado em padrões diferenciados, com o respeito aos interesses daqueles que se relacionam com a sociedade. Inúmeras teorias procuram fundamentar a exigência dos novos padrões de comportamento, entre as quais assumem destaque as teorias da função social da empresa e da ―social responsibility‖, de origem norte-americana, que com ela não se confunde. Ao longo do presente trabalho, objetiva-se a fixação dos pontos de distinção entre as teorias, questão que se reveste de importância prática, uma vez que há corrente doutrinária que objetiva identificá-las, em postura nitidamente de caráter ideológico, com flagrantes prejuízos para a efetividade da função social da empresa no direito nacional. Parte da doutrina parece vincular a teoria da função social da empresa à teoria da social responsibility, entretanto, a construção teórica das doutrinas da função social no Brasil e da responsabilidade social da empresa, no direito norte americano, foi inteiramente diversa, embora motivada por fatores assemelhados. Entretanto, nada justifica a sinonímia ou identificação de postulados, como será exposto no trabalho. 2. A TEORIA DA ―SOCIAL RESPONSIBILITY‖: CARACTERIZAÇÃO E CRÍTICAS Decorrente da noção de ―responsibility‖, do Commow Law, a teoria implica na imposição de deveres positivos às sociedades empresariais. No vernáculo, a expressão ―responsabilidade social‖ é a que mais tem sido usada para expressar as idéias a ela concernentes.2 A discussão em torno da teoria começou a ser esboçada no direito norte-americano a partir da decisão proferida pela Suprema Corte de Michigan, no caso envolvendo os irmãos Dodge versus Henry Ford e Ford Motor Company, em 1919. 3 Após, ganhou grande proporção 2 ASHEY, Patrícia Almeida (Coord.). Ética e responsabilidade social nos negócios. São Paulo: Saraiva, 2002. Foi reconhecido o direito à distribuição dos lucros requerida pelos postulantes, mas não realizada intervenção na administração da companhia, como requerido. Decisão disponível em: LAWSCHOO. Disponível em: <http://lawschool.westlaw.com>. Acesso em: 22 out. 2008. 3 11 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I e passou a compor os debates sobre o modelo de sociedades anônimas americanas, centrado de forma excessiva no mercado, privilegiando a obtenção de lucro em curto prazo. Através da teoria, o que se pretende é motivar as empresas a dedicarem mais atenção aos diversos interesses que podem ser identificados na sua atuação, tais como dos fornecedores, credores, meio ambiente, empregados, etc.4 Através da teoria, o que se pretende é motivar as empresas a dedicarem mais atenção aos diversos interesses que podem ser identificados na sua atuação, tais como dos fornecedores, credores, meio ambiente, empregados, etc. Pode-se entender a responsabilidade social, portanto, como a adoção, por parte das empresas, ―de objetivos econômicos, ambientais e sociais, além daquele de dar lucro a seus acionistas‖.5 6 Na concepção de Almeida e Bessa, através da teoria, novas perspectivas para a atuação empresarial são previstas: abre-se caminho para uma nova forma de gestão empresarial mais voltada à interação entre a empresa, a sociedade civil e o Estado, para contribuir no desenvolvimento da sociedade por meio de ações destinadas a suprimir ou atenuar as suas principais carências, que passa a ser denominada cidadania corporativa, responsabilidade social corporativa ou responsabilidade social das empresas.7 Predica a teoria que a modificação de mentalidade, que seria benéfica às empresas pelo forte apelo mercadológico nela inserido, deveria ser alcançada com a adesão a programas de 4 HESS, David. Social reporting: a reflexive Law apprroach to corporate social responsiveness. The Journal of Corporate Law, Iowa, v. 25, n. 1, p. 41-84, outono 1999. 5 SANTOS, Aline de Menezes. Reflexões sobre governança corporativa no Brasil. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo: Malheiros (Nova Série), XLII, n.130, p.180-206, abr./jun, página 203-204. 6 A doutrina tem apontado que o conceito de responsabilidade social tem assumido feição ambígua: ―En el estado actual de la cuestión, la expressión reconoce al menos tres sentidos. Por um lado, responsabilidad social empresaria implica reforzar los estándares éticos de la actuación de la empresa, como um modo de assegurar el cumplimiento de las leyes y la satisfacción de los deberes de lealtad y diligencia de los administradores. Este aspecto instrumental de la responsabilidad social empresaria no parece ser problemático, y encaja perfectamente em la órbita del art. 59, LSC. En un segundo sentido, aunque com muchos matices, responsabilidad social empresaria implica comprometer la actuación empresaria directamente con la comunidad, sea para incrementar los activos reputacionales evidenciando un compromisso com la sociedad, o para generar um ambiente que favorezca el crecimiento de la empresa. Em otras palabras, se trata de la responsabilidad social empresaria em sentido estratégico. Aunque más problemático porque los benefícios pueden ser difíciles de alinear com las inversiones requeridas, en tanto apunta directamente a la satisfacción del interes social, sigue encajando, aunque con esfuerzo, dentro de la Ley de Sociedades Comerciales. En un tercer sentido, la responsabilidad social empresaria se plantea como un entendimiento de que la actividad empresaria necessariamente precisa generar valor humano. Se trata de um imperativo categórico, em términos Kantianos. los administradores se embarcam en um curso de acción determinado porque es correcto hacerlo, aunque no se atiendan los intereses de los accionistas. Es la responsabilidad, social empresaria en sentido intrínseco y se halla em las antípodas de la legislación sobre sociedades comerciales, Al menos em uma lectura aislada respecto del ordenamiento jurídico‖. LUCHINSKY, Rodrigo S., op. cit., 2006, p.257-258. Também apontando três possíveis significados para a idéia de responsabilidade social: ENDERLE, Georges. Algunos vínculos entre la ética corporativa y los estúdios de desarollo. In: KLISKSBERGO, Bernardo (Comp.). Éticas y dessarollo. La relación marginada. Buenos Aires: El Ateneo, 2002, p.89-110. Seguindo a classificação dos autores, cuja abordagem é feita no direito argentino, a perspectiva do presente trabalho privilegia o segundo sentido de responsabilidade social. 7 ALMEIDA, Caroline Sampaio de; BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. Responsabilidade social das empresas: um enfoque a partir das sociedades anônimas. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, n.8, p.113-130, jul./dez. 2007, p.117. 12 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I voluntariado, publicação de balanço social, incentivo à ética empresarial e participação no processo de desenvolvimento auto-sustentado do país. 8 2.1 A visão crítica de Robert Reich e Peter Barnes Muitos são os críticos da doutrina,9 entre eles Robert Reich, que expõe argumentos coerentes, embasados na realidade norte-americana.10 Parte o autor da constatação do que ele chama de ―supercapitalismo‖, sistema econômico que seria atualmente prevalente nos Estados Unidos, em que os consumidores e investidores são revestidos de poderes absolutos, como decorrência dos avanços tecnológicos, da globalização e da sofisticação dos meios de informação, o que torna a concorrência muito mais feroz, impossibilitando condutas empresariais que não visem o lucro. Acrescenta que a supervalorização da importância de consumidores e investidores tem acarretado, paradoxalmente, o desprestígio da condição individual de cidadão. O poder político, segundo o autor, sofre muito mais interferência dos lobistas profissionais a serviço das grandes empresas do que do eleitor individual, ou das associações de eleitores, que passam a ter o seu poder de influência diminuído. Acresce que a demanda por posturas mais éticas e pelo reconhecimento de interesses diversos no contexto da empresa decorre da impossibilidade de atendimento dos anseios dos indivíduos como cidadãos, por parte dos entes públicos, anotando que ―a onda de interesse pela responsabilidade social das empresas se relaciona com a diminuição da confiança na democracia‖.11 Mas, aduz, não é função das empresas suprir tais lacunas. Baseado em variados exemplos, o autor destaca que as ações de responsabilidade social estão vinculadas a bons resultados econômicos, ou seja, sem lucro não há boas ações. 12 13 O 8 MARTIN, Roger L. The virtue matrix – calculating the return on corporate responsibility. Harvard Business Review, Boston, p.69-75, mar. 2002. O autor procura analisar o custo/benefício na adoção de políticas de responsabilidade social, assumindo postura crítica. 9 Entre outros: MIWA, Yoshiro. Corporate social responsibility: dangerous and harmful, though maybe not irrelevant. Cornell Law Review, Ithaca, v.84, p.1227-1254, 1999; MOORE, Geoff. Corporate social and financial performance: an investigation in the U.K supermarket industry. Journal of Business Ethics, Prince George, n.34, p.299-315, 2001. 10 REICH, Robert. Supercapitalism – the transformation of business, democracy and everyday life. New York: Alfred Knopf, 2007. No primeiro semestre de 2008, foi lançada edição brasileira da obra, traduzida por SERRA, Afonso Celso da Cunha. Supercapitalismo – como o capitalsimo tem transformado os negócios, a democracia e o cotidiano. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 11 REICH, Robert, op. cit., 2007, p.169. 12 REICH, Robert, op. cit., 2007, p.173-174: ―As the economy has moved toward supercapitalism, companies that in Friedman‘s day were known to be most socially virtues have been punished by investors. Cummins Engine, one of the pioneers of the corporate social responsibility movement, had to abandon its paternalistic employment policies and its generous contributions to its communities when its investors demanded higher returns. Dayton 13 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I autor assevera que os investidores estão sim interessados em melhor governança corporativa, entretanto, melhor governança torna a sociedade mais responsável para com seus investidores, não com empregados, comunidades, ou a sociedade como um todo.14 Por fim, sustentando o autor que a adoção de práticas socialmente responsáveis pode prejudicar a competitividade das empresas, questiona o que se pode entender por prática socialmente responsável, respondendo que somente o Estado pode estabelecer tais padrões. A definição legislativa das práticas socialmente responsáveis, além de mais democrática, evita interpretações errôneas do seu significado e tem força de torná-las obrigatórias a todas as empresas. Na mesma linha crítica é o posicionamento de Peter Barnes, exposto no livro Capitalism 3.0 - a guide to reclaiming the commons, em que o autor aponta falhas no capitalismo atual (denominado de capitalismo 2.0, em paralelo as versões de softwares operacionais) e propõe um up grade nas relações capitalistas, ou seja, a construção do capitalismo 3.0, versão mais adequada às necessidades atuais.15 Expõe o autor que o capitalismo atual é marcado pela submissão da democracia ao capital e pela incapacidade dos governos em controlar o processo, sendo as patologias mais Hudson, another notably socially responsible company, came close to being swallowed up in a hostile takeover during the 1980s, and has since then paid exclusive attention to its customers and investors. Levi Straus, also once on every one‘s list of American‘s most socially responsible companies in part because of its commitment to source its clothing from domestic manufacturers, faced plummeting Sales in the 1990s and had to eliminate its remaining domestic production. Polaroid, another pioneer, filed for bankruptcy in 2001. The shares of Britain‘s retailer Marks & Spencer, which had ranked near the top in a survey of worldwide labor Standards, performed so poorly had the firm attracted a hostile takeover bid in 2004. Both Body Shop International and Ben & Jerry‘s had been touted as among the nation‘s most socially responsible companies until investor pressure pushed Body Shop founder Anita Roddick into a advisory role and Ben & Jerry‘s was taken over by Unilever.‖ 13 REICH, Robert, op. cit., 2007. A visão da responsabilidade social como estratégia empresarial também é apontada na doutrina nacional: ―[...] a temática ‗responsabilidade social‘ passa a ser amplamente debatida e propagada no meio empresarial, tornando-se uma estratégia competitiva entre as empresas que atuam em um ambiente cada vez mais complexo e turbulento, onde a qualidade dos produtos e os preços mais atraentes não se configuram mais como diferenciais, mas sim como exigências. Dessa forma, a responsabilidade social é uma estratégia importante para as empresas que buscam um retorno institucional a partir das suas práticas sociais.‖ PONCHIROLLI, Osmar. Ética e responsabilidade social empresarial. Curitiba: Juruá, 2008, p.52. 14 REICH, Robert, op. cit., 2007, p.176, no original: ―Yes, investors are interested in better corporate governance. But better governance makes a firm more responsive to its investors – not to its employees, communities, or society as a whole‖. 15 BARNES, Peter. Capitalism 3.0 – a guide to reclaiming the commons. San Francisco: Berret-Koehler Publishers, 2006. No prefácio, p.XIII e XIV, expõe o autor a necessidade de transformação da forma atual do capitalismo: ―When capitalism started, nature was abundant and capital was scarce; it thus made sense to reward capital above all else. Today we‘re awash in capital and literally running out of nature. We‘re also losing many social arrangements that bind us together as communities and enrich our lives in nonmonetary ways. This doesn‘t mean capitalism is doomed or useless, but it does mean we have to modify it. We have to adapt it to the twentyfirst century rather than the eighteenth. And that can be done. How do you revise a system as vast and complex as capitalism? And how do you do it gracefully, with a minimun of pain and disruption? The answer is, you do what Bill Gates does: you upgrade the operating system‖. 14 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I freqüentes da versão atual do capitalismo a destruição da natureza, o alargamento da desigualdade econômica e a não preocupação em promover a felicidade das pessoas.16 De forma pessimista, entende o autor que a correção de rumo do capitalismo 2.0 não traria resultados satisfatórios, seja através da maior regulação estatal; seja através de maior privatização, propondo novas bases para o sistema econômico, o que denomina capitalismo 3.0, através da ampliação dos setores de bens comuns, o que diluiria o poderio de grandes empresas. É nesse contexto que o autor aponta que a social responsibility, quando praticada, é motivada pelo interesse dos acionistas, a quem os administradores estão obrigados a prestar contas, ou seja, será praticada quando reverter em lucros para a sociedade.17 A forma de implementação da nova versão do capitalismo é estipular novos padrões para o exercício do direito de propriedade, cujo exercício será vinculado à preservação e pensamento nas gerações futuras. Conforme analisado, na realidade americana, a atuação em conformidade com a teoria da social responsibility se apresenta mais como diferencial competitivo, instrumento de marketing, com a finalidade de ampliar os lucros, sem qualquer caráter de obrigatoriedade, feição inteiramente diversa da exercida pela função social da empresa no direito nacional, o que afasta comparações ou aproximações entre as mesmas. Como exposto, mesmo em seu berço, a teoria suscita muitos debates e questionamentos. Para os fins do presente trabalho, interessa distingui-la da função social da empresa. 3. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA: PRINCÍPIO JURÍDICO DECORRENTE DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE A função social da empresa, no direito nacional, é corolário da função social da propriedade, imperativo que decorre da ordem jurídica do mercado, moldada pelo princípio da solidariedade, o que exclui o exercício da atividade empresarial sem as ponderações que dela decorrem. Inegável é a nova feição que adota o direito de propriedade, ―passa a caracterizar-se como espécie de poder-função, uma vez que, desde o plano constitucional, encontra-se diretamente vinculado à exigência de atendimento da sua função social‖. 18 16 Ibid., 2006, p.25: ―The anachronistic software that governs capitalism today leads, willynilly, to three pathologies: the destruction of nature, the widening of inequality, and the failure to promote hapiness despite the pretense of doing so.‖ 17 Ibid., 2006, p.54-58. 15 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A nova concepção de propriedade se irradia sobre o direito empresarial, não sendo facultado ao proprietário de empresas, sócios ou acionistas exercerem abusivamente o direito que lhes é assegurado constitucionalmente. Os reflexos das novas idéias no âmbito empresarial permitem configurar a noção de propriedade empresarial, assim como, enseja a construção das noções de função social da empresa e dos contratos, realidade percebida, entre outros autores, por Calixto Salomão Filho: No Brasil, a idéia da função social da empresa também deriva da previsão constitucional sobre a função social da propriedade (artigo 170, III). Estendida à empresa, a idéia de função social da propriedade é uma das noções de talvez mais relevante influência prática na transformação do direito empresarial brasileiro. É o princípio norteador da ‗regulação externa‘ dos interesses envolvidos pela grande empresa. Sua influência pode ser sentida em campos tão díspares como direito antitruste, direito do consumidor e 19 direito ambiental. É nesse contexto que se formula a idéia de função social da empresa, que deve ser tomada como princípio jurídico e não como mera proposição ética. 3.1 A função social da empresa como princípio jurídico A função social da empresa se afirma como princípio jurídico, o que afasta a sua compreensão como mera proposição ética. Na moderna teoria hermenêutica, a importância dos princípios é nuclear, vez que podem ser considerados os elementos centrais da ordem jurídica. Podem ter diferenciados significados, entretanto, para os fins do presente trabalho, definem-se, na esteira de Carrió,20 com duas perspectivas: em primeiro lugar, como pautas de segundo grau, indicativas de como se deve entender e complementar as normas de primeiro grau e, em segunda perspectiva, como propósitos, objetivos, policies, de uma regra ou conjunto de regras do sistema.21 22 18 MIRAGEM, Bruno. O artigo 1228 do Código Civil e os deveres do proprietário em matéria de preservação do meio ambiente. Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRS, Porto Alegre, v.III, n.VI, p.2145, maio 2005. 19 SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro - RDM, São Paulo: Malheiros (Nova Série), v.132, p.7-24, out./dez. 2003. 20 CARRIÓ, Genaro. Princípios y positivismo jurídico. Argentina: Abeledo-Perrot, [s.d.]. 21 A evolução da noção de princípio atendeu a variadas interpretações, conforme o período histórico e a corrente doutrinária, entretanto, é possível estabelecer, na esteira do pensamento de José Ricardo Cunha, três momentos em torno da idéia: ―1) Na perspectiva do direito natural, onde os princípios são tomados como axiomas jurídicos fundados numa ―idéia de bem‖. Essa concepção foi duramente atingida pela ascensão do positivismo, em especial com o advento do processo moderno de codificação e com a Escola da Exegese; 2) na perspectiva do positivismo legalista, onde os princípios são tomados como fonte meramente subsidiária, cumprindo função apenas integradora ou programática. Essa concepção vigorou na maior parte dos séculos XIX e XX esvaziou a função normativa dos princípios; e 3) na perspectiva dos pós-positivismo, onde os princípios são tomados como força normativa autônoma e preponderante, cumprindo papel de alicerce do edifício jurídico. Essa concepção tomou fôlego na segunda metade do século XX e já se apresenta como o principal pensamento de sustentação da ordem jurídica e constitucional do novo século. No pós-positivismo, busca-se a superação da clássica antítese Direito Natural/Direito Positivo através da conjunção entre força normativa e força axiológica, o que é feito, exatamente, 16 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Na mesma perspectiva é a visão de Eros Grau, que defende que o direito é alográfico (porque o texto normativo não se completa no sentido nele expresso, pressupondo a atuação do intérprete) e que não se interpreta em tiras, daí resultando a importância dos princípios, que asseguram a coerência do sistema.23 Como princípio jurídico, decorrente dos princípios da solidariedade social e da função social da propriedade, a funcionalidade da empresa atende às finalidades de interpretação e integração do ordenamento, suprindo lacunas e oferecendo padrões para extrair o real significado das regras. Nesse sentido, o Enunciado 53, da I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, que dispõe: ―deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas relativas à empresa, a despeito da falta de referência expressa‖. 24 A sua concreção é adaptada às singularidades da situação fática, em juízo interpretativo balizado pelos aspectos teleológicos, o que tem levado os tribunais pátrios a se utilizar do princípio da função social da empresa para: (i) evitar depósito judicial de valores da sociedade; 25 (ii) afastar a falência como meio de cobrança;26 (iii) permitir que bem penhorado essencial à através dos princípios‖. CUNHA, José Ricardo. Sistema aberto e princípios na ordem jurídica e na metódica constitucional. In: _______. Os princípios da Constituição de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p.21-42, p.36. 22 Na feição pós-positivista, podem os princípios ser delineados como: ―[...] norma jurídica que congrega certos valores e que influencia de forma direta ou indireta na cognição das demais normas do sistema, o que a torna diferente de forma expressiva dos outros regramentos jurídicos que compõem o ordenamento. Tal influência se dá não só pela compleição do princípio, mais abrangente e eivado de valoração que uma norma isolada, como também pelo fato de o ato interpretativo não poder ser estanque, mas deve ser elaborado em consonância com o todo do sistema. Pode-se afirmar serem os princípios as pilastras sobre as quais se escora o ordenamento jurídico, as verdades primeiras no linguajar geométrico, servindo de inspiração às leis, bem como de criação de normas por força de um processo de decantação e generalização das leis, sendo, ainda, o mandamento nuclear de um sistema, implicando na irradiação sobre diferentes normas, das quais compõem o espírito e prestam-se como critério para a perfeita compreensão destas, posto que definem a lógica e a racionalidade do sistema normativo. Somente com a cognição dos princípios se tem a compreensão do todo unitário ao qual se atribui o nome de sistema jurídico positivo‖. FURTADO, Emanuel. Princípios e hermenêutica do direito constitucional. Nomos - Revista do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFC, Fortaleza, n.25, p.35-50, p.35-50, jan./jun. 2008, p.36. 23 GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003 e GRAU, Eros. Ensaio sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2005. 24 JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, I. Disponível em: < http://www.jf.jus.br> . Acesso em: 3 out. 2008. 25 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS. Agravo 70011065398. 8ª Câmara Cível. Relator Desembargador Antônio Carlos Stangler Pereira. Diário de Justiça, 05 jul. 2005. 26 PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça de Pernambuco – TJPE. Acórdão 85740-3. 6ª. Câmara Cível. Relator Desembargador Antônio Fernando de Araújo Martins. Diário de Justiça, 27 abr. 2007, p.106, constando da ementa que: ―o instituto falimentar é meio de extinção da empresa, devendo esta só ser declarada como tal caso comprovada a sua inviabilidade econômica, respeitando a sua função social perante a sociedade‖; RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – TJRJ. Apelação Cível 2007.001.56740. 20ª Câmara Cível. Relatora Desembargadora Letícia Sardas. Diário de Justiça, 18 ago. 2007, constando da ementa que: ―Não pode o credor utilizar a falência como meio de cobrança, sob pena do desvirtuamento do processo falimentar, cabendo-lhe recorrer às vias executórias para obtenção de seu crédito, tendo em vista o princípio da preservação da empresa e da função social desempenhada pela mesma‖; PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná – TJPR. Acórdão 9012. 17 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I sociedade seja substituído por outro bem;27 (iv) garantir o pleno exercício da atividade empresarial; 28 (v) dar efetividade à recuperação judicial da empresa; pedido de dissolução total da sociedade em dissolução parcial; 30 29 (vi) transformar o (vii) afastar a prevalência de interesses pessoais dos acionistas e preservar o interesse social na manutenção da empresa, 31 18ª Câmara Cível. Relatora Desembargadora Lidia Maejima. Diário de Justiça, 16 maio 2008, constando da ementa que: ―Apelação Cível. Pedido de Falência. Impossibilidade. Dívida de valor ínfimo. Preponderância do Princípio da Função Social da empresa‖; SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC. Apelação Cível 2002.027738-5. Relator Desembargador José Trindade dos Santos. Diário de Justiça, 28 maio 2004, p.127, constando da ementa: ―Ainda que firmada a impontualidade de empresa comercial, apenas por tal razão não se pode decretar a sua quebra, em atenção aos interesses sociais, que devem sempre sobrepairar sobre os individuais. Nesse contexto, o que se mostra adequado averiguar é se a empresa tem condições financeiras e econômicas de se recuperar. Isso em atenção à própria função social que a empresa cumpre, como célula economicamente organizada onde tramitam inúmeros interesses, entre os quais avultam, os empregos que fornece ela no mercado de trabalho e os tributos para a manutenção do Estado. Não há como, no estágio atual do Direito, considerar-se o pedido de quebra de determinada empresa apenas sob as luzes dos interesses imediatistas de um credor isolado.‖ Também no mesmo sentido. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – TJRJ. Apelação Cível 2007.001.56740. 20ª Câmara Cível. Relatora Desembargadora Letícia Sardas. Diário de Justiça, 26 mar. 2008. 27 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG. Agravo 1.0702.07.388122-0/001(1. 13ª Câmara Cível. Relatora Desembargadora Cláudia Maia. Diário de Justiça, 11 out. 2007, constando da ementa que: ―Sendo penhorado bem de relevante importância ao desenvolvimento da atividade empresarial, salutar é a suspensão do procedimento executivo em cumprimento ao princípio da função social da empresa‖. Acresça-se que a decisão determina que o pedido de substituição de bem penhorado seja feito no juízo originário. 28 AMAPÁ. Tribunal de Justiça do Amapá – TJAP. Acórdão 11608. Câmara Única. Relator Desembargador Dôglas Evangelista. Diário de Justiça, 12 nov. 2007, p.17, constando da ementa que: ―A função social da empresa reside no pleno exercício de sua atividade empresarial, ou seja, na organização dos fatores de produção (natureza, capital e trabalho). O princípio da preservação da empresa, em razão de sua função social, deve, sempre que possível, ser observado, considerando ser ela fonte de riqueza econômica e renda, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento social do país.‖ 29 GOIÁIS. Tribunal de Justiça de Goiáis - TJGO. Apelação 99174-4/188. 2ª. Câmara Cível. Relator Desembargador Alan S. de Sena Conceição. Diário de Justiça, 23 jan. 2007, p.115. Na ementa é disposto: ―O escopo maior do instituto em estudo (Recuperação de Empresas) é justamente o de atender ao mandamento constitucional da função social da empresa‖. 30 GOIÁIS. Tribunal de Justiça de Goiáis - TJGO. Apelação 25801-2/188. 1ª Câmara Cível. Relator Desembargador Antônio Nery da Silva. Diário de Justiça, 04 set. 1991, p.86. Na ementa consta: ―Pleiteada a dissolução total por dois sócios, sendo a sociedade composta por apenas três, possível o deferimento da dissolução parcial, em virtude da preservação do fundo de comércio, em favor da função social da empresa e em respeito à cláusula contratual de indissolubilidade.‖ 31 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - STJ. Resp 247002. 3ª Turma. Relatora Ministra Fátima Nancy Andrighi. Diário de Justiça 25 mar. 2002, p.272. Eis a ementa na íntegra: ―COMERCIAL. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE ANÔNIMA DE CAPITAL FECHADO. Artigo 206, da Lei 6.404/76. Não distribuição de dividendos por razoável lapso de tempo. Sociedade constituída para desenvolvimento de projetos florestais. Plantio de árvores de longo prazo de maturação. Empresa cuja atividade não produz lucros a curto prazo. Inexistência de impossibilidade jurídica. Necessidade, contudo, de exame do caso em concreto. Insubsistência do argumento de reduzida composição do quadro social, se ausente vínculo de natureza pessoal e nem se tratar de grupo familiar. Não há impossibilidade jurídica do pedido de dissolução parcial de sociedade anônima de capital fechado, que pode ser analisado sob a ótica do artigo 335, item 5, do Código Comercial, desde que diante de peculiaridades do caso concreto. A affectio societatis decorre do sentimento de empreendimento comum que reúne os sócios em torno do objeto social, e não como conseqüência lógica do restrito quadro social, característica peculiar da maioria das sociedades anônimas de capital fechado. Não é plausível a dissolução parcial de sociedade anônima de capital fechado sem antes aferir cada uma e todas as razões que militam em prol da preservação da empresa e da cessação de sua função social, tendo em vista que os interesses sociais hão que prevalecer sobre os de natureza pessoal de alguns dos acionistas.‖ 18 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I para (viii) o reconhecimento de proteção ao trabalhador e para a fixação do razoável valor do aluguel comercial na renovação do contrato de locação,32 entre outras hipóteses.33 A aplicação do princípio é extensa e diversificada, o que vem permitindo a efetivação de novos valores nas relações jurídicas societárias, tanto no plano interno como no plano externo, atuando como verdadeiro ―sopro renovador‖ nas relações tecidas ao longo do desenvolvimento da atividade empresarial. Também importante é a função normogenética34 do princípio da função social da empresa, através da qual, como meio de expressão dos valores dominantes, influencia na propagação dos mesmos, incentivando o seu acatamento em decisões judiciais ou textos legislativos. A Lei 11.101/05, por exemplo, que regula os institutos da falência e da recuperação de empresas, expressa valores emanados do princípio da função social da empresa, tornando-se meio efetivo de sua consolidação e, mais do que isso, meio de sua propagação.35 32 RENOVATÓRIA. SENTENÇA PARCIAL. PROCEDÊNCIA. RECURSO DE APELAÇÃO. FIXAÇÃO DO NOVO VALOR DO ALUGUEL. CRITÉRIOS. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. 1. Esta Corte assentou o entendimento de que, na revisão de aluguel em locação comercial, o método que mais se aproxima de um resultado justo e que melhor expressa as reais condições de mercado é o da rentabilidade, pois mesmo sujeito aos efeitos ilusórios da especulação (AC 2857/2000, Des. Raul Celso Lins e Silva). Por sua vez, tal critério constitui modalidade em que se delega ao juiz a escolha quanto ao percentual aplicável ao sob julgamento (AC 6865/2006, Des. Ricardo Couto). 2. O legislador, ao assegurar a renovação do contrato de locação não residencial, tomou em conta a função social da empresa, que garante a geração de emprego, o recolhimento de tributos, e a prestação de bens e serviços à população, atendendo não só ao interesse privado do empreendedor, como ao interesse público sempre presente, embora em grau variado, conforme as circunstâncias de cada caso concreto. Trata-se, ainda, de norma legal que leva em consideração a função social da propriedade, pois na atividade comercial, o local do estabelecimento está intrinsecamente relacionado à própria viabilidade do empreendimento – tanto mais em se tratando de ramo negocial que atende à própria população local, no chamado comércio de bairro. [...].‖ RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – TJRJ. Apelação Cível 2007.001.24646. 1ª Câmara Cível. Desembargador Marcos Alcindo Torres. Julgado em 22 jul. 2008. 33 Brasília. Tribunal Regional Federal - TRF da 1ª Região – MAS 1999.01.00.050915-3/MG. 6ª Turma. Relator Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro. Diário de Justiça, 2 jun. 2007, p.97. Consta da ementa: ―[...] a ordem econômica deve observar princípios atinentes à função social da propriedade e à defesa do meio ambiente. A empresa, expressão da propriedade, da economia, está submetida ao cumprimento das normas sociais, em especial as trabalhistas relacionadas à segurança e saúde do trabalho, do contrário, não estará cumprindo a sua função social.‖ 34 O termo é usado por doutrinadores de escol, como CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1999 e CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1989. Ver, também, BETTI, Emilio. Interpretazione della legge e degli atti giuridici (teoria generale e dogmática). Tradução de José Luis de los Mozos. 2. ed. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1971. 35 Salomão Filho aponta importante efeito sistêmico da nova Lei Falimentar: ―[...] a clara opção institucionalista pela preservação da empresa da nova Lei de Falências exigirá, por necessidade de coerência lógica, a extensão desse institucionalismo para a vida social. O que se quer dizer é que não é possível pensar em preservação da empresa apenas no período de crise da empresa, mas também durante a sua vida. Assim sendo, a aplicação da nova Lei de Falências de forma coerente com o princípio da preservação da empresa pode ajudar a dar aplicação a princípios institucionalistas societários como o do artigo 116, da Lei 6404/76‖. SALOMÃO FILHO, Calixto. Recuperação de empresas e interesse social. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Sátiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (Org.). Lei de Recuperação de Empresas - Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.41-52, p.52. 19 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Também pode ser tido como reflexo da função normogenética do princípio da função social da propriedade, o artigo 1030, do Código Civil, que faculta a exclusão judicial de sócios, inclusive do sócio majoritário, tendo por objetivo a preservação da empresa.36 3.2 A compatibilização entre a busca pelo lucro e a atuação ética Para a aplicação do princípio da função social da empresa, inicialmente, importante é a sua compatibilização com dois princípios que norteiam o exercício da atividade econômica empresarial, o princípio da livre iniciativa e o princípio da lucratividade. Do princípio da livre iniciativa, previsto constitucionalmente, decorre a liberdade de constituição e desenvolvimento de empresas, na forma prevista na ordem jurídica.37 As concepções liberais de liberdade e de individualismo, inerentes à revolução burguesa, implicaram no afastamento das restrições ao comércio e ao trabalho. É elemento fundamental do ideário liberal a livre iniciativa, dela decorrendo a liberdade econômica, baseada na propriedade, a livre concorrência e a liberdade de escolha de profissão e das condições de trabalho. 38 O princípio da livre iniciativa tornou-se a base do sistema capitalista. Entretanto, a sua importância não deve ser superdimensionada, ensejando abusos. Desde a sua formulação original, o princípio não foi moldado em termos absolutos, posto que o seu exercício é vinculado às previsões legais. Inúmeros sentidos podem ser visualizados na apreciação do princípio da livre iniciativa, que pode ser entendida como (i) a liberdade de comércio e indústria, ou seja, a faculdade de exercer a atividade econômica no âmbito privado, sem sujeição a restrições estatais, a não ser as previstas em lei ou (ii) a liberdade de concorrência, entendida como a faculdade de conquistar a clientela, com a correlata proibição de atuar em desprezo à concorrência. Em sentido restrito, na feição de liberdade de iniciativa econômica, cujo titular é a empresa, sentido que é mais útil em razão da dimensão e objetivo do presente trabalho, a liberdade de iniciativa deve ser entendida como decorrência da liberdade e definida como a 36 ―Artigo 1030 - Ressalvado o disposto no artigo 1004 e seu parágrafo único, pode o sócio ser excluído judicialmente, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios, por falta grave no cumprimento de suas obrigações ou, ainda, por incapacidade superveniente.‖ 37 Artigo 1º da CF: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ―[...] IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Artigo 170 da CF: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados [...] Parágrafo único – É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.‖ 38 GALGANO, Francesco. Il diritto privato fra codice e constituzione. Bologna: Zanichelli, 1979. 20 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I faculdade de criar e explorar a atividade econômica a título privado, sem sujeições a qualquer restrição estatal senão em face de lei. Sobre as restrições legais, válida é a lição de Eros Grau: ―[...] o regime de liberdade de iniciativa econômica é aquele definido pela ordem jurídica. Vale dizer: o direito de liberdade econômica só tem existência no contexto da ordem jurídica, tal como o definiu a ordem jurídica.‖ 39 Neste mesmo sentido, mas em análise mais ampla, a liberdade de livre iniciativa não pode ser reduzida à liberdade de empresa, abrangendo outras formas de iniciativa econômica, como a iniciativa autogestionária ou cooperativa, estendendo-se ainda à iniciativa pública. Em palavras simples, a liberdade de iniciativa pode ser considerada a liberdade de acesso e permanência no mercado, cuja legitimação advém do exercício no interesse da justiça social, denotando que a sua interpretação é vinculada à idéia de solidariedade social.40 Através deste princípio é reconhecida aos particulares a liberdade de organização empresarial, sendo-lhes facultada a liberdade de escolhas dos fins a serem atingidos com a atividade desenvolvida. Observe-se que a livre iniciativa não configura óbice à aplicação do princípio da função social da empresa, considerando-se que o livre exercício da atividade econômica é um valor 39 GRAU, Eros. A ordem econômica na constituição de 1988. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.225. O Supremo Tribunal Federal tem procurado compatibilizar o princípio da livre iniciativa com os interesses sociais, como pode ser verificado pelos seguintes Acórdãos: ―Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei 8.039, de 30 de maio de 1990, que dispõe sobre critérios de reajuste das mensalidades escolares e dá outras providências. – Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com a defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros. – Não é, pois, inconstitucional a Lei 8.039, de 30 de maio de 1990, pelo só fato de ela dispor sobre critérios de reajuste das mensalidades das escolas particulares. [...]‖. DISTRITO FEDERAL. ADI-QO 319-4/DF (Questão de ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade). Relator Ministro Moreira Alves. Ementário 1701. Diário de Justiça, 30 abr. 19931. No mesmo sentido: ―Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei 7844/92, do Estado de São Paulo. Meia entrada assegurada aos estudantes regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino. Ingresso em casa de diversão, esporte, cultura e lazer. Competência concorrente entre a União, Estados membros e o Distrito Federal para regular sobre direito econômico. Constitucionalidade. Livre iniciativa e ordem econômica. Mercado. Intervenção do Estado na economia. Artigos 1º, 3º, 170, 205, 2087, 215 e 217, parágrafo terceiro, da Constituição Federal. 1. É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. 2. Mais do simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170. 3. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso, a Constituição, ao contemplá-la, cogita, também, da ―iniciativa do Estado‖, não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. 4. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto [artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217, parágrafo 3º, da Constituição]. Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. 5. O direito ao acesso á cultura, ao esporte e ao lazer, são meios de complementar a formação dos estudantes. 6. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente. SÃO PAULO. ADI 1950SP. Relator Ministro Eros Grau. LEXSTF v.28, n. 331, 2006, p. 56-72. Diário de Justiça, 02 jun. 2006, p. 00004. 40 21 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I social, que deve ser compatibilizado com a ordem jurídica, sem, entretanto, subordinar inteiramente a gestão da empresa aos interesses extra-societários.41 O princípio da finalidade lucrativa da empresa é fundamental para a compreensão do ambiente de negócios. A decisão dos agentes econômicos de organizar instituição voltada à alocação de recursos, por meio de sistema de relações, é motivada pela probabilidade do lucro, fator que também norteia as decisões posteriores. O lucro, também, é eficaz instrumento de aferição dos resultados da atividade empresarial.42 Todavia, tanto no âmbito das relações internas como nas relações com terceiros, legítima é a imposição de deveres e obrigações às empresas, mesmo que, de forma direta ou indireta, limitem o lucro.43 Mas, que seja posto de forma clara: não se defende que a empresa seja obrigada a abandonar a busca dos lucros para concretizar condutas solidárias ou realizar políticas públicas, em substituição ao Estado. O que se pretende evitar é a busca inconseqüente dos lucros, desvinculada de condutas compatíveis com os valores eleitos pelo legislador constituinte. Que venham os lucros, mas que sejam auferidos sem a desobediência à legislação trabalhista, sem trabalho escravo, sem ofensas desleais à livre concorrência, com a preservação do meio ambiente, com a distribuição proporcional e justa dos lucros. Percebe-se, destarte, que a busca pelo lucro não é, de forma direta, excludente da função social da empresa. O lucro é importante como elemento de motivação da própria decisão de realizar a atividade empresarial, assim como de mantê-la. O lucro pode e deve ser almejado, entretanto, considerando que a função social da empresa é princípio dotado de juridicidade e exigibilidade, não é um valor que se sobreponha a tudo e a todos de forma 41 Foi a conclusão apresentada por SZTERLING, Fernando. A função social da empresa no direito societário. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial). São Paulo, Faculdade de Direito da USP, 2003. 42 Toma vulto como forma de aferir os resultados sociais da empresa a apresentação de balanço social, que pode ser definido como o documento pelo qual as empresas apresentam dados que permitem visualizar sua atuação social, as suas relações com os empregados, com a comunidade e com o meio ambiente. HUSNI, Alexandre. Empresa socialmente responsável – uma abordagem jurídica e disciplinar. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p.198, o define como: ―[...] formulação técnica que possibilita aferir o nível de envolvimento da empresa nas questões de natureza social e os reflexos financeiros deste comprometimento, observando-se determinados condicionantes e critérios valorativos específicos e aceitos‖. Embora não tenha caráter cogente, geral, o balanço social é utilizado por muitas empresas como forma de marketing institucional. Alguns diplomas normativos têm procurado incentivar a sua adoção, como a Resolução 005/98, do município de São Paulo, que cria o dia e o selo da empresa cidadã às empresas que apresentarem qualidade em seu balanço social ou o Decreto Legislativo 118/99, de Uberlândia/MG, que instituiu o selo empresa cidadã. O município de Santo André/SP, por meio da Lei 7672/98, criou o selo empresa-cidadã às empresas que instituírem e apresentarem qualidade em balanço social. No mesmo sentido, a Lei 11.440/2000, do estado do Rio Grande do Sul. 43 No mesmo sentido é a opinião de BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. Responsabilidade social das empresas – práticas sociais e regulação jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p.102: ―Pensar a função social da empresa implica, assim, posicionar a empresa em face da função social da propriedade, da livre iniciativa (autonomia privada para empreender) e da proporcionalidade (equilíbrio na consecução de interesses privados diante das necessidades especiais).‖ 22 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I absoluta. Compete ao aplicador do direito estabelecer o equilíbrio, evitando os excessos, observadas as peculiaridades do caso concreto. Ressalvando que função social da empresa e responsabilidade social não são termos sinônimos e expressam realidades diversas, ter maior lucratividade pode ser um estímulo a que as empresas pratiquem condutas socialmente responsáveis, bem como, praticar condutas socialmente responsáveis pode conferir maior lucratividade às empresas, dependendo do mercado em que atuam.44 45 Compatibilizado o princípio da função social da empresa com os princípios da livre iniciativa e da lucratividade, a sua aplicação pode se desdobrar em duas vertentes: a ênfase no desenvolvimento da empresa e no condicionamento do desenvolvimento da atividade empresarial, como se passa a analisar. 3.3. A aplicação do princípio da função social da empresa Direcionada a aplicação para o incentivo ao desenvolvimento da empresa, a evolução teórica e a aplicação prática do princípio têm sido mais freqüentemente vinculadas à preservação da empresa. O princípio da preservação da empresa, que tem entre seus vetores determinantes o princípio da função social e o princípio do pleno emprego, previstos no artigo 170, VIII, da Constituição Federal,46 possibilita a inserção do interesse na continuidade da atividade empresarial no contexto de seu exercício. Muitas vezes, o atendimento da função social da empresa far-se-á através de sua manutenção.47 Manter a empresa em funcionamento implica na preservação do conjunto de relações que dela decorrem, configurando verdadeira proteção a uma miríade de interesses à empresa vinculados como, por exemplo, a manutenção dos empregos (resguardando o direito dos trabalhadores); a interação com a comunidade (resguardando o interesse de todo o ambiente 44 As diferenças entre a função social da empresa e responsabilidade social serão apontadas adiante, no item 3.3.4. SEN, Amartya. Qué impacto puede tener la ética? In: KLIKSBERG, Bernardo (Comp.). Ética y dessarollo. La relación marginada. Buenos s Aires: El Ateneo, 2002. O autor faz considerações sobre as complexas relações entre instituições e valores, anotando, à página 34, que: ―[...] atender el aspecto de equidad puede, en muchas circunstancias, ayudar a promover la eficiencia (em vez de obstaculizarla), porque puede ser que la conducta de las personas dependa de su sentido de lo que es justo y de su lectura de si El comportamiento de lós demás lo es‖. Também faz considerações sobre o tema HANDY, Charles. What‘s a business for. Harvard Businesse Review on Corporate Responsibility, Boston, 2003. 46 ―Artigo 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VIII – pleno emprego.‖ 47 Entre as inovações da Lei 11.101/05, uma das mais importantes é a nítida separação entre a empresa e o empresário, com o sacrifício dos seus interesses em prestígio da manutenção da empresa. 45 23 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I social que circunda a empresa); a ampliação do abastecimento de bens e serviços (resguardando o interesse dos consumidores); a possibilidade de geração de recursos econômicos (resguardando o interesse dos credores), etc. Compete ao aplicador do direito analisar os aspectos que envolvem a empresa no caso concreto, ponderá-los e determinar a sua continuidade, sendo certo que a jurisprudência, de forma uníssona, tem admitido a aplicação do princípio em diversas hipóteses, como foi explicitado pela construção jurídica da dissolução parcial da sociedade. Quando a aplicação do princípio da função social da empresa tiver por objetivo o condicionamento do seu exercício, serão dispostos comportamentos, positivos ou negativos, com a finalidade de tornar concreto o conteúdo do princípio, o que leva ao reconhecimento e proteção dos interesses dos sócios minoritários e de interesses alheios aos dos sócios nas sociedades empresariais. É explícita a exigência de comportamentos, no âmbito da Lei 6.404/76, aos controladores e administradores das sociedades anônimas, responsáveis pela condução da sociedade, instrumento jurídico de manifestação da empresa. No Código Civil, no que se refere à sociedade limitada, também são dispostas regras que permitem o reconhecimento e proteção dos interesses dos minoritários e de terceiros. A fixação de comportamentos, positivos ou negativos, deve obediência a parâmetro material, que merece ser ponderado de acordo com a atividade desenvolvida, sob pena de inviabilizar a realização da atividade empresarial. Nesse contexto, não há espaço para imposição que esteja desvinculada da atividade desenvolvida ou das relações que dela decorram. Também não devem ser impostas obrigações que acarretem custos mais elevados que os benefícios auferidos. 48 Outrossim, descabida é, ainda, a imposição de atuações típicas do Estado, ou seja, não pode a empresa ser tomada como substituta do Estado, considerando que exerce função inteiramente distinta do mesmo. 4. A DISTINÇÃO ENTRE AS TEORIAS: DIFERENTES ASPECTOS DA ÉTICA EMPRESARIAL A teoria da social responsibility é o resultado mais coerente com os postulados gerais do direito norte-americano. Neste, a propriedade e, por conseqüência, a empresa, é tomada em perspectiva pragmática, em relação de custo/benefício, a partir da idéia de que a propriedade é a forma mais eficiente de preservação dos bens, porque permite o seu melhor aproveitamento 48 SZTERLING, Fernando, op. cit., 2003. 24 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I econômico. Com tais pressupostos, impossível era a constatação de princípio assemelhado ao da função social da empresa no direito norte-americano. No direito nacional, a função social das empresas decorre do princípio da função social da propriedade, princípio basilar da ordem jurídica do mercado. Tal constatação afasta o caráter dispositivo, característico da responsabilidade social, que se apresenta mais como dever moral do que obrigação jurídica. Este o ponto crucial de distinção entre as teorias.49 Outro aspecto que possibilita a distinção entre as teorias é o âmbito de aplicação. Os deveres concernentes à função social da empresa, positivos ou negativos, devem estar vinculados à sua atuação; este é o liame que impõe as exigências, ao passo que a responsabilidade social não tem restrição de aplicação, sendo motivada pela vontade ou interesse dos que a administram.50 Para que fique mais claro, decorreria da função social da empresa, por exemplo, a instalação de filtros que diminuiriam a emissão de gases poluentes por empresa de transporte coletivo, em razão da imposição da proteção ao meio ambiente, e decorreria da social responsibility, por exemplo, a ―adoção‖, pela mesma empresa, de praça pública, assumindo os custos de reparação e manutenção do logradouro público. A identificação e confusão entre as teorias podem servir à finalidade ideológica de dificultar a aplicação do princípio da função social da empresa, tornando o seu atendimento mero dever moral, carente de juridicidade, o que não condiz com os princípios que regem o exercício da atividade econômica no Brasil.51 49 O artigo 154, § 4º, da Lei das Sociedades Anônimas, prevê a possibilidade de que o conselho de administração ou a diretoria possam autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais, a confirmar o caráter voluntário defendido. 50 No mesmo sentido: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO, Bruno Paiva. Função social da empresa. In: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Função social no direito civil. São Paulo: Atlas, 2007, p.90-115, p.105: ―Outra diferença reside na limitação objetiva do raio de aplicação da função social da empresa às atividades que constituem os elementos daquela, as quais coincidem, como regra, com o objeto social desenvolvido pela sociedade empresária ou pelo empresário.‖ 51 O sentimento sobre a necessidade de atuação ética das empresas é percebido pela doutrina não apenas no Brasil. Gambino defende que a partir dos anos setenta, nos países ocidentais, foi estabelecido debate sobre a necessidade de atuação ética das empresas na gestão de interesses de outras categorias de sujeitos, como empregados, acionistas, fornecedores, meio ambiente, etc. Decorre da globalização e da necessidade de criação de um mercado mais confiável para as empresas. Sustenta que, no plano ético, falta controle social que deveria desdobrar-se em: respeito aos direitos humanos, especialmente ao direito dos trabalhadores; tutela do meio ambiente; contribuição ao desenvolvimento sustentável e ao progresso social; não ofensa à concorrência e ao direito dos consumidores; respeito à legalidade nas relações com a administração pública e cumprimento de obrigações tributárias; adoção de boas práticas de governança; transparência com os portadores de parcela do capital e liberdade de acesso e defesa do capital, com identificação dos poderes acionários. GAMBINO, Agostino. Ética dell‘impresa e codici di comportamenti. Rivista Del Diritto Commerciale e Del Diritto Generale delle Obligazioni, Padova, n.10-1112, p.881-895, 1969. 25 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A perfeita demarcação das teorias evita confusões e, identificados os campos de atuação, permite que sejam aproveitados apenas os aspectos positivos da inter-relação que se estabelece entre ambas. É neste sentido que Franck Cochoy, em perspectiva sociológica, defende que as práticas de responsabilidade social renovam as relações entre direito e economia, por três razões: (i) em razão da utilização das regras como estratégia no jogo econômico; (ii) pelo estímulo à elaboração de regras pelo setor privado, em razão da ausência de regras do setor público; e, por fim, (iii) pela refundação da regulação pública, motivada pelas inovações das regras privadas. 52 Concorda-se com a argumentação do autor, destacando-se, entretanto, que é nas duas últimas perspectivas que os impactos positivos da adoção de práticas de responsabilidade social são mais incisivos. De fato, a atuação em padrões adequados à responsabilidade social pode servir de estratégia na disputa pelos mercados, o que tem motivado práticas como, por exemplo, a adoção de posturas ambientalmente corretas (patrocínio a projetos ambientais, com ampla divulgação na imprensa). Nesta perspectiva, a responsabilidade social pouco contribui para a modificação da vida social, porque sempre estará vinculada à lucratividade, sendo as iniciativas suprimidas ao primeiro sinal de redução dos lucros. No estímulo à auto-regulação privada, na ausência de regulação pública como, por exemplo, na adoção de selo para empresas que não contratam mão de obra infantil, entretanto, o setor privado oferta regulação que supre a ausência de regra pública e incentiva a adoção de práticas de responsabilidade social. Por fim, é inegável que a auto-regulação privada é muito útil, vez que tais práticas podem servir de modelo para a regulação pública, atuando como verdadeiro processo de recriação da regulação pública. 5. CONCLUSÃO A construção teórica das doutrinas da função social no Brasil e da responsabilidade social da empresa, no direito norte americano, foi inteiramente diversa, embora motivada por fatores assemelhados. Entretanto, nada justifica a sinonímia ou identificação de postulados. A teoria da social responsibility postula que seja adotada uma atuação ética no desenvolvimento da atividade empresarial, entretanto, é posta como mera proposição ética, sem 52 COCHOY, Franck. La responsabilité sociale de l‘entreprise comme ―representation‖ de l‘economie et du droit. Droit et Societé, Paris, n.65, 2007. 26 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I juridicicidade que a torne exigível. Esta, inclusive, a razão das críticas mais ferrenhas que a doutrina sofre em seu país de origem. A teoria da função social da empresa é decorrência da funcionalidade do direito de propriedade, expressamente prevista na Constituição Federal. Assim, estamos diante de princípio jurídico, dotado de exigibilidade, não de mera proposição ética. As tentativas de associação entre as teorias da social responsibility e da função social da empresa devem ser afastadas, por absoluta impropriedade, tendo em vista a origem e função econômica das teorias. Ambas representam diferentes aspectos da ética empresarial, consistentes, respectivamente, ao campo da moral e do direito. REFERÊNCIAS ALCHIAN, Armen; DEMSETZ, Harold. Producion, information costs and economic organization. American Economic Review, Pittsburgh, v.66, 1972. ALEXY, Robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y razón práctica. Doxa: Universidad de Alicante, n.5, 1988. __________. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. __________. Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. ALMEIDA, Caroline Sampaio de; BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. 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RESUMO Este artigo pretende dimensionar o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos por meio do estudo de um caso relacionado à demanda pela demarcação de terras ancestrais indígenas envolvendo a Nicarágua e a comunidade Mayagna de Awas Tingni. Para tanto descreve os principais procedimentos relacionados ao processo, na Comissão e na Corte Interamericanas de Direitos Humanos, aponta os elementos mais consistentes da sentença de mérito, com base nas provas testemunhais, periciais e documentais utilizadas no processo. O artigo contribui, assim, para ampliar o conhecimento concernente à capacidade de cogência do Direito Internacional em matéria de proteção para os direitos humanos, em particular no que se refere à proteção de direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Palavras-chave: Direito Internacional. Direitos Humanos. Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Exigibilidade de Direitos. ABSTRACT This article intends to explore the Inter-American system of the protection of human rights by means of the study of a case related to the demand for the aboriginal ancestral land landmark being involved Nicaragua and the community Mayagna de Awas Tingni. For in such a way it describes the main procedures related to the process, in the Commission and in the Cut InterAmerican of Human Rights, it points the elements most consistent of the judgements of merits, 1 Jayme Benvenuto é professor de Direito na Universidade Católica de Pernambuco. Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (2005). 31 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I on the basis of the testimonial evidences, skillful and you register used in the process. The article contributes, thus, to extend the knowledge concernente to the capacity of cogência of the International law in substance of protection for the human rights, in particular as for the protection of economic, social and cultural rights human. Keywords: International Law. Human Rights. Inter-American System of Human Rights. Exigibility of Rights. 1 INTRODUÇÃO O caso Mayagna Awas Tingni contra a Nicarágua, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2001, constitui atualmente situação de referência no estudo sobre a jurisprudência da Corte, em razão de sua vinculação com a proteção a direitos sociais, e em particular em razão da demanda por proteção à propriedade comunal tradicional indígena. A comunidade indígena nicaraguense em questão é constituída de aproximadamente 142 famílias que compõem uma população de cerca de 630 indivíduos. Sua principal aldeia se encontra às margens do Rio Wawa, no Município de Waspan, na Região Autônoma Atlântico Norte (RAAN) da Nicarágua. Trata-se de uma comunidade cuja definição de poder é baseada na liderança tradicional, orientada pelo costume, reconhecida pelos artigos 89 e 180 da Constituição Nicaragüense e pelo artigo 11 (4) do Estatuto de Autonomia das Regiões da Costa Atlântica da Nicarágua (Lei nº 28/1997). Mayagna Awas Tingni subsiste principalmente da agricultura familiar e comunitária, da colheita de frutas e plantas medicinais, da caça e da pesca, atividades desenvolvidas dentro de um espaço territorial, de acordo com um sistema tradicional de posse da terra que está vinculado à organização sócio-política da comunidade. A demanda tem início em razão da divergência da comunidade com ato da Junta Diretora do Conselho Regional da Região Autônoma Atlântico Norte, que em 1995 reconheceu um convênio firmado entre o Governo Regional Autônomo e a Empresa Solcarsa S/A para ―iniciar operações forestais [...] na Zona de Wakambay‖2, diante do que o representante legal da comunidade manifesta-se através de carta endereçada ao Ministério do Ambiente e Recursos Naturais (MARENA) em que protesta contra uma possível outorga de concessão nas terras indígenas à Solcarsa S/A, sem a consulta prévia à Comunidade. Face à possibilidade de perda, a comunidade entrou com um primeiro recurso perante 2 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000. p. 2. 32 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I o Tribunal de Apelações de Matagalpa contra o MARENA objetivando suspender a outorga da referida concessão. Tal recurso foi declarado improcedente, mediante a alegação de não haver sido apresentado dentro do prazo legal; diante do que a comunidade apresentou um recurso de amparo por via de fato perante a Corte Suprema de Justiça, solicitando a revisão da decisão do Tribunal de Apelações. Esta Corte, no entanto, levou um ano e meio para se pronunciar acerca do aludido recurso e, quando decidiu, considerou-o intempestivo. Em março de 1996, o Estado nicaraguense, através do MARENA, outorgou uma concessão à Solcarsa S/A, pelo período de 30 anos, para explorar aproximadamente 62.000 hectares de uma região dentro das terras reclamadas pela comunidade. Os advogados do MARENA comunicaram aos advogados da comunidade que a concessão outorgada à Solcarsa S/A havia sido aprovada pelo Conselho Regional da RAAN, e que as comunidades indígenas não gozavam de personalidade ou existência legal independente, estando representadas pelo referido Conselho. Os líderes da comunidade solicitaram, então, ao Pleno do Conselho Regional, assistência na demarcação de suas terras ancestrais com o objetivo de deter o avanço da concessão outorgada. Face ao pedido, a Junta Diretora do Conselho Regional comunicou aos advogados da comunidade que sua resolução de nº 25, datada de junho de 1995, estava sujeita à ratificação pelo Pleno do Conselho Regional, ratificação esta que não foi concedida e que a Junta Diretora não havia outorgado, nem tampouco outorgaria tal consentimento para a concessão. Em 29 de março de 1996, dois membros do Conselho Regional da RAAN interpuseram recurso de amparo perante a Corte Suprema contra a concessão estabelecida em favor da Solcarsa S/A. A Corte Suprema de Justiça se pronunciou a favor do recurso e declarou a inconstitucionalidade da concessão, o que ocorreu em fevereiro de 1997. Posteriormente, funcionários do Estado realizaram ações para que a concessão fosse submetida à aprovação do Conselho Regional da RAAN. A maioria deste Conselho votou a favor da concessão, diante do que a comunidade interpôs um segundo recurso de amparo, através do qual denunciou membros da Junta Diretora por haver aprovado a concessão sem considerar os direitos das comunidades indígenas, apesar de existir uma solicitação formal sobre o tema. Em 12 de novembro de 1997, o Tribunal de Apelações de Matagalpa admitiu o segundo recurso de amparo, instruindo os demandados a apresentarem seus pedidos perante a Corte Suprema de Justiça e negando a solicitação da comunidade de suspender a concessão à Solcarsa S/A. Em 12 de fevereiro de 1998, a Corte Suprema de Justiça da Nicarágua emitiu uma ordem executória da sentença de 27 de fevereiro de 1997, em favor dos membros do Conselho Regional da RAAN. 33 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 2 O PROCEDIMENTO PERANTE A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Mediante a alegação de esgotamento dos recursos internos, conforme disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos já no ano de 1995, acompanhado posteriormente de uma solicitação complementar de medidas cautelares, visto que o Estado estava prestes a outorgar a concessão à Solcarsa. Em março de 1996, os peticionários enviaram à Comissão uma proposta de solução amistosa para caso, que já havia sido apresentada aos ministros das Relações Exteriores e do Meio Ambiente e Recursos Naturais. Os peticionários apresentaram também um documento mediante o qual outras comunidades indígenas da RAAN e do Movimento Indígena da Região Autônoma Atlântico Sul aderiam à petição apresentada perante a Comissão. Foram realizadas reuniões informais entre as partes e a Comissão, no ano de 1996, com o objetivo de se chegar a uma solução amigável para o caso. Nessas ocasiões, a comunidade indígena solicitou ao Estado a demarcação de suas terras ancestrais e, enquanto isto não ocorresse, que a concessão à Solcarsa fosse suspensa. O Estado da Nicarágua rechaçou a proposta de acordo. Os peticionários propuseram que a Comissão visitasse a Nicarágua para dialogar com as partes. Após certo acirramento nas relações, o Estado apresentou documentos probatórios anunciando a criação da Comissão Nacional de Demarcação e convidando os peticionários a participar da mesma. Em 1997, os peticionários reiteraram sua solicitação de medidas cautelares, informando posteriormente que o Estado não havia suspenso as atividades florestais na área. A Comissão solicitou ao Estado a adoção de medidas cautelares para suspender a concessão à Solcarsa, enquanto o Estado solicitou à Comissão o arquivamento do caso, tendo em vista que o Conselho Regional da RAAN havia ratificado a aprovação da concessão à Solcarsa. Os peticionários, por sua vez, informaram que o Conselho Regional da RAAN era parte da organização político-administrativa do Estado e estava atuando sem levar em conta os direitos territoriais da comunidade. Solicitaram, ainda, que a Comissão observasse o disposto no art. 50 da Convenção. Em seguida, o Estado comunicou à Comissão que não se havia esgotado os recursos internos referentes ao caso, invocando a aplicação dos artigos 46 da Convenção e 37 do Regulamento da Comissão. Em 03 de março de 1998, a Comissão aprovou o relatório de n. 27/98 em que define a responsabilidade do Estado nicaraguense pela violações ao direito à propriedade indígena tanto do ponto de vista substantivo quanto da impossibilidade de acesso aos recursos internos para as pretensões comunitárias: 34 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 141.Sobre a base das ações e omissões examinadas, (...) que o Estado da Nicarágua não tem cumprido com suas obrigações sob a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O Estado da Nicarágua não demarcou as terras comunais da Comunidade Awas Tingni, nem de outras comunidades indígenas. Tampouco tomou medidas efetivas que assegurem os direitos de propriedade da Comunidade em suas terras. Esta omissão por parte do Estado constitui uma violação aos artigos 1, 2, e 21 da Convenção, os quais em seu conjunto estabelecem o direito a ditas medidas efetivas. Os artigos 1 e 2 obrigam os Estados a tomar as medidas necessárias para implementar os direitos contidos na Convenção. 142. O Estado da Nicarágua é responsável por violações ao direito à propriedade na forma ativa, consagrado no artigo 21 da Convenção, ao outorgar uma concessão à companhia SOLCARSA para realizar nas terras Awas Tingni trabalhos de construção de estradas e de exploração de madeira, sem o consentimento da Comunidade Awas Tingni. 143. [...] o Estado da Nicarágua não garantiu um recurso efetivo para responder às reclamações da Comunidade Awas Tingni sobre seus direitos às terras e recursos naturais, de acordo com o artigo 25 da Convenção. 3 A Comissão ainda recomendou à Nicarágua a introdução em seu ordenamento jurídico de procedimento adequado às pretensões pela demarcação de terras, a suspensão da concessão e o diálogo com a comunidade indígena, conforme definição abaixo reproduzida: a. Estabelecesse um procedimento em seu ordenamento jurídico, aceitável às comunidades indígenas envolvidas, que tivesse como resultado a pronta demarcação e o reconhecimento oficial do território de Awas Tingni e dos territórios de outras comunidades da Costa Atlântica; b. Suspendesse com a maior brevidade, toda atividade relativa à concessão madeireira outorgada à SOLCARSA pelo Estado dentro das terras comunais de Awas Tingni, até que a questão da posse da terra que afeta as comunidades indígenas houvesse sido resolvida, ou que se houvesse chegado a um acordo específico entre o Estado e a Comunidade Awas Tingni; [y] c. Iniciasse no prazo de um mês um diálogo com a Comunidade Awas Tingni, a fim de determinar sob que circunstâncias se poderia chegar a um acordo entre o Estado e a Comunidade Awas Tingni. 4 Com relação às recomendações da Comissão, a Nicarágua manifestou resposta intempestiva assinalando contar com uma Comissão Nacional para a Demarcação das Terras das Comunidades Indígenas da Costa Atlântica e haver procedido à preparação do Projeto de Lei de Propriedade Comunal que tem como objetivos o estabelecimento do credenciamento das comunidades indígenas e suas autoridades, a delimitação e titulação das propriedades e a solução do conflito. Em relação à recomendação de suspender toda atividade relativa à concessão madeireira outorgada à SOLCARSA e cumprir com a sentença da Corte Suprema de Justiça, o Estado da Nicarágua informou haver cancelado a concessão e notificado a SOLCARSA da decisão No que toca às conclusões da Comissão no mesmo relatório de n. 27/98, o Estado nicaragüense expressou reconhecimento dos direitos das comunidades indígenas, consagrados na Constituição e normas legislativas, assinalando que : 3 4 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000. p. 6. Id. 35 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I o [G]overno da Nicarágua tem dado fiel cumprimento às anteriores disposições legais, e por consiguinte, sua atuação tem sido acorde com o ordenamento jurídico nacional e com o que estabelecem as normas e procedimentos da Convenção [Americana sobre] Direitos Humanos. Por sua parte, a Comunidade de Awas Tingni exerceu seus direitos declarados na lei e teve acesso aos recursos que a mesma lhe confere. 5 Com base em argumentos acima expostos, a Nicarágua pediu à Comissão o arquivamento do caso. Entretanto, em 04 de Junho de 1998, a Comissão submeteu o caso à Corte por considerar que havia sido esgotada sua capacidade de mediar uma solução amistosa. 3 O PROCEDIMENTO PERANTE A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS A Nicarágua é Estado parte da Convenção Americana sobre Direitos Humanos desde 25 de setembro de 1979 e reconheceu a competência contenciosa da Corte em 12 de fevereiro de 1991, razão pela qual esta julgou-se competente para conhecer o caso. A apresentação da demanda à Corte foi feita invocando-se os artigos 50 e 51 da Convenção Americana e os artigos 32 e seguintes do Regulamento da Corte. A Comissão submeteu o caso à Corte para que a mesma decidisse a respeito da violação dos artigos 1º. da Convenção (Obrigação de Respeitar os Direitos), 2º. (Dever de Adotar Disposições de Direito ), 21 (Direito à Propriedade Privada) e 25 (Proteção Judicial). A Comissão ainda solicitou à Corte que declarasse a obrigação do Estado em demarcar as terras da comunidade, abster-se de outorgar concessões até que a questão fosse resolvida, indenizar a comunidade e pagar as custas e gastos referentes ao processo. 3.1 A apresentação de Exceções Preliminares perante a Corte No dia 19 de agosto de 1998, a Nicarágua interpôs uma exceção peliminar com fundamento no não esgotamento dos recursos da jurisdição interna, conforme os artigos 46 e 47 da Convenção e solicitou que a Corte declarasse a inadmissibilidade da demanda, sob os argumentos de que a comunidade incorrera em uma série de omissões e atuações processuais defeituosas na impugnação da concessão florestal outorgada pelo governo; não usara todos os recursos jurisdicionais existentes; e não formulara uma petição às autoridades competentes no âmbito da administração central.6 5 6 Id. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000. p. 10. 36 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Em suas observações, a Comissão manisfestou que a exceção preliminar interposta pelo Estado deveria ser declarada inadmissível em razão de aquele haver reconhecido sua responsabilidade, ao assinalar, em diferentes comunicações do mês de maio de 1998, a maneira como estava cumprindo as recomendações da Comissão e ao requerer a suspensão de 12 meses para informar sobre as medidas acerca das recomendações. Argumentou que a Nicarágua não pleiteou a exceção durante o procedimento na Comissão, não cabendo fazê-lo perante a Corte. A Comissão também levantou que membros da comunidade se dirigiram várias vezes aos órgãos assinalados como competentes pelo Estado (no momento de sua contestação) com o intuito de resolver o caso, não tendo estes órgãos se declarado competentes ou se proposto a resolver a demanda. A Nicarágua contra-argumentou que havia pleiteado e reiterado à Comissão a exceção de não esgotamento dos recursos internos desde o início do procedimento da Comissão: especificamente, em sua resposta ao memorando de entendimento apresentado pelos peticionários dentro do marco de solução amistosa e, em reiterados escritos ao longo da tramitação do caso, entre eles: os de data de 5 de novembro, 4 e 19 de dezembro de 1997, 14 de fevereiro e 2 de março de 1998. Além do mais, esta posição foi expressada por representantes do Governo em audiências celebradas na sede da Comissão no último dia 4 de março de 1997 e posteriormente, no mês de outubro do mesmo ano. 7 Acerca de tal alegação, a Comissão assinalou que, de acordo com o pricípio de estoppel, o Estado estava impedido de alegar a exceção já que, depois de um longo processo de encontros com a Comissão e a comunidade, e[ra] a primeira vez na história deste caso que o Estado apresenta[va] o argumento de não esgotamento por erro processual das vítimas‖. Entretanto, indicou que ―[c]omunicações posteriores do Estado que argumentavam o não esgotamento de recursos internos não chegaram à Comissão até novembro de 1997, e não fizeram referência ao primeiro recurso de amparo da Comunidade senão a seu segundo recurso e a recursos de amparo interpostos por outras partes em oposição à outorga da concessão à SOLCARSA. 8 O Estado, enfim, não podia pleitear da exceção depois de haver participado do procedimento de solução amistosa durante anos. Com relação à regra de esgotamento dos recursos internos, a Corte resolveu considerar que o Estado pode, de acordo com os princípios de Direito Internacional, em primeiro lugar renunciar de forma expressa ou tácita à invocação de tal regra.9 Em segundo lugar, a Corte decidiu que para que uma exceção seja oportuna, é preciso que a mesma seja pleiteada nas primeiras etapas do procedimento, na falta da qual se deduz ter havido a renúncia tácita por parte do Estado.10 Decidiu, por tanto, a Corte, por 7 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000. p. 11. Id. 9 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000. p. 12. 10 Id. 8 37 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I unanimidade, desestimar a exceção preliminar e continuar o conhecimento do caso.11 3.2 A decisão de mérito e sua relação com os direitos sociais A Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que o Estado violou, em prejuízo da comunidade Awas Tingni, o artigo 25 da Convenção Americana (direito à proteção judicial), em conexão com os artigos 1.1 e 2 da mesma Convenção. Para tanto, a Corte considerou o conteúdo dos artigos 5º., 89 e 180 da Constituição Política da Nicarágua de 1995 e da lei que regula o Estatuto da Autonomia das Regiões da Costa Atlântica da Nicarágua, além do decreto nº 16, de 23 de agosto de 1996, referente à criação da Comissão Nacional para a Demarcação das Terras das Comunidades Indígenas da Costa Atlântica, que determina que se faz necessário estabelecer uma instância administrativa adequada para iniciar o processo de demarcação das terras tradicionais das comunidades indígenas. Considerou também a lei nº 14, chamada de Lei de Reforma Agrária, a qual estabelece no seu artigo 31 que: ―O Estado disporá das terras necessárias para as comunidades Miskitas, Sumos, Ramas e demais etnias do Atlântico da Nicarágua, com o propósito de elevar seu nível de vida e contribuir para o desenvolvimento social e econômico da [N]ação‖‖.12 Com base no acima exposto, a Corte considerou evidente a existência de normas que reconhecem e protegem a propriedade comunitária indígena na Nicarágua13. No entanto, notou que o procedimento para titulação das terras ocupadas pelos grupos indígenas não estava claramente regulado na legislação nicaragüense. A dita lei nº 14, na consideração da Corte, não estabelecia um procedimento especifico para a demarcação e titulação das terras indígenas atendendo a suas características particulares. A consideração se baseou em depoimentos de várias testemunhas e peritos que compareceram perante a Corte e manifestaram que na Nicarágua há um desconhecimento geral e uma incerteza do que se deve fazer e perante quem se deve dirigir uma petição relacionada à demarcação e titulação de terras. O mesmo foi sustentado em provas documentais, como o Diagnóstico General sobre 11 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000. p. 13. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000. p. 71. 13 A primeira Constituição nacional a garantir o direito de propriedade aos povos indígenas foi a pioneira Constituição mexicana de 1917 em matéria de direitos sociais. A reivindicação indígena pela terra no México ―fixou-se juridicamente nas disposições do artigo 27 da constituição de 1917, que, na sua redação original, garante o direito das comunidades indígenas a suas terras, reivindicando tanto aquelas de que foram despojadas como dando-as aos núcleos de povoação que delas carecem. Esse direito agrário mexicano, que reconhece um direito à terra ancestral, questiona, ao mesmo tempo, o próprio Direito da modernidade, pois com relação à posse da terra proclama a existência da comunidade indígena como titular de direitos‖. Rangel, Jesus Antonio de la Torre. Direitos dos Povos Indígenas: da Nova Espanha até a Modernidade. In Direito e Justiça na América Indígena. Da Conquista à Colonização. WOLKMER, 1998. p. 235. 12 38 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I ―a posse da terra nas comunidades indígenas da Costa Atlântica‖, que afirmava: […]a ausência de uma legislação que atribua ao INRA as faculdades específicas para titular as terras comunais indígenas‖ e se afirma que é possível que a existência de ―ambigüidades legais haja […] contribuído à marcada lentidão da resposta do INRA às demandas indígenas pela titulação comunal‖. E […]existe uma incompatibilidade entre as leis específicas de Reforma Agrária sobre a questão da terra indígena e o ordenamento legal do país. Esse problema implica confusão legal e conceitual, e contribui para a ineficácia política das instituições encarregadas de resolver este tema. 14 A propósito da situação social dos índios da região, alguns depoimentos de peritos do caso são elucidativos. Na visão de Rodolfo Stavenhagen Gruenaum15, antropólogo e sociólogo, na condição de perito no processo, os povos da região estão num estado tradicionalmente marginalizado pelo poder central e vinculados a algum interesse do tipo econômico ou internacional, embora muito conscientes de sua identidade cultural, com formas de organização próprias que os distinguiria do resto da população da Nicarágua. Para Stavenhagen, os povos indígenas, em diferentes países do continente, enfrentam problemas de discriminação, situação que tem se modificado há alguns anos, devido a mudanças legislativas e constitucionais, à opinião pública e também devido às reclamações e pelo seu nível de organização. Outro perito, Roque de Jesús Roldán Ortega16, advogado, afirmou haver na Nicarágua dois tipos de indígenas: um situado na Zona Pacífica, fortemente vinculado à economia de mercado e bastante integrado aos padrões da cultura nacional e outro situado na Zona Atlântica, que mantém fortes traços de sua cultura tradicional, entre os quais se encontram os Mayagna. Na sua percepção, a partir do descobrimento da América Latina, a política de tratamento dos povos indígenas baseou-se na busca de uma integração acelerada daqueles povos aos padrões de vida do resto da sociedade nacional. Paulatinamente, os países viriam modificando seu regime constitucional, passando a reconhecer a diversidade cultural dos povos indígenas e o direito à legalização de suas terras. A Nicarágua, a seu juízo, foi um dos primeiros países da América Latina a fazer esse reconhecimento, a partir do momento em que sua Constituição Política de 1987 e a Lei de Autonomia foram adotadas, considerando os indígenas ―proprietários plenos da terra‖. Apesar da garantia constitucional avançada, algumas mudanças de ordem legal seriam necessárias no país, entre elas nas normas constitucionais, de modo a viabilizar na prática os direitos indígenas. A perita Lottie Marie Cunningham de Aguirre17, advogada, acrescentou que as comunidades indígenas enfrentavam historicamente problemas com o sistema judicial do país devido à falta de harmonia entre o Direito Positivo e o Direito Consuetudinário, bem como devido à demora judicial em assuntos de interesse social. A perita esclareceu que a 14 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000. p. 71-72. Ibid., p. 25. 16 Ibid., p. 40. 17 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2000. p. 43. 15 39 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Constituição da Nicarágua consagra, do ponto de vista formal, o direito de propriedade das comunidades indígenas nos artigos 5, 89 e 180. Para a Corte, ficou provado inexistir na Nicarágua uma política de titulação de terras de comunidades indígenas. A declaração da perita Lottie Marie Cunningham de Aguirre é clara nesse sentido, ao afirmar não existir nenhum procedimento interno através do qual as comunidades possam se valer para defender seus direitos ancestrais. A Corte considerou provado que a comunidade Awas Tigni havia realizado diversas ações perante várias autoridades nicaragüenses no sentido de fazer valer os seus direitos. Em particular no que diz respeito aos recursos de amparo efetuados pela comunidade, a Corte julgou que o Estado desconheceu o principio de prazo razoável consagrado na Convenção Americana. As declarações de diversas testemunhas demonstraram a ausência de respostas do governo, em que pese as ações da comunidade pelo reconhecimento de seus direitos. Jaime Castillo Felipe18, na condição de ex-síndico da comunidade, informou à Corte que, de 1991 a 1996, requereu ao INRA a titulação ou demarcação das terras em favor da comunidade, no entanto, as gestões foram infrutíferas, visto não haver obtido resposta até aquela data. Em 12 de março de 1996, realizou uma ação perante o governo Regional da RAAN, obtendo como resposta que o órgão iria estudar sua solicitação, mas que não recebeu qualquer resposta. Na oportunidade, apresentou mapas da comunidade, o censo da população e um documento referente ao território da comunidade elaborado pelo Doutor Theodore MacDonald, da Universidade de Harvard. Brooklyn Rivera Bryan19, dirigente indígena pertencente a uma das comunidades Miskitas e residente na Região Autônoma do Atlântico Norte da Nicarágua, declarou haver realizado ações opondo-se à outorga das concessões. Por não obter uma atenção adequada do Estado, enviou uma comunicação a todos os demais ministros, os quais não demonstraram nenhum interesse no assunto. Acompanhada dos representantes das comunidades, a testemunha se comunicou com as altas autoridades do MARENA para pleitear as inquietações das comunidades. A posição de tal instituição, igualmente à do Governo, era de que as áreas vazias eram do Estado, que as comunidades não possuíam título de propriedade e que a concessão lhes iria trazer benefícios porque geraria empregos. Em sua visão, nunca se consultou as comunidades indígenas da região sobre a conveniência da concessão à Solcarsa, nem tão pouco se assumiu um compromisso de investigar e atender de forma adequada às 18 19 Ibid., p. 20. Ibid., p. 33. 40 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I reclamações da comunidade. Humberto Thompson Sang20, membro da Comunidade indígena Lanlaya, prestou declaração no mesmo sentido: interpôs dois recursos contra a concessão da Solcarsa, mas a situação da demarcação ou titulação das terras indígenas seguiu sem progressos. À luz do artigo 21, combinado com os artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana, a Corte considerou que o Estado violou o direito ao uso e ao gozo dos bens dos membros da comunidade Awas Tigni visto que não delimitou nem demarcou a propriedade comunitária e outorgou concessões a terceiros para exploração de bens e recursos existentes na propriedade indígena. Baseou-se, para tanto, numa interpretação evolutiva dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, levando em conta as normas de interpretação aplicáveis, em conformidade com o artigo 29.b da Convenção (que proíbe uma interpretação restritiva dos direitos). Na visão da Corte, o art. 21 da Convenção Americana protege o direito à propriedade em um sentido que compreende, entre outros, os direitos dos membros das comunidades indígenas em relação à propriedade comunitária que, por sua vez, também está reconhecida pela Constituição Política da Nicarágua. Na decisão, a Corte levou em conta que a relação das comunidades indígenas com a terra não é meramente uma questão de posse e produção, mas um elemento material e espiritual, inclusive como preservação do seu legado cultural e transmissão deste às gerações futuras21. A necessidade de titulação, portanto, seria inquestionável. Segundo declaração de Jaime Castillo Felipe22, essa necessidade era demonstrada pelo fato de quando uma pessoa morria na comunidade não haver como passar aos outros o direito pelo uso da terra, situação que deixava a todos vulneráveis. A respeito do reconhecimento do direito à propriedade das terras ancestrais, também é importante o testemunho de Charly Mclean Cornelio23, natural da comunidade, e à época do julgamento secretário da Comissão Territorial de Awas Tigni. Em 1991, ele participou, junto com outros líderes da comunidade, da elaboração do mapa que define os limites territoriais Mayagna. Para ele, a luta dos Mayagna para que o Estado reconheça seu direito histórico à terra data de muito tempo atrás. Umas das últimas tentativas de obter o Direito foi mediante a elaboração de um documento intitulado Luchando para Mayagna Sumo, através do qual a comunidade solicitou o reconhecimento de seus direitos ao 20 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001. p. 35. Szabo faz interessante referência aos direitos das minorias como direitos humanos: ―Mas se eles realmente pertencem, basicamente, a esta categoria, isto depende da posição global contemporânea das minorias, mais precisamente, se os grupos minoritários são amplos ou se há muitos grupos, os quais podem ser considerados como minorias e requerem regulações políticas e proteção conforme tais condições desvantajosas de moradia; em tal contingência, esses direitos podem ser incluídos dentro dos direitos humanos (...)‖. SZABO, 1974. p. 112. 22 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001. p. 20. 23 Ibid., p. 21. 21 41 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I INRA, sem, no entanto, ter obtido resposta do ministro. A propósito, o histórico de ações da comunidade sem resposta do Estado sugere uma estratégia para retirar-lhe o fôlego para lutar por seus direitos, como, aliás, acontece em diversas partes das Américas. O caráter comunitário da propriedade indígena, a propósito, é amplamente sustentado pela doutrina relacionada aos direitos indígenas. Vivendo em sociedades tribais, os nativos tinham da terra – como do resto das coisas – uma idéia de objeto da apropriação coletiva, em benefício de todos. (…) O instituto prático primitivo da comunhão da terra associava-se à característica da completa autonomia de vontade dos indivíduos. Laços de autoridade quase não existiam, senão nos momentos de guerra. Cada qual fazia o que bem entendesse. Só os mitos e costumes do grupo é que mantinham a união. (…) tratava-se de uma sociedade economicamente homogênea e politicamente dispersa, garantida pela posse coletiva dos bens. 24 A propriedade coletiva é explicada por muitos em função das características das sociedades pré-coloniais: As sociedades indígenas pré-coloniais, assim como as demais sociedades humanas, são homogêneas, isto é, indivisíveis. Qualquer separação do jurídico, do econômico, do religioso, do político e do social é artificial, pois existe uma rede de interligações de todas as atividades humanas, não sendo possível, na prática, isolá-las. 25 Com a sentença, por tanto, a Corte Interamericana demonstra a capacidade de absorver aspectos importantes do direito indígena tradicional, para além de considerações sobre o pluralismo jurídico26. Além de sua história e cultura, a legitimidade indígena para requerer a propriedade de terras ancestrais encontra-se na função social da propriedade27, garantida pelas normas constitucionais contemporâneas e que: não podem ser interpretadas, segundo entendeu erroneamente uma parte da doutrina germânica, como simples diretrizes para o legislador, na determinação do conteúdo e dos limites da propriedade. Elas dirigem-se, na verdade, diretamente aos particulares, impondo-lhes o dever fundamental de uso dos bens próprios, de acordo com a sua destinação natural e as necessidades sociais. 28 A Corte assinalou também não haver provas da existência de danos materiais aos membros de Awas Tingni, afirmando que a sentença constitui, per si, uma forma de reparação para os membros da comunidade. Contudo, considerou que devido à falta de delimitação, demarcação e titulação da propriedade comunitária, o dano imaterial sofrido deveria ser 24 RUSCHEL, 1998. p. 113. Noutra perspectiva, fala-se nas sociedades ―caçadoras e coletoras‖ e ―pastoras‖, unidas pela condição nômade, o que faria não se habilitarem ―a direitos individuais à terra‖. WERNER, 1985. p. 41. 25 COLAÇO, 1998. p. 96-97. 26 Por pluralismo jurídico entende Boaventura de Souza Santos: ―sempre que no mesmo espaço geográfico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentação econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a um período de ruptura social como, por exemplo, um período de transformação revolucionária ou pode ainda resultar (da conformação específica do conflito de classes numa área determinada de reprodução social‖. SANTOS, 1990. p. 42. 27 A respeito do direito à propriedade e sua função social, discorre Morais: ―Aquele refere um interesse individual, enquanto pensado na sua pureza; esta, adjetivando-o, impõe a sua transcendência como interesse transindividual de natureza difusa, pois a quem pertence a função social da propriedade, parafraseando Cappelletti‖. MORAIS, 1996. p. 151-152. A propósito da menção a Cappelletti, o mesmo argui: ―A quem pertence o ar que respiro?‖. 28 COMPARATO, 1999. p. 382. 42 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I reparado, por via substitutiva, mediante uma indenização pecuniária, fixada conforme a equidade e baseando-se em uma apreciação prudente do dano imaterial. Por sete votos contra um, a Corte declarou.29 1. que o Estado violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em prejuízo dos membros da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni, em conexão com os artigos 1.1 e 2 da Convenção, em conformidade com o exposto no parágrafo 139 da presente Sentença. Dissente o Juiz Montiel Argüello. (…) 2. que o Estado violou o direito à propriedade consagrado no artigo 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em prejuízo dos membros da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni, em conexão com os artigos 1.1 e 2 da Convença, em conformidade com o exposto no parágrafo 155 da presente Sentença. (…). Por unanimidade, declarou a Corte: 3. que o Estado deve adotar em seu direito interno, em conformidade com o artigo 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outro caráter que sejam necessárias para criar um mecanismo efetivo de delimitação, demarcação e titulação das propriedades das comunidades indígenas, acorde com o direito consuetudinário, os valores, usos e costumes destas, de conformidade com o exposto nos parágrafos 138 e 164 da presente Sentença. (…) 4. que o Estado deverá delimitar, demarcar e titular as terras que correspondem aos membros da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni e abster-se de realizar, até que não se efetue essa delimitação, demarcação e titulação, atos que possam levar a que os agentes do próprio Estado, ou terceiros que atuem com sua aquiescência ou sua tolerância, afetem a existência, o valor, o uso ou o goce dos bens localizados na zona geográfica onde habitam e realizam suas atividades os membros da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni, em conformidade com o exposto nos parágrafos 153 e 164 da presente Sentença. (…) 5. que a presente Sentença constitui, per se, uma forma de reparação para os membros da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni. 30 Por sete votos contra um, decidiu a Corte 6. por equidade, que o Estado deve investir, a título de reparação do dano imaterial, no prazo de 12 meses, a quantia total de US$ 50.000 (cinqüenta mil dólares dos Estados Unidos da América) em obras ou serviços de interesse coletivo em benefício da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni, em comum acordo com esta e sob a supervisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em conformidade com o exposto no parágrafo 167 da presente Sentença. (…). 7. por equidade, que o Estado deve pagar aos membros da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni, através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a quantia total de US$ 30.000 (trinta mil dólares dos Estados Unidos da América) a título de gastos e custas em que incorreram os membros de dita Comunidade e seus representantes, ambos causados nos processos internos e no processo internacional perante o sistema interamericano de proteção, em conformidade com o exposto no parágrafo 169 da presente Sentença. (…). 31 Por unanimidade, decidiu a Corte: 29 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001. p. 89-90. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001. p. 90. 31 Id. 30 43 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 8. que o Estado deve apresentar à Corte Interamericana de Direitos Humanos, a cada seis meses, a partir da notificação da presente Sentença, um informe sobre as medidas tomadas para o cumprimento. (…) 9. decide que supervisionará o cumprimento desta Sentença e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado haja dado cabal aplicação ao disposto na presente decisão. 32 Do ponto de vista documental, a Corte baseou sua decisão num estudo intitulado Diagnóstico de la tenencia de la tierra de las comunidades indígenas de la Costa Atlántica, elaborado pelo Central American and Caribbean Research Council, apresentado pelo governo, e em três documentos apresentados pela Comissão, dois dos quais a respeito do ditame etnográfico chamado Awas Tingni - un Estudio Etnográfico de la Comunidad y su Territorio e na cópia de um outro documento intitulado Awas Tingni: Un Estudio Etnográfico de la Comunidad y su Territorio. Informe 1999. A importância cultural e religiosa do território para os indígenas é também ilustrada pelos depoimentos de peritos e testemunhas. Para Jaime Castillo Felipe, o território dos Mayagna é vital para o desenvolvimento cultural, religioso e familiar e para a própria subsistência da comunidade indígena. O território, para eles, é sagrado. Quando os habitantes de Awas Tingni passam por certos lugares, que datam de 300 séculos, segundo seu avô lhe dizia, têm que fazê-lo em silêncio, como sinal de respeito a seus mortos e saúdam a Asangpas Muigeni, o espírito do monte. Por seu lado, na visão do perito Rodolfo Stavenhagen Gruenaum, um tema fundamental para a definição dos povos indígenas é sua relação com a terra, sendo preciso compreendê-la não como um simples instrumento de produção agrícola, mas como parte de um espaço geográfico e social, simbólico e religioso, com o qual se vincula a história e a atual dinâmica daqueles povos. A própria saúde física, mental e social do povo indígena estão vinculadas ao conceito da terra. (...) o problema das terras indígenas não se reduz a uma simples questão de direito patrimonial, mas está intimamente associada às variantes culturais da vida do indígena, e juridicamente, deve ser observada também como problema cultural, especialmente a se considerá-las como habitat remanescente de populações primitivas. 33 É instigante a abordagem de Lopes em relação às exigências crescentes por validação de direitos sociais em confrontação com as tensões do passado sobre direitos igualmente emergentes: E assim como no século XIX os proprietários de escravos diziam que a abolição seria uma atitude inconstitucional, porque eles haviam licitamente adquirido escravos segundo as leis e a própria Constituição do Império, assim hoje debate semelhante se opera entre nós. 34 A diferença é que – como, aliás, indicado no texto de Lopes – hoje, 32 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001. p. 91. BASTOS, 1985. p. 93. 34 LOPES, 1998. p. 88-89. 33 44 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I com a constitucionalização de direitos sociais, com a expectativa de incorporação à cidadania, com a organização dos movimentos sociais com reivindicações vinculadas em termos não apenas políticos, mas já político-jurídicos, são estes não possuidores, são estes, a quem foi atribuída a situação de marginalizados que chegam crescentemente aos tribunais pedindo sua parte na riqueza social. 35 A sentença da Corte, embora não tendo o propósito de se sobrepor à decisão nacional, recupera o sentido para o qual o Poder Judiciário se justifica. Discorrendo sobre a crise deste poder, apegado a um formalismo e à sustentação de elites do passado, corrobora Cintra Junior: As decisões técnicas de juízes que elaboram nada mais que a operação silogística de subsunção do fato às leis garantidoras da propriedade civil não resolvem a questão e são socialmente desconfirmadas, num evidente desprestígio para o Poder Judiciário. Não se pode apartar aquelas leis antigas de sua dimensão constitucional atual. Hoje, um dos atributos básicos da propriedade é sua função social (...). 36 Com o que é possível resgatar o sentido dos estados modernos pluriculturias: (...) os estados modernos, ao se proclamarem pluriculturais reconhecem, pelo menos no plano do imaginário social, que o direito ao reconhecimento é uma das aspirações fundamentais da pessoa humana e que as reivindicações surgidas a partir das identidades coletivas, embora produto de sua inserção histórica no conjunto da nação, expressam uma nova forma de articulação e de reprodução sócio-política das chamadas alteridades. (...) Essa identidade só se tornará compreensível (...) na medida em que for possível reconstruir a história e a inserção do ‗grupo étnico‘ no tecido das relações sociais mais amplas, suas formas de resistência, suas modalidades e reprodução econômico-social, suas relações políticas com o Estado e as condições psicológicas decorrentes do conjunto de estereótipos que a nação lhe atribui, conjunto que – sabemos – é composto de preconceitos expressos ou velados, de valores negativos, de paternalismos escamoteadores, de relações – enfim – que expressam a forma da historicidade compulsória projetada sobre as desvalidas ‗sociedades sem história. 37 3.3 A decisão sobre medidas provisórias Uma terceira sentença sobre o caso foi adotada pela Corte Interamericana em função de uma comunicação dos representantes da comunidade Mayagna, de 19 de julho de 2002, mediante a qual, em conformidade com os artigos 63.2 da Convenção, requeriam medidas provisionais com o objetivo de preservar a integridade do direito ao uso e gozo da comunidade sobre suas terras e recursos, tal como reconhecido pela sentença de 31 de agosto de 2001. A ordenação de medidas provisionais se fazia necessária para evitar o dano imediato e irreparável resultante de atividades contínuas de terceiros que permaneciam no território da comunidade ou que exploravam os recursos naturais de suas terras através de medidas específicas. Ainda na avaliação dos representantes da comunidade, a Nicarágua não estava cumprindo seu compromisso, ditado na referida sentença, e, pior, estava permitindo que se perpetuasse a invasão das terras da comunidade, especialmente com relação às atividades 35 Ibid., 1998. p. 88. CINTRA JUNIOR, 1996. pág. 108. 37 CARVALHO, 1985. p. 67-72. 36 45 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I agropecuárias e de exploração madeireira na zona. A Corte, à luz do art. 63.2 da Convenção Americana e do art. 25 do seu Regulamento, observou que os antecedentes apresentados pelos representantes das vítimas em seu pedido demonstravam uma situação de extrema gravidade e urgência em relação ao respeito à propriedade da comunidade Mayagna, incluindo os seus recursos, que são base de sua subsistência, cultura e tradições, decidindo adotar as seguintes medidas provisionais. 1. Requerer ao Estado que adote, sem demora, quantas medidas forem necessárias para proteger o uso e gozo da propriedade das terras pertencentes à Comunidade Mayagna Awas Tingni e dos recursos naturais existentes nelas, especificamente aquelas tendentes a evitar danos imediatos e irreparáveis resultantes das atividades de terceiros que tenham se assentado no território da Comunidade ou que explorem os recursos naturais existentes no mesmo, até que tanto não se produza a delimitação, demarcação e titulação definitivas ordenadas pela Corte. 2. Requerer ao Estado que dê participação aos peticionários no planejamento e implementação das medidas e que, em geral, os mantenha informados sobre a implementação das medidas prolatadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. 3. Requerer ao Estado que investigue os fatos denunciados que deram origem às presentes medidas com a finalidade de descobrir os responsáveis e sanciona-los. 4. Requerer ao Estado, aos representantes da Comunidade à Comissão Interamericana que informem à Corte sobre as medidas adotadas para a implementação do ―acordo de reconhecimento provisional dos direitos de uso, ocupação e aproveitamento da Comunidade‖ tão logo essas sejam implementadas. 5. Requerer ao Estado que informe à Corte Interamericana de Direitos Humanos, a cada dois meses, sobre as medidas provisórias adotadas e requerer aos representantes da Comunidade que apresentem suas observações aos relatórios correspondentes no prazo de quatro semanas contado a partir de seu recebimento e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que apresente suas observações a ditos relatórios dentro de um prazo de seis semanas contado a partir de seu recebimento. 38 Diante de um caso com as características deste, não poderia ser mais significativa a conclusão de Cançado Trindade a seu respeito: Em um caso contencioso (sentença quanto ao mérito) sem precedentes, o da Comunidade Mayagna Awas Tigni versus Nicarágua (2001), a Corte protegeu toda uma comunidade indígena, e seu direito à propriedade comunal de suas terras (sob o artigo 21 da Convenção); determinou a Corte que a delimitação, a demarcação e a titulação das terras da referida comunidade indígena deveriam efetuar-se em conformidade com seu direito consuetudinário, seus usos e costumes. 39 4 CONCLUSÃO Com a sentença sobre o caso Mayagna Awas Tingny contra a Nicarágua, a Corte Interamericana demonstrou a capacidade de absorver aspectos importantes do direito indígena tradicional, ao mesmo tempo em que os compatibilizava com a normativa internacional regional de proteção dos direitos humanos. Além de sua história e cultura, a legitimidade 38 39 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2002. p. 7. CANÇADO TRINDADE, 2003. p. 20. 46 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I indígena para requerer a propriedade de terras ancestrais encontra-se na função social da propriedade, garantida pelas normas constitucionais contemporâneas. Estamos diante, claramente, de uma decisão com todos os elementos requeridos para entendê-la como alusiva à proteção dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais, sem que, para tanto, direitos humanos civis e políticos tenham sido desconsiderados. Apesar das consideráveis limitações ainda evidentes no que se refere à validação de direitos humanos no plano internacional, o caso é também revelador de que vivemos um momento único na história dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. No campo específico da proteção internacional dos direitos humanos, as cortes regionais de proteção dos direitos humanos representam o que há de mais sofisticado em termos da busca de garantia pela efetividade para os direitos humanos. O novo momento de direito internacional é resultado da necessidade de estabelecer limites à noção tradicional de responsabilização do Estado na arena internacional em situações em que as instituições nacionais se mostram omissas ou falhas na tarefa de proteger os direitos humanos, conforme declarados em instrumentos internacionais e nacionais, considerando que os Estados participam do sistema internacional de proteção dos direitos humanos por livre e espontânea vontade. A proteção a direitos humanos econômicos, sociais e culturais pela via da justiciabilidade – acesso ao Poder Judiciário – internacional apresenta-se como um caminho em consonância com o princípio da igualdade ou da não discriminação, que circunda todo o corpus juris da proteção internacional dos direitos humanos, aplicando-se a todas as categorias de direitos, porquanto já não teria sentido levar às últimas conseqüências as violações do princípio da não discriminação no tocante tão somente aos direitos civis e políticos e continuar tratando as mesmas violações com relação aos direitos econômicos, sociais e culturais complacentemene como meras conseqüências adversas das políticas econômicas ou públicas dos estados, senão como uma simples e lamentável fatalidade. A consequência prática para o reconhecimento do princípio da indivisibilidade no caso Mayagna Awas Tingny contra a Nicarágua, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, representa o atendimento a medidas positivas de proteção para direitos sociais. Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais – como os direitos humanos e geral – devem fazer-se acompanhar de várias maneiras de realização prática, incluindo a judicial, para merecerem a designação de direitos humanos. Esse é um imperativo do qual não se pode escapar, sob pena de vermos os direitos humanos reduzidos a normas programáticas. 47 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I REFERÊNCIAS BASTOS, Aurélio Wander. As Terras Indígenas no Direito Constitucional Brasileiro e na Jurisprudência do STF‖. In: SANTOS, Silvo Coelho dos. (Org.). Sociedades Indígenas e o Direito: uma questão de Direitos Humanos. Florianópolis: UFSC, 1985. BENVENUTO, Jayme. 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Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos: (Aprovado pela resolução AG/RES. 448 (IX-O/79), adotada pela Assembléia Geral da OEA, em seu Nono Período Ordinário de Sessões, realizado em La Paz, Bolívia, outubro de 1979). Disponível em: < http://www.cidh.org/Basicos/Base11.htm>. Acesso em: 11.fev. 2004. 49 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I TUTELA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL: COMPLEXIDADES E DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI Marcos Wachowicz1 SUMÁRIO: 1.Introdução. 2. Propriedade Intelectual dos tipos móveis de Gutemberg às bases de dados digitais. 2.1. Os novos desafios do Século XXI para tutela do bem intelectual. 2.2 Revolução da Tecnologia da Informação: a complexidade sistêmica de sua conceituação. 3. A complexidade da tutela dos bens informáticos. 4. Considerações Finais. Referências. RESUMO O presente estudo analisa o sistema internacional de propriedade intelectual construído desde o século XIX e a situação paradoxal que se encontra no início do século XX no qual se percebe uma falta crescente de efetiva proteção dos bens intelectuais existentes no ciberespaço, que podem ser transmitidos, copiados, resumidos, permutados e até adulterados, sem qualquer controle do seu legítimo titular, das autoridades estatais ou mesmo internacionais. O ordenamento jurídico foi surpreendido com a dinâmica estimulada pelas novas tecnologias, cuja capacidade de gerar fatos novos imobiliza o legislador, incapaz de acompanhá-la. Neste sentido o artigo empreende uma análise histórica do direito da Propriedade Intelectual possuindo foco nos desafios para a Ciência do Direito com o advento da Sociedade Informacional, que coloca em questão os seus primados clássicos, sua lógica hierárquica, territorial e burocratizada, não concebe respostas satisfatórias à solução de conflitos da Sociedade Informacional apenas em imersão. Palavras-chave: Propriedade Intelectual – Sistema Internacional da Proteção – bem imaterial. ABSTRACT The present work analyzes the international system of intellectual property constructed since century XIX and the paradoxical situation that it find in the early twentieth century in which perceives a growing lack of effective protection of the intellectual assets that exist in the cyberspace, that can be transmitted, copied, summarized, exchanged and even adulterated, 1 Professor Permanente no Curso de Pós-Graduação Mestrado/Doutorado em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual e Direito e Tecnologia da Informação.Autor de diversos artigos e livros como Propriedade Intelectual do Software e a Revolução da Tecnologia da Informação. E-mail: [email protected] 50 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I without any control of its rightful owner, the state or international authorities. The legal system was surprised by the dynamic stimulated for the new technologies, whose capacity to generate new facts immobilizes the legislator, unable to follow it. In this direction, the article undertakes a historical analysis of the Intellectual property right having focus on the challenges for the Science of Law with the advent of the Information Society, that places in question its classic primes, its hierarchical structure, territorial and bureaucratic, doesn‘t conceive satisfactory answers to the conflict solutions of the Information Society only in immersion. Keywords: Intellectual Property - International System of Protection - immaterial asset. 1. INTRODUÇÃO O desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação digital conjugado com o recurso a meios informáticos propiciou o surgimento da nova Revolução Tecnológica2 e o advento da Sociedade Informacional.3 Todos esses avanços técnicos dão base a estruturas globais de sistemas informáticos de comunicação, dentro do processo de globalização.4 A nova Sociedade da Informação possui como característica intrínseca infindáveis potencialidades de difusão de obras intelectuais. A associação das auto-estradas da informação, como infra-estrutura do ciberespaço5, permite a existência de uma rede denominada INTERNET, que interliga um número incontável 2 A nova revolução tecnológica tem recebido muitas denominações: Castells a chamou Revolução das novas Tecnologias de Informação; Negroponte preferiu denominá-la a Era da Pós-informação; Jean Lojkine nomeou-a Revolução Informacional; e Jeremy Rifkin a apontou como a Era do Acesso. Entre tantas outras classificações, o que parece comum a todos, no entanto, é o uso do computador como instrumento vital da comunicação, da economia e da gestão. Neste sentido ver: LOJKINE, Jean. A Revolução Informacional. Tradução de José Paulo Netto. – 2.a ed. São Paulo : Cortez, 1999, p. 27; RIFKIN, Jeremy. A era do acesso. Tradução Maria Lucia G.L. Rosa. São Paulo : Pearson, 2001, p. 3; NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. 2.a Ed; São Paulo : Companhia das Letras, 1995, p. 157. 3 A Revolução Tecnológica, no processo de mudanças econômico-idológico-culturais do mundo no limiar do século XXI, é que levou analistas a designar o momento histórico atual como a nova Sociedade da Informação, Sociedade Informacional ou Era da Informação. Neste sentido ver: CASTELS, Emanuel. A Sociedade em Rede. São Paulo : Paz e Terra, 1999, p. 29. 4 ―A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de intenacionalização do mundo capitalista. Para entendêla, como de resto, a qualquer fase da história, há dois elementos fundamentais a levar em conta: o estado das técnicas e o estado da política. (...) No fim do século XX e graças aos avanços da ciência, produziu-se um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da informação, que passaram a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-a se e assegurando ao novo sistema técnico uma presença planetária‖. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. 4a Ed; Rio de Janeiro : Record, 2000, p. 23. 5 Termo criado pelo autor Wiliam Gibson para descrever um mundo de computadores interconectados entre si, propiciando a comunicação entre as pessoas que os utilizam. 51 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I de computadores em todo o planeta, disponibilizando por meio de programas de computador bases de informações, que a cada dia se ampliam numa velocidade surpreendente. A INTERNET reduziu drasticamente as barreiras de espaço e tempo, facilitando o desenvolvimento da Sociedade da Informação baseada no conhecimento, na pesquisa de ponta e no acesso à informação. Contudo, evidencie-se que cada conquista tecnológica é acompanhada do surgimento de novos desafios para o Direito. Foi assim desde a invenção da impressão gráfica com os tipos móveis por Gutenberg. Indubitavelmente, o surgimento desta nova tecnologia trouxe novos contornos à propriedade intelectual, mais especificamente na tutela jurídica dos direitos do criador da obra. Estas conquistas tecnológicas estimularam o surgimento de Tratados Internacionais norteadores de legislações estrangeiras,6 como também do Direito brasileiro. 2. PROPRIEDADE INTELECTUAL DOS TIPOS MÓVEIS DE GUTEMBERG ÀS BASES DE DADOS DIGITAIS A Propriedade Intelectual passou a englobar as proteções distintas oferecidas pelo Direito Industrial e pelo Direito do Autor. Assim, o registro de patente dos equipamentos (tipos móveis) passou a ser tutelado sob a égide jurídica da Propriedade Industrial, enquanto a obra intelectual reproduzida (livros) é tutelada e protegida pelo Direito Autoral. A tutela à propriedade intelectual se opera no âmbito do Direito Interno e do Direito Internacional, visando à proteção do criador: (i) Num primeiro momento, o inventor estaria protegido de acordo com as leis de seu Estado. (ii) Num segundo, pelas normativas internacionais ou comunitárias que regulavam a propriedade intelectual. 6 ―Os princípios em torno dos quais os interesses convergiram no momento da formação do regime, no final do século XIX, fundamentam-se na idéia de que a proteção ao fruto do trabalho intelectual estimula a criatividade e os investimentos em produção de conhecimento, além de possibilitar um maior intercâmbio entre os participantes. O modo encontrado para proteger efetivamente os bens intelectuais foi transformá-los em bens apropriáveis, isto é, mercadorias que fazem parte do comércio internacional. Os princípios, normas, regras e procedimentos que constituem o regime internacional da propriedade intelectual se estruturaram a partir do conceito político e jurídico de propriedade. (...) O regime a que me refiro aqui materializou-se em duas convenções internacionais, a de Berna e a de Paris, ambas promovidas e assinadas por estados em maioria europeus‖. GALDELMAN, Marisa. Poder e conhecimento na economia global. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2004, p. 19 e 56. 52 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Essa sistemática não foi concebida para as mudanças intrínsecas ao advento da Sociedade da Informação. O processo de digitalização implicou novos contornos para os bens intelectuais, como também provocou o aparecimento de novos bens, os quais ganharam rapidamente relevo jurídico, nomeadamente os bens informáticos. Assim, dos programas de computador às bases de dados eletrônicas, dos produtos de multimídia aos circuitos integrados, dos computadores às interconexões mundiais a base de dados pela internet, todos surgem num ambiente tecnológico inédito. O confronto com o arcabouço jurídico revelou, neste limiar de século, uma falta crescente de efetiva proteção dos bens intelectuais existentes no ciberespaço, que podem ser transmitidos, copiados, resumidos, permutados e até adulterados, sem qualquer controle do seu legítimo titular, das autoridades estatais ou mesmo internacionais. A celeridade com que este progresso tecnológico vem se inserindo no corpo social é expressiva. Porém, tal inserção não ocorre de forma linear. Vale dizer, nem todos os segmentos da sociedade sofreram o impacto direto ou os benefícios da nova Sociedade da Informação. O ordenamento jurídico foi surpreendido com a dinâmica estimulada pelas novas tecnologias, cuja capacidade de gerar fatos novos imobiliza o legislador, incapaz de acompanhá-la. Neste sentido, o direito da Propriedade Intelectual encontra-se no centro das atenções e preocupações porque a Ciência do Direito com seus primados clássicos, sua lógica hierárquica, territorial e burocratizada, não concebe respostas satisfatórias à solução de conflitos da Era Digital apenas em imersão. 2.1. Os novos desafios do Século XXI para tutela do bem intelectual É indiscutível que no limiar do século XXI o bem intelectual esteja altamente internacionalizado, apontando para o esgotamento dos limites do tradicional Estado-Nação, incapaz de por si só regulamentá-lo, controlá-lo e protegê-lo. Por certo também que este avanço tecnológico imanente da Sociedade da Informação não se desenvolve dissociado da ordem econômica. Este fato levou os estados industrializados à preocupação de estabelecerem diretrizes mundiais, como se depreende da Convenção de Paris (1883), com especial atenção na revisão de Estocolmo (1967), quando foi criada a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). 53 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Na Rodada Uruguai do GATT, em 1994, as discussões sobre a tutela da propriedade intelectual tiveram grande relevo e impacto, cujo resultado foi o estabelecimento de regras sobre aspectos do direito de propriedade intelectual relacionados ao comércio e, posteriormente, anexados ao Tratado Constitutivo da Organização Mundial do Comércio (OMC), também criada naquele ano. A discussão sobre o conjunto internacional de regras mínimas, que haverão de ser aplicadas em todos os estados membros da OMPI e OMC, como meio de tutelar a propriedade intelectual e seu desenvolvimento no mundo, torna-se imprescindível e inevitável. De igual modo, faz-se mister analisar a relevância dos impactos que o progresso tecnológico da informação pode gerar para o ser humano e as comunidades em geral, ora incluindo-os nessa nova Sociedade da Informação, ao possibilitar seu acesso aos bancos de dados, ora excluindo-os, quando estes, por questões econômicas ou políticas, não tenham acesso à informação. Torna-se, portanto, indispensável à compreensão do objeto deste estudo, analisar de modo detido os principais conceitos operacionais que permeiam a presente discussão, tais como: (i) a Revolução Tecnológica e a Tecnologia da informação; (ii) o Direito de Propriedade Intelectual e os bens informáticos; e (iii) a Sociedade da Informação e a Era Digital. Neste sentido, é imperioso investigar os caminhos que o Direito terá de percorrer para permitir que, de uma forma justa e eqüitativa, os fornecedores de serviços, os titulares de propriedade intelectual e os utilizadores, a sociedade civil, de modo geral, possa se beneficiar desse novo universo digital. 2.2. Revolução da Tecnologia da Informação: a complexidade sistêmica de sua conceituação. A revolução tecnológica é um conceito que reforça a idéia da interdependência entre o contexto sócio-político-econômico-jurídico e o desenvolvimento da tecnologia. A sociedade pode seguir dois caminhos para buscar uma transformação social: (i) um, por uma mudança brusca que provoca uma ruptura na continuidade histórica; (ii) outro, pela adaptação gradual, que se faz mediante reformas sucessivas e mudanças sociais, sem ruptura. 54 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Para o conceito de revolução7 devem-se traçar alguns critérios de análise conforme aponta MENDONÇA.8 O primeiro seria a consideração de que a revolução ocorre numa realidade social estruturada sob a idéia de um sistema. A segunda implicação é a idéia de processo, não apenas dos fatos que caracterizaram um dado período, mas de seus reflexos nas rupturas da estrutura. Atribui-se à Revolução Tecnológica a idéia de uma mudança brusca, podendo ser violenta ou não, operada na sociedade. Sua origem vem de novas conquistas tecnológicas e de processos de informação e automação da produção cujos desdobramentos têm importância decisiva na economia, na política, no comportamento do ser humano, do governo do Estado, ou seja, em toda a sociedade. O conjunto de eventos tecnológicos e a maneira como se relacionam são muito diferentes entre si quando se toma uma revolução para analisar. Não são conjuntos permanentes, mudam de uma sociedade para outra, a exemplo da revolução industrial ocorrida na Inglaterra no século XVIII, e seus reflexos e desdobramentos nos demais estados europeus continentais, que ocorreram de forma diversa. O conceito de revolução tecnológica traz uma dificuldade de clareza e precisão em sua intenção e sua extensão pelas variações ao longo do tempo e do espaço, que decorre também da não-uniformidade de definições conceituais e operacionais por parte dos teóricos.9 Contudo, é importante traçar uma distinção entre Revolução Tecnológica e mudança social para o estudo do Direito. Assim, serão feitas a seguir algumas considerações metodológicas sobre a Revolução Tecnológica, que a distinguem de uma mera mudança social. 7 Aqui entendida segundo o conceito de Samuel HUNTINGTON: ―Uma revolução é uma mudança interna rápida, fundamental e violenta nos valores e mitos dominantes de uma sociedade, bem como das suas instituições políticas, estrutura social, lideranças, atividades e políticas governamentais‖. HUNTINGTON, Samuel. A ordem política nas sociedades em mudanças. São Paulo : Forense, 1975, p. 276. 8 ―Revolução é mais um destes conceitos que carecem de limites e precisão e que povoam o universo conceitual das ciências. Esta dificuldade encontra-se na História, na Sociologia, na Política, na Antropologia, etc. O problema está nos conceitos classificadores; utilizam-se conceitos universais para realidades que estão em constante mutação. Um conceito classificador soa falso ou torna-se anacrônico em certos empregos porque nenhum acontecimento é igual a outro, não ocorre uma constante repetição dos mesmos fatos. Depara-se com a dificuldade da precisão quando se pretende correlacionar o ser e identidade do plano abstracional com o plano da realidade concreta. Esta realidade é povoada de eventos únicos que podem assemelhar-se mais ou menos e nunca se encontram objetos uniformes.‖ MENDONÇA, Nadir Domingues. O uso dos conceitos (uma tentativa de interdisciplinaridade). Petrópolis : Ed. Vozes, 1985, p. 96-97. 9 ―Assim, a oposição capitalismo/socialismo foi sendo substituída pelo ícone sociedade industrial, sociedade pósindustrial e, finalmente, sociedade de informação. A oposição entre imperialismo e modernização foi sendo substituída pelo conceito, intrinsecamente híbrido, de globalização. A oposição revolução/democracia foi quase drasticamente substituída pelos conceitos de ajustamento estrutural, pelo consenso de Washington e também pelos conceitos híbridos de participação e desenvolvimento sustentado.‖ SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo : Cortez, 2000, p. 28. 55 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Primeiramente, a Revolução Tecnológica deve ser avaliada como um processo e não apenas um conjunto de descobertas ou avanços tecnológicos havidos numa determinada época. Neste sentido, deve-se efetuar um estudo ao longo do tempo para se perceber as rupturas ocorridas na estrutura do sistema social-político-econômico-jurídico e em seus paradigmas dominantes. Os processos envolvidos numa Revolução Tecnológica mostram uma série de saltos inesperados, ou seja, avanços qualitativos significativos que transformam a ordem existente, como a Revolução Digital, a Revolução Biológica, a Revolução Informacional ou, ainda, a Era Digital, a Era Eletrônica, a Era do Acesso. Com efeito, as expressões comumente usadas para referenciar a Revolução Tecnológica podem encobrir a realidade, servindo apenas para identificar um determinado período, dissimulando a série de eventos e mudanças que a sucederam e a compõem. Do mesmo modo, detecta-se a necessidade de se considerar a sociedade, em que ocorre a Revolução Tecnológica ou a mudança social advinda desta, como um todo articulado num dado momento histórico. Tal entendimento leva a incluir em qualquer análise o estudo das bases materiais da produção tecnológica, a estrutura de relações sociais e econômicas, e um conjunto de padrões de comportamento éticos e jurídicos. Isto permite perceber em que níveis de estruturas sociais ocorreram as rupturas, quais os conflitos ou contradições que determinaram a ruptura, quais as forças socioeconômicas e de que modo estas atuaram no processo de transformação tecnológica subjacente à Revolução. É preciso perceber que a linha que separa o surgimento de uma Revolução Tecnológica e a existência de uma Reforma Tecnológica não é muito clara. Entretanto, pode-se fazer a distinção levando em conta os critérios da rapidez, do âmbito e do rumo da mudança nos sistemas socioeconômicos. Assim, uma mudança de alcance limitado e de rapidez moderada pode, por sua vez, ser classificada como reforma, a exemplo da máquina de escrever e de calcular e da reforma tecnológica advinda com a máquina elétrica. Note-se que não ocorrem mudanças ou transformações sociais profundas, mas apenas consolidações. Ao contrário, a obsolescência e conseqüente substituição da máquina de escrever elétrica com o advento do computador não significam consolidação tecnológica mas a revolução advinda de uma nova tecnologia, a denominada Tecnologia da Informação. 56 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I As mudanças sociais provocadas pela Tecnologia da Informação ocorrem e continuam a ocorrer de forma descontínua, e suas transformações são radicais na linha da substituição e obsolescência. A Revolução da Tecnologia da Informação, portanto, tem implicado não mudanças graduais – típicas de uma reforma tecnológica –, nas quais o fenômeno poderia ser observado por meio de uma visão gradual e contínua, mas verdadeiras transformações sociais, políticas e econômicas. Neste sentido, o conjunto de tecnologias da informação resultante da utilização simultânea e integrada de informática e telecomunicações tem sido marcante a ponto de muitos autores o considerarem como uma nova Era, a Era da Informação, a qual rompe totalmente com os paradigmas da Era anterior. Os paradigmas sociais e organizacionais foram rapidamente alterados, a informática deixou de ser apenas um centro de dados para processar transações, manter o registro dos estoques e emitir folhas de pagamento. A Tecnologia da Informação passou a ser um recurso disponível para o desenvolvimento, tal como o capital e as máquinas em geral. A Tecnologia da Informação pode ser conceituada como recursos tecnológicos e computacionais para a guarda, geração e uso da informação. Contudo, ressalte-se que a Tecnologia da Informação não deve ser estudada de forma isolada. Existe sempre a necessidade de discutir as questões conceituais dos negócios e das atividades empresariais que não podem ser organizadas e resolvidas simplesmente com os computadores e seus recursos de software, por mais informação que detenham. Assim, os componentes da Tecnologia da Informação são: (i) hardware10 e seus dispositivos11 e periféricos12; (ii) software e seus recursos13; 10 São conjuntos integrados de dispositivos físicos, posicionados por mecanismos de processamento que utilizam eletrônica digital, usados para entrar, processar, armazenar e sair com dados e informações. 11 São os que executam as funções de entrada de processamento, armazenamento de dados e saída. A capacidade de processar (organizar e manipular) os dados é um aspecto fundamental realizado pelos componentes da Unidade Central de Processamento (UCP) com três elementos associados: a Unidade de Aritmética e Lógica (UAL), a Unidade de Controle (UC) e as Áreas de Registro (AR). 12 São os dispositivos de entrada e saída que trabalham em conjunto com o computador, quais sejam: dispositivos de entrada (input) do computador – teclado, mouse, recursos de multimídia, scanners para digitalização de imagens e leitura de códigos de barras, câmaras, filmadoras, leitores óticos, digitalizadores e microfones; dispositivos de saída (output) – monitores, impressora, plotters, etc.; dispositivos de entrada e saída concomitantes – placas de rede, modem (modulador e demodulador de telecomunicações), telefone, etc. 13 Aqui entendido como parte integrante da Tecnologia da Informação, compreendendo vários tipos de programas de computador e seus recursos, a saber: software de base ou operacionais, de rede, aplicativos, utilitários e de 57 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I (iii) sistemas de telecomunicações14; (iv) gestão de dados e informações.15 Todos esses componentes interagem e necessitam do componente fundamental que é o recurso humano, peopleware ou humananware.16 Embora esse componente não faça parte da Tecnologia da Informação, sem ele essa tecnologia não teria funcionalidade e utilidade. As novas Tecnologias da Informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não somente um elemento decisivo no sistema produtivo.17 A discussão acerca da propriedade intelectual dessas novas tecnologias culmina com a transformação e criação de novos bens intelectuais, inéditos na história da humanidade. 3. A COMPLEXIDADE DA TUTELA DOS BENS INFORMÁTICOS A Revolução Tecnológica com suas novas tecnologias ocasionou a criação de novos bens intelectuais, os denominados bens informáticos. A literatura contemporânea acerca do Direito Intelectual relativamente aos bens informáticos é escassa. Contudo, PAESANI18 os classifica na categoria de bens imateriais, compreendendo: o programa de computador (software) e o próprio computador (hardware). Por parte da doutrina dominante, o estudo dos bens intelectuais envolvidos no fenômeno da Revolução Tecnológica da Informação objetiva a busca de uma proteção jurídica de forma isolada. Isto é, pelo direito autoral visa-se proteger o bem informático, que é programa de computador; e, pelo direito industrial, busca-se a garantia jurídica dos equipamentos (hardwares). automação, que dirigem, organizam e controlam o hardware fornecendo instruções, comandos, etc. 14 Os sistemas de telecomunicações e seus respectivos recursos são subsistemas especiais do Sistema de Informação global das empresas. As comunicações podem ser definidas como as transmissões de sinais por um meio qualquer, de um emissor a um receptor. As telecomunicações se referem à transmissão eletrônica de sinais para comunicações. As comunicações de dados são um subconjunto especializado de telecomunicações que se referem à coleta, processamento e distribuição eletrônica de dados, normalmente entre os dispositivos de hardware de computadores. 15 A gestão de dados e informações compreende as atividades de guarda e recuperação de dados, níveis e controle de acesso das informações, requerendo para essa gestão um completo plano de contingência e um plano de segurança de dados e informações. 16 São as pessoas que utilizam os sistemas informáticos, seja desenvolvendo programas de computador ou processando informações existentes nas bases de dados. 17 Ver neste sentido: CASTELLS, Manuel. A era da informação. São Paulo : Paz e Terra. 1999, p. 51. 18 PAESANI, Liliana Minardi. Direito de informática. 2.a ed. São Paulo : Atlas, 1999, p. 23. 58 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Inclusive, nos escassos casos que têm chegado aos tribunais brasileiros, parte-se de uma perspectiva clássica do Direito Intelectual, pautado nas Convenções de Berna de Direito Autoral e de Paris de Direito Industrial.19 Há uma simetria no entendimento entre doutrinadores e juristas que tratam estes novos bens informáticos como uma complementação linear da perspectiva inicial de proteção dos ramos de Direito Autoral e Industrial, determinando seu enquadramento jurídico aos princípios previamente existentes. É preciso lembrar-se que os primados clássicos da Propriedade Intelectual assentam a diferença entre o Direito Autoral e a Propriedade Industrial como sendo: quanto ao primeiro, a proteção e tutela da comunicação de idéias, da beleza e dos sentimentos do gênero humano; e quanto ao segundo, o sentido prático e transformador da matéria e da tecnologia que se pretende proteger, criando-se o direito de exploração exclusiva da mesma. Desta forma, ganhou espaço no Brasil a tutela jurídica da propriedade intelectual com a promulgação de legislação recente sobre a matéria, da qual destacam-se: (i) a Lei n.º 9.279/96, que regula direitos e obrigações relativas à propriedade industrial; (ii) a Lei n.º 9.610/98, que veio alterar e consolidar a legislação sobre direitos autorais; e (iii) a Lei n.º 9.609/98, que tutela a propriedade intelectual sobre os programas de computador e sua comercialização no país. Também no Brasil os bens informáticos são considerados pela legislação como bens intangíveis. A propriedade intelectual do bem informático, dadas as suas características, pode ser tutelada pelo Direito Autoral ou pelo Direito Industrial. Vale dizer: que serão tutelados pelo Direito Autoral os programas de computador, os bancos de dados e compiladores de textos, digitalizadores de músicas, dentre outros. Por sua vez, o Direito Industrial encarrega-se dos equipamentos informáticos, computadores, circuitos, placas, dentre outros. Contudo, a complexidade imanente da tutela jurídica dos bens informáticos se multiplica com o advento da Sociedade da Informação. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 19 Neste sentido encontramos o julgado unânime da 3.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 8 de maio de 2003, publicado no DJU n.º 122, p. 240, de 30/06/2003, cuja relatora foi a ministra Nacy Andryghi, e que diz, in verbis: ―O programa de computador (software) possui natureza jurídica autoral (obra intelectual), e não de propriedade industrial, sendo-lhe aplicável o regime jurídico atinente às obras literárias‖. 59 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I O limiar do século XXI marca uma mudança de paradigmas da sociedade que, com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, exige que as soluções jurídicas para a tutela da propriedade intelectual sejam encontradas em harmonização com a denominada Sociedade Informacional. É preciso ter claro que a criação da rede mundial de computadores possibilitou um altíssimo fluxo de informação, em velocidade jamais vivenciada pela humanidade. Assim, a internet surgiu tendo como paradigma o livre acesso à informação disponível no ciberespaço. A propriedade intelectual, uma vez digitalizada e disponibilizada pela rede mundial de computadores, ensejou reações conflitantes sobre a possibilidade de sua tutela no ciberespaço: (i) a primeira corrente cogitava o desaparecimento do instituto de direito autoral em virtude da liberdade de acesso e uso da informação no ciberespaço; e (ii) a segunda, ao contrário, reafirmava fortemente a defesa dos direitos exclusivos do autor e dos que são a ele conexos no ambiente digital. Independentemente disso, foram celebrados documentos internacionais reafirmando os preceitos das convenções de Berna e de Paris, buscando regular a propriedade Intelectual conciliando os interesses comerciais de um mercado de bens numa economia globalizada, sem contudo perceberem a nova realidade da Sociedade Informacional. A Sociedade Informacional e o exponencial crescimento da tecnologia digital propiciaram o surgimento de um território virtual sem fronteiras denominado de ciberespaço, no qual a informação, o conhecimento e os bens intelectuais são compartilhados livremente pela internet. A questão da tutela do bem intelectual na Sociedade Informacional possui uma complexidade de fatores que se conjugam: (i) a ausência de Direito interno positivo eficaz diante dos limites do Estado em regulamentar o ciberespaço; (ii) a necessidade de redimensionar a concepção tradicional dos direitos intelectuais, cujos primados clássicos foram erigidos com a Revolução Industrial e protegidos pela regulamentação interna dos estados, que assegurava a eficácia e a estabilidade ao sistema dentro daquele contexto tecnológico; e (iii) a Revolução Tecnológica que, ao reinseri-los num ambiente digital, demonstrou de forma cabal as limitações dos direitos autorais e industriais propostas com base nas Convenções de Berna e de Paris. 60 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Contudo, esses os textos legais que vigoram no Brasil atualmente não conheceram, nem mensuraram a potencialidade de criação e difusão do bem intelectual na internet. REFERÊNCIAS CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra. 1999. GALDELMAN, Marisa. Poder e conhecimento na economia global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. HUNTINGTON, Samuel. A ordem política nas sociedades em mudanças. São Paulo: Forense, 1975. LOJKINE, Jean. A Revolução Informacional. Tradução de José Paulo Netto. – 2.a ed. São Paulo: Cortez, 1999. MENDONÇA, Nadir Domingues. O uso dos interdisciplinaridade). Petrópolis : Ed. Vozes, 1985. conceitos (uma tentativa de NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. 2.a Ed; São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PAESANI, Liliana Minardi. Direito de informática. 2.a ed. São Paulo: Atlas, 1999. RIFKIN, Jeremy. A era do acesso. Tradução Maria Lucia G.L. Rosa. São Paulo: Pearson, 2001. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. 4a Ed; Rio de Janeiro: Record, 2000. 61 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I PROPRIEDADE INTELECTUAL, VIDA, SAÚDE E MEIO AMBIENTE Afonso de Paula Pinheiro Rocha1 SUMÁRIO: Introdução. 1. Propriedade intelectual e seu funcionamento. 2. Vida, saúde e biotecnologia. 3. Patentes de medicamentos e direito fundamental à saúde. 4. Sementes, transgenia, soberania e direito fundamental ao meio ambiente equilibrado. 5. A importância de um domínio público ambiental e a função sócio-ambiental da propriedade intelectual. Conclusão. Referências. RESUMO O artigo pretende abordar as tensões constitucionais relacionadas à propriedade intelectual e outros direitos fundamentais como vida, saúde e biotecnologia. Na primeira parte é apresentada uma noção introdutória da propriedade intelectual e como funciona tal sistema jurídico. Após são confrontadas questões básicas relativas à vida e saúde, com foco especial na questão do patenteamento de medicamentos e o custo imposto à sociedade. Após, é abordado como a propriedade intelectual pode implicar um controle sobre a vida e a própria soberania alimentar dos povos através do controle de sementes. O trabalho conclui apontando a necessidade de se reformular a percepção do sistema de propriedade intelectual através da visualização de sua função sócio-ambiental, bem como de se imaginar sistemas complementares voltados para inovação e desenvolvimento. Palavras-chave: Propriedade Intelectual, Vida, Saúde, Meio Ambiente. ABSTRACT The paper intends to discuss the constitutional tensions regarding intellectual property and other fundamental rights such as life, health and the environment. In the first part it is presented an introductory notion of intellectual property and it´s functioning mechanisms. After, some basic issues related to life, health are addressed, with special focus on the patenting of pharmaceuticals and the costs imposed on society. After, the issue on the sovereign as it relates to seeds and food. The paper concludes that the intellectual property system needs to be revised 1 Pesquisador do Projeto CNPQ-―Casadinho‖ – UFC/UFSC. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Pós-graduando – MBA em Direito Empresarial pela FGV/Rio. Ex-Bolsista CAPES. Ex-advogado da PETROBRAS. 62 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I on the basis of its social-environmental function, as well as the necessity to imagine a complimentary system to spur innovation and development. Keywords: Intellectual Property, Life, Health, Environment. INTRODUÇÃO O trabalho busca identificar as relações e tensões constitucionais entre o Direito da Propriedade Intelectual com direitos fundamentais relativos à vida, saúde e o meio ambiente, de forma a identificar um conjunto de necessárias harmonizações práticas, de modo a aprimorar a tutela jurídica da propriedade intelectual. Inicialmente serão apresentadas algumas questões atuais que estão em evidência relacionadas aos limites da propriedade intelectual em relação à efetivação de políticas públicas relacionadas aos direitos de vida e saúde. Depois, demonstrar-se á que formatação do sistema de propriedade intelectual possui impacto direto sobre o meio ambiente natural e sobre a própria soberania alimentar das nações. Por fim, demonstra-se a necessidade de se pensar uma ―função sócio-ambiental da propriedade intelectual‖ de modo a tornar o sistema de propriedade mais racional e eficiente em relação ao seu propósito constitucional, ou seja, promover o desenvolvimento. 1 PROPRIEDADE INTELECTUAL E SEU FUNCIONAMENTO ―Propriedade Intelectual‖ é uma expressão genérica, correspondendo ao direito de apropriação sobre criações, obras e produções do intelecto, talento e engenho humanos. É um conceito ―guarda-chuva‖, que engloba uma série de diferentes doutrinas, todas, porém, relacionadas com apropriabilidade do valor relativo a atividades intelectuais e de implementação de idéias, dados e conhecimento em atividades práticas. Numa lição que já se reputa clássica de Denis Borges Barbosa, compreende-se a noção de Propriedade Intelectual: ―(...) como a de um capítulo do Direito, altissimamente internacionalizado, compreendendo o campo da Propriedade Industrial, dos direitos autorais e outros direitos sobre bens imateriais de vários gêneros‖.2 De forma ainda mais abrangente, Bettina Augusta Amorim Bulzico entende que a 2 BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. vol. 1. p. 5. 63 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Propriedade Intelectual ―(...) envolve toda atividade humana de caráter intelectual, que seja passível de agregar valores e que necessite de proteção jurídica‖.3 A expressão consagrou-se a partir da ―Convenção de Estocolmo‖, de 14 de julho de 1967, com a constituição da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI (World Intellectual Property Organization – WIPO), que, posteriormente, veio a se tornar uma agência especializada dentro do sistema das Nações Unidas, em 17 de dezembro de 1974. No Brasil, o a convenção de constituição da OMPI foi promulgada pelo Decreto nº 75.541, de 31 de março de 1975.4 Maristela Basso destaca a importância da OMPI para uma compreensão unificada: ―(...) a OMPI unifica os conceitos, abolindo a tradicional divisão existente no modelo tradicional ou histórico, que separava os direitos dos autores e dos inventores em duas categorias: direito de autor e conexos e propriedade industrial‖.5 Com efeito, vários doutrinadores apontam elementos comuns às diversas doutrinas identificadas com a propriedade intelectual, o que permitiria a sua classificação e estudo conjunto. Luiz Otávio Pimentel vislumbra um núcleo comum a todos os direitos que recaem sobre o rótulo de propriedade intelectual: ―(...) entre os elementos comuns, ou nucleares, de toda a propriedade intelectual a imaterialidade do seu objeto (incorpóreo) e o tempo limitado da sua proteção (...)‖.6 Logo, os elementos característicos da propriedade intelectual essa imaterialidade e proteção jurídica temporária são como que as engrenagens principais que permitem o funcionamento desse sistema jurídico. Os bens intelectuais, exatamente por essa imaterialidade, não são capazes de exclusão. São tidos, nos termos econômicos como ―imperfeitamente exclusivos‖7, pois é 3 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Evolução da Regulamentação Internacional da Propriedade Intelectual e os Novos Rumos Para Harmonizar a Legislação. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Unibrasil. Vol 1. 2007. Disponível em: <http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br>. Acesso em: 25.07.08. 4 O art. 2º da Convenção indica de forma exemplificativa e ampliativa uma série de direitos que estariam englobados pela noção de propriedade intelectual. No texto do Decreto 75.541/75: ―(...)Para os fins da presente Convenção, entende-se por: (...) viii ―propriedade intelectual‖, os direitos relativos: às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiofusão; às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico‖. 5 BASSO, Maristela. A proteção da propriedade intelectual e o direito internacional atual. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 41. n. 162. p. 287-310. abr./jun. 2004. p. 288. 6 PIMENTEL, Luiz Otávio. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento. In: Propriedade Intelectual – Estudos em Homenagem à Professora Maristela Basso. Curitiba: Juruá Editora. 2005. p 41-60. p. 46. 7 LESSIG, Lawrence. The Future of Ideas – The Fate of the Commons in a Connected World. New York: 64 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I possível excluir terceiros de determinada informação ou conhecimento enquanto estes forem mantidos em segredo. Uma vez comunicados, não podem mais ser removidos daquele indivíduo. Além disso, os bens intelectuais são considerados bens não rivais, exatamente por não existir esgotamento do recurso em virtude de sua utilização. Várias pessoas podem cantar a mesma canção ao mesmo tempo, sem que esta jamais se esgote, por exemplo. Traduzida em termos econômicos, a não rivalidade dos bens imateriais implica que, uma vez produzidos, os recursos podem ser disponibilizados a outros com um custo marginal zero ou muito pequeno. Tratando dessa questão sob o ponto de vista do consumo de informações, François Lévêque e Yann Ménière, assim expõe o problema: ―(...) the marginal cost of serving an additional consumer is zero. Consequently, when a producer charge for his service, consumption of the good is needlessly rationed. (…) Social welfare is not maximized.‖8 Entretanto, a lógica de uma distribuição livre em virtude do custo marginal de reprodução ser próximo a zero, está baseada na premissa de que o bem imaterial já foi produzido, ou seja, trata-se de uma lógica ex post a existência do produto. Tal lógica apresenta um problema, pois um produto produzido a custo marginal zero, teria o próprio preço zero e por sua vez, sequer seria produzido em primeiro lugar. Logo, o problema associado a este tipo de recursos é a necessidade de se garantir sua produção através de um sistema de incentivos adequado. O sistema de propriedade intelectual se pretende uma forma de atacar os dois problemas, ou seja, incentivos para a produção e garantia de distribuição eficiente. Consoante Lévêque e Ménière, By offering an exclusive right for a limited period, intellectual property law addresses these two problems sequentially. Initially, the legal mechanism of protection makes the good excludable. Users are required to pay for the services offered, through royalties. Subsequently when the work passes into the public domain, all consumers can access it free of charge. Intellectual property law thus attempts to strike a balance between the incentive to create and innovate and use translates into economic language as a trade-off between dynamic and static efficiency.9 Vintage Books, 2002. p. 94. 8 LÉVÊQUE, François; MÉNIÈRE, Yann. The Economics of Patents and Copyright. Paris: Berkley Eletronic Press, 2004. p. 5. Tradução livre: ―O custo marginal de servir um consumidor adicional é zero. Conseqüentemente, quando um produtor cobra por seu serviço, o consumo do bem é racionada de forma desnecessária. (...) O bem estar social não é maximizado‖. 9 LÉVÊQUE, François; MÉNIÈRE, Yann. The Economics of Patents and Copyright. Paris: Berkley Eletronic Press, 2004. p. 5. Tradução livre: ―Através da oferta de direitos exclusivos por um período de tempo limitado, a propriedade intelectual trata desses dois problemas de forma seqüencial. Inicialmente, o mecanismo legal de proteção torna o produto exclusivo. Usuários devem pagar pelos serviços oferecidos, através de royalties. Seqüencialmente, quando o trabalho passa para o domínio público, todos os consumidores podem acessá-lo de forma gratuita. Propriedade Intelectual procura encontrar um equilíbrio entre incentivos para a criação e inovação 65 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I De maneira grosseira. A exclusividade, o controle atribuído, sob a roupagem de ―propriedade‖, ao titular da propriedade intelectual permite-lhe cobrar pelo uso ou acesso à informação, conhecimento ou produto, acima do custo marginal na expectativa de que esse surplus, seja um incentivo eficiente para a própria produção da informação, conhecimento ou produto. A temporariedade, por sua vez, seria o tempero para que essa distorção em favor do titular à custa da sociedade não se perenizasse. Essa simplificação, repetida na maior parte da doutrina, esconde em sua superficialidade, contudo, uma diversidade de questões muito mais sensíveis. Em verdade, a propriedade intelectual, por si só, já carrega uma série de problemas que devem ser equacionados antes que se possa garantir que este sistema de normas é o mais eficiente para a promoção do desenvolvimento humano. A estrutura do sistema de propriedade intelectual deve estar apta a resolver questões como: A exclusividade deve incidir sobre quais usos e aproveitamentos econômicos? Que tipos de exceção devem ser conferidos a essa exclusividade em razão do interesse social? Qual o tempo de duração ótimo? Deve existir algum sistema paralelo de promoção de incentivos para criações intelectuais? Existem outros incentivos além da exclusividade econômica? Quais conhecimentos devem ser colocados no domínio público para a utilização irrestrita? Essas questões são fundamentais e se traduzem em questões mais específicas relacionadas à vida, saúde e meio ambiente que serão abordas aqui. 2 VIDA, SAÚDE E BIOTECNOLOGIA Uma área de profunda interface entre os direitos de propriedade intelectual e valores constitucionais é a efetivação do direito fundamental à saúde. Não obstante existirem divergências quanto aos elementos que viriam a compor o ―conjunto mínimo essencial de direitos humanos‖ frente às diversas legislações mundiais, há um relativo consenso de que o direito à saúde é um deles ou, pelo menos, o direito de ter acesso a tratamento em caso de enfermidade.10 O direito fundamental à saúde é um corolário do direito fundamental à própria vida e usos, traduzindo-se em linguagem econômica como uma troca entre eficiências dinâmica e estática.‖ 10 PRONER, Carol. Saúde Pública E Comércio Internacional: A Legalidade Da Quebra De Patentes. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Unibrasil. Vol 1. 2007. Disponível em: <http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br>. Acesso em: 25.07.08. 66 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I humana. Este último pode ser vislumbrado como um direito fundamental básico ou, até mesmo, um pressuposto de direitos porque ―(...) o gozo do direito à vida é uma condição necessária do gozo de todos os demais direitos humanos‖.11 O direito fundamental à saúde seria uma das dimensões do direito à vida, que importaria o direito humano dispor dos meios apropriados de subsistência e de um padrão de vida digna dentro de um contexto de direitos econômicos, sociais e culturais. No caso brasileiro, a Constituição Federal indica que a saúde é dever do Estado e direito de todos, garantindo mediante políticas sociais e econômicas o acesso universal igualitário às ações e serviços objetivando a promoção, proteção e recuperação (Art. 196 da Constituição Federal), a saber: Art. 5º. Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida(...) Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde,(...) Art. 196. A saúde e direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação. (grifado e negritado). A Carta Magna também estabelece no Art. 198 que as ações e serviços de saúde devem garantir um atendimento integral (inciso II) introduzindo desta maneira o Sistema Único de Saúde – SUS, que estabelece competência concorrente as três esferas do Poder Executivo: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único organizado com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo. Regulamentando esta disposição constitucional, no âmbito infraconstitucional, a Lei n. 8.080/90 prescreve: Art. 2º. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. § 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade. (...) Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; O art. 7º, inciso I, estabelece como princípios a serem adotados nas ações e serviços de saúde a universalidade de acesso em todos os níveis de assistência e a igualdade da assistência à saúde. O art. 43, de sua parte, estabelece a gratuidade das ações e serviços de 11 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1993. p. 71. 67 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I saúde. Torna-se inimaginável uma ordem jurídica que pretenda garantir a dignidade da pessoa humana sem a atuação estatal para assegurar aos mais necessitados, ao menos, a medicação adequada ao seu tratamento. Nesse sentido, é pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: (...) A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política -- que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro -- não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º., caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.‖12 Os direitos de propriedade intelectual, por sua vez, podem obstaculizar a efetivação desse direito fundamental na medida em que, como ressaltado ao longo do presente trabalho, permitem criar uma situação de escassez artificial e a manutenção de preços supracompetitivos. Tais preços dificultam o acesso de parcela significativa da população e oneram de forma significativa o patrimônio estatal. Para a compreensão da dinâmica de efetivação do direito fundamental à saúde, é necessário considerar o impacto que as patentes de medicamentos possuem. 3 PATENTES DE MEDICAMENTOS E DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE Independentemente da sua relevância para a manutenção da vida e da saúde dos indivíduos, os medicamentos e procedimentos médicos dispõem de uma proteção patentária como quaisquer outros produtos industriais. Tal situação encontrava-se caracterizada não só na legislação interna como no tratado multilateral da OMC. Dessa forma, os Estados comprometidos com o financiamento de políticas públicas de saúde encontravam um obstáculo nos elevados preços de medicamentos, especialmente aqueles mais urgentes e necessários ao combate de epidemias. Somente em novembro de 2001, durante a reunião ministerial de Doha no Catar, foi 12 RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. Celso de Mello. 68 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I adotada a famosa Declaração Ministerial de Doha13, reconhecendo que as regras da OMC não devem constituir barreiras para que os Estados tomem medidas para proteção da vida humana, animal, do meio ambiente e de saúde pública que considerem apropriadas. A declaração, contudo, reforça que tais medidas não podem se consubstanciar em medidas discriminatórias ou barreiras ao livre comércio. Trata-se de mais um exemplo onde se deixa transparecer da preocupação em balancear a efetivação de direitos humanos com a proteção dos interesses comerciais. Essa declaração foi seguida pela ―Declaração de Doha sobre o Acordo TRIP´s e Saúde Pública‖14 aprovada também em novembro de 2001, que apresentou uma maior instrumentalização das medidas possíveis aos países, dentre as quais: a) a possibilidade dos países adotarem medidas de proteção à saúde pública; b) a possibilidade de utilização de mecanismos, como licenças compulsórias e importação paralela; c) a possibilidade de extensão até 2016 das exceções existentes para proteção de patentes a produtos farmacêuticos para os países menos desenvolvidos. Os itens 4º e 5º, da Declaração de Doha sobre TRIP‘s e Saúde Pública, indicam o compromisso dos países para com a saúde pública e o acesso universal de medicamentos, bem como o direito de cada membro do TRIP‘s utilizar mecanismos de licenciamento compulsório em casos de emergência nacional, que serão definidos pelos próprios países. Há uma menção exemplificativa no item ―1‖ de doenças como AIDS, malária, tuberculose e outras epidemias. Todavia, apesar dos quase sete anos da declaração, os direitos de propriedade intelectual continuam a ser absolutos sobre a maior parte dos produtos farmacêuticos. Além disso, países detentores de tecnologia, como os Estados Unidos, utilizam pressão política e econômica para restringir ainda mais o acesso dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos a medicamentos patenteados.15 Fica clara, no plano internacional, a opção pelos licenciamentos compulsórios como uma forma de equilíbrio entre a proteção econômica conferida pelos direitos de propriedade intelectual e o interesse social no acesso ao produto a um custo mais reduzido. No Brasil, o art. 71 da lei de propriedade industrial apresenta a previsão de licenciamento compulsório para casos de emergência nacional ou de interesse público: 13 Documento da OMC: WT/MIN(01)/DEC/1, de 14 de novembro de 2001. Documento da OMC: WT/MIN(01)/DEC/2, de 14 de novembro de 2001. 15 PRONER, Carol. Saúde Pública E Comércio Internacional: A Legalidade Da Quebra De Patentes. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Unibrasil. Vol 1. 2007. Disponível em: <http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br>. Acesso em: 25.07.08. 14 69 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Art. 71: Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular. O Decreto 3.201/99 complementa a regulação dispondo sobre a concessão, de ofício, de licença compulsória, nos casos de emergência nacional e de interesse público. Os mecanismos de flexibilização foram expandidos pelo Decreto 4.830/03, que permitiu a importação de produtos protegidos por patentes sem necessidade de que tal produto tenha sido colocado no mercado diretamente pelo seu titular ou com seu consentimento. Ampliou-se, assim, a possibilidade de utilização da figura da importação paralela, ou seja, aquela efetuada de países ou mercados onde não há a efetiva proteção de direitos de propriedade intelectual e, portanto, o preço dos produtos é menor. Contudo, talvez a utilidade mais relevante dessas previsões seja a de permitir uma efetiva negociação dos governos com os detentores de patentes de medicamentos, via de regra, conglomerados multinacionais. Carol Proner destaca esse efeito extrajurídico: O mais importante efeito da licença compulsória para o mercado atual revela-se na possibilidade de reduzir os efeitos negativos das patentes sobre os preços dos medicamentos disponíveis no mercado, possibilitando maior acesso a esses mesmos produtos. Em alguns casos, a mera ameaça de utilização – como aconteceu no Brasil em relação aos produtos farmacêuticos para tratamento do HIV/AIDS – torna-se suficiente para fazer reduzir os preços dos medicamentos.16 De fato, tais medidas apresentaram grande eficácia no manejo de epidemias, especialmente no que diz respeito ao tratamento da AIDS, passando o Brasil a ser reconhecido internacionalmente por seus programas de tratamento. Bom exemplo da dinâmica de utilização de mecanismos de licenciamento compulsório foi o sucesso das negociações, em 2005, com o Laboratório Abbott, detentor da patente do medicamento anti-retroviral ―Kaletra‖. A possibilidade de licença para produção local do medicamento foi suficiente para uma redução significativa do preço.17 A questão da epidemia da AIDS, como exemplo de uma situação emergencial relacionada com a saúde pública, é de tamanha importância que foram propostos dois projetos de lei: PL nº. 4.678/2001, de autoria do Deputado Aldo Rebelo (PCB/SP) e o PL n. 22/2003, de autoria do Deputado Roberto Gouveia (PT/SP), buscando tornar não-patenteáveis os medicamentos e processos de fabricação de medicamentos relacionados ao combate à AIDS. Tais projetos, contudo, não chegaram a ser votados. 16 PRONER, Carol. Saúde Pública E Comércio Internacional: A Legalidade Da Quebra De Patentes. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Unibrasil. Vol 1. 2007. Disponível em: <http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br>. Acesso em: 25.07.08. 17 SCUDELER, Marcelo Augusto. Patentes e sua Função Social. Dissertação de Mestrado. Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba. 2007. p. 168. 70 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Essa busca de mecanismos para baratear o custo com medicamentos é sintomática da preocupação do Estado brasileiro com os crescentes gastos do SUS – Sistema único de Saúde, ainda majorados pela existência de diversas decisões judiciais que determinam o fornecimento de tratamentos ou medicamentos independentemente de previsão oficial nas listagens de medicamentos e procedimentos do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. Tal realidade suscita o questionamento de quais são os limites fáticos do que se pode esperar de uma atuação estatal em face dos recursos disponíveis. Tais limites vão refletir na própria exigibilidade judicial de efetivação dos direitos, especialmente dos direitos sociais. A doutrina e jurisprudência identificam essa situação como de aplicação da ―reserva do possível‖, termo que surgiu com uma decisão paradigmática da Corte Constitucional Alemã.18 A corte firmou entendimento que, em face da efetivação de direitos sociais, a ―prestação reclamada deve corresponder ao que o individuo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.‖19 Particularmente em relação à saúde, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou diversas vezes no sentido de que o direito fundamental à vida possui primazia sobre questões de ordem econômico-financeira. Em diversos julgados consta referência à trecho de lavra do Min. Celso de Mello no julgamento da Pet 1246: Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida.20 Assim, da mesma forma que os interesses financeiros e patrimoniais do estado ficariam em segundo plano, seria possível argumentar, prima facie, que os direitos de propriedade intelectual seguem a mesma lógica. A situação, entretanto, é mais complexa, pois não se trata de ―um interesse financeiro e secundário do Estado‖, mas de um direito reconhecido em sede constitucional relativo à proteção do privilégio – propriedade – que deve ser atribuído ao detentor da patente. Configura, no entanto, uma colisão aparente, pois existem, na própria lei, 18 BVerfGE33, 303 (333). SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005. p. 265. 20 Outros julgados que citam essa passagem: RE 267612 / RS, AI 570455/RS, AgRgRE 271286/RS, RE 198265/ RS, RE 248304/ RS, AgRgRE 273834-4 / RS. 19 71 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I mecanismos para compatibilizar os interesses em questão, a saber, o interesse econômico na exploração da patente e o interesse social de acesso aos medicamentos. Com efeito, numa interpretação unitária da Constituição, há de se verificar que enquanto mecanismos, a existência de um sistema de direitos de propriedade intelectual objetiva exatamente promover e estimular o desenvolvimento científico e tecnológico que permitiu a própria criação dos medicamentos e produtos necessários à saúde pública. Nesse particular, Maria Cecília Oswad e Luiz Leonardos apontam que, dentro de uma filtragem constitucional, deve-se observar a convergência dos objetivos constitucionais: Deve-se interpretar e aplicar o direito inserto no dispositivo constitucional tendo em mente que o seu núcleo essencial reside no quão importantes são os inventos industriais para uma sociedade. Suprimir-se o direito individual do inventor em prol de um suposto interesse público é contraditório e irracional. Isto porque o direito individual do inventor tem como um de seus fundamentos, justamente, o interesse público. (...) Por meio dos exemplos de situações em que o direito de patentes é confrontado com a livre concorrência e direito de acesso à saúde, o que se propôs foi demonstrar que, teoricamente, tais colisões não existem. Evidentemente que a análise deve ser realizada caso a caso. Porém, em tese, não prospera o entendimento de que privilégios de invenção vedam a livre concorrência e o acesso a medicamentos, tendo em vista que o artigo 5º, XXIX, foi concebido em prol, também, dos bens almejados pelos artigos 170, IV e 196 da Constituição. Os dispositivos ditos em colisão, na verdade, convergem para a busca do bem público. O artigo 5º, XXIX, portanto, está integrado, aglutinado, aos objetivos próprios dos artigos 170, IV e 196. Sendo a proteção aos inventos industriais uma opção política do povo, ―destinatário e autor do seu próprio Direito‖, é vedado ao Judiciário e ao Executivo (por intermédio dos órgãos da Administração Pública), restringir ou suprimir os direitos dos inventores se levar a cabo um sopesamento dos valores em questão para a correta interpretação-aplicação dos enunciados normativos ditos em conflito. 21 De fato, os direitos dos inventores redundam no interesse público. Contudo, os detentores dos direitos de patentes necessárias aos deveres e serviços públicos essenciais, não são indivíduos, mas sim grandes corporações multinacionais, que utilizam tais direitos para advogar para si, sob as nobres vestes de direito fundamental, efetivos monopólios sobre produtos indispensáveis à efetividade dos preceitos de dignidade humana. Como destacado no capítulo anterior, são as utilizações patológicas, em desconformidade com a função social deste tipo peculiar de propriedade que determinam a necessidade de correção do desequilíbrio, que pode ser realizada através de mecanismos como o licenciamento compulsório ou a importação paralela. Além disso, o licenciamento compulsório, por si só, não impede que o detentor da patente beneficie-se economicamente. Poderá continuar a produzir o medicamento e comercializá-lo, porém, o fará em regime de concorrência de mercado. Poderá ainda entrar em 21 OSWALD, Maria Cecília; LEONARDOS, Luiz. Direitos de Patentes – Uma proposta de filtragem constitucional. Revista da ABPI, Rio de Janeiro, Vol. 86. p. 3-17. jan/fev 2007. p. 16. 72 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I licenciamentos ou, até mesmo, impedir que o Estado utilize desses mecanismos legais entrando em acordos. Por outro lado, o direito de acesso ao produto foi ampliado, ou seja, obteve-se uma maior efetividade do direito que assiste a cada indivíduo de participar das benesses científicas de seu tempo, no caso, medicamentos. Há, assim, verdadeira ponderação de interesses, onde a solução legal restringe, mas não elimina o núcleo essencial de cada um dos direitos ou preceitos contrapostos. Os direitos de propriedade intelectual possuem ainda outra interação com o direito fundamental à saúde. As patentes de medicamentos, por exemplo, podem até mesmo ser mecanismos eficientes de estímulo para pesquisa e desenvolvimento ao permitir que o titular capture o valor desse conhecimento. Contudo, somente estimularão a pesquisa por conhecimentos que possam refletir um valor econômico a ser capturado. Com efeito, o retorno dos investimentos somente será obtido com a comercialização e utilização do produto ou tecnologia baseada na patente. Para que esse retorno seja efetivo, pressupõe-se a existência de uma demanda no mercado. Logo, os agentes econômicos irão destinar seus esforços de pesquisa e desenvolvimento para tecnologias e produtos que sejam interessantes ao mercado, ficando aqueles conhecimentos que não se mostram ―economicamente eficientes‖ comprometidos. Portanto, a verba destinada à pesquisa de medicamentos direciona-se para os medicamentos necessários aos grandes mercados consumidores, ou seja, para o tratamento de doenças que afetam prioritariamente os países desenvolvidos. Volnei Garrafa ilustra essa realidade fazendo uma comparação entre as pesquisas da AIDS e da Malária: Em 1998 foram gastos em pesquisas com medicamentos contra o HIV/AIDS cinqüenta vezes mais recursos do que no combate à malária, quando se sabe que ambas as doenças vitimaram, naquele ano, um número semelhante e aproximado de 2 milhões de pessoas em todo o mundo. A diferença para essa absurda iniqüidade no investimento de recursos está no fato de a AIDS ter logrado visibilidade pública internacional pelos enormes danos e prejuízos causados indistintamente a países ricos e pobres. Já a malária é doença caracteristicamente ―terceiro-mundista‖, atacando quase que exclusivamente pobres. Por isso, não existe interesse econômico dos grandes laboratórios privados e públicos dos países centrais em investir em caras imunizações e medicamentos para quem não possa pagar por eles. O que define as prioridades não são as necessidades detectadas na realidade concreta: é o mercado.22 Isso demonstra que a existência de um sistema de propriedade intelectual não é suficiente para permitir a produção e o desenvolvimento de todas as tecnologias que o espectro social necessita. 22 GARRAFA, Volnei. PORTO, Dora. Bioética, poder e injustiça: por uma ética de intervenção. In: GARRAFA, Volnei. PESSINI, Leo. (Org.). Bioética, poder e injustiça. São Paulo: Loyola, 2003. p. 35-44. p. 37. 73 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Faz-se necessário a intervenção do ente estatal para estimular a pesquisa e o desenvolvimento de conhecimentos que, muitas vezes, não são os mais economicamente atrativos, porém essenciais à salvaguarda de direitos e valores fundamentais. 4 SEMENTES, TRANSGENIA, SOBERANIA E DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO Outro aspecto dos desenvolvimentos tecnológicos que coloca os direitos de propriedade intelectual em contato com valores constitucionais é a questão das sementes transgênicas. Como visto no caso Monsanto Canada Inc. v. Schmeiser, tratado no capítulo anterior, os direitos de propriedade intelectual estão a permitir, num plano internacional, um controle corporativo sobre sementes e plantas. Esse domínio corporativo sobre a produção agrícola tornou-se mais contundente após a ―Revolução Verde‖23, que marca a progressiva utilização de novas tecnologias decorrentes da sociedade industrial no campo, como pesticidas, fertilizantes químicos artificiais, novas técnicas de irrigação e mecanização das lavouras. A agroindústria global possui atualmente, como um de seus pilares, o sistema internacional de propriedade intelectual. Isto se dá pela relevância que possuem os produtos patenteados, processos químicos, variações de cultivares e, mais recentemente, patentes de biotecnologia sobre sementes e plantas. No que diz respeito às variações vegetais, esse sistema é regido pela Convenção da União para Proteção das Obtenções Vegetais (UPOV), que sofreu algumas alterações, as mais importantes em 1978 e 1991.24 Com a aprovação do acordo TRIPS/OMC sobre propriedade intelectual e comércio, permitiu-se, no plano interno a possibilidade de instituição de um sistema sui generis para a para proteção de plantas. No Brasil, tanto é possível uma proteção patentária sobre processos e produtos agrícolas, como proteção específica sobre as variações vegetais que se encontra na Lei nº 9.456/97. É digno de nota que o Título II da Lei denomina-se expressamente: ―Da Propriedade 23 O termo foi cunhado pelo Diretor da U.S. Agency for International Development – William Gaud, em 1968. A ―Revolução Verde‖ tratou-se de um esforço internacional, embora tenha focado grande parte de seus esforços na América do Norte, para elevar os níveis e a eficiência de produção agrícola como forma de resolver o problema de abastecimento global. 24 Promulgada no Brasil pelo Decreto no 3.109, de 30 de junho de 1999. 74 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Intelectual‖. O art. 10 apresenta as limitações do direito de propriedade que é outorgado sobre toda a variação genética da cultivar protegida: Art. 10. Não fere o direito de propriedade sobre a cultivar protegida aquele que: I - reserva e planta sementes para uso próprio, em seu estabelecimento ou em estabelecimento de terceiros cuja posse detenha; II - usa ou vende como alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos; III - utiliza a cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na pesquisa científica; IV - sendo pequeno produtor rural, multiplica sementes, para doação ou troca, exclusivamente para outros pequenos produtores rurais, no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores rurais, conduzidos por órgãos públicos ou organizações não-governamentais, autorizados pelo Poder Público. Tais quais os outros campos da propriedade intelectual, essas limitações funcionam como mecanismos de efetivação da função social deste tipo particular de propriedade, buscando equilibrar interesses legítimos, como a subsistência do agricultor (inc. I), a pesquisa e desenvolvimento tecnológico (inc. III) com o interesse individual do detentor da propriedade do cultivar. Contudo, observe-se que tanto a ―Revolução Verde‖, como a privatização das próprias sementes, contam com menos de um século e quebram um paradigma milenar da relação da humanidade com a natureza. Além disso, o domínio via direitos internacionais de propriedade intelectual pode chegar a determinar uma erosão das soberanias nacionais frente a crescente interdependência dos países em termos de suprimentos alimentares. Bruno Gasparini faz uma síntese da situação: Desde os tempos mais remotos, portanto, os agricultores têm conservado, selecionado e melhorado suas sementes para semeadura, inclusive por meio das trocas que realizavam com outros grupos camponeses, construindo um processo de partilhas, que lhes permitiu aumentar a diversidade genética das variedades que cultivavam. Com essa prática milenar, o resultado foi uma impressionante diversidade de cultivos e variedades utilizadas na produção agrícola. Em virtude deste histórico, é que as sementes são de suma importância para a soberania alimentar, que é o direito que um povo tem de definir sua própria produção, distribuição e consumo de alimentos. Qualquer país ou povo que não tenha terras, tecnologia, insumos ou liberdade para produzir sua própria comida, é um povo dependente, pois ficará à mercê de outros povos ou nações para se alimentar. Nenhum país será soberano se não tiver o domínio da produção de suas sementes, e conseqüentemente, dos alimentos necessários para a sua própria subsistência. As transnacionais sementeiras, ao disseminarem suas formas de cultivo e suas tecnologias, obrigam as populações tradicionais a cultivar determinados produtos, influenciando no consumo, na produção e na distribuição de alimentos, verdadeira afronta ao princípio da soberania alimentar.25 25 GASPARINI, Bruno. Uma Análise Crítica dos Paradigmas Jurídicos e Econômicos no Atual Contexto Sócio-Político Ambiental que Fundamenta a Utilização da Transgenia na Agricultura Brasileira. Dissertação de Mestrado. Mestrado em Direito. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2005. p. 193-194. 75 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I De fato, a soberania é o primeiro fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. I) e tem sido debatida sob diversos aspectos. Para algumas teorias a soberania seria a não sujeição a qualquer poder estrangeiro, seja ele de Estado ou organização internacional; para outros seria o fundamento do Estado, sendo o elemento autorizador da elaboração de Constituição própria. 26 Nesse particular, para Gilberto Bercovici, a ―(...) soberania, inclusive, é a origem da constituição moderna, com sua pretensão de destacar um núcleo rígido e inalterável do poder político(...)‖. 27 Em torno desse princípio de soberania, gravitam, portanto, idéias de independência ou capacidade de autodeterminação de um povo. No entanto, os direitos de propriedade intelectual sobre plantas e produtos necessários à agricultura comprometem o pressuposto mais básico da soberania, que seria a capacidade de auto-alimentação, ou seja, de sobrevivência de um povo. Com efeito, é possível a ilação: quem controla as sementes, controla os alimentos e quem controla os alimentos, controla os povos. Bruno Gasparini demonstra como se forma um círculo vicioso de dependência tecnológico que, por sua vez, se transporta para uma dependência econômica e alimentar: O mecanismo funciona da seguinte forma: as multinacionais controlam a produção e o comércio de sementes que são geneticamente "melhoradas", eliminando as resistências naturais e aumentando a vulnerabilidade das culturas. Cria-se assim, a dependência dos agrotóxicos. As multinacionais que fabricam agrotóxicos são as mesmas que controlam o "melhoramento", a produção e a comercialização das sementes. Essa apropriação privada da geração, reprodução e distribuição de novas variedades de sementes pelas empresas privadas multinacionais, assim como o controle da oferta dos insumos que elas requerem, vêm submetendo os povos de todo o mundo a uma tirania de um novo tipo: a tirania do conhecimento biotecnológico. 28 Além dessa dependência, o sistema de propriedade intelectual, ao atribuir a titularidade de patentes ou cultivares sobre genes e plantas, gera um grave desequilíbrio no próprio cultivo das variedades vegetais existentes no globo. Dentre os possíveis problemas destacam-se: a segurança alimentar, pela predileção por variedades destinadas à exportação, com maiores preços no mercado internacional, e, até mesmo, a aculturação dos povos, comunidades tradicionais e pequenos agricultores, com a 26 SILVA, Alice Rocha da. Direito internacional público e soberania na Constituição brasileira: aplicação de decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC) no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jurídica, Brasília, v. 8, n. 80, p.72-87, ago./set., 2006. p. 74. 27 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 19. 28 GASPARINI, Bruno. Uma Análise Crítica dos Paradigmas Jurídicos e Econômicos no Atual Contexto Sócio-Político Ambiental que Fundamenta a Utilização da Transgenia na Agricultura Brasileira. Dissertação de Mestrado. Mestrado em Direito. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2005. p. 200. 76 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I conseqüente extinção das práticas tradicionais de seleção de sementes.29 Além disso, a uniformidade genética torna a espécie mais suscetível a pragas, tendo em vista que é exatamente a diversidade de genes que permite uma maior adaptabilidade ao meio ambiente. Porém, o ponto mais pertinente a este trabalho é a possibilidade de que o sistema de propriedade intelectual desregulado venha a comprometer valores constitucionais como a soberania nacional (art. 1º, inc. I); a proteção aos pequenos agricultores (art. 185, inc. I), e o direito fundamental a um meio ambiente equilibrado (art. 170, inc. VI). O pólen das plantas é carregado pelo ar, não respeitando jurisdições ou territórios. Como no caso Monsanto Canada Inc. v. Schmeiser, é possível que haja uma polinização cruzada entre plantas geneticamente modificadas e plantas naturais. Consoante a tendência proprietária ilustrada pela própria decisão do caso, é possível que o simples cultivo de gêneros alimentícios enseje violações de direitos de propriedade intelectual, limitando, assim, o direito dos agricultores de desenvolverem métodos próprios de seleção de sementes. Quanto à biodiversidade e o meio ambiente, dois elementos merecem destaque. Primeiro: a alteração genética, por si só, não obstante possuir efeitos positivos para o aumento da produção ou resistência da planta a pesticidas, pode ensejar interações nocivas com o ambiente; problemas quando do consumo humano ou, até mesmo, o surgimento de novas superpragas agrícolas. Nesse ponto, cumpre destacar o meio ambiente como um direito fundamental de terceira geração, difuso e universal, que assiste a todos, enquanto direito de viver num ambiente não poluído e ecologicamente equilibrado.30 Assim, a própria vitalidade do meio ambiente, pode ser comprometida mediante a utilização indiscriminada de organismos geneticamente modificados. Dever-se-ia incorporar, portanto, no estatuto regente dos direitos de propriedade sobre tais variações vegetais a limitação imposta pelo princípio ambiental da precaução. Para Marcelo Abelha Rodrigues: O princípio da precaução (Vorsorgeprinzip) recebeu especial atenção na Alemanha, onde foi colocado como ponto direcionador central do Direito Ambiental, devendo ser visto como um princípio que antecede a prevenção, qual seja, sua preocupação não é evitar o dano ambiental, senão porque, pretende evitar os riscos ambientais. (...) Em última análise, impede-se que a incerteza científica milite contra o meio ambiente, evitando que no futuro, com o dano ambiental ocorrido, perceba-se e lamente-se que a conduta não deveria ter sido permitida. 31 Exemplo de tecnologias científicas recentes, das quais não se possui certeza científica 29 GASPARINI, Bruno. Op. cit. p. 185. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 6. 31 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Ambiental. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 205-206. 30 77 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I quanto às implicações para o meio ambiente, são as chamadas Terminator Technologies. Tecnologias que permitem a criação de plantas que produzem sementes estéreis, incapazes de gerar lavouras futuras. Esta tecnologia é considerada a ―Bomba de Nêutrons‖ da agricultura.32 Tal tecnologia é protegida tanto por segredos industriais quanto por uma patente mantida em conjunto pelos Estados Unidos e a empresa Delta & Pine Land Co., subsidiária da gigante de biotecnologia Monsanto. Não só ilustrativa da relação simbiótica que existe entre grandes corporações e governos, essa tecnologia tem aplicações militares e serve de ferramenta para efetivar direitos de propriedade intelectual sobre vegetais. Trata-se de uma autotutela extraordinária contra eventual utilização não autorizada de suas sementes. As sementes modificadas segundo esta tecnologia transformam o agricultor num cliente cativo, pois este não poderá salvar sementes para utilização em novas colheitas. Note-se que se o pólen de plantas com este gene ―suicida‖ misturar-se com as lavouras, é possível que agricultores percam em uma geração, variações genéticas inteiras, comprometendo não só a diversidade ambiental como o próprio abastecimento alimentar. A ausência de controle sobre esta tecnologia que se faz ―privada‖ mediante direitos de propriedade intelectual deixa as nações à mercê dos interesses corporativos de multinacionais logo na base da cadeia produtiva, ou seja, na própria alimentação. De fato, existem críticas sobre a utilização de sistemas de propriedade intelectual, mais especificamente a proteção patentária, na agrobiotecnologia. Especialmente, porque a sua utilização, da mesma forma que nos medicamentos, é indissociavelmente orientada para os produtos mais interessantes do ponto de vista econômico, ou seja, aqueles valorizados pelos grandes mercados dos países desenvolvidos. São esquecidos os estudos relativos às culturas destinadas a alimentação e resolução das necessidades locais dos países em desenvolvimento: As principais empresas de agrobiotecnologia têm expressado pouco interesse em manipular geneticamente e comercializar culturas de importância para os países em desenvolvimento, apesar de, certamente, serem os países com necessidades mais prementes em termos de segurança alimentar e de deficiências nutricionais, sem falar em todos os riscos possíveis ao meio ambiente (...). Não deveria causar surpresa que o sistema de patentes resulte em grandes empresas tratando das necessidades dos países desenvolvidos sobrepostas às necessidades dos países em desenvolvimento. As patentes são projetadas para fornecerem um retorno financeiro somente em locais em que haja um mercado para a invenção (ou do produto produzido por meio da invenção). Conseqüentemente, não se pode, razoavelmente, esperar que o sistema de patentes incite empresas a tratarem das necessidades de países pobres. Dado que a indústria privada controla três quartos dos produtos agrícolas biotecnológicos (...) e se funda no sistema patentário para promover a inovação, as necessidades dos países pobres não são consideradas.33 32 SHIVA, Vandana. Protect or Plunder? Understanding Intellectual Property Rights. London: Zed Books, 2001. p. 81. 33 GOLD, E. Richard; CASTLE, David; CLOUTIER, L. Martin. Agrobiotecnologia nos tribunais: patentes, privilégios e presunções. In: RODRIGUES JR, Edson Beas; POLIDO, Fabrício. (Orgs.). Propriedade Intelectual 78 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I O sistema de patentes, por si só, não é a causa da ausência ou ineficiência de políticas públicas de estímulo à produção nacional por parte dos países em desenvolvimento. Porém, é um fator importante para entender as distorções internacionais de alocação de recursos com pesquisa e desenvolvimento na agricultura. Dentro de uma perspectiva de manutenção da soberania alimentar do país, faz-se necessária a conjugação de políticas públicas de estímulo ao plantio para a alimentação, bem como uma interpretação das normas do sistema de propriedade intelectual que permitam uma efetiva transferência de tecnologia que possa ser utilizada em prol de culturas e lavouras de interesse nacional, não só para a exportação, como para o consumo interno. Deve-se, ainda, observar os usos e costumes tradicionais, bem como proteger os direitos dos agricultores locais, sob pena de o exercício dos direitos de propriedade intelectual violar sua função social. 5 A IMPORTÂNCIA DE UM DOMÍNIO PÚBLICO AMBIENTAL E A FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL A limitação dos direitos exclusivos relativamente à propriedade intelectual serve ao interesse público, pois permite o acesso a conhecimentos que podem gerar novas utilizações e desenvolvimentos não vislumbrados pelo detentor originário. Com efeito, a existência de um horizonte comum de conhecimentos traduz-se na necessidade de um domínio público, seja no tocante às ciências, seja no tocante aos trabalhos artísticos. No tocante à biotecnologia, o meio ambiente também se traduz num domínio público, no qual se destacam os elementos da biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associados. A definição de biodiversidade pode ser encontrada no art. 2º da Convenção sobre Diversidade Biológica34: "Diversidade biológica" significa a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e ecossistemas aquáticos e complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas. Já os conhecimentos tradicionais, podem ser entendidos como ―(...) conjuntos complexos que se apóiam na tradição, na observação e na utilização de processos e recursos – Novos Paradigmas Internacionais, Conflitos e Desafios. Rio de Janeiro: Elsevier. 2007. p. 275-300. p. 290. 34 Assinada no Rio de Janeiro, em 05 de junho de 1992 e promulgada pelo Decreto nº 2.519/98. 79 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I biológicos.‖35 É o conhecimento que se encontra com as comunidades tradicionais indígenas, por exemplo, sobre a utilização prática dos diversos recursos naturais. Observe-se que essa sociobiodiversidade é uma riqueza inestimável, que mereceu o abrigo constitucional sendo a sua defesa reconhecida como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, inc. VI). Trata-se de um bem de uso comum do povo, pertencente a todos. Revela-se ainda como um direito difuso, reconhecidamente pertencente ao rol dos direitos fundamentais. Tal direito figura nos tratados internacionais de direitos humanos, reconhecido pela Declaração do Meio Ambiente, adotada na Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em 1972. A referida Declaração consagrou, nos seus Primeiro e Segundo Princípios, que o ser humano tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e a uma vida com condições adequadas de sobrevivência, num meio ambiente que permita usufruir uma vida digna, ou seja, com qualidade de vida, com a finalidade também, de preservar e melhorar o meio ambiente, para as gerações atuais e futuras. A Constituição Federal brasileira, por sua vez, lhe dedicou o Capítulo VI, do TÍTULO VIII - Da Ordem Social: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;(...) VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. Não só no plano dos direitos fundamentais, o meio ambiente é o grande combustível das inovações nos campos da biotecnologia e é elemento indispensável à economia humana. David Bollier ressalta essa relevância da natureza: 35 CARNEIRO, Ana Cláudia Mamede. Acesso a recursos genéticos, conhecimentos tradicionais associados e repartição de benefícios. Revista da ABPI, Rio de Janeiro. Vol. 88. Mai/jun. 2007. p. 3-16. p. 7. 80 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Nature quietly provides countless other benefits to the economy. Biodiversity represents a ―genetic library‖ that is increasingly used to develop new medicines and increase de productivity of wheat and corn crops. The world´s oceans are important in biologically filtering water, detoxifying some pollutants, providing food, and encouraging tourism. Natural pests provide a highly valuable service to farmers in improving crop yields and lowering costs (a benefit that is most apparent when the ecosystem service has broken down). All told, it has been crudely estimated that nature´s service provide some US$ 39 trillion of value to the economy – this in a global GDP estimated at US$ 35 trillion.36 Desse modo, a Constituição, ao determinar que o meio ambiente é um bem de todos, está a criar uma espécie de ―domínio público‖, ou seja, uma universalidade da qual todos devem beneficiar-se, reconhecendo-se, até mesmo, a existência de um patrimônio genético brasileiro. Num momento seguinte, ao impor a necessidade de preservação do mesmo, reconhece-o como necessário para a sociedade em uma variedade de searas, dentre as quais, a econômica é bastante expressiva. Os direitos de propriedade intelectual funcionam como o canal pelos quais essa riqueza difusa é apropriada, ou seja, esse valor pertencente à coletividade difusa sai desse ―domínio público‖ e passa a integrar o patrimônio de um indivíduo ou empresa. O mecanismo legal que permite esse movimento, via de regra, é um direito exclusivo – patente ou outra forma de proteção jurídica – sobre o conhecimento obtido, que pode ser uma prática tradicional, uma substância, um gene de um animal ou, até mesmo, de um ser humano. Com efeito, em termos de uma economia globalizada, há uma tendência de ―comodificação‖ dos conhecimentos, culturas e, até mesmo, seres vivos, para transformá-los em mercadorias e produtos que vão servir à lógica do mercado.37 Logo, há uma repercussão constitucional muito forte sobre os direitos de propriedade intelectual que vierem a incidir sobre os conhecimentos tradicionais e do patrimônio genético nacional. É, portanto, necessário compatibilizar os dois valores constitucionais: a proteção 36 BOLLIER, David. Silent Theft – The private plunder o four common wealth. New York: Routledge, 2003. p. 65. Tradução livre: ―A natureza proporciona, de forma silenciosa, inúmeros outros benefícios para a economia. A biodiversidade representa uma biblioteca genética que está sendo cada vez mais utilizada para desenvolver novos remédios e para aumentar a produtividade de trigo e milho. Os oceanos do planeta são importantes para a filtragem biológica de água, para desintoxicar poluentes, proporcionar alimentos e encorajar o turismo. Pesticidas naturais proporcionam um valioso serviço os agricultores ao melhorar as colheitas e diminuir custos de produção (um benefício que fica mais aparente quando o sistema ecológico está comprometido). No total, estima-se de forma grosseira que os serviços que a natureza proporciona estão na ordem de US$ 39 trilhões de dólares para a economia – isto num PIB estimado em US$ 35 trilhões‖. 37 STEFANELLO, Alaim Giovani Fortes. A função social e ambiental da propriedade intelectual: a complementaridadede institutos jurídicos de direito público e de direito privado. In: Anais do XV Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2006, Manaus. Florianópolis: JOSE ARTHUR BOITEUX, 2006. 81 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I aos inventos e conhecimentos com aplicação industrial ou comercial e a necessidade de proteção ao meio ambiente e ao patrimônio genético nacional. Com efeito, no tocante tanto à proteção da propriedade intelectual quanto à preservação do meio ambiente, a Constituição deferiu ao poder público, através da lei e da efetivação de políticas públicas, a definição de como irão se delinear esses dois preceitos. A Medida Provisória MP 2.186/2001, procura conciliar esses dois pólos, dispondo sobre: a) a criação do CGEN – Conselho do Patrimônio Genético; b) acesso ao patrimônio genético; c) proteção e acesso aos conhecimentos tradicionais associados; d) repartição dos benefícios desse acesso; e e) acesso e transferência de tecnologia para conservação e utilização da diversidade biológica. Particularmente, no tocante à propriedade intelectual, ganham destaque alguns artigos: Art. 16. O acesso a componente do patrimônio genético existente em condições in situ no território nacional, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva, e ao conhecimento tradicional associado far-se-á mediante a coleta de amostra e de informação, respectivamente, e somente será autorizado a instituição nacional, pública ou privada, que exerça atividades de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e afins, mediante prévia autorização, na forma desta Medida Provisória. [...] Art. 17. Em caso de relevante interesse público, assim caracterizado pelo Conselho de Gestão, o ingresso em área pública ou privada para acesso a amostra de componente do patrimônio genético dispensará anuência prévia dos seus titulares, garantido a estes o disposto nos arts. 24 e 25 desta Medida Provisória. [...] Art. 21. A instituição que receber amostra de componente do patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado facilitará o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para a conservação e utilização desse patrimônio ou desse conhecimento à instituição nacional responsável pelo acesso e remessa da amostra e da informação sobre o conhecimento, ou instituição por ela indicada. [...] Art. 24. Os benefícios resultantes da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de amostra de componente do patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado, obtidos por instituição nacional ou instituição sediada no exterior, serão repartidos, de forma justa e eqüitativa, entre as partes contratantes, conforme dispuser o regulamento e a legislação pertinente. [...] Art. 31. A concessão de direito de propriedade industrial pelos órgãos competentes, sobre processo ou produto obtido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, fica condicionada à observância desta Medida Provisória, devendo o requerente informar a origem do material genético e do conhecimento tradicional associado, quando for o caso. (grifado e negritado) Na medida em que não veda a apropriação dos conhecimentos derivados da biodiversidade através da propriedade intelectual, esta fica condicionada ao estrito cumprimento dos termos da medida provisória (art. 31). Além disso, a medida provisória cria uma série de obrigações quanto à divulgação das informações e procura garantir o acesso a esse conhecimento para as instituições nacionais. 82 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Os direitos de propriedade intelectual, por sua vez, através da noção de transferência de tecnologia, são expostos como um meio de preservação do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais (art. 21). O direito de propriedade dos titulares (art. 17) também pode ser limitado para assegurar o interesse público de garantir que o patrimônio genético e os conhecimentos tradicionais sejam preservados. Também é interessante a idéia de repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da exploração econômica (art. 24). Corrobora-se o entendimento de que há, na verdade, uma apropriação de um valor inerente àquele patrimônio genético ou conhecimento tradicional que deve retornar à coletividade, sob pena de descaracterizar a proteção via direitos de propriedade intelectual (art. 31). Essa sistemática permite vislumbrar que a função social da propriedade intelectual também possui uma dimensão ambiental, ou seja, a propriedade intelectual está sujeita a uma função sócio-ambiental. CONCLUSÃO Essa pluralidade de intersecções entre a propriedade intelectuais e temas tão essenciais a vida humana demonstra a necessidade de um repensar constante dos limites e custos que um sistema de propriedade intelectual impõe para a sociedade. Com efeito, é necessário pensar se esse sistema é suficiente para promover a inovação e desenvolvimento socialmente desejados ou, se por depender do mercado para o retorno do investimento, não será um sistema apenas adequado para prover produtos, conhecimentos e informações que sejam comerciáveis ou destinados somente a segmentos da sociedade que possuem maiores recursos econômicos. Além disso, esse sistema não pode se tornar um obstáculo a direitos humanos básicos, como vida e saúde ou uma ameaça à soberania dos povos, ―proprietarizando‖ elementos básicos para a sobrevivência de uma nação, como as sementes. Esses diversos problemas demonstram de forma indubitável que o debate sobre a propriedade intelectual deve ir além da mera superficialidade para verificar os verdadeiros efeitos desse sistema e os custos que o mesmo impõe para a coletividade e para as gerações futuras. É necessário pensar uma nova ponderação constitucional entre esse ―direito de propriedade‖ sobre bens intelectuais e outros valores, sendo mesmo necessário imaginar 83 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I sistemas complementares de suporte a inovação e desenvolvimento que não sejam meras reformas ou corolários do atual sistema. REFERÊNCIAS BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. vol. 1. BASSO, Maristela. A proteção da propriedade intelectual e o direito internacional atual. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 41. n. 162. p. 287-310. abr./jun. 2004. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BOLLIER, David. Silent Theft – The private plunder o four common wealth. New York: Routledge, 2003. 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STEFANELLO, Alaim Giovani Fortes. A função social e ambiental da propriedade intelectual: a complementaridadede institutos jurídicos de direito público e de direito privado. In: Anais do XV Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Direito, 2006, Manaus. Florianópolis: JOSE ARTHUR BOITEUX, 2006. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1993. 85 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I PROPRIEDADE INTELECTUAL, MEDIDAS DE FRONTEIRA E PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO: EM BUSCA DO EQUILÍBRIO ENTRE INTERESSE PÚBLICO E DIREITO DOS TITULARES Heloísa Gomes Medeiros1 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Medidas de fronteira no acordo TRIPS e as novas ofensivas em matéria de observância dos direitos de propriedade intelectual. 2.1. Medidas de fronteira. 2.2. Novas ofensivas em matéria de observância dos direitos de propriedade intelectual. 3. Novos foros sobre medidas de fronteira. 3.1. Acordos Bilaterais. 3.2. WCO SECURE. 3.3. Acordo Comercial Anti-Contrafação (ACTA). 3.4. WHO IMPACT. 4. Desafios para os países em desenvolvimento. 5. Conclusão. Referências. RESUMO Dentre os instrumentos de observância dos direitos de propriedade intelectual destacam-se as medidas de fronteira, que visam controlar, através das autoridades aduaneiras, o fluxo de bens que infrinjam direitos de propriedade intelectual através da fronteira. Em âmbito bilateral, regional e multilateral, negociam-se acordos que suscitam padrões cada vez mais elevados sobre a matéria. Neste cenário, são muitos os desafios que se apresentam para os países em desenvolvimento, que devem buscar o equilíbrio entre interesse público e direito dos titulares, considerando os efeitos socioeconômicos da propriedade intelectual e as prioridades de desenvolvimento nacional. Palavras-chave: Propriedade intelectual. Observância. Medidas de fronteira. Países em desenvolvimento. ABSTRACT Among the enforcement instruments of intellectual property rights, there are the border measures, that aims to control, through the customs authorities, the flow of goods that infringe intellectual property rights across the border. In bilateral, regional and multilateral ambit, agreements are negotiated evoking higher standards on the matter. In this scene, there are many 1 Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, área de Relações Internacionais. E-mail: [email protected]. 86 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I challenges presenting to developing countries, that should seek a balance between public interest and right of holders, considering the socioeconomic effects of intellectual property and the priorities of national development. Keywords: Intellectual property. Enforcement. Border measures. Developing countries. 1 INTRODUÇÃO Dentre os padrões mínimos estabelecidos pelo Acordo sobre os Aspectos da Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights – TRIPS) estão presentes mecanismos que visam garantir a observância desses direitos: procedimentos e remédios civis e administrativos, medidas cautelares, exigências especiais relativas a medidas de fronteira e procedimentos penais. Internacionalmente diversos grupos econômicos e governamentais de países desenvolvidos empenham-se em aumentar os níveis de proteção sobre tais regras de observância sob o pretexto de intensificar a luta contra a contrafação e a pirataria, sem levar em conta a falta de estudo que comprovem as verdadeiras perdas que se tem com tais práticas e sobre a eficácia das normas já existentes. O combate à contrafação e à pirataria é objetivo de todos os países em razão dos diversos aspectos negativos oriundos de tais atividades. Porém, algumas medidas propostas em matéria de observância, como regras mais intensas em medidas de fronteira, também possuem efeitos indesejados principalmente para os países em desenvolvimento. A adoção ou não de novas regras sobre estes direitos deve levar em conta os diversos estágios de desenvolvimento em que se encontram os países participantes e a relevância de outros temas em discussão, como o interesse público, a transferência de tecnologia, o acesso ao conhecimento e a saúde pública. No presente trabalho serão analisadas algumas tentativas de estabelecer padrões maiores em medidas de fronteira, como no caso dos Tratados de Livre Comércio realizados pelos Estados Unidos e pela União Européia; as tentativas de implantar o Provisional Standards Employed by Customs for Uniform Rights Enforcement – SECURE, no âmbito da Organização Mundial das Aduanas (OMA); as negociações do Acordo Comercial AntiContrafação (Anti-Counterfeiting Trade Agreement - ACTA); e a atuação do International Medical Products Anti-Counterfeiting Taskforce – IMPACT, no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS). O fortalecimento destas medidas faz parte dos atuais debates 87 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I internacionais sobre efetivação dos direitos de propriedade intelectual, indicada pelos países desenvolvidos como medidas essenciais para impedir sua violação. Neste cenário, são muitos os desafios que se apresentam para os países em desenvolvimento, que devem buscar equilíbrio entre interesse público e direito dos titulares, considerando os efeitos socioeconômicos da propriedade intelectual e as prioridades de desenvolvimento nacional. 2 MEDIDAS DE FRONTEIRA NO ACORDO TRIPS E A NOVAS OFENSIVAS EM MATÉRIA DE OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL As regras de observância dos direitos de propriedade intelectual, trazidas de forma detalhada pelo Acordo TRIPS (artigos 41 a 61), prevêem procedimentos e remédios civis e administrativos, medidas cautelares, exigências especiais relativas a medidas de fronteira e procedimentos penais. São medidas que podem ser utilizadas pelos proprietários de direitos de propriedade intelectual com o intuito de efetivá-los através do sistema de propriedade intelectual. Esclarece Isabella Pimentel que: Qualquer sistema de propriedade intelectual deve fornecer proteção aos Direitos de Propriedade Intelectual, pois de nada adiantaria aos sistemas concederem tais direitos e disponibilizarem informações referentes à atividade inventiva e à criatividade que eles envolvem se os proprietários destes direitos não dispuserem de meios para fazêlos valer2. Dentre os mecanismos de efetivação destaca-se, particularmente a este trabalho, a atuação das autoridades aduaneiras no combate a infração dos direitos de propriedade intelectual, visto como de grande relevância, uma vez que boa parte dos debates atuais sobre efetivação destes direitos refere-se a medidas de fronteira, considerado meio essencial para impedir sua violação3. 2.1 Medidas de fronteira É indiscutível a importância que possuem as medidas de fronteira na função de impedir o comércio de mercadorias falsificadas, que atualmente afetam a saúde, a segurança e 2 PIMENTEL, Isabella. A observância aos direitos de propriedade intelectual nos tratado internacionais administrados pela OMPI e no Acordo TRIPs. In: CARVALHO, Patrícia Luciane de (Coord.). Propriedade intelectual: estudos em homenagem à professora Maristela Basso. Curitiba: Juruá Editora, 2005. p. 113. 3 CORREA, Carlos M. The push for stronger enforcement rules: implications for developing countries. In: International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD). The global debate on the enforcement of intellectual property rights and developing countries. Programme on IPRs ans Sustainable Development, Issue Paper No.22, Geneva, Switzerland, 2009. 88 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I os interesses econômicos de todo o globo. O próprio Acordo TRIPS descreve na Seção 4, da Parte III, sobre o papel e as responsabilidades que as administrações aduaneiras possuem quanto à aplicação dos direitos de propriedade intelectual. A Seção 4, inspirada principalmente nas leis nacionais existentes nos países desenvolvidos sobre a matéria de efetivação dos direitos de propriedade intelectual, apresenta o primeiro conjunto de normas internacionais em matéria de contrafação e pirataria 4 e concretiza um dos principais objetivos incorporados no preâmbulo do próprio Acordo TRIPS, o reconhecimento da necessidade de uma estrutura multilateral de princípios, regras e disciplinas referentes ao comércio internacional de mercadorias contrafeitas. As normas de medidas de fronteira referem-se aos mecanismos que podem ser adotados por autoridades aduaneiras ou tribunais para controlar o movimento de bens que infrinjam direitos de propriedade intelectual através da fronteira do território de um país 5. Não estando sujeito às mesmas os Estados-Membros que derrubarem substancialmente todos os controles sobre os movimentos de mercadorias através da sua fronteira com outro EstadoMembro com o qual forma uma união aduaneira (nota 12, artigo 51, Acordo TRIPS). A atuação das autoridades aduaneiras dos Estados-membros signatários do Acordo TRIPS, no que diz respeito ao controle de infrações contra a propriedade intelectual, deve levar em consideração o estabelecido no artigo 51 do Acordo sobre suspensão de liberação pelas autoridades aduaneiras, in verbis: Os Membros deverão, em conformidade com as disposições a seguir enunciadas, adotar os procedimentos para permitir que um titular, que tenha motivos válidos para suspeitar que a importação de bens com marca contrafeita ou pirateados possa ocorrer, apresente um requerimento por escrito junto às autoridades competentes, administrativa ou judicial, para a suspensão pelas autoridades aduaneiras da liberação para livre circulação dessas mercadorias. Os Membros podem permitir que tal pedido seja feito em relação a mercadorias que envolvam outras infrações a direitos de propriedade intelectual, desde que os requisitos da presente seção estejam preenchidos. Os Membros também podem prever processos correspondentes relativos à suspensão pelas autoridades aduaneiras da liberação de bens que violem direitos de propriedade intelectual destinados à exportação dos seus territórios.6 (grifos nosso) De acordo com este artigo a suspensão de liberação pelas autoridades aduaneiras é exigido apenas nos casos de importação de bens, facultando a cada Estado-membro estabelecer regras desta natureza em relação aos bens destinados à exportação. Porém, neste último caso, ―estas seriam requisitos TRIPS-plus que não são obrigatórios para os membros da OMC‖7. 4 UNCTAD. Resource Book on TRIPS and development. New York: Cambridge University Press, 2005. CORREA, 2009. 6 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO – OMC. Agreement on Trade Related Intellectual Property Rights - TRIPS. Marraqueche, 15 de abril de 1994. Disponível em <www.wto.org>. Acesso em: 10 jul 2009. 7 CORREA, 2009, p. 48. 5 89 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I O próprio Acordo, na nota 13, do artigo 51, explicita que não há obrigação de aplicar estes procedimentos a importação de bens colocados no mercado de um terceiro país pelo titular do direito ou com o seu consentimento, assunto relativo à importação paralela, nem a bens em trânsito. Destaca-se que à autoridade aduaneira compete apenas a execução de medidas cautelares decididas por ―autoridades competentes, administrativa ou judicial‖ quanto a questão de uma mercadoria ser contrafeita ou pirateada. Apesar de em alguns países as autoridades administrativas coincidirem com as próprias autoridades aduaneiras esta não é uma disposição do Acordo TRIPS, possibilitando que seja competência exclusiva do judiciário ou de outra autoridade administrativa8. Além disso, estas medidas são aplicadas somente no caso de infrações de bens com marca contrafeita ou bens pirateados. Para os efeitos do Acordo TRIPS, entende-se por ―bens de marca contrafeita‖ quaisquer bens que usem sem autorização uma marca que seja idêntica à marca registrada relativa a tais bens ou que não pode ser distinguida da marca genuína, e por "bens pirateados" entende-se por quaisquer bens que constituam cópias efetuadas sem o consentimento do titular, infringindo diretos de autor9. Correa observa que na contrafação de marcas não está incluído casos de marcas que possam encontrar confusão com outras marcas protegidas, e quanto a bens pirateados esta expressão não abrange os casos de plágio, quando, por exemplo, passagens escritas de um trabalho são copiadas sem consentimento10. Outros aspectos relevantes do artigo 51 do Acordo TRIPS são que, em regra, esta disposição não se aplica a outros direitos de propriedade intelectual, como patentes 11; e não existe disposição que obrigue as autoridades aduaneiras adotarem medidas cautelares ex officio, 8 UNCTAD, 2005. Segue o disposto na nota de rodapé 14, do Acordo TRIPS, conforme se encontra no site da OMC. <http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-TRIPS_05_e.htm>. Acesso em: 10 jul 2009: (a) "counterfeit trademark goods" shall mean any goods, including packaging, bearing without authorization a trademark which is identical to the trademark validly registered in respect of such goods, or which cannot be distinguished in its essential aspects from such a trademark, and which thereby infringes the rights of the owner of the trademark in question under the law of the country of importation; (b) "pirated copyright goods" shall mean any goods which are copies made without the consent of the right holder or person duly authorized by the right holder in the country of production and which are made directly or indirectly from an article where the making of that copy would have constituted an infringement of a copyright or a related right under the law of the country of importation. 10 CORREA, 2009. 11 Este fato é de extrema relevância, pois, em bens com marca contrafeita ou bens pirateados é mais fácil realizar inspeção visual para identificar violação a estes direitos do que no caso de, por exemplo, uma patente de produto ou de processo, que necessita de um exame técnico e jurídico mais apropriado e de provas mais contundentes (Correa, 2009). 9 90 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I sendo necessário um requerimento específico do detentor do direito para a autoridade aduaneira agir. O objetivo de suspender a entrada de mercadorias que se suspeite infratora é: […] dar ao titular dos direitos um prazo razoavelmente extenso para que se inicie os procedimentos judiciais contra que presume que seja o autor da infração, sem correr o risco de que a mercadoria que ele suspeita que esteja infringindo seus direitos desapareça no mercado após ter sido autorizada a sua entrada pelas autoridades aduaneiras.12 Observa-se que as medidas de fronteira são procedimentos privados a disposição dos titulares de propriedade intelectual para fazerem valer seus direitos. Aos Estados, em respeito ao estabelecido no Acordo TRIPS, compete apenas prever tais mecanismos, não devendo assumir custos e responsabilidades pela sua execução13, como se pode extrair da leitura do artigo 41.1, do referido Acordo: Os Membros assegurarão que suas legislações nacionais disponham de procedimentos para a aplicação de normas de proteção como especificadas nesta Parte, de forma a permitir uma ação eficaz contra qualquer infração dos direitos de propriedade intelectual previstos neste Acordo, inclusive remédios expeditos destinados a prevenir infrações e remédios que constituam um meio de dissuasão contra infrações ulteriores. Estes procedimentos serão aplicados de maneira a evitar a criação de obstáculos ao comércio legítimo e a prover salvaguardas contra seu uso abusivo.14 (grifo nosso) De maneira geral, o Acordo TRIPS, quanto às medidas de fronteira, segue o padrão de estabelecer regras de patamar mínimo da mesma forma que o restante do Acordo, deixando aos Estados-membros espaço considerável para estabelecer suas regras de controle sobre infrações contra a propriedade intelectual neste âmbito. O artigo 51 estabelece basicamente que: a) cabe ao titular requerer a suspensão da liberação de bens pela autoridade aduaneira; b) deve haver motivos válidos para suspeitar a infração; c) a suspeita diz respeito ao caso de importação; d) os direitos de propriedade protegidos são relacionadas a infração de marca contrafeita ou bens pirateados; e) o requerimento é feito por escrito e encaminhado às autoridades competentes (administrativa ou judicial). 2.2 Novas ofensivas em matéria de observância dos direitos de propriedade intelectual Apesar de estabelecidos os standards mínimos no Acordo TRIPS, surge no cenário internacional a tentativa de implementação de padrões cada vez mais elevados de direitos de 12 PIMENTEL, 2005, p. 135. CORREA, Carlos M. Derechos de propiedad intelectual, competencia y protección del interés público: la nueva ofensiva en materia de observancia de los derechos de propiedad intelectual y los intereses de los países en desarrollo. Montevideo; Buenos Aires: Editorial B de F, 2009b. 14 OMC, 1994. 13 91 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I propriedade intelectual através de acordos realizados em âmbito bilateral, regional e multilateral. Desde o início de sua regulamentação observa-se a mudança de foro como uma característica constate nas discussões destes direitos, fenômeno que se repete como instrumento de manobra dos países desenvolvidos. A nova ofensiva sobre observância dos direitos de propriedade intelectual em alguns aspectos, como nas estratégias e objetivos estabelecidos, recorda a agenda dos anos que precederam o estabelecimento do Acordo TRIPS na OMC, porém com formas mais sofisticadas da prática do forum shifting, aliando-o ao multiple forum capture. Isto significa que para alcançar seus objetivos em âmbito internacional os países desenvolvidos mudam simultaneamente e coordenadamente o foro das discussões de acordos sobre propriedade intelectual com intuito de implementar níveis mais elevados de proteção que não foram possíveis realizar nos foros originais sobre a matéria, no caso especificamente na OMC e na OMPI15. Peter Drahos16 aponta que dentre as estratégias adotadas pelos países desenvolvidos nos acordos bilaterais de propriedade intelectual destacam-se: o artifício de forum shifting; a coordenação em âmbito bilateral e multilateral estratégias de propriedade intelectual, com o intuito de não infringir os acordos realizados na esfera da OMC e da OMPI; e manter nos acordos internacionais o princípio do minimum standards17. O sistema multilateral passa a sofrer severo enfraquecimento, devido ao uso cada vez mais restrito de flexibilidades e exceções estabelecidos no Acordo TRIPS, e acabam por interferir ―no marco das obrigações gerais porque, à luz do princípio da ‗nação mais favorecida‘ (MFN), quaisquer condições acordadas bilateral ou regionalmente devem ser oferecidas aos demais Estados Membros da OMC na mesma base‖18. A estratégia de aumentar o nível de proteção da propriedade intelectual não se restringe ao âmbito bilateral, existem ainda iniciativas em âmbito regional e multilateral que incluem: 15 TELLEZ, Viviana Muñoz. The changing global governance of intellectual property enforcement: a new challenge for developing countries. In: LI, Xuan; CORREA, Carlos M. Intellectual Property Enforcement: international perspective. Cheltenham, UK ; Northampton, MA : Edward Elgar, 2009. 16 DRAHOS, Peter. Bilateralism in intellectual property. 2001. Disponível em: <http://www.maketradefair.com/assets/english/bilateralism.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2008. 17 O princípio do minimum standards significa que cada novo acordo não implica revogação do anterior, podendo, inclusive, estabelecer padrões mais elevados de proteção. 18 BASSO, Maristela. Propriedade intelectual na era pós-OMC: especial referência aos países latinoamericanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. p. 13. 92 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 1. tratar a efetivação da propriedade intelectual como uma prioridade na agenda comum dos países do G8 e propor negociações sobre um novo tratado internacional sobre o combate à contrafação; 2. exigir que a questão da efetivação da propriedade intelectual faça parte da agenda permanente no Conselho de TRIPS, na OMC; 3. exercendo pressão na OMPI para reforçar o mandato do Comitê Consultivo para Efetivação para incluir normas de soft law; 4. aumentando o papel da OMA e da Interpol na efetivação da propriedade intelectual, especialmente através de medidas de controle nas fronteiras e a utilização de normas de direito penal; 5. introduzindo detalhadas obrigações TRIPS-plus na efetivação dos direitos de propriedade intelectual em TLCs e APEs (acordos de parceira econômica) negociados pelos Estados Unidos e União Européia com alguns países em desenvolvimento. 19 Particularmente às medidas de fronteira importam os para o presente trabalho os Tratados de Livre Comércio realizados pelos Estados Unidos e pela União Européia; as tentativas de implantar o Provisional Standards Employed by Customs for Uniform Rights Enforcement – SECURE, no âmbito da Organização Mundial das Aduanas (OMA); as negociações do Acordo Comercial Anti-Contrafação (Anti-Counterfeiting Trade Agreement ACTA); e a atuação do International Medical Products Anti-Counterfeiting Taskforce – IMPACT, no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS). 3 NOVOS FOROS SOBRE MEDIDAS DE FRONTEIRA 3.1 Acordos bilaterais No âmbito bilateral as políticas que visam aumentar o nível de proteção de propriedade intelectual são marcadas pela assinatura de Tratados de Livre Comércio – TLCs (Free Trade Agreements – FTAs), e propõem diversas ampliações em matéria de observância, inclusive medidas de fronteira. Destaca-se que nem todos os TLCs possuem as mesmas previsões, em decorrência de diversos fatores relacionados aos países signatários, mas o que faz com que eles ganhem notoriedade são as suas semelhanças20. Os principais atores na assinatura de TLCs são os Estados Unidos e a União 19 BIADGLENG, Ermias Tekeste; TELLEZ, Viviana Munoz. The changing structure and governance of intellectual property enforcement. 2008. Disponível em: <http://www.southcentre.org>. Acesso em: 02 jul. 2008, p. 23, tradução nossa: 1. setting enforcement of intellectual property rights as a priority in the common agenda of the G8 countries and proposing negotiations on a new international treaty on anti-counterfeiting; 2. demanding that the WTO make enforcement part of the permanent agenda of the TRIPS Council; 3. exerting pressure at WIPO to strengthen the mandate of the ACE to include soft law norm- setting, such as developing best practices and guidelines on enforcement; 4. increasing the role of the WCO and Interpol in intellectual property enforcement, particularly through border measure controls and the use of criminal law; 5. introducing detailed TRIPS-plus obligations in the enforcement of intellectual property rights in bilateral FTAs and EPAs (economic partnership agreements) negotiated by the United States and European Union with developing countries. 20 ABBOTT, Frederick. Intellectual property provisions of bilateral and regional trade agreements in light of U.S. federal law. UNCTAD - ICTSD Project on IPRs and Sustainable Development. International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD), 2006. 93 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Européia, que celebraram acordos nos últimos vinte anos com países da África, Oriente Médio, Ásia, Pacífico, América do Sul e Caribe. Os níveis mais altos de proteção da propriedade intelectual servem de moeda de troca para concessões no acesso a mercados, agricultura e serviços.21 Os capítulos que versam sobre a propriedade intelectual incluem todos os seus aspectos, possuem semelhanças na estrutura e conteúdo, e diferenças nos padrões de proteção e de observância. Desde a primeira geração de TLCs, celebrados no início da década de 1990, há interesse especial quanto às regras de observância, e na nova geração destes direitos são elevados a padrões TRIPs-plus.22 No âmbito das medidas de fronteira, os TLCs prevêem a aplicação ex officio da suspensão de liberação pelas autoridades aduaneiras, para mercadorias destinadas a importação, exportação e em trânsito. Estas disposições constituem medidas TRIPS-plus e possuem diversas consequências quanto sua aplicaçao para os países em desenvolvimento, que serão trabalhadas no tópico 4 do presente trabalho. Os países em desenvolvimento devem observar que em negociações bilaterais seus poderes de barganha são muito menores do que quando articulados em conjunto com outros países no âmbito multilateral. Outro aspecto relevante é que, em decorrência dos princípios da nação mais favorecida e do tratamento nacional, uma vez assinado um acordo bilateral com outro país, os direitos concedidos ao país signatário devem ser oferecidos nas mesmas bases para outros países-membros da OMC. 3.2 WCO SECURE A Organização Mundial das Aduanas (OMA) – em inglês, World Customs Organization (WCO) – é uma organização intergovernamental, com sede em Bruxelas, na Bélgica, constituída por 176 administrações aduaneiras que operam em todos os continentes e seus membros respondem por 98% do fluxo do comércio internacional23. Primordialmente constituída para trocar informações entre as autoridades aduaneiras e realizar atividades de assistência técnica em operações aduaneiras, nos últimos anos tornou-se palco de intensas 21 ROFFE, Pedro. América Latina y la nueva arquitectura internacional de la propiedad intelectual. Buenos Aires: La Ley, Facultad de derecho UBA, 2007. 22 ROFFE, 2007. 23 WORLD CUSTOMS ORGANIZATION (WCO). World Customs Organization: mission, objectives, activities. Novembro 2009. Disponível em: <http://www.wcoomd.org/files/1.%20Public%20files/PDFandDocuments/About%20Us/DEPL%20OMD%20UK %20A4.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2009. 94 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I negociações sobre normas de observância dos direitos de propriedade intelectual através de medidas de fronteira, assumindo posicionamento político de que é necessário adotar funções além das definidas pelo Acordo TRIPS24. A agenda de propriedade intelectual da OMA é marcada pelas atividades do Grupo de Trabalho SECURE (Provisional Standards Employed by Customs for Uniform Rights Enforcement), que desenvolve legislações modelo e melhores práticas para melhor coordenar os esforços das autoridades aduaneiras no combate à infração dos direitos de propriedade intelectual. Vários trabalhos foram realizados pelo SECURE, dentre os quais se destaca o SECURE Standards, a Model Provisions for National Legislation to Implement Fair and Effective Border Measures Consistent with the TRIPS Agreement, e o WCO Action to Fight Counterfeiting and Piracy. Destes trabalhos, todos de medidas evidentemente TRIPS-plus, apenas o primeiro tornou-se público, os outros são de acesso restrito25, dificultando ainda mais a participação da sociedade civil.26 O SECURE Standards27 prevê a possibilidade de ação das autoridades aduaneiras no caso de infração a quaisquer direitos de propriedade intelectual e inclui as situações, não se limitando a estas, de suspensão no caso de importação, exportação, em trânsito, em entreposto, em baldeação, zonas francas e lojas duty-free. O WCO Model Provisions consiste em propor normas a serem seguidas em medidas de fronteira, pois considera que as estabelecidas no Acordo TRIPS não são suficientes para proteção dos direitos de propriedade intelectual. As normas assumidamente TRIPS-plus28 incluem obrigações de aplicar, por exemplo, technological protection measures (TPMs) e Digital Rights Management (DRM), através da ampliação do conceito de bens que infringem propriedade intelectual. Tais propostas, que sutilmente elevam os padrões de propriedade intelectual, são exemplos de quanto é inapropriado o forum da OMA para discutir temas tão 24 MORAES, Henrique Choer. Dealing with forum shopping: some lessons from the SECURE negotiations at the World Customs Organization. In: LI, Xuan; CORREA, Carlos M. Intellectual Property Enforcement: international perspective. Cheltenham, UK ; Northampton, MA : Edward Elgar, 2009. 25 Henrique Choer Moraes (2009) coloca que inclusive citações de textos originários dos relatórios das reuniões da OMA não podem ser utilizadas, devido ao fato de que a OMA alega copyrigth sobre eles. 26 As negociações em sigilo marca a nova ofensiva em matéria observância dos direitos de propriedade intelectual, a utilização desta tática pode ser observada nos TLCs, na OMA e no Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA), que será assunto do próximo tópico. 27 WORLD CUSTOMS ORGANIZATION. Secure; Provisional Standards Employed by Customs for Uniform Rights Enforcement (SECURE); Provisional Global Customs Standards to Counter Intellectual Property Rights Infringements. World Customs Organization, 2007. 28 WORLD CUSTOMS ORGANIZATION. Model Legislation and Customs experts Committee documentation. 2005. Disponível em: <http://www.wcoipr.org/wcoipr/Menu_ModelLegislation.htm>. Acesso em: 25 mar. 2010. 95 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I complexos de direitos autorais como os cadeados digitais.29 O Action Plan não deixa claro suas reais intenções, e propõe, entre suas medidas, estudar se as sanções previstas na legislação nacional são suficientes e adequadas para proteção dos direitos de propriedade intelectual, sob responsabilidade permanente de todos os membros da OMA. Henrique Choer Moraes aponta que o Action Plan coloca em xeque o caráter voluntário que alegam ter estes padrões, pois se tal medida for aceita os países estarão sempre sob pressão para mudar suas legislações quando forem consideradas insuficientes e inadequadas.30 3.3 Acordo Comercial Anti-Contrafação (ACTA) O Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA) é um acordo multilateral em negociação entre Austrália, Canadá, União Européia, Japão, México, Marrocos, Nova Zelândia, Coréia, Singapura, Suíça e Estados Unidos, cujo objetivo é estabelecer padrões internacionais para efetivação dos direitos de propriedade intelectual a fim de combater a contrafação e a pirataria. As conversações preliminares, com a elaboração de um anteprojeto, ocorreram em segredo durante os anos de 2006 e 2007, havendo divulgação sobre seu escopo apenas em junho de 2008, ano em que as negociações iniciaram oficialmente31. Em 6 de abril de 2009, os participantes das negociações do ACTA emitiram uma declaração conjunta com um resumo dos principais elementos em discussão nas propostas. Este documento, que se encontra nos sites institucionais dos órgãos responsáveis de cada país, servirá de base para a análise que se segue neste trabalho32. O projeto do ACTA possui em sua estrutura 6 capítulos e, de acordo com os países negociantes, busca elaborar um quadro de normas jurídicas internacionais que ainda não existe ou que precisa ser reforçado. O primeiro capítulo, intitulado disposições iniciais e definições, traz questões como o objetivo, âmbito, definições e princípios interpretativos do Acordo; o segundo capítulo dispõe de um quadro legal para efetivação dos direitos de propriedade 29 MORAES, 2009. MORAES, 2009. 31 Desde o início das negociações do referido Acordo diversas preocupações foram levantadas por movimentos civis, como o IP Justice, que indagava sobre a falta de transparência no processo de negociação do acordo, a não participação de grupos de interesse público, de país em desenvolvimento ou da sociedade civil, a exclusão da OMPI e da OMC como foro, entre outros (IP JUSTICE, 2008). 32 Para este artigo foi consultado o resumo publicado pelo: UNITED STATES TRADE REPRESENTATIVE (USTR). ACTA - Summary of Key Elements Under Discussion. Abr. 2009. Disponível em: <http://www.ustr.gov/about-us/press-office/fact-sheets/2009/april/acta-summary-key-elements-under-discussion>. Acesso em: 15 jun. 2009. 30 96 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I intelectual com medidas civis, medidas de fronteira, medidas penais e efetivação de direitos de propriedade intelectual no ambiente digital; o terceiro capítulo trata de cooperação internacional para enfrentar o comércio transfronteiriço de mercadorias contrafeitas e piratas; o quarto capítulo destina-se a dispor sobre os métodos que serão utilizados pelas autoridades para aplicar as leis de efetivação de propriedade intelectual colocados no segundo capítulo; o quinto capítulo inclui as disposições institucionais; e o sexto capítulo expõe as disposições finais, incluindo detalhes sobre como o acordo irá funcionar. Especificamente quanto às medidas de fronteira, dispostas na seção 2, do segundo capítulo, discute-se: quais os direitos de propriedade intelectual vão ser abrangidos, e se as medidas de fronteira só devem ser aplicadas às importações ou deveria igualmente aplicar-se à exportação e ao trânsito de mercadorias; exceções mínimas que poderia permitir aos viajantes de trazer mercadorias para uso pessoal; procedimentos para que titulares de direitos possam solicitar às autoridades aduaneiras a suspensão da entrada de mercadorias suspeitas de violar direitos de propriedade intelectual na fronteira; possibilidade de que as autoridades aduaneiras possam dar início a essa suspensão ex officio; procedimentos para que as autoridades competentes possam determinar se as mercadorias suspensas infringem direitos de propriedade intelectual; medidas para garantir que bens que violam direitos de propriedade intelectual não sejam liberados para livre circulação, sem autorização do titular do direito, e as possíveis exceções; o arresto e destruição das mercadorias que tenham sido determinados como violadoras de direitos de propriedade intelectual, e as possíveis exceções; a responsabilidade sobre as taxas para o armazenamento e destruição; atribuição de competência para as autoridades de exigir dos titulares caução ou garantia para proteger o acusado e prevenir abusos; e autoridade para divulgar informações essenciais sobre violação para os titulares do direito. Observa-se que nas negociações deste novo Acordo são discutidas diversas medidas que visam criar normas mais rígidas do que as estabelecidas no Acordo TRIPS, nitidamente normas TRIPS-plus, sobre o controle da efetivação da propriedade intelectual através de medidas de fronteira. 3.4 WHO IMPACT O International Medical Products Anti-Counterfeiting Taskforce (IMPACT), criado em 2006, no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), é um grupo de trabalho que visa criar uma rede de colaboração entre países para buscar soluções para o problema da 97 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I produção, comercialização e venda de medicamentos falsificados em todo o mundo33. O grupo de trabalho conta com a participação de representantes da OMS, Interpol, Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE), OMA, OMPI, OMC, Federação Internacional de Fabricantes e Associações de Produtos Farmacêuticos, Aliança (pacto) Internacional de Medicamentos Genéricos, Indústria Mundial de Automedicação, Associação Latino-americana de Indústrias Farmacêuticas, Banco Mundial, Comissão Européia, Conselho da Europa, Secretariado da Commonwealth, Secretariado da ASEAN, Federação Internacional de Atacadistas Farmacêuticos, Associação Européia de Atacadistas (de todo tipo de produto) Farmacêutico, Federação Internacional de Farmacêuticos, Conselho Internacional de Enfermeiras, Associação Médica Mundial e Farmacêuticos sem fronteiras 34. Em decorrência dos graves problemas causados pela comercialização de medicamentos contrafeitos e falsificados o IMPACT propõe uma série de reformas legislativas e regulamentares visando combater esta prática. Apesar da louvável iniciativa, algumas das medidas propostas vinculam diretamente o problema dos medicamentos falsificados com normas mais rígidas de observância dos direitos de propriedade intelectual, que em muitos aspectos prejudicam o acesso a medicamentos e não contempla outras formas que poderiam ser aplicadas para combater a comercialização destes produtos. O Model Law, aprovado na 2ª Assembléia Geral do IMPACT em 2007, é denominado Principles and Elements of National Legislation against Counterfeit Medical Products (Principles)35, e objetiva reforçar as legislações nacionais de combate a medicamentos falsificados em matéria penal, farmacêutica, administrativa e civil através dos princípios delineados. Dois aspectos merecem destaque por imprimirem caráter TRIPS-plus ao documento: a ampliação da definição de contrafação de produtos médicos que vem causando confusão entre medicamentos falsificados e medicamentos genéricos; e a responsabilidade dos Estados em elaborar normas penais, administrativas, civis e estruturas que fiscalizem a comercialização de medicamentos nas diversas situações de comércio internacional (produtos quer sejam para importação ou exportação, estejam em trânsito, em entrepostos aduaneiros, 33 WORLD HEALTH ORGANIZATION. International Medical Products Anti-Counterfeiting Taskforce (IMPACT). Disponível em: <http://www.who.int/impact/en/>. Acesso em: 15 fev 2010. 34 WORLD HEALTH ORGANIZATION. International Medical Products Anti-Counterfeiting Taskforce (IMPACT): Frequently asked questions. Disponível em: < http://www.who.int/impact/impact_qa/en/index.html>. Acesso em: 15 fev 2010. 35 WORLD HEALTH ORGANIZATION. INTERNATIONAL MEDICAL PRODUCTS ANTICOUNTERFEITING TASKFORCE. Principles and Elements for National Legislation against Counterfeit Medical Products. 2007. Disponível em: <http://www.who.int/impact/events/FinalPrinciplesforLegislation.pdf>. Acesso em: 15 dez 2009. 98 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I zonas de livre comércio etc).36 A OMS é mais um exemplo de uso inadequado de foro para discutir o tema de observância dos direitos de propriedade intelectual, desejo dos países em desenvolvimento e da indústria farmacêutica. Para o combate ao comércio de medicamento contrafeitos a OMS deveria estar mais focada nas questões da qualidade, segurança e eficácia dos medicamentos37. Como ressalta Carlos Correa aumentar o nível de proteção e da observância dos direitos de propriedade intelectual não será a reposta adequada para o caso, é necessário reforçar os aspectos de procedimentos criminais e da aplicação rigorosa das normas de medicamentos sobre aprovação e comercialização38. 4 DESAFIOS PARA OS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO As questões relativas à observância dos direitos de propriedade intelectual através de medidas de fronteira, passados mais de 15 anos da assinatura do Acordo TRIPS, ainda constituem tema de grande preocupação dos países desenvolvidos. Na agenda sobre observância através de medidas de fronteira destes países é evidente a tendência de imputar ao poder público a responsabilidade pelo cumprimento, através da atuação de ofício, de obrigações tidas como de direito privado39.40 Apontam-se como razões para a tendência atual de expansão das medidas de fronteira o ―interesse dos titulares de direito em ter meios complementares ou alternativos para fazer valer os seus direitos de propriedade intelectual de forma mais rápida, mais barata e com menos esforço‖ 41. Neste panorama, normas mais elevadas de medidas de fronteira são aceitas sob o pretexto de combater a contrafação e a pirataria, de garantir benefícios ao país pela arrecadação de mais receitas fiscais, mais empregos e atrair mais investimentos42, pouco se refletindo sobre 36 SOUTH CENTER; CENTER FOR INTERNATIONAL ENVIRONMENTAL LAW. Intellectual Property Quarterly Update. Counterfeit medical products: need for caution against co-opting public health concerns for ip protection and enforcement. 2009, p.1-21. Disponível em: < http://www.ciel.org/Publications/IP_Update_1Q09.pdf>. Acesso em: 20 fev 2010. 37 SOUTH CENTER; CENTER FOR INTERNATIONAL ENVIRONMENTAL LAW, 2009. 38 CORREA, 2009b. 39 O Preâmbulo do Acordo TRIPS explicitamente reconhece que os direitos de propriedade intelectual são direitos privados. 40 ROFFE, 2007. 41 TELLEZ, Viviana Muñoz. The World Customs Organization: Setting New Standards of Intellectual Property Enforcement through the Back Door? SOUTH BULLETIN Reflections and Foresights, abr.,Geneva, Switzerland, 2008, p.6, tradução nossa ([…] interest of right holders in having additional or alternative means to enforce their intellectual property rights faster, more cheaply and with less effort). 42 CORREA, 2009b. 99 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I a veracidade dos argumentos promovidos pelos países desenvolvidos e sobre os impactos negativos no comércio legal, nos recursos financeiros e humanos que deverão ser disponibilizados para implantar e manter este sistema, e nas salvaguardas necessárias contra os abusos dos titulares43. Países desenvolvidos e países em desenvolvimento devem tratar a questão da responsabilidade pela observância dos direitos de propriedade intelectual da maneira que melhor convenha aos seus interesses. No caso dos países em desenvolvimento é desaconselhável a adoção de medidas que responsabilizem demasiadamente o poder público, tendo em vista tantas outras preocupações de cunho estritamente público e de necessidades básicas como a proteção dos direitos humanos, segurança pública e acesso à saúde. Como observa Carlos Correa: As normas de observância geram custos para os países em desenvolvimento que não podem ser compensados através dos benefícios que se alegam. De fato, os custos podem exceder os benefícios, em particular, quando os países têm que substituir aos titulares dos direitos em defesa de seus direitos privados e assumem responsabilidades que correspondem a estes últimos44. O alargamento da proteção da propriedade intelectual através de normas de medidas de fronteira pode causar severo desequilíbrio entre interesse público e o direito dos titulares de direitos. Um dos perigos do aumento da incidência em medidas de controle das fronteiras é a possibilidade de que os poderes conferidos às autoridades aduaneiras sobre efetivação da propriedade intelectual possam ser excessivamente amplos se não houver um treinamento adequado para emitir juízos sobre se as mercadorias são, na realidade, falsificados ou pirateados.45 Acentua-se a problemática quanto a infração às patentes, uma vez que os critérios que determinam a violação podem variar significativamente de uma jurisdição para outra, e pela dificuldade de realizar um exame técnico adequado para detectar em tempo hábil a infração. Este tipo de medida amplia demasiadamente as competências e habilidades exigidas dos funcionários de aduana. Existe ainda a possibilidade de que a concessão de amplos poderes para funcionários aduaneiros para controlar o fluxo de importações e exportações de mercadorias, com suspeita de estarem infringindo direitos de propriedade intelectual possa criar barreiras ao 43 TELLEZ, 2008. CORREA, 2008, p. 200, tradução nossa (Las normas de observancia generan costos para los países en desarrollo en desarrollo que no pueden compensar a través de los beneficios que se alegan. De hecho, los costos pueden exceder los beneficios, en particular, cuando los países tienen que sustituir a los titulares de los derechos en la defensa de sus derechos privados y asumen responsabilidades que corresponden a estos últimos.) 45 BIADGLENG; TELLEZ, 2008. 44 100 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I comércio.46 Afinal, discute-se internacionalmente, justamente a facilitação do comércio, com esforços para a diminuição dos custos das operações de comércio exterior. Mais atribuições as aduanas, como no caso da suspensão ex officio, atravanca o comércio de mercadorias, torna-o mais lento e caro tanto para o comerciante, como para o governo e sociedade, e traz diversos problemas, ―como o aumento da corrupção entre as autoridades aduaneiras, dificuldades na valoração das mercadorias, diminuição na arrecadação de tributos, imprevisibilidade e atrasos na liberalização de mercadorias, dentre outros‖ 47. No caso dos países menos desenvolvidos e dos países em desenvolvimento a ineficiência aduaneira é ainda mais preocupante, e serão os maiores prejudicados com mais barreiras não-tarifárias. Por esta razão, deve-se zelar pela simplificação e otimização dos procedimentos aduaneiros. Relevante assinalar que, dentre as obrigações gerais do Acordo TRIPS sobre efetivação destes direitos, devem ser observados os artigos 41.1 e 41.2, que estabelecem, respectivamente, que os procedimentos de efetivação serão aplicados de maneira a evitar a criação de obstáculos ao comércio legítimo e a prover salvaguardas contra seu uso abusivo, e que os mesmos serão justos e eqüitativos. A adoção de medidas ex officio é um das principais formas encontradas pelos países desenvolvidos para elevar os padrões de efetivação dos direitos de propriedade intelectual. Entretanto tais intervenções, alerta Carlos Correa ―transfere a responsabilidade pelos danos para o Estado e deve ser limitada para situações muito excepcionais em que há uma justificação para substituir provisoriamente o titular do direito em defesa de seus direitos privados‖ 48. A extensão das situações em que pode haver suspensão de mercadorias suspeitas para bens destinadas a exportação e a mercadorias em trânsito suscita problemas complexos na prática, a exemplo da apreensão pelas autoridades aduaneiras holandesas de um carregamento do medicamento para hipertensão Losartan, que seguia da Índia para o Brasil, onde naquele país o medicamento é protegido por patente e nestes outros dois últimos não há tal proteção49. O impasse da suspensão da liberalização da mercadoria em trânsito criou uma série de 46 BIADGLENG; TELLEZ, 2008. SCORZA, Flavio Augusto Trevisan. Facilitação do comércio e controle aduaneiro: as negociações multilaterais e as normas brasileiras. In: BARRAL, Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio; Correa, Carlos M. Direito, desenvolvimento e sistema multilateral de comércio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. p. 65. 48 CORREA, 2009, p. 52, tradução nossa. (Ex-officio interventions, however, shift the responsibility for damages to the state and should be limited to very exceptional situations in which there is a justification to provisionally substitute the right holder in defence of his private rights.) 49 INTERNATIONAL CENTRE OF TRADE AND SUSTAINABLE DEVELOPMENT (ICTSD). Brasil critica apreensão de medicamento genérico na UE. Pontes Quinzenal. Genebra, 16 fev 2009, vol. 4, no. 2, notícias regionais, p. 6. Disponível em: <http://ictsd.net/downloads/pontesquinzenal/pq4-2.pdf>. Acesso em: 24 set 2009. 47 101 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I discussões sobre o acesso a medicamentos nos países em desenvolvimento50 e sobre barreiras ao comércio legítimo de genéricos. A União Européia agiu em conformidade seu Regulamento (CE) nº 1383/2003, que diz respeito às medidas que devem ser tomadas contra mercadorias suspeitas de violarem direitos de propriedade intelectual, e permite a suspensão de mercadorias em trânsito no território da União Européia.51 Porém, como afirma Frederick Abbott ―as autoridades holandesas podem ter atuado segundo o texto do regulamento aplicável da UE. Contudo, tal fato não legitima a apreensão do ponto de vista do Direito Internacional, tampouco da perspectiva do comércio global responsável ou das políticas de saúde pública‖ 52. De acordo com dados da Oxfam Internacional e da Health Action International Europe desde finais de 2008, ocorreram 19 apreensões de medicamentos genéricos pelas autoridades aduaneiras da Holanda e da Alemanha, destes carregamentos 18 foram legalmente fabricados e exportados pela Índia e China com destino a países em desenvolvimento, onde poderiam ser legalmente importados. No caso do Losartan o medicamento foi reenviado a Índia ao invés de destruído.53 Outro problema suscitado pelas referidas normas é a afronta ao principio da soberania e da territorialidade, que na propriedade industrial consiste na regulamentação nacional de cada país para proteção dos direitos de propriedade intelectual, isto é, a validade e o exercício de um direito de propriedade intelectual é regulada pela legislação nacional do país em que se deseja proteger, respeitados os padrões mínimos estabelecido no Acordo TRIPS. Neste sentido explica Thais Castelli: O Princípio da Territorialidade em propriedade industrial que determina o regime jurídico aplicável a estes bens está atrelado ao requisito do registro de marca (sistema constitutivo) patente ou uso local (sistema declaratório) para aquisição originária da propriedade, sem o quê o bem é para o Direito res nullius. Este Princípio Terriotorialiadade tem por conseqüência a função de limitar os efeitos e proteção deste bem no registro ou do uso local.54 Existem algumas exceções ao princípio da territorialidade como no caso dos efeitos extraterritoriais sobre importação de produtos feitos de uma patente de processo (artigo 28.1.b, 50 Na esfera da OMC um grande avanço sobre a questão do acesso aos medicamentos foi a Declaração Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública, cujos termos são diretamente atingidos pela apreensão realizada pela Holanda. 51 Regulamento (CE) nº 1383/2003, disponível em: <http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/site/en/oj/2003/l_196/l_19620030802en00070014.pdf>. 52 ABBOTT, Frederick. A apreensão pela Holanda de medicamentos genéricos em trânsito da Índia para o Brasil: o que se temia ocorreu. In: International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD). Pontes Quinzenal. Genebra, jun 2009, vol. 5, no. 2, p. 9. Disponível em: < http://ictsd.net/downloads/2009/06/pontesv5n2-final.pdf>. Acesso em: 24 set 2009. p. 9. 53 OXFAM INTERNATIONAL; HEALTH ACTION INTERNATIONAL EUROPE. Trading away access to medicines: How the European Union‘s trade agenda has taken a wrong turn. Out.2009. Disponível em: < http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/bp-trading-away-access-to-medicines.pdf>. Acesso 15 nov 2009. 54 CASTELLI, Thais. Propriedade Intelectual: o princípio da territorialidade. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 127. 102 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I TRIPS), mas nenhuma das exceções diz respeito ao caso das apreensões dos medicamentos em trânsito.55 A extensão da jurisdição provocada pela previsão de apreensão de mercadorias em trânsito no regulamento da União Européia pode provocar sérios prejuízos aos países que passarão a gastar mais com rotas alternativas para evitar os portos da União Européia. Frederick Abbott alerta que a longo prazo tais medidas causarão implicações para o sistema econômico internacional, o desenvolvimento econômico e o bem-estar público: ―Se medicamentos genéricos legítimos são tratados como medicamentos contrafeitos toda a população mundial vai sofrer. Infelizmente, o sistema internacional de patentes será novamente sofrer um duro golpe para a sua legitimidade‖56. Todas estas questões são preocupações comuns aos países em desenvolvimento em matéria de propriedade intelectual, criando nos últimos anos ações coordenadas entre estes países para defesa de sues interesses57. Estas iniciativas podem ser observadas na Agenda de Desenvolvimento da OMPI, na Convenção da Diversidade Biológica e na Convenção da Diversidade Cultural no âmbito da UNESCO58. A participação em rede dos países em desenvolvimento nos novos foros deve ser fortificada, buscando transformar as negociações de acordos sobre propriedade intelectual em ambientes mais democráticos e legítimos, com propostas que reflitam os ideais de desenvolvimento econômico, tecnológico e social reconhecidos no Acordo TRIPS. 5 CONCLUSÃO As novas ofensivas em matéria de observância dos direitos de propriedade através de medidas de fronteira lançam aos países em desenvolvimento o desafio de equilibrar as questões de interesse público e dos direitos de titulares. 55 SEUBA, Xavier. Border measures concerning goods allegedly infringing intellectual property rights: the seizures of generic medicines in transit. Switzerland: ICTSD, 2009. 56 ABBOTT, Frederick M. Seizure of generic pharmaceuticals in transit based on allegations of patent infringement: a threat to international trade, development and public welfare. In: YU, Peter K. The WIPO journal: analysis and debate of intellectual property issues, 2009 ISSUE NO:1 London: Thomson Reuters, 2009, p. 43-50, tradução nossa (If legitimate generic drugs are treated as counterfeit drugs the entire global public will suffer. Regrettably, the international patent system will again suffer a blow to its legitimacy.) 57 Henrique Choer Moraes (2009) aponta o processo que culminou na Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública, em 2001, como o início das ações conjuntas para agir em defesa dos interesses dos países em desenvolvimento. 58 MORAES, 2009. 103 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I As negociações que se apresentam nos Tratados de Livre Comércio, no WCO SECURE, ACTA no IMPACT da OMS são de normas muito mais rígidas e de difícil execução pelos países em desenvolvimento, que não possuem as mesmas estruturas de comércio, nem o mesmo nível de produção industrial e intelectual que países desenvolvidos, e ainda deve-se considerar os custos financeiros para implementação destas novas medidas. Dentre as novas medidas é especialmente preocupante o despreparo das autoridades aduaneiras para ampliação de suas competências, principalmente quanto as infrações às patentes; a criação de barreiras não tarifárias ao comércio; as conseqüências de criar mecanismos para que a suspensão seja realizada ex officio; a extensão da suspensão para mercadorias destinadas à exportação e em trânsito; a possibilidade de aplicar a outros direitos de propriedade intelectual; a redução dos custos do titular e das evidências de que a mercadoria é pirateada ou contrafeita; e os entraves ao comércio legítimo de medicamentos genéricos. Neste sentindo, é essencial que sejam mantidas as flexibilidades existentes no Acordo TRIPS e que os países em desenvolvimento busquem coesão entre suas políticas externas, formando um grupo harmônico em defesa de seus interesses nacionais, em particular aos benefícios que um sistema equilibrado de propriedade intelectual pode oferecer para o desenvolvimento tecnológico, econômico e social. REFERÊNCIAS ABBOTT, Frederick. Intellectual property provisions of bilateral and regional trade agreements in light of U.S. federal law. UNCTAD - ICTSD Project on IPRs and Sustainable Development. International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD), 2006. _______________. A apreensão pela Holanda de medicamentos genéricos em trânsito da Índia para o Brasil: o que se temia ocorreu. In: International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD). Pontes Quinzenal. Genebra, jun 2009, vol. 5, no. 2, p. 9. Disponível em: < http://ictsd.net/downloads/2009/06/pontesv5n2-final.pdf>. 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In: International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD). The global debate on the enforcement of intellectual property rights and developing countries. Programme on IPRs ans Sustainable Development, Issue Paper No.22, Geneva, Switzerland, 2009. ________________. Derechos de propiedad intelectual, competencia y protección del interés público: la nueva ofensiva en materia de observancia de los derechos de propiedad intelectual y los intereses de los países en desarrollo. Montevideo; Buenos Aires: Editorial B de F, 2009b. DRAHOS, Peter. Bilateralism in intellectual property. 2001. Disponível em: <http://www.maketradefair.com/assets/english/bilateralism.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2008. INTERNATIONAL CENTRE OF TRADE AND SUSTAINABLE DEVELOPMENT (ICTSD). Brasil critica apreensão de medicamento genérico na UE. Pontes Quinzenal. Genebra, 16 fev 2009, vol. 4, no. 2, notícias regionais, p. 6. Disponível em: <http://ictsd.net/downloads/pontesquinzenal/pq4-2.pdf>. 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World Health Organization, 2007. Disponível em: <http://www.who.int/impact/events/FinalPrinciplesforLegislation.pdf>. Acesso em: 15 dez 2009. 106 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I O PORTEIRO E O POLICIAL: DIREITOS AUTORAIS E CONTROLE SOCIAL NA INTERNET Alexandre Pesserl1 SUMÁRIO: 1. Inovação tecnológica e reação. 2. O ambiente digital e as ―copyright wars‖. 3. O porteiro da rede. 4. ―Network Police‖. Referências. RESUMO O presente artigo analisa uma faceta da chamada doutrina maximalista do direito autoral, que é a tentativa de atribuição de papéis administrativos e de polícia aos provedores de acesso e de serviços na rede (Internet Service Providers - ISPs). A indústria argumenta que a responsabilidade pela proteção dos direitos autorais deveria ser estendida pela cadeia econômica, e que os ISPs deveriam ter um papel maior na proteção do conteúdo que trafega pelas redes. Estas tentativas estão ganhando fôlego ao redor do mundo – materializadas, por exemplo, nos projetos de lei franceses e inglês que ficaram conhecidos com a expressão threestrikes-you´re-out, no brasileiríssimo ―projeto Azeredo‖ ou ainda nas recentes tentativas de implantação de normas globais inspiradas no Digital Millenium Copyright Act (DMCA) americano via tratados secretos, como é o caso do ACTA. Tais procedimentos são denominados pelos representantes das indústrias do copyright como ―respostas graduais‖ (graduated response).A fundamentação ideológica de tais projetos é clara: defender os interesses destes poderosos grupos de pressão, à custa de liberdades e garantias fundamentais do cidadão. Sob o ângulo da privacidade, são desta forma analisadas algumas das consequências da adoção de tais normas, e do alcance potencial destas novas formas de controle social. Palavras-chave: Neutralidade de rede. Direitos autorais. Inovação. Doutrina maximalista. Responsabilidade. Provedores de serviços. Privacidade. ABSTRACT This paper focus on a specific aspect of the so-called maximalist copyright proposal, which is the attempt to attribute administrative and police roles to Internet services and connection providers – ISPs. The industry argues that the responsibility for copyrights protection should be 1 Mestrando em Direito – CPGD/UFSC. Bolsista CAPES. [email protected] 107 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I extended through the network supply chain, and that ISPs should play a greater role in the monitoring and control of network traffic. These attempts are gaining breath around the world – materialized, for instance, in the ―three-strikes-you´re-out‖ internet laws proposed in England and France, in Brazil´s ―Azeredos project‖, or in the recent attempts to create DMCA-style global rules through secret treaties, such as the ACTA negotiations, which supposedly contains similar dispositions. Such procedures are called ―graduated responses‖ by the representatives of the copyright industries.The ideological basis of such projects is clear: to stand on behalf of these powerful pressure groups, at the cost of citizens fundamental freedoms and guarantees. Under the angle of privacy, some of the consequences of the adoptions of such norms are analyzed, as well as the potential reaches of these new forms of social control. Keywords: Net neutrality. Copyrights. Innovation. Maximalist doctrine. Civil responsabilites. Internet service providers. 1. INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E REAÇÃO O surgimento do novo sempre representa uma ameaça aos interesses constituídos e provoca sua reação, já que a novidade tende a suplantar o status quo vigente e impôr seus próprios valores. A intensidade desta reação dependerá do poder existente e dos instrumentos disponíveis para sua auto-preservação. Este fato se verifica quando se analisa o discurso dos representantes da indústria do entretenimento, desde o início do século XX, quando confrontados com inovações que alterem o controle da distribuição do conteúdo. Em 1906, três anos antes da publicação do Copyright Act de 1909 nos Estados Unidos, o famoso compositor americano John Philip Sousa publicou um artigo na Appleton´s Magazine denunciando o que considerava uma ameça ―pirata‖ à sua subsistência, à todo o corpo político, ao ―gosto musical‖ e até aos pulmões da juventude. Seus alvos eram a pianola automática e o gramofone, os quais privavam a humanidade de performances ao vivo, com alma. ―Desde os dias quando o matemático e o mecânico imperavam na música, a luta foi amarga e incessante pelo balança do emocional e da alma‖, escreveu. ―E agora, neste século vinte, vêm essas máquinas que falam e tocam, e querem novamente reduzir a expressão da música a um sistema matemático de megafones, rodas, bielas, discos, cilindros e todos os tipos de coisas que giram, e que está para a arte verdadeira assim como a estátua de mármore de Eva 108 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I está para suas belas filhas que respiram‖2. Mas Sousa não escreveu seu artigo por razões estéticas; por mais que as belas filhas de Eva lhe fossem aprazíveis, seus reais motivos eram de ordem material. Até então, os compositores ganhavam dinheiro com a venda de partituras, tocadas e cantadas por músicos amadores em saraus ao redor dos pianos. A venda de partituras adotava as mesmas regras do já estabelecido mercado livreiro. Mas uma novidade tecnológica, não prevista em lei, tornou possíveis novos usos da obra: as gravações e fonogramas, tanto no acetato quanto em pianos de rolo. O alvo verdadeiro das críticas do compositor estava na crescente utilização das composições em pianolas e outros dispositivos de reprodução mecânica, sem quaisquer pagamentos aos autores – e editores – por tais usos. Se os autores não recebessem por isso, argumentava, menos composições estariam no mercado – e, assim, não haveriam mais músicas para serem tocadas nas pianolas e gramofones...3 Sousa enuncia desta forma aquele que é o argumento central de sustentação do exclusivo de direito autoral: ele protege a inovação – e isso é bom para a sociedade; se não houver alguma proteção para novas obras, muitas delas não serão criadas. Mas ele faz esse enunciado utilizando um discurso carregado com tintas emotivas, ao mesmo tempo em que persegue uma agenda clara – a defesa de seus próprios interesses. Com esta publicação, ele estava preparando o terreno – e pressionando os legisladores – para a alteração legislativa que viria dali a três anos, a qual ampliou os direitos dos autores para incluir as reproduções mecânicas, por meio de uma licença de utilização compulsória4. Passados mais de cem anos, nem as pianolas nem os gramofones acabaram com o mercado musical – pelo contrário, as gravadoras é que engoliram as editoras musicais; mas a retórica alarmista adotada desde então ganhou em volume e em fervor, na mesma medida em que as leis de direito autoral seguiram aumentando os direitos dos titulares de direitos autorais. Quando surgiram as máquinas reprográficas, nos anos 70, a reação veio na forma de processos legais. No mais famoso deles, uma editora de publicações de medicina (Williams & 2 SOUSA, John Philip, apud ANDERSON, Nate. 100 years of Big Content fearing technology—in its own words, em tradução livre. Disponível em http://arstechnica.com/tech-policy/news/2009/10/100-years-of-bigcontent-fearing-technologyin-its-own-words.ars Consultado em 15/01/10. 3 ANDERSON, Nate. 100 years of Big Content fearing technology—in its own words. Disponível em http://arstechnica.com/tech-policy/news/2009/10/100-years-of-big-content-fearing-technologyin-its-ownwords.ars Consultado em 15/01/10. Neste texto, Nate Anderson traz maiores detalhes sobre os exemplos aqui relatados. 4 Copyright Act americano de 1909, Sec. 1 (e). Disponível em 15/01/10 em http://www.copyright.gov/history/1909act.pdf 109 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Wilkins) processou o governo americano por permitir cópias de artigos técnicos na Biblioteca Nacional de Medicina e no Instituto Nacional de Saúde americanos. Os tribunais entenderam que o uso das fotocopiadoras constituía uso justo (fair use), elemento da doutrina anglo-saxã que constitui limite ao copyright. A pregação contra inovações tecnológicas continuou, com um discurso cada vez mais desproporcionado. Em 1982, o surgimento do VHS deflagra uma ―crise sem precedentes na indústria‖. É famoso o depoimento do então lobista-chefe de Hollywood, Jack Valenti, para uma comissão do congresso americano. Valenti, munido de tabelas de importações, afirma que há um ―tsunami‖ que iria fazer a indústria ―sangrar, sangrar e morrer de hemorragia‖, e que ―o VHS está para o produtor de filmes e o público americanos como o estrangulador de Boston está para uma mulher sozinha em casa‖5, ao mesmo tempo em que estressava a natureza ―japonesa‖ da máquina, apelando até para o xenofobismo em sua desesperada defesa do ―público americano‖. É claro que seu interesse era outro: Valenti estava preocupado com o fato de que as pessoas iam usar o VHS para pular os comerciais dos programas exibidos, e os patrocinadores não iam mais querer pagar pela produção dos programas. E que isso representaria o fim da televisão aberta. Pois bem, apesar de tal ―ameaça‖, e de um processo paradigmático que foi decidido pela Suprema Corte americana, a TV aberta não acabou; enquanto isso, a tecnologia do VHS acabou por gerar milhões de dólares para os estúdios de cinema, efetivamente salvando muitos deles da falência nos anos 80... Mas já havia então uma nova inimiga da indústria – a fita cassete, alvo de uma campanha intitulada ―Home taping is killing music‖ (―as gravações caseiras estão destruindo a música‖). Apesar das certezas de que gravações do rádio e troca de músicas entre amigos iam destruir uma indústria inteira, e da pressão exercida sobre os legisladores, a música sobreviveu. Até o final dos anos 80, quando, agora sim, surgiria o inimigo definitivo: as fitas DAT, que permitiam a cópia digital, sem perda de qualidade. A indústria musical mais uma vez atacou a inovação, e em 1992 conseguiu de fato pressionar o Congresso para publicar uma legislação específica6, que efetivamente aleijou a tecnologia e baniu-a do mercado. Nos anos 90, surge na Alemanha o MP3, tecnologia de compressão de áudio que tornou viável tanto o compartilhamento online (com a grande popularidade do Napster), como o 5 ―The VCR is to the American film producer and the American public as the Boston strangler is to the woman home alone.‖ íntegra do depoimento disponível em http://cryptome.org/hrcw-hear.htm 6 Audio Home Recording Act (AHRA), que impôs proteção de cópia SCMS em dispositivos DAT (impedindo sua duplicação) e sobretaxou a venda de fitas DAT. 110 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I primeiro player pessoal (o Diamond Rio). As duas iniciativas foram alvos de processos da RIAA (Recording Industry Association of America), a entidade que representa as grandes gravadoras da indústria musical (majors). No processo contra a Diamond, em 1998, a RIAA argumentou que se não houvesse a possibilidade de se controlar aparelhos de MP3, a inovação seria afetada, e que tais aparelhos deveriam estar sujeitos à mesma lei das fitas DAT. Os tribunais não concordaram, e hoje, com aparelhos de MP3 onipresentes, tal argumento soa absurdo. Mas uma certa inovação prometia ser o golpe final na indústria cultural. E, dessa vez, realmente havia uma grande ameaça ao modelo de negócios constituído, pois esta inovação afetava o próprio canal de distribuição dos produtos culturais, monopólio tradicional das corporações. Pela primeira vez, o público não estava mais sujeito aos produtos impostos pela indústria, nem os artistas obrigados a contratarem os serviços das grandes gravadoras, editoras ou estúdios de cinema para chegarem ao mercado; estavam uns livres para escolher o que desejavam consumir, e outros para publicar suas obras de forma direta, sem intermediários. Era chegada a Internet. 2. O AMBIENTE DIGITAL E AS “COPYRIGHT WARS” Os bens intelectuais estão presentes nas nossas atividades mais triviais e, com a revolução nas comunicações, sua importância só faz aumentar. A sociologia, ao analisar as interações globais entre empresas e pessoas, aponta uma inédita compressão do espaço e do tempo pelas tecnologias da informação, uma intensificação das relações sociais em escala mundial. A globalização valoriza mais como atividades econômicas principais, na sociedade pósindustrial, a ciência, informação e conhecimento, do que a produção de bens e o oferecimento de serviços7. Essas transformações sociais, que partem da tecnologia e também dirigem as modificações tecnológicas, têm efeitos sobre o direito, sobre a política e sobre as relações de poder: ―Uma nova sociedade emerge se e quando uma transformação estrutural pode ser observada nas relações de produção, nas relações de poder, e nas relações de experiência‖8. 7 8 GIDDENS, Anthony. Sociology. 2ª ed. Cambridge (Inglaterra): Polity Press, 1993, pp. 527-528. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra. 1999, pp. 12. 111 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A mudança social decorre de um meio tecnológico que converte a capacidade de investigar e gerar conhecimentos em força produtiva direta. Isso quer dizer que as informações ficam mais fluidas, mas seu fluxo, ou seja, o acesso a elas, toma direções – definidas in ultima ratio pelo Direito. A proliferação de computadores, comparável com a da energia elétrica durante a Segunda Revolução Industrial, não melhora apenas as condições físicas de trabalho para toda a sociedade. O computador, com sua capacidade de armazenamento, sistematização, consulta e manipulação dinâmicas das informações, não é só um instrumento de precisão, mas uma lente de aumento sobre a capacidade intelectual do ser humano. A consequência direta deste fato é que artefatos culturais como músicas, livros e filmes, uma vez digitalizados e disponibilizados na rede, tornam-se prontamente acessíveis para todos aqueles nela conectados – a não ser que sejam criadas barreiras artificiais que impeçam sua difusão. Como diz o Prof. Ascensão, ―esta disponibilização cria problemas jurídicos muito significativos, cujo debate passou para a ordem do dia‖9. E continua: ―A inovação tecnológica permite uma explosão da informação sem precedentes e a sua colocação em termos de quantidade, rapidez e fidedignidade à disposição do público. Mas perante isto, pergunta-se se não estamos assistindo à morte do Direito de Autor. O que interessaria seria a circulação sem peias das mensagens; e o Direito de Autor surge como um obstáculo, primeiro à introdução de mensagens na rede, depois à disponibilidade por todos os operadores concorrentes. […] Teoricamente, é o autor quem é protegido. Na realidade, a proteção beneficia cada vez mais abertamente a empresa; ou até a beneficia exclusivamente, como no caso do direito sui generis sobre bases de dados.‖10 Os comportamentos individuais no ciberespaço são de difícil controle; mas, na medida em que o comércio e os governos começam a compreender o valor de uma arquitetura de confiabilidade (architecture of trust) para consecução de seus objetivos, há uma tendência a regulamentar a própria arquitetura da rede, alterando as opções de ações disponíveis ao indivíduo, e assim modulando tais comportamentos (regulatory two-step11). Obtém-se o controle social por forma indireta. Assim, as empresas detentoras de direitos autorais resolveram mirar suas baterias nas empresas que ofereciam serviços de compartilhamento de arquivos na Internet, já que não era possível controlar o uso de aparelhos individuais. O primeiro alvo foi o pioneiro Napster, serviço dotado de um servidor central que compilava listas de arquivos (musicais) que, em 1999, caiu sob uma chuva de argumentos 9 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 107 10 Op. cit., p. 119. 11 LESSIG, Lawrence. Code and other laws of cyperspace. Basic Books: New York, 1999. P. 43-44. 112 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I sobre – mais uma vez – a ―morte de uma indústria‖. Após o Napster, a escalada de processos foi intensa, num movimento que ficou conhecido como as ―copyright wars‖. Logo foi a vez dos DVRs; depois, das rádios digitais, seguidas de perto pela tecnologia de HDTV. Neste ponto, o lobby da indústria chegou a conseguir com que a Comissão Federal de Comunicações (FCC) americana impusesse em 2003 uma broadcast flag, uma marcação a ser distribuída junto com os arquivos de TV digitais, impedindo sua livre circulação – decisão logo derrubada por uma corte federal daquele país. Ficaram famosos também os processos nos Estados Unidos contra indivíduos acusados de disponibilizarem arquivos para troca online, muitas vezes de forma abusiva – contra pessoas que sequer possuíam computadores, mães solteiras, idosos, etc., atraindo ainda mais críticas contra estas corporações (o site especializado em tecnologia Slashdot, por exemplo, constantemente se refere a tais grupos pela bem humorada alcunha de ―MAFIAA‖). O autoralista norte-americano William Patry, comentando tais processos, é enfático ao analisar o que chama de uma decisão ―suicida‖12 da indústria musical, que não aceitou o fato de que o mercado havia mudado – da lucrativa venda de CDs para singles digitais, e que o consumidor não estava mais disposto a escutar apenas o que a indústria queria. Narra ainda o fato de que, quando o Napster foi fechado, a indústria musical boicotou a criação de iniciativas digitais aceitáveis, o que deu início inclusive a uma investigação do caso pelo Departamento de Justiça americano (posteriormente arquivada). Mas os consumidores não desejavam mais retornar ao antigo modelo de consumir apenas o que fosse conveniente para a indústria; e esta situação também era favorável para multidões de artistas que agora não dependiam mais dos caprichos – e contratos muitas vezes abusivos – das grande corporações para distribuir suas obras. Como havia tal demanda, e já que a indústria foi incapaz de atendê-la13, surgiram de imediato serviços para atendê-la, como, por exemplo, clientes de conexão com as redes P2P (peer-to-peer, ponto-a-ponto), uma topologia de redes na qual cada nó funciona simultaneamente como cliente e servidor (ao contrário do Napster, que possuía um servidor centralizado), como o Kazaa, ou o protocolo BitTorrent, por intermédio do qual um computador pode receber pequenos pedaços de arquivos de diversas fontes ao mesmo tempo. Tais tecnologias possuem usos legítimos, que vão muito além do compartilhamento de arquivos musicais de titularidade de terceiros. São modos eficazes de distribuição de dados, com usos que vão desde a distribuição de softwares livres (como o sistema operacional Linux, 12 PATRY, William. MusicNet, Pressplay and Lost Opportunities. Disponível em 15/01/10 em http://moralpanicsandthecopyrightwars.blogspot.com/ 13 Situação parcialmente corrigida a partir da entrada da Apple e do iTunes Store no mercado. 113 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I por exemplo) até projetos científicos internacionais. É o caso, por exemplo, do BOINC, ou Berkeley Open Infrastructure for Network Computing, uma infra-estrutura para computação distribuída, desenvolvido por uma equipe da Universidade da Califórnia, em Berkeley, que utiliza redes peer-to-peer e comunidades de usuários para atividades que vão desde o cálculo e processamento de dados recebidos de telescópios espaciais até a pesquisa da cura de doenças como o câncer e a AIDS. E, obviamente, para distribuição de obras de artistas independentes, que elegem disponibilizar ao público seus trabalhos de forma livre na Internet, em exercício regular de seus direitos de autor. Aliás, este argumento – de que tais ferramentas possuem usos lícitos – foi o principal fator decisório no processo da indústria musical contra a Sony, pela tecnologia do VHS (―Caso Betamax‖), decidido em prol da inovação tecnológica, e que foi o paradigma sobre o tema durante quase vinte anos. Entretanto, no julgamento do caso Kazaa, a Suprema Corte americana inovou ao criar a figura da ―ferramenta com uso predominantemente infringente‖ para bloquear a tecnologia. Fred Von Lohmann, advogado da Electronic Frontier Foundation (EFF), organização sem fins lucrativos americana dedicada à liberdade no ciberespaço que atuou naquele processo, afirma que tratou-se de decisão eminentemente política, já que não há diferença substancial entre as diferentes tecnologias de cópia. Mas tais ferramentas também tornam possível a troca de arquivos de titularidade de terceiros, sem obtenção das permissões devidas. Aliadas à criptografia de dados, também tornam cada vez mais difícil a identificação de seus usuários. Estes processos também atraíram críticas da academia. Ao comentar o caso Napster, o Prof. Ascensão afirma: ―O litígio faz recordar uma decisão do BGH alemão, que considerou que os fabricantes de máquinas de fotocópias eram responsáveis por violação do direito de autor! A máquina de fotocópia seria assim um instrumento ilícito! A responsabilização de quem fabrica os dispositivos é completamente absurda. Basta pensar que esses dispositivos servem também para a realização de operações lícitas. Nem por violação direta nem por comparticipação os fabricantes podem ser considerados infratores do direito de autor. É muito primário pretender travar o progresso tecnológico pela circunstância de esse progresso trazer consigo meios que podem ser usados para violar direitos de autor.14‖ Mesmo com estas ofensivas judiciais, o número de arquivos trocados livremente continuou a aumentar. A resposta tradicional da indústria contra qualquer ameaça a seu monopólio da distribuição de artefatos culturais – processar os responsáveis pelos serviços em 14 ASCENSÇÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. p. 153. Forense: Rio de Janeiro, 2002. 114 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I questão – não estava surtindo o efeito desejado. Assim, resolveram recorrer ao seu velho aliado: o lobby político. E, desta vez, miraram alto. 3. O PORTEIRO DA REDE Quando alguém se conecta à Internet, o faz por intermédio de um provedor de acesso, ou ISP (Internet Service Provider). São empresas que alocam um IP (Internet Protocol), um número que identifica (normalmente de forma temporária) um determinado computador na rede, para que os dados de entrada e saída trafeguem normalmente por aquela máquina. Também chamados de ―provedores de serviços intermediários, são as entidades que tornam possível ao usuário final a utilização da Internet, oferecendo acesso à rede, serviço de envio de mensagens, hospedagem de sites em servidores ou simplesmente a infraestrutura das redes‖15. Suas funções primordiais são a autenticação de conexões e o gerenciamento do tráfego por suas redes; é quem controla a conexão com o usuário final, e assim, análogo a um porteiro que controla a circulação de pessoas num edifício. Este gerenciamento deve obedecer aos princípios da neutralidade de rede, que basicamente determina que não deve haver bloqueios ou censuras aos tipos de conteúdos que por lá circulam. Há, por suposto, uma determinada hierarquia entre os diferentes protocolos; é o caso das mensagens instantâneas (IMs), como o MSN, ou do VoIP (Voice over IP), como o Skype, que terão preferência sobre serviços de e-mail, por exemplo. Mas este fato se deve por contingências de ordem técnica – o usuário da rede que está conversando em tempo real com alguém do outro lado do mundo tem prioridade na transmissão de dados sobre uma mensagem ―fixa‖ como um e-mail, na qual não há necessidade da comunicação em tempo real. Assim, os ISPs exercem um determinado nível de controle sobre o tráfego de dados que circula por tais redes, mas não podem (ou não deveriam poder) abusar deste poder promovendo a censura ou o bloqueio a determinadas informações. 4. ―NETWORK POLICE” O alvo havia mudado: agora, a indústria mira diretamente as empresas responsáveis pela conexão com a Internet. A teoria da doutrina maximalista de proteção era a de estender a 15 SANTOS, Manoel Pereira dos. Responsabilidade Civil Solidária do Provedor por Atos de Terceiros e Direito Autoral. p. 93. In GRAU-KUNTZ, Karin, e BARBOSA, Denis Borges (org.). Ensaios sobre o Direito Imaterial. Estudos dedicados a Newton Silveira. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009. 115 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I responsabilidade (pela suposta conduta infringente de usuários da rede) pela cadeia de acesso, e atribuindo poder de polícia a tais agentes. De acordo com o IFPI Digital Music Report 2009, relatório anual publicado pela IFPI (International Federation of the Phonographic Industry), ―the debate has a huge way to go, but the campaign for ISPs to act as proper partners in helping protect intellectual property is making progress.16‖ Assim, na esteira dos atentados do 11 de setembro, aproveitando o momento político de tensão, foi aprovada nos Estados Unidos o Digital Millenium Copyright Act – DMCA. Esta lei contém uma provisão de notice-and-take-down, ou seja, uma norma para que os provedores (de acesso, hospedagem, serviços), uma vez notificados por um detentor de direitos autorais, removam de seus servidores o conteúdo supostamente infringente sem necessidade de intervenção judiciária, bastando para tanto uma simples notificação. Na Europa, os governos conservadores da França e do Reino Unido estão empenhados na aprovação de legislações que ficaram conhecidas como ―three-strikes-you´re-out‖, expressão emprestada do jogo de baseball, pela qual quando alguém fosse notificado sobre infrações a direitos autorais pela terceira vez, seria banido da rede, com retirada de seu acesso à Internet. A IFPI chama esta tática de ―graduated response‖ (resposta gradual). No relatório publicado em 2010, afirma: ―The graduated response approach has become the focus of the music industry‘s campaign for action by ISPs to address digital piracy.17‖ Além disso, os ISPs deveriam monitorar o tipo de tráfego que circula por suas redes, dificultando o tráfego para determinados protocolos (notadamente, BitTorrent). Essa prática constitui o chamado traffic-shaping (modulação de tráfego), e, ainda que não expressamente ilícita, constitui infração de ordem consumerista, além de possível quebra de ordem contratual. No Brasil, determinadas operadoras adotam tais práticas ao arrepio da legislação, ainda que neguem tais condutas. Ainda no tópico de monitoramento, tais projetos de lei criam para os ISPs obrigações de registro de todo o tipo de tráfego por suas redes por longos prazos, bem como o dever de sinalizar (―flag‖) determinados ―conteúdos impróprios‖ – tais como pedofilia, apologia a crimes, terrorismo e infrações a direito autorais (―pirataria‖). As notícias que tem vazado sobre as negociações do ACTA (Anti-Counterfeiting Trade 16 IFPI Digital Music Report 2009, p. 03. Disponível em http://www.ifpi.org/content/library/DMR2009real.pdf Consultado em 15/03/10 17 IFPI Digital Music Report 2010, p. 24. Disponível em 15/01/10 em http://www.ifpi.org/content/library/DMR2010.pdf 116 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Agreement), um tratado global sobre copyright que está sendo negociado em segredo pelos países desenvolvidos, e ao qual se presume que os países em desenvolvimento serão pressionados a aderir, estabelece legislações globais ao estilo do DMCA, fortalecendo enormemente a posição destas corporações. Uma das principais dificuldades da implementação de tais políticas é que, devido a um regime que dispensa o registro como requisito para obtenção do exclusivo de direitos autorais, a tarefa de determinar quem seria um titular de tais direitos não é fácil (a própria Lei 9.610/98 – Lei do Software – manda que medidas de busca e apreensão sejam precedida por vistoria (por perito judicial), para que se possa determinar in loco se há ou não infração18). Trata-se de tema complexo mesmo para especialistas na área; autorizar que funcionários de empresas privadas tenham tal atributo é praticamente garantir que ocorrerão abusos, além de outorgar poderes excessivos sobre os usuários da rede. É o cenário das little sisters, como diz Manuel Castells19; não um governo único centralizador e totalitário (―big brother‖20), mas diversas corporações com acesso a informações pessoais, exercendo controle sobre os usuários da rede sem checks and balances que contrabalancem tal controle, sem oportunidade para os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos / netizens. Outro fator de peso é que por baixo do manto de proteção esconde-se um potencial de controle social sem paralelo; aonde terminam as ―apologias ao crime‖ e iniciam-se os lídimos direitos de crítica política? Em que ponto acaba a ―pirataria‖ e começam as exceções ao direito de autor? Cadeados digitais (DRM), ferramentas usadas para tentativas de bloqueio de cópias, muitas vezes ignoram tais limites e exceções em prol do exclusivo. É famoso o caso da empresa Sony, que instalou rootkits em CDs de artistas de seu casting, um software que permitia que a Sony tivesse acesso remoto aos computadores dos usuários de seus produtos. O que se está armando é um cenário totalitário adequado para os ―thought crimes‖ orwellianos, ―crimes de pensamento‖: determinados pensamentos ou expressões são ilícitos em si mesmo. É o caso, por exemplo, da pedofilia virtual, na qual se simulam personagens infantis engajados em condutas sexuais. 18 Art. 13 da Lei nº 9.609/98 ―Rather than an oppressive "Big Brother," it is a myriad of well-wishing "little sisters," relating to each one of us on a personal basis because they know who we are, who have invaded all realms of life.‖. CASTELLS, Manuel. The Power of Identity. Blackwell Publishing: 2 nd. ed., 2004. P. 324 20 FERRAZ Junior, Tercio Sampaio. A liberdade como autonomia recíproca de acesso à informação. p. 241. In GRECO, Marco Aurelio, e MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Direito e Internet – Relações jurídicas na sociedade Informatizada. Revista dos Tribunais: São Paulo – 2001. 19 117 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Por repugnantes que sejam, tratam-se apenas de pixels de computador; nenhuma criança real foi ali abusada. Entretanto, determinadas jurisdições já tipificam tais condutas. Na Austrália, recentemente foram proibidos filmes pornográficos com maiores de 18 anos, quando os seios das atrizes forem muito pequenos, dando margem à confusão com menores... Ou seja, tais propostas legislativas dão margem a todo tipo de censura e restrição à liberdade de expressão, e ainda ferem despropositadamente a privacidade dos usuários da rede, tudo isso em prol de tentativas de defesa de uma indústria que está tendo seu modelo de negócio abalado pela inovação. O direito autoral, de cunho constitucional, deve ser interpretado sempre em equilíbrio necessário com os demais direitos constitucionalmente previstos, entre os quais os direitos à cultura e à educação. Privilegiar determinado setor da economia por meio do exclusivo só se justifica na medida em que tal privilégio reverta para o bem público. De um lado, há o direito do criador; direito constitucionalmente atribuído de utilização, equiparado ao de propriedade – inclusive no tocante à sua função social. De outro, da sociedade e de seus membros, os direitos à educação, pesquisa, cultura e comunicação, todos cruciais para a interação sociocultural e para a própria formação da pessoa e construção de sua dignidade21. Tais medidas políticas repressoras interferem com interesses sociais valiosos como a livre iniciativa e o direito à comunicação, e principalmente a circulação da informação. A conectividade da sociedade, bem como a digitalização dos conteúdos, traduzem o ingresso numa nova fase do capitalismo pós-industrial, no qual os recursos de informação, conhecimento e inteligência são os insumos mais valorizados. Bloquear novas tecnologias apenas porque seu advento coloca em cheque modelos de negócios obsoletos significa proteger um sistema ineficiente, em detrimento do interesse social; este ―perigoso exclusivo‖ outorgado sobre a informação pelo direito sui generis deve ser sempre confrontado com o princípio fundamental da liberdade de informação22. REFERÊNCIAS ANDERSON, Nate. 100 years of Big Content fearing technology—in its own words. Disponível em < http://arstechnica.com/tech-policy/news/2009/10/100-years-of-big-contentfearing-technologyin-its-own-words.ars >. Acesso em 15 jan. 2010. 21 SOUZA, Allan Rocha de. Os Direitos Fundamentais, os Direitos Autorais e a Busca pelo Equilíbrio. p. 70, in GRAU-KUNTZ, Karin, e BARBOSA, Denis Borges (org.). Ensaios sobre o Direito Imaterial. Estudos dedicados a Newton Silveira. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009. 22 ASCENSÇÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. p. 322. Forense: Rio de Janeiro, 2002. 118 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra. 1999 CASTELLS, Manuel. The Power of Identity. Blackwell Publishing: 2nd. ed., 2004 Copyright Act, 1909. Disponível em < http://www.copyright.gov/history/1909act.pdf > . Acesso em 15 jan. 2010. IFPI Digital Music Report 2009. Disponível <http://www.ifpi.org/content/library/DMR2009-real.pdf >. Acesso em 15 jan. 2010. IFPI Digital Music Report 2010. Disponível em http://www.ifpi.org/content/library/DMR2010.pdf> . Acesso em 15 jan. 2010. em < GIDDENS, Anthony. Sociology. 2ª ed. Cambridge (Inglaterra): Polity Press, 1993 GRAU-KUNTZ, Karin, e BARBOSA, Denis Borges (org.). Ensaios sobre o Direito Imaterial. Estudos dedicados a Newton Silveira. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009 LESSIG, Lawrence. Code and other laws of cyperspace. Basic Books: New York, 1999 GRECO, Marco Aurelio, e MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Direito e Internet – Relações jurídicas na sociedade Informatizada. Revista dos Tribunais: São Paulo – 2001. PATRY, William. MusicNet, Pressplay and Lost Opportunities. Disponível em http://moralpanicsandthecopyrightwars.blogspot.com/ . Acesso em 15 jan. 2010. 119 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I PARA ALÉM DAS PLANTAS: AS RELAÇÕES ENTRE BIODIVERSIDADE, DIREITO AUTORAL E DIVERSIDADE CULTURAL COMO CAMINHO PARA A SUSTENTABILIDADE Guilherme Coutinho Silva1 Vivian C. K. Dombrowski2 SUMÁRIO: Introdução. 1. Conceituação de cultura. 2. O sistema de tutela dos bens intelectuais e culturais. 3. Obras indígenas e disseminação da cultura. 4.Legislação brasileira. 5. Aspectos teórico-jurídicos sobre os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. 6. O desenvolvimento sustentável e a gestão dos recursos naturais. 7. Sustentabilidade ambiental e cultural. 8. A diversidade inserida na indústria cultural. Conclusões. Palavras-chave: Diversidade Cultural, Diversidade Biológica, Desenvolvimento Sustentável, ONU, UNESCO. ABSTRACT The promotion of cultural diversity is listed as a key factor for sustainable development by UNESCO and the UN definition of sustainable development as one that does not compromise the ability of future generations to meet their own needs. The consumption of cultural production should have the same focus, so the use of diversity produced by several people is guaranteed to future generations. Even when they adopted the concept of cultural objects as consumer goods, one must face them as durable goods, which are transmitted to the future. The UN issued the Convention on Biological Diversity, an important tool for protecting traditional knowledge, with a focus more related to industrial property. Although this Convention does not keep a direct relationship with copyright and cultural rights there are some mechanisms of 1 Mestrando em Direito na área de Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Bolsista do Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica em Cultura – Programa PróCultura, da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Membro do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Informação (GEDAI/UFSC), cadastrado no CNPq. E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Direito (Direito, Estado e Sociedade / Direito, Meio Ambiente e Ecologia Política) pela Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Especialista em Direito Socioambiental e Bel. em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUC-PR. Bolsista da Comissão de Aperfeiçoamento de Profissional em Ensino Superior CAPES/Brasil. Membro do Grupo de Pesquisa de Direito Ambiental na Sociedade de Risco (GPDA/UFSC) cadastrado no CNPq. Membro do Conselho Editorial da Revista Captura Críptica ( Discentes da Pós-Graduação em Direito da UFSC). 120 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I which could serve as parameters for the protection of cultural diversity, as the preservation of access to natural resources and the adoption of measures to share the results of research and development, beyond commercial use. Environmental sustainability must go together with cultural sustainability, as the preservation of the environment also includes the preservation of culture. Access to cultural works is something essential for a dignified life and the intangible heritage of peoples can not be lost for lack of economic groups interested in their protection, lest we care only with the protection of fauna and flora and ignoring the more production rich of humanity: its culture. Keywords: Cultural Diversity, Biodiversity, Sustainable Development, UN, UNESCO. INTRODUÇÃO A promoção da diversidade cultural é relacionada como fator primordial para o desenvolvimento sustentável pela UNESCO. Neste trabalho parte-se da definição da ONU sobre desenvolvimento sustentável como aquele que não compromete a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades. O consumo da produção cultural deve ter o mesmo enfoque, de forma que a utilização da diversidade produzida pelos diversos povos seja garantida às próximas gerações. Mesmo quando adotado o conceito de objetos culturais como bens de consumo, é preciso encará-los como bens duráveis, que são transmitidos para o futuro. A ONU editou a Convenção sobre Diversidade Biológica, importante instrumento a favor da proteção dos conhecimentos tradicionais, com um enfoque mais relacionado à propriedade industrial. Apesar desta Convenção não guardar relação direta com direitos autorais e culturais, há alguns mecanismos previstos que poderiam servir de parâmetro para a proteção da diversidade cultural, como a preservação do acesso aos recursos naturais e a adoção de medidas para compartilhamento dos resultados da pesquisa e desenvolvimento, além da utilização comercial. A sustentabilidade ambiental deve andar junta com uma sustentabilidade cultural, visto que a preservação do meio ambiente passa também pela preservação da cultura. O acesso a obras culturais é algo imprescindível para uma vida digna e o patrimônio imaterial dos povos não pode ser perdido por falta de grupos econômicos interessados em sua proteção, sob pena de nos preocuparmos apenas com a proteção da fauna e da flora e esquecermos da produção mais rica da humanidade: a sua cultura. 121 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 1. CONCEITUAÇÃO DE CULTURA O conceito de cultura é muito amplo e perpassa por diversas áreas do conhecimento, de forma que não será esgotado neste artigo, que buscará traçar algumas bases que sedimentem o desenvolvimento do tema proposto. A raiz etimológica da expressão cultura vem do latim, que por sua vez deriva de colere, guardar, cultivar, trabalhar a terra. Desde as primeiras utilizações que datam do século XVIII a palavra cultura é utilizada no sentido de cultivo ou desenvolvimento, e daí derivam os termos como agricultura e horticultura. O conceito de cultura foi remodelado no século XIX pela antropologia, quando passou a ser um pressuposto da natureza humana, embora ainda fosse aceita a idéia de que havia apenas uma cultura universal. Nesta perspectiva, as diferenças culturais entre as civilizações eram explicadas como sendo evidências de uma escala evolutiva. Assim criou-se uma escala de desenvolvimento com base em pressupostos culturais, de forma que quanto mais distante do padrão europeu da época era a cultura de um povo esta seria considerada como menos avançada na escala cultural evolutiva. Ocorre que a maioria das sociedades contemporâneas é multicultural, multiética ou mestiça que resulta em diferenciados comportamentos humanos que vão formar o fenômeno da diversidade Cultural.3 Assim entende-se que diversidade cultural é a variedade de sociedades ou culturas existentes em uma determinada região, ou no mundo como um todo. A cultura é algo muito abstrato e de difícil conceituação, ―(...) deve ser considerada como um conjunto distinto de elementos espirituais, materiais, intelectuais e emocionais de uma sociedade ou de um grupo social. Além da arte e da literatura, ela abarca também os estilos de vida, modos de convivência, sistemas de valores, tradições e crenças‖ (Preâmbulo da Declaração Universal de Diversidade Cultural da UNESCO, 2001). Percebe-se assim que há uma grande gama de questões abrangidas por este conceito, o fio condutor de aspectos tão diferentes como arte e sistemas de valores é que estes elementos devem estar inseridos dentro de uma sociedade ou grupo social. Não há cultura criada a partir de uma pessoa independente, sem relação com seu meio. Mesmo que uma obra de arte tenha um só autor, deve ser observado o contexto social em 3 ―A maioria das sociedades contemporâneas é multicultural, multiétnica ou mestiça, o que significa dizer que enorme variedade de identidades simbólicas e expressivas as caracteriza. Tradicionalmente a antropologia dizia que as culturas se formaram por empréstimo de outras culturas (l‘emprunt culturel), nos processos de contatos entre povos e civilizações. A diversidade seria resultante da variedade de experiências e de realizações humanas, impressa na história, nas tradições, nos idiomas, e expressa em universos simbólicos, que englobam a cultura popular e a erudita.‖ALVAREZ, Vera Cíntia. Diversidade cultural e livre-comércio: antagonismo ou oportunidade? Brasília: UNESCO, 2008, p. 30 e 31. 122 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I que aquele está inserido para que possa ser aferido o relevo cultural da obra. A Convenção da Diversidade traz, em seu artigo 4º, definições de grande utilidade, que complementam o conceito de cultura. Extrai-se: "Diversidade cultural‖ refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados. Destaca-se desta referência a importância do meio de expressão e do contexto em que é criada a cultura. Assim como não se pode considerar o autor de forma isolada em relação ao meio em que foi produzida a obra, também deve ser levado em conta o processo criativo, e não apenas o resultado final. Cabe ressaltar também o termo ―patrimônio cultural da humanidade‖, esta concepção é fundamental para uma proteção mais abrangente da diversidade cultural. Assim como construções históricas são patrimônios tangíveis geralmente preservados, o mesmo deve ocorrer com os bens imateriais, as criações artísticas e culturais. A mesma Convenção da Diversidade conceitua ainda Conteúdo Cultural como o ―(...) caráter simbólico, dimensão artística e valores culturais que têm por origem ou expressam identidades culturais‖ e Expressões Culturais como ―aquelas expressões que resultam da criatividade de indivíduos, grupos e sociedades e que possuem conteúdo cultural‖. O termo ―identidades culturais‖ e ―criatividade‖ merecem ênfase. O primeiro porque a identidade cultural resulta também no meio de identificação dos povos, é um meio de demonstração das origens e das raízes de determinado grupo. A cultura diz muito sobre a personalidade das pessoas, ajuda a mostrar de onde vieram, fator muito importante para que se sintam incluídas em seu meio social. Já a questão da criatividade é enfatizada como parte das expressões culturais, já que esta é uma característica que não é expressa como requisito para as obras autorais. Assim, as obras autorais teriam apenas a originalidade como requisito para proteção, não seria obrigatório ser identificada uma criatividade, enquanto para a caracterização de expressões culturais a criatividade se faz presente. 2. O SISTEMA DE TUTELA DOS BENS INTELECTUAIS E CULTURAIS A Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, de 1886, foi o primeiro grande instrumento internacional voltado para a proteção dos Direitos Autorais. O tema é diretamente vinculado à OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), 123 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I porém, a partir da criação da OMC (Organização Mundial do Comércio) em 1994, esta organização internacional tomou a frente nas discussões sobre Propriedade Intelectual em geral e, mais especificamente, sobre Direito Autoral. A OMC sucedeu ao GATT na regulação do comércio mundial e tem como um de seus papéis coordenar os vários acordos que regem o sistema multilateral de comércio. Assim, editou-se o TRIPs (Trade-Related Intellectual Property Rights), conhecido na tradução como Acordo Relativo aos Aspectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio. Este acordo reiterou de forma quase integral o texto da Convenção de Berna, de forma a estendê-la a todos os países filiados à OMC. Não se encontra na legislação internacional específica sobre Direitos Autorais qualquer menção a Obras Folclóricas e/ou aos Conhecimentos Étnicos e Tradicionais. Inclusive, quando da Revisão da Convenção de Berna, foram apresentadas propostas por países da África (notadamente um continente com muitas tradições folclóricas, assim como o nosso país) com vista a tornar o folclore objeto de proteção, da mesma forma que ocorre com as obras literárias e artísticas, contudo sem sucesso. A alegação dos países desenvolvidos foi justamente a de que não há como proteger uma obra sem autor certo e determinado e, desta maneira, ficou desamparado o interesse dos países em defender seu patrimônio cultural.4 Também foi tentada, no âmbito da OMPI, a criação de um comitê intergovernamental sobre propriedade intelectual, recursos genéticos, conhecimentos tradicionais e folclore, por parte do Grupo de países da América Latina e Caribe (GRULAC), igualmente sem êxito.5 A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), agência das Nações Unidas encarregada da cultura, tem a função de promover uma ―salutar diversidade de culturas‖ e facilitar o ―trânsito livre de idéias pelas palavras e imagens‖, conforme revela a Constituição da agência, de 1946. Para tanto foram editadas diversas disposições relativas à diversidade cultural e ao exercício dos direitos culturais. Em 2005, foi adotada a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (a qual será aqui denominada apenas de Convenção da Diversidade Cultural), texto legal que foi um marco mundial na regulação da matéria e traz importantes conceitos para a sua sistematização. Do mesmo modo como não houve consenso à época da discussão da Convenção de Berna sobre direitos autorais (com relação à inserção de medidas de proteção à diversidade cultural), na discussão da Convenção de 2005, os Estados Unidos 4 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 28. SILVA, Letícia Borges da. É possível negociar a biodiversidade? Conhecimentos Tradicionais, Propriedade Intelectual e biopirataria. In: BARRAL, Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio. Propriedade intelectual e desenvolvimento. Florianópolis: Fundação BOITEUX, 2006. p. 299. 5 124 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I capitanearam uma tentativa de restringir ao máximo o alcance da tutela pretendida, ao qualificar de ―diversionista a caracterização dos produtos culturais como dotados de natureza dual, isto é, considerados tanto como elementos de comércio quanto como veículos de identidades, valores e significados‖.6 3. OBRAS INDÍGENAS E DISSEMINAÇÃO DA CULTURA Interessante a seguinte observação: Durante muitos séculos, os adornos coloridos – cocares e tangas – usados pelos indígenas, feitos com penas de pássaros, não foram considerados arte. Só recentemente, quando os artistas e críticos se tornaram sensíveis a manifestações artísticas mais livres e diversificadas, é que foram capazes de apreciar essa arte indígena e reconhecer nela a criação de beleza, aceitando-a, enfim, nas exposições artísticas.7 Percebe-se como a cultura ocidental tem dificuldade em absorver toda a bagagem que não faça parte da escola clássica europeia ou norte-americana. Os próprios países menos desenvolvidos têm, por vezes, mais facilidade em entender, como obras artísticas relevantes, aquelas importadas dos países desenvolvidos ante o patrimônio cultural de seu próprio território. A Convenção da Diversidade inclui como direitos dos países no âmbito nacional a adoção de medidas específicas para proteção destas expressões culturais e, entre estas: ―medidas objetivando promover a diversidade da mídia, inclusive mediante serviços públicos de radiodifusão‖ (artigo 6º, h). O papel da mídia como disseminador de cultura é fundamental e foi bem observado pela Convenção. Países com uma forte produção cultural acabam por exportar estes bens culturais e, por vezes, é mais acessível para uma rede de televisão, por exemplo, retransmitir um conteúdo estrangeiro do que financiar uma produção nacional, que valorize a cultura local. A Convenção da Diversidade aponta também formas de promoção das expressões culturais, ao incentivar não apenas a criação, mas também a possibilidade de acesso. Prevê também a concessão de atenção especial ―às circunstâncias e necessidades especiais da mulher, assim como dos diversos grupos sociais, incluindo as pessoas pertencentes às minorias e povos indígenas‖ (Artigo 7 – 1. a). Esta referência aos povos indígenas é outra peculiaridade que não é encontrada na Convenção de Berna. Os povos indígenas têm uma cultura muito forte e 6 ÁLVAREZ, Vera Cíntia. Diversidade Cultural e livre comércio: antagonismo ou oportunidade? Brasília, UNESCO; IRBr: 2008. p. 153. 7 COSTA, Cristina . Questões de Arte - o belo, a percepção estética e o fazer artístico. São Paulo: Moderna, 2004. p. 25. 125 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I arraigada, que passa por gerações e têm características peculiares, muitas vezes fragilizadas pelos processos de urbanização e colonização desses povos. Assim, é fundamental que tenham uma proteção específica. 4. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A legislação brasileira tangencia O tema da Diversidade Cultural, porém sem o estabelecimento de regras claras8. Sobre as obras folclóricas, mais especificamente, a legislação brasileira mais uma vez é vaga, ao apenas mencionar o tema de forma oblíqua, quando trata da definição de artistas intérpretes e executantes como ―todos os atores, cantores, músicos, bailarinos ou outras pessoas que representem um papel, cantem, recitem, declamem, interpretem ou executem em qualquer forma obras literárias ou artísticas ou expressões do folclore‖ (art. 5º, XIII, Lei nº 9.610/1998, sem grifo no original). Tanto as ―expressões do folclore‖, quanto os ―conhecimentos étnicos e tradicionais‖ não estão previstos expressamente no art. 7º da Lei nº 9.610/1998, que traz a lista das obras protegidas. Porém, como o rol não é taxativo, não há qualquer impedimento para outras obras autorais sejam protegidas. A mera dificuldade em identificar a autoria de determinada obra não pode ser utilizada como argumento para que não haja proteção. A própria Constituição brasileira traz como garantia fundamental ―a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas [...]‖ (art. 5º, XXVIII). A obra coletiva está prevista na Lei nº 9.610/1998, como aquela ―[...] constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma‖. Em relação as obras indígenas a própria Constituição também garante em seu art. 232: ―Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo‖. A previsão de intervenção do Ministério Público tem grande relevância, visto que é uma forma de o Estado utilizar seu aparato jurídico para dar suporte a esta minoria e, consequentemente, à cultura criada por ela. Outro ponto que deve ser salientado é que ultimamente há um forte processo de 8 A Lei nº 9.610/1998, que regula os Direitos Autorais internamente estabelece: ―Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público: I - as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores; II - as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.‖ (sem grifo no original) 126 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I construção de ―mecanismos capazes de tutelar os chamados direitos difusos e coletivos‖ 9, tais como os direitos ambientais e do consumidor. Para temas como estes o prisma da tutela deve ser o todo e não cada indivíduo de forma separada. Este enfoque é fundamental para que não haja distorções e haja um maior equilíbrio dos setores mais frágeis da sociedade em relação a grandes oligopólios econômicos. Retoma-se o ponto já abordado de que os direitos autorais podem ser defendidos por associações formadas pelos autores e da importância de que o Estado e os organismos internacionais envolvam-se nestes conflitos, de forma a não deixarem os interessados em uma posição solitária e consequentemente fragilizada, sem condições de garantir e/ou negociar de forma justa seus interesses com grandes conglomerados que tenham fins meramente comerciais. Diante do agigantamento das empresas e da formação de uma sociedade massificada, ocorrida nos últimos tempos, houve uma maior proteção para os direitos coletivos, como aconteceu com os direitos do consumidor e do meio ambiente. Isso foi proveniente da extrapolação do poderio econômico, passando do nível individual para atingir o âmbito de toda uma coletividade. Assim sendo, surgem mecanismos capazes de tutelar os chamados interesses difusos e coletivos. 5. ASPECTOS TEÓRICO-JURÍDICOS SOBRE OS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE O conceito de Biodiversidade, ou diversidade biológica, abrange não somente a diversidade de espécies, mas sim a diversidade em si e o resultado da sua interação com o ambiente. Nesta relação são estabelecidos cinco níveis de diversidade10: genética, de espécies, de níveis taxonômicos superiores às espécies, de ecossistemas e de biomas, os quais estão interligados, sendo impossível intervir em um sistema sem afetar os demais. Desta maneira, 9 SILVA, Letícia Borges da. É possível negociar a biodiversidade? Conhecimentos Tradicionais, Propriedade Intelectual e biopirataria. In: BARRAL, Welber; PIMENTEL, Luiz Otávio. Propriedade intelectual e desenvolvimento. Florianópolis: Fundação BOITEUX, 2006. p. 299. 10 Segundo Torres, os níveis de biodiversidade podem ser assim definidos: Diversidade genética: variabilidade intra-específica de genes de uma espécie, subespécie, variedade ou híbrido. Diversidade de espécies: variação das espécies sobre o planeta. É medida nas escalas local, regional e global. Diversidade de níveis taxonômicos superiores a espécies: variação dos gêneros, famílias, ordens, etc. numa determinada localidade. Diversidade de ecossistemas: comunidade de organismos em seu ambiente, interagindo como uma unidade ecológica. Ex.: mata de galeria, mata de várzea, restinga. Diversidade de biomas: regiões biogeográficas definidas por formas de vida distintas e por espécies principais. Ex.: caatingas, cerrados, floresta tropical. (TORRES, H. A diversidade biológica. São Paulo: Cidade, 1992). 127 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I verifica-se que o termo biodiversidade, descreve a gama de elementos que compõem o mundo natural, tanto as formas individuais quanto as suas inter-relações. A diversidade biológica está presente em todo lugar, no meio dos desertos, nas tundras congeladas ou nas fontes de água sulfurosas, uma vez que os recursos naturais renováveis são a base de todas as economias. Água, solo, florestas, fauna, todos constituem recursos naturais. A partir da necessidade de produção e consumo, veio à baila a temática da diversidade genética, a qual possibilitou a adaptação da vida nos mais diversos pontos da Terra, aumentando o espectro de produção e criação das mesmas e, consequentemente, ensejando a ampliação de metas para concluir o mapeamento da biosfera e possibilitar a sua identificação. No entanto, Wilson salienta que: As espécies estão desaparecendo numa velocidade cada vez maior por causa da interferência humana – a destruição de habitats, principalmente, mas também a poluição e a introdução de espécies exóticas em ambientes residuais da natureza. Afirmei que um quinto ou mais das espécies de plantas e animais podem desaparecer ou estar fadadas a uma extinção precoce até o ano 2020 se não empreendermos maiores esforços para salvá-las. Essa estimativa vem da relação quantitativa conhecida entre a área do habitat e a diversidade que esse habitat pode sustentar. (...) Por que devemos nos preocupar com isso? Que diferença faz se algumas espécies são extintas, se até mesmo metade das espécies da Terra desaparecerem? Enumeremos os motivos. Novas fontes de informação científica se perderão. Uma enorme riqueza biológica potencial será destruída11. Saliente-se que a humanidade sempre careceu dos recursos naturais, bióticos ou abióticos, para a sua sobrevivência. No entanto, em razão do progresso e do desenvolvimento, a sociedade sofreu algumas modificações e novas necessidades passaram a surgir. Uma vez que os recursos naturais existentes até então se tornaram mercadorias e objetos comerciais, a manipulação do material genético passou a ganhar destaque, uma vez que permite a criação de organismos geneticamente modificados, voltando a sua produção para as exigências da sociedade. Estima-se que somente no território brasileiro possa ser encontrado cerca de 20% do número total de espécies do planeta, considerando as 55 mil espécies descritas de plantas superiores. Segundo a ONG Conservation International, várias espécies importantes no cenário econômico mundial são originárias do Brasil, como o amendoim, o caju, o guaraná, a carnaúba e a seringueira, e, ainda ressalta a supramencionada ONG que ―produtos da diversidade brasileira – principalmente café, soja e laranja – respondem por cerca de 30% das exportações brasileiras‖. O avanço da tecnologia tem ampliado a dimensão do que é explorável pelo homem, abrindo espaço para técnicas que permitem que a diversidade genética seja explorada 11 WILSON, E. O. Diversidade da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 371-372. 128 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I economicamente, dando origem a biotecnologia. Tal possibilidade é facilitada às grandes indústrias, principalmente multinacionais, que possuem tecnologia e capital para tal desenvolvimento mas que, para compensar o investimento, exigem o monopólio sobre os produtos desenvolvidos, através do patenteamento. Insta salientar, contudo, que indissociavelmente ligada à biodiversidade brasileira está a sociodiversidade, isto é, o patrimônio sociocultural, o qual envolve os conhecimentos, inovações e práticas de comunidades tradicionais, indígenas ou locais relevantes. No que tange às comunidades tradicionais, verifica-se a necessidade de criação de um regime legal sui generis de proteção aos direitos intelectuais coletivos, uma vez que não há qualquer proteção legal aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Essa inexistência de proteção legal tem gerado as mais diversas formas de espoliação e de apropriação indevida. No entanto, para tentar expor um modelo de proteção legal de propriedade intelectual, urge se debruçar sobre a temática do conhecimento tradicional, a fim de justificar e demonstrar a sua necessidade. Conhecimento tradicional, segundo a Medida Provisória n.º 2.186-16/2001, é ―informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético‖, ou seja, trata-se de um direito coletivo, pertencente a uma comunidade tradicional ou a uma população indígena, não podendo ser oriundo de apenas um indivíduo, mas de toda a coletividade, referente a técnicas de manejo de recursos naturais até métodos de caça e pesca, conhecimentos sobre os diversos ecossistemas e sobre propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas de espécies e as categorizações de flora e fauna utilizadas pela comunidade tradicional12. Pode-se dizer que o conhecimento tradicional é formado, produzido, a partir de experiências vivenciadas pela coletividade tradicional, em meio a floresta, constituindo o que dispõe a Convenção de Diversidade Biológica, em seu art. 8, ―j‖, ao tratar dos conhecimentos tradicionais: ―conhecimentos, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais.‖13 Nesse sentido, ressalte-se que é das florestas que 12 Nesse sentido, Diegues complementa: ―As populações tradicionais não só convivem com a biodiversidade, mas nomeiam e classificam as espécies vivas segundo suas próprias categorias e nomes. Uma particularidade, no entanto, é que essa natureza diversa não é vista pelas comunidades tradicionais como selvagem em sua totalidade; foi e é domesticada, manipulada. Uma outra diferença é que essa diversidade da vida não é tida como ―recurso natural‖, mas como um conjunto de seres vivos detentor de um valor de uso e de um valor simbólico, integrado numa complexa cosmologia. (...) Conclui-se, então, que a biodiversidade pertence tanto ao domínio do natural como do cultural, mas é a cultura, como conhecimento, que permite às populações tradicionais entendê-la, representá-la, mentalmente, manuseá-la, retirar suas espécies e colocar outras, enriquecendo-a, com freqüência.‖ (apud SANTILLI, 2005, p. 192-193. In: SANTILLI, J. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005.) 13 Nesse sentido, Santilli complementa: ―Os processos, práticas e atividades tradicionais que geram a produção de conhecimentos e inovações relacionados a espécies e ecossistemas dependem de um modo de vida estreitamente relacionado com a floresta. A continuidade da produção desses conhecimentos depende de condições que 129 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I eles obtém alimentos e sustento, isto é, combustível para prover as necessidades da comunidade local e, uma vez necessário a sua sobrevivência, houve a preocupação com seu uso sustentável14. O conhecimento tradicional pode ser considerado um bem ambiental, e de desta maneira requerer proteção como tal, uma vez que tanto os povos indígenas quanto as unidades de conservação destinadas a abrigar as populações tradicionais, estão localizadas em áreas que são bens da União15, cabendo a eles o direito de usufruto exclusivo dos recursos naturais. O acesso aos conhecimentos tradicionais associados depende de autorização dos povos indígenas ou quilombolas, cabendo repartição de benefícios, no entanto, ao se tratar de comunidades tradicionais, a anuência para exploração dos recursos oriundos da reserva extrativista ou de desenvolvimento sustentável, caberá tanto aos residentes quanto aos órgãos públicos competentes e a sociedade civil.16 Nesse sentido, a Medida Provisória n.º 2.186-16/2001 veio para regular o procedimento de acesso e utilização dos conhecimentos tradicionais associados bem como dos recursos biológicos e genéticos, de forma distinta, prevendo a autorização de acesso e remessa de amostra de componente do patrimônio genético, a partir da anuência prévia da comunidade indígena envolvida, e autorização de acesso a conhecimento tradicional associado17. Há que se salientar que esse conhecimento é, para as comunidades tradicionais, indígenas ou quilombolas, algo cultural, cujo desenvolvimento é motivado por questões étnico- assegurem a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais.‖ (Op. cit. p. 195.) 14 Mota estabelece: ―Práticas indígenas silviculturais são baseadas em fontes renováveis e sustentáveis com a maximização de todas as diferentes formas e funções das florestas e árvores. Esse conhecimento, passado de geração a geração, assegura a sobrevivência da floresta, dos seus elementos, a sua sustentabilidade e, igualmente, a sustentabilidade das culturas e das pessoas dependentes do ecossistema como um todo.‖ (Op. cit. p. 93) 15 Reza o art. 231, da Constituição Federal: ―Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. §1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bemestar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. §2.º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.‖ 16 A respeito, vide Resolução n.º 09/2003, do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, que estabelece diretrizes para a obtenção de anuência prévia de comunidades indígenas e locais, a fim de acessar componente do patrimônio genético para fins de pesquisa científica, sem potencial ou perspectiva de uso comercial. E vide Resolução n.º11/2004, do supramencionado Conselho, que estabelece as diretrizes para a elaboração e análise dos contratos de utilização do patrimônio genético e de repartição de benefícios que envolvam acesso a componente do patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado, providos por comunidades indígenas ou locais. 17 Ainda, prevê a referida Medida Provisória, que tal anuência deverá ser dada juntamente com o órgão indigenista oficial quando ocorrer em terra indígena o acessa. Ainda, prevê a realização de contrato de utilização do patrimônio genético e repartição de benefícios, em que são estipuladas as condições para repartição de benefícios, monetários e não-monetários. 130 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I culturais e não econômicas. Embora trate de toda informação ―útil à identificação de princípios ativos de biomoléculas ou características funcionais de células e microorganismos‖, o conhecimento tradicional independe das razões de mercado ou utilização biotecnológica. No intuito de conferir a devida proteção à diversidade biológica e, consequentemente, aos conhecimentos tradicionais, surgiu a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), a qual buscou introduzir um enfoque amplo, que cobrisse todos os aspectos relacionados à conservação da diversidade biológica e que permitisse ações convergentes por parte de vários países. Ratificada por 174 países mais a União Européia, a Convenção traz em seu bojo tópicos como a soberania nacional e a preocupação comum da humanidade; a conservação e o uso sustentável; aspectos relativos ao acesso a recursos naturais; financiamento; e a implementação. A respeito, Brito salienta que ―o que não podemos perder de vista é que a diversidade biológica é especialmente importante para prover resiliência aos ecossistemas, além de oferecer vários outros serviços ambientais para nós, seres humanos.‖18 6. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A GESTÃO DOS RECURSOS NATURAIS. Quando se aborda a temática do desenvolvimento sustentável há que se traçar um parâmetro inicial o qual servirá de embasamento para a continuidade do trabalho. Como aporte conceitual tomar-se-á a definição de desenvolvimento sustentável prevista inicialmente pela Convenção de Estocolmo (1973), e consolidada no Relatório Brundtland (1987), sendo novamente retomado pela Rio 92 e incluído na Convenção sobre Diversidade Biológica19 (1992), sempre com um cunho derivado da corrente do ambientalismo moderado. Segundo esta linha de estudo, o desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades das gerações presentes sem comprometer as necessidades das gerações futuras. Assim, a utilização de recursos deve ocorrer de acordo com a capacidade de reposição da natureza, de forma que o crescimento econômico não venha a agredir violenta e irreparavelmente os ecossistemas e possa, concomitantemente, reparar os graves problemas 18 BRITO, M. C. W. Biodiversidade. In: Textos da série Educação Ambiental do Programa Salto para o Futuro. Brasília: SEF/SEED/MEC. Jul. 2000, p. 24-25. 19 Nesta Convenção Internacional, o desenvolvimento sustentável aparece como ―utilização sustentável‖, terminologia empregada como sinônimo, embora muitas controvérsias tenham surgido a respeito. De acordo com o art. 2.º, da Convenção sobre Diversidade Biológica, ―utilização sustentável significa a utilização de componentes da diversidade biológica de modo e em ritmo tais que não levem, no longo prazo, à diminuição da diversidade biológica, mantendo assim seu potencial para atender as necessidades e aspirações das gerações presentes e futuras.‖ 131 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I sociais. Emergido da transição do fordismo para a acumulação flexível, o conceito de desenvolvimento sustentável tem como um dos seus postulados ―não abrir mão do crescimento econômico como forma de combater a recessão produtiva iniciada nos anos de 1970.‖ 20 Nessa esteira, Jatobá, Cidade e Vargas salientam acerca da tentativa de conciliar meio ambiente e economia: (...) se propagou a idéia de que só com crescimento econômico conserguir-se-ia vencer a crise ambiental, por meio de investimentos em alternativas tecnológicas e energéticas que, por sua vez, propiciaram a recuperação das taxas de lucro com aumento de produtividade, em função da utilização de menos insumos e mão-de-obra. Da mesma forma defendiam que a crise social e a pobreza, bem como a crise ambiental seriam automaticamente vencidas quando se atingisse um determinado nível de renda per capita21. Desta sorte, ao ter um conteúdo polissêmico, ao destacar a transdisciplinariedade, verifica-se que se trata de uma posição que viabiliza as negociações diplomáticas e socioeconômicas, sendo, inclusive, repetida exaustivamente nos documentos oficiais e inserida na formulação de políticas públicas mundiais. No que tange ao acesso aos recursos naturais, segundo o modelo de desenvolvimento sustentável, o mesmo deve se dar com vistas a salvaguarda intergeracional. Contudo, insta ressaltar que o próprio conceito de recursos naturais, o qual varia de cultura para cultura, já fora formado a partir de uma visão antropocêntrica voltada para a finalidade econômica dos elementos da natureza – água, ar, solo-, isto é, ―só é recurso natural aquilo que o desenvolvimento socioeconômico e tecnológico determina, o que imediatamente o desnaturaliza.‖22 Haja vista o contexto capitalista que norteia o tema em estudo, onde ―desenvolver‖ quase sempre significou explorar a natureza sem se preocupar com as consequências desta exploração, viabilizar políticas governamentais, modificar padrões de consumo e produção, fiscalizar e estabelecer o acesso aos recursos naturais são medidas imprescindíveis a serem tomadas. O desenvolvimento sustentável é algo mais do que um compromisso entre o ambiente físico e o crescimento econômico – ele significa uma definição de desenvolvimento que reconhece, nos limites da sustentabilidade, origens naturais e sociais, omo a diversidade cultural. 20 JATOBA, S. U.; CIDADE, L. C. F.; VARGAS, G. M. Ecologismo, ambientalismo e ecologia política: diferentes visões da sustentabilidade e do território. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 24, n.º 1, p. 47-87, jan/abr 2009, p. 62. 21 Op. cit. p. 61. 22 VIANA, L. Considerações críticas sobre a construção da ideia de população tradicional no contexto das Unidades de Conservação. Dissertação de mestrado de Antropologia Social. São Paulo: USP, 1996. 132 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 7. SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL E CULTURAL A Convenção da Diversidade, em seu art. 14, fala sobre a cooperação dos países para o desenvolvimento sustentável e a redução da pobreza, de modo a ser favorecida ―a emergência de um setor cultural dinâmico‖. A sustentabilidade ambiental deve andar junta com uma sustentabilidade cultural, a preservação do meio ambiente passa também pela preservação da cultura. A ONU (Organização das Nações Unidas) realizou um diagnóstico dos problemas globais ambientais, que resultou no relatório ―Nosso Futuro Comum‖, no qual desenvolvimento sustentável é definido como ―aquele que atende às necessidades dos presentes sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades‖.23 O consumo da produção cultural poderia ter o mesmo enfoque, de forma que a utilização da diversidade produzida pelos diversos povos fosse garantida de forma a possibilitar o acesso das próximas gerações. Se formos considerarmos os objetos culturais como bens de consumo, é preciso encará-los como bens duráveis, que são transmitidos para o futuro. Apesar da Convenção sobre Diversidade Biológica não guardar relação direta com direitos autorais, há alguns mecanismos previstos que poderiam servir de parâmetro para a proteção da diversidade cultural, como a subordinação aos governos e legislações nacionais para o acesso a recursos naturais (art. 15.1); a sujeição ao consentimento prévio pela parte provedora dos recursos (art. 15.5); e a adoção de medidas para compartilhamento dos resultados da pesquisa e desenvolvimento, além da utilização comercial (art. 15.7). 8. A DIVERSIDADE INSERIDA NA INDÚSTRIA CULTURAL Assim como já existem patentes de medicamentos criadas a partir de conhecimentos indígenas, as criações culturais estão cada vez mais absorvidas pela indústria de massa. ―A cultura e imagem indígena, nas suas mais variadas formas, vêm paulatinamente sendo absorvidas pela sociedade envolvente por meio de reportagens jornalísticas, exposições fotográficas, enciclopédias, exposições de arte, publicação de livros e revistas‖.24 A evolução dos recursos tecnológicos, em especial os utilizados nos aparelhos de telefonia móvel (além da disseminação do uso deste serviço) aumentou as possibilidades de 23 BRUNDTLAND, Gro (coord.). Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: Nosso futuro Comum. 2a. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. 24 BAPTISTA, Fernando Mathias; VALLE, Raul Silva Telles do. Os povos indígenas frente ao direito autoral e de imagem. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004. p.8. 133 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I toques musicais para celulares e, consequentemente do aproveitamento de obras culturais. A venda de ringtones (toques com trechos da melodia de músicas, feitos a partir de sintetizadores) e truetones (toques em que são executadas as próprias músicas em sua versão original) é cada vez maior,25 o que consolida uma nova forma de lucro a partir das obras fonográficas, possibilitada pelo desenvolvimento tecnológico. A expansão deste tipo de uso da obra fonográfica é utilizada até por gestores de projetos sociais, que podem explorar economicamente os conhecimentos étnicos e tradicionais. Os cantos de algumas tribos indígenas brasileiras já foram transformados em toques telefônicos, por organizações não governamentais, que repassariam parte da renda para aquelas.26 Neste caso deve-se ter um grande cuidado para verificar se as organizações referidas possuem legitimidade para representar os indígenas e qual a forma de contraprestação pela utilização. Como já referido, seria obrigatória a participação do Ministério Público neste tipo de acordo, para que algo que, em tese, seria positivo para as populações indígenas não se transforme em um aproveitamento comercial por parte de entidades sem qualquer representatividade. A cultura nordestina, mais especificamente o maracatu, foi largamente difundida pela banda Chico Science & Nação Zumbi, de Recife/PE, principalmente com os álbuns Da Lama ao Caos (1994) e Afrociberdelia (1996), ambos lançados pela gigante Sony Music. As músicas estão impregnadas de referências a cultura regional nordestina, porém com uma abordagem moderna, que agrega recursos eletrônicos e guitarras elétricas aos ganzás e alfaias (grandes tambores), instrumentos musicais tradicionais. Ao mesmo tempo que o sucesso desdes discos alavancou um redescobrimento de ritmos como o maracatu, não encontra-se qualquer referência a alguma contrapartida financeira dada para preservação e disseminação desta cultura. A ausência de qualquer previsão legal a este tipo de utilização faz com que grandes oligopólios, como o formado pelas 4 grandes gravadores mundiais (Sony, Warner, EMI e Universal), possam utilizar livremente obras folclóricas e tradicionais sem qualquer contraprestação direta, por mínima que seja. O problema não está só na livre utilização destas obras. Por exemplo, se depois o Estado de Pernambuco vier a promover uma festa e deseje utilizar as músicas de Chico Science e Nação Zumbi, terá que pagar direitos autorais para uma multinacional, que adquiriu a titularidade das obras. De forma indireta a cultura tradicional 25 ROSA, Dirceu Pereira de Santa. Download musical - Falta definição de direitos autorais dos toques de celular. Consultor Jurídico, jun. 2005. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/35778,1>. Acesso em: 30 junho 2007. 26 MARTINS, Rodrigo. Prepare os ouvidos. Carta Capital, ano 13, n. 432, 21 fev. 2007, p. 50. 134 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I acaba por ser transferida para grupos estrangeiros gratuitamente, sem que o resultado desta apropriação possa ser utilizado livremente. Há casos ainda mais graves, em que há uma apropriação destas obras para uma utilização com fins exclusivamente comerciais, também sem qualquer retorno direto aos criadores originais destes conhecimentos. A já mencionada banda Chico Science & Nação Zumbi inspirou o lançamento, por parte da gigante empresa esportiva Nike, do tênis ―Air Max 1 Lanceiro‖, que já traz no próprio nome do modelo o termo ―lanceiro‖, um dos personagens do maracatu. O calçado, conforme se extrai do próprio site da Nike27, ainda ostenta as cores de Pernambuco e faz referências à cultura ―mangue beat‖. CONCLUSÕES Vivemos um momento em que os direitos autorais passam por uma espécie de ―cabo de guerra‖, em que as grandes empresas titulares de obras autorais clamam por regras mais severas e por uma proteção ainda maior da propriedade intelectual em geral e os consumidores e alguns conglomerados de serviços digitais defendem uma ampliação do uso lícito das obras, em que não seja necessário qualquer pagamento. A tutela da diversidade cultural acaba desguarnecida, já que os grandes grupos econômicos, justamente os defensores de legislações mais contundentes, são contra a proteção deste tipo de obra, já que as utilizam largamente sem qualquer respeito a possíveis direitos autorais. Os novos tempos exigiriam um caminho com duas vias contrapostas: maior flexibilização justamente dos direitos autorais dos quais são titulares os oligopólios da indústria cultural e uma inclusão expressa na legislação internacional acerca das obras tradicionais. A UNESCO já criou conceitos e políticas bem claras a favor da proteção da diversidade cultural, o que falta é dar maior efetividade e abrangência a estes acordos. A utilização destes instrumentos regulatórios internacionais já existentes deve ser aliada a uma interpretação sistêmica das normas sobre o tema, que favoreça entendimentos mais favoráveis a proteção da cultura e das minorias e não das gigantes empresas do ramo do entretenimento. As legislações relativas ao meio ambiente e aos direitos do consumidor podem servir como paradigmas, de forma que a mera dificuldade em se identificar a autoria de obras folclóricas, por exemplo, não sirva de justificativa para que não haja tutela alguma. É preciso que se redijam regras claras e que, obviamente, favoreçam a diversidade cultural. Não é 27 <http://www.nike.com/nikeos/p/sportswear/pt_BR/view_post?country=BR&lang_locale=pt_BR&blog=pt_BR& post=pt_BR/2009/06/24/nike-lanceiro-air-max-na-batida-do-mangue> . Acesso em 15 setembro 2009. 135 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I possível a adoção de normas uniformes para todos os casos, já que cada povo indígena, por exemplo, ―se organiza de forma peculiar, com suas próprias regras políticas e sociais‖.28 Ao mesmo tempo é inconcebível que sejam criados dispositivos que coíbam de sobremaneira a utilização das obras tradicionais, deve-se aproveitar conceitos atuais, como o chamado Creative Commons, que permite várias possibilidades de licença de uso das obras e já é um suporte que garante a diversidade. A criação de instituições que tenham uma representatividade bem definida também é fundamental para que não haja apropriação indevida de obras fazem parte do patrimônio cultural da humanidade. REFERÊNCIAS ÁLVAREZ, Vera Cíntia. Diversidade Cultural e livre comércio: antagonismo ou oportunidade? Brasília, UNESCO; IRBr: 2008. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 2. ed. 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São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 137 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A PROPRIEDADE E O DIREITO À MORADIA Guilherme Ricken 1 Kleiber Gomes Reis 2 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Esforço histórico do conceito de propriedade. 2.1 A propriedade durante a Idade Antiga. 2.2 A propriedade na Idade Média. 2.3 A propriedade nos tempos do Iluminismo. 2.4 Aspectos contemporâneos. 3. Do direito de propriedade ao direito à moradia. 3.1 Moradia, território e cidadania. 3.2 Breves notas sobre o meio ambiente. 4. Conclusão. Referências. RESUMO Sob o aspecto histórico, a propriedade tem sido destacada como uma instituição de grande importância no mundo social. Sua evolução, ao longo do tempo, condicionada ao ramo do direito privado, tem apontado para uma concepção jurídica excludente. O presente trabalho busca realizar uma breve análise histórica da propriedade. Com isso, buscar-se-á compreender como a idéia da propriedade desenvolveu-se, na história ocidental, a partir da constatação de sua utilização como instrumento de dominação e exclusão social. Posteriormente, partindo para a análise da realidade brasileira, buscaremos compreender como essa instituição tem sido concebida. Abordaremos, assim, questões relativas ao direito à moradia, em especial o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), marco legal de grande importância para a política urbana, posto que concretiza os comandos contidos nos arts. 182 e 183 da Constituição da República de 1988. Palavras-chave: História da propriedade; Direito à moradia; Direito Urbanístico, Meio Ambiente construído. 1 Acadêmico do curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Integrante do Ius Commune - Grupo Interinstitucional de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (CCJ/UFSC). Membro do GPAJU - Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica (CCJ/UFSC). Bolsista PIBIC / CNPq. E-mail: [email protected]. 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Especialista em Direito Público pela UNISUL/LFG. Mestrando em Direito - CPGD/UFSC. Membro do GPAJU - Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica (CCJ/UFSC). Bolsista Capes-Brasil. E-mail: [email protected]. 138 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I ABSTRACT Historically, property has been highlighted as an institution of great social importance. Its evolution through time, in the context of private law, has pointed to an exclusive and individualist concept of justice. The current work seeks to produce a brief historical analysis of property. With this, the aim is to understand how the idea of property developed in western history, by starting with the recognition of its use as an instrument of domination and social exclusion. Later, turning to an analysis of the Brazilian reality, we seek to understand how the institution has been conceived – in Brazil. In doing this we consider matters related to the Right to Housing, especially the Statute of the City (Law No. 10.257/01), a legal benchmark of great importance for urban politics, in so far as it regulates the commands contained in articles 182 and 183 of the Constitution of the Republic of 1988. Keywords: History of property; Right to housing; Urban law; Built Environment. 1 INTRODUÇÃO A história da propriedade é muito antiga. Condicionada, principalmente, aos fatores culturais, econômicos, religiosos, sociais, territoriais, políticos e jurídicos, a propriedade tem diversos conceitos e significados – se considerados os seguintes aspectos: temporal e espacial. Com isso, este trabalho procura traçar em breves linhas como se deu o desenvolvimento dessa importante instituição jurídica. A partir da Antiguidade (oriental e ocidental), passando pela Idade Média e pelo Iluminismo, até chegarmos à atualidade, demonstraremos como a evolução histórica de seu conceito traz em seu bojo um ranço de dominação e desigualdade social que perdura até hoje. Assim, posteriormente, abordaremos algumas questões de política urbana, em especial o direito à moradia, um sério problema enfrentado nos países da América Latina. Para tanto, nos utilizaremos da análise de algumas normas constitucionais e também da lei federal n° 10.257/2001, o Estatuto da Cidade e, também, de alguns dados oriundos de pesquisas relevantes para o tema. Ainda, demonstraremos como as questões ambientais na cidade podem estar relacionadas à política urbana e à educação de nossa sociedade. Sendo assim, buscaremos evidenciar como o direito de propriedade, o direito à moradia, o Direito Urbanístico, o urbanismo, a proteção ao meio ambiente, a política urbana, a 139 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I educação e a cidadania são questões que se inter-relacionam nas dinâmicas sociais e, por isso, devem ser pensadas em conjunto, de forma sistêmica. Com isso, buscamos demonstrar a importância de se pesquisar e estudar o direito de propriedade a partir de um enfoque holístico e interdisciplinar, para que, assim, não estejamos hermeticamente confinados à interpretação estéril dos textos legais. 2 ESCORÇO HISTÓRICO DO CONCEITO DE PROPRIEDADE Projetar no passado conceitos eminentemente atuais é um dos grandes fatores a responder pela confusão que, por vezes, aflige o campo da História do Direito. Da mesma forma, a transposição intertemporal do passado em direção ao futuro, de conceitos que possuíam determinada significação na época em que foram concebidos e que hoje pouca ou nenhuma relação guardam com o original – a não ser a própria semelhança gramatical –, também resultam em relevantes problemas para o pesquisador. Assim, é importante ressaltar que conceitos demasiado importantes para a Ciência do Direito, tais como liberdade, igualdade, soberania, família, cidadania e propriedade, entre tantos outros, sofreram ressignificações ao longo do tempo, chegando aos nossos dias com conotações que acarretariam estranhezas aos homens da Antiguidade ou do período medieval. 2.1 A propriedade durante a Idade Antiga A propriedade, enquanto derivada de processos sociais, culturais e econômicos, teve seus aspectos alterados durante a história da humanidade. Nas antigas civilizações do oriente, notadamente Mesopotâmia e Egito, que floresceram à beira dos grandes rios, o conceito de propriedade privada – ao menos aquela de caráter imobiliário – era fraco, predominando entre esses povos a chamada propriedade coletiva. Nesse momento histórico, a organização da sociedade se realizava por intermédio de divisões entre tribos, clãs e grupos familiares, de modo que a esfera individual era suprimida em favor da comunidade. Admitiase, no entanto, que o homem fosse dono exclusivo de seus objetos, tanto das ferramentas necessárias ao trabalho quanto dos demais itens por ele utilizados. Na Antiguidade ocidental, por sua vez, a relação entre os indivíduos e a propriedade acontecia de outra maneira, uma vez que, conforme Fustel de Coulanges, a propriedade privada da terra costumava ser um imperativo nos territórios onde hoje se situam a 140 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Itália e a Grécia3. Encarando a propriedade não como o resultado das relações materiais entre os homens, mas como uma consequência da evolução do pensamento religioso, o historiador francês mostra a íntima conexão que havia entre as idéias de propriedade, família 4 e religião. Foi a religião doméstica que deu condições à gênese da propriedade, a qual passou a caracterizar o domínio de uma determinada área. A exclusividade e a inalienabilidade da propriedade seguiam a lógica do politeísmo vigente na sociedade antiga: a família, que cultuava um deus particular, realizava a adoração em um certo local. O altar do culto estava indissoluvelmente ligado à família, pois não era concebível que esta rejeitasse o deus que a acompanhava desde gerações imemoriais. Por sua vez, o altar era ligado ao solo, a um determinado lugar onde o culto era realizado pelos antepassados, não podendo dele vir a separar-se. Além disso, era na propriedade que a família sepultava seus mortos, criando um vínculo ainda maior com o território e afastando qualquer possibilidade de ter de se desfazer dele. Apenas com o cristianismo, que trouxe a pretensão de universalidade religiosa e o repúdio ao politeísmo antigo, é que as bases dessas sociedades e da propriedade enquanto corolário da prática religiosa foram abaladas. Outra explicação relativa à predominância da propriedade coletiva na Antiguidade é oferecida por Hans Kelsen, que busca respostas no psiquismo dos povos antigos. Para ele, a mentalidade de tais sociedades era eminentemente coletivista, não tendo as pessoas a consciência de seu ―eu‖ próprio. Apenas com a transformação da mentalidade das pessoas, que resultou em uma consciência individualista, é que a propriedade privada pôde se desenvolver, visto ela ser, no pensamento do jurista, um elemento necessário para o eficaz desenvolvimento da personalidade humana5. Por sua vez, em Roma, civilização com institutos jurídicos tidos como mais avançados e complexos em relação àqueles dos povos que a precederam, a propriedade não era tratada da mesma forma como era nas sociedades do oriente antigo6. Entre os romanos, a 3 GASSEN, Valcir. A natureza histórica da instituição do direito de propriedade. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 158. 4 O conceito de família para os povos da Antiguidade não deve ser confundido com o atual significado do termo, o de família nuclear – pai, mãe e irmãos. Na Idade Antiga, abarcava-se dentro de um mesmo agrupamento familiar também os parentes, os dependentes, os empregados e tantos outros, podendo a família atingir a quantia de duas ou três mil pessoas. Cf. GASSEN, Valcir. A natureza histórica da instituição do direito de propriedade. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 159. 5 MATTOS, Samuel da Silva. Notas sobre a natureza e espécies de propriedades. Seqüência: Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, Florianópolis, n. 43, 2001. Semestral. p. 94. 6 Faz-se mister ressaltar que a civilização romana – e, portanto, sua cultura e seus fenômenos jurídicos – não pode ser tida como homogênea, visto ter subsistido durante vários séculos e passado por formas republicanas e ditatoriais de governo. 141 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I propriedade revestia-se de características que a tornavam algo absoluto, exclusivo e perpétuo. Nos dizeres de Aroldo Moreira, era […] Absoluto — no sentido de que ao proprietário é assegurado o mais amplo poder de aproveitamento e disposição da coisa, objeto de seus direitos da qual poderá valerse tanto para o mero fim de uso como para o fim de transferência, do mesmo modo que para deixá-la em abandono, como até para destruí-la, ocasionando o perecimento do próprio direito; exclusivo — significando que sobre a mesma coisa não pode subsistir senão um domínio, isto é, que não podem duas ou mais pessoas ter propriedade da mesma coisa em si; ilimitação — quer dizer que ao proprietário é assegurado o poder de extrair de todos os compartimentos da coisa as vantagens que ela naturalmente puder suportar; perpetuidade — significa que a propriedade é um direito que se constitui para subsistir indefinidamente, duradouramente.7 Entretanto, havia outros tipos de propriedade, como nos lembra Samuel da Silva Mattos. Segundo ele, […] no Direito romano, a propriedade, além da forma quiritária, assumiu também outras, como a pretoriana, a peregrina e a provincial. A propriedade pretoriana formou-se por interferência do pretor e tinha por finalidade assegurar o domínio sobre a coisa adquirida a quem não podia ter a propriedade quiritária. Sendo provisória e assegurada pelo ius pretorium, essa propriedade consolidava-se ao cabo de dois anos da posse do adquirente. A propriedade peregrina era a dos estrangeiros livres fixados no Império, que, tendo como fundamento o Ius Gentium, também podiam tornar-se proprietários em Roma. A propriedade provincial incidia sobre os bens localizados fora da Itália, nas províncias romanas. Sobre essas terras, somente o Estado tinha o domínio. No entanto, podia arrendá-las mediante tributo.8 2.2 A propriedade na Idade Média Após o declínio de Roma, o contato entre os institutos jurídicos dessa civilização e o Direito que vigorava entre os povos germânicos acarretou mudanças no conceito de propriedade, as quais influenciaram as relações que viriam a existir durante o período feudal. Em contraposição à idéia romana de propriedade privada, os germanos manifestavam inclinações em direção à propriedade coletiva, uma vez que, entre esses povos, a tendência geral era de que as terras pertencessem a todo o grupo, sendo dividas durante o período de plantação e colheita e, posteriormente, devolvidas ao domínio comum. Nesse sentido, a Idade Média presencia uma superposição de domínios em relação à propriedade, pois, através das relações de suserania e vassalagem, o senhor feudal possuía o domínio eminente sobre a terra, enquanto cabia ao vassalo o domínio útil, a ser aproveitado por meio do regime de servidão humana. Vários títulos podiam pender sobre a mesma coisa, fazendo da 7 MOREIRA apud MATTOS, Samuel da Silva. Notas sobre a natureza e espécies de propriedades. Seqüência: Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, Florianópolis, n. 43, 2001. Semestral. p. 103. Grifos do autor. 8 MATTOS, Samuel da Silva. Notas sobre a natureza e espécies de propriedades. Seqüência: Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, Florianópolis, n. 43, 2001. Semestral. p. 104. 142 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I propriedade privada algo tão certo e garantido quanto a soberania real 9, um dos elementos que fará com que Friedrich Engels diga que o feudalismo retoma a idéia de propriedade coletiva da terra10. Isso só veio a ser alterado com a expansão comercial ocorrida na Idade Moderna, que novamente veio a trazer protagonismo à propriedade privada. A questão da propriedade também exerceu uma forte influência no Direito Feudal, um corpo original de Direito, independente do Direito Romano e dos direitos dos povos germânicos. Esse sistema jurídico, surgido a partir do século XIII no reino franco e, posteriormente, espalhado para os territórios ocidentais, não se ligava a qualquer nação em particular. Além disso, seu desenvolvimento se devia, primordialmente, aos costumes, não sofrendo intervenção de formas tecnicamente apuradas de ensino e saber jurídicos11. No Direito Feudal, a propriedade fundiária tinha sua importância enfatizada, como um dos fundamentos da sociedade que se seguiu ao declínio do Império Romano. Na Inglaterra, país que desenvolveu um sistema jurídico diferente daquele presente na Europa continental, a propriedade exercia um papel fundamental nas relações jurídicas. Segundo Lawrence Friedman, ―o Direito Territorial era o núcleo e o centro do common law. Mais precisamente, tal núcleo era formado pelo Direito de Propriedade Imobiliária‖ 12. Contudo, o conceito de propriedade era entendido de maneira ampliada. A propriedade significava mais do que uma simples extensão de terra, abarcando uma série de privilégios e direitos nela centrados, como a própria jurisdição. O proprietário de um domínio territorial era um ―pequeno soberano, assim como o eram as pessoas que possuíam a propriedade de casas, campos e plantações‖13. Como fonte maior de riqueza e poder, a propriedade imobiliária definia quais eram os indivíduos socialmente mais importantes, criando e reproduzindo relações de dominação entre os estamentos do reino. 9 Com exceção da monarquia inglesa, consolidada nos séculos XI e XII, pouco havia de se falar acerca de soberania estatal durante o período medieval. Contribuição fundamental para a construção da idéia de soberania foi dada por Jean Bodin, em sua obra Les Six Livres de la République, publicada em 1576. Nela, o francês teoriza a soberania como sendo um poder perpétuo, absoluto, incondicionado e unitário, concentrado nas mãos do soberano e de fundamental importância para o suporte do Estado absolutista. 10 GASSEN, Valcir. A natureza histórica da instituição do direito de propriedade. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 174. 11 CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 28. 12 FRIEDMAN, Lawrence M. The History of American Law. 3. ed. New York: Touchstone, 2005. p. 167. Tradução nossa. 13 Idem. 143 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 2.3 A propriedade nos tempos do Iluminismo A transição do Medievo para a Modernidade foi marcada pela polêmica em torno da origem e da legitimidade do direito de propriedade. Montesquieu e Jeremy Bentham afirmavam que a propriedade poderia advir somente de uma emanação de lei ou de autoridade pública. Em contrapartida, John Locke encarava a propriedade privada como um direito natural. Na concepção do filósofo inglês, a função precípua do contrato social era manter a propriedade privada, pois sua proteção era o objetivo maior do governo e a razão pela qual o homem entra em sociedade com seus semelhantes14. Em função do advento da Revolução Francesa e da ascensão dos princípios liberais, paulatinamente foi sendo posto fim à concepção medieval de propriedade, passando a ser reforçado seu caráter unitário, que já vinha pouco a pouco sendo elaborado nos dois séculos antecedentes e trazia semelhanças com as disposições presentes no Direito Romano. A propriedade não mais estava limitada pela família ou pela religião, tal como nas sociedades da Antiguidade, nem pela coletividade, como nos germanos do século V. No novo projeto de sociedade liberal-burguesa, a propriedade era um direito do homem, livre de encargos e de obrigações externas. Aprovada pelos revolucionários franceses, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirmava, em seu artigo 2º, que a propriedade era um direito natural e imprescritível do homem. Da mesma forma, o artigo 17 de tal documento preceituava que, ―como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização‖15. Esse tratamento também foi positivado no Código Napoleônico, ao garantir que ―a propriedade é o direito de governar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça delas um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos‖16. Em conformidade com tal direcionamento ideológico-jurídico, a propriedade territorial também passou a ser desonerada. 14 MATTOS, Samuel da Silva. Notas sobre a natureza e espécies de propriedades. Seqüência: Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, Florianópolis, n. 43, 2001. Semestral. p. 95-98. 15 SÃO PAULO. Maria Luiza Marcílio. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Usp (Ed.). Declaração de direitos do homem e do cidadão. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentosanteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A91919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>. Acesso em: 29 dez. 2009. 16 MATTOS, Samuel da Silva. Notas sobre a natureza e espécies de propriedades. Seqüência: Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, Florianópolis, n. 43, 2001. Semestral. p. 108. 144 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Dessa forma, foram extintas as taxas vinculadas ao sistema feudal, bem como as dízimas baseadas no Direito Eclesiástico17. 2.4 Aspectos contemporâneos O conceito de propriedade que alcançou os dias de hoje não foi aquele presente no Code Civil, cuja defesa do individualismo exacerbado mostrou-se em choque com a realidade social dos dois últimos séculos. As contestações sociais do final do século XIX e o fortalecimento do Estado Social no século XX trouxeram a superação da propriedade enquanto algo absoluto e inviolável, passando ela a ser um direito relativo. Surge aí a idéia de função social da propriedade, que limita os direitos do proprietário em prol da comunidade, o que perpassa, também, pelo caminho da questão ambiental. A construção teórica que afirmava que a propriedade imóvel deveria respeitar não somente as vontades do proprietários, mas, concomitantemente, os anseios e necessidades da coletividade humana, ganhou força a partir da Constituição Mexicana de 1917, bem como da promulgação da Constituição de Weimar, em 1919. Desse momento em diante, a função social foi disseminada no Ocidente, tornando-se um dos principais elementos do constitucionalismo contemporâneo. Acerca da recepção do conceito de função social da propriedade no Brasil, Silviana Henkes lembra que, […] ao contrário do que muitos pensam, não foi a Constituição brasileira de 1988 que introduziu a função social da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro. A Carta Magna atual, somente ratifica, em seus artigos 5º, XXIII; 182, § 2º; 170; e 186 (...) o que as constituições anteriores já prescreviam. 18 Os dispositivos supracitados afirmam, de forma explícita, tanto a própria existência jurídica da função social da propriedade quanto os requisitos necessários para sua configuração. Conforme o artigo 5º, XXIII, ―a propriedade atenderá a sua função social‖19. No artigo 182, § 2º, encontra-se a disposição de que ―a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor‖20. Por sua vez, o artigo 170 informa que 17 CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 10. 18 HENKES, Silviana Lúcia. A propriedade privada no século XXI. Seqüência: Revista do Curso de PósGraduação em Direito da UFSC, Florianópolis, n. 49, dez. 2004. Semestral. p. 115. 19 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/_Constitui%C3%A7aoCompilado.htm>. Acesso em: 03 jan. 2010. 20 Ibidem. 145 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I […] A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade.21 Em relação aos critérios de verificabilidade da função social em propriedades rurais, o artigo 186 é categórico: […] A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.22 Nesse sentido, denota-se o caráter singular adquirido pelo conceito de propriedade ao longo do século XX. Marcado pelas contradições da Revolução Industrial e pela ascensão de reivindicações coletivas até então ignoradas, como aquelas ligadas à questão ambiental, o século passado viu emergir a necessidade pela propriedade privada socialmente responsável, cujos deveres não mais estariam adstritos aos prazeres e caprichos exclusivos do proprietário, mas sim comprometidos com o bem-estar da coletividade humana e a preservação do meio ambiente. 3 DO DIREITO DE PROPRIEDADE AO DIREITO À MORADIA Inicialmente, cabe observar que a propriedade analisada nesta seção é a territorial urbana, em especial a destinada para fins habitacionais, sob a ótica dos direitos reais e do Direito Urbanístico. Como podemos observar, a evolução histórica e jurídica da propriedade foi – e continua sendo – regida, preponderantemente, conforme os interesses dos detentores do poder. Assim, a metamorfose de seu significado e importância sempre esteve fortemente ligada ao discurso hegemônico. A propriedade da terra, com já explicitado, possuía um sentido muito mais amplo – do uso coletivo ao religioso – além de estabelecer privilégios, sobretudo, através da jurisdição23. Sendo assim, historicamente, a propriedade também tem servido à manutenção de interesses territoriais, culturais, econômicos, políticos, sociais e jurídicos. Nesse ínterim, o direito à moradia surge como possibilidade de luta contra a utilização 21 22 23 Ibidem. Grifos nossos. Ibidem. Ver item 2.2. 146 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I sistemática da terra como meio de exclusão e desigualdade social. Justamente por esse fato, a função social da propriedade tem elevada importância no que tange às tensões sociais, pois retira da propriedade o seu caráter absoluto e (re)coloca, sobre esta, a necessária noção de coletividade e totalidade. Com isso, a propriedade deixa de ser responsabilidade única de seu proprietário e passa a interagir nas dinâmicas sociais, ou seja, deixa de ser virtualmente individualizada e passa a reconhecer os impactos externos de sua utilização, gozo e fruição, bem como a perceber os reflexos do território ―exterior‖. Afinal de contas, qualquer espaço territorial está inevitavelmente vinculado à biosfera, ao todo, estabelecendo, assim, um liame lógico com a idéia de função social da cidade. É dessa forma que a análise jurídica e os debates sobre o direito de propriedade passa a comportar outros temas de grande relevância como, e.g., a política urbana, a questão ambiental e a problemática do direito à moradia. 3.1 Moradia, território e cidadania No tocante às questões relativas à habitação essa realidade não é diferente, o espaço – por óbvio – também é desigualmente dividido. A má distribuição das terras é um dos péssimos legados deixados pelo passado colonial em toda a América Latina24. A ordem jurídica, frequentemente em descompasso com a realidade social, busca uma uniformização impossível, posto que ideal. ―Rolnik (1997) demonstrou, ao estudar São Paulo, a existência de uma lei única convivendo com uma multiplicidade de territórios.‖25 Na produção do espaço urbano, a ilegalidade não é uma particularidade das camadas mais pobres da sociedade. Segundo Regina Lins, a partir das lições de Raquel Rolnik: [...] o estigma da ilegalidade é sempre associado à produção do espaço de moradia dos, e pelos, pobres. Para explicar este fenômeno na construção desses espaços, os conceitos ―desordenados, desequilibrados, desestruturados‖ são privilegiados. A impressão que fica é que, por exclusão, os não-pobres, ao produzirem o seu espaço habitacional, fazem-no, sempre, de modo legal e regular […].26 Essa observação é realizada pela arquiteta e urbanista Regina Lins para demonstrar que os não-pobres também desrespeitam a legislação ambiental e urbanística produzindo seu espaço, muitas vezes, de forma desordenada, desequilibrada e desestruturada. Todavia, por 24 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à moradia adequada na América Latina. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Forum, 2003. p. 18. 25 LINS, Regina. A (i)legalidade (in)aceitável? O caso do empreendimento residencial Vista Atlântica, Maceió, Alagoas. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Coord.). A lei e a ilegalidade na produção do espaço urbano. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 296. 26 LINS, Regina. Op. Cit. p. 296-297. 147 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I motivos diferentes dos pobres, que geralmente não têm outra saída. Com isso, juridicamente, quanto às questões relativas à ocupação da terra urbana, encontramos duas realidades distintas: a luta pelo direito à propriedade (pelos não-pobres) e a luta pelo direito à moradia (pelos pobres)27 . O direito à moradia possui reconhecimento constitucional – ou, pelo menos, jurídico – na maioria dos países da América Latina. Todavia, no plano da eficácia28 muito há que ser feito, tendo em vista a realidade enfrentada por milhões de latino-americanos. A abissal desigualdade econômica, fruto de uma realidade social dividida em classes, revela a problemática questão das moradias. Nossa região é considerada a mais urbanizada do mundo, devendo atingir no ano de 2030 a marca de 83% da população vivendo em cidades29. Outros dados são ainda mais preocupantes: […] ao menos 25 milhões de moradias não possuem água potável; e um terço do parque habitacional urbano não dispõe de sistema cloacal. Segundo dados fornecidos pela ECLAD, o déficit habitacional quantitativo da região chega a 17 milhões de moradias, enquanto o qualitativo atinge 21 milhões de moradias. Transpondo-se esses números para proporções, pode-se dizer que apenas 60% de cada 100 famílias possuem uma moradia adequada, enquanto 22% vivem em casas que requerem melhoramentos e 18% precisam de novas casas. 30 O que se observa, pois, é a premente necessidade de se assegurar esse direito fundamental. Contudo, é problema que requer uma solução sistemática, pois exige um conjunto de ações assecuratórias de uma série de direitos sociais. Segundo Letícia Marques Osório, do ponto de vista jurídico, uma das formas capazes de assegurar o direito à moradia e à terra é garantir a segurança da posse31. Além disso, é crucial que a população tenha acesso ao conhecimento e ao debate acerca de tais questões, essa deve ser uma das mais importantes metas da política urbana estabelecida na Constituição da República32. 27 LINS, Regina Dulce Barbosa. A regularização fundiária como reconhecimento de direitos: os empreendimentos residenciais Vila Emater II e Vista Atlântica. In: VALENÇA, Márcio Moraes (Org.). Cidade (i)legal. Rio de Janeiro: Maud X, 2008. p. 221. 28 Aqui nos referimos mais explicitamente à eficácia social, a efetividade. 29 OUCHO apud OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à moradia adequada na América Latina. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Forum, 2003. p. 18. 30 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à moradia adequada na América Latina. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Forum, 2003. p.19-20. À propósito, ECLAD é o Centro Latino-americano de Demografia (CELAD). 31 OSÓRIO, Letícia Marques. Op. Cit. p. 35. 32 Conscientizar a população e instigá-la para o debate sobre o planejamento da cidade é de vital importância para a resolução justa e pacífica de problemas urbanos como a especulação imobiliária. Sendo assim, as audiências públicas obrigatórias para o plano diretor parecem ser um ótimo canal para essa conscientização, pois – no máximo – a cada 10 anos tem-se a obrigação de reformulação dos planos diretores. Contudo, esse é um assunto carente da atenção do Direito Urbanístico. Ver art. 40, §3° da Lei n°. 10.257/01. Para mais detalhes, ver: REIS, Kleiber Gomes. A importância da Cidadania para a eficácia social do Plano diretor. Disponível em: <www.lfg.com.br>. Acesso em: 10 jan. 2010. 148 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Assim, destacamos a importante observação feita por Milton Santos de que analisar a cidadania implica, também em compreendê-la ―pelo ângulo geográfico‖33. ―É impossível imaginar uma cidadania concreta que prescinda do componente territorial.‖34 No Brasil, a discussão acerca da política urbana dá ao plano diretor (master plan) lugar de destaque. Veja, novamente, o que diz a Constituição da República35: Art. 182. (…) § 1°. O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. §2°. A propriedade cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. (…). Como se pode notar, a função social da propriedade tem status constitucional, mas sempre careceu de instrumentos operacionais para a sua efetivação. A partir da Constituição da República de 1988 tal função social passou a ter ares de concretude e, assim, se consubstancia – em nosso ordenamento – no plano diretor. […] No Brasil, (...) o princípio que toda a propriedade deve cumprir sua função social está contido desde a constituição de 1934; entretanto, somente em 2001, com a aprovação do Estatuto da Cidade, é que foi estabelecida a desapropriação-sanção e a incidência de imposto territorial progressivo sobre os imóveis não edificados, não utilizados ou subutulizados [sic].36 Com isso, não podemos nos furtar em dizer que não basta apenas os comandos normativos, sejam constitucionais ou não. No plano jurídico da eficácia social e no plano sócio-econômico, tal função social da propriedade somente terá legitimidade plena se a totalidade da sociedade participar (ou se abster) – no processo legislativo de elaboração deste planejamento estratégico (o master plan) – de modo consciente e não apenas pela via formal, como vem sendo até hoje. Por isso mesmo, é imperioso a criação de canais de acesso ao conhecimento sobre as questões urbanísticas para que toda a sociedade possa opinar de forma efetiva, produzindo um espaço urbano coerente com os anseios da totalidade dos cidadãos. Neste caso, as escolas parecem ser os lugares mais importantes no processo de construção da cultura da participação social e da cidadania. Além disso, o artigo 4° da lei federal n°. 10.257/2001 (o Estatuto da Cidade), traz em seu teor uma série de instrumentos urbanísticos para que o poder público efetive as funções 33 SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Edusp, 2007. p. 12. SANTOS, Milton. Op. Cit. p. 144. 35 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/_Constitui%C3%A7aoCompilado.htm>. Acesso em: 03 jan. 2010. 36 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à moradia adequada na América Latina. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Forum, 2003. p. 35, nota de rodapé n°. 30. 34 149 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I sociais da propriedade e da própria cidade. Cabe observar que tal rol de instrumentos não é exaustivo.37 3.2 Breves notas sobre o meio ambiente Outra questão de grande importância na discussão acerca da propriedade e da moradia é a problemática relativa à proteção do meio ambiente. Tal questão não é recente e faz parte da realidade cotidiana de muitas cidades em nosso país e em toda a América Latina. Primeiramente, não há como negar que esse problema é fruto, também, de uma política urbana comprometida com os interesses das camadas mais abastadas. A ―[...] atividade econômica e a herança social distribuem os homens desigualmente no espaço (...).‖38 A ocupação urbana desordenada, como já explicitado, não se resume às camadas mais pobres. Contudo, a essa parcela da sociedade a ocupação de terras reservadas à proteção ambiental (UC39, APP40, entre outras) é, na maioria das vezes, resultado: (a) de um poder público ausente e incapaz de concretizar de modo pleno os direitos básicos do cidadão – quem dirá o direito à moradia; (b) de uma classe rica detentora dos melhores espaços urbanos (em grande parte reservados à especulação imobiliária); (c) ao êxodo rural e (d) ao desconhecimento da importância da preservação de determinados espaços urbanos41. Assim, a desigualdade social é um dos fatores determinantes para a destruição do ambiente natural e para um consequente desequilíbrio biológico, fatores que contribuem para a perda da qualidade de vida nas cidades. […] É no território, tal como ele atualmente é, que a cidadania se dá tal como ela é hoje, isto é, incompleta. Mudanças no uso e na gestão do território se impõem, se queremos criar um novo tipo de cidadania, uma cidadania que se nos ofereça como respeito à cultura e como busca da liberdade.42 Sendo assim, a educação tem lugar privilegiado para a luta contra a destruição da biosfera. Uma educação voltada para a cidadania pode ser a chave para uma ocupação mais justa e inteligente do território. Urge, atualmente, a capacitação da sociedade para a real participação na gestão democrática das cidades. 37 DALLARI, Adilson Abreu. Instrumentos da Política Urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal n°. 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 72. 38 SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Edusp, 2007. p. 11. 39 Unidade de conservação. 40 Área de proteção permanente. 41 Aliás, essa é uma das grandes incoerências em toda a sociedade: a falta de uma política educacional séria comprometida com a biosfera, instituidora de uma nova cultura ambiental. 42 SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Edusp, 2007. p. 18. 150 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I […] A realização do processo democrático de gestão das cidades é a razão da própria existência do Estatuto da Cidade, que resulta, ele próprio, de uma longa história de participação popular, iniciada na década de 80, e que teve grande influência na redação do capítulo da política urbana da Constituição Federal (arts. 182-183).43 Além disso, importante também observar que é preciso amplificar a compreensão jurídica de meio ambiente, posto que nosso ordenamento jurídico possui um caráter antropocêntrico exacerbado. Com isso, a interpretação constitucional do art. 225, CR/1988, e. g., deve ter um caráter eminentemente biocêntrico. Veja: […] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.44 Assim, quando a Constituição da República diz que ―todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado‖, está se referindo a todos os seres vivos. Ainda, ao estabelecer que o meio ambiente é um ―bem de uso comum do povo‖, na verdade quis dizer que é um bem de uso comum de todos os seres vivos em ecossistemas. Por fim, quando se refere à preservação para ―as presentes e futuras gerações‖, significa preservar a biosfera para as presentes e futuras gerações de seres vivos existentes ou que ainda estão por existir. Uma educação popular e uma cultura jurídica a partir do pensamento biocêntrico são fundamentais para expurgarmos de uma vez por todas a idéia de que somos superiores a todos os outros animais. É urgente uma nova cultura de respeito pela vida, para além da dignidade da pessoa humana. 4 CONCLUSÃO A análise da trajetória histórica percorrida pelo conceito de propriedade permite a afirmação de que, enquanto ligada às estruturas de poder e intimamente conectada com as transformações sofridas pela sociedade ao longo dos séculos, a propriedade não pode ser compreendida apenas através da visão do homem contemporâneo, mas sim por intermédio de uma investigação histórica que permita compreender as complexidades inerentes a tal instituto em cada uma das diferentes épocas da civilização. 43 BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. In: DALLARI, Adílson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal n°. 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 323-324. 44 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/_Constitui%C3%A7aoCompilado.htm>. Acesso em: 03 jan. 2010. 151 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A idéia de propriedade que vigorou entre os romanos soaria um tanto estranha para os povos da Antiguidade oriental. Enquanto para aqueles a propriedade era algo absoluto, exclusivo, perpétuo e ilimitado, estes conheciam somente a propriedade coletiva da terra. Já a Idade Média presenciou uma certa confusão acerca do instituto, fruto do contato entre a concepção privatista herdada do Direito Romano e a concepção coletivista presente entre os povos germânicos. O conceito romano de propriedade foi retomado com maior intensidade a partir da ascensão dos princípios iluministas, vindo a ter alterações substanciais sobretudo no século XX, com a positivação da idéia função social nas Constituições do México, de 1917, e da Alemanha, de 1919. Hodiernamente, torna-se pouco concebível – ao menos no Ocidente – que um Estado não disponha do instituto da função social da propriedade em seu ordenamento jurídico. No Brasil, que já o reconhecia desde a Constituição de 1934, o Estatuto da Cidade veio exercer um importante papel. Nele encontram-se elementos para a efetivação da função social no meio urbano, tornando vazias, assim, determinadas críticas a uma eventual omissão do legislador em relação aos instrumentos urbanísticos necessários para que o Estado cumpra sua função intervencionista, a fim de assegurar o direito à moradia e a correta ocupação do solo nas áreas urbanas. Além disso, cumpre ressaltar que o direito à moradia não entra em colisão com o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado. A ocupação desordenada do território, muitas vezes avançando sobre áreas de proteção ambiental, deve-se a uma série de fatores, destacando-se a negligência do poder público em efetivar direitos básicos dos cidadãos. No mais, ressalte-se a importância de mudanças tanto na educação geral quanto na jurídica, com vistas a propiciar ressignificações na cultura jurídico-ambiental que visem à construção de uma hermenêutica que compatibilize os direitos à moradia e ao meio ambiente para o bem de todos os seres vivos. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição(1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/_Constitui%C3%A7aoCompilado.htm>. Acesso em 03 jan. 2010. BUCCI, Maria P.D. Gestão Democrática da Cidade. In: DALLARI, Adílson.; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade:comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo:Malheiros, 2002. CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 152 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I DALLARI, Adílson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal n°. 10.257/2001. 1ª. ed., 2ª. tir. 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RESUMO O presente artigo hospedou o propósito de investigar os desafios que se apresentam ao Supremo Tribunal Federal na interpretação da ordem econômica pós-1988, com a existência do que se chamou de mandamentos paradoxais na realidade constitucional atualmente em vigor. A análise que se perfez partiu do conceito de ironia da tradição filosófica ocidental, notadamente em Sócrates, Schlegel, Hegel e Kierkegaard. Na esteira desta reflexão, algumas conclusões foram sublinhadas na diretriz do pensamento de Vladimir Safatle, especialmente a de que a ironia traduz a idéia de uma perversão que se expressa em um descompasso interno no sistema, fundamentada na experiência de inadequação e indeterminação de seu conteúdo. Com a existência desta zona de indeterminação, surgem os perigos da capacidade abstrata de inversão da realidade constitucional, gerando a chamada anomia, que se revela como um conseqüente processo de ironização e subseqüente confusão normativa dos dispositivos constitucionais em contraste. Isso resulta na possibilidade de resultados incongruentes na interpretação constitucional. Para ilustrar o enfoque teórico do estudo, analisou-se a existência de paradoxos normativos na ordem econômica constitucional brasileira, notadamente no art. 170 da CF, com ênfase no estudo da propriedade e da livre iniciativa a partir do texto constitucional. Por fim, fez-se uma análise de uma decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal acerca de um ponto de incongruência normativa identificado no trabalho para, por fim, tecer algumas considerações acerca dos desafios que, neste contexto, se apresentam na atuação da Suprema Corte brasileira. 1 O autor agradece as valiosas sugestões de Vinícius de Mattos Magalhães, mestrando em Direito pela UFC e bolsista da CAPES, sem as quais este trabalho não teria sido possível. 2 Aluno do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 154 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Palavras-chave: Ironia. Ordem econômica. Propriedade. Livre iniciativa. Supremo Tribunal Federal. Paradoxos normativos. ABSTRACT The present article aims to demonstrate the challenges that appear to Supreme Court of Brazil (STF) when interpreting the economical order of the 1988 brazilian Constitution, especially with the existence of paradoxical commandments in the constitutional reality now in vigor. The analysis started on the concept of irony of the western philosophical tradition, especially in Sócrates, Schlegel, Hegel and Kierkegaard. Still on this reflection, some conclusions were underlined in the guideline of Vladimir Safatle's thought, especially the one that the irony translates the idea of a perversion that expresses itself in an internal incongruence inside the system, based in the inadequacy experience and indetermination of its content. With the existence of this indetermination area, the dangers of the abstract capacity of inverting the constitutional reality appears, generating the anomie, that is revealed as the consequence of the ironization process and subsequent normative confusion of the contrary constitutional devices. That results in the possibility of incompatibles results in the constitutional interpretation. To illustrate the theoretical focus of the study, the existence of normative paradoxes was analyzed in the Brazilian positive constitutional economical order, especially in the article 170 of Constitution, with emphasis in the study of the property and the free enterprise starting from the constitutional text. Finally, an analysis of a paradigmatic decision of the Supreme Court concerning a point of normative incongruity identified in the work was made. Finally, some considerations concerning the challenges that, in this context, come to the performance of Brazilian Supreme Court actuation were made. Keywords: Irony. Economical order. Property. Free Enterprise. Supreme Court of Brazil. Normative paradoxes. INTRODUÇÃO O presente trabalho objetiva fazer um estudo da ordem econômica constitucional no contexto pós-1988, a partir da análise dos dispositivos contrapostos no texto constitucional, ou seja, das normas que apresentam, entre si, conteúdos contrastantes, por vezes expressivos de uma realidade sistêmica paradoxal. Tal se verifica, por exemplo, quando se confronta a 155 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I propriedade privada e a função social da propriedade com as diferentes acepções possíveis de se obter da moldura normativa na qual se insere o conceito constitucional de livre iniciativa. Considerando-se que é o Supremo Tribunal Federal o responsável pela guarda da Constituição, conformar elementos normativos e jurídicos abstratamente opostos traduz um efetivo desafio que se coloca ao Judiciário, notadamente a partir do advento da nova ordem constitucional advinda com a promulgação da Carta Republicana de 1988. Para analisar a contraposição entre os dispositivos constitucionais que regem a ordem econômica constitucional, optou-se por um estudo teórico-filosófico que parte da concepção de ironia ao longo do percurso histórico da filosofia ocidental. Assim como alguns dos preceitos da ordem econômica na Carta Constitucional que possuem conteúdos, simultaneamente, inversos, a ironia – pode-se dizer, a título de introdução – é a negação do que se quer afirmar, resultando, por isso, num vazio. O desafio para o Poder Judiciário e, mais especificamente, para o Supremo Tribunal Federal, é, constatando que a materialidade de alguns dos dispositivos constitucionais revela-se claudicante, conformar tais mandamentos, na observância dos fundamentos da Constituição, sem que se alcance o negativo peculiar à idéia de ironia. Nesse passo, dividiu-se o trabalho em três eixos, sem antes serem feitos alguns esclarecimentos metodológicos. Em um primeiro plano, fez-se um estudo da ironia na forma como trabalhada por alguns filósofos, como Sócrates, Kierkegaard, Friedrich Schlegel e Hegel, para, em seguida, estabelecer alguns pontos tomados de empréstimo de Vladimir Safatle. Em um segundo momento, analisou-se as disposições positivas referentes ao Título VII da Constituição Federal (―Da Ordem Econômica e Social‖) – mais especificamente o art. 170 – bem como os posicionamentos doutrinários divergentes acerca dos mandamentos paradoxais da ordem econômica. Num terceiro ponto, por intermédio de uma seleção do ementário jurisprudencial disponível no sítio online do Supremo Tribunal Federal, fez-se um estudo acerca dos entendimentos perfilhados daquela Corte acerca de questões relacionadas à ordem econômica, com o intuito de verificar os posicionamentos do órgão responsável pelo exame da conformidade dos atos jurídicos a ele submetidos em relação à Constituição. Por fim, algumas conclusões foram sublinhadas no sentido de que o STF, ao se deparar com tais elementos normativos que apresentam conteúdos inversos entre si, deve conformar tal paradoxalidade com atenção aos princípios fundamentais escolhidos e inscritos pelo povo brasileiro na Carta de 1988. Caso não observado o desafio de tal paradigma, a negatividade da ironia pode dar ensejo a uma zona de indeterminação jurídica que deve deformar a realidade constitucional. 156 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Antes de se enfrentar o tema objeto da presente investigação, faz-se necessário assentar o percurso metodológico que se utilizou. Conforme brevemente restou assentado no tópico antecedente, o objeto de estudo do presente trabalho é a abordagem das peculiaridades da ordem econômico-constitucional brasileira, bem como a análise dos posicionamentos do Supremo Tribunal Federal em relação a esta. A hipótese principal eleita no trabalho foi a de que existem elementos normativos paradoxais que se projetam de uma análise sistêmica e contextual do Título VII da Constituição Republicana. No intento de confirmar tal hipótese, a metodologia utilizada foi a da pesquisa bibliográfica, amparada, a um, pelo estudo do ordenamento positivo referente à ordem econômica e, a dois, pela coleta da jurisprudência constitucional, mediante utilização da pesquisa online em sítios oficiais. É preciso pontuar, no entanto, as peculiaridades metodológicas e as opções de pesquisa inerentes a cada um dos capítulos que serão apresentados. No primeiro capítulo, a pesquisa foi inteiramente bibliográfica. A escolha dos autores foi feita com base na pesquisa dos filósofos que, de algum modo, versaram sobre a temática da ironia. É preciso consignar que o itinerário seguido foi semelhante ao de Vladimir Safatle, quando de sua abordagem acerca da ironia3. O primeiro pensador estudado, Sócrates, considerado como o responsável, como se sabe, pela entrada da ironia no mundo, não deixou escritos. É por meio de textos de autores a ele contemporâneos que se procura entender seus pensamentos: é tão-somente por meio de Xenofonte, Platão e Aristófanes, que se conhece os pensamentos socráticos. Neste ponto, adotou-se alguns dos entendimentos defendidos por Kierkegaard quando de sua dissertação sobre Sócrates. Kierkegaard4 pontua que Xenofonte5, ao se postar numa defesa exagerada de Sócrates e tentar mostrar o quão errados estavam os atenienses em condená-lo, engrandece desmesuradamente sua figura. Aristófanes6, ao inverso de Xenofonte, diminuindo, de certo modo, a figura de Sócrates, por inseri-lo no contexto de uma comédia, coloca em relevo o elemento do humor, essencial para a concepção de ironia. Entretanto, é por meio de Platão que são elaborados os principais ensaios filosóficos sobre Sócrates. Com Kierkegaard não é diferente, embora também se tenha debruçado sobre As 3 Cf. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 11-109. Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Tradução de Álvaro Luiz Montenegro Valls. Vozes: Petrópolis, 1991, p. 28. 5 Ver, por exemplo, XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Tradução de Líbero Rangel de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1972. (Os Pensadores). 6 ARISTÓFANES. As nuvens. Tradução de Gilda Maria Reale Starzynski. São Paulo: Nova Cultural, 1972. (Os Pensadores). 4 157 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Nuvens, de Aristófanes7. Ele analisa a ironia em Sócrates em cinco diálogos: O Banquete, Protágoras, Fédon, A Apologia e o Livro I da República8. No presente trabalho, as obras escolhidas foram as que mais fornecem elementos para o entendimento da ironia em Sócrates como uma dialética negativa a partir da qual se gera um resultado vazio. Nessa tocada, analisando-se os diálogos platônicos e as teses de Kierkegaard, elegeu-se O Banquete, Protágoras e o Livro I da República como as mais apropriadas para a abordagem específica deste trabalho. Já a Friedrich Schlegel, autor romântico que fez reflexões sobre a ironia numa perspectiva diferente da socrática, pôde-se chegar através da tradução para o português de O dialeto dos fragmentos9. Numa repulsa às teorias sistemáticas, Schlegel deixou seus escritos em fragmentos e pequenas reflexões sobre diversos temas10. Da fragmentação dos pensamentos schlegelianos, foi possível pinçar o interesse pelo infinito, tema recorrente ao romantismo, e as idéias originais acerca da ironia. Na crítica da ironia romântica, no contexto da miséria da intelectualidade alemã no contexto do século XIX, Hegel se mostra como interessante autor no que tange ao estudo da ironia, especialmente nas divagações presentes na Fenomenologia do espírito11, sobre O Sobrinho de Rameau, de Diderot12. Após o supra descrito apanhado teórico, foi preciso trazer à baila os pressupostos estabelecidos por Vladimir Safatle, que ajudaram na ligação entre a negatividade absoluta das condutas trazida pela ironia e os paradoxos da ordem constitucional econômica. No segundo capítulo, ambientou-se o estudo das disposições positivas da ordem econômica no texto constitucional e dos posicionamentos doutrinários no que se refere aos mandamentos contrapostos presentes no Título VII. Neste particular, essencial é a exposição crítica dos dispositivos legais e a análise comparativa entre os posicionamentos doutrinários divergentes. Percebe-se, pois, neste capítulo, a preponderância da pesquisa de cunho bibliográfico. Quanto ao terceiro capítulo, que versa sobre os posicionamentos do Supremo Tribunal 7 Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. Op. cit., p. 108-123. PLATÃO. O Banquete. Tradução de J. C. de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1972, p. 13-59. (Os Pensadores); Protagoras. Tradução de C. C. W. Taylor. Oxford: Oxford University, 1991; Fédon. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Nova Cultural, 1972, p. 61-132. (Os Pensadores); Apologia de Sócrates. Tradução de André Malta. Porto Alegre: L&PM, 2008; A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 1-52. 9 SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. 10 Cf. SUZUKI, Márcio. A gênese do fragmento. In: SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 13-14. 11 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Menezes. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. 12 DIDEROT, Denis. Le neveau de Rameau. Paris: Poulet-Malassis, 1862. 8 158 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Federal no que concerne aos mandamentos paradoxais da ordem econômica, a pesquisa se deu com o fito de se fazer a coleta da jurisprudência através do sítio eletrônico oficial da Corte13. No endereço eletrônico, utilizou-se a ferramenta ―A Constituição e o Supremo‖, buscando-se o termo ―ordem econômica‖. A partir daí, debruçou-se sobre os acórdãos relacionados aos arts. 1º, 3º, princípios fundamentais da República, e 170, informador dos fundamentos, fins e princípios da ordem econômica, optando-se somente por ações em sede de controle concentrado. De tal recorte, restaram quatro ADPF‘s e trinta e sete ADI‘s. Desse universo de quarenta e um acórdãos, escolheu-se apenas um que, além de recente, atende aos propósitos da discussão neste trabalho: a ADPF 46. Escolhido o julgado, fez-se um resumo dos argumentos jurídicos acerca das problemáticas trazidas à discussão jurisdicional e se expôs o núcleo dos votos dos ministros, procurando-se mostrar as contraposições dos posicionamentos entre os próprios ministros e a relevância do atento aos dispositivos fundantes da ordem constitucional. A contextualização da metodologia se mostra pertinente na conformidade em que expõe clara e objetivamente os percursos de feitura do trabalho, situando o leitor acerca das razões que levaram às escolhas de caminhos na discussão, bem como acerca das peculiaridades metodológicas e das opções de pesquisas que foram feitas ao longo da elaboração do estudo. 1 A IDÉIA DE IRONIA I. A entrada do conceito de ironia no mundo se deu com Sócrates. A ironia era o ponto de vista de Sócrates, era o essencial em sua existência. As perguntas que fazia sucessivamente aos seus interlocutores nos diálogos que travava, caracterizadas por uma dialética negativa, isto é, perguntas e respostas cuja síntese resulta num negativo14, eram revestidas pela ironia, essência do núcleo do posicionamento socrático15. Em Protágoras, trava-se uma discussão entre Sócrates e Protagóras, acerca da possibilidade ou não da virtude ser ensinada. Este, sofista, posta-se pela viabilidade de se ensinar a virtude. Aquele, pela impossibilidade16. A ironia nessa obra consiste no fato de que Sócrates, no intento de demonstrar a impossibilidade de se ensinar a virtude, transforma-a no seu objeto de conhecimento, de estudo, provando, assim, o oposto, é dizer, que a virtude não 13 <www.stf.jus.br> É preciso observar que as perguntas e respostas nos diálogos platônicos são uma espécie de dialética, contudo sendo precário o momento de unidade na síntese, posto que, para cada nova resposta, é possível uma nova pergunta. Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. Op. cit., p. 41-42. 15 Cf. Ibid., p. 23-26. 16 Cf. PLATO. Protagoras. Tradução de C. C. W. Taylor. Oxford: Oxford University, 1991, p. 11 e 15. 14 159 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I pode ser objeto de ensino17. O cerne d‘O Banquete é uma discussão sobre a natureza e as qualidades do amor. Tudo ocorre em uma festa mundana onde várias pessoas ilustres estão presentes, entre eles Agaton, poeta trágico ateniense, Aristófanes, maior dramaturgo da comédia grega, e Alcibíades, político ateniense. No primeiro contato com a ironia de Sócrates, o indivíduo se sentia à vontade. Entretanto, após isso, Sócrates se postava não em igualdade de condições nas relações de amor intelectual de que fazia parte, isto é, como amante, mas como amado 18. É nisso que consiste a ironia, que acalenta para depois atormentar, que diz o sim para significar o não19. A República é um diálogo cujo tema central é o entendimento do que é a justiça. Ao final do Livro I d‘A República, Sócrates chega à conclusão de que não obteve resultado algum a partir da discussão travada20. Aqui, o primeiro livro tem consciência de não só ter chegado a um resultado vazio, mas a um resultado negativo. Ou seja, após toda a discussão, perguntas e repostas e divagações desdobradas ao longo do Livro I, chegou-se a um resultado negativo: continua-se sem nada saber. Com Kierkegaard, é possível visualizar o cunho irônico disso em si e por si mesmo21. Em Sócrates, destarte, era a ironia um meio de vida, algo intrinsecamente constitutivo de sua existência, indissociável de seu ser, determinante e informador de seus posicionamentos. A explicação de algo para provar seu oposto, o afago seguido da perturbação e as discussões que alcançam resultados negativos são elementos ilustrativos daquilo que era a essência do ponto de vista de Sócrates: a ironia. II. O interesse pelo infinito era temática recorrente entre os filósofos e poetas do romantismo. Assim, Schlegel tentava, mediante suas reflexões filosóficas, chegar ao infinito. Nesse percurso, apercebeu-se da filosofia e da arte como meios ao infinito. A consciência filosófica permitiria a racionalização acerca do infinito22. Entretanto, Schlegel colocava que a filosofia não concluía com inteireza seus percursos investigativos: A filosofia ainda caminha demasiadamente em linha reta, e ainda não é suficientemente cíclica. [...] Em relação aos maiores filósofos ocorre comigo o mesmo que com Platão em relação aos espartanos. Ele os amava e respeitava infinitamente, mas sempre se queixa de que em toda parte tivessem ficado no meio do caminho 23. 17 Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. Op. cit., p. 61. Cf. PLATÃO. O Banquete. Tradução de J. C. de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1972, p. 50-57. (Os Pensadores). 19 Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. Op. cit., p. 50-53. 20 Cf. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 52. 21 Cf. KIERKEGAARD, Søren Aabye. Op. cit., p. 100. 22 Cf. SCHLEGEL, Friedrich. Op. cit., p. 26-27. 23 Ibid., p. 53-54. 18 160 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I No que tange à arte, Schlegel diz que o artista renuncia e anula sua singularidade, no intento de alcançar o infinito: ―O artista que não renuncia a todo o seu si mesmo é um servo inútil‖24. Porém, muitos deles trazem o infinito para a arte com leviana e comprometedora facilidade: ―Há escritores que bebem o incondicionado como água, e livros em que até os cães se referem ao infinito‖25. A partir da inconsistência tanto da filosofia como da arte para se alcançar o infinito, surge, aqui, uma idéia trabalhada de modo interessante por Schlegel: a ironia. Esta, para o filósofo do romantismo, é a mediação jocosa entre contrários inconciliáveis26. A consciência da impossibilidade e da necessidade de conciliação entre o finito e o infinito é elemento constitutivo da ironia, que é, justamente: Um sentimento do conflito insolúvel entre incondicionado e condicionado, da impossibilidade e necessidade de uma comunicação total. [...] É [...] essa constante autoparódia, na qual sempre acreditam e da qual novamente sempre desconfiam, até sentir vertigens, tomando justamente o gracejo como seriedade, e a seriedade como gracejo27. Schlegel entende que ―ironia é a forma do paradoxo‖28. Consciente do quê se constitui a ironia e entendendo o infinito como o resultado de forças que constantemente se separam e se mesclam, onde a expressão se dá por meio de contradições, é possível pontuar que, para Schlegel, a ironia é o instrumento adequado para se alcançar o infinito, ao passo que tenta conciliar contrários, mesmo com a consciência da improbabilidade de tal mediação29. III. Sabe-se que Hegel era um crítico do romantismo. É preciso ainda colocar: Hegel era um crítico da ironia romântica. Tal se dava no contexto de uma realidade política e social peculiar da Alemanha da época de Hegel, sobretudo no que se refere à classe intelectual de seu país. Ao passo que países como a França e a Inglaterra, que tinham passado por revoluções liberal-burguesas, a Alemanha no século XIX era um país agrário e atrasado do ponto de vista do desenvolvimento. Entretanto, subsistia uma classe intelectualizada, em meio ao marasmo nacional em que se achava a Alemanha: era a ―miséria alemã‖. Nesse passo, a intelligentsia alemã estava envolta à solidão, à miséria, à falta de público, à exaltação e à incapacidade do País em dar forma à razão capitalista que fazia o progresso prosperar nos vizinhos do continente europeu30. 24 Ibid., p. 158. Ibid., p. 29. 26 ―[...] a ironia, uma síntese absoluta de antíteses absolutas, alternância de dois pensamentos conflitantes que engendra continuamente a si mesma.‖. Ibid., p. 66. 27 Ibid., p. 37. 28 Ibid., p. 28. 29 Cf. Ibid., p. 130. 30 ARANTES, Paulo Eduardo. Um reforma intelectual e moral. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da 25 161 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A intelligentsia romântica da época tinha plena consciência da situação malograda em que se encontrava. Mas, para resistir a essa conjuntura, apegava-se à ironia, elemento de sarcasmo em que se apoiava a intelectualidade alemã para suportar seu malogro existencial em meio à decadência nacional. É dizer, a ironia era a atitude consciente da classe intelectual no contexto da ―miséria alemã‖, onde, defronte ao marasmo político e a indeterminação subjetiva, o intelectual se agarrava para justificar sua infeliz situação31. É contra essa ironia que Hegel se insurge32. Ainda na seara do pensamento hegeliano, notadamente no que concerne às suas relações com a ironia, um contexto diferente da conhecida crítica de Hegel à ironia romântica deve ser sublinhado. Na esteira das contribuições teóricas de Paulo Eduardo Arantes e Vladimir Safatle, as percepções hegelianas consignadas na Fenomenologia do Espírito e as implicações que se fazem notar na obra O Sobrinho de Rameau, de Diderot, hão de ser aqui mais detidamente consideradas. Essa obra é um diálogo entre Eu, o narrador, filósofo, e Ele, Jean-François Rameau, sobrinho do célebre músico Jean-Phillipe Rameau, um jovem ocioso que entende de arte e música e que Eu apresenta como original, excêntrico, extravagante, imoral, provocador, repleto de contradições e possuidor de bom senso e desrazão33. Na fala do sobrinho de Rameau, percebe-se que ele está a tentar perverter valores tendentes à validade universal incontestável, defendidos por Eu – os valores do Iluminismo34. Porém o sobrinho não rompe com a Ilustração. Apenas, com sua postura sarcástica, questiona subliminarmente, no tentame de ironizar e interverter condutas incontestáveis, os valores que aspiram universalidade35. Nesse sentido, a linguagem irônica do sobrinho caracteriza a ―palavra que, ao mesmo tempo, segue o código e o transgride‖, representando ―o momento inaugural do advento das aspirações modernizadoras do Esclarecimento‖ 36. A ironia dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 331-333; Por que permanecemos na província? In: ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 349-351. 31 Idem. Origens do espírito de contradição organizado. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 219-223. 32 ―[...] Hegel sente a ironia como uma sombra sempre pronta a se deixar confundir com o corpo da dialética. E lá onde a proximidade é grande, a violência da crítica deve ser ainda maior‖. SAFATLE, Vladimir. Op. cit., p. 37; Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Paradoxo do intelectual. In: ARANTES, Paulo Eduardo. Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 40-44; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., p. 264-265. 33 DIDEROT, Denis. Op. cit., p. 2. 34 Cf. SAFATLE, Vladimir. Op. cit., p. 42. 35 Cf. Ibid., p. 58; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Op. cit., p. 359-364. 36 SAFATLE, Vladimir. Op. cit., p. 48. 162 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I que a tudo perverte é um descompasso interno fundamentado na experiência de inadequação e indeterminação37. A época retratada na obra em comento era de desagregação dos substratos normativos que dão unidade social. Ou seja, estava-se em um período de mudança das estruturas normativas que legitimavam a sociedade de então. A consciência de uma situação como essa se manifesta como ironização38. O Brasil passou por situação semelhante. Após o desfazimento das regulações normativas da anterior ordem autoritária, constrói-se no País uma nova realidade jurídica de interação social e estatal. Entretanto, subsistem ainda conjunturas internas à nova ordem constitucional através das quais não se visualiza a coesão de disposições jurídicas unívocas. Tal se dá no contexto da ordem econômica da Constituição Federal de 1988, em que não se determinam as indicações normativas para um caminho a se seguir na construção da nova realidade jurídica. Ao revés, vê-se normas que apontam em sentidos diversos e, consequentemente, interpretações em sentidos opostos. Isso pode condicionar uma guinada para uma zona de indeterminação capaz de inverter a realidade constitucional. A anomia, gerada pela negatividade da ironização e subseqüente confusão normativa dos dispositivos constitucionais contrários, pode gerar resultados incongruentes com as aspirações surgidas com a nova Constituição. É por isso que se faz imprescindível o estudo dos dispositivos constitucionais da ordem econômica, bem como a abordagem das divergências doutrinárias no que se refere à sua interpretação. Firmada a compreensão dos paradoxos que compões tais normas, coloca-se o desafio ao Supremo Tribunal Federal de emprestar uma adequada compreensão aos opostos sentidos existentes na Constituição, como forma de não permitir a negatividade da ironização absoluta da realidade legar nossa ordem constitucional a uma zona de indeterminação jurídica. 2 A ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL I. Ao se ter em vista que o contexto em que foi elaborada a Carta foi de grandes debates pautados em rígidas divergências político-partidárias, é possível visualizar o ânimo dos constituintes em torno de disputas muitas vezes contrapostas. De um lado, encontravam-se grupos favoráveis a uma participação diminuta do Estado no sentido da atuação na esfera social e econômica. De outro, havia segmentos que intentavam ver prescritos na Constituição direitos 37 38 Cf. Ibid., p. 58. Cf. Ibid., p. 65. 163 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I e garantias demandados pela população, em relação aos quais se impunha ao ente estatal o dever de agir ativamente39. Os antagonismos das posições políticas e das propostas se fizeram refletir no texto constitucional. Visto que, em geral, as visões contraditórias giravam em torno da atuação do Estado na seara social e econômica, sobretudo relacionadas a temas clássicos da teoria constitucional ocidental, como propriedade e liberdade, o Título VII da Constituição Federal (―Da Ordem Econômica e Financeira‖) é onde mais nitidamente se enxergam os binômios que marcam um texto que buscou condensar heterogeneidades: Intervencionismo e liberalismo se alternam na formulação dos princípios e essa relação alternativa [...] exprime o clima de ambigüidade e duplo sentido que percorre as cláusulas da Ordem Econômica e Financeira. Liberalismo, intervencionismo e dirigismo econômico refletem as correntes que se debateram na assembléia Nacional constituinte e as maiorias eventualmente vitoriosas imprimiram no texto da constituição a concepção heteróclita da Ordem Econômica 40 (HORTA, 1991, p. 15) Um dos temas em que se visualizam mais nitidamente as dicotomias da ordem econômico-constitucional é o referente à propriedade. O art. 170 da Constituição, vestibular dos mandamentos da ordem econômica, ao passo que prescreve a propriedade privada no seu inciso II, impõe a função social da propriedade no inciso III. Ainda que não se reconheça a oposição extrema entre os dois princípios, uma vez que um complementa o outro, infere-se que, em algum momento, poderá haver disparidades de interesses que os coloquem em pólos opostos. O direito de propriedade, no formato em que é tratado nos ordenamentos jurídicos atuais, ganhou seus contornos oficiais a partir da Magna Carta inglesa de 1215, que estabelecia, em suas cláusulas 30 e 31, o respeito à propriedade privada contra os abusos confiscatórios do soberano41. Com a Declaração de Direitos de Virgínia, nos Estados Unidos, de 1787, o direito de propriedade é considerado inato ao ser humano e impassível de privação, sendo colocado, pela primeira vez, no bojo de uma constituição42. A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, coloca, em seu art. 17, que o direito de propriedade só pode ser privado em caso de necessidade pública, mediante indenização, dando a tal direito natureza inviolável e ―sagrada‖43. Pode-se, destarte, visualizar que a propriedade privada era entendida, sobretudo 39 Sobre o tema, cf. PILATTI, Adriano. A constituinte 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 40 HORTA, Raul Machado. Constituição e ordem econômica e financeira. Revista de Informação Legislativa, n. 111, jul./set., 1991, p. 15. 41 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 82 e 85. 42 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 50. 43 ―A declaração do caráter sagrado da propriedade, contida no art. 17, é um evidente anacronismo. Sagrada era a propriedade greco-romana, intimamente ligada à religião doméstica, à casa de família, sede do deus do lar, e ao 164 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I com as declarações liberal-burguesas setecentistas, como a essência das liberdades individuais a que se buscava proteger. A Constituição mexicana de 1917 inaugurou nova perspectiva acerca do direito de propriedade, instituindo, em seu art. 27, que esta é originalmente da Nação, podendo seu domínio ser transmitido aos particulares44. A Constituição alemã de Weimar, de 1919, estabeleceu uma seção para a ―vida econômica‖ do país em reconstrução em que se assegurava a liberdade econômica e a propriedade, mas nos limites de se garantir a todos a dignidade humana, com o fito de servir ao bem comum45. Percebe-se, pois, que há uma significativa mudança quanto à idéia de propriedade, inicialmente ligada a uma concepção estritamente individualista, mas, a partir de então, devendo atentar a certos pressupostos de atento à coletividade. A constituição brasileira de 1988 reflete em certa medida o caminhar histórico do direito de propriedade, possuindo dispositivos que se inclinam para as concepções mais individualistas e outros que pendem para a observância das finalidades sociais da propriedade. Não se pode negar que o Brasil adotou o sistema econômico capitalista de produção. Assim, o direito do proprietário individual de, por exemplo, um bem urbano, uma empresa ou uma propriedade rural é assegurado em sua plenitude, não podendo decair senão em virtude de forte motivação. O princípio da propriedade privada serve de corolário para a garantia do exercício legítimo do uso, fruição e gozo de um bem privado, estando em consonância com a posição econômica conjuntural do Brasil. Ocorre que, como se vê da evolução histórica do direito de propriedade, esta não pode ser dissociada da realidade fática na qual está inserida, devendo atentar a uma função adequada e benéfica para a coletividade social46. Neste sentido, terreno adjacente onde ficavam as sepulturas dos membros do gens. A sacralidade desses bens, aliás, era bem marcada pela sua fixidez e imobilidade: longe do caráter desprezível das coisas mobiliárias (res mobilis, res vilis), a propriedade tradicional é sempre imóvel, à imagem das coisas divinas‖. COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p. 152. 44 Cf. Ibid., p. 183. Sobre as principais modificações trazidas com a Constituição mexicana de 1917, cf. VAZ, Isabel. Direito econômico das propriedades. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 77-99. 45 Cf. COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., p. 195 e 198. Para um debate sobre a ordem econômica na República de Weimar, ver: BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue, 2004, 25-64. 46 Cf. FACCHINI NETO, Eugênio. A função social do direito privado. In: TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael Bicca. Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 146; MOREIRA, Egon Bockmann. Reflexões a propósito dos princípios da livre-iniciativa e da função social. In: TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael Bicca. Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 241-244; MATIAS, João Luis Nogueira. A função social da empresa e a composição de interesses na sociedade limitada. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009. 323 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 63-71. 165 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Se a propriedade a apropriação privada dos meios de produção constituem mesmo pressupostos de um regime capitalista, verdade é, também, que na vigência de um Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput), cujos objetivos fundamentais são garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, sem preconceitos e discriminações, para construirmos uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º), a propriedade privada – com todas as implicações que a expressão significa ou pode significar – não se legitima mais pelos frutos que dela extrai seu senhor, mas, igualmente, pela função que desempenha no contexto da sociedade47. [...] a propriedade privada é ao mesmo tempo um direito (subjetivo) fundamental e uma instituição em que radica, dentre outros fundamentos, a legitimidade de um Texto Constitucional num Estado Democrático de Direito [...]. Ao mesmo tempo em que garante a propriedade, a Constituição prevê a sua função social. Dito de outro modo: a Constituição conforma a propriedade e o seu exercício à sua função social 48. Como direito individual, o instituto da propriedade, como categoria genérica, é garantido e não pode ser suprimido da atual ordem constitucional. Contudo, seu conteúdo já vem parcialmente delimitado pela própria Constituição, quando impõe a necessidade de que haja o atendimento de sua função social, assegurando-se a todos uma existência digna nos ditames da justiça social 49. Vale observar que não se deve entender a total superação ou mitigação do direito individual de propriedade, ante a sua funcionalização a partir do texto constitucional50. Tal não se coadunaria com a opção econômica capitalista feita pelo País. O que acontece é que, mesmo em relação aos mais tradicionais e convencionais direitos individuais, como é o caso da propriedade, não se pode visualizar sua garantia e exercício sem a existência de regulamentação jurídica51. Desse modo, a potencialidade da autonomia da vontade existe, mas a ela são impostas finalidades normativamente previstas que transcendem os intentos individuais52. Assim, no que tange à propriedade no seio da ordem econômica da Constituição brasileira, calha notar sua natureza ―dual‖53, não possuidora de significado unívoco. É, pois, 47 PETTER, Josué Lafayete. Princípios constitucionais da ordem econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 132. 48 DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos. Função social da propriedade e livre iniciativa. Uma análise da proibição de cobrança do uso do estacionamento pelos shopping centers. Nomos: revista do curso de mestrado em direito da UFC, v. 27, jul./dez., 2007, p. 248-249. Sobre o caractere subjetivo do direito de propriedade, cf. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da função social da propriedade. Revista LatinoAmericana de Estudos Constitucionais , n. 2, p. jul./dez., 2003, p. 555-557. 49 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 611. 50 Como colocam Vladimir da Rocha França e Germano Schwartz e Rafael Machado Soares. Cf. FRANÇA, Vladimir da Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Revista de Informação Legislativa, n. 141, jan./mar., 1999, p. 14-15; e SCHWARTZ, Germano; SOARES, Rafael Machado. A função social do direito e a questão da propriedade: expectativas normativas. In: TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael Bicca. Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 363. 51 Cf. SUNSTEIN, Cass R. Designing democracy: what constitutions do. New York: Oxford University, 2001, p. 222; HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: Norton, 2000, p. 59-76; VERA, Flávia Santinoni. A função social do direito de propriedade e o conceito de produtividade no Brasil. In: TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael Bicca. Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 335. 52 Cf. MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de Informação Legislativa, n. 168, out./dez., 2005, p. 190. 53 LANE, Pedro. STF: decisões político-ideológicas nos casos de intervenção do Estado no domínio econômico. Monografia (Escola de Formação). Sociedade Brasileira de Direito Público, São Paulo, 2006, p. 7. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/85_Pedro-VersaoMarco2007.pdf>; Acesso em: 13 set. 2009. 166 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I cambiante, a um, no sentido da proteção de um direito individual e, a dois, no atento às exigências de cunho comunitário-social. Apesar de se tratar de dispositivos que indicam caminhos inversos, à semelhança da ironização anteriormente discutida, deve tal dualidade ser conformada com sensibilidade no que toca aos princípios fundamentais informadores dos fundamentos e objetivos da República, prescritos nos primeiros artigos da Carta. Só dessa maneira, é possível mediar contraposições conceituais inscritas positivamente e permitir um adequado entendimento constitucional por parte do órgão a que cabe a guarda da ordem constitucional. II. Outro ponto sobre o qual se deve refletir é acerca da natureza do conceito constitucional de livre iniciativa. Há autores que entendem que, como a Constituição atenta para princípios como livre concorrência e propriedade privada, estaria ela afirmando o sistema capitalista de mercado. De uma banda, têm eles cabimento quanto à opção de sistema econômico do constituinte. A outro turno, decai-lhes razão no que se refere à conceituação de livre iniciativa que adotam para inferir tal compreensão. Sob a perspectiva da liberdade de trabalho e associação, Manoel Gonçalves Ferreira Filho pontua que a livre iniciativa é ―[...] a combinação da liberdade do trabalho com a liberdade de associação [...]. A liberdade de iniciativa, que é a liberdade de trabalhar num determinado campo ou de se associar para trabalhar numa determinada atividade, é, aliás, um dos princípios fundamentais da ordem econômico-social‖54. José Afonso da Silva, partindo da eleição de uma economia capitalista para o Brasil em 1988, associa a livre-iniciativa à iniciativa privada, enquanto valor fundamental da sociedade de mercado: A Constituição declara que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Que significa isso? Em primeiro lugar quer dizer precisamente que a Constituição consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista 55. Entendendo a livre-iniciativa como uma liberdade concernente ao cidadão, com a negativa da atuação estatal, André Ramos Tavares segue linha semelhante aos demais, quando afirma que ―o postulado da livre-iniciativa, portanto, tem uma conotação normativa positivada, significando a liberdade garantida a qualquer cidadão, e uma outra conotação que assume viés negativo, impondo a não-intervenção estatal [...]‖56. As posições acima pontuadas são de certo modo limitadas. Isso porque, ao assinalar somente aspectos como liberdade de trabalho e iniciativa privada, tais autores estão a negar a 54 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, 3 v, p. 106. 55 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 788. 56 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 240. 167 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I existência de relação entre livre iniciativa e Estado. É fato que se está em um contexto de economia capitalista e que a livre iniciativa engloba a liberdade privada do cidadão na seara de uma sociedade de mercado. Porém não se há furtar no reconhecimento de que livre iniciativa abrange também a iniciativa do Estado no campo sócio-econômico, com o fito de realizar as tarefas e diretrizes constitucionalmente previstas, que visam à asseguração da dignidade e da justiça social57. Eros Roberto Grau, nesse passo, entende a idéia de livre iniciativa num sentido amplo: ―[...] livre iniciativa não se resume, aí, a ―princípio básico do liberalismo‖ ou a ―liberdade de desenvolvimento da empresa‖ apenas – à liberdade única do comércio, pois. Em outros termos: não se pode visualizar no princípio tão-somente uma afirmação do capitalismo‖58. E segue adiante: ―[...] não se pode atribuir exclusivamente à contemplação constitucional do princípio da livre iniciativa – do seu valor social, repito – a consagração, constitucional, do sistema capitalista [...]‖59. Vê-se que há divergências quanto ao entendimento conceitual sobre a livre-iniciativa, fundamento da ordem econômica. A compreensão desse conceito determina a interpretação e a aplicação das disposições constitucionais subseqüentes. A um turno, há posições que associam a livre-iniciativa à liberdade de trabalho, econômico-produtiva, no contexto de uma sociedade capitalista onde resta ao Estado uma conduta omissiva, negativa, de abstenção. A outro, têm-se posicionamentos pautados pela preocupação com a consecução das tarefas constitucionalmente previstas, ansiadas pela população, em que cabe ao Estado uma iniciativa na seara econômica e social que não pode ser outra senão a da intervenção 60. Defronte às dualidades que permeiam os dispositivos da ordem constitucional econômica e os entendimentos doutrinários acerca do tema, imprescindível o estudo do entendimento do Supremo Tribunal Federal ao se deparar com a composição dicotômica de alguns dos mandamentos do Título VII. 57 Cf. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36-37. 58 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 202. 59 Ibid., p. 208. 60 Aqui, ―intervenção‖ não tem maiores pretensões ideológicas, sendo somente sinônimo de ―atuação‖ do Estado, do mesmo modo que faz Gilberto Bercovici. Cf. BERCOVICI, Gilberto. O ainda indispensável direito econômico. In: BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita; BERCOVICI, Gilberto; MELO, Claudineu de. Direitos humanos, democracia e república: homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 504, nota 3. 168 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 3 A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL61 A Associação Brasileira das Empresas de Distribuição – ABRAED propôs a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 46, questionando a recepção da lei nº 6538 de 1978, que estabeleceu a exclusividade da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT no que concerne às atividades postais. Seu argumento era substancialmente o de que, além de o serviço postal não ser serviço público, configurando atividade econômica e, assim, fora do espaço de atuação do Estado, tratava-se de um regime de monopólio, que, por sua vez, não se coadunava com os mandamentos constitucionais da livre iniciativa, livre concorrência e iniciativa privada, levantando, portanto, à não recepção da referida lei pela Constituição Federal de 1988. A ECT sustentou que a lei 6538/78 havia sido recepcionada pela Constituição, uma vez que, de acordo com os arts. 21, X, e 22, V, da Carta, a União tem competência para legislar sobre serviço postal. Desse modo, pelo inscrito no texto constitucional, serviço postal é serviço público, devendo o Estado prestá-lo na conformidade da legislação pertinente, isto é, a partir do que ordena a lei impugnada pela ABRAER. Já que essa lei lega à ECT a exclusividade na prestação do serviço postal, tal monopólio é plenamente constitucional, no que implica na recepção da lei em comento pela atual Constituição. a. O Ministro Relator, Marco Aurélio, em seu voto, desenvolve um raciocínio que se presta a criticar o Estado interventor, imputando ao mesmo incompetência e ineficiência na sua atuação. O Ministro sustenta que a ordem constitucional consagra a livre iniciativa e liberdade econômica como valores. Assim, a atuação do Estado deve se dar de modo subsidiário, quando houver motivação relacionada à segurança nacional ou por fator significativo de interesse público, garantindo condições para o crescimento econômico e igualdade de oportunidades. O princípio da livre iniciativa indicaria, então, que a atuação do Estado na seara econômica somente deve ocorrer para corrigir imperfeições que o mercado não pôde por si sanar: Se em certa sociedade o Estado prega o dirigismo econômico, mais e mais atividades serão realizadas sob as mãos do Estado e alçadas à condição de serviço público. Ao contrário, se exorta a livre iniciativa e a liberdade econômica, a regra é que os particulares desenvolvam tais atividades livremente, desde que atendam à disciplina própria para cada setor da economia, atuando o Poder Público apenas de maneira subsidiária, quando imprescindível por imperativo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo – artigo 173 da Constituição em vigor. 61 Seguiu-se, nesse item, uma linha expositiva semelhante à percorrida por: LANE, Pedro. STF: decisões políticoideológicas nos casos de intervenção do Estado no domínio econômico. Monografia (Escola de Formação). Sociedade Brasileira de Direito Público, São Paulo, 2006, p. 18-28. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/85_Pedro-VersaoMarco2007.pdf>; Acesso em: 13 set. 2009. 169 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Posto que o monopólio de uma atividade considerada econômica não deve ser pertinente à atuação do Estado, que só age nesse domínio em casos excepcionais e subsidiariamente, uma lei que prescreve tal exclusividade não se harmoniza com os fundamentos ordenadores não só da ordem econômica (art. 170 e seguintes), mas sobretudo da própria República (art. 1º, IV). Nessa linha, não merece, segundo o Ministro Marco Aurélio, a lei nº 6538 de 1978 ser recepcionada pela Constituição Federal de 1988. b. O Ministro Eros Grau, em seu voto, pontua esquematicamente, acolhendo ao fundamentos da tese veiculada pela parte argüida, que serviço postal não consubstancia atividade econômica, pois se trata de serviço público. Não tem sentido, pois, a argumentação da argüente que traz à baila ferimento aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência: [...]o serviço postal é serviço público. Portanto, a premissa de que parte a argüente é equívoca. O serviço postal não consubstancia atividade econômica em sentido estrito, a ser explorada pela empresa privada. Por isso é que a argumentação em torno da livre iniciativa e da livre concorrência acaba caindo no vazio, perde o sentido. A Constituição traça objetivos e fundamentos em relação aos quais, para alcançá-los, é impossível um Estado com atuação subsidiária. Na consecução dos fundamentos da República, arrolados no art. 3º, calha um Estado que tenha papel significativo no âmbito social e econômico, para dar cumprimento às tarefas constitucionalmente previstas. Nesse passo, para o Ministro Eros Grau, uma concepção de Estado diminuto não é capaz de dar implemento ao que é colocado na Carta, de modo que tal posição não tem compatibilidade com a Constituição. Seu voto foi no sentido da total improcedência da argüição proposta pela ABRAED, no que foi acompanhado pela maioria dos ministros, que decidiram pela recepção da lei questionado e conseqüente manutenção do monopólio dos serviços postais pela ECT. Da análise dos votos em torno dos quais se agruparam os posicionamentos majoritários dos ministros, é possível ver dois eixos interpretativos acerca da ordem econômica na Constituição, bem como do papel do Estado nessa seara. Por um lado, há um posicionamento que entende como mais adequada uma atuação estatal voltada para subsidiar a atividade econômica privada, implicando uma concepção do fundamento da livre-iniciativa plenamente ligada à tradição liberal, relacionada ao sistema capitalista de produção. Por outro, há um posicionamento que reconhece que a atuação do Estado no domínio econômico é não apenas importante, mas imprescindível na consecução dos fins advindos do texto de 1988. Tal concepção dá por conseqüência um conceito distinto de livre iniciativa, em que esta é vista também a partir da iniciativa do Estado em implementar os mandamentos constitucionais. Essa posição se intenta pautada por uma visão não apartada da Constituição, sob a qual se vê a ordem econômica relacionada aos fundamentos e objetivos escolhidos pelo povo e inscritos na Carta. 170 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 4 CONCLUSÃO A paradoxalidade entre dispositivos e entendimentos no contexto da Constituição Federal corrobora para a idéia de ironia ora trabalhada no presente estudo. A negatividade da ironização absoluta das condutas pode conduzir à inversão e profanação da realidade constitucional. As conseqüências disso podem ser significativamente danosas à ordem democrática optada pelo país, o que conduz a uma situação em que a falta de fé na estrutura constitucional determina uma zona anômica de indiferença entre o direito e o não direito62. Ao órgão que cumpre a guarda da Constituição, o STF, impõe-se um entendimento que se harmonize com a unidade constitucional e seus princípios informadores. Se esses princípios (CF, Título I) caminham no sentido da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, onde ao Estado subsiste o dever de proteger e implementar as garantias constitucionalmente previstas, deve esse órgão mediar as contradições e ironias presentes no bojo da ordem normativa constitucional e, mais especificamente, no domínio da ordem econômicoconstitucional, em vista desses fundamentos. A análise do acórdão estudado mostrou, pela posição do voto majoritário, que a Corte caminha no sentido de ―desproblematizar‖ a ironização dos dispositivos contrapostos na ordem econômica constitucional em homenagem à unidade que dá forma à Constituição pelos princípios fundamentais da Carta. Assim, o Supremo Tribunal Federal, ao se deparar com os conflitos que envolvem os dispositivos de sinais inversos na ordem econômica, possuidores de ironia, deve decidir em conformidade com os fundamentos que delineiam a Constituição, com o fito de não se permitir chegar à zona indeterminada de resultado vazio característica da ironia. É preciso uma deliberação e um juízo que não dêem margem para a anomia da ironização. E o melhor caminho para tal é a decisão coadunada com os princípios da República. Nesse passo, não há dúvidas de que, ante a este cenário, o Supremo Tribunal Federal figura como personagem imprescindível aos desafios de construção de uma ordem constitucional democrática. 62 Sobre o tema, cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004; Means without end: notes on politics. Tradução de Vincenzo Binetti e Cesare Casarino. Minneapolis: University of Minnesota, 2000; Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Tradução de Daniel Heller-Roazen. Stanford: Stanford University, 1998. Ver também: ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 45-47; CORVAL, Paulo Roberto dos Santos. Teoria constitucional e exceção permanente: uma categoria para a teoria constitucional no século XXI. Curitiba: Juruá, 2009, p. 57-151; FIGUEIREDO, Ivanilda. 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O direito de propriedade e sua função social. 2.1 Fragmentos históricos acerca do direto de propriedade. 2.2 O direito de propriedade e sua função social na Constituição Federal de 1988. 3. Há diálogos possíveis entre o direito à propriedade funcionalizada e o direito a terra demandado pelos movimentos sociais? 4. Conclusão. RESUMO O presente artigo objetiva compreender e explicitar concepções de movimentos sociais organizados em torno do direito a terra urbana e rural, por meio do relato de experiências e percepções de advogados(as) populares que atuam junto a esses movimentos, a fim de investigar como se dá a relação entre essas concepções e a normatização estatal brasileira do direito de propriedade funcionalizada. Constituíram-se como caminhos investigativos: realização de entrevistas semi-estruturadas com advogados(as) da Rede Nacional de Advogados Populares no Ceará (RENAP-CE); leitura bibliográfica; análise da decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2213 (ADI 2213-MC); e análise crítica na leitura dos dados bibliográficos e empíricos levantados. Os principais resultados apontam que os conflitos no Brasil em torno do direito à terra urbana e rural ainda encontram suas raízes nos fundamentos do direito de propriedade compreendido em seu viés absoluto (direito em benefício exclusivo do seu titular); ou, quando funcionalizada, entendida quase que exclusivamente em uma perspectiva produtivista e mercadológica. Neste cenário, os novos movimentos sociais propõem e reivindicam (re)interpretações e outros sentidos a esse direito e fundam percepções confluentes acerca da significância de uma função social da terra, 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC. Bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Atualmente, pesquisa sobre direitos territoriais dos povos indígenas, interculturalidade e pluralismo jurídico. E-mail: [email protected]. 2 Mestranda da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atualmente pesquisa a atuação de advogados(as) populares na concretização do direito a terra. E-mail: [email protected]. 175 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I muitas vezes descolada de um viés produtivista e mercadológico, as quais ora encontram aporte na CF/88 e em outras normatizações infra-constitucionais, ora levam a lutar por direitos ainda não reconhecidos pelo Estado (na legislação ou na dimensão da aplicação e interpretação do direito). Palavras-chave: Função social. Direito a terra. Direito a propriedade. Advogados populares. Novos movimentos sociais. ABSTRACT This article aims to understand and explain concepts of social movements organized around the right to urban and rural land, by reporting the perceptions of lawyers that work with these movements in order to investigate how the relationship between these concepts and norms of the Brazilian state-owned property right functionalized. Established as investigative paths: production of semi-structured interviews with popular lawyers form the National Network of Popular Lawyers in Ceará (RENAP-CE), reading literature, analysis of the decision of the Supreme Court in Action Unconstitutionality 2213 (ADI 2213-MC), and critical analysis in reading the bibliographic and empirical data. The main findings indicate that the conflicts in Brazil over the right to urban and rural land still have their roots in the fundamentals of property rights beyond their absolute bias (right to the exclusive benefit of its owner), or when functionalized, understood almost exclusively on a production and market perspective. In this scenario, the new social movements claim to offer, and (re) interpretations and other senses to that right and merge confluent perceptions about the significance of a social function of land, often detached from a productivism and market bias, which are now input in CF/88 and other infra-constitutional norms, now lead to fight for rights not yet recognized by the state (the law or the size of the application and interpretation of law). Key-words: Social function. Right to land. Property Law. Popular lawyers. New social movements. INTRODUÇÃO A partir do século XX, com as Constituições Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919, o direito de propriedade foi adquirindo contornos diferenciados do conceito previsto na 176 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e no Código de Napoleão de 1804. De um conceito absoluto, sacralizado e a-histórico de propriedade, passou-se a compreender que o direito de propriedade deve ser exercido de acordo com os interesses sociais, pois, assim, ―a propriedade obriga‖. A Constituição Brasileira de 1988 (CF/1988), atenta ao paradigma da funcionalidade, previu em diversos dispositivos a função social da propriedade ou o direito de propriedade funcionalizado. Exemplificativamente, citam-se os artigos 5º, XXIII; 170, III; 182, § 2º; 184; todos da CF/1988. Não obstante essa previsão constitucional, os conflitos no Brasil em torno do direito à terra urbana e rural ainda encontram suas raízes nos fundamentos do direito de propriedade, compreendida pelo seu viés absoluto, um direito posto em benefício exclusivo do seu titular; ou, quando funcionalizada, entendida exclusivamente em uma perspectiva produtivista e mercadológico. Neste cenário, os novos movimentos sociais propõem e reivindicam (re)interpretações e outros sentidos a esse direito, tecendo lógicas em seus cotidianos e em suas ações políticas as quais permeiam o campo da função social da terra. O presente artigo, sendo resultado inicial de uma pesquisa sócio-jurídica, objetiva compreender e explicitar as concepções de movimentos sociais organizados em torno do direito a terra urbana e rural e da concretização de uma função social da terra, por meio do relato de experiências e percepções de advogados(as) populares que atuam junto a esses movimentos, a fim de investigar como se dá a relação entre essas concepções e a normatização estatal brasileira do direito de propriedade funcionalizada. Os caminhos investigativos, para tanto, utilizaram-se das metodologias seguintes: realização de entrevistas semi-estruturadas com advogados(as) da Rede Nacional de Advogados Populares no Ceará (RENAP-CE) que trabalham em torno do direito a terra rural e urbana; leitura bibliográfica de teorias relacionadas com a temática vertente; e, sob o prisma empírico, análise da decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2213 (ADI 2213-MC), Rel. Min. Celso de Mello, buscando confrontála com as diretrizes teóricas evidenciadas sob o aspecto anterior. No primeiro capítulo faz-se um estudo sobre as entrevistas coletadas junto aos(às) advogados(as) populares da Rede Nacional de Advogados Populares no Ceará que atuam como assessores jurídicos de movimentos sociais organizados em torno do direito a terra. Essas entrevistas versaram sobre a compreensão desses(as) advogados(as) acerca do direito de 177 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I propriedade a partir de sua atuação junto a esses movimentos e como percebem a significância do direito de propriedade para esses movimentos. O capítulo segundo analisa o direito de propriedade e sua função social, inicialmente, em uma breve análise histórica do direito de propriedade a fim de se compreender os contextos que levaram esse direito a adquirir uma função social contraposta ao caráter absoluto e ahistórico propagado pelas revoluções burguesas ocidentais. Após, explicita aspectos do direito de propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, dando maior enfoque ao direito de propriedade e sua função social, buscando demonstrar os mais variados sentidos que vem sendo dado a essa função, onde se faz uma análise da decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2213 (ADI 2213-MC) como decisão-paradigma na compreensão do Sistema Judiciário Brasileiro acerca da função social da propriedade. Por fim, o último capítulo busca trazer algumas reflexões a partir da pergunta seguinte: há diálogos possíveis entre as demandas dos movimentos sociais organizados em torno do direito a terra e o ordenamento jurídico brasileiro? Encontrando-se tal pesquisa em seu princípio3, os resultados e conclusões alcançados têm um caráter inicial e não conclusivo, apresentando-se como os primeiros passos investigativos das autoras na busca pela compreensão das percepções de movimentos organizados acerca do direito a terra; e da significância, alcances e limites de uma função social da terra. 1 O OLHAR DE ADVOGADOS(AS) POPULARES ACERCA DO DIREITO A TERRA A terra, como espaço de morada e desenvolvimento; provedora de recursos naturais e alimentação; território tradicional ou étnico; local de sustentabilidade e trabalho; e meioambiente, convive com a terra como produtora de bens agrícolas e locais de vultosos empreendimentos empresariais. Em meio a isto há a necessidade de desenvolvimento econômico e de produção agrícola e de recursos naturais que possam garantir uma sustentabilidade econômica e social, o 3 Esta pesquisa empírica tem caráter inicial de levantamento de dados e faz parte da pesquisa de dissertação iniciada em setembro de 2009, com perspectiva de encerrar-se em setembro de 2010, desenvolvida pela mestranda Martha Priscylla Monteiro Joca Martins acerca da atuação de advogados(as) populares na concretização do direito a terra, ligada ao Projeto de Pesquisa Novas Perspectivas para um Velho Direito: a propriedade e o meio ambiente, financiado pelo CNPq, desenvolvido pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob a orientação do Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias. A mestranda Luciana Nogueira Nóbrega desenvolve pesquisa de dissertação sob o título: ―Auto-determinação ou livre determinação? Protegendo os direitos dos indígenas brasileiros‖ sob a orientação da Profa. Dra. Ana Maria D'Ávila Lopes, desenvolvendo, dentro desse tema, pesquisas acerca de direitos indígenas e sua relação com a terra e seu território. 178 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I qual pode ser concebido em um viés capitalista de produção, ou em uma perspectiva solidária e coletiva (como a agricultura familiar desenvolvida em assentamentos ou a valorização de conhecimentos étnicos e tradicionais acerca dos recursos naturais). Nesse cenário, conflitos em torno do direito a terra, compreendido como direito tradicional e ancestral a um território e como acesso à moradia, alimentação e fruição pelo trabalho, ocorrem em meio aos espaços urbanos e rurais no Brasil, por contrapor-se à concentração de títulos de propriedade em pequenos grupos os quais utilizam a terra em uma perspectiva produtivista e mercadológica, como empresas de agronegócios, empreendimentos imobiliários e turísticos excludentes à maioria da população, ou vazios urbanos e rurais a serviço da especulação de preços. Movimentos4 e grupos sociais, não-homogêneos em suas crenças, valores e lutas pela terra, reivindicam novas relações políticas, sociais e culturais que permitam a fruição de seus direitos. Os movimentos urbanos reivindicam acesso à moradia e a democratização dos espaços urbanos bem como o direito à cidade; os movimentos ligados ao acesso a terra rural (como os sem-terra) lutam pelo uso da terra e da fruição desta pelo trabalho como fonte legitimadora de pertencimento da terra; os movimentos tradicionais (como os quilombolas), em uma relação de ancestralidade com um território, reivindicam o título legítimo de suas terras tradicionalmente ocupadas; e os indígenas, que tem com a terra uma relação de espaço vital, de desenvolvimento e de reconhecimento de sua própria identidade étnica, reivindicam, entre outras questões, a demarcação de seu território. Contudo, tais diferenças parecem confluir em um ponto essencial: o questionamento da propriedade como direito absoluto e exclusivo advindo de um título e a reivindicação do 4 Esses movimentos, conhecidos como novos movimentos sociais, surgidos nas décadas de 1980 e 1990, apresentam proposições diversas caracterizando-se por reivindicações não exclusivamente classistas e materiais nos diversos planos de existência humana (político, econômico, cultural), ou, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos ―a novidade maior dos NMSs [novos movimentos sociais] residem em que constituem tanto uma crítica da regulação social capitalista, como uma crítica da emancipação social socialista tal como ela foi definida pelo marxismo. Ao identificar novas formas de opressão que extravasam das relações de produção e nem sequer são específicas delas, como [...] a poluição [...] e o produtivismo, e ao advogar um novo paradigma social menos assente na riqueza e no bem-estar material do que na cultura e na qualidade de vida, os NMSs denunciam, com uma radicalidade sem precedentes, os excessos da regulação da modernidade‖. SANTOS, Boaventura de Sousa de. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5ª Ed. São Paulo: Cortez, 1999, p. 258. Antonio Carlos Wolkmer destaca que esses novos movimentos atuam como sujeitos coletivos de direitos e fonte de produção jurídica em sua obra WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Omega, 2001, p. 121-139, 151-158. Para aprofundar-se sobre o tema, vide também: SCHERER, Ilse; KRISCHKE, Warren e Paulo J. (orgs). Uma Revolução no Cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987. SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. 2ª Ed. São Paulo: Loyola, 1993. Sobre importantes pesquisas acerca de novos movimentos sociais organizados em torno do direito a terra, ver em: STEFANIAK, Jeaneth Nunes. Propriedade e Função Social: perspectivas do ordenamento jurídico e do MST. Ponta Grossa: UEPG, 2003, p. 87-99. GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José. Roceiros, camponeses e garimpeiros quilombolas na escravidão e na pósemancipação. In: STARLING, Heloisa Maria Gurgel; RODRIGUES, Henrique Estrada; TELLES, Marcela (orgs.). Utopias Agrárias. Belo Horizonte: UFMG, 2008. 179 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I direito a terra em outras dimensões políticas, sociais, culturais e econômicas, para além da terra como produtora e como mercadoria. Nesse ponto demandam-se outras interpretações, aplicações e compreensões jurídicas em torno do direito de propriedade. Esses grupos e movimentos são assessorados por advogados(as) populares, os(as) quais desenvolvem paradigmas, percepções e estratégias jurídicas que possam viabilizar e concretizar as demandas desses movimentos5. A fim de buscar uma melhor compreensão acerca das proposições de grupos e movimentos sociais no Ceará em torno do direito a terra realizou-se entrevistas semiestruturadas com advogados(as) populares da Rede Nacional de Advogados Populares no Ceará (RENAP-CE), no período entre 21 e 25 de setembro de 2009, na cidade de Fortaleza, Ceará. Foram entrevistados seis advogados(as), escolhidos por possuírem, cada um deles(as), atuação em diversos movimentos: no meio urbano e no meio rural e litorânea (junto a trabalhadores sem-terra, populações tradicionais, povos indígenas, populações nômades, dentre outros), e por terem trabalhado em escritórios e movimentos de referência no Ceará em torno do direito a terra, como o Movimento dos Sem-Terra, o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), e o Movimento dos Povos Indígenas no Ceará. As entrevistas semi-estruturadas versaram em torno de duas perguntas principais: 1. o que você compreende como direito de propriedade?; 2. como os movimentos e grupos que você assessora percebem o direito de propriedade?. As respostas a primeira pergunta expressaram percepções comuns: 1. Na definição do direito de propriedade aparece o título e o elemento da exclusividade como sendo substancial a esse direito: 5 Para aprofundar-se sobre a Advocacia Popular no Brasil vide LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. MAIA, Christianny Diógenes. Assessoria Jurídica Popular: teoria e prática emancipatória. Dissertação – UFC/Fortaleza, Ceará. 2006. RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação – UFSC, Santa Catarina. 2009. A fim de consultar referências bibliográficas acerca da advocacia popular e assessoria jurídica popular, ver em: JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Los abogados populares: em busca de uma identidad. In: Instituto Latino Americano de Services Legales Alternativos (ILSA), Pluralismo Jurídico y Alternatividad Judicial, El Outro Derecho, ILSA: Bogotá, Colômbia, 2002, p. 193-227. CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel. Discutindo a Assessoria Jurídica Popular. Coleção Seminários n° 15. Apoio Jurídico Popular/FASE, Rio de Janeiro, 1991. PRESSBURGER, Miguel (org). Discutindo a Assessoria Jurídica Popular II.Rio de Janeiro, 1992. SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Função Social do Advogado. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org). Introdução Crítica ao Direito: série o direito achado na rua. 4ª Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1993, p. 127-130. 180 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I É o título, ter o domínio, não necessariamente ter o contato com a terra urbana ou rural6. O direito de propriedade é um direito de exclusividade7. É [...] o direito exclusivo a determinado pedaço de terra que afasta a comunidade do acesso ao solo. Essa exclusividade gera escassez fictícia, pois há terra para todos. O direito de propriedade é o de exclusão que impede os demais de terem acesso a terra. Usar, gozar e dispor não define o direito, o que marca a propriedade é a exclusividade, é a falta de solidariedade8. Do lado de quem se assessora o conceito de proprietário é diferente do código civil 9. 2. Os(as) advogados(as) associam a propriedade a relações econômicas, sociais e de poder desiguais: A propriedade privada é o fundamento da sociedade, a sociedade capitalista é fundada na exploração10. É fruto de uma estrutura de poder. O poder sempre foi para interesse de grupos particulares e não coletivos, esse poder faz aumentar as desigualdades 11. 3. Ressaltam a importância de se associar os interesses individuais e coletivos e as dificuldades em torno disso: Tive que enfrentar os dilemas em torno desse tema quando estive nas assessorias do EFTA e do MST [...]. Tive que compatibilizar, por exemplo, os referenciais teóricos [do Direito] com algumas frases muito fortes no MST: ‗malditas sejam todas as cercas‘ ou com frases e falas dos movimentos sociais urbanos: ‗a terra é de Deus, o homem só a cercou‘. Aí ficava essa coisa pouco esclarecida: como equilibrar de um lado a irrealidade que significa o apoderamento de uma coisa com a ficção das mais abstratas e irreais que é a propriedade? [...]. Essa irrealidade não pode ser tão profundamente protegida que suplante outros direitos. Por outro lado a reivindicação dos movimentos é para entrar no mundo dos proprietários. O problema é a propriedade ou a concentração? Como se compatibiliza? Como se faz gestão compartilhada, que é uma visão mais progressista? 12. É característica do direito de propriedade no Brasil a exacerbação do direito de propriedade como absoluto e o trato que o Judiciário dá a isso. Também não se pode fazer um debate extremamente coletivista. Como co-existe o direito de propriedade com a sua função social? 13. 4. Colocam a posse como um instituto jurídico que mais se aproxima da realidade dos movimentos sociais: Nos casos de ocupação da terra elas [as comunidades] associam o direito de propriedade a quem tem poder econômico, proprietário é quem tem poder. 6 Maria de Lourdes Vieira Ferreira, advogada do Movimento Indígena no Ceará e do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA) que tem como ―foco principal [...] o atendimento judicial (em causas civis e criminais) e extrajudicial à população carente, em causas como conflitos por terra na cidade e no campo; a luta pela moradia [...] entre outras‖ informação colhida em < http://www.al.ce.gov.br/freitito/texto.php?tabela=textos_freitito&codigo=1>, acesso em: 17 jan. 2010. 7 Jairo Rocha Ximenes Ponte, Mestrando em Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tendo atuado como assessor jurídico no Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), no Movimento dos Sem-Terra no Ceará e no Movimento Indígena no Ceará. 8 Henrique Botelho Frota, Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará, Assessor Jurídico de Movimentos Urbanos organizados pelo acesso e democratização da terra em Fortaleza (Ceará). 9 Francisco Cláudio Oliveira Silva Filho, Advogado do Movimento dos Sem-Terra no Ceará e do Instituto Terramar (organização não-governamental que atua na Zona Costeira do Ceará junto a Povos do Mar do Ceará). 10 Francisco Cláudio Oliveira Silva Filho. 11 Rodrigo de Medeiros Silva, advogado que atua junto ao Movimento Indígena no Ceará e ao Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará (FDZCC), ―uma organização que busca a consolidação de modelos de desenvolvimento sustentável, do respeito à vida dos Povos do Mar e da preservação dos biomas costeiros em que vivem as comunidades litorâneas‖ (informação colhida em <http://www.oktiva.net/oktiva.net/1275/secao/3319>, acesso em: 17 jan. 2009). 12 Jairo Rocha Ximenes Ponte. 13 Márcio Alan Menezes Moreira, advogado do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar. 181 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Na comunidade a maior preocupação não é com o direito de propriedade, a principal preocupação não é com o que está regulamentado, para ela só tem direito de propriedade quem o adquire por meio normal, elas não identificam como tendo esse direito de alguma forma (usucapião, concessão). Existe um grande tensionamento por parte de quem trabalha com assessoria jurídica: em relação à posse, a função social, a posse como algo que necessita de proteção, como dar segurança, garantir a posse é mais importante que garantir o direito de propriedade14.Na última ocupação do MST, em Caucaia15 (de 80 família), a fazenda foi declarada improdutiva há 5 anos pelo INCRA (após vistoria) [...]. [cita Súmula do STJ16 e a diferente posição do STF17]. A função conservadora do Direito conseguiu normatizar que a área ocupada não pode ser vistoriada por 2 anos, o que tem a intenção de inibir ocupação de terras. Ano passado foi ocupada uma fazenda de 2000 hectares, de fruticultura, que era improdutiva, o MST ocupou os galpões e eles suspenderam a desapropriação, acredito que por fraude no processo, o dono comprovou que na fazenda era criado gado. É muito fácil fraudar, pois basta juntar comprovante de vacina, a qual pode ser comprada sem dificuldades e, como se recebe o aviso de vistoria 3 dias antes o proprietário faz remanejamento de gado antes da vistoria. Hoje essa é uma das maiores fazendas de arroz do Município de Jaguaribara18 [voltada a exportação]. Voltando ao caso de Caucaia. Em 2004 a fazenda foi avaliada pelo INCRA como improdutiva, a qualidade do solo era ruim e o agrônomo a julgou inviável para o assentamento. A fazenda continuou improdutiva. É preciso criar o entendimento de que a ocupação é legítima, as famílias passam por situações extremas. A desobediência civil (de acordo com Geovani Tavares) pode se dar pela ausência de cumprimento dos direitos pelo Estado e pela necessidade extrema das famílias. Mais uma vez retornando ao caso, mesmo após a declaração de improdutividade as famílias ocuparam a fazenda e a juíza da 3ª Vara, após o proprietário ter juntado como documento para a reintegração de posse apenas o laudo do INCRA (de 2004) e a matrícula do imóvel, deferiu a liminar sem ouvir a outra parte. A defesa da posse nessa ação passa pela pré-compreensão de que o possuidor é o proprietário, entendo que tem que se defender primeiro quem está na posse. Pois bem, a juíza deferiu a liminar do auge do gabinete dela, uma pessoa que é tão distante da realidade, baseada em preconceitos que entendem que o MST é um movimento que é contra propriedade privada19. 5. Ressaltam os avanços a partir da constitucionalização da função social da propriedade e suas limitações: É querido que, em uma visão ideal, a função esteja incorporada como elemento estruturador, se estiver presente o direito de propriedade existe, se não estiver [presente a função social] o direito de propriedade não existe, mas acho que essa não é a posição do ordenamento jurídico. Pois, se fosse, sem ensejar desapropriação, imóvel seria considerado vago pela simples falta de função. O artigo 182 da CF e o estatuto instituem que com a desapropriação há indenização, e, ainda que a reconheça menos vantajosa do que a indenização por interesse social, mas, ainda assim, há indenização e quando indeniza se reconhece algum direito e esse direito é a propriedade. Hoje a função sócio-ambiental estabeleceu um feixe de obrigações que se deve cumprir em respeito ao direito de propriedade, esse direito deixa de ser simplesmente um direito subjetivo, pois o ordenamento estabeleceu obrigações, mas não aboliu a propriedade em caso de não cumprimento. [...]. A fiscalização com base no direito em si (como não-escravização, por exemplo), mas também com base na função social da propriedade não é tudo, mas já traz força extra 20. 14 Márcio Alan Menezes Moreira. Município do Ceará. 16 Súmula 354 : "A invasão do imóvel é causa de suspensão do processo expropriatório para fins de reforma agrária." 17 Vide análise da decisão em Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2213 do Supremo Tribunal Federal no presente artigo. 18 Município do Ceará. 19 Francisco Cláudio Oliveira Silva Filho. 20 Henrique Botelho Frota. 15 182 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Em resposta a segunda pergunta, os(as) advogados(as) partem da observação de que a pluralidade dos movimentos expressa diversas percepções destes em torno da propriedade e do acesso a terra urbana e rural. Para as comunidades urbanas há o interesse da regularização de sua situação (em geral de ocupação de terras urbanas e construções precárias) ou do acesso a moradia. Há, no seio desse movimento, discussões de cunho mais coletivista, como a efetivação de usucapiões coletivos ou a gestão compartilhada das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS): A grande luta é a moradia, esta por muito e muito tempo foi associada à propriedade (casa própria). O essencial (embutido pela mídia e pelas políticas públicas) é o acesso a terra pela regularização fundiária (propriedade). [...]. Lideranças, dirigentes, presidentes de federação tem a mesma visão dos moradores mais a percepção política que identifica na propriedade exclusão na cidade. Tentam desvincular a propriedade da moradia, são sujeitos em conflito, ao mesmo tempo em que também são moradores, lutaram pela casa própria, mas perceberam que lutar contra a propriedade privada é lutar contra a segregação nas cidades. No Fórum Nacional de Reformas Urbanas existem [Organizações NãoGovernamentais] ONG‘s e entidades acadêmicas que trazem uma reflexão de fundo sobre capitalismo e outros assuntos que não estão no dia-a-dia dos movimentos. Esse Fórum defende essa idéia [lutar contra a propriedade privada é lutar contra a segregação nas cidades]. Os movimentos reconheceram esse posicionamento. No último boletim do Fórum há a defesa da posição de que não adianta construir habitações se o Poder Público não interferir no acesso ao solo urbano. Tudo é submetido a um mercado, para as pessoas pobres as construtoras escolhem terrenos mais baratos (a periferia da periferia), sem infra-estrutura, qualidade ambiental não boa, sem oferta de empregos. De nada adianta estimular produção de moradias por si só se não provocar a inversão dessa lógica, o mercado não pode ditar a localização dessas obras (conjuntos habitacionais)21. Há o estímulo à propriedade coletiva nos movimentos sociais, e isso é uma discussão muito incipiente nos movimentos, isso necessita de muita organização e convencimento, nem todo mundo quer, se reproduz a lógica da propriedade privada. Na Terra Prometida22, por exemplo, os títulos oriundos da sentença serão individuais, faltou uma organização comunitária para discutir alternativas de gestão coletiva. Como nas ZEIS, em que há um conselho gestor, o indivíduo tem o direito de propriedade, mas não vai poder fazer tudo (vender para um supermercado, por exemplo), pois o conselho não o permitirá fazer tudo. Pode haver também uma concessão especial de uso (de imóvel público), uma concessão do poder público para fins de moradia. Podem-se trabalhar algumas disposições na cidade: o usucapião coletivo em que tudo vira condomínio, o que passar pela propriedade individual tem que ser discutido na coletividade; a concessão (perpétua) para morar em um conjunto habitacional, para não transformar o imóvel em mercadoria. [...] é complexo pensar como se dá essas limitações, como dizer para o indivíduo que não pode vender sua casa?23 Os movimentos de trabalhadores rurais sem-terra, como o Movimento Sem-Terra 21 Henrique Botelho Frota. Comunidade de Fortaleza em que houve forte organização e participação popular no processo político e jurídico de regularização fundiária daquela comunidade. Para maiores informações sobre o caso vide: Núcleo de Habitação e Meio Ambiente (Nuhab). Tais Loureiro (sistematizadora). A Participação Popular no Processo de Regularização Fundiária da Terra Prometida. Fortaleza: Impressão Gráfica, 2007; Abreu Neto, Francisco Filomeno de; Souza; Maria Ângela de Almeida. A Coexistência de Direitos no Contexto da Informalidade Urbana: o caso de Fortaleza. Disponível em: <http://www.invi.uchile.cl/derechociudad/ponencias/Jornada/Panel/8.DeAbrau, DeAlmeida.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2010; MAIA, Christianny Diógenes. Assessoria Jurídica Popular: teoria e prática emancipatória. Dissertação (Mestrado em Direito) – UFC/Fortaleza, Ceará. 2006, p. 124-130. 23 Márcio Alan Menezes Moreira. 22 183 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I (MST), organizam-se pelo acesso a terra. Ainda que haja diferença de discursos entre os trabalhadores da terra em geral e aqueles que militam mais diretamente nesses movimentos, hoje se vem buscando não a simples reforma agrária e a regularização do título de propriedade e sim formas de acesso a terra improdutiva ou a grandes concentrações fundiárias, objetivando o uso da terra como meio de morada, alimentação e trabalho, com o estímulo a formas de agricultura familiar e coletiva: Uma coisa é a estratégia, o programa, a pauta do MST. Agora, o que leva uma pessoa pai/mãe de família que passou 30, 40 anos em situação de subordinação no campo a ocupar uma fazenda com seus 4 ou 5 filhos? A pessoa quer propriedade, é uma nãoproprietária e quer a propriedade. O que move em última instância as lutas é a necessidade de vida. O MST tem uma função pedagógica: ―quando chegar a terra lembre-se de quem quer chegar‖. A luta pela reforma agrária começa com a luta individual, mas ela não tem que se encerrar nisso. Há três concepções de reforma agrária: 1. O tipo clássica: reforma que os capitalistas fizeram, pega grandes propriedades privadas e cria pequenas propriedades, democratiza o acesso a terra, cria pequenos capitalistas e abastece o mercado interno; 2. Reforma atual no Brasil: política de assentamento de famílias, desapropria e assenta famílias, só que não tem fomento de agricultura familiar, recursos hídricos, escoamento de produção para a cidade; 3. Reforma que quer o MST: pegar todas as fazendas improdutivas de acordo com os índices atuais, atualizar os índices de produção na legislação (é de 1978 a legislação sobre produtividade), desapropriar de maneira rápida, distribuir para famílias sem-terra e garantir condições mínimas para essas famílias. Os sem-terra querem ter uma terra. A luta não é pela propriedade da terra (privada). O debate no MST hoje não é mais só pela reforma agrária, vai para além disso, defende que a área desapropriada seja título da União. A gente defende que a área permaneça da União com concessão para as famílias, que o Estado compreenda isso como desenvolvimento nacional, soberania alimentar. O Estado não tem interesse hoje em uma política desenvolvimentista, com o neoliberalismo (anos de 1990, 2000) o que existe hoje são políticas de assentamento de assistência no campo. Houve contingenciamento de 40% do orçamento do INCRA e só foi liberado depois da última luta nacional que teve em Brasília. Nos assentamentos há pouco orçamento para a agricultura familiar, muitas dívidas, dificuldades de negociar e políticas de crédito péssimas. O agronegócio se sustenta por uma boa política de crédito e assistência técnica da [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] EMBRAPA. O agronegócio só foi possível com o desenvolvimento tecnológico da EMBRAPA. O que falta para a gente, que é fundamental, é a presença do Estado.24 No geral [no movimento] há tensionamento para o uso coletivo da terra (mecanização coletiva, lavoura coletiva, cooperativismo, associativismo...). No Ceará 90% é de semi-árido, a falta de água leva as pessoas a se manterem agrupadas em vilas para facilitar a infra-estrutura (água para consumo, poços artesanais) e as áreas de lavoura pode vir a ser loteadas. Alguns assentados podem ter cercados individuais ou criação individual de animais e as criações e produções agrícolas podem ser individuais. Mas a direção tenta incentivar a terra coletiva. [...]. Em Salgado Comprido [assentamento MST] a lavoura coletiva estava abandonada, todo mundo tinha sua rocinha, a partir de uma comoção na comunidade (caso de um rapaz preso) algumas mulheres retomaram a roça coletiva e alguns aderiram, quando estava dando fruto as mulheres disseram isso é nosso, se você quiser aderir no ano que vem pode ser. Após 2 ou 3 anos foi retomada a roça coletiva porque viram que dava fruto. Tem uma função pedagógica no fato de se ter participado do movimento, percebe-se que não estão interessados na propriedade da terra, mas sim na preferência do uso pelo trabalho.25 O movimento indígena e as populações tradicionais tem uma relação com o território, seja pela ancestralidade ou pela identidade étnica. Os(as) advogados(as) destacam que: 24 25 Francisco Cláudio Oliveira Silva Filho. Jairo Rocha Ximenes Ponte. 184 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Como as várias experiências humanas compreendem o que pode ser apropriado... Os povos tradicionais mexicanos do sul não tinham palavra para o direito, inventaram uma palavra que traduzida tradicionalmente significa aquilo que é nosso, uma legitimação tão profunda que algumas coisas não podem ser apropriadas, pelo menos individualmente. Uma castanheira pode ser sua? Quem plantou fui eu, mas quem deixou crescer foi a natureza. Os povos tradicionais (mexicanos) não querem ter uso exclusivo e sim uso preferencial. Eles não querem cercar a sua terra, querem ter autonomia maior e possibilidade do uso da terra em uma perspectiva ancestral, não querem impedir ninguém de ir lá e sim não deixar de estar lá. Na Comunidade do Cumbe26 há um conflito com as usinas eólicas, o acesso, em geral, está fechado com alagados ou dunas e há uma única passagem para se chegar as dunas, sendo que uma empresa comprou as dunas. A área no entorno dos cata-ventos tem que ser isolada e a comunidade não vai mais poder andar nas dunas, e eles ancestralmente andaram naquelas dunas e se perguntam: por que as usinas tinham que ser construídas naquelas dunas? Eles [a comunidade] não têm noção de propriedade e sim de território, o território deles está sendo diminuído. O indígena lida com território (área de preferência) e não com propriedade (área de exclusividade). 27 As comunidades tradicionais não têm a percepção que nós temos, individual, a visão é mais comunitária, entendem que a propriedade serve para o coletivo. No litoral as comunidades são seminômades por causa do movimento das dunas, sabem que o lugar das dunas vai mudar, alguém mais formalista do direito vai dizer que não apresentam nenhum dos requisitos da posse, contudo a comunidade entende a propriedade como algo que pertence a coletividade. Os bens realmente têm que cumprir uma função, para eles não cabe um bem sem função, não entendem o bem de uma forma abstrata, o bem tem que dar algo para a comunidade. Outros podem olhar para isso e achar primitivo, mas isso chega mais perto da constituição, pela função sócio-ambiental, do que a especulação imobiliária. O que é avançado e progressista é uma visão pública e coletiva de propriedade, não privatista. 28 Nessa pluralidade, os movimentos engendram tessituras comuns na construção de percepções confluentes acerca da significância de uma função social da terra, muitas vezes descolada de um viés produtivista e mercadológica. As falas assentes nas entrevistas dos(as) advogados(as), seja ao discorrer sobre percepções próprias ou acerca de sua visão das demandas dos movimentos por eles(as) assessorados destacam que: a) A definição do direito de propriedade aparece ligada a um título e a exclusividade. A propriedade é vista como causa impeditiva de acesso democrático a terra, por servir como meio de manutenção de relações econômicas e sociais baseadas na concentração do capital e de meios de produção em pequenos grupos, e na exclusão da maioria populacional; b)Expressam que a propriedade em um viés puramente produtivista e mercadológico reforça a exclusão e as desigualdades econômicas e sociais, daí buscar-se vias de desenvolverem-se relações coletivas com a terra, na busca 26 Comunidade localizada em Aracati, litoral do Ceará. Para maiores informações sobre o caso vide: <http://movimentoproparque.blogspot.com/2009/09/solidariedade-comunidade-de-cumbe.html>, acesso em: 17 jan. 2010. 27 Jairo Rocha Ximenes Ponte. 28 Rodrigo de Medeiros Silva. 185 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I pela ruptura com essa lógica a qual associam ao sistema capitalista de produção; c) Questionam e buscam meios de se compatibilizar o pertencimento individual e o coletivo da terra. Nesse ponto, suas falas remetem a ressalva de que as pessoas ligadas ao movimento (mais especialmente comunidades urbanas e trabalhadores sem-terra) ainda encontram-se sob a lógica da propriedade privada, e que a coordenação desses movimentos discutem e estimulam o desenvolvimento de meios de efetivar um pertencimento coletivo da terra, tal como o estímulo ao usucapião coletivo, às ZEIS, à agricultura familiar e comunitária. Esse tensionamento (individual versus coletivo) parece não apresentar-se da mesma maneira em outros movimentos, tal como o Indígena, imersos em relações mais comunitárias, cuja reivindicação vai de encontro à demarcação de um território para todo o grupo. No entanto, os(as) advogados(as) não falam em abolição de um sentimento de pertença individual, ressaltando que até entre os povos indígenas há objetos que pertencem a uma determinada pessoa, e sim que os bens que tem uma função coletiva devem ter uma gestão coletiva; d)Ao ressaltarem a posse como instituto jurídico mais próximo das demandas dos movimentos sociais do que a propriedade, destacam a percepção dos grupos sociais não-proprietários de que a propriedade é o título e a terra pertence a quem dela faz uso; e) Expressam que a função social da propriedade presente na Constituição Federal de 1988 representa um avanço e possibilita interpretações mais próximas das demandas dos movimentos sociais, ainda que problematizem a desapropriação com posterior indenização em caso de não cumprimento da função social, por compreenderem que em não sendo efetivada a função social o bem não deveria sequer ser reconhecido como propriedade, e não ensejar nenhuma forma de desapropriação, portanto. Tal pensamento parece fortalecer a compreensão de que ligam a função social (e a necessidade de cumprimento desta) ao bem e não ao título de propriedade desse bem; f) A diversidade dos movimentos sociais parece apresentar alguns elementos comuns, ao vislumbrarem a terra como meio de morada, alimentação, provedora de recursos naturais, meio de trabalho, sendo seu pertencimento legitimado pelo seu uso ou pela relação étnica, tradicional, de ancestralidade 186 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I com determinado grupo social, ligando, igualmente, a função social à terra e não a um título de propriedade. Diversos questionamentos emergem dessas falas, dentre os quais um parece-nos primordial pela relevância para a concretização das demandas desses movimentos: os aspectos desse significado do direito a terra encontram aporte na Constituição Federal de 1988 ou levam-nos a lutar por direitos ainda não reconhecidos pelo Estado, seja enquanto legislação (constitucional ou infra-constitucional), seja enquanto dimensão da aplicação e interpretação do direito? O capítulo seguinte busca elementos que possam dialogar com essa questão. 2 O DIREITO DE PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL 2.1 Fragmentos históricos acerca do direto de propriedade Os estudos sobre a propriedade, o direito de propriedade e a função social, por diversas vezes, fazem referências à história do direito de propriedade, desde os tempos mais longínquos, em uma perspectiva linear, contínua e homogênea. Embora, no presente artigo, iniciemos a análise teórica do direito de propriedade em uma perspectiva histórica, tal retrospectiva tem assento em duas justificativas: uma, porque depois do Código Civil de Napoleão a propriedade ganhou contornos de direito absoluto e eterno, neste sentido recorrer à história reforça a compreensão de que o direito de propriedade é histórico e não absoluto; e a segunda, porque muitas das discussões em torno da aplicação da função social da propriedade na Constituição de Weimar de 1919 parecem ser retomadas nas discussões em torno da função social da propriedade na Constituição Brasileira de 1988. Desse modo recorreremos à história não com intuito de reproduzir o que outros tantos já disseram, mas para utilizá-la como ferramenta hermenêutica em prol de uma interpretação da Constituição Brasileira de 1988 mais condizente com a realidade social. Embora as Revoluções do século XVIII tenham transformado consideravelmente o direito de propriedade, a origem desse direito é bem mais remota, chegando alguns doutrinadores a fundamentar o surgimento do Estado através da instituição da propriedade privada29. O ponto de partida inicial da nossa análise é a tradição romana. Isso porque, no contexto do direito das coisas, o direito de propriedade foi o ramo do direito civil que se 29 Sobre o tema ver DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 55. 187 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I manteve mais fiel à tradição romana e aos princípios individualistas, que lastrearam a história da humanidade por muitos anos. Marcelo Augusto Scudeler justifica a prevalência do direito romano em matéria de direito de propriedade devido ao fato de que [...] muito embora não tenham adotado a terminologia hoje empregada, os romanos lançaram as bases para o seu posterior desenvolvimento. É no sistema romano que surge, de maneira sistematizada, o direito de propriedade, já que as formas originárias da propriedade tinham feições comunitárias. 30 A propriedade em Roma estava compreendida nos direitos inerentes ao pater familias, que podia exercer suas prerrogativas sobre o conjunto de pessoas e bens colocados sobre sua autoridade de forma soberana e ilimitada. Assim, tratava-se de um instituto que fazia parte da constituição da sociedade da época, não podendo ser alterado sem afetar a própria organização social. Diante de tais características, a propriedade em Roma era inatingível por ―pretensões sociais‖. Corroborando com essa assertiva, Fábio Konder Comparato afirma que ―por aí se percebe como seria absurdo falar, no direito antigo, de deveres do cidadão, enquanto proprietário, para com a comunidade‖.31 João Luis Nogueira Matias e Afonso Rocha destacam que Em sua feição inicial, a propriedade (proprietas, dominium) era prevista de forma absoluta, consistindo no direito de usar (jus utendi), gozar (jus fruendi) e abusar (jus abutendi) das coisas, possibilitando ao proprietário destruir a coisa, caso queira. Possuía caráter personalista, oponível a todos, podendo ser assegurada em ação própria no jus civile, que era a rei vindicatio.32 Durante a Idade Média, muitos institutos do Direito Romano foram recepcionados e reelaborados. Por influência do direito canônico, a propriedade aos poucos vai assumindo uma feição menos absoluta, passando a ser entendida como um direito que acarreta deveres. Durante os anos que antecederam a Revolução Francesa, os teóricos do movimento Renascentista e do Iluminismo procuraram desvincular o direito de propriedade de uma dimensão religiosa fundando uma nova ordem, na qual o direito de propriedade era justificado como um direito natural de matriz racional. Imbuídos desse novo paradigma, diversos diplomas normativos consagraram a propriedade como um direito inerente ao indivíduo, a saber, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembléia Nacional francesa em 1789, e o Código 30 SCUDELER, Marcelo Augusto. Patentes e a função social da propriedade industrial. Disponível em <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/Marcelo%20Augusto%20Scudeler.pdf>. Acesso em 10 dez. 2008. 31 COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista do Conselho de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ano I, dezembro de 1997, p. 93. 32 MATIAS, João Luis Nogueira; ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro. Repensando o direito de propriedade (rethinking property rights). Disponível em <http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/manaus/reconst_da_dogmatica_joao_luis_matias_e_afonso_rocha.pdf >. Acesso em 10 dez. 2008. 188 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Napoleônico, de 1804. Em ambos, a noção de propriedade que é coroada é a propriedade liberal, ou seja, baseada na apropriação individual e na vontade interior e natural do indivíduo de ter e preservar o que é seu. Nesse sentido, Gilberto Bercovici escreve que A propriedade liberal é a emanação das potencialidades subjetivas, constituindo instrumento da soberania individual. A grande revolução do conceito de propriedade consagrado no Liberalismo, para Paolo Grossi, foi a interiorização do dominium, ou seja, a descoberta pelo indivíduo de que ele é proprietário. O domínio não necessita mais de condicionamento externo, mas está dentro do indivíduo, é a ele imanente, tornando-se indiscutível, pois se colore de absolutividade.33 Amparados por esses fundamentos, a propriedade consagrada no movimento de codificação foi tida como um direito intrínseco à própria humanidade, atemporal e absoluto, anterior, portanto, ao Estado. Sérgio Said Jr. resume essa concepção, indicando que ―a forte propaganda revolucionária burguesa conseguiu naturalizar o que em realidade é histórico‖.34 Fundado no ideário liberal e individualista estampado no Código Napoleônico, foi elaborado o Código Civil Brasileiro de 1916, o qual, abstendo-se de definir a propriedade, dispôs, no art. 524, caput, sobre os poderes inerentes ao domínio, quais sejam, de usar, gozar e dispor sobre bens determinados, além do direito de reaver a coisa de quem quer que injustamente a possua. Embora não expresso, o direito de propriedade era concebido como o poder absoluto sobre coisa determinada, visando à utilidade exclusiva do seu titular. A propriedade passou, então, a ser o instituto central no âmbito das relações privadas, sendo reconhecida tanto como direito subjetivo, inibindo investidas dos demais sujeitos privados e do Estado, quanto como instituto jurídico, evitando que o legislador a desnaturasse em seu núcleo essencial. Orlando Gomes conceitua o direito de propriedade, considerada na perspectiva dos poderes do titular, como [...] o mais amplo direito de utilização econômica das coisas, direta ou indiretamente. O proprietário tem a faculdade de servir-se da coisa, de lhe perceber os frutos e produtos, e lhe dar a destinação que lhe aprouver. Exerce poderes jurídicos tão extensos que a sua enumeração seria impossível. 35 Nesse sentido, Fábio Konder Comparato conclui afirmando que ―o núcleo essencial da propriedade, em toda a evolução do Direito privado ocidental, sempre foi o de um poder jurídico soberano e exclusivo de um sujeito de direito sobre uma coisa determinada‖.36 Ressalte-se que, no mesmo período em que foi aprovado o Código Civil Brasileiro, estava sendo gestada, no âmbito internacional, outra concepção de direito de propriedade, este 33 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 139. 34 STAUT JR., Sérgio Said. Cuidados metodológicos no estudo da história do direito de propriedade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, n. 42, 2005, p. 155-170. 35 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 98. 36 COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., 1997, p. 93. 189 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I não mais entendido no seu viés absoluto, individual e exclusivo. Tais eram as diretrizes expressas nas Constituições Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919. Nesse período, iniciou-se um processo de superação da idéia do direito de propriedade como um direito absoluto. O reino soberano da vontade, caracterizado por um intenso individualismo, começou a perder força. O Estado passou a interferir na propriedade e nas relações entre particulares, mediante a introdução de normas de ordem pública. Instituiu-se, por meio do Direito Administrativo, limitações aos direitos inerentes à propriedade (usar, gozar, dispor), como forma de impedir malefícios maiores provocados pela adoção de condutas contrárias aos interesses sociais. Tais restrições tinham um caráter negativo, vez que implicavam em um dever do proprietário de não praticar determinadas condutas. Em momento posterior, que coincide com a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, o direito civil sofre um processo de intensa constitucionalização, o que leva o conceito constitucional de propriedade a se desvincular do conceito eminentemente privatístico de que era dotado. Sobre esse tema, Gilberto Bercovici enuncia que [...] a evolução do Direito moderno, a partir de 1918, evidencia uma série de traços comuns. O principal diz respeito à relativização dos direitos privados pela sua função social. O bem-estar coletivo deixa de ser responsabilidade exclusiva da sociedade, para conformar também o indivíduo. 37 O direito de propriedade passa a ser determinado não apenas pelo seu aspecto estrutural, mas, principalmente, pelo perfil funcional, isto é, pela função que concretamente tem a desempenhar no ordenamento jurídico. Antes direito absoluto do titular, agora passa a ser dotado de uma função social. As Constituições Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919 são identificadas como marco jurídico desse processo, por expressarem, em seus textos, esse viés funcionalizado da propriedade. Exemplificativamente, aponta-se o art. 135 da Constituição Alemã de 1919, que trazia a compreensão de que ―a propriedade obriga. Seu uso deve ao mesmo tempo servir o interesse da sociedade‖. Conforme expressa Gilberto Bercovici, a Constituição de 1919 consagrava, ainda, em outro dispositivo, que a propriedade poderia ser desapropriada a qualquer momento pela lei, eventualmente até sem indenização.38 Como se percebe, a Constituição de Weimar abandonou a concepção romana de dominium, compatibilizando o direito de propriedade com os interesses sociais. Nesse sentido, a propriedade não seria mais compreendida como instituto que garantia ao indivíduo a 37 38 BERCOVICI, Gilberto. Op. cit, 2005, p. 142. BERCOVICI, Gilberto. Op. cit., p. 150. 190 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I satisfação plena e exclusiva de seus interesses, mas antes destinado à consecução do bem-estar da coletividade, o que implicava nos deveres positivos do proprietário de dar ao bem uma função social. Importante mencionar que, embora a Constituição alemã trouxesse expressamente a previsão da função social da propriedade, não foi essa a interpretação feita pelos Tribunais Alemães, os quais, conforme demonstrou empiricamente Kirchheimer, ainda entendiam as relações de propriedade no seu aspecto tradicional e conservador, ou seja, como direito absoluto nos moldes do Liberalismo do século XIX.39 Carlos Frederico Marés destaca que a Constituição de Weimar, ligada a ―promessa capitalista [...] de criar um Estado de Bem-Estar Social‖, e, para tanto, ―a terra deveria estar dividida em parcelas que garantissem a sobrevivência e a máxima rentabilidade de quem nela trabalhasse mediante direta participação do Estado por meio de subsídios ou políticas de financiamento‖40, instituía uma função social da propriedade a fim de garantir e maximizar os meios de produção capitalista. E essa idéia de que ―a propriedade gera obrigações passou a acompanhar o Direito ocidental por todo o século XX‖. Diferentemente, a Constituição Mexicana de 1917 [...] foi um marco mais importante do que a de Weimar porque organizava o Estado contemporâneo em uma região cujos conflitos não se estabeleciam entre camponeses servos transformados em trabalhadores livres e a propriedade privada, mas entre camponeses livres, na grande maioria indígenas, que queriam continuar sendo livres e indígenas contra o novo regime de propriedade privada.41 Esta Constituição: Diferencia duas formas de intervenção na propriedade privada: por um lado reconhecia a desapropriação que somente pode se dar por razões de utilidade pública e mediante indenização, existente desde os tempos do nascimento do liberalismo; por outro lado, não reconhece como propriedades áreas que não cumpram os preceitos necessários a seu exercício, quando, então, se dá a intervenção para regular o aproveitamento dos elementos naturais suscetíveis de exploração e a justa e equitativa distribuição da riqueza. [...]. Determina, o artigo 27, que em cada Estado se estabeleça a extensão máxima de propriedade rural admitida por um único proprietário, sendo o excedente fracionado e posto a venda se estiverem satisfeitas as necessidades agrárias da população local.42 Sobre uma extensão máxima, ou módulo máximo de extensão de terra, já na Antiga Roma, a ―Lex Licinia Sexta‖ (367 a.C): 39 KICHHEIMER apud BERCOVICI, Gilberto. Op. cit., p. 151. Bercovici atribui essa atitude dos Tribunais Alemães de ignorar as contribuições da Constituição de Weimar em matéria de função social da propriedade ao pensamento de Carl Schimitt e suas três categorias de direitos: direitos de liberdade, garantias institucionais e garantias de instituto. (BERCOVICI, Gilberto. Op. cit. P. 150-151). 40 MARÉS, Carlos Frederico. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 83. 41 MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit. p. 93. 42 MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit., p. 94. 191 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I [...] autêntica lei agrária, interditava os cidadãos romanos de terem mais de 120 hectares de terras, não permitindo nas pastagens públicas mais de 100 cabeças de gado por proprietário e obrigava que eles utilizassem mão-de-obra livre em proporção ao número de escravos que possuíssem. 43 No Brasil, essas alterações na própria idéia de direito de propriedade refletiram na Constituição de 1934, que assegurava, no art. 113, n° 17, a garantia do direito de propriedade, que não poderia ser exercido contra o interesse social e coletivo, na forma em que a lei determinasse. Como se constata, sob a influência da Constituição de Weimar e do Estado do Bem-Estar, a Constituição de 1934 estabelecia que o legislador ordinário pudesse limitar o direito de propriedade que perdia, desse modo, o caráter absoluto e a-histórico. Destaque-se que a Constituição Brasileira de 1934 e todas as demais que se seguiram acabavam esbarrando em uma legislação civilista ultrapassada e em uma compreensão dos juristas e operadores do Direito de que a função social da propriedade constituía mero limite ao direito de propriedade, apenas impondo obrigações positivas ao detentor do título de domínio. Um passo mais adiante só foi dado com a Constituição da República de 1988, onde um novo paradigma da função social da propriedade parece emergir. 2.2 O direito de propriedade e sua função social na Constituição Federal de 1988 A promulgação da Constituição de 1988 foi marcada pela pressão popular pelo fim do Regime Militar e a instauração de um Estado Democrático de Direito. Após vinte anos do julgo de um regime autoritário, os diversos setores da sociedade brasileira se organizaram para elaborar uma nova Constituição, que deveria se pautar pela defesa da democracia e do pluralismo, trazendo um extenso rol de direitos e garantias fundamentais. O documento político-jurídico, que vigora até os dias atuais, trouxe tempos de maior estabilidade democrática, contendo inovações importantes para o constitucionalismo brasileiro. Em matéria de propriedade, a Constituição, em uma série de dispositivos, garante o direito de e à propriedade44, atrelando-o a um viés funcionalizado, a exemplo dos arts. 5°, caput, XXII e XXIII e art. 170, II e III. 43 MOTA, Márcia. Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 235. O art. 5º, caput assegura a ―inviolabilidade do direito [...] à propriedade‖. Já o inciso XXII do mesmo dispositivo estabelece a norma de que ―é garantido o direito de propriedade‖. Da leitura das disposições citadas, infere-se que o legislador constituinte estabeleceu duas ordens de garantias relacionadas à propriedade, sendo possível fazer distinção entre o direito de propriedade e o direito á propriedade. O primeiro entendido como proteção à propriedade que já se possui e que deve, por força do inciso XXIII, cumprir uma função social, enquanto o segundo estaria mais próximo da idéia de acesso à propriedade, acesso aos bens necessários à efetivação da dignidade da pessoa humana. 44 192 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Para entender o que significou essa mudança de paradigma, é preciso compreender o que, de fato, se define por função social da propriedade. A Constituição Federal de 1988, embora não defina a natureza jurídica da função social da propriedade, traça as diretrizes para essa compreensão, na medida em que traz os critérios pelos quais uma propriedade pode ser considerada de acordo com a função social. Vejamos: Art. 182 [...]. § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. O Código Civil de 2002, atendendo às disposições constitucionais, estabeleceu, no art. 1.228, §1º, que: Art. 1228. [...]. §1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Gilberto Bercovici chama a atenção para um aspecto importante ligado à função social da propriedade. Tal aspecto se refere ao fato de que ―a mudança ocorrida foi de mentalidade, deixando o exercício do direito de propriedade de ser absoluto‖.45 Não houve alteração substancial nos Códigos Civis, que continuaram prevendo o direito de propriedade a partir dos poderes do titular do domínio, identificados com o conceito liberal46. Nesse sentido, menciona expressamente o autor que ―o instituto jurídico da propriedade teve um rico desenvolvimento em um tempo relativamente curto, ocorrendo uma total mudança econômica e social sem que houvesse mudado consideravelmente sua definição jurídico-legislativa, ao menos sob o ângulo do direito civil‖.47 O papel de definir a natureza jurídica da função social da propriedade coube, portanto, à doutrina e à jurisprudência. Nesse mister, não houve e ainda não há consensos. O modo como o Poder Judiciário e os doutrinadores tratam da função social da propriedade parece demonstrar 45 BERCOVICI, Gilberto. Op. cit., p. 145. O caput do art. 1228 do Código Civil de 2002, assim como a previsão no Código Civil de 1916, não ofereceu uma definição de propriedade, apenas enunciando os poderes do proprietário de usar (jus utendi), de gozar e fruir da coisa (jus fruendi), dispor (jus abutendi), e, por fim, de reaver a coisa (rei vindicatio), de reivindicá-la das mãos de quem injustamente a possua ou detenha. O direito de propriedade ainda é exclusivo porque ninguém mais, a não ser o dono exerce as prerrogativas relacionadas à propriedade, sendo-lhe inclusive permitido repelir injustas agressões mediante o emprego dos meios previstos no ordenamento jurídico. 47 BERCOVICI, Gilberto. Op. cit., p. 145. 46 193 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I que concepções privatísticas, exclusivistas e conservadoras da propriedade convivem com concepções humanísticas do instituto, identificadas como aquelas que têm na dignidade da pessoa humana e na satisfação das necessidades vitais ao ser humano o seu fundamento. Em um raciocínio que parece fortalecer mais o caráter individual da propriedade, Gilmar Mendes preleciona que: Vê-se, pois, que o legislador dispõe de uma relativa liberdade na definição do conteúdo da propriedade e na imposição de restrições. Ele deve preservar, porém, o núcleo essencial do direito de propriedade, constituído pela utilidade privada e, fundamentalmente, pelo poder de disposição. A vinculação social da propriedade, que legitima a imposição de restrições, não pode ir ao ponto de colocá-la, única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade.48 (grifos no original) Dispondo a função social como uma condição para o exercício do direito de propriedade e não como elemento constitutivo desse direito, Fabiano André de Souza Mendonça define a função social da propriedade como [...] uma obrigação de fazer, uma ―responsabilidade‖ (lato sensu) pela atribuição de um direito. Caracteriza-se, desse modo, como exercício condicionado de um direito, tradicionalmente abrangido na expressão responsabilidade por ato lícito. Irá, portanto, diferir da limitação administrativa – ―condicionamento‖ de direito. Daí a função social não ser em si um requisito ao direito de propriedade, mas genericamente, um limite a ele. Um ―direito constitucional ao patrimônio socialmente responsável‖. Uma vez que o direito à propriedade admite várias formas de exercício, àquelas improdutivas, relacionadas aos meios de produção, o Estado impõe uma condição – eis sua classificação jurídica – a de que cumpra a função social. O não-fazer poderá conduzir à desapropriação ou sanções tributárias, conforme o caso. Portanto, não é requisito constitutivo do direito de propriedade, mas, numa precisão jurídica, condição para seu exercício. É uma norma de garantia a determinado interesse fundamental. Parte do pressuposto da própria existência do direito de propriedade individual.49 (grifos no original). Para Fábio Nusdeo, a função social da propriedade envolve [...] o conceito jurídico de poder-dever, isto é, o poder dado ao titular de um direito como instrumento para que ele cumpra o dever decorrente daquela titularidade. E, portanto, passa-se a exigir dele, titular do direito, não apenas uma abstenção, mas uma ação, da qual, supostamente, advirão benefícios gerais, por exemplo, construindo um edifício ou plantando em terrenos até então ociosos. 50 Pela idéia consignada no excerto acima transcrito, a função social da propriedade não constitui mera limitação ao exercício da propriedade. Ela exige do titular do domínio um agir no sentido de promover benefícios, ainda quando indiretos à sociedade em geral. Procura a congruência na realização dos fins individuais com os interesses coletivos. 48 MENDES, Gilmar Ferreira. O direito de propriedade na Constituição de 1988. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 483. 49 MENDONÇA, Fabiano André de Souza. O direito econômico fundamental à propriedade. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos Fundamentais e Estado Constitucional: Estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 208. 50 NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: introdução ao Direito Econômico. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 207. 194 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I João Luis Nogueira Matias e Afonso de Paula Pinheiro Rocha trazem a importância de se enxergar a propriedade sob uma ótica de funcionalidade econômica. Com base nesse enfoque, os autores sustentam que [...] não há uma função social da propriedade no sentido de que a propriedade (a clássica liberal) deve ser posta a uma função social. A propriedade já se origina e é uma função social. Uma forma de alocação de recursos e riquezas de forma a maximizar a eficiência de geração de riquezas e desenvolvimento humano. Sob um prisma econômico, função social da propriedade é uma redundância. A propriedade só pode ser pensada em termos de aplicação social numa eficiente distribuição e produção de riquezas [...]. Desconstituída esta noção de direito absoluto de propriedade, qualquer utilização do instituto que implique numa falta de eficiência social ou que não promova de forma otimizada a situação de todos os agentes envolvidos não será uma utilização correta do instituto. Todas as questões relativas a função social da propriedade se resolvem sob a perspectiva de um estudo econômico do instituto de propriedade.51 Telga de Araújo, referindo-se à função social da propriedade rural, seguindo a compreensão esboçada acima em referência a máxima eficiência econômica que deve ser dada a propriedade, alia isso aos critérios seguintes: Na doutrina jurídico-agrária, a função social da propriedade consiste na correta utilização da terra, e na sua justa distribuição, de modo a atender o bem-estar da coletividade, mediante o aumento da produtividade e da promoção da justiça social. [...] A finalidade social da propriedade é esmagada pela finalidade individual. [...]. A propriedade rural, mais do que a urbana, deve cumprir a sua função social para que, explorada eficientemente, possa contribuir para o bem-estar não apenas do seu titular, mas, por meio de níveis satisfatórios de produtividade e, sobretudo justas relações de trabalho, assegurar a justiça social a toda a comunidade rural.52 Logo, para os autores(as), a idéia de função social da propriedade está fortemente atrelada a um viés produtivista, no sentido de que ela implica que a propriedade seja explorada de forma eficiente, impondo-se ao proprietário que aloque recursos de forma a maximizar a eficiência de geração de riquezas. Gilberto Bercovici ressalta que Quando se fala em função social não se está fazendo referência às limitações negativas do direito de propriedade, que atingem o exercício do direito de propriedade, não a sua substância. As transformações pelas quais passou o instituto da propriedade não se restringem ao esvaziamento dos poderes do proprietário ou à redução do volume do direito de propriedade, de acordo com as limitações legais. Se fosse assim, o conteúdo do direito de propriedade não teria sido alterado, passando a função social a ser apenas mais uma limitação. [...] A função social é mais que uma limitação. Trata-se de uma concepção que consubstancia-se no fundamento, razão e justificação da propriedade.53 Mais adiante, o autor esclarece que a função social da propriedade traz mudanças nas relações produtivas, transformando a propriedade, sem socializá-la. Assim: 51 MATIAS, João Luis Nogueira; ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro. op. cit. Disponível em <http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/manaus/reconst_da_dogmatica_joao_luis_matias_e_afonso_rocha.pdf >. Acesso em 10 dez. 2008. 52 ARAÚJO, Telga de. A propriedade e sua função social. In: LARANJEIRA, Raymundo (Org.). Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: LTR, 1999, p. 160-161. 53 BERCOVICI, GILBERTO. Op. cit., p. 146-147. 195 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A função social da propriedade não tem inspiração socialista, antes é um conceito próprio do regime capitalista, que legitima o lucro e a propriedade privada dos bens de produção, ao configurar a execução da atividade do produtor de riquezas, dentro de certos parâmetros constitucionais, como exercida dentro do interesse geral. A função social passou a integrar o conceito de propriedade, justificando-a e legitimando-a.54 Ismael Marinho Falcão destaca, para além de viés econômico, outro elemento essencial na configuração da função social da propriedade, qual seja o princípio de que ―a terra deve pertencer a quem nela trabalhe‖: Daí verificarmos que a doutrina da função social da propriedade traz consigo o objetivo primordial de dar sentido mais amplo ao conceito econômico da propriedade, encarando-a como temos afirmado até aqui, como uma riqueza, que se destina à produção de bens, para satisfação das necessidades sociais do seu proprietário, de sua família e da comunidade envolvente, em franca oposição ao velho e arcaico conceito civilista de propriedade. Vê-se, pois, que o conceito de função social está diretamente ligado ao conceito do trabalho, logo, o trabalho erige-se em esteio preponderante para solidificação da propriedade no Direito Agrário, trazendo-nos para a realidade de ―que a terra deve pertencer a quem trabalhe.55 Para alguns doutrinadores a idéia de propriedade como um direito absoluto, baseado apenas nos interesses daquele que detém o título de domínio, não mais encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio. A Constituição da República de 1988 teria garantido o direito de propriedade, desde que ela atenda à sua função social (art. 5º, XXIII). Fábio Konder Comparato é exemplo dessa corrente, entendendo que, depois da Lei Fundamental de 1988, ―nem toda propriedade privada há de ser considerada um direito fundamental e como tal protegida‖.56 De acordo com o autor, a função social da propriedade se insere na própria estrutura do direito de propriedade, caracterizando-o ou não como um direito humano, apto a receber tutela estatal, a depender de sua observância. Nesse sentido: [...] é preciso verificar, in concreto, se se está ou não diante de uma situação de propriedade considerada como direito humano, pois seria evidente contra-senso que essa qualificação fosse estendida ao domínio de um latifúndio improdutivo, ou de uma gleba urbana não utilizada ou subutilizada, em cidades com sérios problemas de moradia popular. [...] quando a propriedade não se apresenta, concretamente, como uma garantia da liberdade humana, mas, bem ao contrário, serve de instrumento ao exercício de poder sobre outrem, seria rematado absurdo que se lhe reconhecesse o estatuto de direito humano, com todas as garantias inerentes a essa condição, notadamente a de uma indenização reforçada na hipótese de desapropriação.57 José Afonso da Silva situa-se dentre esses doutrinadores que identificam a função social da propriedade como elemento integrante do próprio conceito de propriedade, dando-lhe uma configuração jurídica. Nas palavras do autor 54 BERCOVICI, Gilberto. Op. cit., p. 147. FALCÃO, Ismael Marinho. Direito Agrário Brasileiro. Bauru: EDIPRO, 1995, p. 209. 56 COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., 1997, p. 96. 57 COMPARATO, Fábio Konder. Op. cit., 1997, p. 97. 55 196 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I [...] a função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito de propriedade; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade. [...] limitações, obrigações e ônus são externos ao direito de propriedade, vinculando simplesmente a atividade do proprietário, interferindo tão-só com o exercício do direito, e se explicam pela simples atuação do poder de policia.58 Eros Roberto Grau, manifestando-se sobre o tema, vai mais longe, deixando transparecer que a propriedade que não cumpre sua função social deixa, inclusive, de ser bem tutelável pelo Direito: Ontem, os códigos; hoje, as Constituições. A revanche da Grécia sobre Roma, tal como se deu, em outro plano, na evolução do direito de propriedade, antes justificado pela origem, agora legitimado pelos fins: a propriedade que não cumpre sua função social não merece proteção jurídica qualquer. 59 Carlos Frederico Marés chama a atenção para o fato de que Para combinar com os compromissos de eliminar desigualdades sociais e regionais, a constituição não poderia repetir a velha propriedade privada do Código de Napoleão, absoluta e acima de todos os outros direitos. A propriedade privada teria que ser desenhada como uma conseqüência dos novos direitos coletivos à vida, ao fim das desigualdades e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, introduzindo nela uma razão humana de existência, vinculando em todos os lugares que a reconheçam como direito à função social, especialmente em relação à terra. [...]. Na realidade quem cumpre uma função social não é a propriedade, que é um conceito, uma abstração, mas a terra, mesmo quando não alterada antropicamente, e a ação humana ao intervir na terra, independentemente do título de propriedade que o Direito ou o Estado lhe outorgue. Por isso a função social é relativo ao bem e ao seu uso, e não ao direito. 60 Jacques Távora Alfonsin diz que Ela [a terra] não pode ser tratada, portanto, como simples mercadoria, pois o proveito que dela retira o proprietário através da produção e da troca, respeitada que seja a função social [...], está enclausurada pelo destino61 próprio do seu uso, destino esse que não pertence exclusivamente ao proprietário, a não ser que se retire da expressão social todo sentido ou referência.62 (grifos no original) Este raciocínio indica que nem toda propriedade deve receber proteção do ordenamento jurídico, mas somente aquela que cumpre a função social do bem. Trata-se de um princípio geral que deve ser observado quando da elaboração das normas, quando de sua aplicação e quando de sua interpretação. É princípio que se dirige antes, durante e ao final dos momentos normativos. Como destaca Pietro Perlingieri: 58 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 284285. 59 GRAU, Eros Roberto apud BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, mar/abr/mai, 2007. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp>. Acesso em 20 nov. 2008. 60 MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit., p 115-116. 61 Jacques Távora Alfonsim desenvolveu a idéia da terra como provedora dos direitos de alimentação e moradia em sua obra ALFONSIN, Jacques Távora. O Acesso a Terra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. 62 ALFONSIN, Jacques Távora. Op. cit., p. 192. 197 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A função social é também critério de interpretação da disciplina proprietária para o juiz e para os operadores jurídicos. O intérprete deve não somente suscitar formalmente as questões de duvidosa legitimidade das normas, mas também propor uma interpretação conforme os princípios constitucionais. A função social é operante também à falta de uma expressa disposição que a ela faça referência; ela representa um critério de alcance geral, um princípio que legitima a extensão em via analógica daquelas normas, excepcionais no ordenamento pré-constitucional, que têm um conteúdo que, em via interpretativa, resulta atrativo do princípio. Igualmente, o mesmo princípio legitima a desaplicação das disposições legislativas nascidas como expressões de tipo individualista ou atuativas de uma função social diversa daquela constitucional.63 O Supremo Tribunal Federal, no exercício do seu papel de intérprete da Constituição de 1988, em diversas ocasiões, deixou assentado o seu posicionamento acerca da função social da propriedade64. Em especial, far-se-á uma breve análise do julgado do Supremo Tribunal Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade (STF. ADI 2213 – MC. Rel. Min. Celso de Mello)65: EMENTA: [...] O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. - O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade. A desapropriação, nesse contexto - enquanto sanção constitucional imponível ao descumprimento da função social da propriedade - reflete importante instrumento destinado a dar conseqüência aos compromissos assumidos pelo Estado na ordem econômica e social. 63 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 227-228. 64 Como exemplos citam-se os julgados seguintes: STF. ADI-MC 2623. Rel. Maurício Corrêa. Julgada em 6 de jun. 2002. Publicada no DJ de 14 de nov. 2003 e STF. RE 134.297. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 13 de jun. 1995. Publicado no DJ de 22 de set. 1995. 65 ―O Supremo Tribunal Federal indeferiu hoje [em 04 de abril de 2002] (4/4) liminar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 2213 e 2411) contra a Medida Provisória (MP) 2.183-56, de 24/8/2001, editada pelo Presidente da República que alterou dispositivos do Estatuto da Terra e da Lei de Reforma Agrária [...]. De um modo geral, Celso de Mello considerou que a Medida Provisória não violou a Constituição Federal [...]. Quanto ao impedimento de vistoria de imóveis invadidos por movimentos sociais em um prazo de dois anos, o ministro Celso de Mello argumentou que essas investidas caracterizadas pelo uso da força são ilícitas. O ministro Ilmar Galvão abriu dissidência contra o voto do relator. Ele entendeu que esse prazo de dois anos é justo somente nos casos em que a propriedade já era produtiva antes da invasão e tem sua produção destruída por conta da ocupação forçada. Se, ao contrário, a terra não era produtiva antes do fato, o ministro Ilmar pensa não ser razoável que o proprietário tenha um prazo de dois anos para tornar seu imóvel produtivo. O ministro votou no sentido de dar uma interpretação conforme a esse dispositivo, ou seja, caso isso se torne alvo de disputa judicial, não poderia ser concedido o prazo para donos de fazenda improdutivas antes da invasão, só para aqueles que tivessem produção anteriormente. Os ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio foram além e deferiram a liminar no todo quanto a esse ponto, pois consideraram a solução insatisfatória. O problema, para eles, é que a vedação da vistoria não daria margem nem mesmo a saber se a propriedade era produtiva ou não. A vistoria antecede o processo de desapropriação. Sepúlveda e Marco Aurélio consideraram a sanção de dois anos exagerada, pois é imposta a todos os possíveis beneficiados com a reforma agrária, e por outro lado é um prêmio aos proprietários que tem seus imóveis invadidos por movimentos sociais. Eles ficaram vencidos nessa questão‖. Notícia disponível em <http://www.direito2.com.br/stf/2002/abr/4/supremo_mantem_estatuto_da_terra>. Acesso em: 20 dez. 2009. 198 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Incumbe, ao proprietário da terra, o dever jurídico- -social de cultivá-la e de explorá-la adequadamente, sob pena de incidir nas disposições constitucionais e legais que sancionam os senhores de imóveis ociosos, não cultivados e/ou improdutivos, pois só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a propriedade. O ESBULHO POSSESSÓRIO MESMO TRATANDO-SE DE PROPRIEDADES ALEGADAMENTE IMPRODUTIVAS - CONSTITUI ATO REVESTIDO DE ILICITUDE JURÍDICA. [...]. O processo de reforma agrária, em uma sociedade estruturada em bases democráticas, não pode ser implementado pelo uso arbitrário da força e pela prática de atos ilícitos de violação possessória, ainda que se cuide de imóveis alegadamente improdutivos, notadamente porque a Constituição da República - ao amparar o proprietário com a cláusula de garantia do direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII) proclama que "ninguém será privado (...) de seus bens, sem o devido processo legal" (art. 5º, LIV). - O respeito à lei e à autoridade da Constituição da República representa condição indispensável e necessária ao exercício da liberdade e à prática responsável da cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da ordem jurídica, quer por atuação de movimentos sociais (qualquer que seja o perfil ideológico que ostentem), quer por iniciativa do Estado, ainda que se trate da efetivação da reforma agrária, pois, mesmo esta, depende, para viabilizar-se constitucionalmente, da necessária observância dos princípios e diretrizes que estruturam o ordenamento positivo nacional. [...]O sistema constitucional não tolera a prática de atos, que, concretizadores de invasões fundiárias, culminam por gerar - considerada a própria ilicitude dessa conduta - grave situação de insegurança jurídica, de intranqüilidade social e de instabilidade da ordem pública. [...]. Precedentes (RTJ 179/35-37, v.g.). (STF. ADI 2213 – MC. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 4 de abr. 2002. Publicado no DJ de 23 de abr. 2004). (grifos nossos) A decisão em análise, ainda que reconheça o acesso a terra e a solução dos conflitos sociais, utiliza-os apenas no plano do discurso. As palavras acabam firmando o sentido da propriedade em um viés eminentemente produtivista ao proclamar que ―só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do domínio cumprir a obrigação de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam‖, de ―manter níveis satisfatórios de produtividade‖, além ―de assegurar a conservação dos recursos naturais‖ e, por fim, ―de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a propriedade‖. Diz-se que a função social condiciona o exercício do direito, e não que integra o direito. Existe, para o STF, direito de propriedade mesmo quando esta não cumpre sua função social. O fato de se dizer nessa mesma decisão que mesmo em se tratando de terras improdutivas é ilícita a ocupação de terra (definida pelo STF como esbulho possessório) fortalece tal interpretação. Ademais, criminaliza-se, nessa decisão, o ato democrático de reivindicação de demandas de grupos sociais tradicionalmente excluídos do acesso a terra e de meios dignos de sobrevivência e desenvolvimento humano. A defesa da propriedade privada não justifica a invisibilização dessas reivindicações, colocadas em evidência pelas ocupações, retomadas e outras formas de luta e resistência. Vladimir Safatle assevera que: 199 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A democracia admite o caráter ―desconstrutível‖ do direito, e ela o admite por meio do reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade da ―violação política‖. Pacifistas que se sentam na frente de bases militares a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação), ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja despejado no mar [...], cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, [...], Antígona que enterra seu irmão: em todos esses casos o Estado de direito é quebrado em nome de um embate em torno da justiça. No entanto, é graças a ações como essas que direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas, certamente, nossa situação de exclusão social seria significativamente pior.66 Os posicionamentos aqui esboçados, plurais e por vezes contrários entre si, levam-nos a reflexão acerca das vias possíveis de diálogo entre as demandas dos movimentos sociais e a interpretação e aplicação da função social da propriedade. 3 HÁ DIÁLOGOS POSSÍVEIS ENTRE O DIREITO À PROPRIEDADE FUNCIONALIZADA E O DIREITO A TERRA DEMANDADO PELOS MOVIMENTOS SOCIAIS? Compreendemos que a função social não é nem um mero limite externo à propriedade, seja em um viés negativo (de não fazer), seja em um viés positivo (de fazer), nem sua natureza jurídica é de conteúdo do direito de propriedade enquanto título e direito de exclusão, e sim que a função social é do bem, é da terra67. A terra é aqui compreendida não como mercadoria ou como produtividade máxima. E como tal, quem detém o direito de pertencimento da terra em uma dimensão individual ou coletiva, pelo uso (para fim de moradia e/ou alimentação, como território...) deve dar a terra o cumprimento de sua função, a qual se liga à coletividade (pela democratização do acesso a terra, pela preservação ambiental e desenvolvimento sustentável, pela soberania alimentar, pela livre determinação étnica...). Carlos Frederico Marés preleciona que: O uso ou a função da terra [...] sempre existiu na sociedade, mas há pouco tempo o Direito passou a reconhecê-lo e integrá-lo na chamada Ordem Jurídica. Isto quer dizer, a transformação da terra em propriedade privada foi um processo teórico, ideológico contrário à realidade, à sociedade e aos interesses das pessoas em geral, dos grupos humanos e dos povos, porque todos dependem da terra para viver. 68 A Constituição Federal de 1988, ao definir a função social da propriedade pela produtividade e pela justa relação de trabalho, entre outros elementos, deu margem a que sua interpretação tomasse rumos produtivistas. Além de regular as relações trabalhistas capitalistas 66 SAFATLE, Vladimir. A democracia para além do Estado de Direito? O desafio de pensar a democracia em tudo aquilo que se encontra à margem do estado de direito. Dossiê: A Democracia e seus Impasses. Cult. São Paulo: n° 137, jul 2009, p. 44. 67 Seguindo o pensamento de Carlos Frederico Marés e Jacques Távora Alfonsim, supra mencionados. 68 MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit., p. 48. 200 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I no campo e de não ter criado mecanismos normativos de democratização da terra e de estímulo ao pertencimento pelo uso coletivo da terra, mantendo o trabalhador rural que na terra labuta subserviente a um título de propriedade pertencente a outrem. Não diz que tipo de produção deve ser priorizado: a do agronegócio exportador ou a da agricultura familiar que abastece o mercado interno e possibilita preços mais acessíveis pela maior oferta de alimentos (por exemplo)? Além de não ter firmado entendimento acerca das grandes concentrações de terra, por ter ignorado a possibilidade de se colocar a questão do módulo máximo ou da máxima extensão de terra. Ademais, ao instituir a desapropriação mesmo em caso de propriedade improdutiva fortaleceu o instituto da propriedade privada e dificultou a sua interpretação da legitimação do pertencimento da terra pelo uso individual e coletivo da terra. Sobre o esse aspecto, Carlos Frederico Marés diz que: O capital tinha que conciliar uma reforma agrária que melhorasse o consumo e baixasse o preço da mão de obra, com a integridade patrimonial. Por isso as soluções preferidas pelas elites são sempre de reforma agrária com desapropriação, isto é, com o pagamento da recomposição do patrimônio individual, mesmo quando a terra fosse usada em desacordo com a lei. Dito em outras palavras, a reforma agrária capitalista propunha apena a mudança de proprietários da terra, com uma dupla mobilização do capital: transformar uma terra improdutiva em produtiva e liberar dinheiro aos latifundiários para investir em outros negócios.69 Contudo, a Constituição Federal, ao normatizar a função social da propriedade e ao ser esta função interpretada em conexão com os direitos humanos e fundamentais, apresenta-se como potencial via comunicativa entre as reivindicações de movimentos organizados em torno do direito a terra e o direito estatal a propriedade. Carlos Frederico Marés destaca, de maneira conclusiva, que Para quem aceita as armadilhas do texto constitucional, a reforma agrária é impossível e realizável apenas em terras públicas, devolutas (o que não é reforma agrária, mas colonização), e nos latifúndios improdutivos segundo critérios muito baixos de produtividade, para não ferir a liberdade e o patrimônio do proprietário e seus credores. No texto das armadilhas somente serviria para a reforma agrária as áreas improdutivas do ponto de vista economicista, e, ainda assim, só depois de desapropriadas pela União. Não é isto que salta à vista do conjunto do texto constitucional, porque esta interpretação, majoritária nas classes dominantes, atira às traças a definição escrita em ouro da função social do imóvel rural, mas não só, torna inaplicável e inócuo os propósitos de erradicar a pobreza, construir uma sociedade livre, justa e solidária e garantir o desenvolvimento nacional, considerados objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil no artigo 3º. E ainda mais, desestrutura a ordem econômica estabelecida que tem por finalidade assegurar a todos existência digna (art. 170). Ao submeter a função social à produtividade, esta interpretação desconsidera toda a doutrina e a evolução da teoria da função social e reduz o art. 186 da Constituição a uma retórica cínica. 70 69 70 MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit., p. 88. MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit., p. 120. 201 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Importa ressaltar, por fim, que, assim como o direito de propriedade deve ser percebido em sua dimensão histórica, ou seja, não como um instituto sagrado e perpétuo, mas inserido na e fruto da dinâmica social, não se deve olvidar que a função social da propriedade também é marcada pela historicidade. Isso implica que a função social não deve ser encarada como ponto de chegada das lutas sociais que conseguiram inseri-la no texto constitucional e normatizar uma concepção de propriedade legitimada pelos fins. A função social é, antes de tudo, um ponto de partida, e que, portanto, pode se modificar de acordo com as alterações nas relações sociais e na dinâmica das reivindicações dos movimentos sociais. E seus sentidos podem advir tanto de interpretações a Constituição como do seio dos movimentos sociais como proponentes de Direito e fonte de produção jurídica71. 4 CONCLUSÃO No presente trabalho, as falas expressas nas entrevistas de advogados(as) populares e as leituras bibliográficas acerca do direito a terra explicitaram que os novos movimentos sociais propõem e reivindicam (re)interpretações e outros sentidos ao direito de propriedade estatal e fundam percepções acerca da significância de uma função social da terra, muitas vezes descolada de um viés produtivista e mercadológico, as quais ora encontram aporte na Constituição Federal de 1988, ora levam-nos a lutar por direitos ainda não reconhecidos pelo Estado (na legislação ou na dimensão da aplicação e interpretação do direito). Tais caminhos, apontados em uma investigação inicial e não conclusiva, fazem presentes e emergentes outras formas de relações sociais com a terra, bases de uma real concretização de direitos ligados a terra, tais como o direito de auto sustentar-se e alimentar-se, o direito a uma relação sócio-ambiental sustentável e equilibrada com o meio-ambiente; o direito de proteger-se em uma morada, e o direito de relacionar-se com a terra, seja em uma relação simbólica, tradicional ou de fruição pelo trabalho. Nesse sentido, compreender como esses movimentos percebem a propriedade e de que forma eles identificam a função social da propriedade é imprescindível se quisermos construir 71 Tal como propõe Antonio Carlos Wolkmer (vide nota 4) e Boaventura de Sousa Santos ao desenvolver sua idéia de pluralismo jurídico emancipatório em, entre outras obras: SANTOS, Boaventura de Sousa de. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 463-512; 576-593 (capítulo 10: Pluralismo Jurídico, soberania fraturada e direitos de cidadania diferenciais: instituições internacionais, movimentos sociais e estado pós-colonial na Índia e parte do capítulo 12: o pluralismo dos direitos humanos). Vide também: SANTOS, Boaventura de Sousa de. O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998 e SANTOS, Boaventura de Sousa de. Poderá o Direito ser Emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, n° 65, maio 2003, p.3-76, assunto especificamente tratado na p.38-39. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/rccs/index.php?id=816&id_lingua=1 Acesso em: 6 dez. 2009. 202 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I uma sociedade justa em suas possibilidades, plural em seu contexto político-social, e solidária na edificação de meios de sustentabilidade econômica. REFERÊNCIAS ALFONSIN, Jacques Távora. O Acesso à Terra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. ARAÚJO, Telga de. A propriedade e sua função social. In: LARANJEIRA, Raymundo (Org.). Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: LTR, 1999. COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista do Conselho de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ano I, dezembro de 1997. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. FALCÃO, Ismael Marinho. Direito Agrário Brasileiro. Bauru: EDIPRO, 1995. GOMES, Orlando. Direitos Reais. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. GRAU, Eros Roberto apud BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, mar/abr/mai, 2007. 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Breves contextualizações sobre a propriedade intelectual. 3. Direito da propriedade intelectual da biodiversidade amazônica e a biopirataria. 3.1. Aspectos contextuais da biopirataria. 3.2. A biopirataria na Amazônia e a proteção intelectual. Conclusão. RESUMO A biodiversidade brasileira, e, em especial a amazônica, vem sendo alvo de explorações constantes de biopiratas, que devem ser combatidas, haja vista o uso não autorizado e indiscriminado dos recursos biológicos representarem uma ameaça real, não só ao desenvolvimento econômico nacional, mas à própria sobrevivência humana. O objetivo primordial deste estudo situa-se em analisar de que forma a propriedade intelectual pode contribuir para a proteção da biodiversidade brasileira, mais especificamente na Amazônia, em face do Brasil necessitar de recursos protecionistas que combatam a biopirataria nessa região. Como objetivos específicos busca averiguar a necessidade de se garantir um meio ambiente sadio e sustentável para reduzir a crise ambiente e a sociedade de risco, esclarecer a atuação da Convenção sobre a Diversidade Biológica e analisar as repercussões da biopirataria na região Amazônica. Extrai-se que a biopirataria confunde-se com a própria história do Brasil e do povo amazônico e que apesar de ser um assunto ainda sem legislação específica, há de se buscar meios alternativos de efetivar a proteção intelectual do meio ambiente. Nesse esteio, foi realizada uma pesquisa descritiva e exploratória eminentemente bibliográfica. Palavras-chave: Biodiversidade. Propriedade Intelectual. Biopirataria. Amazônia. . 1 Graduanda em Direito pela Faculdade Christus – Fortaleza/CE. Pesquisadora do Projeto Casadinho (CNPQUFC-UFSC). Pesquisadora do Projeto de Iniciação Científica 2009/2010 sobre cidadania ambiental. Integrante do Grupo de Estudo e de Pesquisa ―Meio Ambiente e Direitos Humanos: desafios e perspectivas‖. 205 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I ABSTRACT Brazilian biodiversity mostly especially that of the amazon area has suffered intensely as a result of actions perpetrated by biopirates which obviously must be repressed. The nonauthorized use of biological resources represents a real threat not only to Brazil‘s economic development but to the survival of the human race itself. The main purpose of this article is to analyze the ways through which the intellectual property may contribute to the protection of Brazilian biodiversity and most especially that of the amazon. Needless to say, Brazil needs extra resources in order to fight against biopiracy in that region. This work also aims at investigating the ways of keeping a sound and sustainable environment so that it may be duly preserved in accordance wiyh the convention of biological diversity and apply them to repercussions and consequences of biopiracy in the Amazon. It is reasonable to conclude that biopiracy comes along with the history of Brazilian people and most especially with the amazon people. As there is no specific regulation regarding the problem of biopiracy it is an absolute must that adequate means be found in order to protect the intellectual assets of the people and the environment as a whole. For that purpose, a descriptive and investigative research was carried out. Key-words: Biodiversity. Intellectual Property. Biopiracy. Amazon. INTRODUÇÃO O Brasil possui a maior biodiversidade do mundo. Estima-se que vinte por cento dela se localize, em especial na Amazônia. Por ser um Estado dotado de uma megadiversidade biológica, há muita exploração e especulação de suas riquezas naturais, bem como a apropriação e a monopolização dos conhecimentos sobre os recursos naturais das populações tradicionais. Nessa pespectiva, a biopirataria é um problema que requer medidas coibitivas urgentes, haja vista a diversidade biológica ser um dos elementos que compõe o meio ambiente sustentável. O objeto geral desse estudo situa-se em analisar a proteção intelectual da biodiversidade da Amazônia como instrumento de conscientização contra a biopirataria nessa região. Como objetivos específicos, esse artigo tem como função instrumental: averiguar a necessidade de se garantir um meio ambiente sadio com o fito de reduzir prejuízos para a sociedade; conceituar a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) e a sua relação com o 206 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS); analisar as repercussões da biopirataria na região Amazônica. Em um primeiro momento, o estudo do meio ambiente, com foco na biodiversidade, será abordado, a fim de estabelecer conceitos, analisar os instrumentos protecionistas internacionais, e verificar suas repercussões sociais, no intuito de buscar compreender a real necessidade de se efetivar a proteção de um meio ambiente sustentável e amenizar a teoria da sociedade de risco, Em seguida, faz-se-á uma abordagem sobre a propriedade intelectual quanto aos seus aspectos conceituais e normativos. Por fim, tratar-se-á da biopirataria que assola a região Amazônica, enfocando a forma como o direito a propriedade intelectual poderá auxiliar na proteção da biodiversidade nacional, e, consequentemente, garantir a viabilidade de uma sociedade planetária saudável. O presente trabalho fundamenta-se, tecnicamente, em uma pesquisa bibliográfica, a qual utilizou como instrumentos livros, meios eletrônicos e periódicos. Quanto ao tipo do questionamento, realizou-se uma pesquisa descritiva e exploratória. 1 A PROTEÇÃO À BIODIVERSIDADE 1.1 Considerações sobre meio ambiente e a sociedade de risco Atualmente, o meio ambiente surge incorporado a uma das grandes preocupações mundiais quanto a sua sustentabilidade, na medida em que o processo acelerado de desenvolvimento, com raízes no lucro obtido a qualquer preço, no laissez-faire2 econômico e na concepção liberal de propriedade privada, tem ocasionado um desequilíbrio, na frágil e desgastada, relação entre o homem e o meio ambiente. Ações protecionistas no intuito de elencar um meio ambiente ecologicamente equilibrado,3 como um direito natural dos povos destacam-se nas Constituições positivadas de cada Estado4 e evidenciam-se como direitos humanos - presentes nos documentos 2 A expressão francesa laissez-faire representa um princípio utilizado pelos economistas mais liberais, que defendem o absenteísmo do Estado, ou seja, o Estado deve interferir o menos possível nas atividades econômicas, para que os mecanismos de mercado funcionem livremente. 3 Canotilho afirma que o termo ―meio ambiente ecologicamente equilibrado‖ contido no caput do art. 225, da CF/88, uma vez jurisdicionado perde-se o fenômeno natural que o equilíbrio ecológico possui, ou seja, da natureza seguir seu o próprio rumo e transforma-se em uma preocupação de interesse geral. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 108). 4 Há de se esclarecer que embora não conste, expressamente no capítulo dos direitos e das garantias fundamentais 207 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I internacionais - a partir do momento em que o direito ao meio ambiente assume o status de direito fundamental, reconhecido internacionalmente por meio da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, de 1972.5 Manifesta-se Medeiros, que a partir da Convenção de Estocolmo, ―as nações passaram a compreender que nenhum esforço, isoladamente, seria capaz de solucionar os problemas ambientais do Planeta‖.6 Assim, esse novo viés hermenêutico levou a humanidade a não mais considerar o meio ambiente ecologicamente equilibrado como uma questão local, mas, sim, uma preocupação mundial, visto a atmosfera ser uma unidade global que não reconhece as barreiras territoriais. O art. 225 da Constituição Federal de 1988, ao considerar o ambiente uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, ocasionou uma nova realidade jurídica, disciplinando os bens ambientais7 não só ao caráter público, tampouco, ao caráter particular, mas como um bem globalizante (magno bem).8 O conceito de bem natural9 alarga-se de forma a não se limitar apenas ao meio natural, mas a uma visão de macrobem, por envolver um conjunto de fatores que garantem a sadia qualidade de vida, sem se limitar apenas ao meio ambiente natural. 10 Ressalta-se que o proprietário, seja ele público ou particular, não poderá dispor da qualidade do meio ambiente ecologicamente equilibrado a seu bel-prazer, de forma que o uso indiscriminado da biodiversidade brasileira infringe frontalmente preceitos constitucionais, morais e éticos. É inconteste que a defesa, a prevenção11 e a proteção do meio ambiente exigem ações da CF/88, o meio ambiente como um direito fundamental há de se efetivar tal posicionamento, devido a sua relevância em garantir a sadia e saudável qualidade de vida para a população. Assim, o meio ambiente configurase como um direitos fundamentais, pois como elementos basilares da Constituição permite-se essa abertura. (SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2001, p. 81). 5 A Convenção de Estocolmo, é um dos marcos do Direito Internacional do Meio Ambiente por estabelecer direito fundamental do homem a uma vida saudável e digna, com a oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral e espiritualmente. Em verdade, essa conferência é um ponto de partida para a conscientização ecológica mundial e a implementação de uma cooperação internacional no afã de proteger o meio ambiente.(CALSING, Renata de Assis. O protocolo de Quioto e o Direito do desenvolvimento sustentável. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 35). 6 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: Direito e Dever Fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2004, p. 44. 7 O artigo 3º, da Lei nº 6938/81, sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, traz a definição legal do conceito de bem ambiental, e foi recepcionado pelo art. 225, CF/88 ao invocar a sadia qualidade de vida. 8 Na visão de Morato, o legislador constituinte observou a tendência conceitual de globalizar e integrar o meio ambiente como um macrobem, que além de incorpóreo e imaterial, configura-se como um bem de uso comum do povo. (LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental. 2. ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2003, p. 83). 9 A definição legal do conceito de bem ambiental no Direito brasileiro configura-se como, o que define Andreas Krell, de um ―conceito jurídico indeterminado‖, que vai se estabelecendo com o tempo, com as diversas características e as inúmeras interpretações. 10 O meio ambiente natural é formado pelo ar, atmosfera, água, solo,subsolo, fauna, flora e a biodiversidade, que serve de base para as outras dimensões do bem ambiental (artificial, cultural, do trabalho). 11 O Princípio da Prevenção busca adotar medidas políticas de gerenciamento do risco ambiental de forma prévia, 208 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I solidárias12, pois não importa tão somente a um Estado ou a uma região adquirir a consciência ecológica para se amenizar a crise ambiental. É preciso, portanto, que todos estejam unidos e solidários em uma causa que demanda participação do homem como titular do direito de manter o meio ambiente ecologicamente equilibrado e sujeito ativo de dever de protegê-lo. Não há dúvida de que a crise de valores espirituais e culturais reflete nos hábitos predatórios que comprometem a vida das futuras gerações e acarreta um comprometimento com a própria sobrevivência humana. Nesse azo, a proteção a um meio ambiente sadio é um exercício constante, sendo necessário, para isso, a solidariedade entre os Estados, no intuito de amenizar os efeitos da crise ambiental e se adequar ao que o sociólogo alemão Ulrich Beck define de sociedade de risco.13 A biopirataria sobre a biodiversidade brasileira surge como uma invisibilização das inúmeras explorações e especulações das riquezas naturais e da apropriação e monopolização dos conhecimentos sobre os recursos naturais das populações tradicionais. Nessa perspectiva, há de se concentrar esforços para conservar os ecossistemas ameaçados e a biodiversidade pátria, pois os desgastes dos recursos naturais e a escassez de matérias-primas ocorridos ao longo dos últimos séculos vêm comprometendo progressivamente a qualidade de vida das presentes e futuras gerações. 1.2 A diversidade biológica e a ordem internacional Um dos relevantes resultados da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD) realizada no Rio de Janeiro,14 em junho de 1992, uma vez que os danos provenientes dele, na maioria das vezes, são irreversíveis. Segundo Fiorillo, após a Conferência de Estocolmo, dado a sua relevância, ele passou a categoria de megaprincípio. A prevenção, juntamente com a preservação são concretizadas quando se adquire uma consciência ecológica, individual ou coletiva. (FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 10. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 54). 12 O princípio da solidariedade encontra-se na essência da cidadania, de forma que o povo há de ser solidário naquilo que sua participação implique em um êxito comum. Na visão de Boff, [...] a solidariedade é um valor indispensável para a própria subsistência e a todo o grupo.‖ (BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humanocompaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999, p.191). 13 A teoria da sociedade de risco, fundamentada inicialmente pelo sociólogo alemão Beck em sua obra ―A sociedade de risco‖, em meados da década de 80, consiste na tomada de consciência do esgotamento do modelo de produção, marcada pelo risco permanente de desastres e de catástrofes. O estudo do risco ecológico recebeu especial atenção pelas ciências sociais como forma de tentar minimizar os impactos da crise ambiental, haja vista o paradigma da segurança existencial, basificado no progresso e na tecnologia, ter dado lugar ao medo do risco, na qual se vislumbra uma transição de uma sociedade industrial para uma sociedade de risco. (BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica e Meio Ambiente: Uma proposta de Hermenêutica Jurídica Ambiental para a efetivação do Estado de Direito Ambiental. Dissertação de mestrado apresentada junto ao Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC. Fortaleza: 2009, p. 89). 14 Denominada ECO-92, Rio-92,Conferência da Terra ou Cúpula da Terra. 209 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I foi à criação do principal fórum sobre a biodiversidade, a denominada Convenção sobre Diversidade Biológica15 ou Convenção da Biodiversidade (CDB).16 O referido tratado internacional alude, em seus objetivos (contidos no artigo 1º), à busca pela conservação da biodiversidade,17 pelo uso sustentável de seus componentes e pela necessidade da partição equitativa e justa dos benefícios oriundos do uso dos diversos recursos genéricos. A CDB estabelece normas e princípios que devem reger o uso e a proteção da diversidade biológica18 em cada país signatário. Todavia, a soberania estatal prevalece sobre seus recursos naturais, de forma que a Convenção sobre Diversidade Biológica assume o papel de instrumento de recomendações aos Estados que a ratificaram. A finalidade, entre outras, dessa Convenção é chamar a atenção dos países signatários para o fato de serem os responsáveis pela conservação da sua biodiversidade.19 Por meio da própria definição de biodiversidade, contida na Convenção, percebe-se 15 O Brasil ratificou em, 28 de fevereiro de 1994, a Convenção da Biodiversidade, sendo aprovada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº 2, de 1994, e promulgada pelo Poder Executivo pelo Decreto nº 2519, de 16 de março de 1998. (PASSOS, Rogério Duarte Fernandes dos. A propriedade intelectual na Convenção sobre Biodiversidade Biológica. Prisma Jurídico. São Paulo, v. 5, 2006, p. 326). 16 ―O Brasil, até a Conferência do Rio de Janeiro de 1992, não vinha dando ao tema prioridade nos foros internacionais. A partir de 1992 [...] o Brasil tem participado ativamente das conferências das partes da Convenção, a primeira das quais realizada em Nassau, que criou o Grupo Ad Roquet Peritus em Biossegurança. Essa questão, logo depois, seria objeto da Lei n. 8.974/95, que estabeleceu normas para o uso de técnicas de Engenharia Genética para liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados e criou a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. A partir de meados de 1980, desenhou-se a tendência ao reforço dos direitos dos titulares de bens e materiais no âmbito da propriedade intelectual, a qual se corporificou no bojo da rodada do Uruguai do Gatt, de onde nasceu o Tratado de Marrakesh, que engloba o Acordo de Trips e o Acordo sobre os aspectos do Direito da propriedade intelectual, relacionados ao comércio, que veio a ser assinado em 1994, entrando em vigor em 1º de janeiro de 1995. Nessa mesma oportunidade, a reunião em Marrakesh aprovou, por meio de decisão ministerial, o Comitê de Comércio de Meio Ambiente da OMC, com o objetivo de compatibilizar os princípios da Convenção da Diversidade Biológica com os novos princípios multilaterais de comércio, dentre eles o da propriedade intelectual.‖ (LAFER, Celso. Biodiversidade, propriedade intelectual e comércio internacional. Revista CEJ, v. 3, n. 8, mai./ago. 1999). 17 ―Do ponto de vista do ambientalismo, o aspecto mais forte da Conferência do Rio de Janeiro [ECO 92] não foram acordos assinados pelos governos, mas precisamente a emergência germinal de uma sociedade civil planetária, expressada na constituição de um espaço público comunicativo onde se encontraram as diversas dimensões que compõem o ambientalismo, com raízes tanto no Sul quanto no Norte, no Leste como no Oeste, e pertencentes tanto ao sistema político como aos sistemas social e econômico‖. (LEIS, Héctor Ricardo. Ambientalismo: um projeto realista-utópico para a política mundial. In: Meio ambiente, desenvolvimento e cidadania: desafios para as ciências sociais. Eduardo Viola, Héctor Ricardo Leis et al. (org). 2. ed. São Paulo: Cortez; Florianópolis; Universidade Federal de Santa Catarina, 1998, p. 34). 18 A definição do que seja efetivamente a diversidade biológica está inserida no artigo 2º que explana que: ―Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas‖ (BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Decreto Legislativo nº 2, de 5 de junho de 1992. Estabelece a Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB. Série Biodiversidade 1. Brasília, DF, 2000, p. 15-17). 19 A cláusula de abertura prevista no art. 5º, § 2º, da CF/88, retrata que todo tratado internacional que verse sobre temas de direitos humanos, uma vez ratificados pelo ordenamento jurídico interno, possui status materialmente constitucional. Logo, a Convenção da Biodiversidade adentra no ordenamento pátrio, haja vista todo tratado internacional de matéria ambiental ser de direitos humanos. Assim, a incorporação de pactos ambientais no ordenamento jurídico interno deixa de ser meras recomendações. 210 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I que retrata o meio ambiente como um bem de uso comum do povo, como dispõe o art. 225 da Constituição Federal, devendo ser protegida e fiscalizada por todos. Há de se esclarecer que o meio ambiente é um bem jurídico essencial à sobrevivência humana, ao próprio direito à vida, e, portanto, tem de se garantir o uso ordenado da megadiversidade20 amazônica, pois a sua preservação garante uma condição de sobrevivência digna e viável ao planeta. A Convenção da Biodiversidade não expressa um conceito específico de propriedade intelectual em matéria de biodiversidade. Todavia, ressalta temas afins nos artigos: 15 quando versa sobre o acesso aos recursos genéticos; no 16, ao se referir ao acesso à tecnologia e à transferência de tecnologia, no 17, sobre o intercâmbio de informações; no 18, a cooperação técnica e científica e, no 19,quando pontua a gestão de biotecnologia e a distribuição de seus benefícios.21 A biodiversidade brasileira é uma das mais ricas do mundo, com mais de 20% do número total de espécies do planeta, de forma que o Brasil necessita garantir estruturas jurídicas internas e externas para a proteção dos direitos intelectuais. Na esfera internacional, vislumbra-se o acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights)22 que regula os direitos à propriedade intelectual dentro da Organização Mundial do Comércio (OMC), e objetiva à manutenção de níveis adequados de proteção aos direitos de propriedade intelectual nos Estados signatários, como forma de diminuir as diferenças de tratamento dos direitos de propriedade intelectual mundial e trazê-los para um conjunto comum de regras.23 O TRIPS e a CDB são muito diferentes quanto aos seus objetivos e provisões, visto que o primeiro protege e assegura o monopólio e a propriedade àqueles que detêm novas tecnologias, inclusive as oriundas da biodiversidade resultante de conhecimentos tradicionais,24 20 A biodiversidade brasileira se estende por uma área de 8,5 milhões km², ocupando quase a metade da América do Sul, formado por um bioma extremamente rico e diverso com mais de 20% do número total de espécies do planeta. Assim, com o objetivo de obter melhores informações dos dados científicos realizados nessas áreas ambientais é que em 21 de agosto de 2009, foi publicada no Diário Oficial da União (DOU), a Portaria 693, do Ministério da Ciência e Tecnologia, que institui a Política de Dados do Programa de Pesquisa em Biodiversidade. Assim, passa a existir uma normatização quanto à forma como devem ser manipulados e confeccionados os dados oriundos das pesquisas sobre a diversidade biológica brasileira e como essas informações devem chegar aos diferentes segmentos da sociedade. (BIODIVERSIDADE: Leia a Portaria sobre a Política de Dados. Observatório eco. Disponível em: < http://www.observatorioeco.com.br/ index.php/biodiversidade-leia-aportaria-sobre-a-politica-de-dados/> Acesso em: 26 set. 2009). 21 BRASIL, op cit., p. 12. 22 Um dos seus artigos mais polêmicos, do TRIPS é o 27.3(b), que se refere às possíveis exceções quanto ao patenteamento de organismos vivos. 23 DUTRA, Paula Hebling; PRESSER, Mário Ferreira. Propriedade intelectual e biodiversidade: avanços nas negociações dentro do parágrafo 19 da declaração de Doha. Economia Política Internacional: análise estratégica, n. 5, p. 52-57,abri./jun.- 2005, p. 52. 24 Segundo a Unesco ―conhecimentos tradicionais se entende o conjunto acumulado e dinâmico do saber teórico, a experiência prática e as representações que possuem os povos com vasta história de interação com seu meio 211 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I enquanto a CDB estabelece princípios da repartição justa e equitativa dos benefícios oriundos da biodiversidade, além de valorizar os conhecimentos tradicionais. Apesar de os Estados signatários concordarem com o fato de os dois acordos deveriam ser implementados mutuamente para auxiliar no binômio propriedade intelectual versus diversidade biológica, isso não ocorre na prática. 2 A IMPORTÂNCIA DA PROPRIEDADE INTELECTUAL 2.1 Breves contextualizações sobre a propriedade intelectual A princípio, faz-se necessário abordar algumas considerações sobre o termo propriedade, para melhor contextualizar a propriedade intelectual. Nesse fito, propriedade constitui-se como um fenômeno espontâneo, natural, oriundo da necessidade substancial do homem, a qual necessita ser regulada para garantir um convívio harmônico e pacífico entre os homens. Como aponta Silvio Rodrigues ao expor que: [...] dentro do sistema de apropriação de riqueza em que vivemos, a propriedade representa a espinha dorsal do direito privado, pois o conflito de interesse entre os homens, que o ordenamento jurídico procura disciplinar, manifesta-se na quase generalidade dos casos, na disputa por bens.25 A propriedade é, e sempre foi, um instituto jurídico caracterizado fundamentalmente pelo direito de usar, gozar e dispor com exclusividade da coisa, como dispõe o artigo 1.128 do Código Civil Brasileiro, de 2002. O direito de propriedade está integrado ao direito de ser usada a coisa de acordo com os ensejos da pessoa a quem pertence (jus utendi ou direito de uso) o fruir e gozar dessa coisa (jus fruendi), retirando dela todas as utilidades -proveitos, benefícios e frutos - que possam ser produzidas, o dispor dela, transformando-a, consumindo-a, alienando-a (jus abutendi), segundo as necessidades ou a vontade demonstrada, além da capacidade de reavê-los de quem injustamente os possua (rei vindicatio). Dessa forma, a retenção desse conjunto de elementos aludidos institui a titularidade da propriedade. 26 De acordo com Herman Benjamin: natural. A propriedade desses conhecimentos, que estão estreitamente vinculados à linguagem, às relações sociais, à espiritualidade e à visão de mundo, é geralmente mantida coletivamente.‖ (CONHECIMENTOS TRADICIONAIS. UNESCO. Disponível em <http://www. brasilia.unesco.org/areas/ cultura/areastematicas/ patrimonioimaterial/ conhecimentos-tradicionais>. Acesso em: 01 out. 2009). 25 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito das coisas. 28 ed.São Paulo: Saraiva, 2003, v. 5, p. 76. 26 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 3 ed.São Paulo: Saraiva, 2008, v. 5, p. 209. 212 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Num primeiro momento histórico, por força do Welfare State, reconhece-se uma função social ao direito de propriedade legitimando, por exemplo, a intervenção do Estado para proteger categorias de sujeitos, como os trabalhadores. Mais recentemente exige-se que a propriedade também cumpra sua função social ambiental, como condição para seu reconhecimento jurídico.27 Nesse sentido, a função social da propriedade, 28 expressa no artigo 170, inc. III, da CF/88, assume um caráter ambiental, em prol de efetivar um meio ambiente sustentável às recentes e às futuras gerações. A propriedade intelectual é entendida como uma modalidade especial do direito de propriedade e umbilicalmente está vinculada ao direito internacional, constatada nas Convenções da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, de 1883, e na União de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, de 1886.29 No ordenamento pátrio, a CF/88 a consagra nos incisos XXVII, XXVIII e XXIX do art. 5º (rol exemplificativo das garantias fundamentais do ser humano). Assim, a propriedade intelectual assume um caráter de inviolabilidade garantida a todos os indivíduos – brasileiros ou estrangeiros, residentes ou não no Brasil – sua efetividade.30 Ressalta-se que, no século XX, existia uma grande divisão doutrinária quanto à natureza jurídica da propriedade intelectual, haja vista a corrente mais tradicionalista defender que a propriedade intelectual31 só recaia sobre objetos de bens matérias – móveis, semoventes ou imóveis - enquanto a corrente mais progressista, influenciada pela Igreja Católica e pelos movimentos sociais admitia-a também nos objetos de bens incorpóreos, ou seja, nas manifestações intelectuais dos seres humanos, como marcas, obras literárias, científicas, musicais, artísticas, estéticas, filmes, fonogramas, software, entre outras criações do gênero.32 Atualmente, esse embate se desfez, e, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, prospera o posicionamento de que a propriedade intelectual recai sobre objetos de bens 27 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. Objetivos do Direito Ambiental. Lusíada Revista da Ciência e Cultura, série de direito, Atas do I Congresso do Direito do Ambiente da Universidade de Lusíada, 1996, p. 40. 28 A ideia de que a propriedade, necessariamente, deve cumprir a função social, elencado no art. 170, III, CF/88, surgiu com o Cristianismo, ou seja, na concepção cristã da propriedade, na especulação tomística do bonum commune, cujo pensamento foi preservado, no moderno pensamento pontifical expresso nas atuais Encíclicas Sociais. (SZANIAWSKI, Elimar. Aspectos da propriedade imobiliária contemporânea e sua função social. Revista de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 3, jul-set. 2000, p. 128). 29 BASSO, Maristela. A proteção da propriedade intelectual e o direito internacional atual. Revista de Informação Legislativa. Brasília; ano 41, n. 162, p. 287- 309, abr./jun. 2004, p. 287. 30 Idem. A tutela constitucional da propriedade intelectual na Carta de 1988. Revista de Informação Legislativa. Brasília; ano 45, n. 179, p. 39-41, jul – set. 2008, p. 39. 31 A invenção é uma descoberta do homem, no entanto, nem toda invenção é patenteável. Assim, para receber a proteção legal há de atender alguns requisitos, como novidade, atividade inventiva e aplicação legal. (MAMEDE, Gladstone. Manual de direito empresarial. 3 Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 273). 32 A Convenção de Berna que versa sobre a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, de 1986, estatui em seu artigo 7.º a garantia dos direitos patrimoniais do autor. Assim, por mais de cinqüenta anos após a sua morte garante-se a titularidade originária, só modificando esse prazo por algum dispositivo contrário oriundo dos países signatários, contudo não inferior ao prazo fixado em Berma. (WACHOWICZ, Marcos. O software: instituto de direito autoral sui generis. Âmbito Jurídico, v. 07/07, 2007, p. 6). 213 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I corpóreos e incorpóreos, desde que apropriáveis pelo homem. 3 DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DA BIODIVERSIDADE AMAZÔNICA E A BIOPIRATARIA 3.1 Aspectos contextuais da biopirataria Historicamente, desde o ―descobrimento‖33 do Brasil aos dias atuais, há um inegável interesse – interno e externo – pela biodiversidade brasileira, tendo em vista a sua imensa variedade. Assim, por ser um Estado dotado de um amplo potencial ambiental, surge a cobiça de grandes transnacionais em obter lucros em cima das inúmeras explorações e especulações das riquezas naturais e dos conhecimentos valiosos dos homens da floresta, dos indígenas. Segundo dados que a História nos traz, a primeira expedição exploradora que ocorreu no Brasil objetivava estabelecer posses em tudo aquilo que supostamente representasse uma nova riqueza. Observa-se, portanto, resquícios da biopirataria, quando o pau-brasil passou a ser extraído da colônia portuguesa para servir de matéria-prima (corante) aos tecidos utilizados no mercado europeu. Atualmente, no contexto jurídico brasileiro, a biopirataria não encontra previsão normativa. Malgrado essa lacuna legal, vários autores remeteram opiniões sobre o tema. Manifesta-se Wandscheer, que a expressão biopirataria surgiu em meados de 1993, com a ONG RAFI,34 como meio de alertar a sociedade e as autoridades brasileiras do fato dos recursos biológicos e conhecimentos tradicionais indígenas estarem sendo apanhados e patenteados por empresas multinacionais e instituições científicas, sem autorização governamental.35 Juliana Santilli delimita o termo biopirataria da seguinte forma: 33 A história oficial do descobrimento do Brasil permeia na polêmica sobre Portugal saber ou não da existência das terras novas antes do desembarque, em abril de 1500, de Pedro Álvares Cabral, em Porto Seguro. Para alguns essa casualidade não passou de uma intencionalidade, visto existir fatos oficiais, da vinda de Vicente Pizón antes de Cabral, no hoje denominado Cabo de Santo Cabral. (FREITAS NETO, José Alves de. História geral e do Brasil. São Paulo: HARBRA, 2006, p. 235). 34 A ONG RAFI (Rural Advancement Foundation International) atualmente é denomina de ETC-GROUP (Action Group on Erosion, Technology and Concentration). 35 WANDSCHEER, Clarissa Bueno. Reflexões sobre a biopirataria, biodiversidade e sustentabilidade. IN: SILVA, Letícia Borges da; OLIVEIRA, Paulo Celso de (Orgs). Socioambientalismo uma realidade: homenagem a Carlos Frederico Marés de Souza Filho. Curitiba: Juruá, 2008. p. 68. 214 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I [...] é a atividade que envolve o acesso aos recursos genéticos de um determinado país ou aos conhecimentos tradicionais associados a tais Recursos genéticos (ou a ambos) em desacordo com os princípios estabelecidos na Convenção sobre Diversidade Biológica, a saber: - a soberania dos Estados sobre os seus recursos genéticos, atividades de acesso, bem como a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados de sua utilização [...].36 Sob essa ótica, biopirataria seria a obtenção de elementos da biodiversidade para patenteá-los37 e explorá-los economicamente, podendo ou não ser com o uso do conhecimento tradicional, ou seja, com a participação ou não de pessoas capacitadas a identificarem os princípios ativos contidos nos recursos naturais daquela região, sem o consentimento prévio do Estado de origem detentor dessa biodiversidade. Conceituando o tema, Maria Helena Diniz aduz que ―A biopirataria consistiria no uso de patrimônio genético de um país por empresas multinacionais para atender fins industriais, explorando, indevida e clandestinamente, sua fauna ou sua flora, sem efetuar qualquer pagamento por essa matéria-prima‖.38 Insta ressaltar que a utilização desmedida e ilícita da biodiversidade, na região Amazônica e em diversos pontos territoriais brasileiros, não somente é realizada por multinacionais, mas por madeireiros, seringueiros, entre outros. Veem-se alguns fragmentos das plantas e dos vegetais sendo comercializados pela própria população em mercados e feiras livres, sem qualquer fiscalização legal quanto a sua obtenção. A obtenção irregular desses recursos constitui, em grande parte dos casos, a fonte de renda e de capital de populações pobres,39 que se valem dessa atividade para garantir melhores condições de vida para si e para seus familiares, 40 indo contra a prevenção e a manutenção da rica diversidade biológica. Em verdade, essa conduta constitui uma biopirataria, na medida em que espécimes da fauna e da flora são retiradas de seu habitat natural, sem o prévio conhecimento e permissão das autoridades competentes, ocasionando a dissipação da biodiversidade brasileira. 36 SANTILLI, Juliana. Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos. In: MATHIAS, Fernando; NOVIUON, Henry de (Org.). As encruzilhadas da modernidade: debate sobre biodiversidade, tecnociência e cultura.. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006. p. 85 (Série documentos do ISA, 9). 37 Para Maria Helena Diniz, patente ―[...] é um titulo outorgado pelo Poder Público a um inventor para que este tenha exclusividade na exploração de sua invenção (art. 8º da lei n. 9.279/96), impedindo que outrem o explore sem a sua anuência‖. (DINIZ, Maria Helena. O estado atual de biodireito. São Paulo: Saraiva, 2002, p, 443). 38 Ibid., p.642-643. 39 Um exemplo do comércio irregular, na Amazônia Legal, é a venda clandestina, ao norte do Amapá, da torianita (minério radioativo de alta densidade, com cerca de 7,8% de urano em sua composição) que é comercializada por populações pobres não cientes , em regra, do riscos que correm ao acondicioná-la em suas próprias residências. 40 Uma mensuração criteriosa deve ser realizada nessas situações, haja vista o dano causado por esses atos não repercutirem na mesma proporção do que os oriundos dos atos clandestinos das multinacionais. 215 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I 3.2 A biopirataria na Amazônia e a proteção intelectual Internacionalmente, a Convenção sobre a Diversidade Biológica configura em instrumento de alta relevância no que tange à propriedade intelectual, pois trata o valor da diversidade biológica de forma mais consciente, por se preocupar com a utilização sustentável de seus componentes e a divisão justa e equitativa dos seus benefícios. O Brasil tem, portanto, uma responsabilidade a mais em relação à Convenção41 sobre a Biodiversidade,42 por ser o possuidor de uma das maiores diversidade biológica mundial, grande parte focada na região amazônica. Dessa forma, urge um desafio diário e contínuo de conservar, manter e utilizar de forma sustentável esse legado. Observa-se que, a cada dia que passa, esta tarefa configura-se como árdua e difícil de ser conseguida, visto envolver obstáculos de coexistência entre os desenvolvimentos científicos, tecnológicos e econômicos. A Convenção sobre a Diversidade Biológica no que diz respeito à propriedade intelectual, firma que os Estados detentores de biodiversidade deverão receber pelos produtos derivados, uma contrapartida pela sua utilização, além dos direitos provenientes das patentes relacionadas. Porém, por a CDB não ser plenamente eficaz, surge um relevante problema,43 que é a inexistência, nos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC), de qualquer referência quanto à existência de uma contrapartida para os Estados possuidores de diversidade biológica e a sua proteção intelectual, como prevê a CDB. Vislumbra-se, portanto, que a questão da eficácia das normas internacionais situada em um contexto de diferentes culturas e interesses é complexa e multifacetada, necessitando urgentemente de ponderação e bom senso dos dirigentes estatais. Internamente, medidas protetivas nacionais, com o objetivo de amenizar a crise ambiental, constam no ordenamento brasileiro, haja vista a necessidade da implementação de um eficiente arcabouço legal que objetive um retrocesso no uso indiscriminado da biodiversidade brasileira. A Lei n. 11.105, de 2005, estabelece normas de segurança e mecanismos de 41 O Estado brasileiro para firmar os compromissos junto à CDB institui, no Ministério do Meio Ambiente, o Decreto 1.354, de 1994, o Programa Nacional da Diversidade Biológica (PRONABIO), que objetiva promover uma parceria entre o Poder Público e a sociedade civil quanto à conservação da diversidade biológica. 42 Em 2002, com base nos termos da CDB e da legislação nacional vigente sobre o tema, é instituído o Decreto nº 4.339, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, com o fim de implementar os princípios e as diretrizes da Política Nacional de Biodiversidade. 43 Vale ressaltar que outro problema importante quanto à eficácia da CDB consiste da não adesão dos EUA ao tratado, haja vista ser um dos Estados com mais investimentos biotecnológicos e que mais possui pedidos de patentes. 216 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I fiscalização com o objetivo de resguardar a biossegurança das atividades científicas que envolvam organismos geneticamente modificados (OGM) e seus derivados. Referida Lei, portanto, passa a viabilizar, em consonância com a Carta Magna, a necessidade não só de preservar a diversidade do patrimônio genético brasileiro, mas a de garantir a sua integridade.44 No entanto, a regulamentação expressa não é suficientemente clara para combater as manipulações genéticas no contexto da biopirataria. Essa lei proíbe a engenharia genética, 45 todavia, permite a manipulação para fins terapêuticos, que acaba ocasionando discussões na comunidade científica quanto à finalidade terapêutica. Em suma, a lei disciplina aspectos relacionados aos organismos geneticamente modificados de forma dispersa e confusa, resultando em uma regulamentação precária e ineficaz, frente a questões de extrema relevância social.46 A Lei de Patentes (Lei n. 9.279/96),47 também não confere total proteção quanto à atuação de biopiratas, visto não impedir que Estados - detentores de tecnologia de ponta - não usurpem a megadiversidade amazônica. Uma vez comprovado favorável o resultado biotecnológico, a forma da obtenção dos recursos é irrelevante, de forma que o produto final obtido clandestinamente, torna-se perfeitamente adaptado às exigências legais de patentes48 por se enquadrarem nos critérios de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. A Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98) estatui sanções penais49 e administrativas para os crimes ambientais cometidos, no território nacional, por pessoa física ou jurídica. No entanto, os lucros obtidos da exploração, compensam as punições sofridas, o que leva ao aumento da biopirataria. Como aponta Homma ao expor que: Diversos produtos oriundos da biodiversidade amazônica estão sendo patenteados nos Estados Unidos, Japão e na União Européia. Não escapam, também, o registro como marcas, os nomes de frutas amazônicas, como cupuaçu e açaí. Muitas dessas patentes estão registradas desde os anos 90, como é caso da copaíba, na França e nos EUA.50 44 FIORILLO, op cit., p. 290. O artigo 225, § 1º, II e V, da CF de 1988, passou a proteger juridicamente o patrimônio genético. 46 CANOTILHO, op cit.,p. 242. 47 Infelizmente, esta lei fortalece a propriedade sobre o material genético aos Estados que conseguem isolar o DNA e registrar a propriedade intelectual sem que haja a comprovação da origem do material genético. 48 A Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, aprovou em 30/09/09, um texto substitutivo do Projeto de Lei 4961/05, que versa sobre o registro de patentes de substâncias e materiais biológicos obtidos, extraídos ou isolados da natureza. O objetivo da modificação foi dirimir dúvidas, sem alterar sua essência, ou seja, evitar más interpretações e lacunas quanto ao assunto. Tal análise deve perdurar, para coibir aprovações de projetos que possam prejudicar, cada vez mais, a proteção intelectual da diversidade ambiental, devido interpretações dúbias ou omissas. (MEIO AMBIENTE APROVA PATENTE PARA MATERIAL BIOLÓGICO. Câmara dos Deputados. Disponível em:< http://www2.camara.gov.br/internet/homeagencia/materias.html?pk=140926>. Acesso em: 03 out. 2009). 49 Vale salientar que no projeto inicial da Lei de Crimes Ambientais, o artigo 47, fazia uma alusão expressão a tipificação da biopirataria como crime, sob pena de detenção de 1 a 5 anos ou multa. Todavia, o referido artigo foi vetado pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso. 50 HOMMA, Alfredo Kingo Oyama. Extrativismo, biodiversidade e biopirataria na Amazônia. Brasília, DF: Embrapa Informação Tecnológica, 2008, p. 79. 45 217 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A fragilidade na atuação estatal, em se tratando da biopirataria na Amazônia, existe e inviabiliza ações repressivas a atividade nociva da biopirataria, fato oriundo de múltiplos fatores, como a carência de fiscalização na região, a falta de conhecimento sobre a biodiversidade local, a reduzida quantidade de pesquisadores, a ausência de investimentos em pesquisas científicas, entre outros. Em suma, o principal problema da proteção intelectual frente à biopirataria, tanto no âmbito internacional como no nacional, não consiste na ausência de leis ou de tratados pertinentes ao assunto, mas na eficácia destes. Visto a falta de legislação eficaz não proporcionar as autoridades competentes os instrumentos hábeis para se combater eficientemente essa prática nociva. Destarte, a instituição de meios para se obter a eficácia normativa, deve ser buscada por meio da implementação de normas cogentes e do fortalecimento e da valorização das instituições responsáveis em proteger a diversidade biológica e combater a biopirataria nos respectivos sistemas protetivos que apresentam deficitária a sua aplicação. CONCLUSÃO A diversidade biológica brasileira, em especial, a localizada na Amazônia, além de constituir um fator de extrema relevância para o equilíbrio ecológico planetário, possui um valor intrínseco. Dessa forma, mesmo tendo resguardada a sua soberania na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), observa-se a necessidade de utilizar os recursos sustentáveis e equilibradamente em favor não só do ser humano, mas de todos os habitantes do planeta. A intensa concorrência dos mercados internacionais reflete na busca pela biodiversidade, como forma de determinadas nações se inserirem no processo globalizado e manterem-se compatíveis com os demais Estados no que concerne às rápidas e as constantes mudanças biotecnológicas. Assim, a cada dia, aumentam-se a prática da biopirataria e, consequentemente, a perda do patrimônio biológico brasileiro. Atualmente, observa-se a existência de normas, internas e externas, que regulam a proteção intelectual, todavia, referidas ações mostram-se ineficientes e inoperantes quanto à proteção de um bem jurídico tão consistente – o meio ambiente. No Brasil, constata-se que, quando o assunto é biopirataria, há uma lacuna no ordenamento pátrio, que deve ser preenchida o mais breve possível. 218 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I REFERÊNCIAS BASSO, Maristela. A proteção da propriedade intelectual e o direito internacional atual. 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Curitiba: Juruá, 2008. 220 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I HÁ UM DIREITO FUNDAMENTAL À FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE? Daniel Gomes de Miranda1 SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Sobre a função social da propriedade. 3 Um olhar sobre a função social da propriedade dos bens públicos. 4 Considerações Finais. Referências. RESUMO A propriedade, como concebida pelo constituinte, gera uma série de obrigações para seu titular, visando a conferir utilização adequada dos bens. Altera-se o entendimento sobre a própria natureza jurídica da propriedade, que, deixando de ser um direito subjetivo individual absoluto, é tida como uma relação jurídica complexa, ensejando direitos e deveres para o proprietário e para a coletividade, reciprocamente. Tal como o direito fundamental à propriedade, reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, é de se afirmar que há, também, um direito fundamental ao atendimento da função social, oponível ao proprietário, ainda que seja ente da Administração Pública. A metodologia utilizada é de pesquisa bibliográfica. Conclui-se no sentido da existência de um direito fundamental da coletividade de exigir, do proprietário, o cumprimento da função social da propriedade. Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Fundamental. Função Social da Propriedade. ABSTRACT The property, as conceived by constituent, generates a series of obligations to its holder, to give appropriate use of the goods. The understanding of the legal nature of the property changes, from an absolutely individual right, as a subjective right, and is taken as a complex legal relationship, giving rights and duties to the owner and collectivity, mutually. As the fundamental right to property, recognized by the doctrine and jurisprudence, it‘s possible to say that there is also a fundamental right, of the collectivity, against the owner, even if this one is public administration. The methodology used is bibliographic search. In conclusion, it‘s possible to say that there is a fundamental right of collectivity, that can d'exiger, the owner, the fulfilment of the social function of property. 1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Professor substituto do Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da UFC. Pesquisador do Projeto Casadinho (UFC-UFSC) – CNPq. Advogado. E-mail: [email protected]. 221 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Keywords: Constitucional Right. Fundamental Right. Social Function of Property. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho visa a, partindo de um estudo doutrinário a respeito da função social da propriedade, aferir se se pode afirmar a existência de um direito fundamental ao atendimento da função social, exigindo-se, com proteção constitucional, o cumprimento desse ônus pelo proprietário. Inicia-se o trabalho com a explicitação da noção de função social da propriedade, dissertando-se acerca da natureza jurídica da propriedade e dos reflexos dessa nova compreensão do instituto para o Direito. Afirma-se a propriedade como relação jurídica complexa, em que o proprietário e a coletividade são titulares de direitos e devedores de obrigações reciprocamente, cabendo a esta um dever geral de abstenção e ao primeiro, a obrigação de atender à função social da propriedade que titulariza. Em seguida, desenvolve-se um breve estudo sobre a função social da propriedade dos bens públicos, sustentando-se que a função social também é exigível da Administração, devendo esta utilizar os bens públicos em conformidade com a destinação social de cada categoria de bens. A consulta realizada na pesquisa teve caráter exclusivamente bibliográfico, iniciandose com leituras gerais acerca do tema, notadamente no que se refere às noções de função social da propriedade, bens públicos, principiologia constitucional e teoria do direito. 2 SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Os direitos fundamentais, tal como lhes concebe a doutrina e a jurisprudência constitucionais desenvolvidas na segunda metade do século XX, passaram a compor o cerne de todos os ordenamentos jurídicos, como valores informativos e diretivos, de sorte a figurar, no dizer de Robert Alexy2, como normas de otimização da aplicação das regras jurídicas. Marcelo Lima Guerra3, citando Jorge Miranda, afirma que essa mudança de 2 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 1979. 3 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos Fundamentais e a Proteção do Credor na Execução Civil. São Paulo: RT, 2003, p. 82. 222 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I concepção do ordenamento jurídico em si mesmo, através do reconhecimento da superioridade hierárquica da Constituição, e da existência de força normativa de seus princípios, consistiu num verdadeiro ―giro copernicano‖, porquanto colocou os valores fundamentais como vetores e fundamento da atuação do Estado e dos indivíduos. A Nova Hermenêutica Constitucional aponta no sentido de render maior efetividade aos princípios constitucionais, superando a compreensão de que os direitos fundamentais apenas teriam o condão de proteger o indivíduo em face do Estado. Willis Santiago Guerra Filho, proclamando a irradiação dos direitos fundamentais na relação entre particulares, afirma: É nesse contexto que se supera, igualmente, a visão clássica dos direitos e garantias fundamentais enquanto direitos e garantias individuais, liberdades publicas, voltados exclusivamente contra o Estado, o qual, perante tais direitos, teria o dever de tãosomente abster-se da prática de atos que os ameaçasse ou violasse. Atualmente, não apenas se concebem os direitos fundamentais como dotados de um aspecto prestacional, a exigir ações por parte do Estado para implementá-los, mas também, sendo o que aqui nos importa particularmente destacar, se atribui a tais direitos uma eficácia reflexa, ou eficácia perante terceiros (Drittwirkung), tornando-os aptos a proteger seus titulares também contra ameaças e violações por parte de seus cocidadãos, individualmente considerados ou coletivamente organizados, de modo especial na forma de ―poderes sociais‖ (soziale Gewalten), representados por grandes organizações da sociedade civil organizada e/ou do setor empresarial (...). É assim que o clássico direito de propriedade, pedra angular sobre a qual se erige grande parte do sistema de direito privado, deverá ser conformado pelos princípios fundamentais constitutivos do Estado Democrático de Direito em nosso País, dentre os quais figuram, por força ao art. 1º, incs. III e IV, a dignidade da pessoa humana, bem como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, respectivamente. 4 Em citação que vem a completar esse raciocínio, no tocante à atuação das organizações da vida civil de que fala Willis Santiago Guerra Filho, Virgílio Afonso da Silva assevera: Da mesma forma que essas forças sociais podem prejudicar o sistema político, em razão de sua alta concentração de poder, o mesmo ocorre no âmbito jurídico. Essas corporações, ainda que privadas, alcançam uma posição de dominação, sobretudo por meio da concentração financeira, que lhes confere um tal poder de decisão mas suas relações com os indivíduos, que qualquer relação jurídica entre ambos, a despeito de se fundar aparentemente na autonomia da vontade, é, na verdade, uma relação de dominação, que ameaça, tanto quanto a atividade estatal, os direitos fundamentais dos particulares.5 Dessa forma, passa-se a ser reconhecida a ocorrência de afronta a Direitos Fundamentais levada a cabo pelos próprios particulares em face uns dos outros, sendo que, nesse caso, ambas as partes do conflito são titulares de Direitos e Garantias Fundamentais. A constitucionalização, no direito privado, manifesta-se, sobremodo, através de limitações aos dois institutos mais caros à doutrina jusprivatística: autonomia da vontade, 4 GUERRA FILHO, Willis. Direito das Obrigações e Direitos Fundamentais: Sobre a projeção do Princípio da Proporcionalidade no Direito Privado. Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais. nº 1 (jan/jun de 2003). Belo Horizonte: Del Rey, p. 534. 5 SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 52/53. 223 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I relativamente à liberdade de contratar; e uso da propriedade privada, mediante subordinação a valores constitucionais e respeito aos direitos fundamentais. Expressa-se, assim, uma repersonificação e, concomitantemente, uma despatrimonialização e uma funcionalização do Direito Civil, na medida em que a proclamação da Dignidade da Pessoa Humana, como vetor do sistema constitucional, rende primazia ao sujeito com ser humano, visando a afastar o individualismo patrimonialista despersonalizado que dominara, por séculos, a doutrina civilista. Luis Edson Fachim, tecendo comentários sobre essa circunstância, assim se pronunciou: O caminho a percorrer é retomada e decolagem, uma viagem pedagógica pelo saber jurídico informado pelas premissas críticas e pelos novos perfis do Direito Civil. Conjugando a virada copernicana que recola papéis e funções do Código e da Constituição, reafirma a primazia da pessoa concreta, tomada em suas necessidades e aspirações, sobre a dimensão patrimonial, e sustenta, por meio da repersonalização, a inegável oportunidade do debate permanente entre os espaços público e privado. Ao assim proceder, estriba-se na funcionalização das titularidades para repensar paradigmas contemporâneos, e para introduzir questões de fundo que, associando conteúdo e método no arco histórico, atravessam o evento unitário da codificação. 6 Especificamente no Brasil, a noção de constitucionalização do direito, antes presente apenas em sede doutrinária, ganhou reforço com o advento da Constituição Federal de 1988, uma vez que esta traz, em seu bojo, tratamento jurídico de diversos institutos de direito infraconstitucional, como, por exemplo, usucapião, relações trabalhistas, e, mais especificamente, o objeto deste estudo, a função social da propriedade. A inserção dessas matérias no bojo da Constituição é de enorme utilidade pragmática, na medida em que, sendo a Constituição o fundamento de validade último de todo o ordenamento jurídico, já traz em si a explicitação dos valores que guiarão a atividade do intérprete e do aplicador da norma infraconstitucional. A Constituição Federal, no art. 5º, inciso XXII, reconhece a propriedade como direito fundamental, determinando, no inciso seguinte, a necessidade de atendimento à função social. Da mesma forma, a propriedade socialmente funcionalizada é prevista nos incisos II e III do seu art. 170, desta feita enunciados como princípios da ordem econômica. O direito de propriedade, como todos os demais direitos fundamentais, deve ser exercido em consonância com o conjunto de normas constitucionais. Seu exercício sofrerá influências de interesse sociais, garantindo a Constituição sua existência, mas não a forma absoluta do exercício das faculdades que a compõem. Já não há como se admitir, como o fazia o Código de 1916, que o direito de 6 FACHIM, Luis Edson. Transformações do direito civil brasileiro contemporâneo. Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a Racionalidade Contemporânea. Organ.: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 43 224 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I propriedade seja exercido de forma absoluta, sendo necessária a observância dos reflexos que a utilização da propriedade gera para a coletividade. Desde há algum tempo, o reconhecimento da necessidade de a propriedade atender a uma função social vem consolidado na doutrina nacional, senão veja-se o que afirmou, no início da década de 1980, Raimundo Bezerra Falcão: Lembra Orlando Gomes a oposição que se levantou à inserção da noção de função social da propriedade. Apontava-se, então, uma insanável contradição. ―Não se imaginava que, poucos anos depois, se chegaria à convicção, hoje generalizada, porque inclusive aceita em várias Constituições, de que a propriedade é uma função especial, de que a utilização dos bens, para o exercício de uma atividade produtiva, não pode mais ser admitida como um direito natural, que se exerce em proveito próprio, para tirar vantagens, porque se assumem os riscos desse exercício. Hoje, a idéia da função social está substituindo a de propriedade como direito subjetivo, ilimitado‖. Mas não é apenas isso que deve ser levado em conta. Cabe ressaltar, ademais, ser menos provável que a propriedade seja uma função social do que tenha uma função social. Isso eliminaria toda a pretendida contradição, considerando-se que a propriedade já nasceria como função e não como facultas agendi. 7 Muito tempo antes, em meados do século XIX, o gênio de Teixeira de Freitas já havia atentado para a necessidade de a propriedade conter um viés social. Na sua Consolidação das Leis Civis consta a seguinte passagem: A propriedade [...] compõe-se de dous elementos: um individual e outro social; se o primeiro é a base, o segundo é o regulador do direito de propriedade; e ambos devem ser combinados e harmonisados para dar á propriedade um caracter orgânico, reflexo das relações orgânicas que existem entre o indivíduo e a sociedade, entre o homem e a humanidade. Do mesmo modo que o indivíduo não deve ser absorvido pela sociedade, também o direito individual de propriedade não se perde no direito social. Eis a doutrina exacta, que sem fazer derivar só da lei a propriedade, como aliás pensárão Montesquieu e Bentham, attribue á lei o que verdadeiramente á lei pertence.8 Teixeira de Freitas antecipara, naquele momento, a noção de compreensão do direito de propriedade como estrutura e função, conectando as faculdades subjetivas do titular do direito (―base‖) às obrigações decorrentes da propriedade (―regulador‖), constituindo essa compreensão, no dizer de Eros Roberto Grau, na vitória da Filosofia sobre o Direito9. Estrutura e função são os dois elementos que compõem determinado instituto jurídico. A estrutura define quais faculdades compõem o instituto, e pode ser exprimida através da resposta à questão ―o que é?‖. Já a função exprime a finalidade, isto é, o papel a ser cumprido, de modo que pode ser captada através do questionamento ―para que serve?‖. A configuração da função social na estrutura da propriedade sugere a este direito um 7 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança Social. Ed. Forense. Rio de Janeiro. 1981. p. 236-237. TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das leis civis. Apud VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: Um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 219. 9 ―[...] a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção romana que justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade de patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função.‖ Apud LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar: 2003, p. 105. 8 225 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I condicionamento, uma finalidade a ser alcançada. De início, a função social era apresentada como mera indicação programática, despida de efeito imediato na estrutura do direito de propriedade. Num segundo momento, passou a ser identificada como limite externo ao domínio, um condicionamento sem atingir sua estrutura de direito subjetivo. Hoje se entende a função social como elemento intrínseco à propriedade, revelando os valores e interesses a serem tutelados por este instituto, sem, no entanto, desnaturá-la, de modo que a propriedade deve ser estudada e exercida segundo o texto constitucional, positivamente, isto é, nos sentido de que não constitui restrição do direito, mas atribuição de novos poderes ao titular. Veja-se, por oportuno, a noção de função social que é dada por Fábio Konder Comparato: Quando se fala em função social da propriedade não se indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios. Estas últimas são limites negativos ao direito de propriedade. Mas a noção de função, no sentido em que é empregado o termo nesta matéria, significa um poder, mais especificamente, o poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo social mostra que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo e não ao interesse próprio do dominus; o que não significa que não possa haver harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer modo, se está diante de um interesse coletivo, essa função social da propriedade corresponde a um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica.10 Nessa linha de idéias, propriedade não é mais tida como o direito subjetivo de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa, entendimento já ultrapassado, por força do qual poderia o titular exercer essas faculdades desmedidamente, ou, caso preferisse, não as exercer. Se o proprietário do Estado Liberal agia nos imites impostos pela lei, podendo fazer o que quisesse, desde que não prejudicasse terceiros, o proprietário atual sofre uma remodelação em decorrência da função social, de modo que deve direcionar a propriedade ao interesse coletivo, desde que não prejudique a si. Conforme assinala Francisco Eduardo Loureiro11, a propriedade é uma relação jurídica complexa, isto é, um vínculo que liga duas partes, com direitos e deveres recíprocos. A função social cria um complexo de obrigações, encargos, limitações, estímulos e ameaças, que formatam o direito de propriedade. Judith Martins-Costa e Gérson Luiz Carlos Branco afirmam que ―a função social exige a compreensão da propriedade privada [...] como uma pluralidade complexa de situações jurídicas reais, que englobam, concomitantemente, um complexo de situações jurídicas subjetivas‖12. 10 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: RT, n. 63, p. 75. 11 LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar: 2003, 12 MARTINS-COSTA, Judith e BRANCO, Gérson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 148. 226 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I Nessa relação jurídica, o proprietário titulariza o direito de exigir, dos nãoproprietários, um dever genérico de abstenção, em decorrência da proteção constitucional assegurada pelo art. 5º, inciso XXII; e, por outro lado, a coletividade tem o direito de exigir do proprietário que conceda função social à propriedade, por força do já mencionado inciso XXIII, do mesmo artigo. A expressão relação jurídica complexa sintetiza exatamente esta realidade de direitos e deveres recíprocos, derivados de um mesmo fato jurídico – a propriedade – exprimindo dias situações jurídicas contrapostas e o balanceamento de interesses de cada um dos pólos da relação. O cumprimento da função social encerra, portanto, uma obrigação de fazer ou nãofazer, a ser empreendida pelo proprietário, em atendimento às necessidades sociais, exigíveis pela coletividade em caso de inadimplemento do titular do bem. Integra o direito de propriedade, por vincular o direito subjetivo ao atendimento do interesse social. Contribui, ainda, para a identificação de deveres a serem observados pelo titular do direito real, inseridos na relação jurídica firmada com toda a coletividade, diante da ampla oponibilidade de seu direito, inclusive erga omnes. Diante dessa constatação, pode-se afirmar: se há um direito fundamental à propriedade, assegurado pela Constituição Federal, é de se ter que, diante da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que faz incidir os direitos e garantias fundamentais nas relações entre particulares, e sendo a propriedade uma relação jurídica complexa, envolvendo o proprietário e a coletividade, não se pode negar que há, em benefício desta, um direito fundamental ao atendimento da função social da propriedade, exigível do titular desta mesma propriedade. Se o direito fundamental deste último se fundamenta no inciso XXII, do art. 5º, e no inciso II, do art. 170, o direito fundamental ao atendimento da função social da propriedade tem fundamento no inciso XXIII do mesmo art. 5º, no inciso II, do art. 170, e nos arts. 182 e 186, todos da Constituição Federal. A Constituição não estabelece parâmetros objetivos da aferição do cumprimento da função social, por tal conceito encerrar uma idéia evolutiva, variável conforme o objeto em análise, bem como em razão da estrutura do próprio grupo social, do tempo, do espaço e das regras específicas vigentes, aplicáveis ao caso concreto. Trata-se a função social, portanto, de uma cláusula geral, a ser preenchida no momento de aplicação da norma. Pelo fato de não existir hierarquia entre os direitos fundamentais de propriedade e sua função social, é impossível estabelecer qualquer gradação. Os princípios são relativos e toda 227 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I proporcionalidade deve ser realizada em concreto. Dão a necessidade de afirmar o princípio que na concretude do caso alcance maior peso e dimensão na concorrência de interesses conflitantes. Caso o proprietário não cumpra o dever constitucional, sofrerá sanções diferenciadas, conforme o grau de desídia e o modelo de propriedade. Isto porque não existe apenas uma única função social da propriedade, mas funções sociais de diversas propriedades: a pequena e a grande, a propriedade dos bens de consumo e a propriedade dos bens de produção. A defesa do direito à função social é exercida nos casos previstos em lei, isto é, apenas mediante norma expressa será permitida a interferência na propriedade. Conforme salientou Pietro Perlingieri, os limites à propriedade que não se inserem na norma são ―lesivos da reserva de lei que caracteriza a propriedade, ora porque não merecedores da tutela na medida em que são limitativos ou impeditivos da função social ou da acessibilidade a todos, da propriedade‖13. Nesse sentido, a defesa dos interesses difusos e coletivos dos não-proprietários será incumbida aos legitimados extraordinários, especialmente ao Ministério Público pela via da ação civil pública, com imposições de obrigações de fazer, como, por exemplo, exigir o fim da sub-produtividade, de não-fazer, de que é exemplo a cessação do abuso de direito, de dar, como a indenização pelos danos causados, tudo em conformidade om o disposto na Lei Federal nº 7.347/85, para a efetivação do princípio da função social. 3 UM OLHAR SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE DOS BENS PÚBLICOS É de se questionar ainda: aplica-se a função social aos bens públicos? Nilma de Castro Abe afirma que não, sob o fundamento de que [...] a aplicação do instituto da função social à propriedade pública esbarra em diversos óbices [...], revelando-se incompatível com o regime de Direito Público, de modo que a sua incidência implica num afastamento e enfraquecimento injustificados do regime jurídico público (princípio federativo, autonomia de administração dos entes federados, obediência à lei orçamentária, imunidade tributária, indisponibilidade do interesse público), o que não se coaduna com uma leitura sistemática dos ditames da Constituição Federal que regem a gestão dos bens públicos no Brasil.14 Esse entendimento não se coaduna com a interpretação que se deve dar à Constituição Federal. No art. 5º, inciso XXIII, tem-se que ―a propriedade atenderá a sua função social‖. Em 13 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 229. ABE, Nilma de Castro Rita. Notas sobre a inaplicabilidade da função social à propriedade pública. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (RADAE). Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, fevereiro/março/abril, 2007. Disponível na internet: <HTTP://www.direitodoestado.com.br/redes.asp>. Acesso em 10 de outubro de 2008. 14 228 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I primeiro lugar é de se ter que o constituinte, quando da redação do dispositivo, não fez distinção entre propriedade pública e propriedade privada, de modo que não é dado ao intérprete distinguir. Ademais, tal como já vem sendo defendido pela doutrina, não pode a administração se escusar da obrigação imposta constitucionalmente, sob o fundamento de que a função social é aplicável apenas à propriedade privada. Nesse sentido assinala Cristiana Fortini: Se a inércia e o descompromisso do proprietário privado são devidamente punidos, quer, via oblíqua, com o reconhecimento de que nodo é o titular do bem, configurada a hipótese de usucapião, quer com a aplicação das penas delineadas no Estatuto da Cidade, insustentável defender que a administração pública possa negar a vocação dos bens que formam seu patrimônio, deixando de lhes atribuir a destinação consentânea com o clamor social.15 Sendo titular do direito de propriedade, a pessoa jurídica de direito público também se insere na relação jurídica complexa, submetendo-se a essa obrigação constitucional e devendo, por via de conseqüência, conferir utilização socialmente funcionalizada aos bens de que é titular. E como se operaria a utilização funcionalizada dos bens públicos? A função social dos bens públicos varia em conformidade com a natureza desses bens, levando-se em consideração a classificação quanto à utilização ou destinação, que os diferencia em: a) Bens de uso comum do povo: são aqueles que se destinam à utilização geral pelos indivíduos, prevalecendo, aqui, a destinação pública, isto é, sua utilização efetiva pela coletividade. b) Bens de uso especial: são aqueles direcionados à utilização direta pelas pessoas jurídicas de direito público, a fim de viabilizar a realização das atividades administrativas em geral. c) Bens dominicais: inserem-se, nessa categoria, todos os bens que não possam ser classificados por uma das duas formas anteriores, de modo que a noção de bem dominical é residual. Em sendo assim, os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial extraem sua funcionalidade diretamente da afetação, ou seja, a função social lhes é concedida, na medida em que estão destinados ao uso coletivo ou à consecução das atividades da Administração, respectivamente. Nada obstante isso, a utilização desses bens pode ser potencializada pela 15 FORTINI, Cristiana. A Função Social dos Bens Públicos e o Mito da Imprescritibilidade. Revista Brasileira de Direito Municipal. Belo Horizonte, ano 5, n. 12, abril/junho, 2004, p. 117. 229 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I administração, visando a expandir os benefícios gerados a partir dessa mesma utilização. Vejase, por oportuno, o que afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro: A idéia que se defende é a de que existem determinados bens que comportam inúmeras formas de utilização, conjugando-se o uso comum do podo com usos privativos exercidos por particulares para diferentes finalidades. Ruas praias, praças, estradas estão afetadas ao uso comum do povo, o que significa o reconhecimento, em cada pessoa, da liberdade de circular ou de estacionar, segundo regras ditadas pelo poder de polícia do Estado; porém, se a ampliação dessa liberdade em relação a algumas pessoas, mediante outorga de maiores poderes sobre os mesmos bens, trouxer também alguma utilidade para a população, sem prejudicar o seu direito de uso comum, não há por que negar-se á Administração que detém a gestão do domínio público o poder de consentir nessa utilização, fixando-se as condições em que a mesma se exercerá. Concilia-se o uso comum do povo, que é a destinação precípua do bem, com o uso privado das vias públicas para a realização de feiras-livres, de exposições de arte, de venda de combustíveis, de distribuição de jornais, de comércio de flores e frutas; trata-se de usos privados, porque exercidos por particulares em seu próprio interesse, mas que também proporcionam alguma utilidade para os cidadãos. Por isso deve ser consentido.16 Não necessariamente a utilização conjugada deve ser exercida por particulares, tal como suscitado na transcrição, podendo a própria Administração otimizar a destinação dos bens de uso especial e dos bens de uso comum do povo. É de se afirmar, ainda, que a obrigação de manutenção dos bens públicos deve ser tida como decorrência direta da função social da propriedade, inserindo-se, aqui, a manutenção de praças e logradouros públicos, bem como dos imóveis em que se realiza a atividade administrativa. Quanto aos bens dominicais, afirma-se que eles atendem à exigência de função social na medida em que devem se submeter às diretrizes do Plano Diretor, quando urbanos, e à política agrária, quando rurais. A União Federal, por força no disposto no art. 184, da Constituição Federal, é legitimada ativa para realizar desapropriação para fins de reforma agrária, não havendo nenhum óbice a que o imóvel que se pretenda desapropriar seja de propriedade de outra pessoa jurídica de direito público. O critério de aferição da validade da desapropriação é, exatamente, o atendimento à função social, que, uma vez desobedecido, enseja a pretensão de desapropriação. O imóvel rural pertencente à Administração, da mesma forma que o titularizado pelo particular, deve obedecer ao disposto no art. 18617, da Constituição Federal, sob pena de perda da propriedade 16 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador: Instituto de Direito Público da Bahia, n. 6, abril/maio/junho, 2006. Disponível na internet: <HTTP://www.direitodoestado.com.br/redes.asp>. Acesso em 10 de outubro de 2008. 17 Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; 230 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I através de desapropriação. No tocante à política urbana, mais uma vez se cita Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que assinala: No que diz respeito aos instrumentos da política urbana previstos no Estatuto da Cidade, não há dúvida de que grande parte deles se aplica aos bens dominicais e, às vezes, mesmo aos bens de uso comum do povo e aos bens de uso especial. Não se pode esquecer que esse Estatuto tem fundamento constitucional. Assim, embora a competência para adoção das medidas de política urbana seja do Município, ela pode alcançar inclusive bens públicos estaduais e federais, desde que inseridos na área definida pelo plano diretor [...]. Desse modo, se algum bem público de qualquer ente governamental estiver situado na área definida pelo plano diretor, ele estará sujeito às ―exigências fundamentais de ordenação da cidade‖, indispensáveis para o cumprimento da função social da propriedade urbana, nos termos do § 2º do mesmo dispositivo constitucional [art. 182].18 Verifica-se, portanto, que há meios de efetivar a função social da propriedade dos bens públicos, sendo imperioso reconhecer a incidência da obrigação constitucional, também, sobre essa categoria de bens. Aqui, também, pode-se afirmar que há um direito fundamental ao atendimento da função social, oponível ao titular do direito de propriedade, isto é, ao Estado, podendo tanto a coletividade como as demais pessoas jurídicas de direito público atingidas exigirem o cumprimento da obrigação constitucional. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Do que se expôs, pode-se concluir: As normas e os princípios constitucionais tem força irradiante sobre todo o ordenamento jurídico, de modo que incidem, indiferentemente, nas relações entre particulares e entre estes e o Estado; Há um direito fundamental à propriedade, assegurado na Constituição Federal, que deve estar sempre conjugado de uma obrigação específica que lhe é correlata, a função social da propriedade; A propriedade compõe-se, assim, de uma estrutura, formada pelas faculdades de usar, fruir, dispor e reivindicar a coisa, e de uma função, que é a finalidade que dela se almeja, a depender do momento histórico; Por força disso, a função social da propriedade tem, também, natureza de cláusula geral, na medida em que seu conteúdo é definido no momento de aplicação da norma; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. 18 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Função Social da Propriedade Pública. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador: Instituto de Direito Público da Bahia, n. 6, abril/maio/junho, 2006. Disponível na internet: <HTTP://www.direitodoestado.com.br/redes.asp>. Acesso em 10 de outubro de 2008. 231 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte I A propriedade não pode ser mais considerada um direito subjetivo individual absoluto, haja vista que, por força da função social da propriedade, obrigações são impostas ao proprietário, convertendo-a, assim, em relação jurídica complexa, o que faz surgir direitos e deveres para o proprietário, de um lado, e para a coletividade, de outro; A Constituição não faz distinção entre propriedade privada e propriedade pública, quando da determinação de atendimento à função social, constante no art. 5º, inciso XXIII; Quanto aos bens de uso comum do povo e aos bens de uso especial, o atendimento da função social está ligado à própria utilização dos bens, isto é, à própria circunstância de estarem afetados a determinado fim público, mediante utilização pela Administração, para a realização de suas atividades, seja através do uso pela coletividade, respectivamente; Os bens dominicais atendem à função social a depender da localização. Se urbanos, devem atender às exigências do plano diretor; se rurais, devem obedecer ao disposto no art. 186 da Constituição Federal; O descumprimento da função social deve ensejar, para a Administração, as conseqüências previstas na Constituição e na legislação infraconstitucional; A propriedade, quando titularizada por pessoa jurídica de direito público não perde a natureza de relação jurídica complexa, sendo exigível da Administração que conceda função social ao bem, podendo os particulares ou outros Entes da Federação exigirem o cumprimento da obrigação constitucional. REFERÊNCIAS ABE, Nilma de Castro Rita. Notas sobre a inaplicabilidade da função social à propriedade pública. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (RADAE). Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, fevereiro/março/abril, 2007. Disponível em: <HTTP://www.direitodoestado.com.br/redes.asp>. Acesso em 10 de outubro de 2008. ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. 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A Função Social dos Bens Públicos e o Mito da Imprescritibilidade. Revista Brasileira de Direito Municipal. Belo Horizonte, ano 5, n. 12, abril/junho, 2004. GUERRA FILHO, Willis. Direito das Obrigações e Direitos Fundamentais: Sobre a projeção do Princípio da Proporcionalidade no Direito Privado. Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais. nº 1 (jan/jun de 2003). Belo Horizonte: Del Rey, p. 534. GUERRA, Marcelo Lima. Direitos Fundamentais e a Proteção do Credor na Execução Civil. São Paulo: RT, 2003. LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar: 2003. MARTINS-COSTA, Judith e BRANCO, Gérson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 52/53. VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: Um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 233 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II PARTE II PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE 234 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II APROXIMAÇÕES E DIVERGÊNCIAS ENTRE MEIO AMBIENTE E DIREITOS HUMANOS NO CENÁRIO INTERNACIONAL. Danielle Annoni1 Fernanda da Silva Lima2 SUMÁRIO: Introdução. 1. A Construção do Direito Internacional do Meio Ambiente. 2. Consolidando o Direito Internacional dos Direitos Humanos. 3. Direitos Humanos e Meio Ambiente: o caminho para o desenvolvimento sustentável. 4. Meio Ambiente e Direitos Humanos: aproximações e divergências. Considerações Finais. Referências. RESUMO As últimas décadas foram promissoras na criação de instrumentos internacionais voltados à proteção do meio ambiente e dos seres que o habitam. Tais instrumentos não se multiplicaram apenas no âmbito internacional, mas também fomentaram a atualização das legislações internas dos Estados-partes, inaugurando um movimento global simultâneo, dentro e fora das fronteiras estatais. A última década foi especialmente marcada pelo desejo de uma aproximação destes instrumentos nacionais e internacionais de proteção, tendo como elo a preocupação com a sobrevivência da humanidade e o legado ambiental das gerações futuras. Todavia, tais convergências tem se mostrado mais difíceis do que o imaginado, causando tensões políticas e diplomáticas, bem como divergências de políticas externas e políticas públicas sobre os limites e alcance da proteção dos direitos humanos e do meio ambiente em face da realidade econômica e a fase de desenvolvimento de cada Estado. Neste cenário, dois ramos distintos do direito internacional, qual sejam o meio ambiente e os direitos humanos, buscam identificar argumentos comuns na luta pela sobrevivência do planeta, apesar de ser o ser humano o principal causador dos problemas cujas soluções estão longe de ser alcançadas. Este é, pois, o objetivo do presente trabalho. 1 Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/ UFSC). Professora dos Cursos de Direito e Relações Internacionais da UFSC. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado da UFSC. Contato: [email protected] 2 Mestranda no Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC), Graduada em Direito (UNESC). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC) e do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED/UNESC). E-mail: [email protected]. 235 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Palavras-Chave: Meio Ambiente. Direitos Humanos. Direito Internacional. ABSTRACT The last decades have been promising to create a lot off international instruments aimed at protecting the environment and the beings that inhabit it. Such instruments have multiplied not only internationally, but also encouraged the upgrade of the domestic legislation of States Parties, inaugurating a global movement simultaneously inside and outside the state borders. The last decade has been particularly marked by the desire for an alliance between the national and international instruments of protection, with the link to be concerned about the survival of humanity and environmental legacy for future generations. However, such convergence has been more difficult than imagined, causing political and diplomatic tensions and differences in foreign policies and policies on the limits and scope of protection of human rights and the environment in the face of economic reality and the stage development of each state. In this scenario, two distinct branches of international law, which are the environment and human rights, seek to identify common arguments in the struggle for survival of the planet, despite being the human being the main cause of problems whose solutions are far from being achieved. This is therefore the objective of this work. Keywords: Environment, Human Rights. International Law. INTRODUÇÃO Decorridos mais de meio século voltado à preocupação com a defesa e efetivação dos direitos humanos no plano interno e internacional dos Estados e, tendo sido consagrada entre as Nações a necessidade de sua ampliação e materialização em todas as partes do planeta, pode-se afirmar que a humanidade encontra-se inserida na Era dos Direitos, tal qual afirmou Norberto Bobbio, em seu livro de mesmo nome3. No último século, em especial no período pós-II Guerra Mundial, a comunidade internacional voltou sua atenção à proteção dos direitos do ser humano, preocupada em garantir a este sobrevivente que os próximos anos não mais seriam marcados pela barbárie, pela destruição e pela perseguição discriminatória. A confluência legislativa de proteção aos direitos humanos que se seguiu, tanto no plano internacional, com destaque à Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), 3 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992. 236 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II quanto no plano interno dos Estados, com as alterações constitucionais e a incorporação de tratados internacionais derivados, não ocorreu sem propósito e alheia às ações mundiais de afirmação desta nova ideologia. O humanismo renasceu como força propulsora de reconstrução, como meio de união entre os Estados, como elemento aglutinador de uma nova era; uma era de direitos, paz e desenvolvimento. Os movimentos de internacionalização dos direitos globalizaram-se com a I Conferência Mundial de Direitos Humanos de Teerã (1968). Daí, até a II Conferência Mundial em Viena (1993) viu-se construir uma cultura universal de observância aos direitos humanos, considerados indivisíveis e inter-relacionados. A Conferência Mundial de Viena, contudo, trouxe, já no final do século XX, outra preocupação: a necessidade de efetivação dos direitos consagrados, e não sua simples positivação e reconhecimento meramente declaratórios. Com efeito, os direitos humanos como tema global4 não se inseriram na agenda internacional pelo relativismo político, marcante nas relações internacionais. Não se tratou (nem se trata) de uma troca de interesses, mesmo que multilaterais. Tampouco de trocas compensatórias, como se identificam nos tratados sobre desarmamento e não-proliferação de armas, ou no controle de armas pelo acesso à tecnologia; ou nos tratados econômicocomerciais, com concessões mútuas, como as de caráter tarifária ou aduaneira. A origem da evolução, no plano internacional, da proteção aos direitos humanos assume razões diversas. Provém, sobretudo, de uma elaboração no campo dos valores5, derivada da concepção universal de conceber a vida em sociedade; pois diz respeito à questão de legitimidade6. Da mesma forma, a preocupação com a preservação do meio ambiente, embora tenha trilhado ao longo das últimas décadas, caminhos (e discursos de proteção) diversos, também detém sua força ideológica pautada numa questão de legitimidade7. 4 LINDGREN ALVES, J. A. Os Direitos Humanos como tema global, São Paulo: Perspectiva, 1994. LAFER, Celso. Prefácio. In LINDGREN ALVES, J. A. Os Direitos Humanos como tema global, São Paulo: Perspectiva, 1994, p. xxv. 6 O respeito aos direitos humanos pelos Estados confere aos seus governantes legitimidade nos fóruns internacionais de negociação. E, porque não dizer, legitimidade também para intervir em outros Estados. Se bem que não é a intenção deste estudo analisar detidamente a questão do uso da ideologia de proteção aos direitos humanos, ao desenvolvimento, à paz e à democracia como instrumentos de coação e intervenção dos países centrais nos países periféricas, em especial nos países asiáticos. Por outro lado, não se pode, ingenuamente desconsiderar tal reflexo nas relações internacionais, sobretudo relembrando a postura estadunidense após o atentado de 11 de setembro de 2001 e sua ―luta [armada] contra o terror‖, que nada mais significa que a exacerbação de uma postura xenófoba contra culturas e valores diferentes, na defesa de sua indústria nacional. Neste sentido, ver RODRIGUES, Horácio Wanderlei. O discurso dos direitos humanos como veículo da dominação exercida pelos países centrais. Apud CAUBET, Christian G. (org). O Brasil e a Dependência Externa. São Paulo: Acadêmica, 1989, p. 35-56. 7 A Era dos Direitos não se representa apenas pela ampliação contínua dos direitos reconhecidos aos ser humano e ao planeta, mas também por uma postura politicamente correta de atender a estes direitos, defendê-los e a seus titulares. Vencido o espadim da igualdade (com a queda do murro de Berlim e o fim da União ―Socialista‖ Soviética) e desacreditado o espadim da liberdade (falta legitimidade ao laissez faire, laissez passer), quem sabe 5 237 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Este processo de consciência pela necessidade de proteção do ser humano e do meio em que vive começou com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU), seguida por diversas convenções e tratados de âmbito regional e global, abordando direitos civis e políticos, sociais, culturais e econômicos, de minorias ou de toda coletividade. O sistema das Nações Unidas, duas décadas depois, proclamou na Conferência Mundial de Teerã (1968) a indivisibilidade dos direitos humanos. Em seguida, a Resolução 32/130 da ONU, consagrou a necessidade de se examinar os direitos humanos de modo global, inserido no meio em que se vive. Dá-se, pois, início a trajetória de incorporação e proteção dos direitos humanos relacionados ao meio ambiente, o que vai dar origem ao direito fundamental do ser humano ao meio ambiente. Muitas foram as doutrinas que se seguiram para justificar este novo direito, ora enveredando-se pelos mecanismos de proteção antropocêntricos do humanismo moderno, ora refugiando-se na visão sistêmica e holística da ciência da vida8. Ambas, embora complementares e interdependentes, têm alcances diferenciados e limites bem definidos. A discussão sobre a proteção do meio ambiente não é recente, como também não são recentes as inúmeras tentativas, não apenas de positivação e reconhecimento da necessidade de preservação do planeta, mas principalmente da construção de mecanismos seguros de consolidar esta proteção e evitar danos futuros irreparáveis. As construções doutrinárias em sua defesa já assumiram os mais diferenciados contornos, mas o objetivo final é sempre o mesmo: conscientizar os Estados que sua economia nacional presente não pode (e não deve) comprometer sua economia futura, juntamente é claro, com a vida e sua qualidade no planeta. O presente ensaio visa tão somente analisar a evolução dos mecanismos internacionais de proteção do meio ambiente, suas aproximações e divergências com os mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos, suas principais interdependências no plano normativo internacional. Além é claro de discorrer sobre o desenvolvimento sustentável como alternativa de progresso econômico ecologicamente correto e evitar a degradação ambiental, pautado pelo respeito e compromisso ético para com as futuras gerações. não é tempo de se erguer o espadim da solidariedade (com o movimento voluntário?)? Quem sabe a Era dos Direitos não é mesmo uma retomada de alguns valores esquecidos pelo crescimento desenfreado dos mercados? Quem sabe não é apenas mais uma arma ideológica ao crivo de poucos? Ver RODRIGUES, Horácio Wanderlei. O discurso dos direitos humanos como veículo da dominação exercida pelos países centrais. Op. Cit. p. 35-56. 8 Neste sentido, ver Teoria Gaia, Cf. CAPRA, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos, São Paulo: Cultrix, 1999. 238 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II 1 CONSTRUÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE Assim como as preocupações em defesa dos direitos humanos intensificaram-se após a II Guerra Mundial, as movimentações em favor de uma regulamentação global do meio ambiente foi notável entre 1960 e 1972, data da I Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, Suécia. Notou-se, porém, que os caminhos seguidos por ambas as correntes de proteção da vida no planeta foram opostas. O movimento de defesa e proteção dos direitos humanos internacionalizou-se por meio de grandes convenções de âmbito geral, como a precursora Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção Européia (1950) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), para depois se seguirem os Tratados Internacionais sobre matérias específicas, como os Pactos Civis e Políticos & Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (ambos de 1966), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ONU, 1968); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU, 1979); a Convenção sobre os Direitos das Crianças (ONU, 1989), dentre outros. Já o Direito Internacional do Meio Ambiente nasceu fruto de múltiplos e diferenciados Tratados Multilaterais firmados no fértil período que sucedeu a II Guerra Mundial e precedeu a I Conferência Mundial sobre Meio Ambiente Humano (ONU) de Estocolmo. Neste período que compreendeu toda a década de 1960 e início da década de 1970, muitos foram os Tratados Multilateriais adotados com vistas a proteger o meio ambiente, a exemplo da Convenção Internacional para a proteção de Novas Variedades Vegetais (1961); da Convenção de Viena sobre Responsabilidade Civil por Danos Nucleares (1963); da Convenção do Espaço Cósmico (1967) e do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (1968)9. A Organização das Nações Unidas, diante deste quadro de movimentações entre os Estados e interesses manifestos, por meio da Resolução nº. 2.398, de 1968, aprovou a convocação de uma Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente Humano. Seguiram-se, pois, quatro anos de consultas entre os Estados e um intenso trabalho preparatório à Conferência de Estocolmo. Já nas reuniões preliminares ficara evidente a oposição entre os Estados desenvolvidos e os países em desenvolvimento. 9 Maiores informações, SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente: Emergência, Obrigações e Responsabilidades, 2ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, pp. 50-55. 239 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Para os primeiros [países industrializados], o desenvolvimento seria a causa de problemas ambientais. Para os últimos [países periféricos], seria o veículo de correção dos desequilíbrios ambientais e sociais. A melhoria da qualidade ambiental dos países em desenvolvimento dependeria da obtenção de melhores considerações de saúde, educação, nutrição e habitação, apenas alcançáveis através do desenvolvimento econômico. As considerações ambientais deveriam, portanto, ser incorporadas ao processo de desenvolvimento integral 10. Apesar de suas limitações no campo efetivo, a I Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente Humano simboliza a maturidade do Direito Internacional do Meio Ambiente. A Declaração sobre Meio Ambiente Humano, adotada em Estocolmo, pode ser considerada como um documento de mesma relevância para o Direito Internacional que a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948), constituindo-se num marco de intenções entre os Estados com vistas à preservação do meio ambiente. Com efeito, a Conferência de Estocolmo lançou a pedra fundamental dos debates internacionais sobre diversas questões ambientais até então irrefletidas, ensejando a vinculação necessária sobre a proteção conjunta de direitos interdependentes e relacionados, como a vida humana e seu desenvolvimento, a poluição e o esgotamento dos recursos não-renováveis11. A partir de 1972, a emergência de tratados e convenções internacionais multilaterais sobre o meio ambiente foi impressionante, contudo, ainda limitada a interesses específicos, como tratados sobre pesca (em especial dentro das Comunidades Européias) ou tratados envolvendo a questão nuclear (em especial depois do acidente em Chernobyl, na Ucrânia). A preocupação com o desenvolvimento humano encontrava-se em segundo plano, embora já se reconhecesse o direito dos indivíduos ao meio ambiente como direito fundamental12. Assim, a Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1985, conferiu ao PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) a tarefa de elaborar um esboço, sobre as necessárias políticas relativas ao meio ambiente, até o ano 2000. Estabelecida uma Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a presidente Gro Harlem Brundtland, primeira ministra da Noruega, apresentou em 1987 um 10 Presidência da República, Comissão Interministerial para Preparação da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CIMA), O desafio do desenvolvimento sustentável, Relatório do Brasil para a Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento. Brasília: Secretaria de Imprensa da Presidência da República, dez. 1991, p. 181, Apud SOARES, Guido F.S. op.cit., p. 53. 11 ―Questões de alta relevância internacional como a proteção do meio marinho, do patrimônio cultural e natural e das espécies ameaçadas de extinção, a utilização dos cursos de água internacionais para fins distintos da navegação, a querela judicial sobre a realização de testes nucleares, o Tratado de cooperação entre países da bacia Amazônica e a Carta Mundial para a Natureza, arcam o período que se estenderá por uma década até a assinatura da Convenção de Montego Bay de 1982, resultado final da Conferência da ONU sobre Direito do Mar, a qual constitui um marco para o Direito Internacional em geral e para o Direito Ambiental em particular‖. RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio, De Estocolmo 72 a Montago Bay 82: o ingresso do meio ambiente na agenda global, In DERANI, Cristiane, FONTOURA COSTA (orgs.), José Augusto. Direito Ambiental Internacional, Santos (SP): Leopoldianum, 2001, p. 28. 12 Princípio 1 da Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano. 240 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II relatório que levou seu nome, destacando os principais problemas ambientais e sugestões de como equacioná-los no futuro. De posse deste relatório, a Organização das Nações Unidas convocou, por meio da Resolução 44/288 de 1989, uma Conferência Mundial para tratar seriamente do tema13. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992, também conhecida como Rio 92 (ou ECO 92), reconheceu o caráter global dos problemas ambientais, e que sua solução rogava por uma ação conjunta de todos os Estados, organizações e cidadãos, dando particular ênfase na atuação e na finalidade de proteção ao próprio homem. Foi a Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92) que consolidou o elo entre direitos humanos e meio ambiente, reconhecendo o direito do ser humano ao meio ambiente sadio e sustentável14. Embora os resultados da ECO 92 tenham sido significativos para a conscientização e defesa do meio ambiente, suas principais conquistas situam-se na adoção de duas convenções multilateriais: a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças do Clima e a Convenção sobre Diversidade Biológica. A questão do ser humano como detentor de um direito ao meio ambiente estava presente, em especial nas discussões sobre o desenvolvimento humano, a erradicação da pobreza extrema e as necessárias melhorias na qualidade de vida das pessoas15. Durante a ECO 92 a comunidade internacional idealizou e aprovou medidas a serem tomadas com a finalidade de resguardar e proteger o meio ambiente, promovendo desde logo, com investimento em políticas públicas e apoio dos Estados e da comunidade, o equilíbrio ambiental e a justiça social entre as nações em consonância com o crescimento econômico. 13 ―(...) o relatório Brundtland elaborou o conceito de desenvolvimento sustentável, entendido como processo de mudança em que o uso de recursos, a direção de investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e as mudanças institucionais concretizam o potencial de atendimento das necessidades humanas do presente e do futuro‖. In SOARES, Guido F.S. op.cit., p. 73. Com efeito, a mais notável contribuição da Comissão Brundtland foi a criação da temática sobre o desenvolvimento sustentável, que passou a permear todas as discussões futuras a partir desta data. 14 ―(...) o meio ambiente é um direito fundamental do homem, considerado de quarta geração, necessitando, para sua consecução, da participação e responsabilidade partilhada do Estado e da coletividade. Trata-se, de fato, de um direito fundamental intergeracional, intercomunitário, incluindo a adoção de uma política de solidariedade.‖ MORATO LEITE, José Rubens. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 95. 15 Desde a Declaração de Direito ao Desenvolvimento (1986), as Nações Unidas tem insistido em demonstrar que o direito à democracia, o respeito aos direitos humanos e a preservação do meio ambiente perpassam pela questão do desenvolvimento humano e as condições de vida dos seres humanos no mundo. Este tema (direito ao desenvolvimento) foi abordado com maior ênfase na Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, em 1993, estabelecendo a interdependência entre o respeito aos direitos humanos e a proteção ao meio ambiente por meio da efetivação ao direito ao desenvolvimento. Neste sentido ver Declaração e Programa de Ação de Viena, ONU, 1993. 241 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Todas as propostas elaboradas foram organizadas na Agenda 21, documento que lançou as diretrizes, ou metas para um futuro sustentável. No entanto, os dez anos que sucederam a ECO 92 foram marcados mais por uma perda de entusiasmo dos Estados em progredir nas questões ambientais que por ações efetivas de materialização da Agenda 2116. A Cúpula do Milênio realizada em Nova Iorque, Estados Unidos, entre os dias 6 e 8 de setembro colocou em pauta novas discussões sobre o processo de globalização, degradação ambiental, avanços tecnológicos e a continuidade da pobreza. Participaram da Cúpula 147 chefes de Estado e de Governo de 191 países que estabeleceram metas a fim de promover a melhoria da qualidade de vida no planeta, o desenvolvimento humano e proteger os recursos naturais. A Declaração do Milênio17 previu precisamente a elaboração de diretrizes políticas e planejamentos de ação em todos os Estados com observância aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da equidade a nível global. A Declaração do Milênio, conforme já sugere o nome, foi uma iniciativa das Nações Unidas para repensar e recriar para esse novo século novas alternativas de desenvolvimento sustentável para as nações, de forma a contribuir inclusive para a manutenção do Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, além de integrar homem e natureza como elementos indissociáveis nessa perspectiva. Dentre os valores e princípios abordados na Declaração do Milênio estão: a liberdade, igualdade, solidariedade, tolerância, respeito pela natureza e responsabilidade comum. No que tange especificamente a proteção do Meio Ambiente, o capítulo IV da Declaração do Milênio expõe a preocupação e a necessidade de proteger o ambiente comum de todos nos seguintes termos Não devemos poupar esforços para libertar toda a humanidade, acima de tudo os nossos filhos e netos, da ameaça de viver num planeta irremediavelmente destruído pelas actividades do homem e cujos recursos não serão suficientes já para satisfazer as suas necessidades. Reafirmamos o nosso apoio aos princípios do desenvolvimento sustentável, enunciados na Agenda 21, que foram acordados na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento.18 Um ano após a publicação da Declaração do Milênio, foi lançada pela ONU a lista 16 A recusa dos EUA em ratificar o Protocolo de Kyoto, sobre a redução na emissão de gases tóxicos, marcou negativamente este período e esfriou os ânimos dos ecologistas em ver intensificadas, nos próximos anos, as ações de preservação do meio ambiente. 17 A Declaração do Milênio é subdivida nos seguintes capítulos, cujos temas são: I – Valores e Princípios, II – Paz, Segurança e Desarmamento, III – O Desenvolvimento e a Erradicação da Pobreza, IV – Protecção do Nosso Ambiente Comum, V – Direitos Humanos, Democracia e Boa Governação, VI – Protecção dos Grupos Vulneráveis, VII – Responder às Necessidades Especiais da África, VIII – Reforçar As Nações Unidas. 18 NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Milênio. Resolução A/RES/55/2, 8 de setembro de 2000, p. 13. 242 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II completa dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio19, que se baseia num conjunto de metas a serem alcançadas por todos os países até o ano de 2015, inclusive o de garantir a sustentabilidade ambiental, seguindo os pressupostos já editados na Declaração do Milênio. A Terceira Conferência Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+10), realizada em Johannesburgo, na África do Sul, de 20 de agosto a 4 de setembro de 2002, criou uma nova oportunidade de se rever os problemas ambientais e humanos que afligem as populações no mundo todo. Serviu também de espaço de discussão e desabafo dos obstáculos e resistências encontrados na implementação da Agenda 21, em todos os níveis. O mais agravante foi perceber que, em se tratando de proteção ambiental, os Estados mais desenvolvidos, econômica, cultural e industrialmente, são os primeiros a se excluírem de planos de ação, convenções internacionais ou metas internas de defesa do planeta, alegando sempre o prejuízo para suas respectivas economias nacionais. Esta polarização entre Centro e Periferia20 e as acusações recíprocas que seguiram impediram que a Conferência de Johannesburgo alcançasse o seu propósito de avaliar objetivamente os resultados pouco significativos da implementação da Agenda 21 e, por conseguinte, sua contribuição à mobilização da sociedade civil em âmbito mundial em direção a um novo sistema de governança. Tal como ocorreu com a Agenda 21, também foi elaborado um documento internacional que contribuísse para a implementação da Conferência de Johannesburgo, trata-se do Plano de Implementação da Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável. De acordo com o Plano 19 Entre os objetivos do desenvolvimento do Milênio estão: 1 - Erradicar a extrema pobreza e a fome, 2 - Alcançar a universalização do ensino fundamental, 3 - Promover a igualdade entre os gêneros e dar mais poder às mulheres, 4 – Reduzir a mortalidade infantil, 5 – Melhorar a saúde materna, 6 - Combater o HIV/Aids, a Malária e outras Doenças, 7 - Assegurar a Sustentabilidade do Meio Ambiente, 8 - Desenvolver uma Parceria Global para o Desenvolvimento. Existem oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), dezoito Metas e mais de quarenta Indicadores que descrevem o que é necessário ser feito para reduzir a pobreza e atingir o desenvolvimento sustentável em 25 anos, de 1990 a 2015. Cf. Roteiro das Metas no caminho da implementação da Declaração do Milênio de 6 de setembro de 2001 das Nações Unidas. http://www.pnud.org.br/odm/principais_documentos/. 20 A expressão Centro e Periferia é largamente utilizada pelos doutrinadores para designar os Estados desenvolvidos e os Estados em desenvolvimento ou sub-desenvolvidos, ou ainda, os Estados Ricos dos Estados Pobres. Neste sentido ver Horácio W. Rodrigues. O discurso dos direitos humanos como veículo da dominação exercida pelos países centrais. Apud CAUBET, Christian G. (org). O Brasil e a Dependência Externa. São Paulo: Acadêmica, 1989, p. 35-56. 243 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II À distância entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento indica que ainda se faz necessário promover um ambiente econômico internacional dinâmico que favoreça a cooperação internacional, em particular nas áreas de finanças, transferência de tecnologia, dívida e comércio, assim como a participação plena e efetiva dos países em desenvolvimento no processo de tomada de decisões em nível global, caso se pretenda manter e intensificar o progresso mundial em relação ao desenvolvimento sustentável.21 Para que realmente mudança alguma aconteça em âmbito internacional para a melhoria da qualidade de vida, assim como para o progresso de um desenvolvimento sustentável é imprescindível o investimento em políticas econômicas [estáveis], instituições democráticas realmente sólidas que consigam implementar e dar efetividade para o documento assinado na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável em 200222. O relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), conhecido como GEO-3 (Panorama Ambiental Global), foi preparado para suprir esta lacuna. Faz um balanço da saúde do planeta e estimula os debates sobre os rumos da política ambiental para os próximos anos. Salienta que 800 milhões de pessoas residentes nos centros urbanos encontram-se abaixo do limite de pobreza e são extremamente vulneráveis a desastres naturais e mudanças ambientais23. A ineficácia das reuniões internacionais ficou demonstrada também na recente Conferência da FAO – a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, realizada na primeira quinzena de junho de 2002, em Roma, Itália. Apesar dos freqüentes e alarmantes relatos sobre a fome e desnutrição que assolam centenas de milhões de seres humanos, a Conferência fracassou por mostrar-se incapaz de definir medidas concretas que permitissem a efetivação dos direitos à alimentação, saúde e qualidade de vida para os pobres do mundo. Em 2005 o Escritório Regional para América Latina e Caribe (ORPALC) 24 elaborou o 21 Nações Unidas. Plano de Implementação da Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável. Relatório, p. 2. 22 Conforme redação conferida pelo Plano de Implementação da Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável cabe destacar que: ―A liberdade, a paz e a segurança, a estabilidade interna, o respeito aos direitos humanos, incluindo o direito ao desenvolvimento e o estado de direito, a igualdade de gênero, as políticas orientadas ao mercado, e um compromisso generalizado com sociedades justas e democráticas também são essenciais e reforçam-se mutuamente‖. Para maiores informações consultar o site: http://www.pnud.org.br ou http://www.onu-brasil.org.br. 23 O relatório aponta como principais problemas: 1) a concentração de gás carbônico na atmosfera e o efeito estufa; 2) a crescente escassez de água potável; 3) a degradação dos solos; 4) a poluição de rios, lagos, zonas costeiras e baías; 5) os desmatamentos contínuos; 6) o crescimento da população e a crescente produção de resíduos tóxicos e poluentes. Dados in RATTNER, Henrique. Meio Ambiente e desenvolvimento sustentável: o mundo na encruzilhada da História, Política Externa, vol. 11, nº 2, setembro, outubro, novembro de 2002, São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 112-121. 24 O Escritório Regional para América Latina e Caribe (ORPALC) faz parte do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e tem a finalidade de promover alternativas para a produção e consumo sustentáveis nos países da América Latina e o Caribe. 244 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Relatório de Produção e Consumo Sustentável na América Latina e Caribe25 e constatou, dentre outras questões que A região da América Latina e Caribe apresenta a maior variedade de espécies naturais e de ecoregiões do mundo. O valor dessa biodiversidade vai além de seu valor econômico direto, sendo indispensável para a sobrevivência da humanidade neste planeta. Por outro lado, o padrão de crescimento econômico, baseado em atividades que conferem um baixo valor agregado ao produto final, impede que o aumento da produção se traduza em uma rápida redução do desemprego, dificultando a diminuição da pobreza que atinge cerca de metade da população da região. 26 Por isso o relatório aponta a imprescindibilidade de desenvolvimento sócio-econômico capaz de reverter essa situação de crise e propiciar ao mesmo tempo o equilíbrio ambiental, sem comprometer os recursos naturais disponíveis. Esses esforços devem partir de todos os países da América Latina, assim como o Caribe, para que seja possível potencializar o crescimento econômico ao que se convencionou chamar de Produção mais Limpa.27 Recentemente durante os dias 7 e 18 de dezembro de 2009, foi realizada na capital dinamarquesa, Conpenhague a COP-15, Conferência das Partes, realizada pela UNFCCC – Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. A Conferência das Partes é realizada anualmente, mas em 2009 gerou grandes expectativas de algumas lideranças governamentais, Ongs, ambientalistas e pessoas preocupadas com as alterações que vem ocorrendo no clima do planeta em decorrência do aquecimento global. Pela primeira vez, esperava-se que da realização da COP-15 resultaria um ―[...] acordo climático global com metas quantitativas para os países ricos e compromissos de redução de emissões que possam ser mensurados, reportados e verificados para os países em desenvolvimento.‖28 A perspectiva da COP-15 estava respaldada na concepção de responsabilidades comuns, o que indicava que os países mais ricos e industrializados deveriam firmar acordo se comprometendo a emitir menos CO2 e outros gases provocadores do efeito estufa na atmosfera terrestre. E isso, obviamente implicaria profundas alterações no modelo de produção econômica que esses países sempre adotaram – num profundo descomprometimento com a preservação do ecossistema e de um meio-ambiente ecologicamente equilibrado. Todas as expectativas positivas que antecederam a COP-15 cairam por terra! Até o dia 18 de dezembro de 2009, o que seria o último dia da Conferência os países partes ainda não tinham 25 MASERA, Diego (coord.) A produção mais limpa e o consumo sustentável na América Latina e Caribe. PNUMA-ORPALC, 2005, p. 15. 26 MASERA, Diego (coord.) A produção mais limpa e o consumo sustentável na América Latina e Caribe. PNUMA-ORPALC, 2005, p. 09. 27 Em 1990 o PNUMA definiu o conceito de Produção mais Limpa (P+L), que consiste na aplicação de uma ―estratégia ambiental preventiva integrada aos processos, produtos e serviços para aumentar a eco-eficiência e reduzir os riscos ao homem e ao Meio Ambiente‖. 28 Entenda a COP-15 – Planeta sustentável. Disponível em: http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/cop-15-o-que-e-conferencia-partes-copenhague499684.shtml Acesso em 16 de janeiro de 2010. 245 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II assinado um acordo climático global. Até o dia 18 de dezembro os países industrializados, os países emergentes e os países mais empobrecidos não chegaram a um acordo para a redução da emissão de gases provocadores do efeito estufa na Terra. Em discurso de improviso, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva afirmou no dia 18 de dezembro que estava frustrado porque os países ainda não haviam chegado a um acordo e produzido um documento que efetivamente impusessem a todos os países o cumprimento de metas que contribuíssem para frear o aquecimento global. De acordo com o presidente, é necessário que se produza um documento que realmente vá garantir efetividade, ou seja, que não basta assinar qualquer acordo para responder ao mundo que os países se comprometeram formalmente. Esse acordo não pode ser um mero documento com a única finalidade de cumprir o requisito da Conferência. E, nesse sentido afirmou que Todo mundo se colocou de acordo que precisamos garantir os 12% de aquecimento global até 2050. Até aí todos estamos de acordo. Todo mundo está consciente de que só é possível construirmos esse acordo se os países assumirem com muita responsabilidade as suas metas e mesmo as metas que deveriam ser uma coisa mais simples tem muita gente querendo barganhar as metas. Todos nós poderíamos oferecer um pouco mais se tivéssemos assumido boa vontade nos últimos períodos, todos nós sabemos de que é preciso para manter o compromisso das metas e para manter o compromisso dos financiamentos, a gente em qualquer documento que for aprovado aqui, a gente tem que manter os princípios adotados no Protocolo de Quioto [...] porque é verdade que nós temos responsabilidades comuns, mas é verdade que elas são diferenciadas [...]‖29 A COP-15 que terminou oficialmente no dia 19 de dezembro de 2009 deixou muito a desejar. O acordo firmado não teve unanimidade entre as nações e não impõem obrigações efetivas aos Estados Partes. Algumas ações ou metas foram planejadas para os próximos anos, como a criação e manutenção de um fundo internacional com contribuição principal dos países mais ricos para combater o aquecimento global. Para muitos que acompanharam de perto o decorrer dos treze dias de discussões, como a secretária de Mudanças Climáticas e Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente e membro do IPCC – Suzana Kahn, a Conferência foi decepcionante ―[...] uma vez que os chefes de estado discutiram mais a questão econômica das nações ricas e emergentes e esqueceram daqueles que vão sofrer dramaticamente os efeitos da mudança climática.‖30 A COP-15 encerra-se com a única certeza: a de que é preciso continuar na luta em prol de um desenvolvimento sustentável e que para isso, primordial a conscientização dos chefes de Estado de todas as nações para que cumpram suas metas e contribuam para a promoção de um ambiente ecologicamente equilibrado. 29 A íntegra do discurso do presidente brasileiro realizada durante a COP-15 no dia 18 de dezembro de 2009 está disponível no sítio: http://www.cop15brasil.gov.br/pt-BR/?page=noticias/discurso-lula-cop15 Acesso em 16 de janeiro de 2010. 30 Entenda a COP-15 – Planeta sustentável. Disponível em: http://www.cop15brasil.gov.br/ptBR/?page=noticias/acordo-de-copenhague. Acesso em 16 de janeiro de 2010. 246 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II No dia 24 de dezembro de 2009 a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a realização da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que está prevista para o ano de 2012 na cidade do Rio de Janeiro (RIO+20). O objetivo da Conferência (RIO+20) que se realizará após 20 anos da ECO-92 é renovar os compromissos assumidos pelos Estados Partes com o desenvolvimento sustentável – ―economia verde‖ e com a eliminação da pobreza. Portanto, o que resta é afirmação de que ciência, tecnologia, avanços e crescimento produtivo não conseguiram, sequer, minimizar a situação de milhões e milhões de pessoas que vivem na mais absoluta miséria, humana, social, econômica e ambiental. Se as conquistas recentes na luta pela preservação do planeta devem-se ao movimento politicamente correto de ecologistas e ambientalistas, ressaltando a importância também econômica da biodiversidade e da manutenção e recuperação dos ecossistemas vivos conhecidos e a conhecer (destaque para a indústria farmacêutica), não se pode esquecer do papel do ser humano neste contexto, não apenas como aquele que detém a ação de promover as mudanças, mas também como aquele que sofre com sua falta e destruição31. Muito embora a corrente doutrinária mais aceita entre os ambientalistas conceitue o meio ambiente como interesse comum da humanidade32, pregando seu reconhecimento como sujeito de direito, que merece proteção independentemente dos interesses privados (e econômicos) do ser humano33, não se pode negar que esta defesa carece de um sistema internacional de proteção aos direitos coletivos e difusos que seja eficaz em evitar e punir o dano, quando causado. Em verdade, as divergências conceituais e doutrinárias sobre qual a melhor maneira de proteger o meio ambiente recaem sempre na questão instrumental: o que fazer e como fazer 31 ―a perspectiva antropocêntrica alargada propõe não uma restritiva visão de que o homem tutela o meio ambiente única e exclusivamente para proteger a capacidade de aproveitamento deste, considerando precipuamente satisfazer as necessidades individuais dos consumidores, em uma definição economicocêntrica.‖ In MORATO LEITE, José Rubens. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 79. 32 ―(...) da noção de patrimônio comum da humanidade à de interesse comum da humanidade (desprovida da conotação de exploração e partilha de recursos), [e]sta última passou a ganhar corpo com a asserção, pelas resoluções 43/53, de 1988, 44/207, de 1989 e 45/212, de 1990, da Assembléia Geral das Nações Unidas, de que a mudança climática constituía um ‗interesse comum da humanidade‘.‖ CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos Humanos e Meio-Ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 217. 33 ―(...) a corrente ecologista desenvolveu-se dez anos depois de Estocolmo, em princípios dos anos 80, com uma visão cosmocêntrica. A natureza não pode ser reduzida ao nível de simples bem; ao contrário, tem que ser dotada de uma personalidade jurídica própria a fim de que possa ser defendida por um Procurador de Justiça.‖ POUYLLAU & SAAVEDRA, Apud DUARTE VILLA, Rafael; AGUIAR CASTRO, Vladimir. Políticsa e atores não-estatais nas relações internacionais: o caso das Organizações Ambientais na América Latina, In CARVALHO, Leonardo Arquimimo. Geopolítica e Relações Internacionais. Curitiba: Juruá, 2002, pp. 195-223. 247 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II para evitar o dano ambiental, senão com a ajuda imprescindível do ser humano?34 2 CONSOLIDANDO O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS A preocupação com o meio-ambiente evoluiu por caminhos diversos. Nestes últimos cinqüenta anos de intensivas reuniões e conferências acerca da proteção internacional dos direitos humanos (e suas implicações para os Estados), acabava-se sempre por se deparar com a questão do meio-ambiente e a necessidade de sua preservação, a fim de se assegurar plenamente a efetivação dos direitos humanos. Os direitos humanos classificam-se entre três e cinco gerações ou dimensões35 principais, conforme cada autor, neste trabalho será abordado as quatro dimensões principais. Os direitos de primeira dimensão são aqueles relacionados aos direitos de liberdade no que tange aos direitos civis e políticos. Nessa dimensão a titularidade dos direitos cabe aos indivíduos utilizando-os de forma oposicionista frente ao poder estatal. Os direitos de segunda dimensão compreendem os direitos sociais, culturais e econômicos, e fundamentam-se pelo princípio da igualdade. Para Ricardo S. Vieira, Enquanto os direitos de primeira dimensão correspondem a um período de capitalismo liberal concorrencial, os direitos de segunda dimensão são contextualizados com um capitalismo ―regulado‖ pelo estado. Após a crise do modelo liberal de Estado, instaura-se um novo modelo: o Estado de Bem- Estar. É neste tipo de Estado, o Estado providência que vão ser reconhecidos estes ―novos‖ direitos prestacionais.36 Os direitos de terceira dimensão assentados sobre o princípio da fraternidade, mantém em sua base o caráter humanitário e universal – principalmente porque os direitos de terceira dimensão advém do período posterior a II Guerra Mundial, e são imbricados pelos reflexos negativos impostos pelos impactos humanitários e ambientais em nível global. A 34 No Brasil, Cristiane Derani ao analisar a questão do direito fundamental ao meio ambiente afirma que, juntamente com os demais direitos fundamentais expressos na Constituição Federal de 1988, é preciso conferirlhes real eficácia, o que somente é possível num Estado Democrático de Direito forte e independente. E aduz: ―Neste sentido, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se revela também normaobjeto. Sua efetividade está ligada ao desenvolvimento dos objetivos elencados nos incisos do artigo 225, ou seja, a realização deste direito tanto mais efetiva será quanto maior a eficiência das práticas de políticas públicas coordenadas com as atividades privadas‖. In Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, pp. 229-230. 35 De acordo com o autor Ingo Wolfgang Sarlet ―o reconhecimento progressivo de novos Direitos Fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão ‗gerações‘ pode ensejar a falsa impressão de substituição gradativa de uma geração por outra‖. Para maiores informações pesquisar: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 47. Norberto Bobbio em A Era dos Direitos utiliza a expressão dimensões de direitos. In: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992. 36 VIEIRA, Ricardo Stanziola. Direitos Humanos, Ciência e Modernidade: uma abordagem interdisciplinar dos dilemas introduzidos pela biotecnologia no debate do direito moderno contemporâneo. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004, p. 38. 248 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II terceira dimensão de direitos configura nova relação humana pautada pela solidariedade e pela prevalência dos interesses da coletividade sobre o individual. Portanto, os chamados direitos difusos e coletivos focalizam suas ações aos grupos humanos, não se restringindo mais apenas ao indivíduo, mas na sociedade como um todo. Dado o caráter dos direitos de titularidade difusa ou coletiva, é na terceira dimensão dos direitos que se comprova a notoriedade do Direito Ambiental e do Direito do Consumidor como ramos autônomos do Direito, e em relação ao primeiro prevalece a sua interdisciplinaridade, uma vez que os direitos humanos ambientais37 exercem influências em todo meio jurídico. Tendo em vista o caráter de complementaridade das dimensões de direitos, os direitos de terceira dimensão promovem a efetividade das outras dimensões, na qual podemos citar: o direito ao desenvolvimento, direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, direito à paz, direito de propriedade sobre patrimônio comum da humanidade, direito à informação e à comunicação, direito ao pluralismo. Seguindo Norberto Bobbio em A Era dos Direitos, podemos dizer que os direitos de quarta dimensão são aqueles que envolvem os estudos da biotecnologia, da bioética e da engenharia genética.38 Em relação a consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos39, podemos dizer que essa fase iniciou-se, sobretudo a partir do século XIX, com a constitucionalização dos direitos, e que inaugurou um novo momento no sistema de proteção da pessoa humana, permitindo que os tratados e convenções específicos de direitos humanos ganhassem força normativa nas constituições dos Estados, principalmente nos períodos posteriores aos conflitos bélicos e das ditaduras totalitárias.40 37 Explica o autor em sua tese que: ―Não separamos, portanto, os direitos humanos do direito ambiental. Sustentamos (sem com isso entrar no mérito do debate entre antropocentrismo e biocentrismo) que o ―meio ambiente sadio e equilibrado‖ é um direito humano por excelência que está na base de todos os demais direitos humanos. Neste sentido acompanhamos o pensamento de Antônio Augusto Cançado Trindade (Direitos Humanos e Meio Ambiente: Paralelo dos sistemas de proteção internacional.). In: VIEIRA, Ricardo Stanziola. Direitos Humanos, Ciência e Modernidade: uma abordagem interdisciplinar dos dilemas introduzidos pela biotecnologia no debate do direito moderno contemporâneo. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004, p. 44. 38 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992. 39 Conforme preleciona, Fábio Konder Comparato a evolução histórica dos direitos humanos se consubstancia em alguns momentos distintos, quais sejam: 1) o reino davídico, a democracia ateniense e a república romana. 2) a Baixa Idade Média. 3) século XVII. 4) a Independência Americana e a Revolução Francesa. 5) as declarações sociais. 6) a internacionalização dos Direitos Humanos.. Não cabe neste trabalho desenvolver a evolução histórica dos direitos humanos, mas tão somente discorrer sobre a fase atual de internacionalização dos direitos humanos. In: COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 40 FONTENELE, Alysson Maia. Incorporação e aplicabilidade dos tratados internacionais sobre Direitos Humanos no direito brasileiro à luz dos §§2° e 3° d o art. 5° da Constituição da República Federativa do Brasil 249 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II As décadas imediatamente após a II Guerra Mundial foram ricas em Tratados Internacionais Multilaterais visando a proteção dos direitos do ser humano. A barbárie presenciada nos primeiros cinqüenta anos do século XX levou os Estados a se unirem no intuito de evitar que os próximos anos repetissem o contexto de destruição e miséria a que tinham sobrevivido. Há que ressaltar a necessidade atual de não permitir que os documentos internacionais de direitos humanos sejam categorizados como normas programáticas, pois não é assim que essas normativas internacionais devem ser consubstanciadas pelos Estados. As normas de direitos internacionais são antes de mais nada, normas operantes e que devem ser implementadas para a garantia de proteção a todas as pessoas, permitindo que o seu princípio basilar – o da dignidade da pessoa humana – seja amplamente respeitado por todas as nações. [...] ao aderirem aos tratados ou às convenções sobre direitos humanos, normalmente os Estados assumem obrigações internacionais para a defesa de seus cidadãos contra seus próprios abusos ou omissões. Com isso, eles aceitam a intrusão na soberania nacional, na forma de monitoramento relacionado àquilo que foi pactuado.41 Os Direitos Humanos, agora reconhecidos internacionalmente elevam a condição do indivíduo a sujeito de direitos. No entanto, é preciso estar atento, pois ―não basta apenas conceber que a comunidade internacional possa conhecer de questões que afetam os interesses dos Estados como tais, mas também que os interesses dos indivíduos que os integram possam merecer igual proteção internacional, se violados‖42. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) das Nações Unidas marca este interesse e necessidade e traduz-se, ainda hoje, como o primeiro pilar no movimento de construção de mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos. A ela seguiram-se a Convenção Européia para Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Garantias Fundamentais (1950), no âmbito das Comunidades Européias; o Pacto de Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (1966), ambos das Nações Unidas. Mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos tendo sido a porta de entrada dos Direitos Humanos Internacionais, ela sofre algumas críticas, todas quase sempre vinculadas a [possível] inexistência de base teórica homogênea de sustentação ao seu caráter normativo. Dentre essas críticas podemos citar: de 1988. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007, p. 25. 41 BIANCHI, Patrícia Nunes. A (in) eficácia do direito ao Meio Ambiente Ecologicamente equilibrado no Brasil. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007, p. 173. 42 FONTENELE, Alysson Maia. Incorporação e aplicabilidade dos tratados internacionais sobre Direitos Humanos no direito brasileiro à luz dos §§2° e 3° d o art. 5° da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007, p. 26. 250 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II a)No corpo normativo da Declaração Universal, a diferença entre direitos humanos e direitos do cidadão se esvazia, ao serem integrados todos estes direitos na categoria única de direitos humanos. b) A Declaração não guarda vínculos mínimos com o presente ou mesmo com o passado recente, pois deixa de apresentar referências a fenômenos que têm despertado a indignação de todo o mundo e, tampouco, condena com explicitude as violações dos direitos humanos. c) A Declaração carece de um caráter político mais definido, o que a faz não ocupar uma posição clara na escala de valores políticos vigentes a sua época. Este enquadramento teórico neutral coloca em questionamento a questão fundamental: se for é possível se estabelecer uma Declaração racional e efetiva sem que se possua um caráter político estabelecido. d) Os direitos econômicos, sociais e culturais são tratados de forma superficial, comparável aos demais direitos contemplados (cinco artigos num universo de trinta). e) Os deveres do ser humano também são tratados de forma superficial, com exceção do §1º do art. 29. Assim, a relação entre o Estado e o indivíduo não se apresenta proporcional ou simétrica no bojo da Declaração.43 Para Bianchi, os direitos humanos declarados por meio de tratados e convenções internacionais equivalem uma verdadeira vitória para a humanidade, no entanto coloca como ressalva a necessidade de verdadeiramente fazer-se implementar os direitos humanos tão dificilmente conquistados historicamente. Assim afirma que ―[...] deve-se avançar para a realização de tais direitos, a fim de que se promova uma sociedade mais justa e igualitária, baseada em valores humanitários que possam orientar as políticas nacionais no sentido de se promover uma igualdade de oportunidades substancial entre os cidadãos nacionais e, sobretudo, garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as gerações atuais e futuras. 44 Decorridos vinte anos do aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), realizou-se a I Conferência Mundial de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Teerã, de 22 de abril a 13 de maio de 1968. A Conferência contou com presença de 84 países e representantes de diversas organizações internacionais e organizações nãogovernamentais e adotou a famosa Proclamação de Teerã, contendo um balanço da proteção internacional dos direitos humanos até aquela data. A grande contribuição, contudo, da Proclamação de Teerã centrou-se no tratamento e reavaliação globais da questão direitos humanos. Isto propiciou o reconhecimento crescente da inter-relação e indivisibilidade de todos os direitos humanos, não permitindo discriminar direitos de liberdade de direitos sociais em sua valoração ou prioridade de garantia. 43 SANTOS, Sidney Francisco Reis dos. Os Direitos das mulheres visto através de um olhar pluralista e interdisciplinar. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 30. Apud CARVALHO, Júlio Marino de. Os Direitos Humanos no Tempo e no Espaço. Visualidados através do direito internacional, Direito constituicional, Direito penal e da História. Brasília: Brasília Jurídica, 1998, p.58-59. 44 BIANCHI, Patrícia Nunes. A (in) eficácia do direito ao Meio Ambiente Ecologicamente equilibrado no Brasil. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007, p. 174. 251 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Propugnou, ademais, pela implementação do princípio básico da não-discriminação, consagrado na Declaração Universal e em tantos outros instrumentos internacionais de direitos humanos, como uma ‗tarefa da maior urgência da humanidade, nos planos internacional assim como nacional‘ (parágrafo 8). Referiu-se, também, ao ‗desarmamento geral e completo‘ como ‗uma das maiores aspirações de todos os povos‘ (parágrafo 19), e não descuidou de lembrar as aspirações das novas gerações por ‗um mundo melhor‘, no qual se implementem plenamente os direitos humanos (parágrafo 17).45 Muito embora a Proclamação de Teerã tenha alertado para a preocupação com as gerações futuras, foi somente na Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano (1972) que a preocupação com as gerações futuras centra-se na questão ambiental. A consagração do reconhecimento de um direito fundamental do ser humano ao meio ambiente dá seus primeiros passos na Declaração do Direito ao Desenvolvimento (1986)46, ao dispor em seu artigo 2º que: ―a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento‖. A II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, no ano de 1993, lançou as bases para o princípio humanitário e solidário dos direitos aos quais as pessoas são titulares, nos seguintes termos; Todos os direitos humanos são universais, individuais, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de modo justo e eqüitativo, com o mesmo fundamento e a mesma ênfase. Levando em conta a importância das particularidades nacionais e regionais, bem como os diferentes elementos de base históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais. 47 A temática do direito humano ao meio ambiente e ao desenvolvimento foi plenamente consagrada com a Declaração e Programa de Ação de Viena, formulados e aprovados durante a Conferência de Viena. A Declaração de Viena, seguindo as orientações e avanços da Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), marcou o início de uma nova mentalidade de proteção aos direitos humanos no planeta, consagrando o tripé interrelacional e interdependente de necessidade de proteção imediata, qual seja, da garantia ao Direito da Democracia (e sua imprescindibilidade de efetivação para o exercício da cidadania)48, do Direito ao Desenvolvimento Sustentável (e a proteção ambiental correlata) e da plena e ampla defesa aos Direitos Humanos. Por certo, a II Conferência Mundial de Direitos Humanos das Nações Unidas, Viena, 45 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil, Brasília: UnB, 1998, p. 48. 46 A Declaração do Direito ao Desenvolvimento foi adotada pela Assembléia Geral da Nações Unidas em 04.12.1986, por 146 votos a favor, 1 contra (EUA) e 8 abstenções (Dinamarca, Finlândia, República Federal da Alemanha, Islândia, Israel, Japão, Suécia e Reino Unido). 47 COMPARATO, Fábio K. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 54-55. 48 Sobre o Direito da Democracia como aporte necessário ao exercício da cidadania ver: ANNONI, Danielle. O Direito da Democracia como Requisito Imprescindível ao Exercício da Cidadania, In ANNONI, Danielle. (org. ) os Novos Conceitos do Novo Direito Internacional: Cidadania, Democracia e Direitos Humanos, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 93-108. 252 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II 1993, significou para o movimento de proteção dos direitos humanos o mesmo que a Conferência do Rio (ECO 92) significou para o movimento de proteção ambiental. Ao contrário da Conferência de Teerã, cujo grande mérito foi atuar como elemento de mobilização em meio a um período crítico para a democracia e as garantias fundamentais no mundo, a Conferência de Viena deu grandes passos rumo à efetivação dos direitos humanos, ensejando também a criação do cargo de Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos49. Para se dar o devido crédito a Conferência de Viena, é preciso lembrar, contudo, a conjuntura que a antecedeu. Com a queda do muro de Berlim e a dissolução do regime socialista soviético em 1989, o mundo encontrava-se atônito frente ao futuro incerto. Agravava-se a situação econômica dos países do Terceiro Mundo, intensificavam-se as pressões emigratórias dos países periféricos, isto somado ao crescimento do fundamentalismo islâmico e ao desemprego nas sociedades desenvolvidas, que só fazia aumentar a exacerbação do nacionalismo (guerra civil) nas ex-Repúblicas Iugoslavas e no Leste Europeu em geral, o recrudescimento do racismo e a retomada dos movimentos xenófobos da Europa Ocidental50. Em todo o período preparatório da Conferência a pressão foi intensa, e os desentendimentos do Comitê Preparatório eram freqüentes, em especial reforçadas pelas divergências também ideológicas entre Norte-Sul. O anteprojeto de declaração para a Conferência de Viena, formulado em Genebra, em maio de 1993, estava tão repleto de emendas e considerações que o tornava ininteligível. Chegou-se a acreditar que a Conferência de Viena não se realizaria e, se ocorresse, seria um fracasso completo51. Não foi. Ao contrário, consagrou-se como o principal instrumento de universalização dos direitos humanos. Com um preâmbulo de 17 parágrafos, uma parte operativa conceitual de 39 artigos e um programa de ação com 100 parágrafos recomendatórios, a Declaração de Viena conseguiu superar o relativismo cultural e religioso, reafirmando o caráter universal e indivisível dos direitos humanos. E não foi só isso. O documento vai além de mobilizar Estados e governos em defesa dos direitos humanos. Propõe medidas concretas para a realização do direito ao desenvolvimento, por meio da cooperação internacional, do alívio da dívida externa e da luta 49 O cargo foi criado pela Resolução 48/141, de 20.12.1993, da Assembléia Geral das Nações Unidas. Dados em LINDGREN ALVES, J. A. Os Direitos Humanos como tema global, São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 25. 51 ―Ante esse quadro de múltiplas dificuldades, a indicação feita pela comunidade internacional, para que o Brasil presidisse o Comitê de Redação, órgão da Conferência encarregado da preparação do documento final, (...) foi um voto de confiança na diplomacia brasileira, respaldada pela transparência e pelas posições construtivas do regime democrático, mas também um desafio.‖ In LINDGREN ALVES, J. A. op.cit., p. 26. 50 253 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II pelo fim da miséria humana. Dá ênfase à proteção dos direitos das mulheres, das crianças, dos índios, das minorias, dos refugiados. Condena as ―limpezas étnicas‖ e o estupro sistemático de mulheres em situação de guerra e, ainda, reconhece a importância do papel das organizações não-governamentais – ONGs, na luta pelo respeito e efetivação dos direitos humanos. A terceira parte da Declaração corresponde ao Programa de Ação de Viena com exatos 100 parágrafos de recomendações aos Estados. Dentre as mais significativas destaca-se a reiterada importância dada ao direito ao desenvolvimento, como elo imprescindível à construção do direito a democracia, ao respeito aos direitos humanos e aos melhores padrões de vida e as necessárias proteções ambientais52. Recomenda ainda a criação do cargo de Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, adotado em dezembro de 1993, e cujas principais atribuições são: promover e proteger o gozo eficaz por todas as pessoas de todos os direitos humanos; promover e proteger a realização do direito ao desenvolvimento como direito humano; racionalizar e fortalecer os mecanismos de direitos humanos das Nações Unidas com vistas a melhorar sua eficácia; supervisionar o Centro de Direitos Humanos das Nações Unidas53. Das propostas mais significativas submetidas à Conferência de Viena, a única que deixou de receber algum tipo de acolhida referia-se à criação de um tribunal internacional para os direitos humanos. Este tribunal, com jurisdição universal, pressuporia a existência de um direito cosmopolita, com valores universais e aplicações simétricas e homogêneas de um documento universal de direitos humanos, que estabelecesse as sanções para cada espécie de violação, e que fosse aceito e reconhecido por todos os Estados, senão sua grande maioria54. Passados mais de uma década da realização da Conferência de Viena, é possível hoje fazer um balanço geral de seu significado e importância para a proteção dos direitos humanos no mundo. Muitos passos foram dados, a começar pela postura das Nações Unidas em apoiar integralmente a Declaração e Programa de Ação de Viena, por meio da Resolução 48/121 55. 52 No seu capítulo 11, a Declaração de Viena consagra o direito humano ao meio ambiente como direito ao desenvolvimento, afirmando que ―o direito ao desenvolvimento deve ser realizado de modo a satisfazer eqüitativamente as necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações futuras. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reconhece que a prática de descarregar ilicitamente substâncias e resíduos tóxicos e perigosos constitui uma grave ameaça em potencial aos direitos de todos á vida e à saúde.‖ Declaração e Programa de Ação de Viena (25 de junho de 1993), in CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado Internacional dos Direitos Humanos, Volume III, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003, Addendum II, p. 545-596. 53 O cargo foi criado pela Resolução 48/141, de 20.12.1993, da Assembléia Geral das Nações Unidas. 54 Embora a idéia de criação de um tribunal internacional não tenha merecido acolhida por ocasião da Conferência de Viena, a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sentiu encorajada a continuar seu trabalho de criação de um tribunal criminal internacional. 55 A Resolução 48/121, de 20.12.1993 também convocava todos os órgãos das Nações Unidas voltados aos 254 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Mas o mais significativo foi, sem dúvida, o aumento das ratificações dos tratados de direitos humanos, embora não se tenha ainda, neste começo de século, alcançado a sua universalidade. De fato, as Nações Unidas moveram esforços para efetivar os direitos reconhecidos e as recomendações, frutos da Conferência de Viena. A criação do Alto-Comissário para os Direitos Humanos e as responsabilidades e poderes a ele atribuídas, ensejaram uma reorganização interna dos trabalhos efetuados nas Nações Unidas em prol dos direitos humanos. O próprio Centro de Direitos Humanos passou a ser o Escritório do Alto-Comissário e todas as Comissões de Trabalho, os rapporteurs, as missões especiais, comprometeram-se a observar e informar ao Alto-Comissário as violações ou descumprimento das recomendações de Viena56. A atuação do Alto-Comissário para os Direitos Humanos foi importantíssima no conflito de Ruanda, quando instalou um escritório em Kigali para inspecionar a situação de violação dos direitos humanos in loco. O mesmo deu-se nos conflitos que assolaram o continente europeu, na antiga Bósnia Herzegovina. Os avanços na defesa e universalização dos direitos, preconizados pela Conferência de Viena, surtiram efeito também no campo normativo. Os anos que se seguiram foram repletos de novas Conferências para se discutir mecanismos de implementar as recomendações da Declaração e Programa de Ação de Viena, também como de consolidar o reconhecimento aos novos direitos, como o direito da mulher (IV Conferência Mundial sobre a Mulher (1995)); ao desenvolvimento (Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (1994) e Cúpula Mundial para o Desenvolvimento (1995)); à proteção dos refugiados (Convenção de Ottawa (1997)57); e o direito ao meio ambiente (Conferência de Johannesburgo – Rio+10 (2002)). A Conferência de Viena teve, ainda, o grande papel de integrar a preocupação e esforços para a proteção internacional dos direitos humanos com a proteção do direito humanitário e do direito dos refugiados. A Declaração de Viena reafirmou em termos claros, o que já se encontrava contido nas Convenções de Genebra de 1949, ―o direito das vítimas à assistência oferecida por organizações humanitárias‖, governamentais ou não-governamentais, apelando para que ―o acesso a essa assistência seja seguro e oportuno‖ (artigo 290, parágrafo direitos humanos a trabalharem para a plena efetivação de todas as recomendações da Declaração e seu Programa de Ação. 56 ―Para aprimorar a coordenação, consideraram-se medidas como o estabelecimento de ‗pontos focais‘ no sistema das Nações Unidas, a se reunirem regularmente; (...)‖.in CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado Internacional dos Direitos Humanos, Volume III, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003, Addendum II, p. 260. 57 A Convenção sobre a Proibição do Emprego, Armazenamento, Produção e Transferência de Minas Anti-Pessoal e sobre sua Destruição, que se realizou em Ottawa, em 1997, proíbe integralmente a fabricação e o uso de minas anti-pessoal, a fim de evitar mortes e mutilações de pessoas durante os conflitos armados. 255 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II 3º)58. Embora os avanços da Declaração e Programa de Ação de Viena sejam inegáveis, em especial na proteção dos direitos da mulher, dos grupos vulneráveis e dos refugiados; na imbricação da proteção dos direitos humanos, direito humanitário e direito dos refugiados; na construção de um elo entre democracia, desenvolvimento humano e respeito aos direitos humanos, as carências de implementação destas ações são enormes, em grande parte pela ausência de recursos financeiros. Como balanço geral da trajetória normativa perpassada pela Conferência de Viena, pode-se afirmar, que as vitórias no campo da conscientização, mobilização e defesa dos direitos humanos superaram as derrotas. Se o mundo ainda encontra-se dividido entre pobres e ricos, entre Norte e Sul, por certo há de se admitir, que nunca esteve tão perto de uma união ideológica em prol da necessidade de defesa dos direitos humanos. É este o principal mérito da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena. A preocupação recente, contudo, centra-se na necessidade em se evitar o uso ideológico do discurso de proteção aos direitos humanos, no seu sentido mais amplo, como mecanismo de vingança, proteção econômica ou reafirmação militar. Os atentados terroristas, os conflitos armados e o uso indiscriminado da força bélica têm marcado negativamente este período de consolidação e efetivação dos direitos humanos consagrados em Viena. Passamos, portanto por um período de reflexão, de criação de ações futuras que reconheçam e materializem a proteção dos direitos humanos no mundo, a despeito da guerra, da intolerância e das perdas econômico-financeiras. 3 DIREITOS HUMANOS E MEIO AMBIENTE: O CAMINHO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Conforme já exposto, a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992 (ECO 92), trouxe pela primeira vez o conceito de desenvolvimento sustentável em consonância com a preocupação de resguardar e proteger o meio ambiente para as futuras gerações. Na concepção de Fiorillo, compreendemos que essa sustentabilidade se caracteriza pelo ―[...] desenvolvimento que atende às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades‖.59 58 59 LINDGREN ALVES, J. A. Os Direitos Humanos como tema global, São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 125. FIORILLO, Celso A. Pacheco. Direito ambiental e patrimônio genético. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 118. 256 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Os caminhos para o desenvolvimento sustentável devem Parte II pautar-se pelo desenvolvimento [econômico] das nações sem agredir o nosso ecossistema, o meio ambiente. É necessário que sejam desenvolvidos mecanismos de proteção com o intuito de melhorar a qualidade do ambiente de vida. Em se tratando de direitos humanos essa proteção deve ser estendida a todas as pessoas, no entanto não se deve descartar as outras formas de vida existentes no planeta e que são indispensáveis e fundamentais para a promoção do equilíbrio ecológico. Portanto, quando se fala em vida, não se refere apenas a condição humana – visão antropocêntrica – , mas a todas as outras manifestações de vida na Terra. Conforme se depreende dos estudos de Mourão, observa-se que, Sachs elaborou seis princípios norteadores do desenvolvimento, quais sejam: 1) satisfação das necessidades básicas; 2) solidariedade com as gerações futuras; 3) participação da população envolvida; 4) preservação dos recursos naturais e do meio ambiente; 5) elaboração de um sistema social que garanta emprego, segurança social e respeito a outras culturas; 6) programas de educação.60 Esses princípios estão focalizados em permitir que se criem mecanismos ou estratégias de sustentabilidade aptos a utilizar os recursos naturais de maneira profundamente racional, sem desperdícios e desde que a ação não envolva o esgotamento do recurso a ser explorado. É imprescindível respeitar o tempo de recomposição e restituição dos recursos naturais explorados. Dentre os princípios levantados por Sachs é importante que se observe a participação da comunidade para a promoção de um desenvolvimento sustentável, deve ser ela também autora de práticas ambientais ou ecológicas corretas, pois o ser humano faz parte desse ecossistema e nada melhor do que proteger o ambiente em que se vive, contribuindo para a efetivação do Direito Ambiental e consequentemente dos Direitos Humanos. Nesse sentido, Antônio A. Cançado Trindade elucida que O desenvolvimento passa a ser concebido como abarcando a sustentabilidade ambiental, a justiça social e o fortalecimento das instituições democráticas (participação pública). Neste quadro, a posição central ocupada pela pessoa humana em todo o processo ou estratégia de desenvolvimento é inquestionável. A erradicação da pobreza permanece como um desafio considerável: a educação e os conhecimentos – a capacitação de pessoas – revestem-se de importância capital para buscar e alcançar o desenvolvimento humano sustentável. 61 Os encontros e as conferências internacionais são espaços ótimos de discussão e de implementação de diretrizes políticas, seja de proteção ao meio ambiente, como de alternativas 60 SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São Paulo: Vértice, 1986. Apud MOURÃO, Elza Soares Batista. Direito Ambiental: instrumento para a efetivação da tutela jurídica do meio ambiente. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Gestão Ambiental) – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Gestão e Planejamento Ambiental pela Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2004, p. 23. 61 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado Internacional dos Direitos Humanos, Volume II, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999, p. 320. 257 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II para a sua preservação e desenvolvimento sustentável. É importante nesses espaços a participação da sociedade civil organizada, dos movimentos ambientalistas, de estudiosos, de lideranças políticas, etc. É importante a participação de todos para esse novo processo de conscientização ambiental a nível global. ―Não é de hoje que os especialistas proclamam ser a comunidade a melhor guardiã do seu patrimônio‖.62 Nessa perspectiva positiva, Elza Soares B. Mourão aduz que [...] a implementação do conceito de desenvolvimento sustentável pressupõe a convergência de objetivos das políticas de desenvolvimento econômico, social, cultural e de proteção ambiental. Desse modo, a busca de um equilíbrio entre o desenvolvimento social, crescimento econômico e a utilização dos recursos naturais exigem um planejamento territorial adequado, que leve em conta limites de sustentabilidade.63 Entretanto, compreende-se que possíveis manifestações de resistências aos direitos humanos e as normas de proteção ambiental advém da dificuldade de conciliar o direito ao desenvolvimento sustentável e o crescimento econômico desmedido de muitas empresas mundiais, seja qual for o setor. As barreiras que se impõem a isso é atribuir ao viés protetivo ambiental à perda de lucratividade empresarial. Infelizmente quando o que está em jogo é crescimento econômico, mesmo que isso implique na poluição e degradação do meio ambiente, percebe-se que muitas empresas dão um ―jeitinho‖ para burlar as leis ambientais, muitas vezes com a certeza que não serão punidas. Por isso não basta apenas a criação de normas ou a implementação de políticas públicas eficazes na proteção dos direitos humanos e meio ambiente se não houver uma política de controle e fiscalização eficaz. As sanções aplicadas para os crimes ambientais variam desde reclusão até pagamento de multa pecuniária. Não é objetivo deste trabalho discorrer sobre as formas de punição seja para pessoa física ou jurídica que descumpram normas de direitos humanos e/ ou ambientais, mas é preciso registrar que em se tratando de dano ambiental irreversível, qualquer sanção que se aplique não conseguirá reverter o ambiente ao que era antes de ocorrida a degradação. Considerando a universalidade e a indivisibilidade do meio ambiente, visto que é um bem comum da coletividade e todos tem direito a esse bem ecologicamente equilibrado, foram instituídos no Direito Ambiental Internacional alguns princípios específicos de proteção ao meio ambiente e de promoção ao desenvolvimento sustentável. Dentre eles destaca-se o princípio da prevenção, princípio do poluidor pagador, princípio da precaução, princípio da 62 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p 190. 63 MOURÃO, Elza Soares Batista. Direito Ambiental: instrumento para a efetivação da tutela jurídica do meio ambiente. Dissertação (Mestrado em Planejamento e Gestão Ambiental) – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Gestão e Planejamento Ambiental pela Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2004, p. 27. 258 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II equidade ou da solidariedade intergeracional e o princípio da valorização sustentável, em que passamos a discorrer. O princípio da prevenção tem como função primordial evitar o dano e nesse sentido a prevenção se opera como um direito de antecipação, ou seja, a finalidade é inibir quaisquer condutas que venham a causar danos ao meio ambiente. O princípio da prevenção atua diretamente para evitar que um perigo concreto aconteça, tomemos como exemplo os estudos de impacto ambiental, em que há laudos periciais que conseguem avaliar um possível dano ambiental caso tal conduta humana seja realizada. A prevenção deve atuar como medida necessária a ser tomada por toda a política ambiental, considerando que muitas vezes é difícil se não impossível a restauração do bem tutelado.64 Pode-se dizer que o princípio da precaução é muito parecido com o princípio da prevenção, pois consubstancia a idéia de uma construção aprimorada dentro do Direito Ambiental. A precaução tenta também prevenir danos ambientais em decorrência da atividade humana, mas a diferença intrínseca entre os dois princípios decorre em dizer que o primeiro se estabelece diante de um perigo concreto enquanto o segundo, a um perigo iminente, difícil de diagnosticar cientificamente.65 ―No princípio da precaução, não é necessário que se tenha a certeza da ocorrência do dano, pode-se, dessa forma, trabalhar com a probabilidade do dano, que será delineada de acordo com as circunstâncias de cada caso‖.66 A Conferência do Rio de Janeiro (ECO 92) traz a definição da precaução através da redação do princípio 15 do instrumento normativo, nos seguintes termos: Princípio 15 – Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. O princípio do poluidor pagador permite que se atribua a culpa de danos causados aos recursos naturais diretamente ao agente causador da lesão ambiental, seja por ação ou omissão. Esse princípio é de natureza econômica e permite que a reparação do dana causado tenha efeitos pedagógicos no sentido de atribuir ao agente a obrigação de reparação. 64 Ana Maria Moreira Marchesan afirma que a ―prevenção consubstancia o núcleo essencial desse ramo da ciência jurídica, justamente porque se tem hoje a clareza de que é por demais difícil, quando não impossível, a restauração dos bens ambientais com o respectivo retorno ao status quo ante, vale dizer, repristinação. In: MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p 113. 65 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p 124. 66 BIANCHI, Patrícia Nunes. A (in) eficácia do direito ao Meio Ambiente Ecologicamente equilibrado no Brasil. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007, p. 102. 259 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Esse princípio apareceu pela primeira vez na esfera internacional através da Recomendação nº 128, de 26 de maio de 1972 editado pela OCDE (Organisation de Coopération et de Dévelopement Économiques). Posteriormente foi adotado pela Comunidade Econômica Européia, além de fazer parte do Princípio 2267 da I Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (1972), realizada em Estocolmo e fazer parte também da Conferência do Rio (ECO 92), através do princípio 1668. O principio da equidade ou da solidariedade intergeracional pressupõe o compromisso ético e de solidariedade que assumimos de preservar o meio ambiente entre os presentes, assim como para as futuras gerações. Cumpre salientar que a espécie humana é parte integrante do meio ambiente e não cabe a ela destruir os recursos naturais, mesmo que seja para atender ―uma demanda imediata‖.69 O princípio da valorização sustentável pressupõe da própria noção de desenvolvimento sustentável. A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento levantou a questão do desenvolvimento sustentável no Relatório Brundtland, em que define o desenvolvimento sustentável como aquele capaz de atender as necessidades das atuais gerações sem comprometer as gerações futuras. De acordo com Relatório de Brundtland, Ana Maria Marchesan afirma que O princípio do desenvolvimento sustentável parte do pressuposto de que a sociedade humana não se limita às nossas gerações, sendo que a exauribilidade é uma característica dos recursos naturais, ao passo que o perecimento, a descaracterização, o esquecimento são males que assolam os recursos culturais. 70 Os princípios aqui abordados fazem parte da nova hermenêutica constituinte, além de estarem comprometidos com a concretização do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que ganham força normativa e de aplicação imediata nas constituições modernas dos Estados. Os princípios têm como finalidade maior assegurar o desenvolvimento sustentável para as nações.71 67 Princípio 22 – ―Os Estados devem cooperar para continuar desenvolvendo o direito internacional no que se refere à responsabilidade e à indenização às vítimas da poluição e de outros danos ambientais que as atividades realizadas dentro da jurisdição ou sob o controle de tais Estados causem a zonas fora de sua jurisdição‖. Disponível em www.mma.gov.br. Acesso em 25 de julho de 2008. 68 Princípio 16 – ―As autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais‖. Disponível em www.mma.gov.br. Acesso em 25 de julho de 2008. 69 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p 155-157. 70 A autora ainda salienta que concomitante a essa idéia de desenvolvimento sustentável está a de consumo sustentável e que no entanto, é difícil fazer a dissociação entre ambos os conceitos. Sem uma alteração nos padrões de consumo será difícil, quando não impossível a preservação dos recursos essenciais ao desenvolvimento humano. MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p 186. 71 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto 260 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Contudo, cabe salientar que os princípios constantes nos documentos internacionais parecem ter força normativa apenas nos Estados-partes, sem obrigação normativa em âmbito internacional.72 Mesmo assim é inegável o avanço que a luta internacional de proteção ao meio ambiente conquistou e vem conquistando diariamente, inclusive no que se refere ao desenvolvimento sustentável. As principais conferências mundiais sobre meio ambiente tem insistido em enfatizar a necessidade de freiar o crescimento econômico exacerbado prejudicial ao ecossistema, o que potencializa a ocorrência de muitas catástrofes naturais: enchentes, furacões, tempestades, vendavais, além de uma grande ameaça de extinção de muitas espécies da fauna. Os movimentos ambientais do mundo inteiro não têm medido esforços para exigir da direção dos Estados uma maior intervenção em favor do meio ambiente, além é claro de contribuir para a disseminação de severas críticas ao sistema capitalista e aos padrões exagerados de consumo e produção. De acordo com o Relatório de Produção e Consumo Sustentável na América Latina e Caribe elaborado em 2005, foram definidas novas bases para tentar por em prática nesses países o Consumo Sustentável73 e Produção mais Limpa74. O relatório ainda alerta sobre os impactos ambientais que os efeitos do consumismo e de produção podem causar na sociedade, pois evidencia que, Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p 109. 72 ―[...] no âmbito internacional, ainda permanece a regra de que os princípios instituídos naquelas declarações são informadores de ordenamentos, são referências para as legislações internas dos países, porém não obrigam internacionalmente ou internamente; apenas orientam as relações entre os Estados, e o ordenamento jurídico interno‖. In: BIANCHI, Patrícia Nunes. A (in) eficácia do direito ao Meio Ambiente Ecologicamente equilibrado no Brasil. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007, p. 101. 73 Segundo o PNUMA, Consumo Sustentável é definido como ―o uso de bens e serviços que atendam às necessidades básicas, proporcionando uma melhor qualidade de vida, enquanto minimizam o uso dos recursos naturais e materiais tóxicos, a geração de resíduos e a emissão de poluentes durante todo ciclo de vida do produto ou do serviço, de modo que não se coloque em risco as necessidades das futuras gerações. In: MASERA, Diego (coord.) A produção mais limpa e o consumo sustentável na América Latina e Caribe. PNUMA-ORPALC, 2005, p. 28. 74 O conceito de Produção Mais Limpa (P+L) foi definido pelo PNUMA, no início da década de 1990, como sendo a aplicação contínua de uma estratégia ambiental preventiva integrada aos processos, produtos e serviços para aumentar a eco-eficiência e reduzir os riscos ao homem e ao meio ambiente. Aplica-se a: 1) processos produtivos: inclui conservação de recursos naturais e energia, eliminação de matérias primas tóxicas e redução da quantidade e da toxicidade dos resíduos e emissões; 2) produtos: envolve a redução dos impactos negativos ao longo do ciclo de vida de um produto, desde a extração de matérias-primas até a sua disposição final, e 3) serviços: estratégia para incorporação de considerações ambientais no planejamento e entrega dos serviços. In: MASERA, Diego (coord.) A produção mais limpa e o consumo sustentável na América Latina e Caribe. PNUMAORPALC, 2005, p. 21. 261 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II O consumo crescente e as modalidades insustentáveis de produção têm sido uma ameaça constante para o meio ambiente, contaminando a Terra, destruindo seus ecossistemas e reduzindo a qualidade de vida no planeta. A pobreza e a falta de recursos crescem a uma velocidade alarmante e a disparidade entre a entrada de recursos e o consumo é evidenciada em todos os continentes e particularmente na América Latina e Caribe (AL&C). Faz-se necessário que nossos padrões de produção e consumo sejam mais eqüitativos, e que os países se adaptem aos padrões de produção e consumo sustentáveis, tanto no aspecto social como no ambiental, com base em uma melhoria da qualidade de vida.75 Trata-se de equacionar medidas que verdadeiramente promovam os direitos humanos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Que sejam capazes de promover a erradicação da pobreza e da fome no mundo, que seja capaz de melhorar a qualidade do ambiente de vida. Já se tem o avanço normativo nesse sentido, que foi construído ao longo dos últimos cinqüenta anos, mas é notório que isso não é suficiente. No entanto, as garantias editadas pelas normativas internacionais já é um alento para um planeta que pela ação contínua do homem ambicioso e individualista já estragou e dizimou tanto do meio ambiente. É imprescindível que haja ações conjuntas para a perpetuação da luta pela real efetivação dos direitos humanos e do direito ambiental internacional. 4 MEIO AMBIENTE E DIREITOS HUMANOS: APROXIMAÇÕES E DIVERGÊNCIAS A consolidação e a expansão do corpo normativo internacional de proteção aos direitos humanos e ao meio-ambiente, ocorridas nas últimas décadas, ressaltaram a inter-relação e interdependência dos sistemas de proteção internacional e seus mecanismos na defesa e preservação destes direitos. Em verdade, o que se viu nos últimos cinqüenta anos foi uma inflação legislativa de instrumentos normativos, resoluções e recomendações das Nações Unidas, mas também de outras organizações internacionais e organizações não-governamentais, visando defender a vida no planeta, em especial a vida humana. Esta preocupação é, por certo, o primeiro elo de ligação entre os dois sistemas. A relação começa na efetivação real do direito à vida, que compreende o direito que todo ser humano tem de dispor dos meios apropriados de subsistência e de um padrão de vida decente. Dessa perspectiva o direito a um meio ambiente sadio, tanto quanto o direito à paz e ao desenvolvimento, configuram-se como extensões do direito à vida. Em outras palavras, o direito a um meio ambiente sadio salvaguarda a própria vida humana sob dois aspectos: 1) a 75 MASERA, Diego (coord.) A produção mais limpa e o consumo sustentável na América Latina e Caribe. PNUMA-ORPALC, 2005, p. 34. 262 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II existência física e sua saúde; 2) a dignidade desta existência e o direito à qualidade de vida76. Esta inter-relação e dependência, consagrada na Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993, encontra-se enumerada em diversos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos e do meio ambiente. Estes avanços legislativos reproduziram, ao longo da última década, a necessidade de uma visão sistêmica e holística voltada à proteção do ser humano e do meio onde vive, na qual a importância em garantir o direito humano ao desenvolvimento sustentável ganhou papel de destaque. Também porque ao se afirmar a preocupação com a proteção ambiental no direito internacional dos direitos humanos, fez-se, da mesma forma, a preocupação dos direitos humanos no domínio do direito internacional ambiental e, a questão do desenvolvimento, está intimamente relacionada com ambos os universos jurídicos internacionais de proteção. De certo modo, pode-se firmar que a preocupação com a proteção dos direitos humanos, direta ou indiretamente, permeia toda a produção normativa internacional ambiental, já que a plena efetivação do direito do ambiente beneficiará o ser humano desta e das futuras gerações. É possível, que esta tenha sido a razão do movimento de construção e reconhecimento do direito internacional do meio-ambiente ter afirmado, desde o princípio, a importância do ser humano para a efetivação da preservação ambiental, apesar do ser humano ter sido percebido como principal aliado apenas na última década. É o que menciona o preâmbulo da Declaração de Estocolmo sobre Meio-Ambiente Humano (1972), reconhecendo que ―o ser humano é a um tempo criatura e artífice de seu meio-ambiente‖, e de que os aspectos naturais e artificiais do meio-ambiente são ―essenciais a seu bem-estar e ao gozo dos direitos humanos fundamentais – inclusive o próprio direito à vida.77‖ A Declaração do Rio de Janeiro e a Agenda 21, contudo, são que detêm o mérito de consagrar o direito fundamental do ser humano ao meio ambiente, ao dispor que ―os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito à uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza‖. A Declaração do Rio ainda refere-se à interdependência e indivisibilidade entre proteção ambiental, desenvolvimento e a 76 Os exemplos que fortalecem este argumento são os danos causados à saúde e vida humanos pelos efeitos devastadores dos impactos ambientais e da devastação do meio-ambiente, como o aquecimento global que origina o câncer de pele; lesões na retina ocular; problemas respiratórios e imunológicos pela concentração do ar poluído numa determinada área, dentre outros. Da mesma forma, o direito à paz é um imperativo para a preservação da vida humana, já expresso na Carta das Nações Unidas (1948) e na Constituição da UNESCO. Dados em CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos Humanos e Meio-Ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 157 e seg. 77 Idem, ibidem, p. 117. 263 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II paz no mundo78, posteriormente consagrada na Declaração e Programa de Ação de Viena. Esta interdependência manifesta nos instrumentos internacionais protetivos, e o reconhecimento de novos direitos e sujeitos de proteção, fez ressurgir a velha discussão sobre a compatibilidade dos direitos fundamentais pré-existentes, com a ampliação do rol dos direitos de caráter coletivo e difuso. Contudo, não se há questionar, no campo da proteção internacional dos direitos humanos e, também do meio-ambiente, sobre restrições aos possíveis efeitos da existência concomitante de múltiplos instrumentos normativos de proteção aos direitos humanos. Ao contrário, a expansão do direito internacional dos direitos humanos e do direito internacional do meio-ambiente tem ensejado a origem de uma rede de proteção, servindo ainda de fonte de interpretação na defesa de novos direitos, ainda não plenamente positivados. Isto porque, a multiplicidade de instrumentos normativos a regular a proteção dos direitos humanos no mundo mostram-se complementares, formando um ainda difuso Direito de Proteção (droit de protection). Apesar disso, uma corrente recente tem vislumbrado a incidência de restrições ao exercício de determinados direitos humanos reconhecidos, justificando tais limitações no propósito de preservar o meio-ambiente. Os exemplos centram-se no exercício dos direitos sociais, econômicos e culturais, ao reportar restrições ao direito do trabalho, diante das medidas anti-poluição; ao direito de associação, diante das medidas contra a poluição sonora; ao direto à família, em face das medidas de controle de natalidade; ao direito ao lazer, diante de medidas de conservação da natureza79. Em verdade, trata-se de uma visão limitada da necessidade de adaptação dos direitos fundamentais para torná-los eficazes dentro da sociedade contemporânea, o que já ocorreu, em outro momento histórico, entre os direitos de liberdade e a insurgência dos direitos sociais. Não há, entretanto, antagonismos. Ao contrário, o reconhecimento do direito humano a um meio ambiente sadio reforça os direitos humanos existentes e revela a necessidade de garantia de outros, como o direito à informação e à educação ambiental. Definitivamente, os ―novos direitos‖ não restringem, reduzem ou impedem o exercício dos direitos já consagrados. São ferramentas na consolidação e ampliação do rol de direitos reconhecidos e requerem, não apenas um esforço hermenêutico de adaptação, mas também a 78 Princípios 1 e 24, respectivamente. Neste sentido ver Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), in CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos Humanos e Meio-Ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 257-264 79 Dados em CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos Humanos e Meio-Ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993, p. 159. 264 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II reformulação da doutrina e práticas judiciais, a fim de que o ordenamento jurídico nacional e internacional seja protetivo destes novos direitos e de seus novos sujeitos e não um obstáculo a sua efetivação80. Se a interdependência dos direitos humanos e do meio ambiente é, atualmente, inquestionável, dado ao reconhecimento do direito fundamental ao meio ambiente e ao direito ao desenvolvimento, como imprescindíveis à manutenção da vida no (e do) planeta, a convergência dos mecanismos internacionais de proteção destes dois sistemas ainda apresenta carências profundas no plano de sua efetivação. Isto porque, conforme destacou Bachelet ‗criar um direito internacional do ambiente é uma coisa, aplicá-lo é outra bem diferente e bem mais difícil‖81. No caso do Direito Internacional dos Direitos Humanos, foi de grande relevância, para a consolidação dos direitos humanos e sua efetivação entre os Estados, a constituição de sistemas regionais de proteção, formados por comissões de observância e, tribunais judiciais competentes a aplicar sanções aos Estados violadores de seus principais instrumentos de defesa aos direitos humanos, a exemplo do sistema europeu, americano e africano82. O Direito Internacional do Meio Ambiente, por sua vez, ainda encontra-se adstrito aos mecanismos difusos de observância e sanção das Nações Unidas e a consciência e solidariedade dos Estados na formulação e implementação de suas políticas públicas ambientais, por ora incipientes e ineficazes na luta pela preservação dos ecossistemas, pelo combate à destruição e poluição generalizadas, pela manutenção da vida no planeta e construção de um habitat seguro e sadio para as novas gerações. Os obstáculos até então levantados pautam-se nas dificuldades de identificar, senão o causador direto do dano, as vítimas imediatas e potenciais, e de mensurar, muitas vezes, o dano causado e seus reflexos futuros. De fato, ―o principal problema colocado face ao projeto que traz a criação desta jurisdição internacional do ambiente é o mecanismo de acesso, tanto 80 ―Esses ‗novos‘ direitos não restringem, mas sim ampliam, aprimoram e fortalecem o corpus dos direitos humanos e contribuem a clarificar o contexto social em que todos os direitos humanos se inserem. Além disso, levantam um desafio: o da necessidade de expandir e enriquecer até mesmo o nosso próprio universo jurídicoconceitual, de repensar todo o direito em face da complexidade das novas e múltiplas relações jurídicas que se apresentam, para fazer face às novas exigências de proteção do ser humano na esfera global e para estabelecer as bases de um futuro direito comum da humanidade, com as correspondentes obrigações erga omnes‖. In CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos: Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, São Paulo: Ed. Saraiva, 1991, p. 58. 81 BACHELET, Michel. Ingerência ecológica: Direito Ambiental em questão. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 324. 82 Sobre os sistemas de proteção regional aos direitos humanos – Sistema Europeu, Americano e Africano – ver recente trabalho publicado, com informações detalhadas e atualizadas quanto ao seus funcionamentos e fases projetos futuros, em CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado Internacional dos Direitos Humanos, Volume III, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003, 663p. 265 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II pelos Estados, como pelos próprios povos. O ambiente é coisa demasiado grave para que só os Estados tenham autoridade sobre ele‖83. E, na ordem internacional, o grande sujeito de direitos e capacidades postulatórias continua a ser o Estado. Em verdade, os indivíduos, as Organizações Governamentais, as Associações, e nem mesmo os Sindicatos, têm acesso direito aos fóruns internacionais, não podendo defender-se dos arbítrios do soberano. Infelizmente, os sistemas judiciais internacionais não estão preparados para processar e julgar os ―novos direitos‖, em especial os de caráter difuso e coletivo84. Diante desta realidade, e não sem propósito, o movimento internacional de proteção aos direitos humanos tem feito uso, na defesa do meio-ambiente, dos dispositivos normativos existentes nos tratados de direitos humanos cuja interpretação possibilite sua proteção. Assim, a questão da poluição do ar pode ser invocada por um particular diante de um tribunal internacional de direitos humanos como violação ao seu direito à saúde; contra o desmatamento e as queimadas têm-se, além da defesa do direito à saúde, o direito ao lazer. O direito humano à informação e seu acesso e à educação obrigam os Estados a tornar públicas suas ações de âmbito ambiental; e até o direito à integração social e à vida familiar e em comunidade já foi invocado para proteger o direito humano ao meio ambiente, contra os lixões urbanos e a construção de usinas nucleares85. A convergência dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos e do meio-ambiente exige uma inter-relação também no plano dos mecanismos de controle e efetivação destes direitos. Uma saída seria a incorporação, ao corpo normativo dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, dos instrumentos internacionais de proteção do meio-ambiente, podendo estes sistemas, a partir daí, sancionar os Estados signatários pela violação também dos tratados internacionais de proteção ambiental. Outra alternativa seria fortalecer e ampliar os mecanismos de controle e sanção das Nações Unidas. É certo, contudo, que a convergência normativa e processual dos mecanismos de 83 BACHELET, M. Ingerência ecológica: Direito Ambiental em questão. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 326. No sistema judicial interno dos Estados esta realidade começa a mudar, com a adoção de mecanismos específicos como a ação popular e ação civil pública, e a atribuição ao Ministério Público de zelar pelo meioambiente, a exemplo do caso brasileiro. Contudo, trata-se ainda de prática limitada e que não alcança o intuito de evitar e punir os grandes danos ambientais de proporções internacionais transfronteiriças. 85 Ver casos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em MOWBRAY, Alastair. Cases and materials on the European Convention on Human Rights. London: Butterorths, 2001. p.235-333, e também em KEMPEES, Peter. A systematic guide to the case-law of the European Court of Human Rights, 1995-1996. The Netherlands: Martinus Nijhoff, 1998. v.3, p.145-177. 84 266 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II proteção internacional dos direitos humanos e do meio-ambiente não tardam a se consolidarem. Por uma questão de direito humano, e de sobrevivência, do ser humano e do planeta. CONSIDERAÇÕES FINAIS Interdependentes, inter-relacionados e indivisíveis são o reconhecimento e a efetivação plena dos direitos do ser humano – no âmbito dos direitos humanos e do meio-ambiente – os grandes desafios da humanidade neste novo século. Os desafios de proteger os direitos humanos e o meio-ambiente no mundo, consolidar o direito ao desenvolvimento humano, sadio e sustentável com a superação das desigualdades e da miséria humana, e ainda a manutenção da paz, requerem que se repensem o Direito Internacional contemporâneo. Inegável que a evolução normativa e as mobilizações internacionais tornaram o direito internacional mais humano, os Estados mais atentos às questões ambientais e sociais, mais conscientes de sua responsabilidade para com a preservação dos ecossistemas, dos demais seres humanos, enfim, com a manutenção da vida no planeta. Não obstante, vive-se ainda em um mundo emerso em enormes contrastes e posicionamentos irracionais inexplicáveis. A título de exemplo destaca-se que o mundo produz em alimentos o dobro do que precisa e pode consumir a população global atual; contudo, um terço desta população sofre e morre com a fome e a subnutrição. Da mesma forma, as reservas de água potável do planeta são escassas e limitadas e grande parte destas reservas são poluídas por quem mais precisa dela. O cenário internacional contemporâneo, embora tenha sido humanizado nas últimas décadas pelas preocupações de proteção ambiental e dos direitos humanos, não deixou também de produzir suas misérias. A preocupação que se abateu sobre o mundo no período pós-II Guerra Mundial e que o sensibilizou a lutar pela paz e pela proteção da vida, parece estar perdendo ânimo. A paz não se fez estável, tal qual queria Kant em a Paz Perpétua. Por outro lado, o mar ainda não se fez vermelho. Foi, por certo, a solidariedade e consciência universal sobre a imprescindibilidade da paz, democracia,desenvolvimento e respeito aos direitos humanos e ao meio-ambiente que marcaram positivamente este final de século. E não as guerras, físicas, comerciais, financeiras, ideológicas, embora sua presença neste período tenha se feito constante, democraticamente distribuída entre Norte e Sul, ricos e pobres, brancos e negros, crentes ou não. É preciso redefinir espaços e valores, reconhecer direitos e sujeitos, ampliar garantias e 267 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II não miséria e exploração, dividir as responsabilidades, somar esforços, diminuir a intolerância e a discriminação. Afinal, ―o desenvolvimento humano implica em quantidade e repartição equânime da quantidade possível‖86. Por certo, a efetiva proteção dos direitos humanos e do meio-ambiente requer uma mudança conceitual do universo jurídico-internacional. Uma mudança não só de mentalidade e de comportamentos, mas de consciência. Uma mudança não apenas hermenêutica, mas processual que permita abarcar os ―novos direitos‖ tal qual se faz necessário incorporar ―novos sujeitos‖87. Os avanços normativos nos sistemas de proteção internacional dos direitos humanos, assim como do meio-ambiente, destacam a importância da participação dos indivíduos e das diversificadas esferas da sociedade civil (ONGs, movimentos sociais, sindicatos, associações) no processo de criação, respeito e aplicação das normas de proteção a estes direitos. Enveredando-se, a princípio, por caminhos distintos, mas que acabaram por se cruzar e interligar no quarto-final do século XX, os sistemas de proteção internacional dos direitos humanos e do meio-ambiente chegaram a um denominador comum: a proteção da vida é pressuposto do desenvolvimento humano. O ser humano tornou-se assim o objeto central das discussões sobre a proteção do meio-ambiente, e também o principal sujeito na luta pela efetivação das ações em sua defesa, tanto como indivíduo, quanto como parte de uma coletividade. Atuando ora particularmente, ora inserido em grupos, comunidades, organizações, sindicatos, igrejas, movimentos, associações. E, com efeito, será o grau de participação real destes novos atores que haverá de definir, no plano internacional, as novas bases normativo-conceituais dos regimes de proteção e os valores fundamentais do Direito Internacional Contemporâneo e seu futuro. REFERÊNCIAS ANNONI, Danielle. O Direito da Democracia como Requisito Imprescindível ao Exercício da Cidadania, In ANNONI, Danielle. (org.) os Novos Conceitos do Novo Direito Internacional: Cidadania, Democracia e Direitos Humanos, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 93-108. 86 QUADROS MAGALHÃES, José Luiz. Desenvolvimento dos direitos humanos e o direito ao desenvolvimento enquanto direito humano, In SÉGUIN, Elida (orgs). O Direito do Desenvolvimento, Série Direitos Especiais, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 157. 87 ―Portanto, o acesso dos Estados, das Organizações Internacionais Governamentais, dos indivíduos e das ONGs é necessidade primordial à qual será preciso responder de forma satisfatória se se quiser fazer desse tribunal do ambiente algo diferente de um vovo TIJ pouco satisfatório, no fim das contas‖. Bachelet, M. Op. Cit. p. 329. 268 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II BACHELET, Michel. Ingerência ecológica: Direito Ambiental em questão. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. BIANCHI, Patrícia Nunes. A (in) eficácia do direito ao Meio Ambiente Ecologicamente equilibrado no Brasil. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. 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O controle das doenças infecciosas e a segurança sanitária. 2. Regulamento sanitário internacional (RSI). Conclusão. RESUMO O presente artigo tem como objetivo delinear a segurança sanitária em face do constante tráfego internacional. De fato, doenças que anteriormente encontravam-se esquecidas no imaginário dos serviços de saúde tem ressurgido e, com isso, reduzindo o nível de saúde das pessoas. Assim, faz-se uma digressão acerca da idéia de segurança sanitária e os instrumentos de controle ao longo do desenvolvimento da saúde pública e, em seguida, analisa-se o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), instrumento legal o qual prevê a adoção de medidas que visem à proteção da saúde humana. Palavras-chave:Segurança Sanitária; Regulamento Sanitário Internacional; Direito à Saúde. ABSTRACT This article aims to outline the health security in the face of constant international travel. In fact, diseases that previously were forgotten in the health services has risen and, thus, reducing the level of health. Thus, it is a digression on the idea of health security and control instruments to throughout the development of public health and then analyzes the International Health Regulations (IHR), a legal instrument which provides for the adoption of measures for the protection of human health. Keywords: Health Security; International Health Regulations; Health Law. INTRODUÇÃO A saúde é um tema que sempre despertou o interesse entre os diferentes povos. As 1 Mestranda em Direito, na área de Relações Internacionais, da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Integrante do Grupo de Pesquisas em Direito Autoral e Sociedade da Informação – GEDAI. E-mail: [email protected] 271 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II notícias veiculadas na mídia sobre doenças, surtos que se alastram entre os países e a conseqüente restrição ao tráfego internacional resultam em prejuízo financeiro e mortes. O avanço nos meios de transporte e circulação representam um dos traços marcantes da sociedade globalizada. Nesse sentido, doenças emergentes, como a gripe aviária e a influenza e reemergentes, como a febre amarela e a varíola, desafiam os sistemas de saúde pública dos países a promoverem ações coordenadas de forma a prevenir, ao máximo, a propagação de doenças e a restrição ao comércio e tráfego internacional. Historicamente, os países sempre se preocuparam em garantir um mínimo de interferência na saúde da população, visto que as questões de saúde eram restritas ao convívio familiar. O Estado passou a incorporar às suas atribuições, de maneira gradual, as questões pontuais de saúde pública, como coleta de lixo, higiene pública e o combate aos surtos epidêmicos. O Estado vislumbrou, dessa forma, novas atividades e desafios: o de garantir a saúde pública a toda a população e proteger o seu país de eventuais epidemias. Com isso, a idéia de segurança sanitária e vigilância aprimorou-se. A Vigilância requer instrumentos cada vez mais precisos de detecção e controle epidemiológico em um dado território. Além disso, a segurança sanitária impõe aos países novas exigências, como o de promover o crescente aperfeiçoamento de técnicas de fiscalização em fronteiras, portos, aeroportos e vacinação. Assim, a comunidade internacional reconheceu o Regulamento Sanitário Internacional como instrumento legal que visa ao controle de epidemias, o qual foi aprovado em maio de 2005 e passou a vigorar em 2007. As questões que permeiam o presente o trabalho são a análise do contexto em que a saúde está inserida, em nível internacional, seus condicionantes e principais riscos. 1. O CONTROLE DAS DOENÇAS INFECCIOSAS E A SEGURANÇA SANITÁRIA As doenças geralmente são conhecidas pelos efeitos que causam na população. As doenças infecciosas possuem um comportamento condicionado a um conjunto de fatores, vinculado aos modelos de desenvolvimento econômico, às políticas de industrialização e às suas principais conseqüências tais como o rápido processo de urbanização, a modificação de hábitos entre a população e as alterações ambientais nas cidades e no campo2. 2 WALDMAN, Eliseu.. O Controle das Doenças Infecciosas Emergentes e a Segurança Sanitária. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 89. 272 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II O Estado, historicamente, incorporou, em suas atividades, o controle de doenças infecciosas ou de doenças que pudessem resultar em epidemias (prejudiciais ao comércio). Assim, um dos objetivos principais de qualquer serviço de vigilância em saúde é garantir a segurança da população diante de elementos quimicos, rádio-nucleares e patogênicos. A idéia de controle de doenças infecciosas surgiu no final da Idade Média e consolidou-se no início do século XVII e XVIII com o desenvolvimento do comércio e a proliferação de centros urbanos, focalizando doenças que frequentemente assumiam caráter epidêmico. Conforme o registro de Eliseu Waldman3: No século XIV, a República de Veneza utilizou, provavelmente pela primeira vez, um instrumento de controle sanitário ao impedir que navios transportando doentes acometidos pela peste ancorassem em seus portos. Dessa forma introduziu a prática sistemática da quarentena ao manter isolados, por tempo determinado, indivíduos oriundos de área atingidas pela peste. Com efeito, a terrível epidemia da peste que dizimou, em 1348, um terço da população européia, forçou os poderes públicos, organizados como monarquias feudais, a tomar medidas de saúde pública urgentes para a proteção da saúde da população em geral. Assim, a peste deu origem aos primeiros conselhos de saúde, organizados nas cidades do norte da Itália. A quarentena, juntamente com o isolamento, determinam a separação de indivíduos de seus contatos habituais, assumindo caráter compulsório,visando defender as pessoas sadias, separando-as dos doentes ou daquelas que potencialmente poderiam vir apresentar essa condição. Em decorrência desses conceitos, surgiram centros especiais de isolamento, dentre eles os hospitais de isolamento para varíola, tuberculose e lepra.4 A experiência de Veneza, cidade onde a peste começou, justificou a formação de um Grande Conselho, isto é, um comitê de três consultores, incumbidos de organizar e implantar as medidas de quarentena e de isolamento para conter a epidemia. Depois de afastado o maior perigo, o comitê foi dissolvido, mas voltava à ação a cada nova possibilidade de epidemia. Assim, somente em 1486 foi instituído em Veneza um Comitê permanente para tal função por representantes das grandes famílias da cidade. As ações do Comitê acabaram por gerar uma forte oposição de diversos setores da sociedade que se sentiam ameaçados ou prejudicados por suas determinações. Sofriam críticas da Igreja, devido à interdição de procissões em épocas de epidemias; dos comerciantes, em decorrência dos controles instituídos sobre certos produtos ou das quarentenas, que isolavam comunidades e diminuíam clientela e lucro; e dos artesãos, que foram lançados ao desemprego em decorrência da enorme redução do 3 WALDMAN, Eliseu.. O Controle das Doenças Infecciosas Emergentes e a Segurança Sanitária. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 92. 4 WALDMAN, Op cit, p. 94. 273 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II número de demandas em decorrência dos controles sanitários impostos, sobretudo nas épocas de epidemias5. Além da quarentena e do isolamento, outros instrumentos também foram utilizados no controle de doenças infecciosas, como o cordão sanitário, dirigido a bairros, cidades ou áreas delimitadas e não a indivíduos, e a vigilância, definida pela função de observar os indivíduos que tiveram contato com pacientes atingidos pela moléstia ou que tenham transitado por regiões por ela atingidas6. O cordão sanitário tinha por objetivo isolar as zonas afetadas para defender as ―áreas limpas‖ da contaminação pelas doenças epidêmicas7. A vigilância foi aplicada pela primeira vez em saúde pública, em 1955, quando algumas regiões dos Estados Unidos da América foram atingidas por uma epidemia de poliomelite, evento que ficou conhecido como o Acidente de Cutter, em razão de existir, nessas regiões, um grande laboratório farmacêutico. A epidemia apresentou a particularidade de atingir crianças, assim como seus contatos, logo após as primeiras terem recebido a administração de vacina de vírus inativado contra a poliomelite8. Tanto o cordão sanitário quanto a vigilância restringiam a circulação de pessoas e possuía caráter muitas vezes punitivo, ao criar dificuldades para o intercâmbio entre países. A par dos instrumentos de controle sanitário, fez-se necessária a existência de regulamentações jurídicas, tratados entre os países de forma que todos desenvolvessem a capacidade de eliminar eventuais surtos epidêmicos. O momento oportuno para a celebração de tratados que efetivassem o controle sanitário de áreas fronteiriças deu-se em razão da cólera, doença que contribuiu para o surgimento de medidas sanitárias de cunho internacional. A cólera apareceu, inicialmente, nas rotas comerciais de países vizinhos à Índia, tendo o registro de sua primeira pandemia entre 1817 e 1823, restrita à Ásia e África9. Contudo, entre os anos de 1830 e 1847, a cólera chegou à Europa e às Américas. Esse fato conduziu os países a um enorme esforço diplomático de cooperação multilateral internacional no campo da saúde pública, resultando na Primeira Conferência Sanitária Internacional. Durante a Primeira Conferência Sanitária Internacional, (representada por doze países, 5 WALDMAN, Eliseu.. O Controle das Doenças Infecciosas Emergentes e a Segurança Sanitária. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 96. 6 WALDMAN, Eliseu.Op cit, p. 97. 7 WALDMAN, Eliseu.Op cit, p. 97. 8 WALDMAN, Eliseu.Op cit, p. 98. 9 MENUCCI, DL. O Regulamento Sanitário Internacional (2005) e a Vigilância em Saúde. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 54. 274 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II a saber, Áustria, Espanha, Os Estados que formam hoje a Itália, França, Grécia, Portugal, GrãBretanha, Rússia, Turquia e Toscana), o Ministro das Relações Exteriores da França à época destacou ―(...) la signification historique d‘une époque où toutes lês industries de l‘univers semblent oublier leurs anciennes rivalités et se donner la main à cette merveilleuse exposition de Londres10‖. Após a primeira tentativa de Conferência Sanitária, outras dez existiram, além de oito convenções entre os países com a finalidade de buscar soluções para o controle das doenças transmissíveis, como a Conferência Sanitária Internacional de Veneza, em 1892, estabelecendo diretrizes para o controle da cólera e a Conferência Sanitária Internacional de 1897, que adotou medidas relativas à peste. Em 1903, as Conferências Sanitárias foram substituídas por outra que contou com a participação de países não europeus, como o Brasil, os Estados Unidos, o Egito e a Pérsia e instituiu métodos de controle para a febre amarela. A evolução dos instrumentos normativos na Região das Américas foi proporcionada primeiro, pela criação da Repartição Sanitária Pan-Americana, precursora da Organização PanAmericana de Saúde (OPAS) e, em seguida, pela realização da Primeira Conferência Sanitária das Américas11. Em 1951, diante da consolidação do esforço diplomático dos países europeus e da América no sentido de prevenir a saúde das pessoas e impedir o surgimento de doenças, surgiu o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), aprovado pela 4ª Assembléia Mundial de Saúde cujo propósito era monitorar e controlar seis doenças infecciosas graves: cólera, peste, febre amarela, varíola, febre recorrente e tifo12. Em 1969, o Regulamento passou por sua primeira revisão e, em 1973, novas alterações foram feitas com a inclusão de medidas adicionais para o controle da cólera. A finalidade principal do Regulamento Sanitário Internacional (RSI) de 1969 era ―... conseguir a máxima segurança contra a propagação internacional de doenças com o mínimo de barreiras ao tráfego internacional‖13. O RSI de 1969 estabelecia a obrigatoriedade de comunicar, no prazo de 24 horas, o aparecimento de qualquer doença capaz de ocasionar um surto epidêmico e elencava medidas profiláticas em portos e aeroportos com a finalidade de assegurar a qualidade dos serviços 10 JONES, Norman Howard. International Public Health between the Two World Wars: the organizational problems. OMS: Genebra, p. 35, 1976. 11 MENUCCI, Daniel. O Regulamento Sanitário Internacional (2005) e a Vigilância em Saúde. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 58. 12 OMS, Bulletin of the World Health Organization. Genebra: OMS, p.12, 1951. 13 OMS. World Health Organization: history. Washington: OMS, p.27,1983. 275 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II sanitários. O Professor Guido Soares14 afirmou que Na verdade, em que pesem as grandes virtudes do Regulamento Sanitário Internacional, basicamente, em primeiro lugar, a informação e disseminação internacional de dados científicos, técnicos e estatísticos, e, em segundo, a normalização indireta, em nível mundial, de técnicas terapêuticas e de prevenção, através de uma relativa uniformização e harmonização das legislações internas dos Estados, há críticas sobre a sua utilidade. Ressalte-se sua relativa inflexibilidade, em face da velocidade dos conhecimentos científicos e técnicos na área de profilaxia e tratamento, ou, mesmo em relação a uma reversão de certas tendências (recorrência de moléstias tidas como extintas enquanto epidêmicas, como no caso da varíola) ; por outro lado, a ênfase dada ao conceito de doença contrasta com a tendência atual das Ciências da Saúde de considerar antes « a pessoa doente » ; enfim, há a consciência de que se torna cada vez mais importante realçar o conceito de luta antivetorial nas situações epidemiológicas. As Assembléias Mundial da Saúde (WHA sigla em inglês) 48.7 e 48.16 em 1995 iniciaram, em 1995, um processo de revisão ao mesmo tempo em que traçaram estratégias que resultassem em ações mais incisivas no controle de doenças. As razões que justificaram o processo de revisão do RSI foram o consenso de que a saúde pública enfrenta novos desafios, quais sejam, a relação entre a saúde e a segurança humana, o impacto das ameaças de saúde pública para a paz internacional, as mudanças associadas à globalização, o reconhecimento da saúde como um bem público, a importância da saúde como um direito fundamental e a crise de governabilidade. 2. REGULAMENTO SANITÁRIO INTERNACIONAL (RSI) As falhas existentes nos Regulamentos anteriores resultaram no processo de revisão com a conseqüente modificação em relação aos eventos de saúde pública os quais, em face da realidade globalizada, exigiam uma resposta proporcional e adequada a toda comunidade internacional. O Regulamento foi revisto em conformidade com a Resolução adotada pela Assembléia Mundial da Saúde em 1995 (WHA 48.7 sigla em inglês). A revisão teve duas fases, a primeira relacionada às doenças transmissíveis e a segunda sobre as posições políticas e os conceitos que norteariam o novo Regulamento. Durante a primeira fase, a preocupação foi o de abranger todas as doenças emergentes e reemergentes que não constavam na lista de notificação do Regulamento em vigor. Após o estudo sobre a notificação de síndromes e análise dos seus resultados, durante a 14 SOARES, Guido. F. O Direito Internacional Sanitário e seus temas: apresentação de sua incômoda vizinhança. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 56, 2000. 276 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II primeira fase, o Diretor-Geral da OMS aprovou novas diretrizes para a revisão do RSI, sintetizadas num rascunho de documento intitulado Revisão do Regulamento Sanitário Internacional – documento de posições políticas. As propostas de diretrizes foram: 1. Manter o objetivo do RSI em ―garantir a máxima segurança contra a disseminação internacional de doenças com a mínima interferência ao tráfego mundial‖; 2. O novo RSI não terá um lista de doenças notificáveis, nem dependerá somente do uso de síndromes para notificação. Em vez disso irá requerer a notificação de todos os eventos de urgência internacional de importância para a saúde pública; 3. Cada país necessitará de um ponto focal para o processo do RSI; 4. Os Estados-membros terão a opção de fazerem notificações temporárias à OMS em caráter confidencial; 5. Outras informações não oficiais serão utilizadas pela OMS para ajudar no controle de eventos de saúde pública de urgência internacional, com a obrigação dos Estados-membros responderem aos pedidos de informação feitos pela OMS, com propósitos de verificação da veracidade da informação; 6. Haverá uma obrigação da OMS em assistir rapidamente aos Estados-membros na avaliação e controle de surtos; 7. Haverá um processo transparente na OMS para declarar um evento como urgência de saúde pública internacional; 8. O RSI conterá uma lista de todas as possíveis medidas essenciais que podem ser utilizadas numa determinação da OMS, que serão recomendadas de acordo com o impacto potencial do evento; 9. O RSI terá um processo de apelação, para os Estados-membros poderem questionar as diretrizes adotadas pela OMS; 10. A existência de outras Organização envolvidas nos temas de saúde e comércio deve ser explicitada no RSI, com respectivas áreas de responsabilidade delineadas e possíveis sinergias exploradas15. Para assegurar que as urgências nacionais de interesse internacional sejam detectadas no início, cada país exigirá que seu sistema de vigilância recolha informações sobre eventos incomuns e inesperados de maneira rápida. Além do mais, o sistema deve ter a capacidade de análise rápida, para que as decisões de ação com base nos dados possam ser tomadas no nível local. O Brasil liderou a reunião para discutir a revisão do RSI entre os membros do MERCOSUL. Ficou evidente entre os líderes a importância da preservação do equilíbrio entre os aspectos sanitários e comerciais; o uso do algoritmo para a notificação; as notificações em caráter temporário e a capacidade mínima requerida para os pontos de entrada. Ainda assim, para Guido Soares16: No Mercosul, há dificuldades de estabelecer um controle sanitário comum entre os parceiros, nem tanto porque a saúde de cada país seja uma realidade distinta, mas por razões econômicas bastante compreensíveis, de querer conservar padrões nacionais, talvez mais exigentes em matéria de saúde, mas, igualmente, mas tendentes a privilegiar produtos nacionais em detrimento daqueles oriundos dos parceiros. Atualmente, quando um surto num país pode constituir uma emergência sanitária de interesse mundial, é preciso um esforço colaborativo para garantir a segurança sanitária global. Dessa forma, as redes de vigilância e resposta devem contribuir para a segurança sanitária 15 MENUCCI, Daniel. O Regulamento Sanitário Internacional (2005) e a Vigilância em Saúde. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 58. 16 SOARES, Guido. F. O Direito Internacional Sanitário e seus temas: apresentação de sua incômoda vizinhança. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 71, 2000. 277 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II mundial congregando recursos de instituições técnicas nas áreas de gestão epidemiológica, laboratorial e clínica. Além da notificação oficial que deve ser feita após a análise de decisão do algoritmo, isto é, um instrumento que resultará na decisão de caracterizar eventual surto epidêmico com a notificação à OMS, os Estados-Membros terão a obrigação de responder a pedidos da Organização Mundial de Saúde para verificar a confiabilidade dessa informação, em razão do novo Regulamento cobrir uma gama muito mais ampla de eventos de saúde pública e surtos17. Os eventos que não preencherem os critérios do instrumento decisório (algoritmo) podem ser comunicados à OMS mediante um processo de consulta. Os pontos focais nacionais devem ser designados com responsabilidades definidas para intercâmbio oficial de informação com a OMS durante eventos urgentes. Na maioria dos casos, essa informação deve ser nacionalmente distribuída a hospitais, autoridades sanitárias, portos e aeroportos de maneira muito rápida. Preferencialmente, a comunicação deve ser feita por meios eletrônicos e deve haver um sistema de ―back -up‖ em cada Estado-Membro, para que a informação sempre chegue a alguém disponível18. Os requisitos de capacidade básica de vigilância e resposta nos países, mais especificamente nos pontos de entrada (portos, aeroportos e cruzamentos de fronteira), propostos no RSI criam uma referência para a formação de capacidade dos serviços nacionais de saúde e exigirão um processo de avaliação e desenvolvimento de planos nacionais de ação apoiados por cooperação técnica. Observa-se a centralidade das ações por parte da Organização Mundial de Saúde como a responsável pelo controle internacional de doenças. Os Estados-Membros da OMS expressaram preocupação ao fato de que o novo RSI entraria em conflito com outras agências que também regulam e previnem, em suas disposições, as ameaças à saúde pública, tais como a Agência Internacional de Energia Atômica, a Organização Mundial do Comércio, a Comissão do Codex Alimentarius. A OMS, por sua vez, reduziu as chances de existência de conflitos ao incentivar a colaboração e a coordenação internacional entre as Agências, segundo disposto no artigo 14 do RSI 2005: 17 DUBOIS, Sandrine Maljean; MEHDI, Rostane. La Societé internationale et les grandes pandemies. Paris : Pedonne, p, 102, 2007. 18 DUBOIS, Op cit. 278 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II WHO shall cooperate and coodinate its activities, as appropriate, with other competent intergovenmental organizations or international bodies in the implementation of these Regulations, including through the conclusion of agreements and other similar arrangements. In cases in which notification or verification of, or response to, an event is primarily within the competence of other intergovernmental organizations or international bodies, WHO shall coordinate its activities with such organizations or bodies in order to ensure the application of adequate measures for the protection of public health. Notwithstanding the foregoing, nothing in these Regulations shall preclude or limit the provision by WHO of advice, support, or technical or other assistance for public health purpose19. É consenso na comunidade internacional a possibilidade de existência de armas de destruição em massa, fazendo uso de elementos químicos. No RSI a preocupação dos especialistas em vigilância epidemiológica deve-se ao fato de que se um Estado-Membro faz uso de arma de destruição em massa, a prevenção e proteção da saúde encontra-se em risco, já que o Regulamento não oferece medidas no caso em tela. O conceito por meio do qual o sistema de seguridade sanitária faz-se presente no Regulamento é o de emergência de saúde pública de importância internacional, definido como qualquer evento extraordinário que constitui um risco para a saúde pública de outros Estados em razão da propagação internacional de uma doença e poderia exigir uma resposta internacional coordenada. Além disso, a questão central em relação à aplicabilidade do Regulamento Sanitário Internacional reside em sua implementação nos Estados-membros. Assim como todo país possui seu sistema de governo, este também desenvolve um aparato constitucional ou infraconstitucional que limite as práticas e as políticas nacionais. Nessa perspectiva, os países como um todo, com sua história de combate aos surtos epidêmicos, construíram seu próprio sistema de proteção às emergências de saúde pública, razão pela qual o RSI não conseguiria contemplar a realidade de uma dada comunidade. As opções que restam aos países no que se refere à implementação do RSI são a promoção de serviços de saúde de forma descentralizada, a harmonização das políticas públicas de saúde e a criação de uma estrutura em que os governos regionais sejam encorajados a pôr em prática um sistema de saúde que esteja em consonância com o RSI. Observa-se, por fim que o RSI, ao entrar em vigor, incentiva a construção de um controle sanitário nos pontos de entrada, em detrimento da integração com sistemas de vigilância epidemiológica. O objetivo e a finalidade do RSI são explicitados em seu artigo 2º são ―20prevent, protect against, control and provide a public health response to the international spread of 19 20 OMS. International Health Regulations (IHR). OMS: Genebra, p. 21, 2005. OMS. Op cit. 279 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II disease in ways that are commensurate with and restricted to public health risks, and which avoid unnecessary interference with international traffic and trade.‖ O algoritmo é um instrumento de decisão que deve ser utilizado para detectar se em evento de saúde pública deve ser notificado à OMS. O instrumento de decisão faz parte do controle de vigilância epidemiológica, a cargo da Secretaria de Vigilância Epidemiológica, no Brasil. As capacidades básicas requeridas diante do tráfego e comércio referem-se ao acesso a serviços médicos dotados de pessoal e insumo adequados; o acesso a facilidades para o transporte, isolamento e tratamento de pessoas afetadas ou suspeitas, serviços para a inspeção sanitária, serviços de desinfecção, descontaminação e controle de vetores. As medidas que podem ser aplicadas às pessoas, com base no RSI são a revisão de prova de exame médico e laboratorial, a requisição de exame médico, a revisão de prova de vacinação ou outras medidas de profilaxia, a observação em saúde pública para pessoas com risco de transmissão, a adoção de quarentena para pessoas com risco de transmissão, a adoção de isolamento e tratamento de pessoas afetadas, o rastreamento de saída e/ou restrições para pessoas de áreas afetadas, tratamento de bagagens21. CONCLUSÕES Somente a partir do século XX tem-se a existência de normas internacionais relacionadas à saúde pública, caracterizadas pelo caráter universalista do Direito Internacional. As epidemias representaram a razão de existência dos primeiros esforços diplomáticos no sentido de reduzir os resultados catastróficos que as epidemias causavam nos países, como a criação do Departamento Internacional de Higiene Pública (OHIP sigla em inglês) em 1907, por meio do projeto do Governo Francês na Conferência de Roma, após a 4ª Conferência Sanitária Internacional em Paris e a Sociedade da Liga das Nações. Ambas foram percussoras da atual Organização Mundial de Saúde. A Organização Mundial de Saúde tem por objetivos a atuação e coordenação em assuntos de saúde internacional, o estabelecimento e colaboração direta com as Nações Unidas e o fortalecimento dos serviços de saúde. A Organização Pan-Americana de Saúde, OPAS apresenta fontes importantes para a consolidação do Direito Sanitário Internacional na medida em que desenvolve a cooperação 21 OMS. International Health Regulations (IHR). OMS: Genebra, p. 24, 2005. 280 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II técnica entre os países da região das Américas e promove a melhoria das condições de saúde da população mediante a realização de campanhas nacionais (incentivando os países, como por exemplo, o Brasil, na erradicação dos focos de malária) e propondo agenda de desenvolvimento para a região e, a exemplo da OMS, trata-se de uma organização intergovernamental desprovida de poderes acima dos Estados. O Estado, historicamente, incorporou, em suas atividades, o controle de doenças infecciosas ou de doenças que pudessem resultar em epidemias (prejudiciais ao comércio) e, com isso, os serviços de vigilância em saúde deveriam garantir a segurança da população diante de elementos quimicos, rádio-nucleares e patogênicos. A idéia de controle de doenças infecciosas surgiu no final da Idade Média e consolidou-se no início do século XVII e XVIII com o desenvolvimento do comércio e a proliferação de centros urbanos, focalizando doenças que frequentemente assumiam caráter epidêmico. Visando ao controle das doenças infecciosas, os sistemas de vigilância possuem instrumentos tais como: o isolamento, a quarentena, a vigilância epidemiológica e o cordão sanitário. Esses instrumentos permitiram o aprimoramento da vigilância em saúde e sedimentaram a existência de Regulamentos Sanitários. O conceito por meio do qual o sistema de seguridade sanitária faz-se presente no Regulamento Sanitário de 2005 é o de emergência de saúde pública de importância internacional, definido como qualquer evento extraordinário que constitui um risco para a saúde pública de outros Estados em razão da propagação internacional de uma doença e poderia exigir uma resposta internacional coordenada. Os países-membros da Organização Mundial de Saúde devem desenvolver, em seus países, sistemas de vigilância em saúde capaz de detectar quaisquer eventos inesperados que possam resultar em uma emergência de saúde pública e instrumentos legais para reduzir os impactos que uma emergência de saúde pública pode acarretar na sociedade. Nesse sentido, o Brasil desenvolveu um Projeto de Lei em emergências de saúde pública com o objetivo de regular os serviços de saúde pública no país em eventual desastre de saúde pública. O Regulamento Sanitário Internacional, aprovado em 2005 contém, sem precedentes na história, estreita conexão entre direito internacional e saúde pública. Sem dúvida, o Regulamento representa uma iniciativa inédita de combate aos surtos epidêmicos e resulta na idéia de que a saúde, no contexto globalizado, é o elemento-chave para contemplar os demais setores da sociedade, como a economia, o desenvolvimento, a degradação do meio ambiente, as políticas de mercado, o respeito aos direitos humanos. 281 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II REFERÊNCIAS DUBOIS, Sandrine Maljean; MEHDI, Rostane. La Societé internationale et les grandes pandemies. Paris : Pedonne, 2007. MENUCCI, DL. O Regulamento Sanitário Internacional (2005) e a Vigilância em Saúde. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 54 – 87m 2007. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. International Health Regulations. Genebra: OMS, 2005. ___________. Bulletin of the World Health Organization. Genebra: OMS, 1951. ___________. World Health Organization: history. Washington: OMS, 1983. SOARES, Guido. F. O Direito Internacional Sanitário e seus temas: apresentação de sua incômoda vizinhança. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 50 – 88, nov. 2000. WALDMAN, Eliseu. O Controle das Doenças Infecciosas Emergentes e a Segurança Sanitária. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 90-106, 2007. 282 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO NOS 20 ANOS DA CONSTITUICAO BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DA CLÁUSULA DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO ECOLÓGIC O A PARTIR DE CASOS CONCRETOS Carolina Medeiros Bahia1 Fábio Fernandes Maia2 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Afirmação internacional do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 3. Dimensões do direito ao meio ambiente e os deveres ambientais fundamentais. 4. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado na Constituição Federal de 1988. 5. A proibição do retrocesso ecológico. 6. Estudos de casos. 6.1. As Medidas Provisórias nº. 113 e 131 de 2003. 6.2. A lei 10.431, de 21 de dezembro de 2006 do Estado da Bahia e o Termo de Compromisso de Responsabilidade Ambiental - TCRA. 7. Conclusões articuladas. RESUMO O presente artigo analisa o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, abordando a sua evolução na ordem internacional e o tratamento a ele conferido pela Constituição brasileira de 1988; estuda a cláusula de proibição do retrocesso ecológico, enfrentando os seus contornos e seus fundamentos constitucionais e questiona a efetividade das normas constitucionais de proteção do meio ambiente e a vinculação do Poder Público à proibição do retrocesso ecológico à luz de alguns casos concretos. Palavras-chave: Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, Clausula de Proteção do retrocesso ecológico, Efetividade das normas constitucionais de proteção ao meio ambiente ABSTRACT This article examines the right to an ecologically balanced environment, addressing the trends in international order and the treatment given to him by the Constitution of 1988, studying the clause prohibiting the ecological retreat, facing its contours and its constitutional foundations 1 Doutoranda em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora do CNPq e membro do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco - GPDA. 2 Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito, pesquisador da CAPES,Advogado. 283 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II and questions effectiveness of the constitutional protection of the environment and the linkage of the Government to ban the ecological regression according to some concrete cases Keywords: Right to an ecologically balanced environment, Recoil Protection Clause of ecological effectiveness of constitutional protection for the environment 1. INTRODUÇÃO No atual contexto da Sociedade de Risco, a exposição da humanidade a ameaças globais como as relacionadas às mudanças climáticas, à escassez dos recursos hídricos e à perda da biodiversidade tem evidenciado a urgência da proteção do meio ambiente. A percepção de que as conseqüências das catástrofes ambientais não respeitam fronteiras políticas e geográficas e de que a união de esforços entre as diversas nações era indispensável para uma proteção adequada forçou a universalização desse direito ainda no século passado. Depois da sua afirmação na ordem internacional por meio da Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de 1972, foi a vez da sua internalização. Diversas ondas de esverdeamento das constituições seguiram-se e, atualmente, grande número de constituições no mundo consagra o dever de proteção do meio ambiente. Parece incontestável o amadurecimento das normas de proteção ambiental tanto no âmbito internacional quanto no âmbito interno dos Estados. Seguindo a tendência internacional, a Constituição brasileira de 1988 trouxe um texto avançado, buscando a tutela do meio ambiente de modo amplo e holístico, consagrando princípios constitucionais de proteção e reconhecendo direitos e deveres fundamentais do Poder Público e dos particulares em relação a esse bem. Na comemoração dos vinte anos da Constituição Federal de 1988, é importante questionar se os avanços axiológicos ocorridos no Brasil sob a sua égide têm resultado na elaboração de leis e outros atos normativos afinados com os valores e princípios nela consagrados e com a cláusula geral da proibição de retrocesso, que impede o recuo da proteção ecológica a níveis inferiores àqueles já consagrados. Dessa forma, são objetivos desse artigo: (a) analisar os contornos e as dimensões do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, passando pelo processo de afirmação internacional desse direito e pela sua consagração pela Constituição brasileira de 1988; (b) discutir a cláusula de proibição do retrocesso ecológico, sua importância e fundamentos 284 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II constitucionais; (c) questionar a efetividade das normas constitucionais de proteção do meio ambiente e a vinculação do Poder Público à proibição do retrocesso ecológico à luz de dois casos concretos: as Medidas Provisórias nº113 e 131, ambas de 2003, que estabeleceram normas para a comercialização da produção de soja das safras de 2003 e 2004, respectivamente e deram outras providências e a Lei 10.431, de 20 de dezembro de 2006, do Estado da Bahia, que dispõe sobre a Política Estadual do Meio Ambiente e institui o Sistema Estadual de Administração dos Recursos Ambientais – SEARA. 2. AFIRMAÇÃO INTERNACIONAL DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO. Embora a degradação acompanhe a história da humanidade, a preocupação generalizada com a proteção do meio ambiente é bastante recente e data da década de sessenta do século passado. Com a Revolução Industrial e a constituição das sociedades modernas, os avanços científicos e as novas tecnologias possibilitaram a exposição do meio ambiente a uma ameaça sem precedentes. O alvorecer da modernidade também fez multiplicar as situações de risco concreto que passaram a afetar todo o Planeta. Graves acidentes ocorridos nas décadas 50 e 60 evidenciaram o caráter transfronteiriço do dano ambiental (que não obedece a fronteiras políticas ou geográficas e não pode ser controlado eficazmente por uma única autoridade estatal) e a necessidade de delineamento de princípios gerais de ação para os estados, visando ao enfrentamento da problemática ambiental3. De acordo com Kiss.4 Em todos os países do mundo, a opinião pública, despertada pelos cientistas, conscientizou-se do perigo que afeta o nosso planeta, em virtude da multiplicação desordenada das atividades humanas, agravada pela explosão demográfica e pelo impacto das tecnologias nem sempre dominadas (tradução livre). As pressões dos cientistas e da opinião pública nesse período culminaram com a realização da primeira conferência internacional sobre o meio ambiente, em 1972, na cidade de Estocolmo, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano. 3 Tome-se como exemplos a enfermidade de Minamata, em 1953 (contaminação de diversos pescadores da aldeia de Minamata, no Japão, por mercúrio orgânico, empregado por uma fábrica química da empresa Chisso) e o naufrágio do superpetroleiro Torreo Canyon, em 1967 (que causou o derramamento de 120.000 toneladas, poluindo o litoral da França da Bélgica e da Inglaterra). 4 KISS, Alexandre; BEURIER, Jean-Pierr . Droit international de l’envvironnement. Paris: Pedone, 2004. 285 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Para Soares,5 dois fatores permitiram a emergência do Direito Internacional do Meio Ambiente de modo tão veloz: (a) a poluição das águas doces de rios e lagos internacionais e a poluição atmosférica trazida pelas correntes de ar e seu caráter transfronteiriço e (b) a poluição descontrolada dos mares e oceanos, sobretudo por conta dos derramamentos de óleo no mar (as chamadas maré negras). Para Canotilho, as preocupações com a prevenção e o controle da poluição e com o reconhecimento do direito ao meio ambiente como direito fundamental configuram a primeira dimensão dos problemas ecológicos. Bastante atrelada a uma moralidade ambiental antropocêntrica, a ênfase dessa dimensão está na afirmação da dignidade da pessoa humana como fundamento da proteção do meio ambiente. A Conferência de Estocolmo produziu importantes efeitos na ordem internacional e no âmbito interno dos Estados. Na ordem internacional, pôde-se constatar um grande incremento na produção de documentos internacionais voltados a proteção do meio ambiente. No âmbito interno, verificou-se a incorporação da temática ambiental nas constituições de diversos Estados, como foi o caso da Constituição Búlgara de 1971, da Cubana de 1976 e da Portuguesa de1976. Na década seguinte, o surgimento de novas preocupações planetárias (como as mudanças climáticas, a acelerada destruição da biodiversidade e a destruição da camada de ozônio) e a repetição de novas catástrofes de altas conseqüências (como o acidente nuclear de Chernobyl e o vazamento do gás tóxico em Bhopal) fizeram o mundo se deparar com uma nova ordem de riscos ecológicos, marcados por uma invisibilidade e por uma globalidade cada vez mais abrangentes. Essas ameaças marcam a segunda dimensão dos problemas ecológicos, centrada numa sensitividade ecológica ―mais sistêmica e cientificamente ancorada‖ e que enfatiza a necessidade de pluralismo legal global para o equacionamento dos problemas ecológicos.6 Também caracterizam uma nova etapa da Modernidade, denominada por Beck de Sociedade de Risco. A Sociedade de Risco pode ser compreendida como ―um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial‖.7 Ela seria um produto do intenso crescimento econômico, do acelerado progresso 5 SOARES, Guido. Direito internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2003. 6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental português: tentativa de compreensão de 30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.) Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1-2. 7 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1998. 286 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II da técnica e da radicalização do processo industrial, ou seja, do próprio sucesso da modernização. A nova dimensão dos problemas ecológicos ensejou a realização de outra conferência internacional, realizada, desta vez, no Rio de Janeiro, em 1992. A Rio-92 deu origem a importantes documentos internacionais, como a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, a Convenção sobre Diversidade Biológica e a Agenda 21. Também introduziu, na ordem internacional, a noção de justiça distributiva consubstanciada no princípio da responsabilidade comum, porém diferenciada e o conceito de sustentabilidade. 3. DIMENSÕES DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE E OS DEVERES AMBIENTAIS FUNDAMENTAIS. Enquanto direito fundamental, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado pode ser enfocado sob uma dupla dimensão. Na dimensão subjetiva, sobreleva o seu caráter de direito subjetivo, que protege o indivíduo contra atos atentatórios ao equilíbrio ecológico e garante as bases para uma vida humana digna e saudável. Em sua concepção objetiva, destacase como um valor fundamental para a coletividade e como um fim diretivo para a atuação do Poder Público. A dimensão subjetiva dos direitos fundamentais foi a primeira a ser reconhecida e é a que, ainda hoje, merece a maior atenção por parte da doutrina. Sob esse enfoque, os direitos fundamentais asseguram posições positivas aos indivíduos, protegendo-os contra os abusos do poder estatal. Por isso, Konrad Hesse destaca que como direitos subjetivos, os direitos fundamentais são direitos de defesa, que possibilitam ao particular defender-se contra prejuízos não autorizados em seu status jurídico-constitucional.8 Ampliando essa concepção, Perez Luño reconhece que a proteção oferecida por esses direitos não se restringe ao plano vertical. Os direitos fundamentais surgem, então, como um ―estatuto jurídico dos cidadãos‖9, aplicável tanto às suas relações com o Estado quanto às relações entre os particulares. Esses direitos procuram não apenas tutelar a liberdade, a autonomia e a segurança do individuo frente ao Estado, abarcando também a sua proteção em face dos demais membros do corpo social. Por conta dessa ampliação da eficácia dos direitos fundamentais ao âmbito das relações 8 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 9 PEREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. 6 ed. Madrid: Tecnos, 1995, p. 22. 287 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II privadas, o autor acrescenta que se faz indispensável a atuação dos poderes públicos no sentido de ―promover as condições para que à liberdade e a igualdade do indivíduo e dos grupos em que se integra sejam reais e efetivas‖,10 removendo, de igual modo, os entraves que impeçam ou dificultem a sua plenitude. Transportando a aplicação da dimensão subjetiva para o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, Pereira da Silva destaca que: A importância da consagração do direito ao ambiente reside, pois, no fato de que é esse direito subjectivo ao ambiente, enquanto ―direito de defesa‖ contra agressores ilegais na esfera individual protegida pela constituição, que constitui o fundamento da existência de relações jurídico – públicas de ambiente.11 Além de constituir o fundamento para as relações jurídico-públicas de ambiente, o reconhecimento da perspectiva subjetiva do direito ao meio ambiente permite, dentre outros benefícios, contrabalancear as prerrogativas tradicionais do direito de propriedade, garantindo também a sua aplicabilidade imediata.12 Ao significado dos direitos fundamentais como direitos de defesa subjetivos do particular, de acordo com Hesse, também ―corresponde seu significado jurídico-objetivo como determinações de competências negativas para os poderes estatais‖13. Sob esse enfoque, os direitos fundamentais aparecem como o resultado de um acordo básico entre as diferentes forças sociais, obtido por meio de confronto e de esforços de cooperação para a obtenção de objetivos comuns.14 Neste caminho, para Perez Luño,―[...] os direitos fundamentais tem deixado de ser meros limites ao exercício do poder político,ou seja, garantias negativas dos interesses individuais para se transformar num conjunto de valores ou fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos‖.15 Esse reconhecimento também reflete uma mudança de enfoque em relação aos direitos fundamentais, que deixam de ser concebidos apenas do ponto de vista individual, alcançando uma perspectiva comunitária. Dessa forma, para Vieira de Andrade, quando se declara que os 10 PEREZ LUÑO, Antonio E., op. cit., p. 23. PEREIRA DA SILVA, Vasco. Como a constituição é verde: os princípios fundamentais da Constituição Portuguesa de Ambiente. In: Nos 25 anos da Constituição da República Portuguesa de 1976: evolução constitucional e perspectivas futuras. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa. 12 Neste sentido, a posição de BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. 13 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. 14 PEREZ LUÑO, Antonio E, op. cit., p. 20-21. 15 PEREZ LUÑO, Antonio E. op. cit., p. 21. 11 288 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II direitos fundamentais não se constituem hoje apenas direitos subjetivos, mas também direito objetivo, pretende-se destacar que esses direitos não podem ser concebidos apenas do ponto de vista individual, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, valendo juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe prosseguir.16 Essa concepção permite também a atualização do conteúdo desses direitos. Por isso, Sarlet conclui que: A descoberta (ou redescoberta) da perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais revela, acima de tudo, que estes – para além de sua condição de direitos subjetivos (e não apenas na qualidade de direitos de defesa) permitem o desenvolvimento de novos conteúdos, que, independentemente de uma eventual possibilidade de subjetivação, assumem papel de alta relevância na construção de um sistema eficaz e reacional para sua (dos direitos fundamentais) efetivação. 17 Como conseqüência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, tem-se o reconhecimento da existência de deveres fundamentais. Os deveres fundamentais podem ser compreendidos como prestações positivas ou negativas devidas pelo Estado e pelo particular com o objetivo de manutenção do convívio social.18 Exemplificam esses deveres, o dever de pagar impostos, o dever de votar, o dever de alistamento militar, o dever de trabalhar nas eleições quando convocado e o dever de manter o meio ambiente equilibrado para as gerações futuras. Quanto aos deveres fundamentais ambientais, Teixeira19 aduz que o direito fundamental à proteção ambiental constitui um direito complexo, abrangendo a função defensiva e a função prestacional. O homem na condição de cidadão e partícipe da biosfera terrestre torna-se titular do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao mesmo tempo sujeito ativo do dever fundamental de proteger o meio ambiente em que vive resguardando-o para as futuras gerações. 4. O DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. O amadurecimento internacional do direito ambiental também trouxe reflexos diretos para o ordenamento jurídico brasileiro. Afinada com a recente sensitividade ecológica e com a 16 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998. p. 144-145. 17 SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 155. 18 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 19 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 289 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II necessidade de manutenção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, como condição para satisfação da dignidade humana e para a defesa dos interesses das futuras gerações, a Assembléia Nacional Constituinte de 1987 aprovou capitulo especifico para o meio ambiente, considerado bastante avançado. Em seu dispositivo inaugural, dispôs que: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. O art. 225 da Constituição Federal de 1988 consagrou, então, o direito ao meio ambiente na sua dupla acepção (subjetiva e objetiva) e, a despeito deste preceito não integrar o título referente aos direitos e garantias fundamentais, o entendimento reinante tanto na doutrina quanto na jurisprudência brasileira é o de que o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui um direito fundamental. Conforme Leite, trata-se de um direito fundamental que é simultaneamente, um direito social e individual, pois ―deste direito de fruição ao meio ambiente, ecologicamente equilibrado, não advém nenhuma prerrogativa privada‖20. Pode-se constatar, com Cançado Trindade,21 que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui uma extensão do próprio direito à vida, que salvaguarda a sobrevivência sob dois aspectos: o da existência física e da saúde dos seres humanos, por um lado e o das condições dignas e qualidade de vida, de outro. Assim, consiste no direito à manutenção das bases que sustentam a vida e neste ponto evidencia-se a sua essencialidade: o gozo deste direito é uma pré-condição para o atendimento a todos os outros direitos fundamentais22. De fato, sem um ambiente ecologicamente equilibrado, a própria vida torna-se impossível e sem vida não há que se falar no direito à liberdade, no direito à igualdade ou em qualquer direito social. Da redação do art. 225, caput, da Constituição brasileira de 1988, sobressaem duas características do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Primeiro percebe-se que o constituinte classificou o meio ambiente como bem de uso comum do povo, atribuindo a sua gestão tanto ao Poder Público como à sociedade. Em segundo lugar, verifica-se que a Constituição fez menção expressa à titularidade das futuras gerações, introduzindo a idéia de equidade intergeracional no ordenamento pátrio. 20 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 91. 21 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Environment and development: formulation and implementation of the right to development as a human right. In: Seminário de Direitos Humanos, Desenvolvimento e Meio Ambiente, 1992, Brasília. Anais do Seminário de Direitos Humanos, Desenvolvimento e Meio Ambiente. São José da Costa Rica / Brasília: Antônio Augusto Cançado Trindade (editor): Instituto Interamericano de Direitos Humanos: Banco Interamericano de Desenvolvimento, 1992. p. 39-70. 22 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto op. cit, p. 41. 290 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Da classificação do bem ambiental como bem de uso comum do povo, Aragão 23 extrai como conseqüências: (a) o fato de existir sobre esses recursos uma espécie de comunhão geral, uma sobreposição e um paralelismo de direitos absolutos, cuja finalidade é a satisfação tanto dos interesses coletivos como de individuais; (b) e a detenção destes bens pelas gerações atuais apenas a título fiduciário. Em decorrência da sua qualificação como res omnium e da sua indisponibilidade a título particular, verifica-se também a impossibilidade de se enquadrar o bem ambiental nas categorias tradicionais de direito público ou de direito privado. Da previsão constitucional, extrai-se a idéia de que o bem ambiental possui uma disciplina autônoma e que, passando a largo da dicotomia direito público versus direito privado, constitui um bem de interesse público24 de fruição coletiva e de natureza difusa. Noutro diapasão, a introdução da idéia de equidade intergeracional no ordenamento pátrio enfatiza que, como membros da presente geração, devemos legar o planeta em condições de equilíbrio ecológico e de modo que seja adequado para a manutenção da sadia qualidade de vida das futuras gerações. Outro avanço registrado pelo texto constitucional foi a previsão da gestão compartilhada do meio ambiente, que atribuiu o dever de defesa e preservação ambiental tanto ao Poder Público como à coletividade. Mais do que reconhecer a responsabilidade dos indivíduos e das organizações não governamentais, na preservação do bem ambiental, a inovação representou uma verdadeira ruptura com o mito liberal da separação entre Estado e sociedade civil25. Mirra26 ressalta que a consagração do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental é importante, primeiro, como forma de preservar a vida e a dignidade das pessoas, núcleo essencial dos direitos fundamentais e em segundo plano, como fator de ―transformação social‖. A idéia da consagração de determinado direito como fator de transformação social consiste no próprio reconhecimento da função performativa do Direito, que tem como atividade primordial fazer sobrevir na realidade determinada representação valorizada pelo autor da norma27. 23 ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do poluidor pagador: pedra angular da política comunitária do ambiente. Coimbra: Editora Coimbra, 1997. p. 30-31. 24 LEITE, José Rubens Morato. op. cit., p. 87. 25 DERANI, Cristiane. .Meio ambiente ecologicamente equilibrado: direito fundamental e princípio da atividade econômica. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Puvim de (coord.). Temas de direito ambiental e urbanístico. São Paulo: Max Limonad: Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, 1998. p. 95. 26 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Fundamentos do direito ambiental no Brasil. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 83, v. 706, p. 07-29, ago. 1994. p. 12. 27 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: I. Piaget, 1995. p. 216. 291 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Apesar da Constituição ter estabelecido um sistema de Parte II responsabilidades compartilhadas, não se pode negar que a implementação do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado depende bastante da atuação do Estado, tanto na esfera legislativa quanto na executiva e na judiciária. Assim, também são exigidas ações positivas do Estado, no sentido de prover os instrumentos indispensáveis para a efetivação deste direito e a abstenção de práticas nocivas ao meio ambiente28. Dentre essas ações, destacam-se os deveres específicos dirigidos ao poder público, estabelecidos no §1º do art. 225 da Constituição: § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. As medidas previstas no §1º do art. 225 visam a concretizar o dever geral de proteção do Estado. Por óbvio, o texto constitucional não é exaustivo. As ações nele previstas cuidam de temas que se relacionam, principalmente, com os problemas de segunda dimensão referidos por Canotilho, pois se concentram, sobretudo, na proteção da biodiversidade (previsão dos incisos I, II, III e VII) e no controle das obras e atividades perigosas (incisos IV e V). O cuidado do constituinte em detalhar alguns deveres específicos dirigidos ao Poder Público revela uma atitude de cautela em relação à atuação do Estado. Na acurada percepção de Herman Benjamim: A estrutura do art. 225 demonstra uma profunda desconfiança do constituinte com a capacidade e a vontade política do Poder público no resguardo do meio ambiente. Não sem razão. Admitindo, como preceitua Odete Medauar, que ―a atuação rotineira da Administração é um dos elementos reveladores da efetividade das normas constitucionais na vida da sociedade‖, ninguém duvidará, por pouco que conheça o Brasil, que uma de suas marcas mais visíveis era – e infelizmente, talvez ainda seja – o desinteresse do Poder Público pela sorte do meio ambiente, mesmo quando os impactos ambientais reverberam diretamente na saúde humana, valor jurídico que varias Constituições anteriores a 1988 já protegiam. 29 28 LEITE, José Rubens Morato. op. cit., p. 93. BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental 29 292 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Daí, todo o relevo conferido à proteção da biodiversidade, uma das maiores riquezas do Brasil, que, por conta da omissão estatal e do delineamento de políticas de desenvolvimento que não integram a vertente ambiental, tem passado por um processo acelerado de destruição. Para a coletividade, o reconhecimento deste direito fundamental implica na necessidade de participação, a título individual ou coletivo tanto na fiscalização quanto na formação da decisão ambiental. Por isso, quando tomado como direito à conservação do meio ambiente, o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado adquire também uma dimensão ―procedimental‖, que tem, como corolários, o direito do indivíduo ser informado acerca de projetos e decisões que envolvam o meio ambiente e de participar na tomada de decisões que possam afetar o meio ambiente30. 5. A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO ECOLÓGICO. No direito brasileiro verifica-se um crescente interesse dos pesquisadores no estudo da cláusula de proibição do retrocesso ecológico. O reconhecimento desse princípio decorre da elevação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental ou, mais especificamente, da perspectiva jurídico-subjetiva dos direitos fundamentais. Ele assume o papel de verdadeiro direito de defesa contra as medidas que pretendam a redução ou destruição do direito ao meio ambiente. Na lição de Canotilho, o principio da vedação do retrocesso significa que, uma vez assegurados no plano infraconstitucional, os direitos fundamentais adquirem o status de direitos subjetivos, subtraindo-se da esfera de plena disponibilidade do legislador, não podendo mais ser reduzidos ou suprimidos sob pena de violação ao princípio da confiança.31 Na esfera ambiental, esse principio implica na vedação dirigida ao Poder Público de regredir a proteção ambiental para níveis mais flexíveis ou menos rigorosos que os estabelecidos anteriormente. Percebe Aragão que o principio da proibição do retrocesso ecológico é a versão diacronicamente orientada do principio do nível elevado de proteção ecológico, aplicando-se internamente, na ordem jurídica estatal, mas também a nível internacional, no ordenamento jurídico de uma organização internacional supra-estadual com competências ambientais. No âmbito interno, o princípio da proibição do retrocesso ecológico seria uma espécie de cláusula rebus sic stantibus, significando que, a menos que as circunstâncias de fato se alterem brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 115. 30 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. op. cit., p. 43. 31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3 ed. Coimbra: Almedina, 1999, 474-475. 293 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II significativamente, torna-se inadmissível o recuo para níveis de proteção inferiores aos anteriormente consagrados. Nesta dimensão, o principio impõe, então, limites para a legislação de revisão ou revogação.32 Internamente, o principio significa, por outro lado, que a suspensão da legislação em vigor só é de admitir se se verificar uma situação de calamidade pública, um estado de sítio ou um estado de emergência grave. Já no âmbito internacional, o principio efetua uma ―supranivelação do regime de integração regional‖,33 determinando que o nível de proteção ecológica não pode ser inferior ou igual ao nível de proteção do Estado menos protetor e sob o ponto de vista positivo significa que ―o novo regime comum deverá assegurar um nível de proteção pelo menos igual, ou até tendencionalmente superior à media dos regimes individuais‖.34 A vedação do retrocesso é também um desdobramento do principio da progressividade ambiental, que, de acordo com Esain, significa que o esforço do Estado em prol da proteção do ambiente não pode ser diminuído com o passar do tempo, mas apenas ampliado.35 A progressividade encontra o seu lastro no sistema internacional de direitos humanos. Isso porque a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais compõem o que se denomina de Carta Internacional de Direitos Humanos e, dentre eles, o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais dispõe em art. 2º, § 1 que: Cada um dos Estados Partes no presente Pacto compromete-se a agir, quer com o seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas. Segundo Albanese, por ―assegurar progressivamente‖, deve-se compreender que essa Convenção Internacional impõe aos Estados a obrigação de avançar com a maior rapidez e eficácia possíveis até a meta da plena efetividade de todos os direitos mencionados no Pacto, sendo necessário, para tanto, empregar de modo eficaz os recursos disponíveis.36 No Brasil, Sarlet defende que a proibição do retrocesso pode ser compreendida como um princípio constitucional implícito no ordenamento jurídico brasileiro, derivando, dentre outros, 32 ARAGÃO, Alexandra. Direito constitucional do meio ambiente da União Européia. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 36. 33 ARAGÃO, Alexandra. op. cit., p. 37. 34 ARAGÃO, Alexandra. op. cit., p.37. 35 ESAIN, José. O principio da progressividad en matéria ambiental. Jurisprudencia Argentina, Buenos Aires, 2007, vol. IV, número especial, Derecho Ambiental. p. 17. 36 ALBANESE, Susana apud ESAIN, José. O principio da progressividad en matéria ambiental. Jurisprudencia Argentina, Buenos Aires, 2007, vol. IV, número especial, Derecho Ambiental. p. 18-19. 294 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II do principio do Estado democrático e social de Direito, do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais.37 O autor acrescenta que, ao concretizarem os direitos fundamentais no âmbito infraconstitucional, os órgãos estatais não estão vinculados apenas às imposições constitucionais, como também aos atos anteriores, sobretudo por conta da segurança jurídica e da proteção da confiança.38 Compreende que negar aplicação ao princípio da proibição do retrocesso equivaleria a permitir que os órgãos legislativos, embora vinculados aos direitos fundamentais r às normas constitucionais em geral, pudessem tomar decisões livremente ainda que em evidente violação à vontade expressa do constituinte.39 Lembra também que a proibição do retrocesso decorre diretamente do principio da maximização da eficácia de todas as normas de direitos fundamentais e que este principio, previsto no §1º do art. 5º da Constituição Federal, ―impõe a proteção efetiva dos direitos fundamentais não apenas contra a atuação do poder de reforma constitucional, mas também contra o legislador ordinário e os demais órgãos estatais‖.40 6. ESTUDOS DE CASOS Uma vez apresentados os principais traços do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado na Constituição Federal de 1988 e aprofundado o estudo acerca da clausula da proibição do retrocesso ecológico, pretende-se analisar a aplicabilidade dos deveres assegurados no texto constitucional, assim como a obediência do poder público à clausula da vedação do retrocesso ambiental, tendo por base dois casos concretos: as Medidas Provisórias nº 113 e 131 de 2003 e a Lei 11.341, de 2006 do Estado da Bahia. 6.1. As Medidas Provisórias nº 113 e 131 de 2003. As Medidas Provisórias nº 113 e 131 de 2003 relacionam-se com o debate vivenciado no país em torno da comercialização dos alimentos transgênicos. 37 SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas notas em torno da proibição de retrocesso na esfera dos direitos fundamentais sociais. Revista Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 32, nº1, jun. 2006. p. 36-37. 38 SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 37. 39 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 37. 40 SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit., p. 38. 295 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II De acordo com Silva, os transgênicos podem ser compreendidos como: Organismos que têm sua estrutura genética alterada pela atividade da engenharia genética, que se utiliza de genes de outros organismos para dar àqueles novas características. Essa alteração pode tanto buscar a melhora nutricional de um alimento como tornar uma planta mais resistente a um determinado herbicida. 41 No Brasil, a discussão acerca dos riscos ambientais e sanitários gerados pelos organismos geneticamente modificados só tomou corpo com a elaboração da Convenção das Nações Unidas sobre a Biodiversidade, em 1992. Três anos depois, foi editada a Lei 8974/1995, que regulamentou os incisos II e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados e autorizou o Poder Executivo a criar a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio. Em 1998, a CTNBio emitiu parecer técnico liberando o uso comercial da soja transgênica, patenteada pela Monsanto, a soja Roundup Ready (soja RR), que foi aprovado sem a apresentação de um indispensável estudo prévio de impacto ambiental.42 Em resposta, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC, o Greenpeace e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA ingressaram com uma ação cautelar preparatória para ação civil pública em face da União e da Monsanto e Monsoy, buscando a proibição da comercialização da soja RR sem a realização de estudo prévio de impacto ambiental - EPIA.43 Em 1999, a ação cautelar foi julgada procedente e as empresas rés foram condenadas na obrigação de elaborar um estudo prévio de impacto ambiental, avaliando os riscos do plantio comercial da soja RR, submetendo o estudo à apreciação do IBAMA.44 No ano seguinte foi proposta a ação principal, que, julgada procedente, referendou a indispensabilidade do EPIA para a introdução de organismos geneticamente modificados nos ecossistemas.45 Contra essa decisão foi interposto recurso de apelação, oportunidade em que a Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da Primeira Região negou, medidante decisão unânime, provimento ao recurso. 41 SILVA, Jorge Alberto Quadros Carvalho. Alimentos transgênicos: aspectos ideológicos, ambientais, econômicos, políticos e jurídicos. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (org.). Biodireito: ciência da vida,os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 327. 42 SILVA, Jorge Alberto Quadros Carvalho, op. cit. p. 334. 43 FERREIRA, Heline Sivini. A biossegurança dos organismos transgenicos no direito ambiental brasileiro: uma análise fundamentada na teoria da Sociedade de Risco. 2008. Tese (Doutorado em Direito). Curso de Pós-graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. p. 286. 44 FERREIRA, Heline Sivini. , op. cit., p. 286. 45 FERREIRA, Heline Sivini. , op. cit., p. 287. 296 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Em 2003, primeiro ano do seu governo, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou a Medida Provisória 113, de 26 de março de 2003, dispondo que: Art. 1o A comercialização da safra de soja 2003 não estará sujeita às exigências pertinentes da Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, com as alterações da Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001. Art. 5o Para o plantio da safra de soja de 2004 e posteriores, deverão ser observados, rigorosamente, os termos da legislação vigente, especialmente da Lei no 8.974, de 1995, e demais instrumentos legais pertinentes. A MP 113 causou espanto, pois além de estar em franca violação ao principio da precaução e à exigência constitucional do estudo prévio de impacto ambiental, também ofendia decisão judicial válida, que vedava a comercialização da soja transgênica. Pouco tempo depois, foi editada a Medita Provisória 131, que estabeleceu normas para o plantio e comercialização da produção de soja da safra de 2004. Bastante incomodado com a resistência da sociedade e da comunidade cientifica às sucessivas medidas provisórias que liberavam a comercialização das safras de soja transgênica, o governo federal apressou a aprovação no Congresso Nacional de um novo projeto de lei, que disciplinava a liberação comercial de organismos transgênicos, remetendo à CTNBio a decisão definitiva quanto a necessidade ou não de elaboração de estudo de impacto ambiental, o que deve ser feito, caso a caso. Esse projeto deu origem à Lei 11.105/2005, que está sendo objeto da ADI nº 2526-6, proposta pelo Procurador Geral da República em 20/06/05. Atualmente, a ação direta de inconstitucionalidade encontra-se aguardando julgamento pelo Plenário do STF. As duas Medidas Provisórias são um claro exemplo de inconstitucionalidade e de violação à clausula da proibição do retrocesso. A liberação comercial de alimentos transgênicos sem a apresentação de EPIA ofende frontalmente o art. 225, §1º, IV da Constituição Federal e o princípio constitucional da precaução. Além disso, a autorização para o comercio desses produtos, via medida provisória, desafia a força das decisões judiciais e faz retroceder os níveis de proteção já assegurados no país. 6.2. A lei 10.431, de 21 de dezembro de 2006 do Estado da Bahia e o Termo de Compromisso de Responsabilidade Ambiental - TCRA. A Lei 10.431, de 21 de dezembro de 2006 do Estado da Bahia disciplina a Política Estadual de Meio Ambiente e institui o Sistema Estadual de Administração dos Recursos Ambientais. O artigo 50 da Lei introduz no ordenamento jurídico estadual um novo instrumento de controle das atividades e empreendimentos causadores de degradação ambiental, o Termo de 297 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Compromisso de Responsabilidade Ambiental - TCRA. De acordo com o dispositivo: Art. 50. O Termo de Compromisso de Responsabilidade ambiental – TCRA é um documento de caráter declaratório, registrado no órgão competente, no qual o empreendedor se compromete a cumprir a cumprir a legislação ambiental, de biodiversidade e de recursos hídricos, no que se refere aos impactos decorrentes de sua atividade. Trata-se de um instrumento inédito, sem previsão correspondente em qualquer Estado brasileiro, que substituiria o licenciamento ambiental nas hipóteses das atividades causadoras de ―poluição difusa‖. Para a correta análise da constitucionalidade do instituto é preciso compreender a partilha da competência legislativa ambiental, efetuada pela Constituição Federal de 1988. Neste caminho, tentando privilegiar o denominado ―federalismo cooperativo‖, o texto constitucional de 1988 situou a competência legislativa em matéria ambiental no âmbito da competência concorrente, a ser exercida pela União, Estados e Distrito Federal. Segundo o art. 24, da Constituição Federal: Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; VII – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; [...] O mesmo artigo esclarece a forma de exercício da competência concorrente, designando, no parágrafo primeiro, para a União o papel de estabelecer as normas gerais e para os Estados, no parágrafo segundo, a função de suplementar as normas gerais. Compreendem-se como normas gerais aquelas que designam limites e princípios, que devem ser aplicados em todo o território nacional. Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto: Normas gerais são declarações principiológicas que cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita ao delineamento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-membros na feitura de suas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações e situações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos. A competência concorrente não suprime a desejável criatividade dos entes estatais, mas atrela o exercício à obediência dos limites fixados na norma federal. Dessa forma, os Estados e o Distrito Federal podem elaborar normas mais rigorosas, mas nunca mais concessivas que a norma geral federal. Nesse sentido já se pronunciou Sepúlveda Pertence, ministro do Supremo 298 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Tribunal Federal – STF: ―(o Estado), dentro de sua competência supletiva, pudesse criar formas mais rígidas de controle. Não formas mais flexíveis ou permissivas.‖ Tratando-se de licenciamento ambiental, as suas hipóteses de exigência estão estabelecidas na Lei 6938/81, que determina em seu artigo 10, que: Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos naturais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento [...] Da análise do texto, resta claro que o licenciamento ambiental é exigível para todo empreendimento ou atividade utilizadores de recursos naturais ou potencialmente causadores de degradação ambiental. O licenciamento ambiental tem as suas regras gerais delineadas pela Resolução CONAMA 237/1997, que o define em seu art. 1º, I, como: procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental [...]. Trata-se assim de uma modalidade de procedimento administrativo, cujo ato final é a decisão pela concessão ou a denegação do pedido de licença. De acordo com Di Pietro, entende-se por procedimento administrativo ―o conjunto de formalidade que devem ser observadas para a prática de certos atos administrativos; equivale a rito, a forma de proceder [...].‖46 Para Fink, da análise do art. 1º, I da Resolução do CONAMA n.° 237/1997, destaca-se ―o fato de tratar-se de um procedimento administrativo, compreendendo vários atos encadeados visando um fim. Não se cuida somente de um ato administrativo como se poderia supor.‖47 Contemplando o TCRA, estabelecido pela legislação estadual, verifica-se tratar-se de um documento de natureza declaratória, registrado no órgão competente. Como concebido, este instrumento não se constitui em modalidade de licenciamento ambiental, mas num mero documento assinado pelo empreendedor e pelo órgão ambiental. Sendo assim, TCRA representa uma indesejável forma de flexibilização da legislação ambiental e viola o principio de proibição do retrocesso ecológico. Ao dispensar a necessidade de licenciamento para as hipóteses de empreendimentos com poluição difusa, a legislação estadual exorbita a competência estadual para legislar sobre meio ambiente e viola a norma geral do art. 10 da Lei 6938/1981, que torna o licenciamento ambiental obrigatório para as atividades e empreendimentos potencialmente causadores de 46 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanello. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2001. FINK, Daniel et al. Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2004. 47 299 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II degradação ambiental. 7. CONCLUSÕES ARTICULADAS De tudo que foi desenvolvido no presente trabalho, restam como conclusões: 1. No estágio atual, constata-se uma verdadeira maturidade das normas internacionais de proteção ambiental e uma grande internalização da proteção ambiental nas Constituições dos Estados; 2. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, enquanto direito fundamental, possui uma dupla dimensão: a dimensão subjetiva e a dimensão objetiva. 3. No caso brasileiro, o país reconhece o direito ao meio ambiente como direito fundamental, protegendo-o nas duas dimensões, dispondo de normas e princípios constitucionais sólidos, afinados com o desafio da proteção do bem ambiental. 3. A cláusula da proibição do retrocesso ecológico pode ser compreendida no Brasil como um princípio constitucional implícito, servindo como verdadeiro direito de defesa contra iniciativas do Poder Público que pretendam reduzir os níveis de proteção ambiental já assegurados no Brasil. 4. A partir da análise das Medidas Provisórias nº 113 e 131 e do art. 50 da Lei 10431/2006 do Estado da Bahia, restou evidente que, na comemoração dos vinte anos da Constituição brasileira, o grande desafio do país reside na garantia da eficácia das normas e dos princípios constitucionais de proteção do meio ambiente. 300 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II COMPATIBILIDADE DA PROPRIEDADE URBANA COM A PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UM ESTUDO SOBRE A UTILIZAÇÃO DO IPTU COMO INSTRUMENTO FISCAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL Denise Lucena Cavalcante1 Ana Carolina Ponte Vidal2 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve histórico sobre o direito à propriedade. 3. A função sócioambiental da propriedade urbana. 4. Tributação como instrumento efetivador da função sócioambiental da propriedade urbana. 5. O papel dos incentivos fiscais nas políticas municipais do meio ambiente. 6. A utilização do IPTU como instrumento de proteção do meio ambiente – o IPTU verde. 7. Estudo de casos: municípios que adotaram o IPTU verde. 8. Conclusão. Referências. RESUMO A partir da Constituição da República de 1988, o direito de propriedade no Brasil se adapta a novos paradigmas e passa a vincular-se ao cumprimento de uma função sócio-ambiental. A tributação ambiental surge nesse contexto como importante instrumento na ordenação do território urbano de forma ambientalmente adequada. Nesse sentido, o presente trabalho busca fazer uma reflexão em torno da adoção de um ―IPTU Verde‖ voltado para a harmonização do uso da propriedade urbana com o meio ambiente. Pretende-se fazer uma análise da função sócio-ambiental da propriedade urbana no ordenamento jurídico brasileiro vigente. Em seguida, estuda-se o papel da tributação, mais especificamente dos incentivos fiscais, na efetivação da função ambiental da propriedade. Por fim, a pesquisa volta-se para o estudo do IPTU, analisando a viabilidade de sua adequação a fim de direcionar o uso da propriedade urbana de forma ambientalmente adequada. Palavras-chave: Propriedade urbana. Tributação ambiental. IPTU Verde. 1 Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora e Vice-coordenadora da Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Líder do grupo de pesquisa Tributação Ambiental. E-mail: [email protected]. 2 Aluna da graduação da Faculdade de Direito/UFC. Membro do grupo de pesquisa Tributação Ambiental. E-mail: [email protected]. 301 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II ABTRACT With the promulgation of the Constitution in 1988, the right of property in Brazil has been tailored to attend new paradigms, and starts to associate itself with the fulfillment of a social and environmental function. Environmental taxation emerges in this context as an important device to the ordinance of the urban territory in an environmentally adequate way. In this direction, the present work aims at evaluating the implementation of a Green Urban Building and Territorial Property Tax, focused on the management of use of property so as to preserve the environment. At the outset, a historical background on the right of property is made. Secondly, the environmental function of urban property in the Brazilian legal system is studied. Thirdly, this work evaluates the role of taxation, more specifically tax incentives, in the attainment of the environmental function of property. Finally, this research highlights the Urban Building and Territorial Property Tax, analyzing its capability of promoting and protecting the environment by molding the use of urban property. Keywords: Urban property. Environmental taxation. Green Urban Building and Territorial Property Tax. 1. INTRODUÇÃO Percebe-se atualmente que a utilização da propriedade urbana de forma ecologicamente correta ainda é facultativa aos cidadãos. Ainda se está num momento em que é necessário promover uma série de incentivos para que os cidadãos possam vir a construir e, depois, utilizar suas propriedades de forma a garantir a adequada função sócio-ambiental. O que hoje é opcional em termos de construções sustentáveis, num futuro próximo será uma obrigação. Conseqüentemente, caminha-se para o momento em que a utilização da propriedade fora das adequações ambientais será punida através de sanções severas. Contudo, até que este momento chegue, muito ainda tem que ser feito, principalmente em matéria legislativa, que ainda carece de fundamentação ecológica e de coerência sistemática. O que se tem atualmente no Brasil é uma legislação antagônica que muitas vezes se contrapõe e prejudica o objetivo maior da proteção ambiental. Neste momento é preciso que se façam estudos direcionados para ações concretas, de forma que a função sócio-ambiental da propriedade tenha impacto nas atividades empresariais, deixando de ser mera retórica. O papel dos incentivos fiscais e dos chamados tributos ecológicos é de grande utilidade neste momento emergencial de preservação do meio ambiente, pois serve de 302 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II instrumento para a mudança gradual do pensamento coletivo, vez que o modelo empresarial só se adequará a esta nova realidade se houver um modelo social que assim o exija. Regra básica da economia é a lei da oferta e da procura. Portanto, para que haja a oferta de produtos ecologicamente adequados é preciso antes à existência de consumidores conscientes. No campo da construção civil, isto também deve prevalecer. Só se farão edificações urbanas ambientalmente corretas se houver um público disposto a comprá-las e valorizar tal investimento. Após a análise do atual contexto econômico, observa-se que, infelizmente, somente os princípios éticos não são suficientes para proporcionar mudanças necessárias. É preciso mais. É preciso incentivos econômicos, daí a importância do Estado nesta fase de mudanças de paradigmas relativos à propriedade. Proporcionar incentivos fiscais para as ―construções verdes‖ e para a utilização adequada da propriedade urbana pode ser um excelente começo para uma mudança do comportamento social. Se assim não for, o que levará um empresário a construir, por exemplo, um edifício verde, que signifique um aumenta em torno de 10% do valor total da obra, se não houver compradores que valorizem este investimento? Neste primeiro momento, onde ainda não há uma consciência coletiva formada em torno dos problemas ambientais, este aumento no custo poderá ser incentivado por uma política pública que promova uma diluição deste custo com a adoção de tributos reduzidos para tais empreendimentos. Este é um exemplo de medida fiscal que poderá estimular o construtor e o futuro proprietário. É preciso incentivar cada vez mais o adequado comportamento ambiental na construção civil. O Brasil ainda está na fase inicial do processo de desenvolvimento da indústria da construção sustentável. O chamado Green Building vem, passo a passo, adquirindo espaço no cenário brasileiro. Em 2007 foi realizado o primeiro empreendimento com Certificado LEED no Brasil e até dezembro de 2009 já foram certificados mais nove empreendimentos.3 Esta crescente busca pela qualidade ambiental dos empreendimentos representam um oportunidade para melhora na utilização da propriedade urbana. Além do custo elevado, ressaltam-se as dificuldades em atender as rigorosas normas para a Certificação LEED - Leadership in Energy and Environmental Design (desenvolvido pelo U.S. Green Building Council), o principal selo dado às construções consideradas ―verdes‖. 3 ―São Paulo – Chega ao Brasil a primeira certificação LEED - Leadership in Energy and Environmental Design, critério que avalia edificações ambientalmente sustentáveis mais difundido do mundo. O empreendimento contemplado é uma agência bancária do Banco Real localizada na região da Granja Viana, na cidade de Cotia, na grande São Paulo. (...). O primeiro ―Green Buildng‖ do Brasil e também da América do Sul foi certificado na categoria LEED-NC (Novos Edifícios Comerciais ou grandes projetos de renovação).‖ (Disponível em: http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=13333. Acesso em: 29/12/2009. 303 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Também o IPTU VERDE4 pode ser um grande estimula para a mudança de paradigmas. Após a pesquisa em alguns Municípios brasileiros, ver-se-á que já está sendo adotado com sucesso o IPTU VERDE, adequando-se, assim, às exigências contemporâneas do uso ambientalmente adequado da propriedade. Espera-se que este modelo de incentivo à utilização ambientalmente correta da propriedade urbana alcance os demais Municípios brasileiros, de forma a minimizar os graves danos já causados ao meio ambiente nos últimos anos.5 Ratifica-se aqui a afirmação de Ubaldo Cesar Balthazar, quando diz que a tributação 4 Exemplo que merece destaque é o SELO VERDE que é concedido aos Municípios de São Paulo quando estes alcançam suas metas relativas à proteção ambiental e, em contrapartida, recebem maiores recursos governamentais, conforme relata a matéria a seguir: ‖Dez municípios ganham selo verde (Por Ricardo Santana). O ranking da Secretaria Estadual de Meio Ambiente foi divulgado ontem e certificou as 44 melhores cidades ambientalmente. Um novo conjunto de cidades no Estado de São Paulo ganha destaque com a certificação de Município Verde conferida pelo governo estadual. Na região de Bauru 10 municípios obtiveram o selo verde entre 332 cidades avaliadas no Estado, que possui ao todo 645 localidades. A certificação foi concedida apenas a 44 cidades bem avaliadas em uma análise de 10 itens relacionados ao meio ambiente. A certificação garantirá aos melhores ranqueados prioridade no acesso a recursos do governo de São Paulo. Na região de Bauru outras 17 cidades obtiveram classificação, porém não receberam a premiação na edição deste ano do Projeto Ambiental Estratégico Município Verde, lançado em junho de 2007. Entre as contempladas, ontem, com o certificado de Município Verde, destacam-se Piraju, São Manuel, Brotas, Cabrália Paulista, Botucatu, Piratininga, Pongaí, Alvinlândia, Espírito Santo do Turvo e Bocaina. (...). O projeto teve início no ano passado e as cidades da região de Bauru já demonstram excelência na análise de quesitos bastante objetivos. Figurar entre as 44 melhores representa que muita coisa tem sido implementada em termos de meio ambiente. O prefeito de São Manuel Flávio Roberto Massarelli Silva (PSB) encerra seu segundo mandato em 31 de dezembro. Após receber o prêmio, em evento no Memorial da América Latina ontem, ele comentou que, já em 2001 ao assumir para o primeiro mandato, listou entre as prioridades o meio ambiente. ―Independente de selo verde que foi lançado em 2006‖, frisa. Silva revela que, ao aderir ao projeto, praticamente tinha em funcionamento as 10 ações (diretivas) exigidas para conferir a certificação de Município Verde. ―Isso facilitou a gente a chegar nesse ranking de oitavo do Estado de São Paulo e primeira da Bacia Tietê-Jacaré, que é da nossa região‖, comemora. Silva disse que a cidade tem que dar seqüência aos avanços porque o governo do Estado de São Paulo já lançou novas propostas para a edição 2009 da certificação de Município Verde. O prefeito valoriza ainda o fato do selo verde ajudar, principalmente, na obtenção de recursos governamentais. Entre as ações que mexem com a qualidade de vida da população, São Manuel trata hoje 100% do esgoto doméstico produzido pelos cerca de 39.434 habitantes. Porém, Silva recorda que, desde 1999, apenas os dejetos do distrito de Aparecida (11% do total produzido) eram tratados. Com a construção do sistema de tratamento pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), o esgoto in natura deixou de ser jogado nos rios Santo Antônio e Paraíso que cortam o município. Antes do tratamento, Silva comenta que a poluição desaguava no rio Lençóis e no rio Tietê. Uma ação pontual em um município já diminuiu a carga de poluentes que mata o Tietê. O município também se destaca no quesito destinação do lixo (lixo mínimo) possuindo coleta seletiva, associação de catadores de papel e aterro sanitário. Silva acrescenta que além de coletar e destinar adequadamente, o poder público municipal precisa intervir para a produção de menos lixo. A intervenção prática do gestor público interfere na garantia de melhor qualidade de vida para as pessoas.‖ (Disponível em: http://www.aeacursos.com.br/gbc/hotsite/artigos/dez_municipios_ganham_selo_verde.asp. Acesso em: 23/12/2009. 5 Neste sentido, destaca-se parte da entrevista de Wanick Thassanee, Presidenta do Conselho Deliberativo do capítulo brasileiro de prédios verdes no Brasil (GBC Brasil), que assim afirma: ―O papel do governo é extremamente importante. Não existe nenhum prédio no mundo que é construído sem o governo. É o governo que autoriza a construção em qualquer lugar. O governo tem todo o poder para incentivar. No Rio de Janeiro, estão fazendo um retrofit para ver como dá para baixar o custo operacional do próprio governo. Tem coisa que poderia ser dentro de uma lei de incentivo, por exemplo, um edifício que aquece a água com o sol, poderia ter IPTU [imposto predial] mais baixo e coisas assim.‖ (Disponível em: http://www.revistasustentabilidade.com.br/noticias/certificacao-leed-desconstroi-mitos-sobre-construcao-civil. Acesso em: 29/12/2010). 304 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II ambiental pode levar grande vantagem na proteção ao meio ambiente em relação aos instrumentos normativos6, sendo o IPTU VERDE um exemplo elucidativo desta afirmação. 2. BREVE HISTÓRICO SOBRE O DIREITO À PROPRIEDADE Para melhor compreender a amplitude e as atuais restrições do direito de propriedade é importante fazer uma análise no decorrer da história para uma correta elucidação do conceito contemporâneo. Sabe-se que a noção de propriedade territorial como espaço restrito a um dono acompanha o homem desde os seus primórdios. Já em relação à concepção jurídica do direito de propriedade os estudos apontam que a partir da Revolução Francesa de 1789 houve a sua consagração jurídica. 7 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – marco legal dos ideais libertários que emergiram a época, rompendo com o ancien regime - trouxe em seu âmago uma série de liberdades e direitos fundamentais do homem, incluindo nesse rol o direito do indíviduo à propriedade. O artigo 17 da Declaração assim dispõe: Art. 17. Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização. As acepções liberais da Revolução Francesa se propagaram pela Europa e pelo Novo Mundo. Por isso, os direitos proclamados pela referida Declaração tornaram-se referenciais no século XIX. Preconizava-se a idéia de progresso intrinsecamente vinculado à liberdade do indivíduo em face da autoridade estatal, ideal este que foi incorporado ao ordenamento jurídico dos Estados Liberais emergentes à época. Observa-se neste conceito que já havia a previsão de restrição ao direito de propriedade em relação à necessidade pública, servindo de base ao que aqui se está defendendo, ou seja, a instauração no ordenamento jurídico pátrio da função sócio-ambiental da propriedade, chegando a concepção moderna do meio ambiente como bem público universal. Porém, é preciso ficar claro que naquela época o ideal individualista burguês de desenvolvimento econômico prevalecia independente do impacto ambiental que determinada atividade pudesse causar, sendo a concepção liberal de propriedade era totalmente oposta à preservação do meio ambiente. 6 BALTHAZAR, Ubaldo Cesar. Propriedade, tributos e meio ambiente. In Estudos de direito de propriedade e meio ambiente. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 234. 7 Há que se considerar que a Revolução Francesa inspirou-se nas idéias filosóficas do Iluminismo emergente no século XVIII, bem como na Revolução Americana, que data de 1776. 305 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II As fragilidades da concepção moderna do direito à propriedade foram ressaltadas em estudo recente, citando Penã. Para este autor, o direito do indivíduo gozar ilimitadamente de sua propriedade era uma forma de despotismo, como se verifica pelo trecho que segue: la propiedad privada es una institución que esta íntimamente vinculada con el concepto del sujeto moderno y la representación de la libertad como ilimitada, característica también de la modernidad. Aquello que se tiene en propiedad se puede gozar y usar sin límites, sin más límites que la voluntad del propietario. Las libertades de los otros y los recursos naturales se ven amenazados por una institución que hace de cada propietario u soberano y un déspota. Es necesario pues limitar esta institución hasta la línea en que ponga en peligro las libertades de los otros o las condiciones ecológicas de reproducción de la vida.8 No contexto brasileiro, insta observar que o Código Civil de 1916 refletia a concepção liberal do direito de propriedade, indicando, no caput do art. 524 cominado com o artigo 527, verbis, que: Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-lo do poder de quem quer que injustamente os possua. Art. 527. O domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário. No entendimento de Barbosa e Gonçalo ―tais poderes, expressão do elemento interno ou econômico da propriedade (faculdade de usar, gozar e dispor) e do elemento externo ou jurídico (as ações de tutela da propriedade), constituem o aspecto estrutural do direito de propriedade, sem nenhuma referência ao conteúdo funcional do instituto.‖ 9 Frente aos excessos dos estados liberais, protetores dos interesses da burguesia – interesses estes camuflados por um discurso de direitos fundamentais -, ao passo que totalmente sem compromissos com os interesses da coletividade, no século XX sérias críticas ao ideário liberal emergem, e as concepções no tocante à sociedade e ao estado sofreram profundas mudanças. O temor de uma revolução proletária nos moldes da Revolução Russa de 1917 e a incipiente doutrina social da Igreja Católica foram elementos que em muito contribuíram para as mudanças sociais, jurídicas e econômicas dos países ocidentais em prol da intervenção do Estado.10 Conseqüentemente, direitos tradicionalmente liberais, incluindo-se o direito de propriedade, se transformaram à luz dos novos direitos que emergiram voltados para os interesses da coletividade. Em verdade, o direito de propriedade passou a ser repensado de forma a harmonizar-se com os novos direitos e sujeitos tutelados pelo direito. 8 Apud. CAVEDON, Fernanda Salles; IEHL, Francilene Pantoja; SIQUEIRA, Cristina Boccasius; SOUZA, Eliziane Mara de. A função ambiental da propriedade urbana e áreas de preservação permanente: a proteção das águas no ambiente urbano. Disponível em: www.aprodab.org.br/biblioteca/doutrina/fcavedon_et_alii01.doc. Acesso: 23 de setembro de 2009. 9 BARBOSA, Edilson J.P; GONÇALO, José Evaldo. O Direito de Propriedade e o ―novo‖ Código Civil. Publicado em maio de 2001. Disponível em: http://www.assessoriadopt.org/propriedade_civil.pdf. Acesso: 25 de setembro de 2009. 10 BELCHIOR, Germana Parente Neiva; MATIAS, João Luis Nogueira. A função ambiental da propriedade. Publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI em novembro de 2008. Disponível em: http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/brasilia/07_216.pdf. Acesso: 23 de setembro de 2009. 306 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II O Direito de Propriedade de uma acepção individualista ilimitada passou a ser limitado no interesse da coletividade, vinculando-se ao cumprimento de uma função social que hodiernamente é acrescido de também do dever de manter um meio ambiente ecologicamente equilibrado. No ordenamento jurídico brasileiro, o Direito de Propriedade se adaptou a esses novos paradigmas a partir da Constituição Federal de 1988 e do Novo Código Civil, como veremos a seguir. 3. A FUNÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL DA PROPRIEDADE URBANA Há pouco mais de uma década, ainda que tardiamente, o direito de propriedade ganhou novos contornos no ordenamento jurídico brasileiro, harmonizando-se com os novos direitos difusos e coletivos tutelados pelo Estado. O primeiro dispositivo que expressa categoricamente essa mudança de paradigma em prol da coletividade é o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que, ao tratar dos direitos individuais, reconhece o direito de propriedade no caput e no inciso XXII, mas logo em seguida, no inciso XXIII, o condiciona ao cumprimento de sua função social. Transcreve-se: Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes: ( ...) XXI – é garantido o direito de propriedade; XXII – a propriedade atenderá a sua função social. Ademais, no Capítulo que trata da Política Urbana, a Carta Magna deixa a cargo dos Planos Diretores11 dos Municípios, tendo em vista suas especificidades, a tarefa de delimitar o uso da propriedade urbana de acordo com as características sociais, ambientais e econômicas locais. Assim dispõe no artigo 183, § 2º: ―A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às diretrizes fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor‖. Ocorre que é apenas a partir da Lei n. 10.257/2001, mais conhecida por Estatuto da Cidade, que foram estabelecidas as diretrizes nacionais no tocante ao Plano Diretor, bem como ao desenvolvimento da função social da propriedade. Esse instrumento jurídico fixa normas que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, bem como do equilíbrio ambiental (artigo 1º, parágrafo único). O Estatuto da Cidade reconhece a importância de uma política urbana voltada ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade, e, para a consecução 11 Instrumento básico da Política de Desenvolvimento e Expansão Urbana de um Município. 307 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II desses objetivos, estabelece no seu artigo 2º uma série de diretrizes a serem observadas pelos Municípios, dentre as quais várias remetem a um meio ambiente equilibrado. No que se refere especificamente à questão ambiental, o referido dispositivo atenta para a necessidade de: a) Planejar o desenvolvimento das cidades, a distribuição espacial da população e as atividades econômicas do Município e do território de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (inc. IV); b) Ordenar e controlar o uso do solo, de forma a evitar a poluição e degradação ambiental (inc. VI, alínea g); c) Adotar padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental (inciso VIII); d) Proteger, preservar e recuperar o meio ambiente natural e construído (inciso XII). Observe-se, portanto, que esse instrumento legal expressamente vincula a função social da propriedade à preservação e proteção do meio ambiente, e orienta os Municípios a regularem o uso da propriedade urbana tendo sempre em vista a qualidade ambiental. Essa interface entre política ambiental e política urbana tem sido adotada por vários Planos Diretores no Brasil. A título exemplificativo é o que se verifica no Plano Diretor do Município de São Paulo (Lei n. 13.430/2002), o qual determina em seu artigo 11, inciso III, que a propriedade urbana cumpre sua função social quando seu uso é compatível ―com a preservação da qualidade do ambiente urbano e natural.‖ Ademais, no artigo 12, destaca que a função social da propriedade urbana é elemento constitutivo do direito de propriedade, e deve subordinar-se às exigências fundamentais de ordenação da Cidade, compreendendo: (a) a distribuição de usos e intensidades de ocupação do solo de forma equilibrada em relação à infra-estrutura disponível, aos transportes e ao meio ambiente, de modo a evitar ociosidade e sobrecarga dos investimentos coletivos; (b) a melhoria da paisagem urbana, a preservação dos sítios históricos, dos recursos naturais e, em especial, dos mananciais de abastecimento de água do Município; (c) a recuperação de áreas degradadas ou deterioradas visando à melhoria do meio ambiente e das condições de habitabilidade. Não foi de forma distinta a orientação do novo Código Civil de 2002 (Lei n. 10.406/2002) no tocante ao direito à propriedade. Adequando-se aos novos paradigmas de cunho social e ambiental, este documento legal expressamente restringe o direito de propriedade a um aproveitamento comprometido com a preservação ambiental. 308 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Art. 1.228, § 1º: O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Assim, também no Direito Civil a concepção de propriedade estará vinculada ao atendimento de sua função social e ambiental. Resta clarividente, portanto, que a função social da propriedade preconizada na Constituição Federal e em várias outras legislações infraconstitucionais inclui o comprometimento com o meio ambiente. Constata-se hoje, no ordenamento jurídico brasileiro, que a proteção legal do direito de propriedade está intrinsecamente vinculada com a proteção ao meio ambiente. Assim, corretos estão os doutrinadores que afirmam que a propriedade adquiriu uma função ambiental, o que em termos práticos implica no uso, gozo e fruição da propriedade de forma orientada para a preservação ambiental. 4. TRIBUTAÇÃO COMO INSTRUMENTO EFETIVADOR DA FUNÇÃO SÓCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE URBANA Na consecução de um espaço urbano ordenado e em harmonia com o meio ambiente, a implementação de políticas de desenvolvimento urbano que garantam o pleno desenvolvimento das funções sócio-ambientais da cidade e da propriedade se faz premente. Ocorre que a política urbana só poderá atingir seus objetivos mediante a utilização de instrumentos próprios, que viabilizem sua execução. De nada serve pensar coletivamente as diretrizes de uma cidade social e ambientalmente equilibrada se não houver mecanismos específicos para sua concretização. Nessa perspectiva, o Estatuto da Cidade foi importante não só por estabelecer as diretrizes gerais para o desenvolvimento da política urbana no País, mas também, senão principalmente, por criar vários instrumentos próprios – de ordem política, administrativa, financeira, tributária e jurídica - para sua execução. O Estatuto da Cidade, em seu art. 4º, trata especificamente dos instrumentos a serem utilizados no desenvolvimento de cidades mais justas e equilibradas, destaque-se os institutos tributários e financeiros arrolados, que incluem: o IPTU, contribuição de melhoria e incentivos e benefícios fiscais e financeiros, nos seguintes termos: 309 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Art. 4o. Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: (...) IV – institutos tributários e financeiros: a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU; b) contribuição de melhoria; c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros. O legislador acertadamente reconheceu que a tributação pode revelar-se um importante elemento no desenvolvimento da política urbana de determinado Município, capaz de adequar hábitos em prol do bem estar da coletividade. Pensando especificamente na dimensão ambiental do planejamento urbano, nada impede que a tributação prevista no Estatuto esteja inclinada a orientar o uso ambientalmente adequado do território urbano pelos contribuintes. Minichiello e Ribeiro fazem interessante reflexão dos aspectos fiscal e extrafiscal de uma tributação voltada especificamente para a preservação do meio ambiente, como se vê: Tributação ambiental pode ser entendida como o emprego de instrumentos tributários com duas finalidades: a geração de recursos para o custeio de serviços públicos de natureza ambiental e a orientação do comportamento dos contribuintes para a preservação do meio ambiente. Assim, ao referir-se em tributação ambiental pode se destacar dois aspectos: um sendo de natureza arrecadatória ou fiscal e outro a de caráter extrafiscal ou regulatório que tem como objetivo conduzir o comportamento dos contribuintes, incentivando-os a adotam condutas que estejam em sintonia com a idéia de preservação ambiental.12 Assim, não se pode pensar na tributação apenas como mecanismo estritamente orientado para o abastecimento dos cofres públicos. Além do seu aspecto fiscal, a tributação é um importante instrumento cujos efeitos irradiam no campo social. Daí que se afirmou em trabalho anterior: Para fomentar as atividades econômicas voltadas para a utilização de mecanismos de desenvolvimento limpo, imperioso que se aprimore uma normatização adequada de proteção ambiental, caracterizando, assim, este século, como o da Responsabilidade Fiscal Ambiental, devendo, tanto as atividades estatais de arrecadação, como as programações orçamentárias da despesa, se voltar para as atividades econômicas que promovam o estímulo ao desenvolvimento econômico que resguarde o meio ambiente. Importante destacar aqui é a utilização de uma política fiscal ambiental voltada para a indução de atividades que propiciem o desenvolvimento econômico visando à proteção ambiental e, não no sentido de criar mais tributos ou mesmo gerar uma pressão fiscal adicional.13 Almeida também discorre em defesa do potencial da tributação ambiental na defesa do meio ambiente. Para ele ―o tributo ambiental tem uma função muito importante no processo de reforma social não só como fonte de receita, mas, sobretudo, como forma de conscientização das pessoas acerca da importância e necessidade de preservação do meio ambiente.‖14 12 MINICHIELLO, André Luiz Ortiz; RIBEIRO, Maria de Fátima. A proteção do meio ambiente no âmbito municipal: reflexões sobre a tributação ambiental e desenvolvimento sustentável. Publicado nos Anais do CONPEDI em 2005. Acesso: 27 de setembro de 2009. 13 CAVALCANTE, Denise Lucena e; SALES, João Victor Porto. Tributação ambiental e propriedade: possibilidade de uma política fiscal adequada ao programa ―Minha casa, minha vida‖. In Estudos de direito de propriedade e meio ambiente. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 306. 14 ALMEIDA, Gilson Cesar Borges de. A extrafiscalidade na tributação ambiental: um instrumento eficaz 310 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Os Municípios devem estar atentos à tributação ambiental como um instrumento chave nas políticas ambientais. É importante que os planos diretores incluam dispositivos fazendo referência expressa à utilização desse mecanismo na promoção de um desenvolvimento municipal e de um ordenamento territorial voltado para a preservação do meio ambiente. Como exemplo, cita-se o exemplo do Plano Diretor do Município de Belém que expressamente inclui, dentre os instrumentos necessários à Política Municipal de Meio Ambiente, mecanismos de estímulo e incentivos que promovam a preservação e melhoria do meio ambiente (artigo 73). Mais adiante, o mesmo documento legal especificamente sugere a redução de tributos como mecanismos compensatórios para a limitação do uso e ocupação do solo nas áreas de preservação ambiental (artigo 191, inc. I, alínea a). 5. O PAPEL DOS INCENTIVOS FISCAIS NAS POLÍTICAS MUNICIPAIS DO MEIO AMBIENTE A tributação ambiental tratada acima pode ser dividida em duas categorias, quais sejam: repressiva ou promocional. No primeiro caso, busca-se agravar a carga fiscal do contribuinte cujo comportamento ou atividade não esteja adequado à preservação do meio ambiente. A tributação ambiental promocional, por sua vez, tem um cunho desagravatório que se dá por meio de incentivos fiscais. Na acepção de Ricardo Saliba, os incentivos fiscais seriam o melhor caminho em face da defesa e proteção do meio ambiente. Após uma análise da realidade cultural, social e econômica brasileira, bem como do sistema constitucional tributário, o doutrinador assim concluiu: Uma política tributária promocional seria a melhor maneira de se obter da coletividade um melhor cuidado com os bens ambientais[...], por se tratar de um meio que quando da sua ocorrência, pode animar as pessoas ligadas às atividades que envolvam qualquer tipo de meio ambiente (natural, artificial, cultural, do trabalho e do desporto), para que pratiquem diante desse ―favor fiscal‖, condutas positivas – defesa e preservação – em decorrência da exoneração da carga tributária.15 A tributação ambiental promocional, ou de redução da carga tributária, atuaria em verdade, no âmbito da extrafiscalidade, pois estaria voltada para o desenvolvimento de uma política ambiental, e não estritamente para a arrecadação16. para a realização do desenvolvimento sustentável. Dissertação de mestrado: Universidade Federal de Caxias do Sul, 2003. Disponível em: http://tede.ucs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=116. Acesso: 28 de setembro de 2009. 15 SALIBA, Ricardo Berzosa. Fundamentos do direito tributário ambiental. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 16 ―Prevalece hoje uma nova relação entre o Estado e os contribuintes, demolindo-se a velha concepção do Estado 311 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Além de ser um importante instrumento regulatório a ser empregado pelo Estado no escopo de proteger o meio ambiente, Gilson Borges de Almeida ressalta que a tributação ambiental promocional tem uma maior eficácia, pois não dependeria da criação de novos tributos, o que elevaria ainda mais o número dos já existentes. Por meio dos incentivos fiscais, os tributos já existentes seriam aplicados de maneira a atender aos fins ambientais.17 Pelo exposto, a tributação ambiental promocional parece ser o mecanismo mais adequado a ser utilizado pelos Municípios nas suas políticas ambientais. Descontos e isenções fiscais nos tributos municipais podem ser importantes mecanismos de adequação das atividades e do uso das propriedades urbanas de forma ambientalmente correta à preservação do meio ambiente. 6. A UTILIZAÇÃO DO IPTU COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE – O IPTU VERDE O Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU está previsto no artigo 156, inciso I, da Constituição Federal de 1988. Trata-se de tributo cuja instituição é de competência privativa dos Municípios, constituindo uma de suas mais substanciais fontes de divisas. Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: I – propriedade predial e territorial urbana (...). O IPTU é o principal tributo a recair sobre a propriedade urbana e, por isso, é um importante instrumento a ser utilizado na ordenação do espaço urbano, pois poderá incidir diferenciadamente sobre a propriedade em função do interesse sócio-ambiental. É o que se infere do artigo 156, §1º, da CRFB/88, conjugado com o artigo 47, do Estatuto da Cidade de 2002: Artigo 156. (...). § 1º - Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o Art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá: I - ser progressivo em razão do valor do imóvel; e II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel. (Constituição da República Federativa do Brasil). somente como arrecadador de recursos e do contribuinte somente como pagador de tributos de forma passiva, construindo-se uma relação onde há participação ativa tanto do Estado, ao conceder estímulos para atividades ambientalmente desejáveis, quanto aos particulares, ao tentar diminuir o impacto ambiental de suas atividades e de requerer do Estado que as receitas arrecadadas com os tributos ambientais sejam utilizadas para projetos em prol do meio ambiente, criando-se, assim, uma cidadania fiscal mais sólida.‖ (CAVALCANTE, Denise Lucena et alli. Projetos em trâmite no Congresso Nacional acerca do Direito Tributário ambiental. In Tributação ambiental. Fortaleza: OAB, 2009, p. 410). 17 ALMEIDA, Gilson Cesar Borges de. A extrafiscalidade na tributação ambiental: um instrumento eficaz para a realização do desenvolvimento sustentável. Dissertação de mestrado: Universidade Federal de Caxias do Sul, 2003. Disponível em: http://tede.ucs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=116. Acesso: 28 de setembro de 2009. 312 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II ____ Art. 47. Os tributos sobre imóveis urbanos assim como as tarifas relativas a serviços públicos urbanos serão diferenciados em função do interesse social. (Estatuto da Cidade). Com efeito, o Estatuto da Cidade, reconhecendo o poder interventivo do IPTU, expressamente o identifica em seu artigo 4º, como um dos instrumentos que deverão ser utilizados pelos Municípios na organização do espaço urbano: Art.4º. Para os fins desta lei, entre outros instrumentos: (...). V – institutos tributários e financeiros: a) Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU Observe-se que com o advento do Estatuto da Cidade, o IPTU ultrapassou as fronteiras da fiscalidade e vem se tornando peça chave na consecução das metas de desenvolvimento urbano. Essa dimensão extrafiscal pode, e deve, inclusive, servir especificamente como auxílio na pauta ambiental da política urbana, bastando que os Municípios adaptem sua incidência focando na função ambiental da propriedade urbana. Nesse sentido, alguns autores entendem que há duas formas de aplicação extrafiscal do IPTU objetivando o equilíbrio entre a utilização da propriedade urbana e o meio ambiente. A primeira teria um caráter promocional, o que implicaria, na ―aplicação do IPTU em função da preservação ambiental.‖ A segunda possibilidade de aplicação, por sua vez, teria um caráter ―repressivo‖, de forma a aumentar a carga tributária sobre imóveis urbanos que causassem impacto negativo sobre o meio ambiente.18 O IPTU ambiental repressivo seria adotado mediante a majoração da alíquota sobre a propriedade urbana que não é utilizada em consonância com o meio ambiente. Baseada no princípio do poluidor pagador, essa adequação do IPTU acarretaria um aumento da tributação sobre a propriedade imóvel urbana sempre que seu uso implicasse em prejuízos ambientais previamente definidos em lei. Em defesa, Daniel Souza justifica que : A lei civil expressamente assevera a necessidade de preservação da flora, fauna, belezas naturais, equilíbrio ecológico, e a não-poluição do ar e das águas, denotando a preocupação do legislador civil com o meio-ambiente e o dever de o proprietário preservar o meio-ambiente. Os que obrarem em sentido diverso deverá sofrer majoração em sua tributação.19 Ocorre que não se podem desconsiderar os empecilhos de ordem prática à implementação de um IPTU dessa natureza. Primeiramente, um imposto com dimensão repressiva poderia dar azo a impugnações judiciais sob o argumento de que o artigo 3º, do Código Tributário Nacional expressamente impede que o tributo constitua sanção de ato ilícito: 18 SOUZA, Daniel Barbosa Lima Faria Corrêa De. IPTU Ambiental. Revista Jus Vigilantibus, em 18 de março de 2009. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/38744/2. Acesso: 23 de setembro de 2009. 19 SOUZA, Daniel Barbosa Lima Faria Corrêa De. IPTU Ambiental. Revista Jus Vigilantibus, em 18 de março de 2009. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/38744/2. Acesso: 23 de setembro de 2009. 313 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Ademais, é preciso ter em mente que a questão ambiental é bastante complexa, sendo preciso que os legisladores estejam muito bem preparados para identificar de forma objetiva quais seriam os prejuízos ambientais decorrentes do uso inadequado da propriedade urbana que se buscaria compensar pela majoração do IPTU. Ressalte-se, ainda, que a majoração do IPTU só poderia decorrer de usos incompatíveis com o equilíbrio ambiental lícitos, ou seja, tolerados pelo Estado. Do contrário, se a majoração do IPTU decorresse de ilícitos ambientais acarretaria na perda de sua dimensão fiscal. O IPTU passaria a ser um instrumento sancionatório e, portanto, descaracterizando sua natureza tributária. Dadas essas questões controversas no tocante à viabilidade de um IPTU Ambiental repressivo, observa-se que os Municípios têm dado preferência à implementação do IPTU VERDE promocional, que se dá mediante a redução da exação sobre a propriedade urbana que efetivamente esteja contribuindo para o equilíbrio ecológico e para a preservação e proteção da natureza. Diferentemente do IPTU VERDE repressivo, que visa à compensação do dano ambiental causado mediante tributação, o IPTU VERDE promocional é um instrumento voltado à preservação, através de um estímulo à mudança de hábitos no uso da propriedade urbana de forma a harmonizar o meio ambiente artificial com o meio ambiente natural. 7. ESTUDO DE CASOS: MUNICÍPIOS QUE ADOTARAM O IPTU VERDE Vários Municípios pelo Brasil têm adaptado a implementação do IPTU de forma a estimular o uso da propriedade urbana em consonância com o meio ambiente. Essa adequação do imposto tem sido denominada de IPTU VERDE, Ambiental ou Ecológico. O Município de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, foi um dos pioneiros na utilização de instrumentos tributários para o estímulo à preservação ambiental no território urbano. A Lei Complementar n. 482, de 2002, conjugada com o Decreto n. 14.265, de 2003, prevêem a isenção da cobrança do IPTU sobre propriedades urbanas consideradas de interesse ecológico.20 O artigo 1º, do referido Decreto assim determina: 20 O artigo 5º, do Decreto N. 14.265/2003, arrola os casos em que o imóvel urbano ou parcela dele será considerado de interesse ambiental. 314 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Art. 1º. Ao proprietário do imóvel considerado de interesse ambiental pelo órgão ambiental municipal será concedida isenção do Imposto Predial Territorial Urbano – IPTU nos termos do inciso XIX do artigo 70 da Lei complementar n. 73 com a alteração dada pela Lei Complementar n.482/2002. Art. 2º. O proprietário do imóvel ou seu representante legal deverá requerer ao órgão ambiental municipal o reconhecimento como de interesse ambiental. Através de Processo Administrativo, anexando a matrícula do imóvel planta com sua localização. Desde 2003, o Município de Ribeirão Pires, no Estado de São Paulo, tem oferecido descontos no IPTU de imóveis urbanos que preservarem a Mata Atlântica. O desconto é diretamente proporcional ―à dimensão da área verde preservada na propriedade, podendo chegar à isenção dependendo do zoneamento e da importância da vegetação existente.‖21 Em 2007, o Município de São Leopoldo no Rio Grande do Sul aprovou lei que prevê a redução do valor do IPTU a ser pago pelos proprietários de terras que instituírem Reservas Particulares do Patrimônio Natural. O incentivo está previsto no artigo 536 do Código Municipal de Meio Ambiente do Município, Lei n. 6.463/2007, como se vê: Art. 536. O Poder Público Municipal incentivará os proprietários de áreas de interesse ambiental a instituírem Reservas Particulares do Patrimônio Natural - RPPN, localizadas em áreas urbanas ou rurais, conforme disposto na legislação vigente. § 1º A área de Reserva Particular do Patrimônio Natural - RPPN, instituída nesta lei, é excluída da área total do imóvel, para o efeito de apuração do Imposto Territorial Rural - ITR, nos termos do artigo 10, § 1º, inciso II, da Lei nº 9.393, de 19 de dezembro de 1996. § 2º A considerar a predominância de zona urbana no município de São Leopoldo e a pressão antrópica sobre as Áreas de Preservação Permanente - APP`s, a Reserva Particular do Patrimônio Natural - RPPN, localizada na área urbana, poderá ter a redução do valor venal proporcional às Áreas de Preservação Permanente - APP´s - e Reserva Particular do Patrimônio Natural - RPPN, para fins de apuração de Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU. Em dezembro de 2008 foi o Município de Bocaína que também instituiu, pela Lei n. 2.209, um IPTU VERDE, através do qual prevê a possibilidade de concessão de descontos de até 3% no IPTU de imóveis urbanos (i) que possuam lixeira suspensa defronte ao imóvel, (ii) possuam uma árvore plantada a cada sete metros de testada e (iii) que possuam passeio público pavimentado. Trata-se de um estímulo à arborização e organização do espaço urbano: Art. 2º - O Programa consiste na concessão de descontos de até 3% (três por cento) no valor do Imposto Predial Territorial Urbano – IPTU de imóveis urbanos que atendam às condições previstas no artigo 3º desta lei. Parágrafo Único - Os descontos não serão aplicáveis às taxas de limpeza pública, coleta de lixo, conservação de vias. Art. 3º – São condições para concessão dos descontos: I - possuir lixeira suspensa defronte ao imóvel. II - possuir uma árvore plantada a cada 7 (sete) metros de testada. III - possuir passeio público pavimentado, que permita acessibilidade a todo cidadão. Parágrafo Único - O atendimento de cada uma das condições, previstas nos incisos, concede o direito de 1% (um por cento) de desconto, e podem ser cumulativos, chegando ao máximo de 3% (três por cento). Ainda em 2008, o Município de São Carlos regulamentou pelo Decreto n. 264, a 21 GIACOMETTI, Haroldo Clemente. Orçamento Participativo: a experiência de Ribeirão Pires. Relatório de Pesquisa 15/2005. Pesquisa FGVEAESP. Disponível em: http://www.eaesp.fgvsp.br/AppData/GVPesquisa/P00327_1.pdf. Acesso em: 02 de outubro de 2009 315 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II aplicação dos incentivos ambientais previstos nos artigos 44 e 45 da Lei n. 13.692/05, que prevêem a concessão de descontos de até 2% no IPTU. Os referidos dispositivos assim determinam: Art. 44. Será concedido desconto de até 2% (dois por cento) no valor do IPTU para os imóveis edificados horizontais que possuírem em frente ao seu imóvel uma ou mais árvores. (....). Art. 45. Será concedido desconto de até 2% (dois por cento) no valor do IPTU para os imóveis edificados horizontais que possuírem no perímetro de seu terreno áreas efetivamente permeáveis, com cobertura vegetal. (...). Destaque-se, ainda, o Município de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, que, buscando incentivar a arborização da cidade, também aprovou o IPTU VERDE em setembro de 2009. A Lei n. 301/2009, promulgada e publicada no Diário Oficial do Município, em 23 de setembro, autoriza a promoção de descontos no IPTU aos imóveis revestidos de vegetação arbórea declarada de preservação permanente, até o limite de 50%. Trata-se de um incentivo à urbanização da cidade: Art. 1°. Fica a Prefeitura Municipal de Natal autorizada a promover descontos no Imposto Predial Territorial Urbano – IPTU – aos imóveis revestidos de vegetação arbórea declarada de preservação permanente, até o limite de 50% (cinqüenta por cento) aplicado de acordo com o índice da área protegida. Parágrafo Único - O percentual do desconto será regulamentado por Decreto do Executivo, considerando o número de árvores existentes no imóvel. Obsbserve-se que o IPTU VERDE é uma idéia que vem se propagando pelo Brasil. Alguns Municípios já estudam a possibilidade de sua instituição. Trata-se de uma iniciativa interessante para as municipalidades que priorizam a pauta ambiental e buscam garantir um espaço urbano ambientalmente sustentável. 8. CONCLUSÃO Observa-se neste estudo a importância do Estado brasileiro na devida utilização da propriedade urbana voltada à proteção ambiental. Muitas medidas eficazes já podem ser tomadas de imediato. Opção interessante para os Municípios que pretendem efetivamente adotar medidas que compatibilizem o uso da propriedade com a preservação da qualidade do meio ambiente urbano será a utilização de incentivos fiscais e IPTU VERDE para as construções originalmente ―verdes‖, devidamente certificados por entidade competentes, como por exemplo, a Green Building Council – Brasil ou entidades similares. Também deve ser estimulada pelo Estado, através da diferenciação das alíquotas do IPTU, a utilização da propriedade urbana de forma ambientalmente adequada, conforme alguns 316 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II exemplos já citados, como a organização da coleta do lixo; o processo de arborização das áreas urbanas; a reciclagem de produtos; a utilização de energias alternativas; a reutilização da água; enfim, medidas efetivas que podem ser implementadas de imediato através de um processo de educação coletiva. Estes estímulos fiscais inicialmente podem vir a colaborar muito numa maior propagação de uma mentalidade ecologicamente correta no Brasil. Percebe-se que alguns setores, como a construção civil, já estão dando os primeiros passos. Resta agora que o Estado brasileiro assuma seu papel e passe a direcionar as políticas públicas para a imediata proteção do meio ambiente. Sem dúvida, a população mundial está bastante atrasada nesta caminhada. Porém, mesmo impossibilitada de recuperar o atraso e toda a degradação ambiental já ocorrida, não se pode mais ficar a espera da lenta criação de uma consciência ecológica. O Estado tem que intervir em prol da celeridade deste processo. O certo é que não se podem viver os próximos 50 anos com foram vividos os últimos! REFERÊNCIAS ALMEIDA, Gilson Cesar Borges de. A extrafiscalidade na tributação ambiental: um instrumento eficaz para a realização do desenvolvimento sustentável. Dissertação de mestrado: Universidade Federal de Caxias do Sul, 2003. 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Acesso: 23 de setembro de 2009. 318 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II COMÉRCIO VERSUS MEIO AMBIENTE: SOBRE O ARTIGO 27.3 (b) DO ACORDO TRIPS E A CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA André Soares Oliveira1 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Comércio e Meio Ambiente nas Relações Internacionais. 3. Fundamentos do acordo sobre aspectos comerciais relacionados ao direito de propriedade intelectual. 4. Relação entre o artigo 27.3 (b) do acordo TRIPS e a convenção sobre diversidade biológica. 5. Considerações finais. 6. Referências. RESUMO Livre-comércio e proteção ambiental se chocam no campo da propriedade intelectual sobre recursos biológicos e os conhecimentos tradicionais, opondo o Acordo sobre Aspectos Comercias relacionados ao Direito de Propriedade Intelectual (TRIPS) no seu artigo 27.3(b) à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). O presente trabalho tem como foco identificar essas divergências. Utiliza-se o método indutivo e o procedimento bibliográfico. O artigo do Acordo estabelece que os Membros poderão considerar como matéria não-patenteável plantas e animais, exceto microorganismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não biológicos e microbiológicos. Porém, os Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema "sui generis" eficaz, seja por uma combinação de ambos. Os termos utilizados no artigo do Acordo são vagos e imprecisos, dando flexibilidade para interpretação. Essa discricionariedade expõe o conhecimento tradicional e os recursos biológicos dos países em desenvolvimento que não possuem sistemas de patenteamento tão rígidos. A Convenção sobre Diversidade Biológica, no seu artigo 8(j), propugna que cada Parte proteja o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentive sua mais ampla aplicação com a aprovação e participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas, encorajando a repartição eqüitativa dos benefícios dessa utilização. Essa questão é debatida no âmbito da organização comercial, onde os países em 1 Professor voluntário de Direito Internacional no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestrando em Direito – área de concentração em Relações Internacionais – pela Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected] 319 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II desenvolvimento e megadiversos defendem inconsistência do TRIPS com a CBD, defendendo modificações substanciais no primeiro, a fim de evitar fenômenos como a biopirataria; países desenvolvidos argúem não haver incompatibilidade, sendo possível a aplicação conjunta através de mecanismos internos e por fim, existem os que num posição moderada defendem a necessidade de uma articulação entre os dois tratados em nível internacional. Palavras-chave: Acordo TRIPS, Convenção sobre Diversidade Biológica, propriedade intelectual. ABSTRACT Free trade and environmental protection collide in the field of intellectual property rights on biological resources and traditional knowledge, as opposes the Agreement on Trade-related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS), on its Article 27.3 (b), to the Convention on Biological Diversity (CBD ). The present paper focuses on identifying these differences. It is used the inductive method and bibliographical procedure . The article of the Agreement provides that Members may consider as a matter unpatentable plants and animals other than microorganisms and essentially biological processes for the production of plants or animals, except the non-biological processes and microbiological processes. However, Members shall provide protection for plant varieties either by patents or by "sui generis" effective means, either by a combination of both. The terms used in the article of the agreement are vague and imprecise, with flexibility for interpretation. This exposes the traditional knowledge and biological resources of developing countries that do not have a strict patenting law. According to the Convention on Biological Diversity, Article 8 (j), each Party is in favor of protecting the knowledge, innovations and practices of local indigenous and traditional lifestyles relevant for the conservation and sustainable use of biological diversity and promote their wider application with the approval and involvement of the holders of such knowledge, innovations and practices and encourage the equitable sharing of the benefits of such use. This issue is discussed within the trade organization, where developing and megadiverse countries defend inconsistency in TRIPS with the CBD, arguing material changes in the first, to avoid phenomena such as biopiracy; developed countries argue that there is no incompatibility with the possible joint implementation through internal mechanisms, and finally there are those who advocate a moderate position, pointing the need for coordination between the two treaties at the international level. 320 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Keywords: TRIPS Agreement, Convention on Biological Diversity, Intellectual Property. 1. INTRODUÇÃO Livre-comércio e proteção ambiental são duas instâncias de conflito não apenas no âmbito interno, mas também – e talvez de maneira mais acentuada – no campo das relações internacionais. As interações entre questões de ordem econômica/comercial e os imperativos da proteção ambiental global, que cada vez mais se alarga, saindo de uma perspectiva setorizada e passando a fazer parte da agenda de várias organizações internacionais – inclusive aquelas que não são devotadas à questão ambiental como escopo, a exemplo do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio –, travam inúmeras discussões em nível global, ilustrando quão impossível é lidar com questões ambientais globais sem afetar os regimes comerciais e quanto os regimes comerciais/econômicos podem influir na situação global do meio ambiente. São vários os pontos em que os regimes ambientais e comerciais entraram em atrito, indo desde restrições comerciais impostas por acordos ambientais multilaterais que podem figurar como uma restrição velada ao comércio internacional sob os acordos comerciais, até quando se trata do campo da propriedade intelectual sobre recursos biológicos e os conhecimentos tradicionais sobre a aplicação desses recursos. Mais uma vez surgem exigências opostas no cenário internacional entre aquilo que prevê o Acordo sobre Aspectos Comercias relacionados ao Direito de Propriedade Intelectual (TRIPS), da Organização Mundial do Comércio (OMC), no seu artigo 27.3(b) e as normas da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Nesse sentido, o presente trabalho tem como foco identificar essas divergências. Utilizando-se o método indutivo e o procedimento bibliográfico. Primeiramente, focar-se-á em tratar de relações internacionais, meio ambiente e comércio, em que termos ocorre esse tratamento de questões econômicas/ambientais na seara internacional, que se apresenta, de fato, como um novo e intrincado campo de estudos àqueles que se dedicam à política ambiental global. Em seguida, procurar-se-á demonstrar, de modo sintético, os fundamentos do Acordo TRIPS e, em seguida, adentrar-se-á na compatibilidade ou não do artigo 27.3 (b) do Acordo e os dispositivos da Convenção sobre Diversidade Biológica. 2.COMÉRCIO E MEIO AMBIENTE NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Por governança global ambiental pode-se entender os esforços da comunidade 321 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II internacional para gerenciar e resolver problemas ambientais comuns. Essa governança global emergiu pós-Estocolmo é muito mais política e descentralizada, constituindo-se na negociação e implementação de tratados ambientais multilaterais e acordos em temas pontuais, frequentemente coordenados pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). São esses tratados ambientais multilaterais, ou regimes, que abrangem o modo dominante da governança global ambiental hoje em dia. Tratando dessa governança global – sua prática e seu estudo – existem dois discursos. O primeiro é o discurso do fracasso, que chama a atenção para a perceptível fraqueza dos tratados ambientais existentes, o caráter intratável das disputas entre os países do Norte e do Sul, uma fadiga de reuniões e cúpulas que resultou da proliferação de acordos ambientais e a extensão na qual os regimes de governança global econômica se sobrepõem a seus equivalentes ambientais. O processo diplomático iniciado em Estocolmo paralisou-se e novas ferramentas e institutos são necessários para lidar com os problemas cada vez mais críticos em escala global. Uma segunda narrativa afirma a necessidade de se olhar além das relações padrões entre os Estados, cooperação interestatal e diplomacia, através de um exame dos novos atores, onde se pode observar um cenário de governança global que é muito mais multifacetado, controverso, e potencialmente mais democrático que o modelo dominante de diplomacia ambiental. Essa perspectiva desafia a posição dos Estados nacionais como agentes primários da governança global. Dada uma desilusão geral com a efetividade da diplomacia ambiental internacional, muitos ativistas, analistas e membros do setor privado estão adotando modelos não-estatais de governança global ambiental – a exemplo das certificações – como um meio de evitar o incômodo processo de cooperação internacional. O interesse acadêmico nesses sistemas de regulação não-estatais centra-se nos meios pelos quais eles conseguem autoridade e legitimidade, mesmo evitando os governos nacionais, que eram os únicos detentores desses atributos2. O caso Fundição Trail (Trail Smelter) é visto até hoje como umas das primeiras manifestações do Direito Internacional do Meio Ambiente, porém a sua gênese propriamente dita ocorre com base em eventos tais como a abertura dos fóruns internacionais à opinião pública e a valorização de teses científicas sobre aspectos ambientais, a democratização das relações internacionais e a atuação dos Parlamentos, tensão de um mundo que se via à beira de uma guerra nuclear, ocorrência de catástrofes ambientais. Tudo isso evidenciou a ineficácia da atuação isolada de autoridades nacionais para 2 O‘Neil, Kate. The Environment and International Relations. Cambrigde: Cambrigde University Press, 2009. 322 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II lidar com problemas ambientais transfronteiriços. Houve também uma importância crescente da Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas, dada a paralisia do Conselho de Segurança em tempos de guerra fria, com uma maior participação de países do Sul. Some-se ainda a crescente relevância que as organizações não-governamentais passaram a ter no cenário internacional, ainda mais aquelas que congregavam importantes cientistas devotados à situação ambiental. Até a Conferência do Rio de Janeiro, em 1992, serão firmados inúmeros acordos ambientais, tanto multilaterais quanto bilaterais, nos mais variados campos e principalmente na Europa, com a formação das primeiras comunidades européias. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – Rio/92 – novamente marcou a oposição entre o Norte o Sul, e teve como resultados práticos a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a Convenção sobre a Diversidade Biológica e Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento3. De fato, os primeiros trabalhos sobre política ambiental internacional começam a aparecer na década de setenta. Entre os anos 80-90, esse campo se consolidou em torno de duas tendências: primeiro, os anos 70-80 foram anos ativos no campo da política internacional, sendo que a conferência de 1972 deu impulso a uma onda de atividades diplomáticas no campo ambiental sob a coordenação do PNUMA. Em segundo, muitos internacionalistas se voltaram para a compreensão da cooperação internacional como algo durável e capaz de exercer influência. Esses autores afirmavam que cooperação internacional nesses termos desafiava a concepção comum de que a cooperação Entre estados rivais era puramente transitória e refletia apenas os interesses dos Estados em um dado momento. Três tradições das relações internacionais (realismo/neorealismo, liberalismo e cognitivismo/construtivismo) oferecem ferramentas para a compreensão da política e da cooperação ambiental internacional. O divisor comum entre elas é a noção de que o sistema político internacional é anárquico e que os Estados ainda exercem um papel fundamental como atores principais desse sistema. No âmbito do realismo, a cooperação é tida como algo quase que impossível dada à lei de rivalidade que regula as relações internacionais, contudo a cooperação pode ser possível quando um Estado hegemônico e poderoso resolve ele mesmo manter essa cooperação pelo tempo e na extensão que desejar. 3 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente: emergência,obrigações e responsabilidades. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2003. 323 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Para o liberalismo, o direito internacional assume um papel importante no sentido de criar uma comunidade internacional e a cooperação internacional tem seu sucesso na ação conjunta dos estados no sentido de obter ganhos recíprocos e quando as instituições designadas para tal propósito monitoram o comprometimento, promovem transparência e reduzem os custos da cooperação. O cognitivismo introduz o papel das normas e das ideias nas relações internacionais, examinando a reação dos Estados e a formação da cooperação internacional com base nesse nessa ideias ou normas internacionais – compreendidas como conceitos compartilhados de comportamento apropriado. Esse enfoque dá mais relevância a atores não estatais, uma vez que esses atores são, na maioria das vezes, os formadores e condutores dessas novas normas ou ideias. Frente esses três paradigmas, o realismo e o neorealismo – com seu enfoque na alta política devotada às questões de segurança e o ceticismo em relação à cooperação internacional – tem pouco a contribuir para a compreensão das relações internacionais que governam o meio ambiente. O liberalismo é a perspectiva mais usada para compreender as relações em tela, uma vez que os problemas ambientais globais, mais que vários outros problemas internacionais, deixam clara a interdependência entre os Estados. As teorias cognitivistas também influenciam essa compreensão, ainda que seus estudos estejam num estágio inicial4. Comércio e meio ambiente formam correntes opostas nas relações internacionais. Baseado em elementos característicos dos regimes internacionais5, o regime comercial consubstancia-se na OMC, formal e legalista, com um dos mais efetivos ordenamentos na seara internacional, amparado por um sistema de solução de controvérsias tido com o mais ambicioso da história6. A combinação de regras extensivas e um sistema de solução de controvérsias obrigatório faz da OMC um dos maiores exemplos de governança global na atualidade. O regime ambiental ganha relevância nos anos 70, no pós-Estocolmo, e tem entre seus principais atores as organizações não-governamentais, estando disperso em vários tratados carentes de institucionalização forte, uma vez que o PNUMA não tem o mesmo impacto que a OMC7. 4 O‘NEIL, Kate. op.cit HAGGARD, S.; SIMMONS, B.A. Theories of International Regimes. International Organization, Toronto, vol.41, n.3, p.491-517, 1987. 6 PETERSMAN, E. From the Hobbesian International Law of Coexistence to Modern Integration law: the WTO Dispute Settlement Body. Journal of International Economic Law, Oxford, vol.1, n.2, p. 175-198, 1998. 7 WINHAM, Gilbert R. International conflict in trade and environment: the Biosafety Protocol and the WTO. World Trade Review, United Kingdom, vol.2, n.2.2, p.131-155, 2003 5 324 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Quanto ao escopo, ambos visam ao desenvolvimento. Para a organização comercial, este ocorre na medida em que se intensificam as trocas comerciais, preocupando-se em termos quantitativos. No ângulo ambiental, o Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento condiciona o crescimento econômico a exigências ambientais mínimas, preocupando-se com as necessidades das gerações futuras e comunidades locais8. Três posições marcam a relação entre comércio, meio ambiente e globalização. Os primeiros – ambientalistas do livre-comércio – defendem que a liberação comercial, através da eliminação de barreiras, aceleraria o crescimento econômico, gerando divisas a serem investidas na proteção ambiental. De fato, segundo alguns desses ambientalistas, o desempenho ambiental dos países pode elevar a renda per capita em até seis mil dólares. Os críticos da globalização, ao contrário, afirmam que essa destrói as comunidades locais e que o crescimento econômico proporcionado pela globalização produz um crescimento marcado pela desigualdade, sempre à custa do meio ambiente. Uma abordagem mais critica e mais pragmática observa que a globalização e a liberalização comercial são processos irreversíveis, mas que nem por isso implicam necessária e automaticamente numa melhora das condições ambientais. Para eles, a relação entre o crescimento econômico devido à globalização e a melhoria das condições ambientais é parcial, seletiva e tardia, de modo que a tarefa de equilibrar as exigências do livre-comércio e o seu potencial impacto ambiental deve estar a cargo de mecanismos institucionais disponibilizados internacionalmente9. Essa situação desafia o conceito de ordem jurídica internacional, que oscila entre um direito internacional geral que governa todos os subsistemas e um direito internacional composto da soma desarmônica e incoerente de regimes. Porém, é impossível tanto ao direito da OMC quanto aos acordos ambientais viver em isolamento. O direito internacional é sistêmico, mas incompleto e desorganizado. A OMC reconhece que seus acordos podem ser interpretados remetendo ao direito internacional geral10. Nesse sentido, há casos na OMC que remetem aos tratados ambientais para precisar expressões dos acordos comerciais, como o conceito de esgotáveis no caso ‗camarões11‘ 12. 8 VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. SPETH, James Gustave; HAAS, Peter M. Global Environmental Governance. Washington, DC: Island Press, 2006. 10 SIMMA, Bruno; PULKOWSKI, Dirk. Of Planets and the Universe: Self-contained Regimes in International Law. European Journal of International Law, Oxford, vol.17, n.3, p.483-529, 2006. 11 No caso ‘camarões‘, opondo os Estados Unidos à Índia, Malásia, Paquistão e Tailândia, o primeiro tomou uma medida restritiva às importações de camarões dos últimos, uma vez que a pesca praticada implicava na destruição de tartarugas marinhas. Um dos fundamentos era que estas seriam recursos naturais esgotáveis. Os países importadores opuseram-se alegando que as mesmas eram seres vivos e poderiam se reproduzir. O Órgão de 9 325 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Há de se observar que os regimes ambientais e comerciais não estão em plena desarticulação, uma vez que acordos comerciais passam a lhe dar com questões ambientais e que alguns acordos ambientais tem sido sensíveis a essas tensões entre comércio e meio ambiente, estabelecendo obrigações que não se choquem frontalmente com as exigências do livre comércio. O princípio 12 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento13 assevera que Os Estados deveriam cooperar para promover um sistema econômico internacional favorável e aberto, o qual levará ao crescimento econômico e ao desenvolvimento sustentável de todos os paises, a fim de abordar adequadamente as questões da degradação ambiental. As medidas de política comercial para fins ambientais não deveriam constituir um meio de discriminação arbitrária ou injustificável, nem uma restrição velada ao comércio internacional. Deveriam ser evitadas medidas unilaterais para solucionar os problemas ambientais que se produzem fora da jurisdição do país importador. As medidas destinadas a tratar os problemas ambientais transfronteiriços ou mundiais deveriam, na medida do possível, basear-se em um consenso internacional. A própria organização comercial preocupa-se com a tensão entre comércio e meio ambiente. Em 1971, o então GATT estabeleceu um Grupo sobre Medidas Ambientais e o Comércio Internacional que seria reativado em 1991 com um mandato limitado à compatibilidade do direito do GATT e alguns acordos ambientais multilaterais em evidência. Em 1994, sob o pálio da OMC, estabeleceu-se um subcomitê sobre Comércio e Meio Ambiente. No mesmo ano, numa Reunião Ministerial em Marrakesh, adotou-se a Decisão sobre Comércio e Meio Ambiente, que instituiu nos quadros da OMC o Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente. Alguns aspectos dessa decisão merecem destaque como as considerações de que não deve haver nenhuma contradição em garantir e salvaguardar, concomitantemente, um sistema de comércio internacional aberto, não-discriminatório e eqüitativo; ações para a proteção do meio ambiente e a promoção do desenvolvimento sustentável. A coordenação entre as políticas comerciais e ambientais deve ser feita pela OMC sem exceder sua competência que se limita às políticas comerciais dos Membros e aos efeitos comerciais relevantes de políticas ambientais, sendo que um dos objetivos do Comitê é justamente assegurar a responsabilidade do sistema multilateral de comércio em relação aos objetivos fixados pela política ambiental global, em especial pela Agenda 21 e pelo mencionado Princípio 12 da Declaração do Rio 14. No âmbito da organização comercial, as preocupações ambientais podem embasar Apelações recorreu então à Agenda 21 e à Convenção sobre Diversidade Biológica para precisar que os recursos biológicos, ainda que seres vivos capazes de reprodução, são esgotáveis 12 VARELLA, Marcelo. op.cit 13 A seguir referida apenas como ‗Declaração do Rio‘. 14 WTO. Decision on trade and environment. Disponivel em http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/56dtenv_e.htm.. Acesso em: 15 jul. 2008 326 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II medidas restritivas. Essas medidas são enquadradas como uma exceção ao livre comércio, nos termos do artigo XX, alínea ‗b‘ do GATT. Essas medidas devem ser ―necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais‖ e não devem ser aplicadas ―de forma a constituir quer um meio de discriminação arbitrária, ou injustificada, entre os países onde existem as mesmas condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio internacional‖. De maneira geral, tem-se um regime ambiental identificado em termos cognitivos, enfatizando ações de cooperação e baseadas em princípios, enquanto o regime comercial apresenta-se em termos formais e legalistas15. Contudo, apesar de todas essas desarticulações, tudo isso aponta que decisões e regras sobre comércio, investimentos estrangeiros e movimentos globais de capital, e desenvolvimento, particularmente numa era de rápida globalização, tem sérios impactos no estado do meio ambiente global. Então, crescentemente, fóruns tais como a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial, têm que lidar com questões sobre o impacto ambiental e social de suas decisões, e como reagir quando suas normas entram em conflito com regras e normas globais sobre proteção ambiental16. Assim, desde os anos 70 com a Conferência de Estocolmo, que marca o início propriamente dito das relações internacionais voltadas ao meio ambiente, que a gama de temas postos em discussão nos fóruns ambientais internacionais apenas vem crescendo, mostrando de certa forma esse caráter integrativo, esse caráter atrativo que a questão ambiental tem. Não se trata nos fóruns ambientais apenas de promover a preservação dos recursos naturais por si só, numa visão meramente biocêntrica – que o desejo dos países do Norte ao início desses fóruns - mas também, sobretudo após o cunho da expressão ‗desenvolvimento sustentável‘, devida à Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. São discutidas questões que tangem à criar condições para um desenvolvimento que seja sustentável, vão se ater à promoção de tecnologias limpas, da criação de alternativas para o desenvolvimento que contemplam a necessidade do próprio homem, marcando assim uma visão mais antropocêntrica, principalmente em razão dos pleitos dos países do Sul que, sendo detentores da maior parte da diversidade biológica intacta no mundo, tem também o direito de desenvolverem-se economicamente e socialmente, mas de modo a não promover um esgotamento dos recursos naturais a exemplo dos paises do Norte. Sendo assim, nesse sentido, a agenda dos fóruns internacionais devotados a questões ambientais começam a atrair outros assuntos que não àqueles tradicionais como a preservação dos recursos, mas vai ficando clara a ligação da questão ambiental internacional com outros 15 16 WINHAM, Gilbert R. op.cit. O‘NEIL, Kate. P.07 tradução nossa. 327 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II temas, sobretudo aqueles que tangem ao comércio internacional, onde pode-se encontrar a propriedade intelectual. 3. FUNDAMENTOS DO ACORDO SOBRE ASPECTOS COMERCIAIS RELACIONADOS AO DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL Responsável pelas regras de comércio internacional, a Organização Mundial do Comércio foi criada em 1995, durante a Rodada do Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais como desenvolvimento do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (da sigla inglesa GATT), através da assinatura do Acordo de Marrakesh, a OMC herdou toda a estrutura do GATT, seus acordos e sistemas de solução de controvérsias. A função da OMC é administrar os acordos comerciais, servir como fórum para negociações, decidir disputas, revisar a política comercial de seus Membros, ajudar países em desenvolvimento a tratar de políticas comerciais e cooperar com outras organizações internacionais. Junto ao Acordo de Marrakesh estão acordos sobre bens, serviços, propriedade intelectual, solução de controvérsias e mecanismos para a revisão de políticas comerciais. Esses acordos são denominados Acordos Comerciais Multilaterais e são aplicáveis a todos os membros da OMC, sem possibilidade de escolha ou reserva. O Acordo sobre Aspectos Comerciais relacionados aos Direitos de Propriedade Intelectual – Agreement on Trade Related-aspects of Intellectual Property Rights –,17 é um acordo multilateral da Organização Mundial do Comércio, ou seja, todos os Membros da organização comercial são necessariamente partes desse Acordo, ao contrario do que ocorre nos Acordos Plurilaterais, onde os Membros podem escolher quais ratificarem. Ele foi negociado no âmbito da Rodada de Negociações Multilaterais do Uruguai que, finalizando em 1994, fez nascer a Organização Mundial do Comércio, em sucessão ao antigo Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas – GATT –, e juntamente com uma plêiade de outros acordos – Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias, Acordo sobre Agricultura, entre outros – entrou em vigor em 1995. Na medida em que os produtos em comércio começaram a agregar valores além daqueles enquanto simples commoddities, mas passaram a ter um valor diferenciado em razão da tecnologia empregada para sua fabricação, ou seja, devido à inovação, à pesquisa e à criatividade que estão por trás daquele produto, surge a ideia de direitos de propriedade 17 A seguir referido apenas pelo acrônimo ‗TRIPS‘ ou ‗o Acordo‘. 328 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II intelectual. No âmbito internacional, a Rodada do Uruguai se fez sensível a necessidade de promover um padrão comum de proteção a esses direitos de propriedade intelectual entre os Membros da futura organização comercial, de modo que esses pudessem ter certeza que suas inovações, derivadas de pesados investimentos em pesquisa, não seriam facilmente copiadas em outros países, sem que com isso eles recebessem seus direitos pela inovação. Assim, o acordo TRIPS estabelece um nível mínimo de proteção a ser seguido pelos Membros e torna o sistema de solução de controvérsias da OMC – tido, talvez, como o mais efetivo do mundo – apto a receber litígios nesse campo18. Ao Acordo se aplica todos aqueles princípios que informam o direito da OMC, como a clausula da nação mais favorecida, o tratamento nacional, e nesse acordo específico há o objetivo de que a proteção aos direito de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social e econômico e ao equilíbrio entre direitos e obrigações (art. 7). O Acordo estabelece padrões de proteção para os direitos autorais (copyrights), as marcas (trademarks), indicações geográficas, desenhos industriais (industrial designs), patentes, topografias de circuitos integrados, informações secretas. No caso, interessa as patentes. O Acordo diz que a proteção ás patentes deve durar pelo menos 20 anos, sendo disponível para produtos e processos de produção, em quase todos os campos da tecnologia. Os governos podem recusar direito de patentes a por razões de ordem pública ou moralidade, assim como métodos cirúrgicos, terapêuticos e diagnósticos, plantas e animais (exceto microorganimos) e processos biológicos para a proteção de plantas e animais (que não processos microbiológicos). 4. RELAÇÃO ENTRE O ARTIGO 27.3 (b) DO ACORDO TRIPS E A CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA O artigo 27.3(b), em foco na presente comunicação, ao tratar de matéria patenteável estabelece, in verbis: 18 WTO. Understanding the WTO. 4.ed. World Trade Organization Information and Media Relations Division: Genebra, 2008 329 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II 3 - Os Membros também podem considerar como não patenteáveis: ... b) plantas e animais, exceto microorganismos, e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não biológicos e microbiológicos. Não obstante, os Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema "sui generis" eficaz, seja por uma combinação de ambos. O disposto neste subparágrafo será revisto quatro anos após a entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC. Os países em desenvolvimento, como o Brasil e a Índia, chamam a atenção dos Membros para a ambigüidade desse dispositivo que confere grande discricionariedade para conferir patentes a plantas, animais e processos biológicos para a produção dessas plantas e animais, o que, na falta de salvaguardas, expõe o conhecimento tradicional e os recursos biológicos à pilhagem e à biopirataria. Assim, basta lembrar o que diz a Convenção sobre Diversidade Biológica, a seguir referida apenas como ‗Convenção‘, no seu artigo 16.5, que As Partes Contratantes, reconhecendo que patentes e outros direitos de propriedade intelectual podem influir na implementação desta Convenção, devem cooperar a esse respeito em conformidade com a legislação nacional e o direito internacional para garantir que esses direitos apóiem e não se oponham aos objetivos desta Convenção. Os objetivos da Convenção são, de acordo com o seu artigo 1°, a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqùitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado. Vale mencionar o artigo 8(j), também da CDB, tratando da conservação in situ, que significa as condições em que recursos genéticos existem em ecossistemas e hábitats naturais e, no caso de espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas propriedades características, propugna que cada Parte proteja o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentive sua mais ampla aplicação com a aprovação e participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas, encorajando a repartição eqüitativa dos benefícios dessa utilização. Vale lembrar que o parágrafo 19 da Declaração Ministerial que deu início à Rodada de Doha exorta o Conselho do TRIPS clarificar essa relação entre o Acordo e a CDB e que toda essa questão também chega às portas da Comissão sobre Comércio e Meio Ambiente da OMC – Comitte on Trade and Environment –, estabelecida pela Decisão sobre Comércio e Meio Ambiente, em 1994, que procura lhe dar com questões de conflito entre o direito da organização comercial e tratados ambientais multilaterais19. Comparando o que define o artigo em tela do TRIPS e as disposições da CDB, podese ressaltar que o acordo ambiental garante a soberania sobre os recursos genéticos da 19 WTO. Doha Ministerial Declaration. Disponível em english/thewto_e/minist_e/min01_e/mindecl_e.htm>. Acesso em: 15.dez.2009 : < http://www.wto.org/ 330 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II diversidade biológica, além de permitir um limite/proibição dessas patentes. A CDB também irá preocupar-se com o conhecimento tradicional e a participação das comunidades tradicionais sobre as divisas advindas o uso do seu conhecimento. Isso no âmbito do TRIPS é impossível, uma vez que o acordo comercial não reconhece o que seria inovações informais (conhecimentos tradicionais) e não confere titularidade de direitos de propriedade intelectual à comunidades, mas apenas à indivíduos e empresas20. A revisão do artigo 27.3 (b) do TRIPS teve início em 1999, de acordo com o que pedia o próprio Acordo. Ao tempo, as questões postas eram sobre como lidar com o uso comercial do conhecimento tradicional e do material genético por outros que não as comunidades ou países de onde eram originários, especialmente quando esse eram sujeitos à aplicação de patentes, além da harmonização entre o TRIPS e a Convenção sobre Diversidade Biológica. Foram desenvolvidos três enfoques para tratar da questão. O primeiro enfoque, defendido pelos países como Brasil, Índia, Venezuela, Peru e Paquistão argumentam que o Acordo e a Convenção são totalmente inconsistentes em seus objetivos, e que isso demandaria uma emenda ao Acordo, sendo isso vital para impedir a biopirataria e restringir a apropriação indevida de conhecimentos tradicionais em países em desenvolvimento ou de desenvolvimento tardio. O segundo enfoque defendido pelos países desenvolvidos sustenta não haver nenhuma incompatibilidade entre os tratados, sendo possível implementa-los em apoio mútuo através de medidas em nível nacional. Por sua vez, um terceiro enfoque, mais moderado e que vem ganhando mais espaço, afirma que os tratados podem ser implementados de forma compatível, mas que essa compatibilidade deve ser construída em nível internacional. Desse terceiro enfoque adveio uma proposta da Índia, apoiada pelo Brasil, sugerindo uma emenda ao Acordo que tornaria obrigatória para requerer patentes de plantas, animais e processos biológicos informar a fonte ou país de origem de qualquer recurso biológico ou conhecimento tradicional, provar um prévio consentimento informado da autoridade competente do país de origem e provar a justa e eqüitativa repartição do benefício, em conformidade com as legislações nacionais, o que seria útil no sentido de prevenir a biopirataria, permite aos paises acompanhar patentes concedidas sobre seus recursos biológicos ou conhecimentos tradicionais e permitiria aos sistemas de patentes em geral avaliar mais apuradamente. Os países desenvolvidos posicionam-se sistematicamente contrários a tal proposta. A 20 MASCARENHAS, Gilberto. A biodiversidade brasileira no âmbito do Acordo TRIPS. Revista Brasileira de Inovação. Brasília, vol.3, n. 2, p. 393-416, 2004. 331 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II inclusão de recursos biológicos no Acordo, através da proteção por patentes ou outro meio de proteção de direitos de PI, levanta pontos fundamentais da Convenção. A primeira questão, de ordem moral, seria sobre a patenteabilidade de formas de vida, como plantas e animais, e uma segunda questão seria a privatização de recursos biológicos e a concessão de direitos em caráter de monopólio sobre recursos biológicos, o que criaria restrições no acesso continuo a recursos biológicos por parte das comunidades locais e indígenas, assim como agricultores, mas também levaria a um rápido esgotamento desses recursos21. Vale lembrar que o parágrafo 19 da Declaração Ministerial que deu início à Rodada de Doha exorta o Conselho do TRIPS clarificar essa relação entre o Acordo e a CDB e que toda essa questão também chega às portas da Comissão sobre Comércio e Meio Ambiente da OMC – Comitte on Trade and Environment –, estabelecida pela Decisão sobre Comércio e Meio Ambiente, em 1994, que procura lhe dar com questões de conflito entre o direito da organização comercial e tratados ambientais multilaterais. Hoje, as discussões sobre o artigo 27.3 (b) do TRIPS e a CDB giram em torno de impor a obrigação de que os proponentes de patentes demonstrem a origem do conhecimento tradicional/ recurso genético usado naquela inovação. Essa posição é defendida pelos países em desenvolvimento, encabeçados pelo Brasil e pela Índia. Assim, poder-se-ia avaliar se o proponente obteve um consentimento prévio informado do País de origem daquele recurso/conhecimento e se estão realmente assegurados mecanismos de distribuição de benefícios, de modo que a comunidade que proveu aquele conhecimento também possa ela beneficiar-se das divisas geradas com seu uso comercial. Nesse cenário, a Suíça propôs um processo de divulgação da origem a ser feito através de uma emenda ao tratado da Organização Mundial de Propriedade Intelectual. A União Europeia defende processos de divulgação, mas feitos fora do direito das patentes, enquanto os Estados Unidos defendem que os objetivos da CDB seriam melhor atendidos através das legislações nacionais e arranjos contratuais incluindo a obrigação de demonstrar a origem de qualquer recurso genético ou conhecimento tradicional utilizado. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O choque entre as exigências de liberalização comercial e os imperativos da proteção ambiental permeiam todas as grandes negociações na seara internacional e não é diferente no 21 TARASOFSKY, Richard G. The Relationship between the TRIPs Agreement and the Convention on Biological Diversity: towards a pragmatic approach. Review of European Community and International Environmental Law. Oxford, vol. 6, nº 2, 1997. 332 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II tratamento da propriedade intelectual, ainda mais quando empresas provenientes de países desenvolvidos incrustam seus tentáculos sobre a rica, desprotegida e inexplorada diversidade biológica dos países do Sul, no propósito de subtrair recursos genéticos/biológicos que – com a devida aplicação, normalmente obtida através do conhecimento tradicional dos povos que li vivem – patenteados podem render divisas inestimáveis. Nesse processo, os países de origem daquele recurso, assim como as comunidades tradicionais que detém o conhecimento sobre o uso daquele recurso, ficam à margem de receber qualquer remuneração pelo uso comercial daquele recurso, isso quando não se vêem mesmo privadas de utilizar livremente aquele recurso que à elas pertence por primeiro. Interessante notar as inconsistências entre o TRIPS e a Convenção sobre Diversidade Biológica e pensar que o acordo comercial é de 1999, enquanto a Convenção é de 1992, ou seja, quando da redação do acordo comercial o acordo ambiental já estava posto. Assim, podese ter certeza que a harmonização com a CDB foi ignorada quando da negociação do TRIPS. Certamente, esse trabalho não alcança a completa dimensão do problema de harmonizar o TRIPS, em especial o artigo 27.3 (b), com a lógica da Convenção de Diversidade Biológica, mas pretende sobretudo ser uma provocação, um ponto de partida para voltar-se à questão que envolve grandes interesses para o Brasil. Entre os enfoques propostos atualmente para harmonização, a saída contratual defendida pelos Estados Unidos é criticável pelo simples fato que, estando em negociação uma grande empresa multinacional, que são as grandes patrocinadoras da biopirataria, e governos frágeis de países do Sul, dificilmente os últimos poderão resistir às imposições das grandes empresas em negar a inclusão de clausulas sobre demonstrar a origem de recursos genéticos utilizados, de modo que a eficácia dessa solução estaria comprometida. 6. REFERÊNCIAS HAGGARD, S.; SIMMONS, B.A. Theories of International Regimes. International Organization, Toronto, vol.41, n.3, p.491-517, 1987. MASCARENHAS, Gilberto. A biodiversidade brasileira no âmbito do Acordo TRIPS. Revista Brasileira de Inovação. Brasília, vol.3, n. 2, p. 393-416, 2004. O‘NEIL, Kate. The Environment and International Relations. Cambrigde: Cambrigde University Press, 2009. PETERSMAN, E. From the Hobbesian International Law of Coexistence to Modern Integration law: the WTO Dispute Settlement Body. Journal of International Economic Law, Oxford, vol.1, n.2, p. 175-198, 1998. 333 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II SIMMA, Bruno; PULKOWSKI, Dirk. Of Planets and the Universe: Self-contained Regimes in International Law. European Journal of International Law, Oxford, vol.17, n.3, p.483-529, 2006. SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio emergência,obrigações e responsabilidades. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2003. Ambiente: TARASOFSKY, Richard G. The Relationship between the TRIPs Agreement and the Convention on Biological Diversity: towards a pragmatic approach. Review of European Community and International Environmental Law. Oxford, vol. 6, nº 2, 1997. VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. WINHAM, Gilbert R. International conflict in trade and environment: the Biosafety Protocol and the WTO. World Trade Review, United Kingdom, vol.2, n.2.2, p.131-155, 2003 WTO. Decision on trade and environment. Disponível http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/56-dtenv_e.htm.. Acesso em: 15 jul. 2008 em _____. Doha Ministerial Declaration. Disponível em : < http://www.wto.org/ english/thewto_e/minist_e/min01_e/mindecl_e.htm>. Acesso em: 15.dez.2009 _____. Understanding the WTO. 4.ed. World Trade Organization Information and Media Relations Division: Genebra, 2008 334 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II ASPECTOS EXTRAFISCAIS DAS ESPÉCIES TIRBUTÁRIAS E POSSIBILIDADES DE INSTITUIÇÃO DE TRIBUTOS AMBIENTALMENTE ORIENTADOS NO BRASIL Maíra Acotirene Dario da Cruz1 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Espécies tributárias. 3. Extrafiscalidade. 4. Tributação ambientalmente orientada. 4.1. Proposta de uma tributação ambientalmente orientada para o Brasil: PEC nº 353/2009. 5. Aspectos extrafiscais das espécies tributárias e sua orientação ambiental. 5.1. Alteração de alíquotas de impostos por ato do Poder Executivo: uma reflexão sobre possível orientação ambiental da alíquota do imposto de importação. 5.2. Progressividade dos impostos IPTU e do ITR e suas possibilidades de orientação ambiental, com destaque às propostas constantes na PEC 353/2009. 5.3. A seletividade do IPI e do ICMS sua possível orientação ambiental. 5.4. Aspectos extrafiscais das taxas e sua orientação ambiental por meio da adoção da progressividade de alíquotas. 5.5. Aspectos extrafiscais das contribuições de melhoria e sua orientação ambiental. 5.6. Aspectos extrafiscais das contribuições especiais e sua orientação ambiental. 5.7. Aspectos extrafiscais dos empréstimos compulsórios e sua orientação ambiental. 5.8. Benefícios fiscais e orientação ambiental. 6. Conclusão. Referências. RESUMO A extrafiscalidade ocorre quando os tributos extrapolam o objetivo da arrecadação de recursos para o financiamento das atividades estatais e passam a privilegiar outros objetivos constitucionalmente eleitos. A tributação voltada à proteção do meio ambiente é um exemplo de tributação em que há fortes aspectos extrafiscais, pois destina-se a incentivar a proteção ao meio ambiente. Este estudo investiga quais espécies tributárias oferecem aspectos extrafiscais que podem ser, possivelmente, utilizados na tributação ambientalmente orientada. Adota como teoria de base: 1- a divisão quinquipartida dos tributos; 2- a extrafiscalidade enquanto atuação dos tributos sobre o comportamento dos contribuintes; e 3- a tributação ambientalmente orientada, enquanto adaptação dos tributos já existentes ao objetivo da proteção ambiental. A 1 Aluna da 9ª fase do curso de Direito da Universidade Federal do Estado de Santa Catarina. Autora da monografia: ―Aspectos extrafiscais das espécies tributárias e propostas de tributos ambientalmente orientados no Brasil‖, escrita sob a orientação do professor Dr. Ubaldo César Balthazar. Atual estagiária da Justiça Federal em Santa Catarina. Ex- estagiária da Procuradoria da Fazenda Nacional em Santa Catarina. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Campus Reitor João David Ferreira Lima – Centro de Ciências Jurídicas – Faculdade de Direito - Bairro Trindade - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil - CEP 88040-970 - email: [email protected] 335 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II metodologia de estudo é a pesquisa em fontes secundárias e o método de abordagem é o dedutivo. O estudo parte da hipótese de que impostos, taxas e contribuições especiais são as espécies tributárias que oferecem espaço à atuação extrafiscal ambientalmente orientada dos tributos. Tal hipótese é confirmada no decorrer da pesquisa, que mostra, por outro lado, a inadequação de empréstimos compulsórios e contribuições de melhoria à tributação ambientalmente orientada, devido ao forte caráter fiscal de tais espécies tributárias. Considerase, por fim, que os benefícios fiscais podem ser utilizados, com objetivos ambientais, em tese, em todas as espécies tributárias. Palavras-chave: Tributação. Meio ambiente. Extrafiscalidade. Espécies tributárias. ABSTRACT Police oriented taxes in Brazil aim to promote goals provisioned in the Constitution beyond just making up a state's revenue. Ecological taxes (ecotaxes) are an example of police oriented taxes as they intend to motivate environmental protection. This article investigates brazilian tax classification in order to find out taxes that could be employed as ecotaxes. It's based in the following groundings: 1 – Brazilian pentapartite taxes classification; 2 –Police oriented taxes taxes as economic instruments that are able to influence taxpayers behaviour 3 – Ecotaxation through adaptation of preexisting taxes. The working hypothesis is that ``impostos'', ``taxas'' and ``contribuições especiais'' are the preexisting taxes amenable to use as ecotaxes. Secondary research in mainstay bibliography as well as in recent jurisprudence using the deductive method is the research methodology. The working hypothesis is found to be indeed true. Besides it's verified that ―empréstimos compulsórios‖ and ―contribuições de melhoria‖ by their strong fiscal aspects aren't adequate to adaptation for further use as ecotaxes. Lastly it's noted that tax incentives could be theorically utilized in all brazilian preexisting taxes towards environmental goals. Keywords: Taxation. Enviroment. Police oriented taxes. Tax classification in Brazil. 1 INTRODUÇÃO A utilização de tributos como instrumentos econômicos de proteção ao meio ambiente é idéia recente. A discussão do tema ganha força na década de 90, quando países europeus adotam alguma forma de tributação ambiental. 336 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II No Brasil, em 1991, o Estado do Paraná adota ―ICMS Ecológico‖ e passa a utilizar a proteção ambiental como parâmetro à repartição de parte da receita de imposto sobre circulação de mercadorias e serviços do Estado aos municípios; a idéia atua no âmbito da repartição de receitas e não propriamente no campo das incidências tributárias, mas aviva a discussão sobre ―tributos verdes‖. Em 2001, surge, por intermédio da Emenda Constitucional nº 33/2001, a contribuição de intervenção no domínio econômico. Tal contribuição incide sobre importação e comercialização de combustíveis e pode ter alíquotas diferenciadas por produto ou uso, ademais parte da receita com ela arrecadada deverá ser destinada ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás. Não obstante haja exemplos, já em vigor, de tributos voltados à proteção ambiental, o tema da tributação ambiental no Brasil ainda se encontra mais no campo das propostas que no das realizações. Recentemente, em abril de 2009, nasce a Proposta de Emenda à Constituição nº 353/2009, que sugere uma ―Reforma Tributária Ambiental‖ para o Brasil, por meio da orientação ambiental dos tributos já existentes, e cuja implementação depende, ainda, da apreciação das casas legislativas. O objetivo desta pesquisa é estudar quais aspectos extrafiscais cada uma das espécies tributárias oferece para, posteriormente, identificar possibilidades de utilização de tais aspectos extrafiscais em uma tributação ambientalmente orientada. O estudo, portanto, busca responder a dois questionamentos consecutivos: 1- a espécie tributária em estudo - imposto, taxa, empréstimo compulsório, contribuição especial, contribuição de melhoria – oferece aspectos extrafiscais? Ou seja, é possível utilizá-la para induzir o comportamento dos contribuintes? ; 2 – Uma vez entendido que determinada espécie tributária se presta a influenciar o comportamento do contribuinte, quais seriam as possibilidades de sua utilização no âmbito da tributação ambientalmente orientada? A pesquisa adota, como teoria de base, a divisão quinquipartida dos tributos; a extrafiscalidade, enquanto atuação dos tributos sobre o comportamento dos contribuintes; e a tributação ambientalmente orientada, que consiste na adaptação dos tributos já existentes ao objetivo da proteção ambiental Pretende-se, assim, estudar, com base na doutrina nacional e na PEC 353/2009, e sem pretensão exaustiva, possibilidades de atuação dos tributos enquanto instrumentos econômicos indutores de condutas ambientalmente desejáveis. 337 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II 2 ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS O esforço doutrinário no estudo da classificação das espécies tributárias justifica-se por delinear limites para a cobrança dos tributos, que devem, por conseguinte, adequar-se ao texto constitucional, à legislação infraconstitucional, e também às regras de cada espécie tributária. Luciano Amaro2 esclarece que é possível encontrar na doutrina classificações das mais diversas, com diferentes graus de detalhamento. Informa que tais classificações abrangem, com nuances distintas, divisões que vão desde a bipartida até a quinquipartida. O presente estudo adota a divisão quinquipartida dos tributos, que entende serem espécies de tributos: os impostos, as taxas, as contribuições de melhoria, as contribuições especiais e os empréstimos compulsórios. 3 EXTRAFISCALIDADE O tributo pode ser utilizado para cumprir outros objetivos constitucionalmente eleitos, diversos da mera arrecadação de recursos para o Estado. Em tais casos, diz-se haver uma utilização extrafiscal dos tributos. Alfredo Augusto Becker3 leciona que a utilização extrafiscal do tributo é fruto da crescente transfiguração dos tributos com finalidade fiscal em instrumentos de intervenção estatal no meio social e na economia privada e que em cada tributo coexistem o finalismo fiscal e o extrafiscal. Ricardo Lobo Torres4, por sua vez, expõe que a extrafiscalidade possui dupla configuração; por um lado, se deixa absorver pela fiscalidade, como instrumento arrecadatório; e, por outro viés, não perde a característica de categoria autônoma de ingressos públicos a gerar prestações não tributárias. Assim, é importante destacar que há aspectos extrafiscais nos tributos, e não tributos fiscais ou extrafiscais como figuras apartadas. Quanto ao conceito da extrafiscalidade, não há um entendimento unívoco. Para Geraldo Ataliba5, a extrafiscalidade é a utilização de tributos como instrumentos não arrecadatórios estimulantes, indutores ou coibidores de comportamentos, que buscam a realização de outros valores constitucionalmente consagrados. O autor, portanto trata de uma extrafiscalidade em que sobressai o aspecto indutivo, voltado a influenciar as condutas dos contribuintes. 2 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 13. ed . São Paulo: Saraiva, 2007, p. 65-71. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 538. 4 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 8 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 167. 5 ATALIBA, Geraldo. IPTU: progressividade. Revista de Direito Público, São Paulo v. 23, n. 93, p. 237, jan./mar, 1990. 3 338 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Para Marcus de Freitas Gouvêa6, contudo, há extrafiscalidade na destinação da arrecadação tributária, quando o destino do produto arrecadado varia conforme finalidades não arrecadatórias constitucionalmente eleitas. Este estudo adota por ―extrafiscalidade‖ aquela em que sobressai o aspecto indutivo dos tributos, voltado a influir na conduta dos contribuintes. Fala, outrossim, em aspectos extrafiscais das espécies tributárias, pois, conforme dito acima, não há falar-se em tributos puramente fiscais ou extrafiscais, mas em tributos em que sobressaem aspectos fiscais ou extrafiscais. 4 TRIBUTAÇÃO AMBIENTALMENTE ORIENTADA A tributação ambientalmente orientada consiste em adaptar a carga tributária já existente a objetivos ambientais. Quando voltada a influir na conduta dos contribuintes a tributação ambientalmente orientada apresenta forte caráter extrafiscal. A tributação ambientalmente orientada não se confunde com a tributação ambiental em sentido restrito. A primeira adota a orientação ambiental dos tributos já existentes; a segunda consiste em criar ―novos tributos‖, que tenham por fato gerador situações degradadoras da natureza, tais como a emissão de gases poluidores da camada de ozônio, despejo de produtos químicos nos rios a degradação ambiental, é o que explicita José Marcos Domingues7. Este estudo trata apenas da tributação ambientalmente orientada, ou seja, da orientação dos tributos já existentes a objetivos ambientais. 4.1 Proposta de uma tributação ambientalmente orientada para o Brasil: PEC nº 353/2009 Em abril de 2009, nasce a proposta de modificar a Constituição para nela incluir previsão de tributos ambientalmente orientados. A proposta tem origem em um movimento social liderado por membros do Ministério Público Federal e dos Ministérios Públicos dos Estados, que atuam na Amazônia Legal, os quais lançaram um ―Manifesto em Defesa da Reforma Tributária Ambiental‖, que impulsionou a proposição da PEC nº 353/2009, pelo Deputado Federal Roberto Rocha, do Maranhão. A PEC nº 353/2009 propõe uma ―Reforma Tributária Ambiental‖ para o Brasil, sem a necessidade de criação de novos tributos ou do aumento da carga tributária. Aludida PEC 6 7 GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 173- 177. DOMINGUES, José Marcos. Direito tributário e meio ambiente. 3. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2007. p. 64-65 339 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II sugere, assim, típica política de tributação ambientalmente orientada, conforme anota Anselmo Cordeiro Lopes8: O Manifesto, não se sugeriu a criação de novos ―tributos verdes‖. (...) defendeu-se a introdução da finalidade ambiental nas entranhas dos tributos existentes hoje no sistema tributário brasileiro. (...) O grau de aumento ou diminuição do peso tributário deve ser proporcional aos benefícios ou prejuízos ambientais por eles gerados. No final das contas, porém, a carga tributária global deve permanecer a mesma. Cumpre lembrar, contudo, que a PEC 353/2009 ainda se encontra no campo propositivo e que será preciso acompanhar sua tramitação no Congresso Nacional para obter uma resposta definitiva sobre suas possibilidades de efetivação. 5 ASPECTOS EXTRAFISCAIS DAS ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS E SUA ORIENTAÇÃO AMBIENTAL Na presente pesquisa, o estudo dos aspectos extrafiscais dos tributos é organizado por espécie tributária. Assim, investiga-se se há, ou não, aspectos extrafiscais próprios da espécie tributária imposto para, posteriormente, pensar possibilidades de orientação ambiental de tais aspectos; o mesmo ocorre com relação a taxas, contribuições de melhoria, contribuições especiais e empréstimos compulsórios. De início, aborda-se o tema impostos. Os impostos oferecem amplo espaço à atuação extrafiscal. Neste estudo opta-se por destacar, enquanto aspectos extrafiscais dos impostos: a alteração de alíquotas pelo Poder Executivo; a progressividade e a seletividade. 5.1 Alteração de alíquotas de impostos por ato do Poder Executivo: uma reflexão sobre possível orientação ambiental da alíquota do imposto de importação A alíquota é, em regra, um fator definido em lei que, aplicado sobre uma dada base de cálculo, determina o montante do tributo a ser pago, conforme leciona Láudio Camargo Fabretti9. O artigo 153, §1º10 da Constituição Federal faculta ao Poder Executivo, desde que atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos de importação (II) e exportação (IE), do imposto sobre produtos industrializados (IPI) e do imposto sobre operações de operações de crédito, câmbio, seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários 8 LOPES, Anselmo Cordeiro. Em Defesa da Reforma Tributária Ambiental. Disponível em http://www.reformatributariaambiental.com.br. Acesso em 20 jul. 2009. 9 FABRETTI, Láudio Camargo. Contabilidade tributária. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.132-133. 10 Da Constituição Federal: Art. 153, § 1º - É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V. 340 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II (IOF). Ademais, o Poder Executivo poderá cobrar ―novo‖ tributo, com alíquota majorada, no mesmo exercício financeiro (dispensada a aplicação do art. 150, III, ―b‖, CF) em que instituir ou majorar as alíquotas do II, IE, IPI e IOF ou ainda antes de decorridos noventa dias (dispensada a aplicação do art. 150, III, ―c‖, CF), da vigência do ato normativo que instituiu o ―tributo majorado‖; ressalvado, contudo, o caso do IPI, ao qual se aplica o intervalo de noventa dias entre a instituição ou majoração do tributo e o início da cobrança. A flexibilidade do regramento constitucional no que toca à alteração de alíquotas dos impostos acima mencionados, todos eles de competência da União, justifica-se porque se está a tratar de uma medida extrafiscal. Referida alteração de alíquotas visa à intervenção estatal na atividade econômica e, por tal motivo, deve ser ágil e eficaz, conforme anota João Máximo Ricardo dos Santos11. Ocorre, em tal caso, a mitigação ao princípio da legalidade, previsto no artigo 150, I12 da Constituição Federal e se permite a instituição do tributo e a majoração de suas alíquotas sem obrigatoriedade de lei, respeitados apenas os limites legais. A PEC 353/2009 propõe que se acrescente o §5º- A ao artigo 153 da Constituição Federal, com a seguinte redação: § 5º-A Os impostos previstos neste artigo, sempre que possível, orientar-se-ão pela seletividade socioambiental e terão suas alíquotas fixadas em função da responsabilidade socioambiental das atividades desempenhadas pelo contribuinte Conforme se vê, a proposta do §5º- A, acima transcrito, é que os impostos de competência da União tenham suas alíquotas fixadas de acordo com a responsabilidade socioambiental das atividades desempenhadas pelo contribuinte. Com base nessa proposta, passa-se a pensar em possível orientação ambiental das alíquotas do imposto de importação. Para Maria de Fátima Ribeiro et al13 ―os imposto sobre o comércio exterior (importação e exportação) podem atuar como eficazes instrumentos de política ambiental, principalmente com possibilidade da alteração das alíquotas pelo Poder Executivo‖. No mesmo sentido, anota Marcos da Silva Costa14, que: o manejo da extrafiscalidade dos impostos de importação e exportação tem fundamentos constitucionais relevantes nas relações internas e também externas (de modo que) uma orientação sócio–ambiental e político–econômica desses dois tributos é um viés de ligação importantíssimo que poderá contribuir e muito, para amenizar o distanciamento entre desenvolvimento econômico e o meio ambiente 11 SANTOS, João Máximo Ricardo dos. A definição da alíquota do imposto de importação – um caso de poder discricionário. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo n. 82, p. 39-53 julho/ 2002. 12 Da Constituição Federal: Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. 13 RIBEIRO, Maria de Fátima et al. Tributação ambiental no desenvolvimento econômico: considerações sobre a função social do tributo Disponível em: http://www.idtl.com.br/artigos/252.pdf. Acesso em 15 out. 2009. 14 COSTA, Marcos da Silva Imposto de importação e exportação: uma nova perspectiva interpretativa de tributação ambiental Conteúdo Jurídico. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.25295. Acesso em 06 nov. 2009. 341 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II É interessante, então, pensar na orientação ambiental da alíquota do imposto de importação. Pode-se, por exemplo, exigir que o produto a ser importado respeite padrões ambientais, sob pena de fazer incidir sobre tal produto alíquota mais elevada do imposto de importação. Tais padrões ambientais poderiam ser aqueles fixados pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente-CONAMA, que, aliás, já são utilizados para fins de concessão de autorização à importação e desembaraço aduaneiro, conforme exemplifica a leitura conjunta dos artigos 1º e 10 da lei 9.449/199715, abaixo transcritos: Art. 1º Poderá ser concedida, nas condições fixadas em regulamento, com vigência até 31 de dezembro de 1999: (...) III - redução de até cinqüenta por cento do imposto de importação incidente sobre os produtos relacionados nas alíneas ―a‖ a ―c‖ do § 1º deste artigo. (Vide Lei 9.532, de 1997) § 1º O disposto nos incisos I e II aplica-se exclusivamente às empresas montadoras e aos fabricantes de: a) veículos automotores terrestres de passageiros e de uso misto de três rodas ou mais e jipes; b) caminhonetes, furgões, pick-ups e veículos automotores, de quatro rodas ou mais, para transporte de mercadorias de capacidade máxima de carga não superior a quatro toneladas; (...) Art. 10. A autorização de importação e o desembaraço aduaneiro dos produtos referidos nas alíneas ―a‖ a ―c‖ e ―g‖ do § 1º do art. 1º são condicionados à apresentação dos seguintes documentos, sem prejuízo das demais exigências legais e regulamentares: I - Certificado de Adequação à legislação nacional de trânsito; e II - Certificado de Adequação às normas ambientas contidas na Lei nº 8.723, de 28 de outubro de 1993. § 1º Os certificados de adequação de que tratam os incisos I e II serão expedidos, segundo, as normas emanadas do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) e do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Conforme se vê, a lei 9.449/1997 condiciona o desembaraço aduaneiro de certos veículos importados à apresentação de certificados de adequação às normas ambientais, a serem expedidos pelo CONAMA. Nada impede que se institua política tributária ambientalmente orientada em que a definição de alíquotas do imposto de importação leve em conta a adequação do produto importado a padrões de qualidade ambiental, adotados padrões determinados pelo CONAMA ou por órgão diverso. Contudo, é preciso ter cautela ao pensar na alteração ambientalmente orientada da alíquota do imposto de importação. Um fator a ser observado é a existência do acordo tarifário do Mercosul, que estabelece uma tarifa externa comum – TEC aos países integrantes do bloco, conforme expõe João Marcelo Morais16. Devido à existência da TEC, ―os países- membros deverão estabelecer uma mesma tarifa alfandegária para os produtos importados de nações não pertencentes ao 15 BRASIL. Lei n. 9.449, de 14 de março de 1997. Reduz o imposto de importação para os produtos que especifica e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9449.htm. Acesso em 04 nov. 2009. 16 MORAIS, João Marcelo. Alteração da alíquota do imposto de importação. Disponível em: http://www2.oabsp.org.br/asp/comissoes/comercio_exterior/artigos/alteracao_aliquota.pdf Acesso em: 14 out. 2009. 342 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Mercosul‖, conforme salienta Jayme de Mariz Maia17. Contudo, o Brasil poderá, em níveis limitados e por tempo determinado, manter uma lista de produtos que desborde da TEC, conforme anota João Marcelo Morais18. È preciso também atentar às regras internalizadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio – OMC. Em tal contexto, cabe transcrever a lição de Yulia Selivanova19 sobre a possibilidade de países, em busca da proteção ambiental, darem tratamento tributário favorável a produtos energéticos que utilizem tecnologias não poluentes; adotando, por outro lado, tratamento tributário desfavorável a produtos que utilizem tecnologias poluentes. A autora anota que do ponto de vista físico a ―energia poluente‖ seria, no âmbito do comércio internacional, produtos similar à ―energia limpa‖ e, assim, em tese, as regras internalizadas no âmbito da OMC não permitiriam que tais energias fossem tratadas, tributariamente, de modo distinto. Segundo a autora, houve, contudo, um caso que foi objeto de controvérsia no âmbito da OMC, em que a solução adotada foi favorável à diferenciação de produtos ―poluentes‖ e ―não poluentes‖, entendendo o painel que não se tratavam de produtos similares. O que se quer ressaltar é que eventual orientação ambiental do imposto de importação é um caminho a ser trilhado a partir de discussões no plano internacional e de consenso entre os países, com respeito às normas vigentes no plano regional e internacional. Não obstante, parece ser plenamente possível orientar ambientalmente o imposto de importação. 5.2 Progressividade dos impostos IPTU e do ITR e suas possibilidades de orientação ambiental, com destaque às propostas constantes na PEC 353/2009 Também relacionada às alíquotas e à influência destas na determinação do montante de tributo a ser pago, a progressividade pode ser utilizada para o alcance de objetivos extrafiscais. Imposto progressivo, como denota o próprio nome, é aquele que tem suas alíquotas majoradas, de modo progressivo, quando presentes determinadas circunstâncias. Para o objetivo desta pesquisa, cabe destacar a progressividade extrafiscal, que permite que as alíquotas do IPTU variem de acordo com o uso e a localização do imóvel. Dispõe o inciso II do artigo 156,§1º da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional 29/2000, o que segue: 17 MAIA, Jaime de Mariz . Economia internacional e comércio exterior. 12. Ed São Paulo: Atlas, 2008, p.300. MORAIS, João Marcelo. Alteração da alíquota do imposto de importação. Disponível em: http://www2.oabsp.org.br/asp/comissoes/comercio_exterior/artigos/alteracao_aliquota.pdf Acesso em: 14 out. 2009. 19 SELIVANOVA, Yulia Regras da OMC e Políticas de energia sustentável International Trade and Sustenable Development: Pontes. v. 3 n. 2 abril/ 2007. Disponível em: http://ictsd.org/i/news/12482/. Original em inglês, disponível em: http: //ictsd.org/downloads/2008/05/the20wto20and20energy.pdf. Acesso em: 05 nov. 2009. 18 343 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Art. 156. § 1º - Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o Art. 182, § 4º, inciso I, o imposto previsto no inciso I (IPTU) poderá: (...) II - ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel. Assim sendo, a progressividade do IPTU, em razão da localização e do uso do imóvel (art.156, §1º, II, CF) pode ser utilizada de modo extrafiscal para: a) incentivar o desenvolvimento e ocupação de bairros pouco habitados, b) desincentivar a permanência de indústrias no centro da cidade, c) promover o uso racional do solo em áreas problemáticas, como aquelas às voltas da cidade, é o que expõe Flávio de Azambuja Berti20. Partindo–se da possibilidade de alterar as alíquotas do IPTU em razão do uso e da localização do imóvel passa-se a refletir sobre a orientação ambiental do IPTU. Seria possível, por exemplo, instituir um IPTU cujas alíquotas fossem maiores quando as indústrias – e a poluição por elas gerada- estivessem localizadas nos centros das cidades, e menores quando as mesmas estivessem situadas em locais afastados do centro da cidade. Quanto à orientação ambiental do IPTU, importa destacar, ainda, a proposta constante na PEC 353/2009. O que se propõe é a alteração na redação do artigo 156, §1º, II, da Constituição Federal, que passaria a ser a seguinte: Art. 156. § 1º - Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o Art. 182, § 4º, inciso I, o imposto previsto no inciso I [IPTU] poderá: II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel e o respeito à função socioambiental da propriedade. Conforme se vê, a proposta é a inclusão do respeito à função socioambiental da propriedade como suporte à alteração de alíquotas do IPTU. Depreende-se do texto proposto na PEC 353/2009 a possibilidade de cobrar alíquotas menores de IPTU dos moradores (contribuintes) que adotassem práticas ambientalmente desejáveis – tais como: o reaproveitamento da água das chuvas, a utilização de aquecimento solar, a coleta adequada do lixo reciclável – e, pela via contrária, fazer incidir alíquotas majoradas sobre os imóveis dos contribuintes que não adotassem tais práticas. Entende-se, assim que é possível orientar ambientalmente a progressividade de alíquotas do IPTU, buscando incentivar condutas ambientalmente sustentáveis. Outro imposto que também apresenta alíquotas progressivas é o ITR. O artigo 153,§4º, inciso I, do texto constitucional trata da progressividade do ITR e da diferenciação de alíquotas do imposto, com a seguinte redação, dada pela Emenda Constitucional 42/2003: Art.153 - § 4º, I - O imposto previsto no inciso VI do caput (ITR): será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas; A PEC 353/2009 propõe a alteração da redação do artigo 153, §4, inciso I, para que nele passe a constar o que segue: 20 BERTI, Flávio de Azambuja. Impostos, extrafiscalidade e não- confisco. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2009, p. 138-141. 344 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Art. 153 (...) § 4º O imposto previsto no inciso VI do caput : I – será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a estimular o respeito à função socioambiental da propriedade; Vê-se, assim, que a orientação socioambiental do ITR, proposta pela PEC 353/2009, é medida que visa a deixar explícita a orientação do imposto territorial rural à proteção ambiental. A PEC 353/2009, assim, pretende privilegiar a função socioambiental da propriedade. Tal função socioambiental encontra amparo no texto constitucional, de onde se extrai que: 1 - ―a propriedade atenderá sua função social‖, conforme prevê o artigo 5º, XXIII, da Constituição Federal; 2- a função social da propriedade rural é cumprida quando atende, dentre outros critérios, o da ―utilização adequada dos recursos naturais‖, conforme preceitua o artigo 186, II, da Constituição Federal. 5.3 A seletividade do IPI e do ICMS sua possível orientação ambiental A Constituição Federal dispõe que o IPI será seletivo (art. 153, §3º, I) e que o ICMS poderá ser seletivo (art. 155, §2º, III). Aliomar Baleeiro 21 leciona que: ―a seletividade recomenda ao legislador que estabeleça alíquotas em razão inversa da imprescindibilidade das mercadorias de consumo generalizado‖. Com base no conceito dado por Aliomar Baleeiro, conclui-se que a seletividade consiste, como o próprio nome indica, em selecionar situações nas quais produtos ou mercadorias essenciais serão tratados com tributação mais branda, por razões sócio-econômicas. Os impostos, de tal modo, serão seletivos em função da essencialidade do produto ou da mercadoria tributada. É exatamente por atuar a seletividade sobre os preços dos produtos à disposição do consumidor, que se passa a pensar em sua orientação ambiental. Paulo Henrique do Amaral22 anota que é preciso pensar em uma ―essencialidade ambiental‖. Para o autor, um ambiente ecologicamente equilibrado é essencial à sadia qualidade de vida, razão pela qual seria necessário orientar ambientalmente os impostos seletivos - IPI e ICMS. A corroborar tal entendimento, Lise Vieira da Costa Tupiassu23 expõe que ―a seletividade deveria levar em conta também os princípios relativos às políticas ambientais (...) os impostos incidentes sobre mercadorias e consumo serviriam como tributação ambiental indireta‖. 21 BALEEIRO, Aliomar, atualizado por DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 347. 22 AMARAL, Paulo Henrique do. Direito tributário ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. 23 TUPIASSU, Lise Vieira da Costa. Tributação ambiental: a utilização de instrumentos econômicos e fiscais na implementação do direito ao meio ambiente sustentável. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 144. 345 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Cabe anotar que o IPI e o ICMS são impostos indiretos. Kyioshi Harada 24 Parte II sintetiza que os impostos indiretos são aqueles em que ―o ônus financeiro do tributo é transferido ao consumidor final, por meio do fenômeno da repercussão econômica‖. Em outras palavras, nos impostos indiretos é o consumidor final quem paga efetivamente os impostos incidentes sobre a cadeia de produção ou de circulação de mercadorias, produtos e serviços. Por tal motivo, a seletividade ambientalmente orientada não deve se desgarrar da seletividade baseada na essencialidade dos produtos. Um exemplo ajudará a elucidar a questão. Imagine-se que, adotada a seletividade ambientalmente orientada, a alíquota do ICMS incidente sobre um pacote de arroz da marca ―A‖ é de 0,1%, pois a empresa produtora do produto adota o mais rigoroso padrão de proteção ambiental. A alíquota do arroz da marca ―B‖, por sua vez, é de 0,8%, porque tal empresa polui mais. Em tal hipótese está presente a orientação ambiental da seletividade dos impostos. Contudo, caso todas as empresas produtoras de arroz adotassem um método produtivo poluente, ficaria mais difícil utilizar a seletividade ambientalmente orientada como forma de proteção ao meio ambiente, pois tal medida implicaria em um aumento exagerado no preço do pacote de arroz, um produto essencial à alimentação dos cidadãos brasileiros. Em conclusão, é preciso que a seletividade ambientalmente orientada e a seletividade sejam adotas de modo conjunto para que não haja prejuízo aos cidadãos. Cumpre observar, por fim, que o IPI e o ICMS são impostos que atuam sobre a produção e o consumo, respectivamente. De modo que a possível orientação ambiental da seletividade de tais impostos abre espaço para o incentivo à produção e à comercialização de produtos ―não–poluentes‖. 5.4 Aspectos extrafiscais das taxas e sua orientação ambiental por meio da adoção da progressividade de alíquotas Atendidas as condições legitimadoras da cobrança e as normas específicas da espécie tributária ―taxa‖, nada impede que as taxas sejam utilizadas com fins extrafiscais, basta que o alcance de finalidades sociais, econômicas, ambientais se faça possível. Ressalta Simone Sebastião Martins25 que não há impedimento legal para que as taxas, sobretudo aquelas exigidas em razão do exercício do poder de polícia estatal, sejam utilizadas como instrumentos jurídicos indutores de condutas. Lise Vieira Tupiassu26 expõe a possibilidade de utilizar alíquotas progressivas em razão do volume de lixo produzido pelo contribuinte, hipótese em que a taxa de coleta de lixo cumpriria 24 HARADA, Kyioshi. Direito financeiro e tributário. 17.ed São Paulo: Atlas, 2008, p. 300. SEBASTIÃO, Simone Martins. Tributo ambiental, extrafiscalidade e função promocional do direito. Curitiba: Juruá, 2006, p. 167 25 346 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II nítido papel extrafiscal. Não obstante, cabe questionar se a espécie tributária taxa comporta a progressividade de alíquotas. Um argumento contrário à utilização da progressividade nas taxas é o de que estas taxas devem ser uniformes e cobradas de acordo com o serviço público prestado ou posto à disposição do contribuinte, não havendo espaço para cobranças diferenciadas em razão da capacidade contributiva. Assim, posicionou-se, recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul27 quanto à taxa de coleta de lixo do Município de Porto Alegre. O tribunal entendeu que a taxa de coleta de lixo não poderia ser progressiva, diferenciada ou seletiva, mediante divisão da cidade em zonas fiscais, com rateio de seu custo segundo a capacidade contributiva dos contribuintes. Como argumento favorável à progressividade nas taxas, por outro lado, tem-se que o Supremo Tribunal Federal28 já proferiu decisão em que entendeu possível a presença da progressividade nas taxas. Além disso, o Código Tributário Nacional dispõe em seu artigo77, parágrafo único, que as taxas ―não poderão ser calculadas em função do capital das empresas‖, mas não faz vedação expressa à utilização da progressividade nas taxas. Entende-se que é possível a adoção da progressividade nas taxas, desde que tal progressividade esteja relacionada ao custo do serviço prestado ou a intensidade da atividade fiscalizadora, no caso do exercício do poder de polícia. Aliás, assim se posicionou o Tribunal Regional Federal da Quinta Região, ao julgar a questão da progressividade na cobrança da taxa 26 TUPIASSU, Lise Vieira da Costa Tributação ambiental: A utilização de instrumentos econômicos e fiscais na implementação do direito ao meio ambiente sustentável Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.141. 27 DIREITO TRIBUTÁRIO. COBRANÇA PROGRESSIVA, DIFERENCIADA OU SELETIVA DA TAXA DE COLETA DE LIXO (TCL) EM FUNÇÃO DA LOCALIZAÇÃO (DIVISÃO FISCAL) DO IMÓVEL URBANO, MESMO APÓS A E.C. Nº 29/2000: IMPOSSIBILIDADE. IPTU COBRADO MEDIANTE ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS, DIFERENCIADAS OU SELETIVAS, EM FUNÇÃO DA LOCALIZAÇÃO (DIVISÃO FISCAL) DO IMÓVEL URBANO, ATÉ A E.C. Nº 29/2000: INCONSTITUCIONALIDADE. (...) 2.Sendo a ¨taxa¨ a contraprestação pecuniária, compulsória por força de lei, de serviço público específico e divisível, e, como tal, cobrada de acordo com o uso efetivo ou potencial deste, independentemente da capacidade contributiva do seu usuário ou consumidor, não se afigura como juridicamente possível, - como o faz a Lei Complementar nº 361/95, do Município de Porto alegre -, mesmo após a E.C. nº 29/2000, cobrar Taxa de Coleta de Lixo (TCL) de forma progressiva, diferenciada ou seletiva, mediante divisão da cidade em zonas fiscais, com rateio do seu custo segundo a capacidade contributiva, o poder aquisitivo ou a riqueza dos usuários dos serviços que a geram. Em outras palavras, a unidade de medida da taxa deve ser a mesma para todos os usuários do mesmo serviço. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no julgamento da Apelação Cível nº 70012862397, Relator(a): Desembargador Roque Joaquim Volkweiss, Segunda Câmara, julgado em 14-12-2005, DJ em 25-12-2005) 28 TRIBUTÁRIO. TAXA JUDICIÁRIA. LEI PAULISTA N. 4.952/85, QUE ESTIPULOU, PARA O RESPECTIVO CALCULO, O PERCENTUAL DE 1% (UM POR CENTO) ATÉ O VALOR DE 1.500 SALARIOS MINIMOS, MAIS 0,5% (MEIO POR CENTO) SOBRE O QUE EXCEDER, CONSIDERADO, [...] Irresignação improcedente. No primeiro caso, por tratar-se de tributo instituído com observância do princípio da progressividade, considerado o valor econômico da causa; e, em segundo lugar, face a desnecessidade de lei autorizadora da correção monetária da base de calculo dos tributos, proclamada no art. 97, 2., do Código Tributário Nacional. Agravo regimental improvido. Supremo Tribunal Federal no julgamento do AI-AgR 170271, Relator(a): Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, julgado em 10/10/1995, DJ 01-12-1995 ) 347 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II de controle e fiscalização ambiental- TCFA. Ao entendimento do Tribunal29, em síntese, o aumento da intensidade da atividade de fiscalização, na medida em que aumenta o grau de poluição, justificaria que os contribuintes que poluem mais pagassem a taxa em valor majorado. 5.5 Aspectos extrafiscais das contribuições de melhoria e sua orientação ambiental O fato de a contribuição de melhoria ser tributo vinculado à valorização decorrente de obra pública traz divergências doutrinárias sobre sua utilização extrafiscal, é o que expõe Simone Martins Sebastião30. José Marcos Domingues31 entende que a contribuição de melhoria pode transformar-se num elemento incentivador de obras com finalidade extrafiscal ambiental. Ou seja, para o autor, é possível que a partir da construção de uma obra pública sejam privilegiados aspectos extrafiscais, tais como a educação ambiental. A lição do autor é a seguinte: A contribuição de melhoria é um tributo que, a par de seu potencial arrecadador (fiscal) pode transformar-se num elemento estimulador de grandes obras de profundo sentido ambiental (extrafiscal). Além do seu caráter utilitário, tais obras contribuem para a educação do povo, sendo que a ignorância tem íntima conexão com a destruição do meio ambiente. Paulo Henrique Amaral32, por sua vez, entende que os proprietários dos imóveis localizados nas proximidades de uma ―obra ambiental‖, tal qual um parque ecológico, podem ser obrigados a pagar contribuição de melhoria. A cobrança do tributo estaria justificada em razão da valorização imobiliária que a obra traria aos imóveis próximos ao parque, ainda que da obra também resulte benefício à coletividade freqüentadora do parque. O autor entende, ainda, que ―a construção de obras públicas de caráter ambiental (possibilitaria) o desenvolvimento de atividades físicas em ambientes arborizados, benefícios paisagísticos, além de contribuir para a educação das pessoas‖. 29 TRIIBUTÁRIO. TAXA DE CONTROLE E FISCALIZAÇÃO AMBIENTAL - TCFA. LEI Nº 10.165/2000. PODER DE POLÍCIA. TAXA. ATIVIDADES ESPECÍFICAS. SUJEITO PASSIVO IDENTIFICADO. RESPEITO AOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E NÃO PROGRESSIVIDADE. GRADAÇÃO DE ACORDO COM O POTENCIAL DE POLUIÇÃO E COM O GRAU DE UTILIZAÇÃO DE RECURSOS NATURAIS. [...] II. A cobrança da TFCA relaciona-se com a dimensão, com o potencial de poluição e com o grau de utilização de recursos naturais da empresa, justificando-se uma cobrança maior daquelas que demandem, em razão de sua extensão, uma maior intensidade da atividade fiscalizadora prestada pelo IBAMA. III. Apelação improvida. (Tribunal Regional Federal da Quinta Região Apelação em Mandado de Segurança 200381000148851, Desembargador Federal Ivan Lira de Carvalho,- Quarta Turma, 21/06/2005) 30 SEBASTIÃO, Simone Martins. Tributo ambiental, extrafiscalidade e função promocional do direito. Curitiba: Juruá, 2006, p. 168 31 DOMINGUES, José Marcos. Direito tributário e meio ambiente. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 96. 32 AMARAL, Paulo Henrique do. Direito tributário ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.179180. 348 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Vê-se, portanto, que há doutrina a considerar que a cobrança de contribuição de melhoria para a construção de obra de caráter ambiental poderia trazer como reflexo indireto a promoção da educação ambiental. No entanto, apesar de tais considerações sobre um possível efeito extrafiscal indireto da contribuição de melhoria, o entendimento deste estudo é de que as contribuições de melhoria não oferecem aspectos extrafiscais a serem ambientalmente orientados. Isso porque, no exemplo dado, a atuação extrafiscal do tributo, se existente, seria indireta e decorreria da aplicação de recursos da contribuição de melhoria em uma causa ambiental, e não propriamente da utilização do tributo como instrumento indutor ou inibidor de condutas dos contribuintes. Assim, entende-se que não há aspectos extrafiscais a serem ambientalmente orientados nas contribuições de melhoria. 5.6 Aspectos extrafiscais das contribuições especiais e sua orientação ambiental Dentre as contribuições especiais, as contribuições de intervenção no domínio econômico – CIDEs - oferecem amplo campo à extrafiscalidade. As CIDEs são dotadas de fortes aspectos extrafiscais, pois têm por finalidade intervir na atividade econômica. Cumpre, ademais, destacar que o texto constitucional não traça um quadro limitador e norteador da instituição e cobrança das CIDEs, de modo que há ampla margem para que a União institua CIDEs sobre os mais diversos fundamentos e bases de cálculo; pois a Constituição Federal exige apenas que referidas contribuições sejam ―instrumentos de atuação na atividade econômica‖ (art. 149, CF), conforme anota Daniel de Carvalho Guimarães33. Tendo por foco o aspecto extrafiscal motivacional nas CIDEs, cumpre lembrar o texto do inciso I do §4º do artigo 177 da Constituição Federal, que, ao tratar da CIDE - combustíveis dispõe que a alíquota da contribuição poderá ser diferenciada por produto ou uso e reduzida ou restabelecida por ato do Poder Executivo, conforme se lê abaixo: Art. 177 § 4º - A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos: I - a alíquota da contribuição poderá ser: a) diferenciada por produto ou uso; b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150, III, b; 33 GUIMARÃES, Daniel de Carvalho. As contribuições de intervenção no domínio econômico e o principio da proporcionalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 631, 31 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto. asp?id=6571> Acesso em: 25 set. 2009. 349 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Da leitura do dispositivo sobressai a possibilidade de induzir comportamentos por meio da alteração de alíquotas no âmbito das CIDEs. Cabe observar, ainda, que a CIDE poderá ter suas alíquotas reduzidas ou restabelecidas por ato do Executivo, com dispensa da lei e da anterioridade anual; preservada, contudo, a anterioridade mitigada, de 90 dias (art. 150, III, ―c‖, CF). Logo, há, nas CIDEs, aspectos extrafiscais que podem ser orientados ambientalmente. É possível, por exemplo, fazer incidir alíquotas maiores sobre combustíveis mais poluentes, e, por outro lado, alíquotas menores sobre combustíveis menos poluentes. Sobre o tema, Roberto Ferraz34 expõe que ―podem-se imaginar exemplos simples como a diferenciação de alíquotas entre combustíveis renováveis, menos poluentes, e (os combustíveis não renováveis), mais poluentes‖. Além da possibilidade de diferenciação de alíquotas no âmbito das CIDEs, é oportuno pensar em outras possibilidades de orientação ambiental das contribuições especiais com base na PEC 353/2009. A PEC 353/2209 propõe a inclusão do §4º- A no artigo 149 da Constituição Federal, o qual passaria a ter a seguinte redação: Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no Art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo. § 4º-A As contribuições previstas neste artigo, sempre que possível, orientar-seão pela seletividade socioambiental e terão suas alíquotas fixadas em função da responsabilidade socioambiental das atividades desempenhadas pelo contribuinte.‖ (NR) Conforme se vê, a PEC em comento sugere que as contribuições especiais obedeçam à seletividade socioambiental e à gradação de alíquotas de acordo com a responsabilidade socioambiental das atividades desempenhadas pelo contribuinte. A PEC 353/2009, portanto, propõe pensar em formas de orientar ambientalmente até mesmo as contribuições de interesse das categorias profissionais e as contribuições socais. Eventual orientação ambiental extrafiscal de tais contribuições parece encaixar-se melhor no campo da redução de alíquotas e das demais formas de benefícios fiscais. Veja-se. As contribuições de interesse das categorias profissionais e econômicas têm por característica distintiva a parafiscalidade, pois são voltadas à finalidade de arrecadar recursos para instituições outras que não o próprio Estado. Contudo, nada impede que quando da exigência de contribuição para um determinado conselho profissional se conceda benefício fiscal, de que é exemplo a redução de alíquotas, ao profissional (contribuinte) que, no exercício de sua atividade, adote uma atitude ambientalmente responsável. Desde que a destinação dos recursos de tais contribuições não 34 FERRAZ, Roberto. Tributação e meio ambiente. O green tax no Brasil. Revista RT de Direito Ambiental. São Paulo. ano 8 n. 31, p 167-172 julho/ setembro, 2003. 350 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II seja desviada, a medida é plenamente possível, até mesmo porque a proteção ao meio ambiente é dever do Poder Público e da coletividade, conforme preceitua o artigo 22535 da Constituição Federal. No que toca às contribuições à Seguridade Social, também é possível que ocorra redução de alíquotas de acordo com a responsabilidade socioambiental das atividades desempenhadas pelo contribuinte. O tema, contudo, exige cautela, pois se está a tratar de recursos destinados a assegurar benefícios específicos à população e que não podem ser desvinculados de tal finalidade. Pense-se no caso da Previdência Social, será preciso considerar questões como a do equilíbrio financeiro e atuarial. Além disso, no âmbito previdenciário, a Constituição Federal, em seu artigo 168, XI, prevê que os recursos provenientes das contribuições sociais incidentes sobre folhas de salário e demais rendimentos dos empregadores e sobre os salários de contribuição dos trabalhadores devem destinar-se obrigatoriamente ao pagamento dos benefícios previdenciários. O que se pretende trazer à reflexão é que é preciso ter cuidado redobrado ao pensar na orientação ambiental de contribuições destinadas à Seguridade Social e que haverá ainda mais restrições a serem consideradas. Não se descarta, contudo, a possibilidade de orientar ambientalmente as contribuições sociais. Cleucio Santos Nunes36 entende que é possível adotar benefícios fiscais, para o caso das contribuições sociais. Para o autor ―a indústria menos poluidora poderia receber deduções no pagamento das contribuições patronais‖. O autor admite, no entanto, que os critérios para o benefício deveriam vir instituídos em lei e que a diminuição de alíquotas ou redução da base de cálculo deveria basear-se em cálculos atuariais. Cabe anotar, ainda, que a Constituição Federal prevê que as contribuições sociais, pagas pelo empregador ou entidade equiparada, poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas em razão do porte da empresa, da utilização intensiva de mão-de-obra ou da condição estrutural do mercado de trabalho (art. 195, §9º37). Assim, adotada a proposta da PEC 353/2009, que propõe a orientação ambiental das contribuições especiais, nada impede que as contribuições sociais incidentes sobre receita, lucro, faturamento das empresas adotem alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas em razão 35 Da Constituição Federal: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 36 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 165. 37 Da Constituição Federal: Art. 195 § 9º - As contribuições sociais previstas no inciso I do caput deste artigo (incidentes sobre folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título a pessoa física prestadora de serviço, ainda que sem vínculo empregatício; receita ou faturamento; lucro) poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mãodeobra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho. 351 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II da responsabilidade socioambiental dos contribuintes, desde que respeitado o necessário cuidado redobrado quando se está a tratar de recursos destinados à Seguridade Social. 5.7 Aspectos extrafiscais dos empréstimos compulsórios e sua orientação ambiental Não há aspectos extrafiscais a destacar na espécie tributária empréstimo compulsório. O empréstimo compulsório é verdadeiro ―empréstimo forçado‖, previsto no artigo 14838 da Constituição Federal, que visa a atender necessidades extraordinárias de recursos nas estritas hipóteses de calamidade pública, guerra externa ou sua iminência, ou de investimento público de caráter urgente e relevante interesse nacional; possui, assim, forte caráter fiscal. 5.8 Benefícios fiscais e orientação ambiental Ao tratar de possibilidades de alteração e diferenciação de alíquotas de acordo com o comportamento socioambiental dos contribuintes e, até mesmo, da redução de alíquotas e da concessão de benefícios fiscais no âmbito das contribuições especiais este estudo já tratou da concessão de benefícios fiscais. O presente tópico traz à colação entendimentos doutrinários sobre possibilidades de orientação ambiental de benefícios fiscais. Há situações em que o Estado aumenta a carga tributária, para inibir determinadas condutas ou, pela via contrária, diminui a carga tributária, com o objetivo de incentivar condutas. Explicite-se, por oportuno, que quando o Estado diminui a carga tributária ou até mesmo a suprime está a conceder benefícios fiscais, situação que se justifica apenas quando haja interesses públicos extrafiscais superiores ao da própria tributação, conforme explicita Leonardo Gonçalves Muraro39; pois, do contrário, não deve o Estado renunciar à receita tributária. Os benefícios fiscais ambientalmente orientados visam a incentivar nos contribuintes práticas ambientalmente sustentáveis. Paulo Henrique do Amaral40 defende a adoção de políticas tributárias de concessão de incentivos fiscais com o intuito de privilegiar a proteção ambiental, o que permitiria, por 38 Da Constituição Federal: Art. 148 - A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimo compulsório: I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; II no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no Art. 150, III, (b). 39 MURARO, Leonardo Gonçalves. Benefícios fiscais, natureza, características e sua aplicação na defesa do meio ambiente. Revista IOB de estudos tributários. São Paulo n. 43 p. 30, mai/jun 2005. 40 AMARAL, Paulo Henrique. Direito tributário ambiental. São Paulo, Editora dos Tribunais, 2007, p. 197. 352 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II exemplo, incentivar empresas a investirem em tecnologias ―limpas‖, necessárias à diminuição dos níveis de poluição. Na mesma linha de pensamento, Cleucio Santos Nunes41 expõe que instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, que se empenhassem em programas de orientação, educação, denúncia e combate a danos ao meio ambiente de resultados efetivos poderiam ser agraciadas com a diminuição da carga tributária. É de mesmo entendimento a lição de Terense Dornelles Trennepohl42, ao defender que ―ao particular deve ser facultada a opção do maior ou menor encargo (tributário), sendo que este último deve implicar em condições ambientais mais favoráveis à coletividade‖. Lise Vieira da Costa Tupiassu43 expõe prós e contras à adoção de benefícios fiscais em matéria ambiental. Dentre os pontos positivos, estariam o caráter incentivador da preservação ambiental, com a participação do contribuinte na busca por práticas ambientalmente desejadas e a adaptabilidade dos estímulos fiscais carga tributária já existente, sem implicar em altos custos administrativos. Dentre os pontos negativos, por outro lado, ter-se-ia a possibilidade do desvio de finalidade dos benefícios fiscais e as possíveis distorções comerciais que a concessão de benefícios fiscais poderia suscitar. Sobre a questão do desvio da finalidade dos benefícios fiscais, leciona Terense Dornelles Trennepohl44, ao tratar dos benefícios fiscais que operam sob a forma de apoios financeiros estatais a determinadas atividades, anota que ―a maior dificuldade para o implemento dos benefícios fiscais no âmbito da despesa pública reside na fiscalização do uso dos recursos públicos destinados aos fins a que se propõem‖. Em conclusão, apesar de haver vantagens e desvantagens a serem analisadas quando do planejamento de políticas fiscais concessivas de benefícios fiscais ambientais, é plenamente possível reduzir a carga tributária paga pelo sujeito passivo que preserva o meio ambiente, ou fazer incidir menos tributos sobre os produtos e serviços ambientalmente sustentáveis. Em tal contexto, os benefícios fiscais estariam a cumprir função extrafiscal ambiental. Cleucio Nunes45 anota que ―a política de incentivos fiscais cabe em todas as modalidades de tributos. Terense Dornelles Trennepohl46, por sua vez, segue o mesmo trilho e expõe que ―pode-se concluir, ainda que parcialmente, que a via dos incentivos é cabível, sem necessidade de maiores digressões em todas as espécies tributárias‖. 41 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 165. TRENNEPOHL, Terense Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008, p.111. 43 TUPIASSU, Lise Vieira da Costa. Tributação ambiental: A utilização de instrumentos econômicos e fiscais na implementação do direito ao meio ambiente sustentável. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 156-158. 44 TRENNEPOHL, Terense Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008, p.111. 45 NUNES, Cleucio Santos. Direito tributário e meio ambiente. São Paulo: Dialética, 2005, p. 163. 46 TRENNEPOHL, Terense Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008 p.95. 42 353 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI 6. Parte II CONCLUSÃO Este estudo teve por objetivo principal identificar possibilidades de utilização de aspectos extrafiscais dos tributos, e, especificamente, de cada espécie tributária, como instrumento de proteção ambiental. Partiu-se da hipótese de que impostos, taxas e contribuições especiais seriam as espécies tributárias que abririam maior espaço à atuação ambientalmente orientada dos tributos. A hipótese da pesquisa foi confirmada. A pesquisa em fontes secundárias mostrou que as espécies tributárias que oferecem maiores possibilidades de orientação ambiental de seus aspectos extrafiscais são os impostos; as taxas; e as contribuições especiais, com destaque às contribuições de intervenção no domínio econômico. Dentre as possibilidades de orientação ambiental dos aspectos extrafiscais dos impostos, muitas delas baseadas no texto da PEC 353/2009, destacam-se: a) o tomar como critério à fixação de alíquotas do imposto de importação a adequação do produto importado a padrões de qualidade ambiental, a serem definidos, por exemplo, pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), com a ressalva de que sejam respeitadas as normas internalizadas no âmbito da OMC e do Mercosul, bem como os demais acordos e regras internacionais; b) a adoção de alíquotas diferenciadas de acordo com as práticas de proteção ambiental adotadas pelo contribuinte do IPTU morador de determinado imóvel (PEC 353/2009); c) a adoção de uma seletividade ambientalmente orientada para o IPI e o ICMS de modo a incentivar a comercialização e a produção de produtos e serviços advindos de processos produtivos ―ambientalmente desejáveis‖; Quanto às possibilidades de orientação ambiental das contribuições especiais, merecem destaque: a) a alteração das alíquotas das CIDES de acordo com a responsabilidade socioambiental das atividades desempenhadas pelo contribuinte, em consonância como disposto no artigo 170, inciso VI, da Constituição Federal que dispõe ser princípio da ordem econômica a defesa do meio ambiente. b) a adoção de alíquotas diferenciadas no âmbito das contribuições incidentes sobre receita, faturamento, lucro, de acordo com a responsabilidade ambiental das empresas contribuintes. Cabe destacar, ainda, possibilidades de orientação ambiental de aspectos extrafiscais das taxas, principalmente quando adotada a progressividade de alíquotas. 354 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II Por outro lado, os empréstimos compulsórios e as contribuições de melhoria não oferecem espaço à atuação extrafiscal ambiental. As hipóteses de cobrança do empréstimo compulsório já estão delineadas na Constituição e sua finalidade principal é a de ser um ―empréstimo forçado‖ para situações excepcionais em que a União necessita arrecadar recursos. No que toca à contribuição de melhoria, sua cobrança está atrelada à valorização do imóvel do contribuinte em decorrência da realização de obra pública; sua eventual orientação ambiental estaria voltada a financiar obras públicas ambientais, e não a induzir condutas. Assim, cabe considerar que, de fato, as espécies tributárias que oferecem maior espaço à extrafiscalidade ambientalmente orientada, voltada a influir na conduta dos contribuintes, são os impostos, as taxas e as contribuições especiais, conforme pensado ao início do estudo. Por fim, importa destacar que os benefícios fiscais podem atuar como importantes instrumentos extrafiscais de proteção ambiental que podem ser adotados, em tese, em qualquer uma das espécies tributárias. Cumpre registrar, ainda, que o tema da tributação ambientalmente orientada é amplo e abre caminho a novas pesquisas sobre temas não abordados neste estudo, tais como: a) os impactos da tributação ambientalmente orientada na economia; b) a definição da pessoa/instituição responsável por mensurar o grau de degradação ambiental causada pelo contribuinte ou, por outra via, fiscalizar a redução da emissão de poluentes; c) a segurança jurídica em matéria tributária e a possibilidade de deixar a cargo dos órgãos ambientais a definição dos graus de poluição, que vincularão as alíquotas aplicáveis aos ―tributos verdes‖. Resta, assim, à sociedade e ao Poder Público o desafio de aprofundar os estudos da viabilidade da adoção de tais propostas dentro do contexto normativo, operacional e social para que os tributos possam ser utilizados como instrumentos de proteção ambiental. REFERÊNCIAS AMARAL, Paulo Henrique do. Direito tributário ambiental. 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O princípio da função socioambiental da propriedade, a titularidade, a usufruição e os limites à indenização dos recursos ambientais. 4. A indenização pelo valor ambiental da propriedade no Código Ambiental de Santa Catarina. 5. Conclusão. Referências. RESUMO O artigo 120, § 4º da Lei Estadual n.º 14675, de 13 de abril de 2009, determina que, em imóveis rurais que tenham regularizado as respectivas reservas legais e que sejam desapropriados, o remanescente florestal e outras formas de vegetação nativa devem ser valorados pelo seu valor econômico e ambiental. A inovação remete a uma série de recortes possíveis que vão desde a conveniência de serem estabelecidos valores monetários para recursos e processos ambientais – dado serem difusos – até a aspectos relativos à titularidade destes bens, a partir de discussões sobre a substituição do paradigma privatista ilimitado de exploração por um regime de exploração limitada da propriedade em respeito a interesses sociais e ambientais de maior relevância. Neste trabalho pretende-se, em um primeiro momento, apresentar as diversas formas de mensuração monetária dos recursos ambientais em função de seus diversos valores, através de métodos estimativos estruturados a partir de aportes teóricos da economia do meio ambiente, para, posteriormente, problematizar acerca da dominialidade, da usufruição e dos limites à indenização destes recursos a particulares, sem se afastar de aspectos formais envolvidos ao fato de um Estado Federado legislar sobre desapropriação. A pesquisa caracteriza-se como bibliográfica e está baseada no método dedutivo. Conclui-se que, apesar de limitados, ante a sua ineficácia para o estabelecimento de valores ao meio ambiente como bem de uso comum do povo, os métodos de valoração dos recursos ambientais são relevantes para a internalização das externalidades negativas que 1 Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Comunitária Regional de Chapecó - UNOCHAPECÓ. É professor da Universidade Comunitária Regional de Chapecó – Unochapecó. Email: [email protected]. 358 Direito de Propriedade e Meio Ambiente: Novos desafios para o século XXI Parte II sequer são consideradas nos dias atuais. Por outro lado, verifica-se que, em casos de desapropriação por utilidade pública, os bens ambientais e os processos ecológicos, por serem responsáveis pela manutenção da vida no planeta, não são passíveis de ingressarem no cômputo das