os primeiros casos de poirot

Transcrição

os primeiros casos de poirot
Agatha Christie
Os primeiros casos
de Poirot
Tradução de Alessandro Zir
www.lpm.com.br
L&PM POCKET
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Sumário
O caso do Baile da Vitória.............................................7
A aventura da cozinheira de Clapham.........................27
O mistério da Cornualha.............................................45
A aventura de Johnnie Waverly....................................63
A pista dupla...............................................................80
O rei de paus...............................................................93
A maldição dos Lemesurier........................................113
A mina perdida..........................................................129
O Expresso de Plymouth...........................................139
A caixa de chocolates.................................................158
Os planos do submarino............................................174
O apartamento do terceiro andar...............................192
O duplo delito..........................................................214
O mistério de Market Basing.....................................233
A casa de marimbondos.............................................245
A dama em apuros.....................................................257
Problema a bordo......................................................270
Que lindo é o seu jardim!..........................................292
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O caso do Baile da Vitória
I
Foi por um mero acaso que meu amigo Hercule
Poirot, antigo chefe da polícia belga, acabou envolvendose com o caso Styles. Mas o êxito trouxe-lhe um grande
reconhecimento, e ele decidiu dedicar-se à investigação
de crimes de difícil solução. Voltei a morar com ele
em Londres, depois de eu ter sido ferido, durante a
Primeira Guerra Mundial, na batalha do Some. Tendo
acompanhado de perto muitas de suas investigações,
pedem-me agora que selecione as mais interessantes e
escreva a respeito. Ao fazer isso, penso que o melhor é
começar por uma estranha confusão que atraiu grande
atenção do público na época. Refiro-me ao caso do Baile
da Vitória.
Seus aspectos sensacionais, a fama das pessoas
envolvidas e a maneira como o escândalo foi explorado
pelos jornais fazem desse caso uma cause célèbre. Nada
mais justo que também fosse divulgado ao público o
papel de Poirot na sua solução, embora ela não tenha
envolvido o uso de métodos investigativos fora do comum, típicos de outros casos mais complicados.
Tudo começou numa agradável manhã de primavera. Estávamos nos aposentos de Poirot. Meu amigo,
elegante e bem-vestido como sempre, com a cabeça
inclinada para o lado, experimentava com cuidado uma
nova pomada nos bigodes. Seu amor pela ordem e pelo
método incluía também certa vaidade, que não lhe era
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de todo prejudicial. O Daily Newsmonger que eu estava
lendo caiu no chão, e a voz de Poirot despertou-me do
estado absorto em que eu me encontrava.
– O que o preocupa tanto, mon ami?
– Para falar a verdade – respondi –, eu estava pensando sobre o caso inexplicável do Baile da Vitória. Os
jornais só falam nisso.
– É mesmo?
– Quanto mais se lê sobre ele, mais misterioso
parece! – disse eu, empolgado. – Quem matou lorde
Cronshaw? E a morte de Coco Courtenay, na mesma
noite, seria mera coincidência? Um acidente? Talvez ela
tenha tido uma overdose de cocaína de propósito...
Fiz uma pausa, depois acrescentei, melodramático:
– São perguntas que não me saem da cabeça!
Para minha frustração, Poirot não vibrou com
a história. Ele voltou a se olhar no espelho, e apenas
murmurou:
– Essa nova pomada é mesmo uma maravilha para
os bigodes!
Subitamente, entretanto, ele lançou-me um olhar
de cumplicidade, acrescentando em seguida:
– E que respostas você tem dado às suas questões?
Antes que eu pudesse responder, a porta foi aberta
e nossa senhoria anunciou o inspetor Japp.
O inspetor da Scotland Yard era um velho amigo
nosso, e o recebemos animados.
– Meu velho Japp! – exclamou Poirot. – O que o
traz aqui?
– Bem, monsieur Poirot – iniciou Japp, sentando-se
e me cumprimentando com a cabeça –, estou envolvido
num caso que poderia lhe interessar. Vim aqui saber se
você não quer pôr as mãos na massa.
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Poirot confiava nas habilidades de Japp, embora
lamentasse a sua falta de método. De minha parte, eu
considerava que o que o inspetor tinha de mais admirável era o seu jeito astucioso de obter favores como se
dispensasse honrarias!
– Trata-se do caso do Baile da Vitória – disse Japp,
dando uma piscadinha. – Tenho certeza de que você
gostaria de participar das investigações.
Poirot sorriu para mim.
– Meu amigo Hastings ficaria encantado, sem
dúvida. O assunto não sai da cabeça dele, n’est-ce pas,
mon ami?
– Bem, e você também não deve continuar imune
por muito tempo. Estar por dentro de um caso como esse
não é para qualquer um. Dos fatos principais suponho
que você já esteja a par, correto?
– Conheço apenas a versão dos jornais, que me
parece exagerada e confusa. Conte-me você mesmo a
história toda.
Japp ajeitou-se confortavelmente na poltrona e
começou:
– Como todos sabemos, quinta passada foi a noite
do grande Baile da Vitória. Hoje, qualquer arrasta-pé
de terceira categoria pode ser chamado de baile, mas
esse era o legítimo, e aconteceu no Colossus Hall, onde
estava presente toda a sociedade londrina, incluindo
lorde Cronshaw e seus amigos.
– E quem é, afinal, esse cavalheiro? – interrompeu
Poirot. – O que se sabe sobre ele?
– Visconde de Cronshaw, o quinto da sua linhagem.
Homem de 25 anos, rico, solteiro, apaixonado por teatro.
Havia rumores de que ele estava envolvido com a srta.
Courtenay do Albany Theatre, uma jovem fascinante,
conhecida pelos amigos como Coco.
– Ótimo! Continuez...
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– Lorde Cronshaw estava acompanhado de mais
cinco pessoas: seu tio, o honorável Eustace Beltane, uma
jovem viúva americana, a sra. Mallaby, um jovem ator,
Chris Davidson, sua esposa e, como não podia deixar
de ser, a srta. Coco Courtenay. Era um baile à fantasia
e o grupo de Cronshaw representava a antiga Comédia
Italiana ou algo do gênero.
– Commedia dell’Arte – murmurou Poirot.
– Isso mesmo. As fantasias eram cópias de um conjunto de estatuetas de porcelana da coleção de Eustace
Beltane. Lorde Cronshaw era Arlequim. Beltane era o
bufão Punch, e a sra. Mallaby, que fazia par com ele,
Pulcinella. Os Davidson eram Pierrot e Pierette. A srta.
Courtenay, obviamente, Colombina. Logo no início da
noite, já era visível que algo não ia bem. Lorde Cronshaw
estava mal-humorado e agia de maneira estranha. Quando o grupo se reuniu para jantar na sala reservada por
ele, o silêncio da srta. Courtenay chamou a atenção de
todos. Dava para ver que ela tinha chorado e parecia
estar à beira de um ataque de nervos. O clima da refeição
foi constrangedor, e assim que todos deixaram a sala, a
jovem virou-se para Chris Davidson e pediu-lhe que a
levasse para casa, pois estava “cansada daquele baile”. O
jovem ator hesitou, olhou para lorde Cronshaw e acabou
levando os dois de volta para o reservado.
“Mas ele não conseguiu reconciliá-los e acabou
chamando um táxi no qual levou a srta. Courtenay, agora
chorando, para o apartamento dela. No caminho, ela não
chegou a contar-lhe o motivo pelo qual estava naquele
estado, limitando-se a repetir que “o velho Cronch” não
perdia por esperar e que ele iria “se arrepender!” Essa é a
única pista que temos de que a morte dela pode não ter
sido acidental. E é uma pista que não nos indica muita
coisa. Quando Davidson finalmente conseguiu acalmar
a srta. Courtenay, era muito tarde para retornar ao
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Colossus Hall e por isso ele foi direto para o seu apartamento em Chelsea. Logo em seguida, chegou ali também
a sua esposa, trazendo a notícia da terrível tragédia que
tinha ocorrido após a partida dele.
“Parece que o mau humor de lorde Cronshaw só
piorara ao longo do baile. Ele se manteve afastado dos
amigos, que mal o viram durante o resto da noite. Por
volta da uma e meia da madrugada, um pouco antes da
dança, quando todos tirariam as máscaras, o capitão
Digby, um amigo do exército que conhecia a fantasia de
Cronshaw, viu-o num camarote, olhando para o salão.
‘Olá, Cronch!’, ele chamou. ‘Seja mais sociável, desça e
venha se divertir com a gente! O que você está fazendo
aí, amuado como uma velha? Vão tocar aquele swing
animado.’ ‘Está certo!’, respondeu Cronshaw. ‘Espere
por mim aí, vai ser difícil achá-lo no meio da multidão.’
Enquanto falava, virou-se para sair do camarote.
“O capitão Digby, que estava acompanhado da sra.
Davidson, esperou. Minutos se passaram sem que lorde
Cronshaw aparecesse. Digby começou a ficar impaciente,
e exclamou: ‘Será que ele pensa que vamos ficar a noite
toda esperando?’. Naquele momento, a sra. Mallaby se
juntou a eles. Explicaram a ela o que estava acontecendo.
A jovem viúva disse sem pestanejar: ‘Ele está parecendo
um bicho acuado. É melhor irmos atrás dele’. A busca começou, mas sem resultado, até que ocorreu à sra. Mallaby
que ele poderia estar na sala em que tinham jantado uma
hora antes. Foram até lá. Não puderam acreditar no que
viram! Arlequim estava mesmo lá, mas estirado no chão
e com uma faca de mesa enfiada no peito!”
Japp fez uma pausa. Balançando afirmativamente
a cabeça, Poirot disse, entusiasmado:
– Une belle affaire! E o assassino não deixou pistas?
Seria estranho se deixasse!
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– Bem – continuou o inspetor –, o resto você já
sabe. A tragédia foi dupla. No dia seguinte, as manchetes
de todos os jornais anunciavam também o assassinato
da srta. Courtenay, a atriz que todos conheciam. Ela foi
encontrada morta na própria cama, e teria sido a causa da
morte uma overdose de cocaína. Acidente ou suicídio? A
criada, ao ser interrogada, admitiu que a srta. Courtenay
era usuária da droga, e o veredito foi o de morte acidental. Mas não podemos descartar a hipótese de suicídio. A
morte dela complica as coisas para nós, já que ficamos
sem pistas quanto ao motivo da briga daquela noite.
Uma caixinha esmaltada foi encontrada com o morto.
Na tampa, tinha o nome Coco escrito com brilhantes, e
dentro, cocaína. A criada da srta. Courtenay reconheceu
o objeto de sua patroa e disse que ela o carregava sempre
consigo, já que não conseguia mais ficar sem a droga.
– Lorde Cronshaw também era viciado?
– Não, não. Pelo contrário. Ele era contra qualquer
tipo de droga.
Poirot balançou a cabeça, pensativo.
– Mas, se a caixinha estava com ele, então ele sabia
que a srta. Courtenay era usuária. Isso é estranho, você
não acha, Japp?
– Hum... talvez – respondeu Japp, sem prestar
muita atenção.
Eu sorri.
– Bem – disse Japp –, esse é o caso. O que você
pensa a respeito?
– Você não descobriu mais nada além do que me
contou?
– Sim, isso aqui – respondeu Japp, tirando do
bolso um pequeno objeto, que entregou a Poirot. Era
um pomponzinho verde-esmeralda de seda, com uns
fiapos dependurados, como se tivesse sido arrancado
com violência.
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