Registros do Silêncio na Narrativa Breve de Raduan Nassar

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Registros do Silêncio na Narrativa Breve de Raduan Nassar
1 INTRODUÇÃO
Escrever sobre o silêncio significa, nesse trabalho, examinar seus matizes por
pressupô-los, além de variados, profundos. Mas, precisamente, o que se quer é explorar as
dimensões do silêncio dentro do contexto literário, privilegiando, especificadamente, as
narrativas breves de Raduan Nassar.
A escolha pelo autor se deu em razão do desafio que o estilo de Raduan representa para
trabalho de análise literária. Do contato com a obra, detectou-se uma constante, a exploração
do silêncio em variadas acepções, como se essa manifestação fosse a meta imaginária e secreta
da palavra escrita. Por se apresentar aparentemente hermética essa meta, o estudo proposto se
dispõe a decifrá-la. Parte-se, então, da definição do escritor Raduan Nassar, por ele mesmo:
Eu sou mais como a galinha caipira. Não boto um ovo de dia e outro a noite, sob luz artificial. Não entro
muito nessa história de que o escritor precisa se profissionalizar. [...] Ás vezes em 50 páginas você pode
dizer muito mais que em dez livros. Depois, há tantos autores de um único livro que dizem tanta coisa!
(CICCACIO, 1981)
Raduan profetizava o que viria acontecer em 1984, ano em que anunciava seu
afastamento definitivo da literatura, trocando a criação estética pela dedicação exclusiva à
produção rural.
O paulista de Pindorama, filho de imigrantes libaneses, permanece indiferente ao
sucesso e reconhecimento que sua breve, porém densa, obra alcançou, cultivando seu autoexílio literário, pois “a literatura, na ordem geral das coisas, não passa de uma coisinha.”
(SILÊNCIO..., 1989).
Resulta dessa concisa produção uma crítica relativamente recente e também restrita,
em grande parte, ao romance de estréia, Lavoura Arcaica. O sucesso do texto rendeu um
considerável número de produções acadêmicas, na forma de teses e dissertações. Coadjuvantes
dessa produção, restam artigos de jornais que dão conta de comentar sua segunda publicação
de igual repercussão, a novela Um copo de cólera, e muito raros são os artigos encontrados
que se debruçam sobre os quase desconhecidos contos do autor.
Por isso, nesse trabalho de pesquisa a cerca da obra de Raduan, será comum encontrar
citações de trechos de artigos da imprensa para confirmar ou mesmo orientar as análises das
narrativas selecionadas.
Em 1997, Raduan, mais de uma década após declarado o fim de sua carreira na
1
literatura, renovou antigas esperanças dos leitores ao ser publicada a primeira edição
comercial de Menina a Caminho – primeiro conto do autor escrito no início dos anos 60. Esse
primeiro trabalho de ficção deu título a uma coletânea de mais quatro contos. Vinha a público
a desconhecida “safrinha”1 de Raduan. A edição saiu um ano após o autor ter sido tema do
segundo número dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles.
Desse modo, dentro da contemporaneidade da obra de Raduan, e da relevância do
autor para os estudos literários, justifica-se uma discussão a cerca dessa “nova”2 parcela pouco
estudada de sua obra. O recorte na produção contempla três narrativas, dois contos, “Hoje de
Madrugada” e “O ventre seco”, finalizados e publicados separadamente em 1970 e compilados
na coletânea Menina a Caminho (1997) e a novela, Um copo de cólera, iniciada no mesmo
ano de 1970 e com primeira edição em 1978.
Ao passo que se identifica a ausência de respostas do taciturno narrador de “Hoje de
Madrugada”, e uma fuga do diálogo, na discussão unilateral do epistolar “O ventre Seco”, é
possível localizar vestígios de silêncio em meio à hemorragia verbal de Um copo de cólera?
Verifica-se que sim, mesmo que o estridente “esporro”3 do texto venha servir de contraponto
às duas outras narrativas.
Nesses três textos transcorre um mesmo conflito – cada qual a seu modo, um embate
entre o narrador-personagem masculino e a figura feminina, esposa, amante, namorada –
adensado por um recurso estético de efeito tencional, o silêncio, verificado em diferentes
registros, do tratamento dado à linguagem à proximidade temporal dessas produções.
Portanto, não se trata apenas de mostrar ou ilustrar o silêncio através dos textos de
Raduan, mas de correlacioná-lo de forma acessível a questões estéticas, ideológicas e à
situação histórica, em menor grau. O propósito, em suma, é verificar essa pluralidade de
manifestações do silêncio, esse “[...] solo indelegável da experiência pessoal. Experiência que,
diga-se de passagem, não é pessoal porque pertença ao homem, mas sim porque o homem,
quando a vive, pertence por inteiro a ela.” (KOVADLOFF, 2003, p. 173).
1
Modo particular pelo qual Raduan Nassar apelida seus contos. Extraído de: CADERNOS DE LITERATURA
BRASILEIRA. Raduan Nassar. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2001. p. 55.
2
Entenda-se por “nova”, e não inédita, o fato de os textos terem ganhado edição comercial.
3
Referência ao título, O esporro, do capítulo principal de Um copo de cólera.
2
2 NARRATIVA BREVE
Para se classificar em gêneros narrativos um texto em prosa, de modo facilmente
apreensível, muitos teóricos parecem preferir o elemento quantitativo ao aspecto qualitativo,
por esse último se mostrar complexo em definição.
“O romance é uma narrativa longa. A novela é uma narrativa média. O conto é uma
narrativa curta. O critério pode ser muito empírico, mas é muito verdadeiro”: Isso é um
exemplo de definição, de Alceu Amoroso Lima, apresentado por Gotlib (2002, p. 63-64), em
que se opta pelo tamanho como sinal característico de diferenciação de uma obra de ficção em
prosa.
Em contrapartida, Gotlib (2002, p. 63-66) discute a questão da brevidade, trabalhando
com os conceitos de Normam Friedman, em que o breve enquanto literatura não é apenas uma
questão do tamanho. Friedman, em What Makes a Short Story Short?, argumenta que
[...] a short story is short because the size of the action is short, because action is static or dynamic,
because the author chooses to present in a contracted scale by means of summation and deletion, or
because the author chooses a point of view that lends itself to brevity. (FRIEDMAN, apud. MAY, 1995,
p. 121).4
Comparada ao romance, a narrativa breve apresenta diferenciais mais consistentes do
que a simples questão do tamanho:
Acontece, todavia, que a novela e o conto se afastam do romance no que diz respeito ao modo de
funcionamento tanto estrutural como semântico-pragmático. E esta diferença de natureza radical afecta
todas as instâncias da comunicação literária, a começar no autor, continuando nos editores e acabando
no leitores e na crítica. Todas estas entidades preferem o romance às narrativas breves. (FERREIRA,
2001, p. 124-125).
Isso é verificável no percurso de Raduan, do reconhecimento pelo romance Lavoura
Arcaica, até a publicação de seus contos, a “safrinha”5, como ele apelidou os textos –
denotando um certo grau de minoridade estética para os mesmos. A publicação de Menina a
caminho pôde representar uma reviravolta, no sentido de ter conferido às narrativas breves do
autor um estatuto que as resgatou da condição de menoridade a que tinham sido remetidas
4
[...] um conto é curto pois o tamanho da ação é curta, porque a ação é estática ou dinâmica, porque o autor
escolheu apresentá-lo em uma escala contraída , no sentido de reduzir e eliminar, ou porque o autor escolheu um
ponto de vista que conduz a si mesmo à brevidade. (livre tradução)
3
pelo próprio autor.
Na verdade, o que se deve ressaltar é que a excelência das narrativas de Raduan de
“fôlego curto”6 não deve temer qualquer confronto estético com o seu romance de “respiração
mais ampla”7, Lavoura arcaica.
É exatamente em contextos como esse que se costuma considerar o conto um tipo de
texto narrativo incapaz de garantir ao escritor imediata atenção das editoras. Isso tem reflexos
também no público e na crítica especializada, que terão a mesma reação perante as outras
formas de narrativa breve, como a novela e a crônica.
Os conceitos predominantes de narratividade e brevidade, assim como os pressupostos
estéticos que compõem a expressão “narrativa breve”, adaptam-se muito bem ao conjunto da
obra de Raduan – pequeno número de textos literários, sem constituir volumes densos, um
conjunto materialmente breve, no entanto, sem perder propriedade literária.
A tendência maior para a narrativa curta é visivelmente demonstrada na coletânea de
contos Menina a caminho: “Menina a caminho”; “Hoje de madrugada”, “O ventre seco”; “Aí
pelas três da tarde”; e “Mãozinhas de seda”. Textos que finalmente foram aceitos por uma
crítica que deu reconhecimento à Raduan Nassar “por sua prosa ao mesmo tempo exuberante e
econômica (no sentido de não ter nenhuma “gordura” dispensável), seu extraordinário poder
de evocação, sua delicadeza extrema, seu ritmo musical e envolvente, é uma obra prima da
narrativa breve” (COUTO, 1997).
Note-se, porém, que brevidade narrativa não significa ausência de espessura; a brevidade narrativa exige
um minucioso trabalho de escrita, de modo a produzir um efeito de concisão tensa, não perdulária, mas
geradora de mecanismos que propiciam o funcionamento pleno da linguagem. É por isso que as
narrativas breves tendem a ser aproximadas da densidade semântica do poema ou da fotografia,
eximindo-se, portanto, à ambição polifônica do romance e do cinema. (FERREIRA, 2001, p. 128).
Cortázar (1972, p. 151) também discorre sobre essa característica polifônica8 do
romance, a qual vai chamar de acumulação, ao estabelecer semelhante paralelo entre romance
e conto, cinema e fotografia: “[...] um filme é em princípio uma “ordem aberta”, romanesca,
enquanto que a fotografia bem realizada pressupõe uma justa limitação prévia, imposta em
parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e pela forma que o fotógrafo utiliza
5
CADERNOS..., 2001, p. 55.
Expressão usada por António Manuel Ferreira (2001), ao tratar das narrativas de Branquinho da Fonseca.
7
Idem.
8
No mesmo sentido usado por Ferreira (2001) na citação anterior.
6
4
esteticamente essa limitação.”
Diferentemente da acumulação do romance/cinema, é a seleção do significativo o que
importa no conto/fotografia segundo Cortázar. E é esse significativo que captura a atenção do
leitor ao “[...] revelar a profundeza subjacente à brevidade, isto é, articular a <densidade do
conteúdo> com a exiguidade da forma [...]”(FERREIRA, 2001, p. 128).
Essa articulação é bem desempenhada por Raduan nas duas formas breves com que
trabalha, conto e novela, revisadas sucintamente a seguir.
2.1 O CONTO
Dentro da narrativa breve, em que se pode incluir, portanto, o conto, a novela e a
crônica como seus principais representantes, pode-se estudar isoladamente o conto enquanto
forma narrativa que se apóia em outros procedimentos e princípios estéticos, pois
[...] na verdade, se comparada à novela e ao romance, a narrativa curta condensa e potencia no seu
espaço todas as possibilidades da ficção. E mais, o mesmo modo breve de ser compele o escritor a uma
luta mais intensa com as técnicas de invenção, de sintaxe compositiva, de elocução: daí ficarem
transpostas depressa as fronteiras que no conto separam o narrativo do lírico, o narrativo do dramático.
(BOSI, 1983, p. 7).
Parte-se desse princípio para estudar os contos “Hoje de Madrugada” e “O ventre seco”
como formas plenas desse gênero narrativo e por atenderem às situações de tensão, brevidade
e conflito expostas na seqüência.
Gotlib (2004), ao teorizar a cerca dessa forma narrativa, acrescenta os conceitos de
Julio Cortázar. O escritor argentino, no paralelo em que o romance se coloca para o conto
assim como o cinema para a fotografia, prioriza, além do tamanho, o significado, a intensidade
e a tensão como a de “uma bolha de sabão que se desprende do autor, do seu pito de gesso”
(GOTLIB, 2004, p. 67). Essa representação enfatiza a forma fechada e tensa do conto,
complementando a idéia de Alfredo Bosi: “Literariamente: o contista explora no discurso
ficcional uma hora intensa e aguda da percepção. Esta, acicatada pelo demônio da visão, não
cessa de perscrutar situações narráveis na massa aparentemente amorfa do real.” (BOSI, 1983,
p. 9).
Por isso o conto, unívoco e univalente, na forma moderna difundida até então,
sobrevive do conflito e do drama que “[...] nasce quando se dá o choque de duas ou mais
personagens, ou de uma personagem com suas ambições e desejos contraditórios. Se tudo
5
estivesse em plena paz e ordem entre as personagens, não haveria conflito, portanto, nem
história” (MOISÉS, 1973, p. 124).
Brevidade e tensão – se considerados como processo da escolha de uma história
concentrada em uma personagem, um espaço e um momento – funcionam, desse modo, como
bons parâmetros para se definir um texto enquanto conto.
Mais uma vez, faz-se necessário remeter à comparação de Cortázar, que, ao relacionar
forma e conteúdo, vê o conto como uma fotografia, uma tela em que se verificam e se
registram situações do homem em conflito, como defende H. E. Bates, citado por Moisés
(1973). Segundo Bates, as personagens de um conto:
[...] em vez de crescerem diante de nós, como as personagens de romance, oferecem apenas uma faceta
de seu caráter, não importa a mais importante, como que à luz do microscópio: desse ângulo, o conto
semelha uma tela em que se fixasse, plasticamente, o apogeu de uma situação humana. (MOISÉS, 1973,
p. 127).
Dos procedimentos literários próprios do conto, ou mais observáveis no conto
moderno, nota-se o rompimento com a tradição no descompromisso, cada vez mais freqüente,
com os grandes acontecimentos, com ações de desenvolvimento, clímax e desenlace. É cada
vez mais comum notar-se a ausência de enredos, pois esse vem se mostrando não necessário,
muitas vezes nada é contado, porém, não se deixa de lado a sugestão.
Raduan Nassar não passa ao largo das características do conto contemporâneo.
Elementos como o coloquialismo, desmonte da estrutura e até uma diluição de fronteiras entre
os gêneros narrativos – como a prosa lírica, ao mesmo tempo cinematográfica, do menos breve
“Menina a caminho”9 e o reconhecível tom de crônica do “Aí pelas três da tarde”10 –
aproximam os contos de Raduan dessa contemporaneidade.
A metalinguagem é outra característica, por exemplo, localizada no último conto de
Raduan, “Mãozinhas de seda”11, o único texto totalmente inédito, escrito especialmente para o
9
“Menina a caminho” (anos 60) narra o passeio de uma garota, incumbida de levar um recado terrível, pelas ruas
de uma didadezinha interiorana. No percurso, a menina se depara “[...] com a brutal realidade de personagens
amesquinhados, numa narrativa cinematográfica que culmina num belo e dramático desfecho."”(COMODO,
1997).
10
O conto, de 1972, pode lembrar uma crônica pois “[...] relembra sem citar a redação do extinto semanário
paulistano Jornal do Bairro, fundado por Nassar e seus irmãos em 1967, numa empreitada jornalística que teve
importante papel político e cultural.” (COMODO, 1997) e “[...] sob forma muito diversa (é quase uma crônica,
enganosamente leve) [...] ao convocar o virtual leitor a renunciar à parte que lhe cabe na manutenção do fluxo do
mundo.”(COUTO, 1997).
11
“Mãozinhas de seda” foi escrito em 1996 e conta com um narrador saudosista da época em que não hesitava
em expor sua revolta. Nesse conto, observa-se um Raduan “retomando eventos de sua juventude e de sua história
6
segundo número dos Cadernos de Literatura Brasileira, IMS, e não publicado, na época da
edição, a pedido do autor, mas que passou a constar da coletânea Menina a caminho, de 1997.
2.2 A NOVELA
Uma das acepções, a de dicionário, diz que a novela é uma narração usualmente curta,
ordenada e completa de fatos humanos fictícios, mas, por via de regra, verossímeis. Apesar de
simplório o conceito, atentar para o “usualmente” afasta a idéia de distinção mecânica que
classifica as modalidades narrativas apenas de acordo com o tamanho do texto. Idéias que,
insuficientemente, contemplam apenas um aspecto:
Dizer que quando um livro consegue ficar de pé, trata-se de um romance; se cair, é uma novela; se nem
pode ser posto de pé, tem-se um conto, define apenas um aspecto externo, gráfico, que se dissolve
quando se usa outro veículo de comunicação, como o disquete, o vídeo ou a fita gravada. (KOTHE,
1994, p.16)
Alguns outros conceitos colocam a novela de maneira depreciativa perante os outros
gêneros. Afirmações como a de que a novela “[...] só raramente atinge o nível de
requintamento conseguido pelas duas formas em prosa que lhe são vizinhas” (MOISÉS, 1973,
p. 159) constam de manuais de literatura que, na dificuldade de uma definição que atenda à
maioria dos exemplos concretos, opta em avaliar uma parcela da produção desse gênero de
maneira tácita, menosprezando-o genericamente:
A novela transforma-se em verdadeiro jogo, e por esse ângulo é que é tomada ou encarada. Pedir-lhe
densidade, altura, verticalidade, dramatismo, enfim, tudo quanto cabe no romance e pode estar no conto,
é exigir-lhe o que francamente não pretende dar, nem dela espera o leitor comum. (MOISÉS, 1973, p. 159).
Apesar da idéia generalizante de Moisés (1973), seus conceitos quanto à estrutura
típica da novela são úteis para se estabelecer uma distinção mais formal e menos subjetiva
entre os gêneros narrativos.
Deve-se atentar para características internas do texto como o chamado núcleo ou célula
dramática. Apesar dos muitos pontos de contato com o romance, na novela a disposição dos
núcleos dramáticos se configura de modo diferente, não se agrupando em torno de um núcleo
central, mas se sucedendo em episódios ligados entre si apenas pela permanência de certos
familiar, ele repudia o universo intelectual. [...] Mas, mesmo achando os eruditos obscenos, ele acaba os
suportando, por uma questão de diplomacia.” (SANCHES NETO, 1997).
7
personagens. O tonus dramático descreve uma curva senóide que simboliza início, clímax e
epílogo, caracterizando a novela e a diferenciando basicamente do conto (MOISÉS, 1992, p.
363-367).
Na novela de Raduan Nassar, encontram-se essas características: a manutenção de duas
personagens em toda a seqüência e o proeminente “O esporro” – capítulo central de evidente
clímax. Contudo, é a dimensão e a densidade do texto que inclui essa novela na concepção de
narrativa breve. Nesse sentido, Milton Hatoum, em conversa com Raduan, comenta que
[...] Um copo de cólera parecia ilustrar a definição de Cortázar sobre a narrativa breve: “Um caracol da
linguagem, uma síntese viva e uma vida sintetizada... um tremor de água dentro de um cristal.” Isso
resumia, para mim, a força dessa novela, cujo rigor construtivo reúne os elementos decisivos para a
feitura de uma narrativa breve: a tensão, a intensidade e o significado. (CADERNOS..., 2001, p. 21).
Uma das vias para se chegar ao consenso quanto a uma definição satisfatória do gênero
novela é apontar as razões pelas quais se vincula Um copo de cólera a esse gênero, buscando
as características do texto em comparação ao que é estabelecido como romance e conto na
produção de Raduan. Nesse intuito, procurar apontar, de forma simples e direta, o que torna
“Hoje de Madrugada”, por exemplo, um conto, Um copo de cólera uma novela, e Lavoura
arcaica um romance atenderia à necessidade aqui requerida:
[...] quando a história se concentra em um aspecto, uma personagem, um local e um momento, tem-se
um conto; quando há uma seqüência linear de eventos, tem-se uma novela; quando o enredo se
multiplica em ações diversas, em locais, momentos e personagens diferentes, com temas diferenciados,
que se conjugam e entretecem de diversos modos, tem-se um romance. (KOTHE, 1994, p. 16).
Estas narrativas de Raduan atendem visivelmente à classificação baseada em volume
de texto, mas, mais uma vez, não deve ser essa propriedade a única que define o gênero
narrativo a que esses textos pertencem. Elas se encaixaram, no entanto – e esse indício é
encarado com maior relevância – a uma definição que aponta para outro aspecto, a estrutura da
narrativa.
8
3 SILÊNCIO E EFEITO
O que quer dizer o silêncio? Dentro da linguagem, pode-se considerá-lo um signo
ambíguo, polifônico12. Quando eloqüente, o silêncio vira discurso, por isso, uma leitura
possível do silêncio seria a maneira singular de exprimir certas tensões que não são
susceptíveis de serem reveladas por meio de palavras, pois o silêncio pode ter mais sentido
que todas elas.
Portanto, se é verdade que o silêncio expressa, também é verdade que aquilo que expressa nem sempre é
igual, nem vale a mesma coisa. O silêncio pode ser, então, tanto o corolário excelso da lucidez, como a
bruma irremediável na qual se dilui a aptidão - e às vezes a necessidade - de articular um idéia ou uma
emoção com a qual deixar para trás o mundo do previsível e do codificado. (KOVADLOFF, 2003, p. 23)
O filósofo argentino Santiago Kovadloff (2003) afirma que há duas modalidades de
silêncio. O que ele chama de silêncio da oclusão seria o da palavra encoberta ou rejeitada, da
enunciação possível, mas evitada por uma questão de medo, hábito ou preconceito, enquanto
que o silêncio da significação excedida, algo extraordinário, que não se limita à lógica usual, é
nomeado de silêncio da epifania. Para Kovadloff, ambos compõem o silêncio primordial –
uma função encobridora e uma manifestação divina reveladora – presente na poesia, na
música, na matemática, na pintura, no amor.
O silêncio pode adquirir força de verbo, de ação, é um ato de reflexão, por exemplo.
Ele tem a capacidade de revelar um estado de alma, ou escondê-lo. Pode significar
cumplicidade, e pode ser um forte instrumento de resistência. O silêncio, semelhante ao
primordial de Kovadloff, concentra opostos: na cumplicidade, é forma de comunicação, na
ausência daquela, pode revelar distanciamento. O silêncio, diziam os gregos, pode ser uma
recusa tácita, mas pode significar adesão a uma idéia ou proposição: “O silêncio é uma forma
de fala que se faz pelo assentimento ou pela refutação. Os gregos chamam isso antilogia: à
existência de todo objeto se pode opor dois logoi.”(HOLANDA, 1992, p. 48).
Nesse jogo de antíteses, interpretar o silêncio pode ser uma tarefa árdua, de busca de
sentidos velados, que pode conduzir, vez ou outra, a um hermetismo intransponível. Mas
também pode ser reveladora, quando escavado (o silêncio) e interpretado enquanto recurso
estético no contexto da literatura.
12
Relativo à simultaneidade de vozes e sentidos.
9
3.1 NA LITERATURA
Literariamente, pode-se utilizar o silêncio para condicionar o ritmo de uma narração –
basta observar como em determinadas narrativas o silêncio torna-se instrumento de tensão –
ou simplesmente para condicionar nossa leitura – as pausas que reforçam a importância de
uma frase. Ou ainda, na “construção do texto como a construção de um certo silêncio. Silêncio
já em liberar o texto dos falsos adornos e expô-lo enquanto espaço de operações possíveis (ao
leitor) pedindo leitura valendo por si, se impedindo de ser mandatário falaz de
mensagens.”(HOLANDA, 1992, p. 22).
Essa escolha vocabular, decisão pela presença ou ausência de classes gramaticais e a
procura pela construção sintática comedida e pela forma sucinta de narração também ficam
por conta da “exploração de um silêncio” (HOLANDA, 1992, p. 23), como atesta Lourival
Holanda, ao comparar as narrativas de Albert Camus e Graciliano Ramos.
Semelhante exploração ocorre na poesia também, nas pausas entre versos e estrofes,
versos brancos e cortes bruscos no ritmo (o silêncio na música), e linguagem de cada poeta
que “[...] não é outra coisa que a versão pessoal dos conteúdos impostos pelo criador a essa
imponderabilidade intensamente ouvida. A obra de cada poeta remete ao destino confundido
pela presença do que é essencialmente indiscernível – o silêncio extremo do real – nas mãos
laboriosas de seu intérprete.” (KOVADLOFF, 2003, p. 30-31).
Há determinados momentos em que a poética13 almeja apreender a realidade e não
consegue, momentos da tensão entre a linguagem e a realidade que não dá conta de ser
verbalizada, por isso, reconhece-se:
“[...] que costuma ser escassa a nossa aptidão para suportar o silêncio proposto pelo poema - quer dizer,
o silêncio gerado pelo contato com o real incógnito. Nossa tolerância nesse sentido é pouca. E é por isso
que o silêncio a que se chega através do poema costuma ser rapidamente transfigurado - o correto seria
dizer reduzido - nesse outro silêncio, o da oclusão, no qual a sensibilidade habitava antes que a
inspiração fizesse sua erupção.” (KOVADLOFF, 2003, p. 34)
Nos textos literários, em contextos em que anos passam em poucos minutos, um
instante de silêncio pode realmente equivaler a uma eternidade, perturbando o leitor, trazendo
ansiedade, formando um ambiente de expectativa, de tensão a ser quebrada. O silêncio de uma
obra, segundo Blanchot, nas palavras de Lourival Holanda “é convite à lucidez: uma obra
literária para quem sabe penetrá-la é uma rica estação de silêncio, uma defesa firme e uma alta
13
Sobre poética do silêncio, ver CARONE (1979, p. 81-110)
10
muralha contra essa imensidade falante que se dirige a nós desviando-nos de nós.”
(HOLANDA, 1992, p. 82).
Ao se debruçar sobre a obra O estrangeiro, de Camus, Holanda põe lado a lado elipse e
silêncio, concedendo o status de figura de linguagem a ambos. O autor afirma que toda
ausência é sinal de uma intensa presença, logo, “[..] a elipse é sinal de coincidência. Cria uma
conivência entre o texto e nós. Porque a forma elíptica, pelo que traz implícito, pelo sentido
excedente que fica no não dito, estimula em nosso intelecto o prazer.” (HOLANDA, 1992, p.
82). Esse estímulo de que o autor fala é o resultado esperado do efeito estético.
Portanto, na literatura, ao menos, o silêncio significa dizer mais, logo, trabalhar o
silêncio é uma arte, e por isso ele se mostrará um grande instrumento da narração. Holanda
engloba o silêncio ao conceito de escrita e o define como pausa que potencia esse dizer mais:
Escrever: estar atento a essa tensão, o fluxo da linguagem e a atração (tentação?) do silêncio - coisa que
a desagregação crescente da linguagem atesta. Bastaria ver as tantas experiências poéticas modernas.
Nelas, desde Mallarmé, passando por Flaubert sonhando o texto como um muro branco, e Blanchot,
caminhando para uma aventura que é impasse: nelas, o persistente apelo ao silêncio - pausa que potencia
o dizer mais. (HOLANDA, 1992, p. 60)
3.2 EM RADUAN
Há várias formas de se falar de silêncio em Raduan Nassar, desde a brevidade de sua
atividade literária, silenciada precocemente, até o período histórico brasileiro de que suas
narrativas breves carregam o silêncio de uma censura e a expressão de uma estética.
Quanto a essa expressão, Alfredo Bosi, ao entrevistar Raduan para o Cadernos de
Literatura Brasileira, perguntou sobre a proximidade do padrão formal do escritor com alguns
autores como Graciliano Ramos14, acrescentando se essas comparações fazem sentido para se
entender os valores literários do autor. A resposta:
São Bernardo, do Graciliano, o Amanuense Belmiro, do Cyro dos Anjos, e Uma vida em segredo, do
Autran Dourado, são lembranças que fazem parte do meu afeto. (...) Nunca me detive na aproximação de
valores literários, mas a qualidade dessas lembranças talvez revele algum parentesco. (CADERNOS...,
2001, p. 30).
14
Importante lembrar que Graciliano Ramos é objeto dos estudos comparativos do professor Lourival Holanda em sua
publicação Sob o signo do silêncio, assim como Albert Camus, por sua vez, também citado por Beatriz Perrone-Moisés, na
seqüência, ao comentar sobre literatura de revolta.
11
Ainda sobre as lembranças e/ou influências literárias de Raduan, Milton Hatoum,
escritor e professor de literatura, lembra de outras leituras aproximadas do estilo (poético) do
amigo Raduan:
Mas quando penso nas afinidades literárias com a obra de Raduan, logo me vêm à mente alguns
narradores que foram também poetas. Penso sobretudo em Virginia Woolf e Willian Faulkner, dois
grandes romancista que admiro muito, e que certamente Raduan leu com entusiasmo. Poderia
acrescentar outros grandes autores que, com traços estilísticos próprios, tematizaram em suas obras a
sondagem introspectiva, a experiência interior e o labirinto da memória: Proust, Graciliano e os não por
acaso mencionados Clarice Lispector e Osman Lins. (CADERNOS..., 2001, p. 20).
Uma estética do silêncio, se assim pode ser chamada uma das facetas do estilo de
Raduan, era identificado por mais um companheiro, o jornalista e escritor José Carlos Abbate,
com quem Raduan dividiu a chefia da redação do Jornal do Bairro:
Alguma coisa nos dizia que o grande escritor daquele grupo era Raduan, o mais taciturno de todos, cujos
silêncios prolongados nos pareciam opressivos. (...) Apenas o Modesto Carone, cuja acuidade crítica já
era então notável, e o Raduan pareciam possuir consciência da noção de escritura e do texto como
problema estético na ficção. (CADERNOS..., 2001, p. 16).
Nos textos de Raduan, encontram-se a brevidade da forma narrativa, explicada no
capítulo anterior, a concisão nas escolhas vocabular e semântica, e a tensão dos conflitos na
temática e na revolta das personagens, corroborando a afirmação de Beatriz Perrone-Moisés:
Na verdade, toda literatura de revolta é necessariamente breve, e desemboca no silêncio ou no escárnio
(Rimbaud, Lautréamont). Não se pode levar a sério alguém que continue indefinidamente a bradar
contra tudo e todos. No silêncio dos revoltados, continua entretanto a ressoar sua alta exigência de
justiça e de contento. Outro especialista da revolta, Albert Camus, escreveu: “A revolta é uma ascese,
embora cega. Se o revoltado blasfema, é na esperança de um novo Deus” (L´Eté, 1954).
(CADERNOS..., 2001, p. 77).
Raduan não bradou indefinidamente e não declarou sua revolta em narrativas
panfletárias. De imediato, localiza-se a produção do autor num período político conturbado da
história nacional, década de 1970, regime militar, época de imposições e tirania, de liberdade
controlada e luta por direitos roubados. Um exemplo disso:
Um copo de cólera reflete bem a situação vivida pelos brasileiros sob a ditadura militar. Aí também,
longe dos estereótipos da literatura engajada, o que se vê é a insidiosa contaminação das relações
individuais pelo discurso do poder, o discurso fascista. Mas a nostalgia do mundo ordenado dos valores,
o sufoco imposto pelo presente e os estouro da cólera contra os discursos inaceitáveis não são exclusivos
12
de um país ou de uma situação histórica. (CADERNOS..., 2001, p. 69).
Na recorrente temática das rupturas, em que, fora a reconciliação firmada em Um copo
de cólera, se mantém a crise nas demais narrativas como “Hoje de Madrugada”, “O ventre
seco” e Lavoura Arcaica, percebe-se uma oscilação da linguagem, que flutua entre o
sofisticado e o coloquial, configurando uma representação fiel da classe média, mas nem por
isso deixando de universalizar a crise exposta. O comentário de Milton Hatoum, a seguir,
sobre Um copo de cólera e a experiência dos narradores-personagens da novela encaixa-se
também nas outras duas narrativas que se pretende estudar:
[...] a guerra conjugal é um pretexto para que o narrador comente o mandonismo, o autoritarismo, os
laços que o unem a uma família patriarcal. O tempo da narrativa é o tempo do regime autoritário, mas
este é visto através de uma experiência vital dos narradores-personagens, de modo que o regime militar a
que aludem pode situar-se no Brasil ou em outras latitudes. (CADERNOS..., 2001, p. 21).
Apesar da obra de Raduan estar inserida num período tão ímpar de nossa história, o
autor conseguiu fugir do estereótipo de uma literatura panfletária e ir além. Leyla PerroneMoisés afirma que
A originalidade de Raduan Nassar, com relação a outros escritores de sua geração, consiste justamente
nessa opção por um engajamento político mais amplo do que o recurso direto aos temas de um momento
histórico preciso. Um engajamento no combate aos abusos do poder, em defesa da liberdade individual,
numa forma de linguagem em que a arte não faz concessões à ‘mensagem’. Um engajamento
radicalmente literário, e por isso mais eficaz e perene. (CADERNOS..., 2001, p. 69).
Desse engajamento literário, nasceu os textos de reflexos amplos. Raduan foi capaz de
Pensar a sensualidade, a afetividade, a liberdade, o poder, mas sem desvinculá-los das contradições
políticas, sociais e econômicas em que o homem mergulha cotidianamente, revolvendo-se em angústias,
até chegar ao limite de expor a mais profunda ferida: a solidão. Aquela de não encontrar o eco dos
próprios pensamentos nem sequer no “amigo” que se diz mais próximo. (CICCACIO, 1981).
Uma solidão que também remete ao silêncio.
O último grande silêncio que Raduan nos legou foi quando em 1984 decidiu pelo
abandono da atividade de escritor: “Vale aqui lamentar, mais uma vez, que Raduan Nassar,
depois de duas ficções de densidade incomum como Lavoura Arcaica e Um copo de Cólera,
tenha dado sua carreira por encerrada e nos deixado apenas o enigma de seu
silêncio.”(CASTELLO, 1994).
13
O autor se calou na arte e para a arte, provou que é capaz de viver sem literatura,
recusa-se a dar entrevistas para falar desse tema e sobre sua obra. É como se Raduan tivesse
dito tudo em seus textos, e provavelmente o fez. “Nassar, que prefere o silêncio - e, em um
erro de cálculo imperdoável, até o silêncio absoluto - não precisa discorrer sobre o que faz
para fazer o que faz.” (CASTELLO, 1994). Consciente do seu papel, Raduan, mesmo em
atividade, não arriscava teorizar acerca da sua produção: “Nunca pensei em expor qualquer
teoria a respeito do meu minguado trabalho, nem vejo sentido nisso. Ou esse trabalho fala por
ele mesmo, sem o socorro de qualquer suporte teórico expositivo, ou deve ser descartado.”
(CADERNOS..., 2001, p. 31).
Nota-se que, diferentemente de outros autores que elaboraram uma teoria mais ou
menos sistematizada a partir de suas experiências práticas, Raduan nunca escreveu artigos
sobre a sua poética ou sobre a literatura em geral. Seus pontos de vista literários encontram-se
apenas em raras entrevistas ou declarações, ou nas reminiscências de Milton Hatoum, Modesto
Carone, José Carlos Abbate e Augusto Nunes, contemporâneos e companheiros de Raduan.
14
4 O TACITURNO E O EPISTOLAR
Os dois contos selecionados, ambos escritos no ano de 1970, e reunidos pela primeira
vez em edição comercial na coletânea Menina a caminho (1997), já foram dados a público em
outro momento. A publicação anterior à edição comercial de 1997 do conto “Hoje de
madrugada” se deu nos Cadernos de Literatura Brasileira, n° 2, IMS (1996). O conto “O
ventre seco” saiu no Folhetim, suplemento da Folha de S. Paulo (1984), depois em El
Paseante, revista espanhola (1985) e ainda em Idéias, suplemento do Jornal do Brasil (1989).
4.1 SILÊNCIO EM HOJE DE MADRUGADA15
“Hoje de madrugada” é um retrato silencioso de uma recusa de afeto, é registro que
foca o colapso sentimental de um casal, encenado no ambiente taciturno de um escritório
imerso na madrugada – único indício de marca temporal.
Enquanto conveniente, o narrador-protagonista expõe apenas seu ponto de vista,
fazendo um relato em que detalhes sobre aquela relação são omitidos. Desse modo, o contista,
na busca de brevidade e densidade, converte o tema da crise amorosa em quadro inexorável da
indiferença, condição humana que leva ao “gelo de uma relação (...) presenciada só pelas
paredes” (VINAS, 2005).
A impressão que se tem é de que o texto foi escrito logo após o desenlace daquele
acontecimento, pois o tempo da narrativa, apesar de o texto se apresentar como um resgate da
memória a ser registrado, é o mesmo da ação. Essa impressão se acentua devido às frases
curtas e ao efeito desconcertante de uma sintaxe econômica, que suprime descrições de
antemão ou considerações a posteriori, confluindo apenas para o acontecimento, o que ocorre
agora, sem alegorias. Como a lente de um fotógrafo16, o contista, nas palavras de Leyla
Perrone-Moisés, “[...] capta um momento dramático de uma relação de casal. Nada nos é
informado da história dessa relação, e apenas nos é mostrada a negação do homem oposta à
demanda de amor, pateticamente explicitada pela mulher.” (CADERNOS..., 2001, p. 76).
Do espaço, apreende-se apenas o quarto de trabalho, em cujo interior de penumbra
visualizam-se a mesa e os papéis, as cadeiras, a janela de veneziana fechada – uma “bolha de
15
Todas as citações extraídas do conto serão sinalizadas com a sigla HM, referente à edição de Menina a
caminho mencionada nas Referências Bibliográficas.
16
Faz-se menção às teorias do conto de Júlio Cortázar, trabalhadas em Gotlib (2004), quanto à analogia entre
conto e fotografia, romance e cinema.
15
sabão”, a forma fechada e tensa do conto, segundo Cortázar (GOTLIB, 2004) – a configuração
perfeita de um cenário suficientemente tenso e, portanto, possível de ser enquadrado. O
resultado é um retrato da desilusão, silenciosa como uma imagem fotográfica: “Ela não dizia
nada, eu não dizia nada” (HM, p. 54).
Dessa imagem, obtém-se um desabafo que ganha caráter de testemunho “O que
registro agora” (HM, p. 53) de um narrador-protagonista em tempo passado, contudo, recente,
pois “aconteceu hoje de madrugada” (HM, p. 53). Lembranças incertas de um narrador
casmurro se misturam às pretensas previsões que tece a respeito da personagem feminina
“[...] ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente
trabalho, eu que não trabalhava” (HM, p. 54). Isso também se evidencia nas suposições quanto
ao que ela refletia na súbita parada segundos antes de deixar o quarto: “Pode ser simplesmente
que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode
ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em
sua memória.” (HM, p. 58).
Na confortável posição de acusador, ele procura convencer o leitor quanto ao
desequilíbrio da esposa em cuja memória uma “escuridão se instalava” (HM, p. 58). Defendese ao relatar outra impressão incerta: “[...] e eu não minto quando digo que não eram os lábios
descorados, mas seus dentes é que tremiam.” (HM, p. 57). Cruel e sensível, paradoxalmente,
ele continuava em seu estado de apatia “[...] mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em
súplica, que mendigava afeto” (HM, p. 55). O narrador está ausente porém não é alheio ao
conturbado estado pelo qual a mulher passa, o que se constata por ele não se surpreender “com
o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos” (HM, p. 56). Ele
afirma com desdém de quem já conhecia “o traço de demência” (HM, p. 56) pervertendo o
rosto da esposa.
Ao passo que o narrador insiste em apontar traços de insanidade na mulher, a suspeita
sobre sua personalidade conturbada se intensifica, logo, essa aparente insanidade torna-se uma
possível característica desse narrador – semelhança constatada também nos narradoresprotagonistas das narrativas breves analisadas na seqüência – e a comprovação de um
desequilíbrio que tende à desumanização desse personagem. Possivelmente, não era a primeira
vez que aquela mulher tentava uma aproximação débil, respondida de antemão por uma
depreciação contumaz: “olhos perdidos”, “corpo obsceno”, “lábios descorados”, “moleza
daqueles seus braços”, “seios flácidos”, “traço de demência”, “ombros caídos”, “sonâmbula.”.
16
A negação do homem às súplicas da esposa é evidente na medida em que seus gestos vão se
tornando mais evasivos.
Nesse drama conjugal em que o desejo se renega, suas vozes mais contundentes e
reveladoras são expressas em gestos arredios e em movimentos receosos, “ela acuada ali no
canto” (HM, p. 54), expressos em “teatralidade” (HM, p. 56), como no instante em que a
mulher fingia contemplar a madrugada encoberta na veneziana cerrada, enquanto mordia os
dedos. Todos os gestos evasivos dele, todas as tentativas de aproximação dela são sutilezas de
uma atmosfera densa e escura como a madrugada, uma cena que se pode espiar pelas frinchas
daquela veneziana.
Essa cena que se lê/vê é o registro de um silêncio imperioso, oculto, na medida em que
não se localiza no texto, por mais taciturno que seja, o termo “silêncio”. No bloco de rascunho
sobre a mesa também é registrada a tensão do casal, o desencanto da relação que, como aquele
ambiente taciturno, está em suspensão, corporificado na mão dela, “aquele objeto corrompido”
(HM, p. 56), abandonado no ar. Aquelas mensagens curtas revelam o desejo, em caligrafia
nervosa “vim em busca de amor” (HM, p. 55), a súplica, em caligrafia desesperada,
“responda” (HM, p. 55) e a impossibilidade no contundente e desiludido “não tenho afeto para
dar” (HM, p. 55). Nessa troca de palavras, tem-se configurado também o silêncio no sentido
estritamente denotativo
de interrupção de correspondência epistolar, registrado no
desesperado “responda”.
Nesse singular diálogo “Seria preferível o silêncio efetivo? Nem sempre, nem um
silêncio qualquer. Escreve-se porque não se pode calar-se, ou porque não se quer. O silêncio
também é um inimigo, também uma prisão, quando fecha, quando esmaga, quando mata, e às
vezes mata.” (COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 38). E é a morte da relação que a mulher quer
evitar, é do silêncio de clausura que ela tenta se libertar. Mas a comunicação e a cumplicidade
são vencidos pelo silêncio da apatia.
Esse silêncio angustiante para ela, e também para o leitor, apenas é interrompido com
“um e outro estalido na madeira do assoalho” (HM, p. 54). Esse ruído é o único som que ela,
contida, se atreve a produzir, porém, no papel, apesar de palavras inaudíveis, o grito de
socorro, o gemido, enquanto ele, cúmplice desse silêncio, sabe como cessá-lo, mas não o faz:
“[...] continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia
quem sabe tranqüilizá-la.” (HM, p. 54). Além da insistência da não verbalização, havia a
imobilidade, demonstração física dessa apatia, situação em que nem as pálpebras acompanham
17
os gestos doentios da esposa – “não fiz um movimento”, “não me mexi na cadeira”, “não ergui
os olhos”, “olhos sempre baixos”, “olhos em cima do papel”, “olhos pregados na mesa.”
Em “Hoje de madrugada”, como já mencionado, há poucos elementos que historiam a
relação do casal. É nítido o recorte estabelecido em uma vida cotidiana ficcional, ou de
reflexos autobiográficos, e nem se pretende discutir esse aspecto. O fato é que a narrativa é
enxuta, sem ápices narrativos, as personagens nem nome possuem, o tempo e o espaço são
estabelecidos de modo vago. Ainda assim, tem-se um conto no melhor do seu gênero, sendo
essa a percepção da crítica:
[...] Raduan é daqueles escritores que tornam inquestionável a afirmativa de que a literatura não é o que
se conta, mas o modo como se conta. E dessa forma, em muitos momentos importa menos o que dizem
(na verdade, o que escrevem) de si para si as personagens, a faca afiada que esgrimam e com que se
desfiam (sic) mutuamente. Vale muito mais o jogo entre silêncio e suspensão, a fenda insondável do
não-dito em que o leitor se insere e pensa meu Deus, como ele concebeu isso? (VINAS, 2005).
“Hoje de madrugada” é concebido sobre registros do silêncio, e, novamente enfatizase, nem ao menos o vocábulo é citado no texto. Sinal de que o silêncio não precisa ser
anunciado para se manifestar. O registro do narrador, a imobilidade, o espaço fechado,
cercando um ambiente taciturno, compõem uma imagem que promove essa percepção
fotográfica, a impressão de recorte de uma determinada realidade. Nesse conto/retrato, o
contista utiliza esteticamente a delimitação desse gênero e, ao ser incisivo na sua intenção,
alcança o knock-out17.
4.2 SILÊNCIO EM O VENTRE SECO18
“Por que se escreve uma carta? Para habitar juntos a essencial solidão, a essencial
separação, a essencial e comum fragilidade. [...] Para exprimir a distância sem a suprimir. O
silêncio, sem o corromper.” (COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 43). “O ventre seco” é um conto
epistolar cujo motivo de escritura, o que leva o narrador a se expressar, se identifica nessas
manifestações essenciais, a separação, a fragilidade, o silêncio.
17
“[...] o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o conto deve ganhar por knock-out. É verdade, na
medida em que o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto que o bom conto é incisivo,
mordente, sem trégua desde as primeiras frases.” (CORTÁZAR, 1993. p. 152).
18
Todas as citações extraídas do conto serão sinalizadas com a sigla VS, referente à edição de Menina a caminho
mencionada nas Referências Bibliográficas.
18
“O que se espera enquanto se escreve? Que, expondo nossa solidão (senão, o que
cremos ser nossa singularidade), ela diminua (nos aproximando dos outros?)” (HOLANDA,
1992, p. 87) – o conteúdo da carta/conto contraria esse motivo primeiro da escrita, pelo menos
no que diz respeito à busca de aproximação, pois a carta junto dos pertences da destinatária,
aparentemente, sela o fim de uma relação e marca definitivamente a separação do casal.
Porém, quanto ao fato de expor a solidão do indivíduo, o conto cumpre esse papel ao revelar a
singular personalidade de um narrador que apenas não quer tomar partido das novas ou antigas
idéias: “E quando digo que não tenho nada contra, entenda bem, Paula, quero dizer
simplesmente que não tenho nada a ver com tudo isso.” (VS, p. 63).
[...] há certas coisas que não podem ser ditas, ou mal, que apenas a escrita pode levar. A escrita nasce da
impossibilidade da fala, de sua dificuldade, de seus limites, de seu fracasso. Disso não se pode dizer, ou
que não se ousa, ou que não se sabe. Esse impossível que trazemos em nós. Esse impossível que é nós.
Há as cartas que substituem a fala, como um ersatz, um substituto. Depois aquelas que a ultrapassam,
que com isso tocam no silêncio. Estas nada substituem e são insubstituíveis. O que não se pode falar, há
que escrevê-lo. (COMTE-SPONVILLE, 1997, p.38).
As palavras do filósofo André Conte-Sponville definem, de certo modo, a intenção de
um narrador epistolar fragmentado que expõe ao leitor também fragmentos de sua vida, de
uma relação conturbada.
Escrito em 1970, período de ditadura militar no Brasil, o conto apresenta um narrador
com voz ativa, mesmo que expressa em carta, representação de um dos poucos meios que a
censura do regime, talvez, não alcançava. Raduan Nassar, independente de postura, fazia parte
de uma época de literatura engajada, um período de contracultura e aversão à imposição de
leis.
Nesse contexto, uma designação como “conte-lettre-manifeste”19 faz sentido quando
avaliada a intensidade com que o texto é exposto e com a qual o narrador busca uma terceira
via para os problemas, uma alternativa a mais para aquele mundo maniqueísta, já que se
pretende fugir do senso comum. O texto se mostra provocativo, de idéias que incomodam, que
rompem e subvertem as tradicionais posições dominantes da relação homem e mulher. Podese assim, portanto, definir esse conto:
Une écriture féminine, dans ce que l’écriture féminine a du sens minoritaire; l’homme face à la femme ;
inventer un autre homme qui, abdiquant de l’acte de puissance, devient pure puissance, ainsi l’épistolier
19
“conto-carta-manifesto” é termo usado em Lemos, 2005.
19
fait vœu de chasteté, vœu d’ignorance, vœu de pauvretré. (LEMOS, 2005).20,21
Extrai-se uma imagem forte do título do conto, dessa união de opostos, tem-se o
símbolo de fertilidade bruscamente desprovido de sua maior propriedade. Um ventre seco,
silenciado de vida.
Quanto a questão formal, tem-se a carta ficcional endereçada à Paula, namorada do
narrador epistolar. Mas não se configura uma carta de amor, pelo contrário, seus 15 parágrafos
são termos de um desquite não amigável, um acordo que o narrador trava não apenas com ela,
mas com o mundo: “já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho,
dou-lhe o meu silêncio” (VS, p. 66). A carta é o meio silencioso de expor, sem chance de
contra argumentação, ao menos imediata, os termos desse pacto. É um monólogo velado.
Quanto às pretensões da carta, ela parece confrontar a lei natural, ou a lei do senso
comum, e possibilita a criação de uma nova, uma lei que refuta a original. A carta anuncia a
ruptura de um pacto amoroso e as novas condições para preservar essa ruptura. A
argumentação ganha pela intensidade com que é exposta, pois a lógica é discutível e o senso é
subvertido. Maria José Cardoso Lemos corrobora essa idéia de lei. Para ela, a carta se
apresenta como uma petição dividida em 15 itens, contendo, inclusive, a base do contrato:
“Les trois élèmentes de base du contrat y sont: sa motivation, ses conditions d´étabilissement,
la situation postcontrat.” (LEMOS, 2005)22. Desse ponto de vista, pode-se encarar enquanto
parcela de uma motivação as evidências mencionadas, ofensivamente lembradas e elencadas,
“a velha aí do lado”, “a carcaça ressabiada”, “o pacote de ossos”, “a semente senil”, “aquele
ventre seco”, “bruxa velha” (VS, p. 67), todas atitudes e insultos que a denunciam, que
revelam a insensibilidade juvenil de Paula, colhidas com o tempo, suportadas até o limite.
Segundo Lemos, esse contrato epistolar provém de uma lei de características
metafísicas, uma vez que possibilita a cada indivíduo determinar seus interesses, suas
delimitações e liberdades. Essa metafísica ou filosofia primeira ou princípio de lei natural, se
assim é possível chamar, é o conhecimento que o narrador possui pela razão, sempre visando
compreender o cerne das situações. Cético, ele propõe transcender às aparências, ou seja, obter
20
Uma escrita feminina, no que a escrita feminina tem de minoria; o homem face à mulher; inventar um outro
homem que, abdicando do ato de poder, torna-se puro poder, assim como o escritor de cartas faz voto de
castidade, voto de ignorância, voto de pobreza. (tradução livre).
21
Artigo publicado no Cahier n.° 10 du Centre de Recherche sur les Pays Lusophones – CREPAL, Paris: Presses
de La Sorbonne Nouvelle, 2003, org. Anne-Marie Quint.
22
Os três elementos de base do contrato estão aí: sua motivação, suas condições de estabelecimento, a situação
pós-contrato. (livre tradução)
20
o conhecimento real e verdadeiro das coisas em oposição à aparência das mesmas, condição
que tanto o desagrada e o faz indiferente ao mundo: “Não tente mais me contaminar com a tua
febre, me inserir no teu contexto, me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos
virulentos que te agitam a cabeça.” (VS, p. 66).
Como num processo metafísico, ele vai elencando os fatos, os valores e os ideais, e os
sublima, convertendo-os em verdades, e, ao mesmo tempo, os nega, pois descobre um
princípio de causa enraizado no senso comum. Então o que lhe resta é recusar as promessas do
“[...] pardieiro que é esse mundo, onde a sensibilidade, como de resto a consciência, não passa
de uma insuspeitada degenerescência [...]” (VC, p.66), desse “chão movediço” (VS, p. 65) e ir
contra todas as leis, tradicionais e novas, que regem as idéias, os hábitos e os costumes: “[...]
tenho todas as medidas cheias do teus frívolos elogios do amor. Farto também estou eu das
tuas idéias claras e distintas a respeito de muitas outras coisas [...]” (VS, p. 64).
Lemos conclui que a carta funciona como uma “mise en scène” de uma disputa
amorosa que, segundo Roland Barthes, em citação, “est une sorte de dialogue non dialectique,
un échange ordonné de répliques dont chacun veut garder le dernier mot.”23
Por trás da carta, há um homem cansado, enfaticamente, de ser atacado pelo mundo das
idéias da jovem amante: “Entenda, Paula: estou cansado, estou muito cansado, Paula, estou
muito, mas muito, mas muito cansado, Paula.” (VS, p. 67); Resta um escritor que procura
silenciar qualquer possibilidade de argumentação do seu destinatário, ao mesmo tempo que
peca, na covardia de permanecer nesse silêncio, da não resposta, da não discussão, unilateral
no confrontamento de idéias, fugindo da divergência:
C’est ce que prétend l’épistolier: garder pour soi la dernière réplique tout en se rétirant de la scène. Ne
pas vouloir posséder, « não quero te governar », ne rien attendre, ne pas juger, ne rien conclure, laissant
écouler le bruissement infini de la parole; le silence. (LEMOS, 2005).24
Um dos heterônimos de Fernando Pessoa afirmava que “Sábio é o que se contenta com
o espetáculo do mundo”25. Tem-se em “O ventre seco” o extremo oposto disso, o narrador não
se contenta, contesta o espetáculo e a ilusão que ele representa. Nesse sentido, a carta de “O
23
...é um tipo de diálogo não dialético, uma troca ordenada de réplicas em que cada um quer ficar com a última
palavra. (tradução livre)
24
É o que pretende o escritor de cartas: guardar para si a última réplica enquanto se retira da cena. Não querer
possuir, “não quero te governar”, não esperar nada, não julgar, não concluir nada, deixando escoar o rumor
infinito da palavra; o silêncio. (tradução livre)
25
Extraído da epígrafe de O Ano de Morte de Ricardo Reis, de José Saramago.
21
ventre seco” rebate o mundo ideal das cartas de amor, confronta o senso comum. Parece,
portanto, coerente apontar, numa espécie de literatura comparada ou, nesse contexto, “cartas
ficcionais comparadas”, a diferença crucial entre a carta destinada à Paula, uma carta de
desavenças, e uma carta “tradicional”, que tenta uma aproximação, pois “[...] a
correspondência é também um gênero literário, claro que o mais difundido e um daqueles,
note-se de passagem, que melhor sobrevive às modas e aos séculos.” (COMTE-SPONVILLE,
1997, p. 40-41).
O heterônimo pessoano Ricardo Reis, quando personagem de José Saramago, em O
ano da morte de Ricardo Reis, hesitava em escrever, hesitava até mesmo quanto ao vocativo
que deveria empregar a sua destinatária, Marcenda, pois para ele, uma carta era um “acto
melindrosíssimo”. Na situação do conto, esse ato delicado ou escrupuloso se inverte, não se
hesita em escrever, em reclamar, em nomear secamente a destinatária, Paula, apenas, sem
epítetos e menções carinhosas, pelo contrário, o nome é citado repetidas vezes, enfático,
acusativo, como se o relacionasse à origem dos seus problemas.
O narrador epistolar de Marcenda definia a escrita como a fórmula que
[...] não admite médios termos, distância ou proximidade afectivas tendem para uma determinação
radical que, num caso e no outro, vai acentuar o carácter, cerimonioso ou cúmplice, da relação que a dita
carta estabelecerá e que acaba por ser, sempre, de certa decisiva maneira, um modo de relação paralelo à
real, incoincidentes. (SARAMAGO, 2003, p. 197).
Paradoxalmente, a carta que constitui “O ventre seco” promove a distância, clama pelo
afastamento, mas provém da relação, da proximidade do casal. Uma carta como a do conto, ao
mesmo tempo que é cerimoniosa nos seus apontamentos e justificativas, tem o tom cúmplice
pela liberdade de se afirmar certas verdades, sem restrições ou convenções. Tudo isso conflui
naquele momento de solidão e reflexão pelo qual passa o escritor/emissor no momento da
escrita, pois afinal “A escrita é mais próxima do silêncio, mais próxima da solidão, mais
próxima da verdade. Ao menos pode sê-lo, e é isso que a justifica. Que adianta escrever, se é
para fingir?” (COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 38).
Desse paralelo epistolar, extrai-se ainda da elocução de Ricardo Reis, personagem, a
relação entre as realidades incoincidentes de uma carta e a realidade vivida: dessa cartamanifesto, o que se concretiza na vida do narrador; até que ponto é possível negar o mundo
por completo; decretar a morte da relação; e impedir qualquer chance de reconciliação, pois a
carta representa um fragmento de uma determinada realidade, talvez a realidade momentânea
22
singular do narrador, uma cólera que pode ser aplacada se seu manifesto for aceito, ou do
contrário, contestado, portanto, de qualquer modo, respondido, e o silêncio quebrado.
Nesse jogo de sentidos, vale ressaltar que em “O ventre seco”, assim como em “Hoje
de madrugada”, com a troca de bilhetes e pedidos de afeto, em que se nega também o retorno
escrito, lida-se com o silêncio também no sentido denotativo de interrupção de
correspondência epistolar, pois ao passo que o conto é o registro de uma só carta, a do
narrador, configura-se, para o leitor do conto, o silêncio da resposta.
23
5 NOVELA EXEMPLAR
Um copo de cólera foi escrita em 1970, mas só foi publicada em 1978. Sua segunda
edição foi revisada pelo autor, em 1984. De um modo geral, a crítica, basicamente em artigos
de jornais, tem se apresentado unânime quanto a excepcionalidade do texto, e o aponta como
exemplar quanto ao gênero narrativo ao qual se encaixa:
Em primeiro lugar, Um copo de Cólera é uma afirmação peremptória, mas não arriscada: trata-se de um
dos mais belos e bem acabados exemplos de novela na literatura brasileira, entendendo-se pelo termo
uma narrativa relativamente curta e muito densa em torno de um único episódio, o qual deve conservar a
instantaneidade fugaz do fluxo contínuo da vida. (TEIXEIRA, 1992).
Ao se trabalhar as questões de brevidade e resgatar os conceitos da novela enquanto
gênero narrativo, Um copo de cólera atende satisfatoriamente às propriedades que, em
princípio, e não obrigatoriamente, a tornam pertencente a esse gênero26. Resolvida a questão
da forma, resta partir para a análise do conteúdo, tema, personagens, narração, e,
principalmente, identificar os registros do silêncio.
5.1 SILÊNCIO EM UM COPO DE CÓLERA27
Num primeiro momento, quando se relaciona o contexto histórico da produção de Um
copo de cólera com o tema desenvolvido na narrativa, resume-se a novela do seguinte modo:
“A espetacular briga de um par amoroso traz a tona o passado dos amantes, o dia a dia de uma
chácara sem família, além de fortes indícios da repressão política de nossa última ditadura.”
(TEIXEIRA, 1992). Esse fato político e social remete ao silêncio imposto pela censura, um
silêncio que recaiu sobre ideologias contrárias ao regime e todo meio cultural ou de imprensa
que ousasse difundi-las.
Portanto, a rejeição explícita a esse estado de coisas era facilmente identificada e
repreendida, fazendo com que muitos (intelectuais, artistas, jornalistas) optassem por uma
linguagem menos evidente ao expor sua revolta. Uma das maneiras para se conseguir essa
proeza era o tratamento dos temas, por exemplo, de uma produção literária ou musical.
26
Refere-se à parte 2 do trabalho “Narrativa Breve” e ao subtítulo 2.2 “A Novela”.
A sigla CC, em citações na seqüência do texto, se referirá à edição de Um copo de cólera listada nas
Referências Bibliográficas.
27
24
No ensaio intitulado “Da Cólera ao Silêncio”, Leyla Perrone-Moisés trata do tema da
novela Um copo de cólera, aproveitando os antagonismos que ele suscita:
O tema não é mais arcaico e mítico, mas atual e corriqueiro. Nessa novela, um incidente trivial
desencadeia uma briga de amantes que, pouco a pouco, adquire as proporções de um furacão verbal,
fazendo saltar em pedaços o discurso existencial, filosófico e político que até então sustentava a relação
do casal. Nesse momento de verdade, revelam-se todos os antagonismos: machão contra feminista,
anarquista contra reformista, individualista contra populista etc. (CADERNOS..., 2001, p. 67).
O trivial torna-se espetáculo e ganha proporções exageradas na cólera infundada das
personagens. Mas nem tudo é barulho e exacerbação. A intimidade do casal, antes e depois do
“esporro”28 é repleta de registros que remetem ao silêncio.
Em “A chegada”, primeira parte da novela, um quadro de aparente harmonia se
compõe, o casal admira o pôr do sol, em silêncio. Nesse momento, “Como não perceber na
pergunta insistente da mulher – ‘que que você tem?’ – a ansiedade não dissimulada perante
um silêncio carregado que chegada a hora, irromperá num turbilhão de palavras?” (CHAUÍ,
1978). De forma evasiva, a pergunta fica sem resposta. De forma provocativa, o narradorprotagonista degusta um tomate, enquanto “[...] por baixo do seu silêncio ela se contorcia de
impaciência [...]” (CC, p. 10). Ele desvia o assunto e permanece também no silêncio: “[...] e
sem dizer uma palavra entramos quase juntos na penumbra do quarto.” (CC, p.11).
“Na cama”, de forma mais contundente, inicia-se um quadro de erotismo e
sensualidade, que se estenderá na seqüência, nos capítulos “O levantar” e “O banho”. Nesses
episódios, verifica-se um desajuste na relação. O homem tem papel passivo: “[...] fiquei
aguardando por ela já teso e pronto, fruindo em silêncio o algodão do lençol que me cobria, e
logo eu fechava os olhos pensando nas artimanhas que empregaria (das tantas que eu sabia)
[...]” (CC, p. 14). Nesse momento de inigualável desdobramento, onde se pode reconhecer não
apenas a celebração de uma presença, o estar a dois, vê-se também uma cega ilusão
possessiva. O desempenho sexual na cama é idealizado, relatado apenas no silêncio da
imaginação do narrador. Nessas imagens ele tem o domínio sobre a fêmea, e visualiza tudo,
até mesmo os “[...] momentos de renovação, nos cigarros que fumávamos seguindo a cada
bolha envenenada de silêncio [...]” (CC, p. 16), muito é almejado mas pouco se concretiza.
Essa incerteza, em princípio, se contrapõe à “autêntica eloqüência do silêncio amoroso”
28
Título do capítulo central da novela, em que se trava o embate verbal entre as personagens principais.
25
(KOVADLOFF, 2003, p. 163), uma outra categoria de silêncio, diferente das tratadas na parte
3 desse trabalho, “Silêncio e efeito”, uma demonstração que
[...] se desdobra fora da consciência subjetiva, no seio da gestualidade corporal; na carícia lenta que traça
seu itinerário, no fervor de um beijo, no arrebatamento de abraço, na vertigem da penetração, na
ascensão do gozo e na esmagadora dissolução do orgasmo. (KOVADLOFF, 2003, p. 163-164).
No entanto, o “silêncio amoroso”, em virtude da sua constituição, encontra o meio
adequado para a manifestação de sua melhor eloqüência nas carícias da mulher.
A carícia é a incomparável voz elementar do silêncio amoroso: com ela se acata e exalta o que há de
inalcançável na beleza da amada. Mediante a delicadeza incomparável de sua forma, a carícia desliza
sobre a pele sem confundir o que se brinda ao tato com o que se pode apreender. A pele da amada, sob o
roçar do amante, é indício do inefável. Essa pele, assim percorrida, contém o valor da presença
indiscernível e da ausência discernida; da proximidade inalcançável e da distância acolhida. Acariciar é
acatar, a partir da ternura, o silêncio extremo encarnado pela amada naquilo que este silêncio tem de
inexpurgável. (KOVADLOFF, 2003, p. 179).
Em contrapartida às carícias femininas, há uma entrega do homem: “[...] eu só sei que
me entregava inteiramente em suas mãos pra que fosse completo o uso que ela fizesse do meu
corpo.” (CC, p. 24).
O silêncio e toda a bonança sexual idealizada pelo narrador é prelúdio para o esporro
verbal que está por vir, momento em que as diferenças, temores e possessões, antes veladas,
serão escancaradas:
Ele teme a submissão aos dogmas, a pretensa racionalidade que permite ‘ser fascista em nome da razão’.
Ela teme a paixão que banha as idéias, o vôo metafísico que embaralha o diabo e o bom-deus, a perda
das tábuas da lei e o lobo que se esconde sob a pele do cordeiro tresmalhado. (CHAUÍ, 1978).
Esse mesmo silêncio, além de parceiro dessa relação amorosa, componente da atração
entre os corpos, é cúmplice de cada um, ao passo que encobre esses temores, contém angústias
e dúvidas, paralisa atos, resguarda o pensamento, refletido ou não, até o momento de ser
assumido em discurso próprio – original – pois, segundo afirma Leyla Perrone-Moisés, em
ensaio já citado:
Atolados nos lugares-comuns de discursos irremediavelmente gastos, homem e mulher se vêm reduzidos
à hostilidade fundamental da diferença sexual, ao silêncio dos corpos que se atraem e se repelem. O
homem desconfia que, na base da hostilidade, está a insatisfação sexual da mulher. O desejo feminino,
26
mistério para o próprio Freud, é a arma maior de que se vale a mulher, e o escolho em que esbarra,
irritado e impotente, o homem. (CADERNOS..., p. 68).
De forma cíclica, o silêncio abre e encerra a narrativa, envolve a hemorragia verbal de
“O esporro” e se entrega a uma nova voz. Os últimos vestígios de silêncio são localizados no
episódio final intitulado “A chegada”, mesmo nome dado à abertura da novela. Depois do
esporro vem a quietude, a calma e o silêncio, expressos na vigília do cão Bingo “[...] sentado
na almofada da cadeira numa rigorosa imobilidade [...]” (CC, pg. 84). Tal registro é verificado
de um novo ângulo – voz feminina – na casa em que se encontram “[...] cacos isolados uns dos
outros e que eu a contragosto fui juntando num mosaico, ficando um tempo ali parada,
considerando a densidade da casa quieta, ‘minha cela’[...]” (CC, pg. 85). Além de tudo, é um
capítulo sem diálogos, apenas o bilhete “estou no quarto” no estilo da personagem “ – breve,
descarnada pelo cálculo, escrita ainda, com intenção, num forjado garrancho de escola – ”
(CC, pg. 84). O garrancho de escola vai remeter à criança, à posição fetal da figura masculina,
na cama, a espera de ser acolhida novamente.
5.2 EM UM COPO DE CÓLERA, UM CONTRAPONTO
É importante enfatizar que Um copo de cólera, se considerados sua data de lançamento
e a revisão posterior, foi o último grito de Raduan antes do autor silenciar para a Literatura.
Logo, se o silêncio não se sustenta o suficiente dentro de uma novela em que o diálogo
e a discussão dão o tom da narrativa, e, por isso, tem-se um paradoxo ao trabalhar esse tema
nesse texto, é viável propor outra argumentação, capaz de surpreender o texto por dentro,
ainda que se acredite que o paradoxo que o constitui se resolve na loquacidade do “esporro”
que enaltece o silêncio – a condição contraditória da linguagem que ele usa e tematiza.
A proposta alternativa é reconhecer as passagens do texto que servem de contraponto a
esse silêncio que se buscou mostrar nos dois contos estudados.
Voltando ao episódio final de Um copo de cólera, a imagem da casa densa e quieta
como uma cela, segunda a voz feminina, remete ao ambiente taciturno daquele quarto onde
um casal, em “Hoje de madrugada”, troca mensagens. No conto, o pedido por carinho não é
atendido, enquanto na novela o convite implícito no bilhete e a descrição do homem em
posição fetal sobre a cama sugerem que esse pedido por afeto foi atendido. De outro modo, a
discussão unilateral do epistolar “O ventre seco” não dá chance de resposta à acusada – Paula
não tem voz na narrativa. Na novela, ainda que as acusações do narrador sejam muito
27
semelhantes ao do conto, a mulher tem a chance de responder, de acusar, beber um pouco
daquela cólera que tomou o narrador e, com isso, configurar “O esporro”, o mais
representativo contraponto desse texto.
É nessa discussão que aflora uma nova percepção: tudo o que objetivamente a
companheira pudesse significar é, precisamente, o que o narrador, como amante, já superou.
Naquele momento de cólera, ocorre uma inegável transfiguração que sua própria pessoa,
acredita ele, sofreu por obra da irrupção daquela mulher em sua vida. E nessa quebra do
silêncio amoroso, ele se põe distante de todo proselitismo a respeito dos encantos da fêmea.
Nesse longo episódio, cujo “embate conjugal ecoava o autoritário discurso do poder e da
submissão de um Brasil que vivia sob o jugo da ditadura militar” (COMODO, 1997), os
discursos afloram, o silêncio não tem mais domínio sobre o que se pensa. Apenas se fala,
variando-se entre a acusação e a auto defesa.
Subitamente, uma harmonia foi rompida, a aparente paz cedeu lugar à crise. “Doença
sagrada, a cólera é palavra profética e danada, ferida exposta das dores do mundo e de cada
um, momento fecundo em que a flor anêmica do cérebro (‘hortênsia cinza’) se tinge
intensamente de vermelho29, pois ‘ninguém dirige aquele que Deus extravia’” (CHAUÍ, 1978).
As palavras de Marilena Chauí definem bem a cólera, que, na narrativa, é aparentemente
inexplicável, ou se preferível, banal em sua origem, mas que toma de assalto o personagem.
Em Um copo de cólera percebe-se um fluxo verbal intenso, verificado inclusive na
forma do texto, na ausência de ponto final, numa vazão potente onde se misturam cólera e
discurso, sem grandes pausas, quase sem fôlego.
A quase absoluta ausência de ponto final em Um copo de Cólera poderia ser encarada como um mero
artifício vanguardista, caso não fosse o resultado efetivo de uma pesquisa em favor do livre curso das
palavras enfurecidas do narrador, imitação isomórfica dos efeitos da ira e da paixão, além de marca do
estilo de Raduan Nassar. (TEIXEIRA,1992).
O resultado é uma leitura intensa, sem pausas maiores. A percepção disso se intensifica
principalmente no episódio “O esporro”, onde o texto é mais longo – um único parágrafo de
53 páginas em comparação às quatro páginas, em média, dos outros capítulos – e onde existe
apenas um ponto final, o derradeiro. Essa configuração do texto leva o leitor a uma quase
29
Extrapolando o texto literário e verificando o livro enquanto objeto e parte intencional da obra, chama a
atenção o fato de as últimas edições de Um copo de cólera possuírem a capa vermelho sangue, uma cor intensa
que prenuncia a erupção de um conflito e dá cor à cólera anunciada.
28
exaustão, sugerindo o estado semelhante ao qual termina o narrador: “eu só sei que de repente
me larguei feito um fardo, acabei literalmente prostrado ali no pátio, a cara enfiada nas mãos,
os olhos formigando, me sacudindo inteiro numa tremenda explosão de soluços [...]” (CC, p.
81).
Dentro do conflito, em meio a tantas palavras desferidas contra o oponente, na verdade,
há um descrença em tudo o que é discurso e, muitas vezes, apenas discurso. O abuso do verbo
revela a efemeridade da palavra dita e a banalização da linguagem. Para Leyla PerroneMoisés, todo aquele discurso é, no final das contas, silêncio do não-dito:
Em Um copo de cólera a descrença na linguagem é quase total. O narrador sabe que o duplo discurso, da
mulher e dele, é apenas a vestimenta social de um não-dito corpóreo indizível e de uma má-fé social
generalizada. Considera que falar é “derramar [uma] gota na enxurrada de palavras”. [...] A descrença
em todo tipo de comunicação ou de vínculo social atingiria a própria literatura. No progresso da rejeição
ao mundo e às palavras que pretendem dizê-lo ou melhorá-lo, rejeição que atinge seu ápice em Um copo
de cólera, prefigura-se a atitude posterior de Raduan Nassar: ‘abandonar a literatura’[...].
(CADERNOS..., 2001, p. 74 -75).
29
6 CONCLUSÃO
Abordar o silêncio significou investigar, na medida do possível, as múltiplas acepções
dessa manifestação, que se mostrou e se comprovou também literária. O resgate das narrativas
breves de Raduan, principalmente os contos, demonstra que sua obra “[...] continua, apesar do
voto de silêncio do seu autor, a provocar barulho.” (SILÊNCIO..., 1989) e que, apesar desses
textos, por muito tempo, terem sido apenas “safrinha” e não material digno de publicação, “O
exílio da literatura tem sido o único fracasso literário de Raduan Nassar.” (SILÊNCIO...,
1989).
Mas também não se pode condenar o autor por sua escolha, esse silêncio a que ele se
submeteu, segundo Leyla Perrone-Moisés, tem poder de sugestão tão grande quanto qualquer
uma de suas narrativas:
O ‘abandono’ da literatura é, em Raduan Nassar, o desnudamento radical. Esse abandono é o efeito de
uma cólera, com tudo o que a cólera implica de expectativas frustradas. O tamanho da cólera e o silêncio
casmurro que sucede ao acesso dão a medida exata de tudo o que o escritor esperava do mundo e da
literatura [...] (CADERNOS..., 2001, p. 76).
Raduan não produziu artificialmente, por estímulos externos, como a comparação que
fez com frangos em uma granja, citada na Introdução desse trabalho, pois “O talento não vem
de fora: ele é o sintoma de uma vocação, tramada no silêncio da intimidade, que Raduan
Nassar tem para esbanjar. Pena que ele nos negue, agora, esse prazer.” (CASTELLO, 1994).
Lamentações a parte, o estudo permitiu verificar a interação de temas e a constância de
estilos e técnicas discursivas do autor e, portanto, estabelecer liames de coesão entre o
romance, a novela e os contos de Raduan. Essa coesão partiu da intertextualidade entre as
narrativas, expressa especialmente nos narradores, personagens compósitos. Maria José
Cardoso Lemos defende essa preposição, partindo do estudo de “O ventre seco”:
Le ventre sec est l’annonciation d’une écriture, d’un pacte d’écriture, d’une œuvre où l’on trouve une
intertextualité interne vertigineuse - les personnages réapparaissent, en traversant les âges: dans Menina
a caminho [1961], c’est le narrateur-garçon qui décrit ce qu’il voit - il documente
cinématographiquement; André, l’adolescent tresmalhado (sic) de Lavoura arcaica [1975] réapparaît
adulte dans Um copo de cólera [1978], revient dans le conte O ventre seco [1970], et plus âgé, dans Hoje
de madrugada [1970], personnages composites qui ne suivent pas un ordre chronologique, car il n’y a
30
pas de continuation linéaire entre eux, mais qui correspondent chacun à une variation de la vérité telle
qu’elle apparaît au sujet. (LEMOS, 2005).30
Por sua vez, Leyla Perrone-Moisés afirma que “[...] todos os textos de Raduan Nassar
se constróem em torno de uma recusa: recusa de obediência, recusa de cumplicidade, recusa
de amor”. (CADERNOS..., 2001, p. 76). São recorrentes também a intolerância, dos sexos,
das gerações, e conseqüentemente das idéias, como no comentário que se segue:
Sobretudo, como não sentir que algo se prepara através da alternância dos papéis conferidos à figura
feminina na cama e no banho até o momento em que, soada a hora, a mulher ressurge como ameaça de
castração, regulando ‘o mercúrio da racionalidade’, prometendo julgamento popular ao parceiro e
querendo servi-lo no “pasto das idéias”? (CHAUÍ, 1978).
No campo das idéias, as mulheres são a ameaça, tanto em Um copo de cólera como em
“O ventre seco”, e esse último, quando localizado ao lado de “Hoje de Madrugada”, ambos de
1970, “[...] são radiografias cruéis de relações amorosas agonizantes. Sua virulência é tal que
acaba sobrando para os relacionamentos afetivos em geral”. (COUTO, 1997).
Estende-se, portanto, essa virulência para as relações familiares, entre irmãos, em entre
pai e filho, como em Lavoura arcaica.
Se admitíssemos o romance como uma árvore frondosa e larga, da qual a novela fosse uma espécie de
ramo isolado, admitiríamos com mais facilidade a idéia de que Um Copo de Cólera é um
prolongamento de Lavoura Arcaica. Com efeito, o segundo livro de Raduan Nassar não pode ser
explicado sem a leitura do primeiro, pois o narrador de Um Copo de Cólera é um redimensionamento
da personagem André, o filho rebelde de Lavoura Arcaica, se não for o próprio André em idade
madura. (TEIXEIRA, 1992).
O grande conflito explorado pelo romance de Raduan Nassar é o choque entre
gerações, envolto num mundo sócio-histórico em crise, e exemplificado na tentativa insana de
um jovem de estabelecer uma nova ordem em meio à falácia moral e religiosa impregnada na
ideologia e nas crenças arcaicas do Pai. Quanto a uma possível aproximação dos narradores de
Lavoura Arcaica e Um copo de cólera, Raduan confessa:
30
O ventre seco é a anunciação de uma escritura, de um pacto de escritura, de uma obra onde é encontrada uma
intertextualidade interna vertiginosa – os personagens reaparecem, atravessando as épocas: em Menina a caminho
[1961], é o narrador-menino que descreve o que vê – ele documenta cinematograficamente; André, o adolescente
tresmalhado de Lavoura arcaica [1975] reaparece adulto em Um copo de cólera [1978], volta no conto O ventre
seco [1970], e mais velho em Hoje de madrugada [1970], personagens compósitos que não seguem uma ordem
cronológica, pois não há continuação linear entre eles, mas que correspondem cada um a uma variação da
verdade tal qual ela aparece ao sujeito. (tradução livre).
31
Ora, numa relação amorosa também se estabelece uma relação de poder. O texto se constrói a partir
disso. De alguma forma, também o personagem masculino de “Um Copo de Cólera” tem muito a ver
com o de “Lavoura Arcaica”. São situações diferentes, mas eu quase que arriscaria dizer que o tema é o
mesmo. (CICCACIO, 1981).
No romance, André, o filho pródigo, é o ator de uma pretensa revolução, é ele que
desfere o golpe no cerne familiar, ele é quem reflete o porquê daquele mundo cercado de
privações, de culto ao sofrimento e negação aos prazeres da sexualidade. No embate, trava-se
a luta de antíteses: Iohana, na visão estreita dos dogmas sagrados, ao seu gosto, interpreta a
tradição como sendo tão somente o preservar dos traços familiares e sociais, transpondo-os das
Escrituras para o cotidiano de sua família. Esse ato equivocado provoca uma espécie de
claustrofobia familiar.
Nesse contexto, o filho se rebela contra as imposições da casa, contra a visão
tradicionalista do pai que vê nas emoções e no desejo, expressões da corrupção do homem, um
caminho para a perdição.
Fé cega, incorruptível, de moral inabalável é a filosofia que permeia a razão do
patriarca, até o ponto de não questionar a rigidez excessiva e proibitiva de um Deus que prega
o sofrimento como libertação e salvação. Tal questionamento dá cabo do jovem André que
julga esses preceitos enraizados de forma realista, analisa e enxerga a hipocrisia e a
mistificação dessa moral que o cerca. Seu mergulho nas paixões interditas vão de encontro
com sua consciência religiosa, é protesto silencioso porém agressivo aos valores e costumes.
Desse modo, Iohana, cumprindo culturalmente seu papel de opressor, não pode se
negar às transformações que a transgressão do filho provoca. Uma nova geração vem se
sobrepor ou compartilhar espaço com outra. O conflito se acirra porque a geração, antes
dominante, agora se vê desmantelada, não preparada para as mudanças inevitáveis, e, portanto,
optando pelo extremismo.
É essa geração nova que, representada na juventude da mulher (Paula), incomoda o
narrador de “O ventre seco”: “Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que
sou ‘incapaz de curtir gentes maravilhosas’. Sou incapaz mesmo, não gosto de ‘gentes
maravilhosas’, Paula, não gosto de gentes, para abreviar minhas preferências.” (VS, p. 63).
Quando se trata de negar o mundo e qualquer tentativa de comunicação, “O ventre seco” e
Um copo de cólera apresentam semelhanças. Essa tentação de voltar as costas para o mundo
expressa no conto é a mesma atitude exibida na novela, agora como provocação política: “[...]
32
que tudo venha a baixo, eu estarei de costas. [...] não amo o próximo, nem sei o que é isso, não
gosto de gente, para abreviar minhas preferências.” (CC, p. 60-63).
É, portanto, partindo dessas relações parciais de proximidade e linearidade entre os
textos de Raduan, expressas principalmente na manutenção da personalidade do narradorprotagonista, que se verifica a obra enquanto unidade e extraem-se valores constitutivos de
uma particular visão do mundo, reconhecidos em meio aos recursos de linguagem, às escolhas
temáticas e formais, ao estético, como a brevidade, a tensão e o silêncio, que constróem e
fortalecem o estilo do autor.
33
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