Agatha Christie nasceu Agatha May Clarissa Miller, em Torquay, na

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Agatha Christie nasceu Agatha May Clarissa Miller, em Torquay, na
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Agatha Christie nasceu Agatha May Clarissa Miller, em Torquay,
na Grã-Bretanha, em 1890.
Durante a I Guerra Mundial, prestou serviço voluntário num hospital, primeiro
como enfermeira e depois como funcionária da farmácia e do dispensário.
Esta experiência revelar-se-ia fundamental, não só para o conhecimento dos
venenos e preparados que figurariam em muitos dos seus livros,
mas também para a própria concepção da sua carreira na escrita.
Com o seu segundo marido, o arqueólogo Max Mallowan, Agatha viajaria um
pouco por todo o mundo, participando activamente nas suas escavações
arqueológicas, nunca abandonando contudo a escrita, nem deixando passar em
claro a magnífica fonte de conhecimentos e inspiração que estas representavam.
Autora de cerca de 300 obras (entre romances de mistério, poesia, peças para rádio
e teatro, contos, documentários, uma autobiografia e seis romances publicados
sob o pseudónimo de Mary Westmacott), viu o seu talento e o seu papel na
literatura e nas artes oficialmente reconhecidos em 1956, ano em que foi
distinguida com o título de Commander of the British Empire. Em 1971, a rainha
Isabel II consagrou-a com o título de Dame of the British Empire.
Deixando para trás um legado universal celebrado em mais de cem línguas, a
Rainha do Crime, ou Duquesa da Morte (como ela preferia ser apelidada), morreu
em 12 de Janeiro de 1976.
Em 2000, a 31st Bouchercon World Mystery Convention galardoou Agatha Christie
com dois prémios: ela foi considerada a Melhor Escritora de Livros Policiais
do século XX e os livros protagonizados por Hercule Poirot
a Melhor Série Policial do mesmo século.
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AGATHA CHRISTIE
Um Crime no
Expresso do Oriente
Tradução
Alberto Gomes
Revisão da Tradução
Carolina Vasconcelos
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Título original:
MURDER ON THE ORIENT EXPRESS
AGATHA CHRISTIE® POIROT® Copyright
© 2010 Agatha Christie Limited (a Chorion company).
All rights reserved. Murder on the Orient Express foi
originalmente publicado em 1934
Capa: © Ideias com Peso/Luís Alegre
Fotografia da autora: Bettmann/Corbis/AtlânticoPress
Paginação: Maria da Graça Samagaio
Impressão e acabamentos: EIGAL
1.ª edição: Julho de 2002
8.ª edição: Outubro de 2010
Depósito legal n.º 315627/10
ISBN 978-989-23-1034-3
Reservados todos os direitos
Edições ASA II, S.A.
Uma editora do Grupo Leya
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Para M.E.L.M. Arpachya, 1933
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ÍNDICE
PARTE I Os Factos
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
Um passageiro importante no Expresso Tauro . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O Hotel Tokatlian . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Poirot recusa um caso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um grito na noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O crime . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma mulher? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O corpo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O caso do rapto Armstrong . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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PARTE II Depoimentos
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
O depoimento do revisor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento do secretário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento do criado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento da senhora americana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento da senhora sueca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento da princesa russa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento do conde e da condessa Andrenyi . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento do coronel Arbuthnot . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento de Mr. Hardman . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento do italiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento de Miss Debenham . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O depoimento da dama de companhia alemã . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Síntese dos depoimentos dos passageiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A prova da arma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A prova das bagagens dos passageiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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PARTE III Hercule Poirot Senta-se e Pensa
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
Quem de entre eles? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Dez perguntas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Certos aspectos sugestivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A mancha de gordura num passaporte húngaro . . . . . . . . . . . . . . . .
O nome de baptismo da Princesa Dragomiroff . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um segundo interrogatório ao coronel Arbuthnot . . . . . . . . . . . . . .
A identidade de Mary Debenham . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Mais revelações surpreendentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Poirot propõe duas soluções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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PARTE I
OS FACTOS
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CAPÍTULO I
UM PASSAGEIRO IMPORTANTE NO EXPRESSO TAURO
Eram cinco horas de uma manhã de Inverno na Síria. O comboio, grandiosamente designado nos guias ferroviários como Expresso Tauro, estendia-se ao longo da plataforma de Alepo. Consistia numa carruagem-cozinha e
restaurante, numa carruagem-cama e em duas carruagens para os passageiros
locais.
Um jovem tenente francês de uniforme resplendente estava junto do
estribo que dava para a carruagem-cama a conversar com um homenzinho
magro agasalhado até às orelhas e do qual se via apenas a pontinha vermelha
do nariz e as arestas de um bigode revirado para cima.
Estava um frio de enregelar, e esta obrigação de acompanhar à estação
um distinto estrangeiro não tinha nada de invejável, mas o tenente Dubosc
cumpria a sua parte corajosamente. Saíam-lhe dos lábios expressões amáveis
num francês educado. Não que ele soubesse o que se passava. Houve rumores, claro, como havia sempre em casos assim. O temperamento do general
— do seu general — piorara cada vez mais. E depois aparecera este estrangeiro belga — directamente de Inglaterra, segundo o que se dizia. Foi uma semana… uma semana de inusitada tensão. E depois aconteceram certas
coisas. Um oficial notável suicidara-se, outro demitira-se — os rostos ansiosos perderam subitamente a ansiedade, certas precauções militares afrouxaram. E o general — o general a quem o tenente Dubosc reportava — pareceu rejuvenescer dez anos.
Dubosc chegara mesmo a ouvir acidentalmente uma conversa entre ele
e o belga: «Salvou-nos, mon cher», dissera o general com emoção, o grande
bigode branco tremendo-lhe enquanto falava. «Salvou a honra do exército
francês — evitou uma grande carnificina! Como posso agradecer-lhe por ter
acedido ao meu pedido? Vir de tão longe…».
O estrangeiro (que dava pelo nome de M. Hercule Poirot) fornecera então
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uma resposta oportuna que incluía a frase: «E eu esqueceria por acaso que já
me salvou a vida uma vez?». E o general dera também uma resposta oportuna, negando qualquer mérito por esse serviço passado, e, por entre mais
menções à França, à Bélgica, à glória, à honra e coisas afins, tinham-se
abraçado efusivamente e a conversa terminara.
O tenente Dubosc continuava ainda às escuras sobre o que é que se tinha
passado, só sabia que o tinham encarregado de acompanhar M. Poirot ao
Expresso Tauro, tarefa que estava a desempenhar com todo o zelo e entusiasmo próprios de um oficial jovem com uma auspiciosa carreira diante de si.
— Hoje é domingo — disse o tenente Dubosc. — Amanhã à tarde, já
estará em Istambul.
Não era a primeira vez que fazia aquela observação. As conversações
numa plataforma de embarque, antes de o comboio partir, tendem a ser algo
repetitivas.
— Assim é.
— E, segundo creio, pretende demorar-se por lá alguns dias?
— Mais oui. Istambul, uma cidade que nunca visitei. Seria uma pena
passar apenas por lá, comme ça. — E estalou os dedos de modo expressivo.
— Não há pressas, vou demorar-me por lá uns dias, como turista.
— Santa Sofia, uma maravilha — disse o tenente Dubosc, que nunca vira
esse templo.
Um vento frio silvou pela plataforma. Ambos tiritaram. O tenente Dubosc conseguiu deitar um olhar sub-reptício ao relógio. Cinco para as cinco
— só faltavam mais cinco minutos!
Pensando que o outro notara aquele olhar sub-reptício, apressou-se a
entabular conversa novamente.
— Pouca gente viaja nesta época do ano — disse, olhando de relance
para as janelas da carruagem-cama acima deles.
— Assim é — concordou Poirot.
— Esperemos que o Tauro não fique preso na neve!
— Pode acontecer isso?
— Já aconteceu, já. Não este ano, pelo menos até agora.
— Esperemos então que não — disse M. Poirot. — As previsões meteorológicas para a Europa são más.
— Muito más. Nos Balcãs há muita neve.
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— Na Alemanha também, pelo que ouvi dizer.
— Eh bien! — disse o tenente Dubosc, apressadamente, quando parecia
que ia haver nova pausa. — Amanhã à tarde, às sete e quarenta, estará em
Constantinopla.
— Sim — disse Poirot, e prosseguiu com algum desespero: — Santa Sofia, ouvi dizer que é maravilhosa.
— Magnífica, segundo creio.
A cortina de um dos compartimentos da carruagem-cama acima deles
foi levantada e uma mulher jovem olhou para fora.
Mary Debenham tinha dormido pouco desde que deixara Bagdade, na
quinta-feira anterior. Não conseguira dormir bem, nem no comboio para
Kirkuk, nem na hospedaria em Mossul, nem na noite anterior no comboio. E
agora, esgotada por ter permanecido acordada na cama naquele ar quente e
pesado do compartimento sobreaquecido, decidiu levantar-se e espreitar lá
para fora.
Devia estar em Alepo. Nada digno de se ver, claro. Apenas uma comprida
plataforma pobremente iluminada e o ruído de furiosas altercações em árabe
algures por ali. Dois homens estavam a falar em francês por baixo da sua
janela. Um era oficial, o outro um homenzinho com uns bigodes enormes.
Sorriu tenuemente. Nunca vira ninguém assim tão agasalhado. Devia estar
muito frio lá fora. Era por isso que o calor no comboio era tão terrível. Tentou
forçar a janela um pouco mais para baixo, mas em vão.
O revisor da carruagem-cama acercara-se dos dois homens. Disse que o
comboio estava prestes a partir; que era melhor Monsieur embarcar. O homenzinho tirou o chapéu. Mas que cabeça em forma de ovo ele tinha! Apesar
das suas preocupações, Mary Debenham sorriu. Que homenzinho de aspecto mais ridículo! O género de homenzinho que ninguém levaria a sério.
O tenente Dubosc estava a proferir o seu discurso de despedida. Tinha-o
preparado de antemão e guardara-o até ao último minuto. Era um discurso
admirável e cortês.
Para não ficar atrás, M. Poirot respondeu-lhe na mesma moeda.
— En voiture, Monsieur — disse o revisor.
M. Poirot subiu a bordo do comboio com um ar de infinita relutância.
O revisor subiu atrás dele. Poirot acenou com a mão. O tenente Dubosc
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correspondeu à saudação. O comboio avançou lentamente com um enorme
solavanco.
— Enfin! — murmurou M. Hercule Poirot.
— Brrrrr — disse o tenente Dubosc, tomando plena consciência de
como se sentia enregelado…
— Voilà, Monsieur — disse o revisor a Poirot, mostrando-lhe com um
gesto dramático a beleza do compartimento e a perfeita arrumação da
bagagem. — A pequena maleta de Monsieur, coloquei-a aqui.
A mão estendida era sugestiva. Hercule Poirot depositou-lhe na mão
uma nota dobrada.
— Merci, Monsieur. — O revisor mostrou-se activo e eficiente. — Tenho
aqui os bilhetes de Monsieur. Precisava também do seu passaporte, por favor.
Monsieur interrompe a sua viagem em Istambul, segundo creio?
M. Poirot assentiu.
— Não há muita gente a viajar, imagino? — disse ele.
— Não, Monsieur. Tenho apenas mais dois passageiros, ambos ingleses.
Um coronel da Índia e uma jovem senhora inglesa de Bagdade. Monsieur
deseja alguma coisa?
Monsieur pediu uma garrafa de Perrier.
Cinco da manhã é uma hora estranha para se embarcar num comboio.
Ainda faltavam duas horas para o dia nascer. Consciente de uma noite mal
dormida e de uma delicada missão cumprida com êxito, M. Poirot encolheu-se num canto e adormeceu.
Quando acordou já passava das nove e meia e dirigiu-se energicamente
para a carruagem-restaurante à procura de café quente.
Nesse momento só estava lá uma pessoa, obviamente a jovem senhora
inglesa que o revisor mencionara. Era alta, esguia e morena — talvez vinte e
oito anos. Mostrava uma atitude segura e fria no modo como tomava o
pequeno-almoço e chamava o empregado para lhe trazer mais café, o que
revelava um conhecimento do mundo e de quem estava habituado a viajar.
Vestia roupa própria para viajar de um tecido escuro e leve, visivelmente adequado à atmosfera aquecida do comboio.
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Sem nada melhor para fazer, M. Hercule Poirot dispôs-se a passar o
tempo a observá-la sem aparentemente estar a fazê-lo.
Segundo julgava, era o género de jovem que sabia tomar conta de si com
perfeito à-vontade para onde quer que fosse. Havia nela elegância e segurança. Gostou bastante daquela severa regularidade das feições e da delicada
palidez da pele. Gostou do seu cabelo escuro, brilhante e ondulado, e dos
olhos, frios, impessoais e acinzentados. Mas era, concluiu, demasiado altiva
para ser aquilo a que chamava uma jolie femme.
Outra pessoa entrou então na carruagem-restaurante. Um homem alto,
entre os quarenta e os cinquenta anos, magro, pele morena, cabelo ligeiramente grisalho nas fontes.
O coronel da Índia, disse Poirot para si próprio.
O recém-chegado fez uma ligeira vénia à jovem.
— Bom dia, Miss Debenham.
— Bom dia, coronel Arbuthnot.
O coronel tinha a mão pousada na cadeira em frente à da jovem.
— Permite-me? — perguntou.
— Certamente. Sente-se.
— Bem, como sabe, o pequeno-almoço nem sempre é uma refeição para
conversas.
— Espero bem que não. Mas eu não mordo.
O coronel sentou-se.
— Rapaz! — chamou ele com modos peremptórios.
Pediu ovos e café.
Pousou os olhos por um momento em Hercule Poirot, mas desviou-os
logo com indiferença. Interpretando correctamente a mentalidade inglesa,
Poirot sabia que ele dissera para si mesmo: «O raio de um estrangeiro
qualquer».
Fiéis à sua nacionalidade, os dois ingleses não eram muito conversadores. Trocaram uns breves comentários e pouco depois a rapariga levantou-se e voltou para o seu compartimento.
Partilharam novamente a mesa ao almoço, e de novo ambos ignoraram
por completo o terceiro passageiro. A conversa foi mais animada do que ao
pequeno-almoço. O coronel Arbuthnot falou do Punjab e ocasionalmente
fazia algumas perguntas sobre Bagdade, depreendendo-se que ela tinha
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desempenhado um cargo de preceptora. No decurso da conversa descobriram alguns amigos comuns, o que teve o efeito imediato de os tornar mais
amigáveis e menos rígidos. Falaram então do velho Tommy Fulano e Jerry
Sicrano. O coronel perguntou-lhe se ia directamente para Inglaterra ou se se
demoraria em Istambul.
— Não, vou directamente.
— E não tem pena?
— Fiz este percurso há dois anos e passei então três dias em Istambul.
— Oh, compreendo. Bem, devo dizer que fico contente por seguir directamente, pois o mesmo acontece comigo.
Fez uma espécie de pequena vénia desajeitada, corando um pouco.
É susceptível o nosso coronel, pensou Hercule Poirot, algo divertido.
Viajar de comboio é tão perigoso como uma viagem por mar.
Miss Debenham disse, impassível, que isso seria muito agradável. Mas a
sua atitude era ligeiramente reservada.
Poirot reparou que o coronel a acompanhou ao compartimento. Mais
tarde atravessavam o magnífico cenário do Tauro. A rapariga deu subitamente um suspiro quando estavam no corredor ao lado um do outro a obser varem os Portões da Cilícia lá em baixo. Poirot estava perto deles e ouviu-a
murmurar:
— É tão bonito! Quem me dera… quem me dera…
— Sim?
— Quem me dera poder disfrutar disto!
Arbuthnot não disse nada. A linha quadrada do maxilar pareceu tornar-se um pouco mais austera e severa.
— Deus sabe como eu gostaria que estivesse fora de tudo isto — disse
ele.
— Cale-se, por favor. Cale-se.
— Oh!, não há problema. — Lançou um olhar ligeiramente aborrecido
na direcção de Poirot. E prosseguiu: — Mas não me agrada a ideia de a ver
como preceptora, sempre às ordens de mães tiranas e dos seus fedelhos cansativos.
Ela riu com uma entoação que sugeria alguma perda de controlo.
— Oh!, não deve pensar assim. A preceptora oprimida não passa de um
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mito bastante gasto. Asseguro-o de que os pais é que têm medo de serem
maltratados por mim.
Não disseram mais nada. Arbuthnot sentia-se talvez envergonhado da
sua explosão de sentimentos.
Mas que comediazinha mais estranha observo eu daqui, disse Poirot
para si próprio, pensativo.
Iria lembrar-se posteriormente daquele pensamento.
Chegaram a Konia nessa noite, cerca das onze e meia. Os dois ingleses
saíram para distender as pernas, caminhando para cá e para lá na plataforma
cheia de neve.
M. Poirot sentia-se feliz por estar a observar a actividade fervilhante da
estação através de uma vidraça fechada. No entanto, cerca de dez minutos
depois, resolveu que uma lufada de ar fresco não seria afinal má ideia. Fez
preparativos cuidadosos, embrulhando-se em vários casacos e abafos e enfiando as botas impecáveis em galochas. Assim ataviado, desceu cautelosamente para a plataforma e começou a percorrê-la. Caminhou para lá da locomotiva.
Foram as vozes que lhe chamaram a atenção para os dois vultos indistintos na sombra de um vagão de mercadorias. Arbuthnot estava a dizer:
— Mary…
A rapariga interrompeu-o.
— Agora não. Agora não. Quando tudo tiver passado. Quando tivermos
deixado isto para trás… e então…
M. Poirot afastou-se discretamente, pensativo.
Quase não teria reconhecido a voz fria e segura de Miss Debenham.
Curioso, disse para consigo.
No dia seguinte interrogou-se se os dois não teriam talvez discutido.
Falavam pouco um com o outro. A rapariga pareceu-lhe ansiosa. Tinha
olheiras.
Eram cerca das duas e meia da tarde quando o comboio se deteve. As
cabeças espreitaram para fora das janelas. Um pequeno grupo de homens
amontoava-se junto da linha, a olhar e a apontar para algo debaixo da carruagem-restaurante.
Poirot debruçou-se e falou para o revisor que passava todo apressado.
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O homem respondeu e Poirot recuou, e ao voltar-se quase colidiu com Mary
Debenham, que estava mesmo atrás dele.
— O que é que aconteceu? — perguntou ela em francês e quase sem
fôlego. — Por que é que parámos?
— Não é nada, Mademoiselle. Foi algo que se incendiou debaixo da
carruagem-restaurante. Nada de grave. Já apagaram o fogo. Estão agora a
reparar os estragos. Não há qualquer perigo, asseguro-lhe.
Ela esboçou um pequeno gesto abrupto, como se a ideia de perigo fosse
algo completamente sem importância.
— Sim, sim, compreendo. Mas o tempo!
— O tempo?
— Sim, isto vai atrasar-nos.
— É possível… sim — concordou Poirot.
— Mas não nos podemos dar ao luxo de atrasos! Está previsto o comboio
chegar às 6.55 e temos de atravessar o Bósforo e apanhar o Expresso do
Oriente–Simplon na outra margem às nove horas. Se houver uma ou duas
horas de atraso, vamos perder a ligação.
— É possível, sim — admitiu ele.
Olhou para ela com curiosidade. A mão agarrada à barra da janela não
estava bem firme, e os lábios também lhe tremiam.
— Isso tem muita importância para si, Mademoiselle? — perguntou-lhe.
— Sim. Sim, tem. Eu… eu tenho de apanhar esse comboio.
Afastou-se e avançou pelo corredor para se juntar ao coronel Arbuthnot.
Mas aquela ansiedade era porém desnecessária. O comboio retomou a
marcha dez minutos depois. Chegou a Haydapassar apenas com cinco minutos de atraso, tinha conseguido recuperar durante a viagem.
O Bósforo estava agitado e M. Poirot não apreciou a travessia. Tinha-se
separado dos companheiros de viagem no barco e não tornou a vê-los.
Ao chegar à ponte de Gálata, dirigiu-se directamente para o Hotel Tokatlian.
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CAPÍTULO II
O HOTEL TOKATLIAN
No Tokatlian, Hercule Poirot pediu um quarto com casa de banho. Depois dirigiu-se para a portaria e perguntou se havia correspondência. À sua
espera havia três cartas e um telegrama. Ficou surpreendido ao ver o telegrama. Não estava à espera.
Abriu-o com os seus modos elegantes e calmos de sempre. As palavras
impressas destacavam-se claramente.
«Evolução que previu para Caso Kassner aconteceu inesperadamente
por favor voltar imediatamente».
— Voilà ce qui est embêtant — murmurou Poirot, contrariado. Olhou de
relance para o relógio.
— Tenho de partir esta noite — disse ao porteiro. — A que horas parte o
Oriente–Simplon?
— Às nove horas, Monsieur.
— Consegue arranjar-me lugar numa carruagem-cama?
— Com certeza, Monsieur. Nesta altura do ano não haverá dificuldade.
Os comboios estão quase vazios. Primeira ou segunda classe?
— Primeira.
— Très bien, Monsieur. Vai viajar para onde?
— Para Londres.
— Bien, Monsieur. Vou arranjar-lhe passagem para Londres e reservar-lhe um compartimento na carruagem-cama Istambul–Calais.
Poirot voltou a dar uma olhadela ao relógio. Eram dez para as oito.
— Tenho tempo para jantar?
— Mas com certeza, Monsieur.
O homenzinho belga acenou com a cabeça. Voltou à recepção para cancelar a reserva do quarto e atravessou o vestíbulo para o restaurante.
Uma mão pousou-lhe no ombro quando fazia o seu pedido ao empregado.
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— Ah!, mon vieux, mas que prazer inesperado! — disse uma voz atrás
de si.
Era um homem de idade, baixo, robusto, de cabelo cortado en brosse.
Sorria com deleite.
Poirot levantou-se de um salto.
— M. Bouc!
— M. Poirot!
M. Bouc era belga, director da Compagnie Internationale des Wagons Lits,
e a sua amizade com a velha celebridade da Força Policial belga datava de há
muitos anos.
— Está longe de casa, mon cher — disse M. Bouc.
— Um pequeno compromisso na Síria.
— Ah! E quando volta para casa?
— Esta noite.
— Esplêndido! Eu também. Isto é, vou até Lausana, onde tenho uns
compromissos. Presumo que viajará no Oriente–Simplon?
— Sim. Acabei de pedir que me arranjassem uma passagem. Era minha
intenção permanecer aqui por uns dias, mas recebi um telegrama solicitando o meu regresso a Inglaterra para um assunto importante.
— Ah! — suspirou M. Bouc. — Les affaires… les affaires! Mas você… você
agora está bem no topo da carreira, mon vieux!
— Algum pequeno êxito que tive, talvez. — Hercule Poirot tentou
parecer modesto mas falhou rotundamente.
M. Bouc riu.
— Encontramo-nos mais tarde — disse.
Hercule Poirot concentrou-se na operação de manter os bigodes fora da
sopa.
Terminada aquela complicada operação, olhou em redor enquanto
aguardava o prato seguinte. Havia apenas cerca de meia dúzia de pessoas no
restaurante, e dessa meia dúzia só dois lhe interessavam.
Esses dois estavam sentados a uma mesa não muito distante. O mais
novo era um homem bem-parecido de trinta anos, assumidamente americano. Não foi ele, no entanto, mas o companheiro que atraiu a atenção do detective.
Era um homem entre os sessenta e os setenta anos. Assim àquela
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distância, tinha a aparência gentil de um filantropo. A cabeça ligeiramente
calva, a testa abaulada, a boca sorridente exibia uma série de dentes falsos
muito brancos, tudo parecia revelar uma personalidade benevolente. Apenas
os olhos contradiziam esta conjectura. Eram pequenos, encovados e astuciosos. Mas não se tratava apenas disso, pois enquanto comentava qualquer
coisa com o seu jovem companheiro, o homem relanceou o olhar pela sala e
fixou-o em Poirot por um momento, e durante aquele segundo houve naquele olhar uma estranha malevolência, uma tensão pouco natural.
O homem levantou-se então.
— Pague a conta, Hector — disse.
O tom da voz era ligeiramente rouco. Tinha uma característica algo
bizarra, suave, perigosa.
Quando Poirot se reuniu ao amigo no vestíbulo, os outros dois homens
estavam prestes a deixar o hotel. Estavam a trazer-lhes a bagagem para baixo.
O mais novo supervisionava aquela tarefa. Pouco depois abriu a porta
envidraçada e disse:
— Já está tudo pronto, Mr. Ratchett.
O homem mais velho resmungou em jeito de concordância e desapareceu.
— Eh bien — disse Poirot. — O que acha daqueles dois?
— São americanos — disse M. Bouc.
— Certamente que são americanos. O que eu quis dizer foi o que pensa
deles como pessoas?
— O homem mais jovem pareceu-me bastante agradável.
— E o outro?
— Para lhe ser franco, meu amigo, não quis saber dele. Causou-me uma
impressão desagradável. E você?
Hercule Poirot ficou um momento sem responder.
— Quando ele passou por mim no restaurante — disse por fim —, tive
uma sensação estranha. Foi como se um animal bravio… um animal selvagem, mas bem selvagem!, percebe… tivesse passado por mim.
— E no entanto, todo ele parecia do mais respeitável que há.
— Précisément! O corpo… a jaula… é tudo do mais respeitável que há…
mas o animal selvagem espreita através das grades.
— Está a ser fantasioso, mon vieux — disse M. Bouc.
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— Talvez esteja. Mas não consegui libertar-me da impressão de que o
diabo passou bem perto de mim.
— Aquele respeitável cavalheiro americano?
— Aquele respeitável cavalheiro americano.
— Bem — disse M. Bouc, animadamente. — Pode ser que sim. Há muita
maldade no mundo.
A porta abriu-se naquele momento e o porteiro encaminhou-se para
eles. Tinha um ar preocupado e ansioso.
— Que coisa extraordinária, Monsieur — disse ele a Poirot. — Não há no
comboio nenhum compartimento de primeira classe livre.
— Comment? — exclamou M. Bouc. — Nesta altura do ano? Sem dúvida
há algum grupo de jornalistas… de políticos…?
— Não sei, sir — disse o porteiro, dirigindo-se-lhe respeitosamente. —
Mas o facto é que é esta a situação.
— Bem, bem — M. Bouc voltou-se para Poirot. — Não se preocupe, meu
amigo. Havemos de arranjar alguma coisa. Há sempre um compartimento
livre, o número 16. O revisor trata disso tudo! — Sorriu e depois olhou para o
relógio. — Venha. Está na hora de tratarmos disso.
M. Bouc foi cumprimentado na estação com respeitosa efusividade pelo
revisor da carruagem-cama de farda acastanhada.
— Boa noite, Monsieur. O seu compartimento é o número 1.
Chamou os carregadores que levaram aquela carga até a meio da carruagem, onde as placas de metal proclamavam o destino:
ISTAMBUL TRIESTE CALAIS
— Ouvi dizer que o comboio está cheio.
— É incrível, Monsieur. Parece que toda a gente decidiu viajar esta noite!
— Mesmo assim, tem de arranjar lugar para este cavalheiro. É um amigo
meu. Pode ficar no número 16.
— Já está ocupado, Monsieur.
— O quê? O número 16?
Ambos trocaram um olhar de entendimento e o revisor sorriu. Era um
homem alto e macilento, de meia-idade.
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— Sim, Monsieur. Mas como lhe disse, não há lugares… não há lugares
em nenhum lado
— Mas que se passa afinal? — exigiu M. Bouc irritado. — Há alguma
conferência em algum lugar? Alguma reunião?
— Não, Monsieur. Foi puro acaso. Acontece que muita gente decidiu
viajar esta noite.
M. Bouc deu um pequeno estalido de enfado.
— Em Belgrado — disse — chega a carruagem-cama que vem de
Atenas. E chega também a de Bucareste–Paris… mas só vamos chegar a
Belgrado amanhã à noite. O problema é para hoje à noite. Não há nenhum
compartimento de segunda classe livre?
— Há um compartimento de segunda classe, Monsieur…
— Bem, nesse caso…
— Mas é um compartimento para senhoras. E já está ocupado por uma
alemã… a dama de companhia de uma senhora.
— Là, là, mas que situação! — disse M. Bouc.
— Não se preocupe, meu amigo — disse Poirot. — Vou ter de viajar
numa carruagem comum.
— Nem pense nisso! Nem pense nisso! — Voltou-se novamente para o
revisor. — Já chegaram todos?
— Bem, a verdade — disse o homem — é que um dos passageiros ainda
não chegou.
Falava devagar, com hesitação.
— Mas diga lá então!
— Compartimento número 7… segunda classe. O cavalheiro ainda não
chegou, e faltam quatro minutos para as nove.
— Quem é ele?
— Um inglês. — O revisor consultou a lista. — Um tal M. Harris.
— Um nome de bom agoiro — disse Poirot. — Conheço bem o meu
Dickens. Esse M. Harris não virá.
— Coloque as bagagens de Monsieur no número 7 — disse M. Bouc. —
Se este M. Harris vier, dir-lhe-emos que chegou demasiado tarde… que os
compartimentos não podem ficar retidos por tanto tempo… De uma
maneira ou de outra arranjaremos as coisas. Que me importa a mim um tal
M. Harris?
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— Como Monsieur desejar — disse o revisor.
Falou com o carregador de Poirot, indicando-lhe para onde devia ir.
Depois afastou-se dos degraus para deixar Poirot embarcar. — Tout à fait
au bout, Monsieur — disse. — O penúltimo compartimento.
Poirot percorreu o corredor num movimento lento, já que a maior parte
dos passageiros estavam no exterior dos seus compartimentos.
Os seus corteses «Pardons» eram proferidos com uma regularidade de
relógio. Alcançou por fim o compartimento indicado. Lá dentro estava o
jovem americano do Tokatlian a arrumar uma mala.
Franziu o sobrolho quando Poirot entrou.
— Desculpe — disse ele. — Creio que se enganou. — E depois, laboriosamente em francês: — Je crois que vous avez un erreur.
Poirot replicou em inglês.
— É Mr. Harris?
— Não, chamo-me MacQueen. Eu…
Mas nesse momento ouviu-se a voz do revisor que falava por detrás de
Poirot. Uma voz num tom de desculpa e quase sem fôlego.
— Não há mais nenhum compartimento no comboio, Monsieur. Este
cavalheiro terá de ficar aqui.
Estava a subir a janela do corredor enquanto falava e começou a içar para
dentro as bagagens de Poirot.
Poirot reparou no seu tom de voz com algum divertimento. Certamente
que lhe tinham prometido uma boa gorjeta se conseguisse conservar o
compartimento só para o uso do outro passageiro. Contudo, até a gorjeta
mais generosa perde o seu efeito quando um director da companhia está
presente a bordo dando ordens.
O revisor saiu do compartimento após ter colocado as malas nas prateleiras de cima.
— Voilà, Monsieur — disse. — Está tudo em ordem. O seu beliche é o de
cima, o número 7. Partimos dentro de um minuto.
Apressou-se pelo corredor fora. Poirot voltou a entrar no compartimento.
— Um fenómeno a que raramente assisti — disse ele, de bom humor. —
O próprio revisor a arrumar ele mesmo as bagagens! Nunca se viu!
O seu companheiro de viagem sorriu. Já tinha evidentemente recuperado
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daquele aborrecimento — provavelmente decidira que não valia a pena encarar aquele assunto a não ser de um modo filosófico.
— O comboio está extraordinariamente cheio — disse ele.
Soou um apito e a locomotiva deu um longo e melancólico silvo. Ambos
saíram para o corredor.
Lá fora uma voz gritou.
— En voiture.
— Vamos partir — disse MacQueen.
Mas não partiram de imediato. O apito voltou a soar.
— Sir — disse o jovem, de repente —, se preferir o beliche de baixo…
mais cómodo e tudo isso… bem, por mim não há problema.
MacQueen era evidentemente um rapaz muito amável.
— Não, não — protestou Poirot. — Não quero privá-lo…
— Não há problema…
— É demasiado gentil…
Protestos corteses de ambas as partes.
— É só por uma noite — explicou Poirot. — Em Belgrado…
— Oh, compreendo. Vai sair em Belgrado…
— Não exactamente. Sabe…
Um súbito solavanco. Ambos foram à janela e olharam para a longa
plataforma iluminada que deslizava lentamente.
O Expresso do Oriente iniciava a sua viagem de três dias através da
Europa.
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CAPÍTULO III
POIROT RECUSA UM CASO
M. Hercule Poirot estava um pouco atrasado quando entrou na carruagem-restaurante no dia seguinte. Tinha-se levantado cedo, tomara o pequeno-almoço quase sozinho e passara a manhã a rever os apontamentos sobre
o caso que requeria a sua presença em Londres. Quase não se cruzara com o
seu companheiro de viagem.
M. Bouc, que já estava sentado, acenou chamando o amigo para o lugar
livre em frente de si. Poirot sentou-se e deu por si na posição privilegiada de
estar na mesa servida em primeiro lugar e com a melhor comida, que era
também inusitadamente boa.
Foi só quando estavam a comer um delicado queijo cremoso que M.
Bouc permitiu que a sua atenção se encaminhasse para outros assuntos que
não a alimentação. Estava naquela fase da refeição em que uma pessoa se
torna filosófica.
— Ah! — suspirou ele. — Tivesse eu o talento de um Balzac! Como eu
descreveria esta cena!
Agitou a mão.
— Sim, é uma ideia — disse Poirot.
— Ah, concorda? Acho que ainda ninguém o fez. E no entanto… presta-se ao romance, meu amigo. À nossa volta há gente de todas as classes, de
todas as nacionalidades, de todas as idades. Estas pessoas que são estranhos
uns para os outros, vêem-se assim reunidos durante três dias. Comem e
dormem sob o mesmo tecto, não podem fugir uns dos outros. E ao fim dos
três dias partem, seguem os seus caminhos, e talvez nunca mais voltem a
encontrar-se.
— E contudo — disse Poirot —, suponha que um acidente…
— Ah não, meu amigo…
— Segundo o seu ponto de vista, seria lamentável, concordo. Mas, mesmo
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assim, suponhamos isso por um instante. Então, todos os que estão aqui talvez ficassem unidos… pela morte.
— Mais vinho! — disse M. Bouc, enchendo o copo apressadamente. —
Que mórbido, mon cher. Deve ser da digestão.
— É verdade — concordou Poirot — que a comida na Síria não era talvez
muito apropriada para o meu estômago.
Bebericou o vinho. Depois recostou-se e correu o olhar pensativo pela
carruagem-restaurante. Estavam ali treze pessoas sentadas, de todas as
classes e nacionalidades, como M. Bouc dissera. Começou a observá-las.
A mesa em frente estava ocupada por três homens. Eram, supôs, viajantes solitários, classificados e colocados ali pelo discernimento infalível dos
empregados da carruagem. Um italiano enorme e moreno palitava os dentes
com entusiasmo. Em frente dele, um inglês magro e elegante exibia o rosto
desaprovador do criado bem treinado. Ao lado do inglês estava um enorme
americano com um fato berrante — provavelmente um caixeiro-viajante.
— Há que pensar em grande — dizia ele numa voz alta e nasalada.
O italiano tirou o palito da boca e pôs-se a gesticular espontaneamente
com ele.
— Certo — disse. — É o qu’eu digo sempre.
O inglês olhou pela janela e tossiu.
Poirot afastou o olhar.
Sentada muito direita a uma pequena mesa estava uma das velhotas
mais feias que alguma vez vira. Mas era uma fealdade com distinção —
fascinava mais do que repelia. Estava sentada muito direita. Tinha à volta do
pescoço um colar de grandes pérolas que, por mais improvável que
parecesse, eram verdadeiras. As mãos estavam cobertas de anéis. O casaco de
zibelina estava pousado sobre os ombros. Um diminuto e caro chapéu preto
contrastava horrivelmente com o seu rosto amarelado de sapo.
Estava agora a falar com o criado num tom claro e cortês mas
completamente autocrático.
— Tenha a amabilidade de colocar no meu compartimento uma garrafa
de água mineral e um grande copo de sumo de laranja. Trate de providenciar
para que esta noite me seja servido ao jantar frango sem qualquer molho… e
também um pouco de peixe cozido.
O criado respondeu respeitosamente que assim faria.
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Ela fez um pequeno aceno com a cabeça e levantou-se. O seu olhar
cruzou-se com o de Poirot e desviou-se com aquele desprendimento de
aristocrata indiferente.
— É a Princesa Dragomiroff — disse M. Bouc, em voz baixa. — É russa.
O marido converteu tudo em dinheiro antes da revolução e investiu-o no
estrangeiro. Ela é extraordinariamente rica… Uma cosmopolita.
Poirot acenou a cabeça, anuindo. Já ouvira falar da princesa Dragomiroff.
— É uma personalidade — disse M. Bouc. — Feia como o pecado, mas
imponente. Não concorda?
Poirot concordava.
Mary Debenham estava sentada a uma das mesas grandes com duas
senhoras. Uma delas era uma senhora alta de meia-idade com uma blusa
axadrezada e saia de tweed. O cabelo de um tom amarelo pálido estava penteado desajeitamente num grande carrapito, usava óculos e tinha um rosto
comprido, meigo e afável como o de uma ovelha. Estava a ouvir a outra senhora, uma robusta idosa de rosto agradável que falava com uma voz lenta,
clara e monótona que não dava mostras de parar nem para retomar o fôlego.
— …E a minha filha disse então: «Ora essa» disse ela, «não se pode aplicar os métodos americanos a este país. Aqui o povo é indolente por natureza» disse ela. «Não têm pressa para nada». Mas mesmo assim ficaria surpreendida por saber o que o nosso colégio tem feito lá. Têm um excelente
corpo docente. Acho que a educação é tudo. Temos de aplicar os nossos
ideais ocidentais e ensinar o Oriente a reconhecê-los. A minha filha diz…
O comboio mergulhou num túnel. A voz calma e monótona foi abafada.
Na pequena mesa ao lado estava o coronel Arbuthnot — sozinho. Tinha
o olhar fixo na nuca de Mary Debenham. Não estavam juntos. No entanto,
facilmente o poderiam ter feito. Porquê?
Talvez Mary Debenham tivesse desaprovado a ideia, pensou Poirot. Uma
preceptora aprende a ser cuidadosa. As aparências são importantes. Uma
rapariga com um modo de vida como o seu tinha de ser discreta.
Poirot desviou o olhar para o lado oposto da carruagem. Mesmo ao fundo, sentada de costas para a parede, uma mulher de meia-idade vestida de
preto e com um rosto largo e inexpressivo. Alemã ou escandinava, pensou.
Provavelmente uma dama de companhia alemã.
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Depois dela estava um casal debruçado sobre a mesa, a falar animadamente. O homem vestia roupa inglesa de tweed — mas não era inglês. Apesar
de Poirot lhe ver apenas a nuca, a forma da nuca e os ombros traíam-no. Um
homem enorme, bem constituído. Virou subitamente a cabeça e Poirot viu-lhe o perfil. Um homem muito bem-parecido, nos seus trintas e com um
grande bigode aloirado.
A mulher diante dele era ainda jovem — aparentava vinte anos. Um saia-casaco justo preto, blusa de cetim branco, um elegante chapeuzinho preto
naquele extravagante ângulo ditado pela moda. Tinha um bonito rosto de
estrangeira, pele de um branco pálido, grandes olhos acastanhados e cabelo
negro-azeviche. Fumava um cigarro numa boquilha comprida. As mãos bem
cuidadas exibiam unhas de um vermelho carregado. Usava uma enorme
esmeralda encastoada em platina. Havia uma certa coqueteria na voz e no
olhar.
— Elle est jolie… et chic — murmurou Poirot. — Marido e mulher… hã?
M. Bouc anuiu.
— Da embaixada húngara, creio — disse ele. — Um casal bem-parecido.
Restavam apenas mais dois comensais: MacQueen, o companheiro de
viagem de Poirot, e o seu patrão, Mr. Ratchett, que estava sentado de frente
para Poirot; este estudou-lhe pela segunda vez aquele rosto nada amigável,
reparando na falsa bondade da expressão e nos pequenos olhos cruéis.
M. Bouc viu certamente uma mudança na expressão do amigo.
— É para o seu animal selvagem que está a olhar? — perguntou.
Poirot anuiu.
M. Bouc levantou-se quando trouxeram o café ao amigo. Tinha
começado antes de Poirot e já havia terminado há algum tempo.
— Vou voltar para o meu compartimento — disse. — Apareça mais tarde para conversar comigo.
— Com todo o prazer.
Poirot sorveu o café e pediu um licor. O criado ia de mesa em mesa com
a caixinha de dinheiro para receber o pagamento das contas. A voz da
senhora americana idosa soou penetrante e lamurienta.
— A minha filha disse: «Leve uma caderneta de bilhetes para as refeições
e não terá problemas, nenhum problema». Céus, não é bem assim. Parece que
eles ficam com uma gorjeta de dez por cento, e ainda por cima há a garrafa
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de água mineral, e que água mais esquisita. Não tinham Evian nem Vichy, o
que me parece esquisito.
— É que… eles têm… como dizer… de servir a água de cá — explicou a
senhora com rosto de ovelha.
— Pois a mim parece-me esquisito. — Olhou com desagrado para o
montinho de trocos sobre a mesa. — Vejam só todas estas coisas esquisitas
que ele me deu. Dinares ou como lhes chamam. Parece-me é um monte de
lixo. A minha filha disse…
Mary Debenham afastou a cadeira e despediu-se das duas senhoras com
uma ligeira vénia. O coronel Arbuthnot levantou-se e seguiu-a. A senhora
americana recolheu aquele dinheiro desprezado e saiu também, logo seguida
pela senhora parecida com uma ovelha. Os húngaros já se tinham retirado. A
carruagem-restaurante estava agora vazia, apenas se encontrando Poirot,
Ratchett e MacQueen.
Ratchett disse qualquer coisa ao companheiro e este levantou-se e saiu.
Ele próprio se levantou depois; mas em vez de seguir MacQueen, deixou-se
afundar inesperadamente no lugar em frente de Poirot.
— Tem a bondade de me dar lume, por favor? — disse. A voz era macia,
levemente anasalada. — Chamo-me Ratchett.
Poirot fez um pequeno aceno com a cabeça. Enfiou a mão no bolso e
retirou uma caixa de fósforos que passou ao outro; este pegou neles mas não
acendeu nenhum.
— Creio — prosseguiu ele — que tenho o prazer de falar com M. Hercule
Poirot. Não é assim?
Poirot acenou novamente com a cabeça
— Informaram-no correctamente, Monsieur.
O detective estava ciente daqueles estranhos olhos astutos que o mediam antes de o outro voltar a falar.
— No meu país — disse ele —, vamos directamente ao assunto. Mr.
Poirot, gostava que se encarregasse de um trabalho para mim.
— A minha clientèle, Monsieur, é actualmente muito reduzida. Encarrego-me de poucos casos.
— Ora, é natural, compreendo perfeitamente. Mas este, Mr. Poirot, significa muito dinheiro. — E repetiu com aquela voz macia e persuasiva:
— Muito dinheiro.
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Hercule Poirot ficou calado por um momento, e depois disse:
— O que é que deseja que eu faça, Monsieur… hã… Ratchett?
— Mr. Poirot, sou bastante rico, bastante rico. E homens nesta posição
têm inimigos. Eu tenho um inimigo.
— Só um inimigo?
— E o que pretende dizer com isso? — perguntou Ratchett, de modo
acutilante.
— Monsieur, pela minha experiência, quando um homem está numa
posição que, como diz, lhe traz inimigos, então a coisa não se resume geralmente apenas a um único inimigo.
Ratchett pareceu ficar aliviado com esta resposta. Disse, com rapidez:
— Pois, claro, compreendo esse ponto de vista. Inimigo ou inimigos, não
importa. O que importa é a minha segurança.
— Segurança?
— A minha vida corre perigo, Mr. Poirot. Mas hoje sou um homem que
sabe tomar bem conta de si próprio. — A mão que enfiou no bolso do casaco
exibiu por um momento um pequeno revólver automático. E continuou
determinado — Não me tenho na conta de homem que se deixe apanhar a
dormir. Mas, da forma como vejo as coisas, um homem prevenido vale por
dois. Na minha opinião, o senhor é o homem de que preciso, Mr. Poirot. E
lembre-se: muito dinheiro.
Poirot encarou-o pensativamente por uns instantes. O seu rosto mostrava-se completamente inexpressivo. O outro dificilmente saberia que pensamentos lhe passavam pela cabeça.
— Lamento, Monsieur — disse por fim. — Não lhe posso ser útil.
O outro fitou-o com astúcia.
— Diga lá o seu preço então — disse-lhe.
Poirot abanou a cabeça.
— Não está a compreeender, Monsieur. Tenho sido muito afortunado na
minha profissão. Ganhei o suficiente para satisfazer as minhas necessidades
e caprichos. Agora só me ocupo dos casos… que me interessam.
— Você tem cá um descaramento — disse Ratchett. — Não o tentam
vinte mil dólares?
— Não.
— Se está à espera de mais, engana-se. Sei quanto é que uma coisa vale.
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— Eu também… M. Ratchett.
— O que é que a minha proposta tem de errado?
Poirot levantou-se.
— Vai-me desculpar a franqueza… mas o seu rosto não me agrada, M.
Ratchett — disse.
E abandonou então a carruagem-restaurante.
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CAPÍTULO IV
UM GRITO NA NOITE
O Expresso Oriente–Simplon chegou a Belgrado nessa noite, às 08.45. Só
voltaria a partir às 9.15, e portanto Poirot desceu para a plataforma. Mas não
permaneceu aí por muito tempo. Estava um frio cortante e caía uma neve
pesada lá fora apesar de a plataforma estar resguardada. Regressou ao seu
compartimento. O revisor que estava na plataforma a bater com os pés e a
abanar os braços para se manter quente falou com Poirot.
— As suas malas, Monsieur, foram transferidas para o compartimento
número 1, o compartimento de M. Bouc.
— E onde é que M. Bouc fica então?
— Passou para a carruagem de Atenas que acaba de chegar.
Poirot foi à procura do amigo. M. Bouc rejeitou aqueles protestos com
um gesto da mão.
— Não incomoda nada. Não incomoda nada. É mais conveniente assim.
Você vai directamente para Inglaterra e portanto é preferível que viaje na
carruagem que vai até Calais. Quanto a mim, fico muito bem aqui. É mais
sossegado. Esta carruagem vai vazia, exceptuando eu e um médico grego
baixinho. Ah, meu amigo, que noite! Dizem que não nevava assim há anos.
Esperemos que isso não nos atrase. Isto não me agrada lá muito, garanto-lhe.
O comboio saiu pontualmente da estação às 9.15 e pouco depois Poirot
levantou-se, deu as boas-noites ao amigo e percorreu o corredor regressando
à sua carruagem, que ficava a seguir à carruagem-restaurante.
Neste segundo dia da viagem as barreiras estavam a ser quebradas. O
coronel Arbuthnot estava à porta do seu compartimento a falar com
MacQueen.
MacQueen interrompeu o que estava a dizer ao avistar Poirot. Pareceu
ficar muito surpreendido.
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— Ora esta! — exclamou ele. — Pensei que nos tivesse deixado. Disse
que ia sair em Belgrado!
— Entendeu-me mal — disse Poirot, a sorrir. — Recordo-me de que o
comboio acabava de sair de Istambul precisamente quando falávamos disso.
— Mas, as suas bagagens… desapareceram.
— Foram levadas para outro compartimento, é tudo.
— Oh, estou a ver.
Retomou a conversa com Arbuthnot e Poirot atravessou o corredor.
Duas portas antes do seu compartimento, deparou com a senhora americana idosa, Mrs. Hubbard, a falar com a senhora parecida com uma ovelha,
que era sueca. Mrs. Hubbard pressionava a outra para que levasse uma revista.
— Não, tem de a levar, minha querida — disse. — Tenho muitas mais
coisas para ler. Céus, o frio é mesmo assustador, não acha? — Acenou amigavelmente com a cabeça na direcção de Poirot.
— É muita amabilidade da sua parte — disse a senhora sueca.
— É com todo o prazer. Espero que durma bem e que de manhã já esteja
melhor da dor cabeça.
— É do frio. Vou preparar uma chávena de chá.
— Tem aspirinas? Tem a certeza, mesmo? Eu tenho muitas. Bem, boa
noite, minha querida.
Voltou-se para Poirot com intenções de entabular conversa mal a outra
se foi embora.
— Pobre senhora, é sueca. Tanto quanto apurei, é uma espécie de missionária… que dá aulas. Boa pessoa, mas pouco fala de inglês. Mostrou-se muito
interessada pelo que lhe contei da minha filha.
Por esta altura já Poirot sabia tudo a respeito da filha de Mrs. Hubbard.
Aliás, sabiam todos aqueles que iam no comboio e entendiam inglês! Como
ela e o marido pertenciam ao corpo docente de um grande colégio
americano em Esmirna, e que esta era a primeira viagem de Mrs. Hubbard ao
Oriente, e o que ela achava dos turcos e dos seus modos desleixados e da
condição das estradas.
A porta ao lado abriu-se e saiu o criado magro e pálido. Poirot conseguiu
ter um vislumbre de Mr. Ratchett sentado na cama. Este viu Poirot e o seu
rosto alterou-se, ensombrando-se de cólera. Depois fecharam a porta.
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Mrs. Hubbard arrastou Poirot um pouco para o lado.
— Sabe, tenho um medo de morte daquele homem. Oh, não do criado…
do outro… do amo. Amo, sim, é isso mesmo! Há algo de errado nesse homem.
A minha filha sempre disse que eu tenho uma grande intuição: «Quando a
mamã tem um palpite, acerta sempre em cheio», é o que a minha filha diz. E
eu tenho um palpite sobre esse homem. Está mesmo ao meu lado e isso não
me agrada. Ontem à noite usei de toda a minha força contra a porta de
comunicação. Julguei ouvi-lo a testar o puxador. Sabe, não me admiraria
nada se esse homem viesse a revelar-se um assassino… um desses assaltantes
de comboios de que às vezes as notícias falam. Suponho que estou a ser
disparatada, mas é assim. Tenho um medo terrível do homem! A minha filha
disse que eu ia ter uma viagem agradável, mas já não me sinto muito feliz
com a ideia. Pode parecer uma loucura, mas sinto que pode acontecer
alguma coisa. Qualquer coisa mesmo. E nem sequer imagino como é que
aquele simpático jovem suporta ser secretário dele.
Arbuthnot e MacQueen vinham pelo corredor e aproximavam-se deles.
— Venha à minha carruagem — dizia MacQueen. — Ainda não foi
preparada para a noite. Quero que me explique bem essa sua política na
Índia sobre…
Passaram e percorreram o corredor em direcção à carruagem de
MacQueen.
Mrs. Hubbard deu as boas-noites a Poirot.
— Acho que vou já para a cama ler — disse ela. — Boa noite.
— Boa noite, Madame.
Poirot encaminhou-se para o seu próprio compartimento, a seguir ao de
Ratchett. Despiu-se e enfiou-se na cama, leu durante cerca de meia hora e
apagou a luz.
Acordou algumas horas depois, com um sobressalto. Sabia o que é que o
tinha despertado — um gemido alto, quase um grito, algures mesmo ali.
Nesse mesmo instante soou o agudo tinido de uma campainha.
Sentou-se e acendeu a luz. Reparou que o comboio parara — provavelmente numa estação.
Aquele grito assustara-o. Lembrou-se de que era Ratchett que ocupava o
compartimento ao lado. Levantou-se e abriu a porta exactamente no
momento em que o revisor se apressava pelo corredor fora e batia à porta de
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Ratchett. Manteve uma pequena frincha da porta aberta e ficou a observar.
O revisor bateu uma segunda vez. Soou uma campainha e uma luz acendeu-se sobre uma outra porta mais afastada. O revisor olhou sobre o ombro.
Simultaneamente, uma voz gritou de dentro do compartimento do lado:
— Ce n’est rien. Je me suis trompé.
— Bien, Monsieur. — O revisor apressou-se novamente, indo bater à porta onde a luz tinha acendido.
Poirot voltou para a cama, aliviado, e apagou a luz. Olhou para o relógio.
Faltavam exactamente vinte e três minutos para a uma.
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CAPÍTULO V
O CRIME
Custou-lhe tornar a adormecer. Antes do mais, sentia a falta do movimento do comboio. Se estavam numa estação, esta estava curiosamente silenciosa. Em contrapartida, no comboio os ruídos pareciam inusitadamente
altos. Conseguia ouvir Ratchett a mexer-se no compartimento ao lado — um
clique quando ele baixava o lavatório, o som da torneira a correr, um ruído de
água a cair, e depois outro clique quando o lavatório foi fechado. Soaram
passos no corredor, os passos arrastados de alguém de chinelos.
Hercule Poirot mantinha-se acordado a olhar para o tecto. Por que razão
a estação lá fora estava tão silenciosa? Sentia a garganta seca. Esquecera-se
de pedir a habitual garrafa de água mineral. Olhou novamente para o relógio.
Apenas uma e um quarto. Chamaria o revisor para lhe pedir água mineral. O
dedo dirigiu-se para a campainha, mas deteve-se pois ouvira um tinido
naquele silêncio. O homem não poderia atender todas as chamadas logo de
imediato.
Trrim… trrim… trrim…
A campainha continuava a retinir. Onde estaria o homem? Quem o
chamava já estava a ficar impaciente.
Trrim…
Quem quer que fosse, mantinha o dedo firmemente no botão.
O homem apareceu então subitamente apressado, com passadas que
ecoavam no corredor. Bateu numa porta não muito afastada da de Poirot.
E então ouviram-se vozes — a do revisor, deferente e submissa, e a de
uma mulher, insistente e loquaz.
Mrs. Hubbard.
Poirot sorriu para si próprio.
A altercação — se era mesmo uma altercação — durou algum tempo,
numa proporção em que noventa por cento se devia a Mrs. Hubbard, contra
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dez por cento da parte do revisor. Finalmente, a questão pareceu chegar a um
consenso. Poirot ouviu distintamente:
Bonne nuit, Madame, e uma porta a fechar-se.
Premiu então a sua campainha.
O revisor surgiu prontamente. Parecia agitado e preocupado.
— De l’éau minerale, s’il vous plaît.
— Bien, Monsieur. — Talvez tenha sido uma pequena centelha no olhar
de Poirot que o levou a desabafar.
— La dame americaine…
— Sim?
O homem limpou a testa.
— Imagine o tempo que ela me fez perder! Ela insiste, mas é que insiste
mesmo, que está um homem no seu compartimento. Imagine só, Monsieur!
Num espaço deste tamanho. — E mostrou com a mão o espaço em redor. —
Onde é que o homem poderia esconder-se? Discuto com ela. Faço-lhe ver
que é impossível. Ela insiste. Que tinha acordado e que havia um homem ali.
E como é que ele, perguntei-lhe eu, conseguiu sair e deixar a porta trancada
atrás de si? Mas ela não quer ouvir a voz da razão. Como se não houvesse já
aborrecimentos que chegassem! A neve…
— Neve?
— Mas sim, Monsieur. Monsieur não notou? O comboio parou. Apanhámos uma tempestade de neve. Só Deus sabe quanto tempo vamos ficar aqui.
Lembro-me de uma vez ter ficado sete dias bloqueado pela neve.
— Onde estamos?
— Entre Vincovci e Brod.
— Là là — disse Poirot irritado.
O homem retirou-se e voltou com a água.
— Bon soir, Monsieur.
Poirot bebeu um copo de água e dispôs-se a dormir.
Estava quase a adormecer quando algo o despertou novamente. Desta
vez era como se alguma coisa pesada tivesse caído com um som abafado
contra a porta.
Levantou-se de um salto, abriu-a e olhou para fora. Nada. Mas à sua
direita, algures mais ao fundo do corredor, uma mulher envolta num quimono escarlate recuou ao dar pela presença dele. O revisor estava sentado no
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seu lugar diminuto na outra extremidade, a dar entrada de números em
grandes folhas de papel. Estava tudo envolto numa calma de morte.
Decididamente, sofro dos nervos, disse Poirot, enfiando-se de novo na
cama. Desta vez dormiu até de manhã.
Quando acordou, o comboio ainda estava parado. Levantou a cortina e
olhou lá para fora. Pesadas camadas de neve cercavam o comboio.
Olhou para o relógio e viu que passava das nove horas.
Às dez menos um quarto, todo aprumado, e elegante como sempre, dirigiu-se para a carruagem-restaurante, onde decorria um coro de lamentações.
Tinham desaparecido já quaisquer barreiras que pudessem ter existido
entre os passageiros. Estavam todos unidos por aquela desgraça comum. As
lamúrias de Mrs. Hubbard eram as que se faziam ouvir mais alto.
— A minha filha disse que seria a melhor das viagens no mundo. Que
bastava sentar-me no comboio e chegava a Parrus. E agora podemos ficar
aqui dias e dias — lamentava-se ela. — E o meu barco parte depois de amanhã. Como é que o vou apanhar agora? Céus, se nem sequer posso mandar
um telegrama para me cancelaram a viagem! Estou tão aborrecida que nem
consigo falar disto!
O italiano disse que ele próprio tinha negócios urgentes em Milão. O
americano alto disse que aquilo era «realmente uma pena, minha senhora», e
expressou com modos apaziguadores a esperança de que o comboio pudesse
recuperar o tempo perdido.
— A minha irmã… os filhos esperam-me — disse a senhora sueca, e
começou a chorar. — E eu sem poder avisá-los. Que hão-de pensar? Vão
dizer que me aconteceu alguma desgraça.
— Quanto tempo iremos ficar aqui? — perguntou Mary Debenham. —
Será que alguém sabe?
A sua voz soava impaciente, mas Poirot notou que já não havia sinais
daquela ansiedade quase febril que manifestara ao embarcar no Expresso
Tauro.
Mrs. Hubbard recomeçou:
— Ninguém sabe nada neste comboio. E ninguém tenta fazer nada. Não
passam de um monte de inúteis estrangeiros! Céus!, se isto fosse lá no nosso
país, pelo menos alguém tentava fazer alguma coisa.
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Arbuthnot voltou-se para Poirot e falou-lhe num cuidadoso francês
inglesado.
— Vous êtes un directeur de la ligne, jo crois, Monsieur. Vous pouvez nous
dire…
Poirot sorriu e corrigiu-o.
— Não, não — disse ele, em inglês. — Não sou eu. Confundiu-me com o
meu amigo, M. Bouc.
— Oh! Desculpe.
— Não tem importância. É muito natural. Estou presentemente no
compartimento que ele ocupava antes.
M. Bouc não estava ali na carruagem-restaurante. Poirot olhou em redor
para verificar quem mais estava ausente.
Faltava a Princesa Dragomiroff e o casal húngaro. E também Ratchett, o
seu criado, e a dama de companhia da senhora alemã.
A senhora sueca enxugou os olhos.
— Que estupidez a minha — disse ela. — Para aqui a chorar como um
bebé. Que tudo corra pelo melhor, aconteça o que acontecer.
No entanto, este espírito cristão estava bem longe de ser partilhado pelos
outros.
— Que diabo de situação — disse MacQueen impacientemente. — Podemos ficar aqui dias.
— Que país é este afinal? — perguntou Mrs. Hubbard, de lágrimas nos
olhos.
Quando lhe disseram que era a Jugoslávia, replicou:
— Oh, uma dessas zonas dos Balcãs! Já era de esperar, não?
— É a única pessoa que vejo resignada, Mademoiselle — disse Poirot a
Mary Debenham.
— Que se há-de fazer?
— É uma filósofa, Mademoiselle.
— Isso implica uma atitude de desprendimento. Acho que a minha
atitude é mais egoísta. Aprendi a proteger-me das emoções inúteis.
Nem sequer estava a olhar para ele. Tinha o olhar fixo para além dele, na
direcção da janela, onde a neve jazia em pesadas camadas.
— Tem uma personalidade forte, Mademoiselle — disse Poirot amávelmente. — Creio que é a mais forte de todos nós.
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— Oh, não. Não, certamente que não. Conheço alguém muito mais forte
do que eu.
— E essa pessoa é…?
Ela pareceu de súbito voltar à realidade, dando-se então conta de que
estava a falar com um estranho, um estrangeiro, com quem apenas trocara
meia dúzia de frases até àquela manhã.
Deu uma risada cortês mas distante.
— Bem… aquela senhora idosa, por exemplo. Provavelmente já reparou
nela. Uma senhora muito feia, mas fascinante. Basta-lhe levantar o dedo e
pedir o que quer que seja com uma voz educada… que põe logo toda a gente
no comboio a mexer-se.
— Acontece o mesmo com o meu amigo, M. Bouc — disse Poirot. —
Mas isso é porque é um dos directores da companhia, e não porque tenha
uma personalidade que se impõe.
Mary Debenham sorriu.
A manhã foi decorrendo. Muitos dos passageiros permaneceram na
carruagem-restaurante, entre eles Poirot. Sentiam que o tempo passaria melhor estando juntos. Ouviu um pouco mais sobre a filha de Mrs. Hubbard e
sobre os hábitos em vida do falecido Mr. Hubbard: desde que se levantava da
cama e começava o pequeno-almoço com cereais, até ir descansar à noite,
com as meias que a própria Mrs. Hubbard costumava tricotar-lhe.
Enquanto escutava um confuso relato dos propósitos missonários da
senhora sueca, um dos revisores entrou na carruagem e aproximou-se de
Poirot.
— Pardon, Monsieur.
— Sim?
— Cumprimentos de M. Bouc, que lhe agradecia a bondade de ir ter com
ele dentro de minutos.
Poirot levantou-se, pediu licença à senhora sueca e seguiu o homem para
fora da carruagem.
Não era o revisor da sua própria carruagem, mas um homem gordo e
aloirado.
Seguiu-o pelo corredor da sua própria carruagem e depois através do
corredor da seguinte. O homem bateu a uma porta e afastou-se para deixar
Poirot entrar.
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Não era o compartimento de M. Bouc. Era um da segunda classe — provavelmente escolhido por ser ligeiramente maior. Dava mesmo a impressão
de estar apinhado.
O próprio M. Bouc estava sentado num pequeno assento no canto oposto à entrada. Em frente, no canto junto à janela, um homenzinho moreno
olhava para a neve lá fora. Um homem alto de farda azul (o chef de train) estava ali de pé, quase impedindo que Poirot avançasse mais, e ainda o revisor da
sua própria carruagem-cama.
— Ah, meu caro amigo! — exclamou M. Bouc. — Entre. Precisamos de
si.
O homenzinho encostado à janela afastou-se para o lado; Poirot espremeu-se para passar por entre os outros dois e sentou-se em frente do amigo.
A expressão no rosto de M. Bouc deu-lhe, como teria dito, matéria para
lhe pôr o cérebro a fervilhar. Era bem claro que acontecera alguma coisa fora
do comum.
— Que sucedeu? — perguntou.
— Bem pode perguntar! Primeiro esta neve… esta paragem. E agora…
Calou-se — e o revisor emitiu um som estrangulado.
— E agora o quê?
— E agora há um passageiro que apareceu morto no beliche… apunhalado.
M. Bouc falou com um desespero controlado.
— Um passageiro? Que passageiro?
— Um americano. Um homem chamado… chamado… — consultou uns
apontamentos que tinha diante de si.
— Ratchett… será isso?… Ratchett?
— Sim, Monsieur — disse o revisor, engolindo em seco.
Poirot olhou para ele. Estava branco como a cal.
— É melhor deixar o homem sentar-se — disse. — De contrário, ainda
desmaia.
O chef de train afastou-se ligeiramente e o revisor afundou-se no canto,
enterrando o rosto nas mãos.
— Brr! — disse Poirot. — A situação é séria!
— Com certeza que é séria. Antes do mais, um crime… e isso, só por si, é
já uma calamidade das mais graves. Mas não só, pois as circunstâncias são
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inusitadas. Eis-nos aqui, a braços com uma paragem forçada. Podemos ficar
horas… e até mais do que horas… dias! Uma outra circunstância: na maioria
dos países por que passamos, a polícia nacional embarca sempre no comboio. Mas na Jugoslávia… não. Compreende?
— É uma situação bem melindrosa — disse Poirot.
— Mas ainda há pior. O Dr. Constantine… Já me esquecia, não o apresentei… Dr. Constantine, M. Poirot.
O homenzinho moreno fez uma pequena vénia com a cabeça e Poirot retribuiu.
— O Dr. Constantine é da opinião de que a morte sucedeu por volta da
uma da madrugada.
— É difícil precisar exactamente nestes casos — disse o médico —, mas
julgo poder afirmar com segurança que a morte ocorreu entre a meia-noite e
as duas da madrugada.
— Quando é que este M. Ratchett foi visto com vida pela última vez?
— Sabe-se que ainda estava vivo cerca das vinte para a uma, quando
falou com o revisor — disse M. Bouc.
— Sim, é verdade — disse Poirot. — Eu próprio ouvi o que se estava a
passar. E isso é a última coisa que se sabe?
— Sim.
Poirot voltou-se para o médico, que prosseguiu:
— A janela do compartimento de M. Ratchett foi encontrada completamente aberta, o que nos leva a supor que o assassino fugiu por ali. Mas, na
minha opinião, essa janela aberta é para nos tapar os olhos. Quem quer que
tivesse saído por ali, teria deixado rastos bem nítidos na neve. E não havia
nenhuns.
— O crime foi descoberto… quando? — perguntou Poirot.
— Michel!
O revisor levantou-se. O rosto ainda parecia pálido e assustado.
— Conte a este cavalheiro o que aconteceu exactamente — ordenou M.
Bouc.
O homem respondeu com uma voz trémula.
— O criado deste M. Ratchett, ele bateu várias vezes à porta esta manhã.
Não houve resposta. E então, há cerca de uma hora, veio o empregado da
carruagem-restaurante. Queria saber se Monsieur ia tomar o déjeuner. Eram
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onze horas, como deve compreender. Abro-lhe a porta com a minha chave.
Mas há também uma corrente, que está posta. Ninguém responde e está
tudo muito silencioso, e frio… tão frio! Com a janela aberta e a neve a entrar.
Pensei que o cavalheiro talvez tivesse tido um ataque. Fui buscar o chef de
train. Quebrámos a corrente e entrámos. Ele estava… Ah! c’était terrible!
Enterrou novamente o rosto nas mãos.
— A porta estava fechada e com a corrente posta por dentro — disse
Poirot, pensativamente. — Não foi suicídio… hã?
O médico grego deu uma risada sardónica.
— Já viu um homem suicidar-se infligindo a si próprio dez… doze…
quinze punhaladas? — perguntou.
Os olhos de Poirot abriram-se mais.
— Mas que grande ferocidade! — disse.
— É uma mulher — disse o chef de train, falando pela primeira vez. —
Pode ter a certeza, foi uma mulher. Só uma mulher é que apunhalaria assim.
O Dr. Constantine contraiu o rosto pensativo.
— Teria de ser uma mulher mesmo muito forte — disse. — Não é minha
intenção usar termos técnicos, só servem para confundir, mas posso assegurar-lhes que um ou dois golpes foram desferidos com tal força que conseguiram penetrar através de duras camadas de osso e músculo.
— Não foi, claramente, um crime científico — disse Poirot.
— Foi mesmo bastante anticientífico — disse o Dr. Constantine. — Os
golpes parecem ter sido desferidos ao acaso e aleatoriamente. Alguns foram
apenas de raspão, quase não causando dano. É como se alguém tivesse
fechado os olhos e golpeasse freneticamente às cegas uma e outra vez.
— C’est une femme — disse o chef de train novamente. — As mulheres
são assim. Quando estão enfurecidas têm uma força incrível. — Abanou a
cabeça com tais ares de entendido que todos suspeitaram que ele passara já
por uma experiência pessoal assim.
— Sei de uma coisa que talvez possa contribuir para o vosso conhecimento da situação — disse Poirot. — M. Ratchett falou comigo ontem. Tanto
quanto fui capaz de entender, contou-me que a sua vida corria perigo.
— «Despacharam-no». É esse o termo americano, não é? — disse M.
Bouc. — Então não se trata de uma mulher. Mas de um criminoso ou de um
«atirador profissional».
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O chef de train pareceu ficar desolado por a sua teoria ter dado em nada.
— Sendo assim — disse Poirot —, parece que foi feito por um amador.
O seu tom exprimia desaprovação profissional.
— Há um americano alto no comboio — disse M. Bouc, perseguindo a
sua ideia —, um homem de aspecto normal, com roupas horríveis. Masca
chicletes, o que, creio, não se faz nos bons círculos. Sabe a quem me refiro?
O revisor interpelado anuiu.
— Oui, Monsieur, o número 16. Porém, não pode ter sido ele. Eu tê-lo-ia
visto a entrar ou a sair do compartimento.
— Talvez não tivesse visto. Talvez não tivesse. Mas voltaremos a isso
daqui a pouco. A questão é: que fazer? — Olhou para Poirot.
— Então, meu amigo — disse M. Bouc. — Já deve ter compreendido o
que lhe vou pedir. Conheço as suas capacidades. Assuma esta investigação!
Não, não, não recuse. Sabe, para nós é grave… e estou a falar-lhe em nome da
Compagnie Internationale des Wagons Lits. Na altura em que a polícia jugoslava chegar, quão simples seria se pudéssemos apresentar-lhes logo a solução!
De outro modo, atrasos, aborrecimentos, mil e um incómodos. E talvez,
quem sabe, sérios incómodos para pessoas inocentes. Em vez disso… você
resolve o mistério! Nós diremos apenas: «Ocorreu um crime — aqui têm o
assassino!».
— Mas suponhamos que eu não o resolvo?
— Ah! Mon cher. — A voz de M. Bouc tornou-se absolutamente afectuosa. — Conheço a sua reputação. Conheço os seus métodos. Este é o caso
ideal para si. Verificar os antecedentes de toda esta gente, descobrir as suas
bona fides, tudo isso custa tempo e incómodos infindáveis. Mas por acaso
não o ouvi dizer já muitas vezes que para se resolver um caso uma pessoa só
tem de se recostar na cadeira e pensar? Faça isso. Interrogue os passageiros
do comboio, observe o corpo, examine os indícios que há e depois… bem, eu
confio em si! Tenho a certeza de que isso não será indolência da sua parte.
Recoste-se e pense… use (como já o ouvi dizer amiudadamente) as pequenas
celulazinhas cinzentas do cérebro… e então descobrirá!
Inclinou-se para a frente, olhando com afeição para o amigo.
— A sua fé comove-me, meu amigo — disse Poirot, emocionado. —
Como você diz, não será um caso assim tão difícil. Eu mesmo, na noite
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passada… mas não vamos falar disso agora. Na verdade, este problema intriga-me. Estava eu a pensar, ainda não há meia hora, que tínhamos pela frente
muitas horas de tédio enquanto ficássemos aqui parados. E agora… tenho
um problema mesmo à mão.
— Aceita então? — disse M. Bouc, com sofreguidão.
— C’est entendu. Deixe o assunto nas minhas mãos.
— Muito bem, estamos todos ao seu dispor.
— Para começar, gostaria de ter uma planta da carruagem Istambul–
–Calais, com a relação das pessoas que ocuparam os vários compartimentos,
e também gostaria de ver os respectivos passaportes e bilhetes.
— Michel encarregar-se-á disso.
O revisor saiu do compartimento.
— Quais são os outros passageiros do comboio? — perguntou Poirot.
— Nesta carruagem, o Dr. Constantine e eu somos os únicos passageiros.
Na carruagem de Bucareste viaja um velho cavalheiro coxo. O revisor conhece-o bem. Depois há as carruagens normais, mas estas não nos interessam,
pois foram fechadas depois do jantar de ontem. À frente da carruagem
Istambul–Calais há apenas a carruagem-restaurante.
— Parece-me então — disse Poirot, lentamente — que vamos ter de procurar o nosso assassino na carruagem Istambul–Calais. — Voltou-se para o
médico. — Era o que o senhor estava a sugerir, presumo?
O grego assentiu.
— À meia-noite e meia ficámos detidos na neve. Ninguém pôde sair do
comboio desde então.
M. Bouc disse com solenidade:
— O assassino está entre nós… está no comboio neste momento.
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