Carlos Chagas e o enigma do Prêmio Nobel

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Carlos Chagas e o enigma do Prêmio Nobel
Carlos Chagas e o Enigma do Prêmio Nobel
Carlos Chagas and the Nobel Prize Enigma
Cristina B. M. F. Gurgel1, Christiane Vanessa Magdalena2, Larissa Fabbri Prioli2
Resumo
A indicação ao prêmio Nobel de Medicina ocorreu pelo menos duas vezes para o
brasileiro Carlos Chagas: 1913 e 1921. A história desta última indicação encontrase envolvida em mistério, que culminou com a ausência da premiação do Nobel
de Medicina em 1921. Assim, objetivamos descrever as circunstâncias que possam
ter comprometido o laureio do pesquisador, e para tal foi realizada extensa revisão
bibliográfica, a partir das bases de dados Scielo, Medline e Lilacs. O descobridor da
Doença de Chagas recebeu muitas premiações internacionais, mas em seu próprio
país foi alvo de ataques de um grupo opositor na Academia Nacional de Medicina.
Ali se questionava sobre a verdadeira existência do mal, sua extensão no país e a
paternidade de sua descoberta. Tais intrigas possivelmente resultaram na negação do
prêmio Nobel em 1921. Carlos Chagas, responsável pela descrição de uma das mais
importantes doenças infectoparasitárias que atingem a população latino-americana,
não foi reconhecido em primeira instância no Brasil. Ignorada sua contribuição à
ciência, retardou-se o ensino desse mal nas universidades. Sem controle, a doença
vitimou milhares de pessoas que poderiam ter sido poupadas.
Palavras-Chave
Carlos Chagas; prêmio Nobel; doença de Chagas; história da medicina.
Abstract
Carlos Chagas was nominated twice for the Nobel Prize of Medicine, in 1913
and 1921. The story of the second nomination was a mystery that ended without
Medicine awarding in 1921. Thus, we aim here to describe the circumstances that
could have compromised the academic honor of the researcher, and so we carried
out an extensive bibliographical review. The discoverer of Chagas disease also called
American trypanosomiasis received several international awards, but in his homeland he
was the aim of critics by a group of opponents in the Academia Nacional de Medicina
(national academy of medicine). There were many doubts about the real existence of
such disease, its extension in the country and its real discoverer. Such intrigues have
possibly resulted in the refuse to award him with the Nobel Prize in 1921. Carlos
Chagas, who is responsible for describing one of the most important infectious disease
that affect the Latin-American population, was not acknowledged at first in Brazil.
Mestre em Clínica Médica. Professora Assistente de Clínica Médica da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – SP e
Médica Assistente de Cardiologia do Hospital e Maternidade Celso Pierro – Pontifícia Universidade Católica de Campinas – SP.
End: Rua MMDC, n 47 apt. 101. Cep: 13025-130 E-mail: [email protected]
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Graduanda da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
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As his contribution to science was ignored, the teaching of this disease in universities
was delayed. Without any control, the disease caused thousands of deaths that could
have been avoided.
Key words
Carlos Chagas; Nobel prizes; Chagas´ disease; History of medicine.
1. Introdução
Se o sueco Alfred Nobel não tivesse travado uma batalha com sua própria
consciência, ele seria eternamente conhecido como um homem difícil e inteligente,
que construiu fortunas a partir da invenção da dinamite. Quis o destino que o
empresário lesse seu próprio obituário, publicado por engano em um jornal. Nobel
não gostou do que viu. Ele não queria ser lembrado como o causador de tantos
infortúnios e por isso articulou uma estratégia para apagar a imagem negativa
que detinha. Com a riqueza que acumulara ao longo de sua vida, em fins do
século XIX viabilizou a concessão de uma premiação anual para indivíduos que
tivessem contribuído para o bem da humanidade. A partir de 1901, o Prêmio
Nobel passou a ser conferido àqueles que alcançaram importantes conquistas nas
áreas de física, química, fisiologia, medicina, literatura e paz (Fundação Nobel,
2008; Lima, 2008).
A premiação é coordenada pela Fundação Nobel, localizada no Instituto
Karolinska, em Estocolmo (Suécia), e consiste em uma medalha de ouro, um
diploma com a citação da condecoração e uma retribuição monetária equivalente
a um milhão de euros (Fundação Nobel, 2008). Entretanto, nada é comparado à
honra de ser laureado, motivo de orgulho pessoal, institucional e nacional, uma
vez que o país do ganhador sente-se também premiado, apesar de a intenção de
Nobel ter sido completamente inversa.
O sistema de indicação e escolha é intrincado, obedecendo às normas
rigidamente preestabelecidas. Anualmente a Comissão do Nobel envia convites
individuais para centenas de “nomeadores” de diversos países para que indiquem
candidatos à premiação. Não é permitida a autoindicação. Em Estocolmo, uma
assembleia com cinquenta membros analisa cada nome e é a responsável final
pela seleção do premiado. Todo o trâmite, desde a indicação dos candidatos até
a escolha definitiva, tem duração de mais de um ano. As cerimônias ocorrem
naquela mesma cidade e o prêmio é entregue pelo Rei da Suécia. Exceção é o
Prêmio Nobel da Paz, entregue em Oslo pelo presidente do Comitê Norueguês
(Fundação Nobel, 2008).
A premiação pode ser individual ou compartilhada entre até três pesquisadores
e, se não outorgada em um determinado ano, podem ser concedidos dois prêmios
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da mesma categoria no ano seguinte. O estatuto da Fundação Nobel determina
ainda que as informações sobre as nominações, investigações e opiniões relatadas
durante o curso de premiação sejam divulgadas publicamente apenas cinquenta anos
após a indicação. Apesar de austeros, os critérios básicos para a eleição do laureado
são objetivos e baseiam-se nos méritos pessoais do pesquisador independentemente
de sua nacionalidade, raça ou ideologia (Fundação Nobel, 2008).
A indicação de tão importante prêmio ocorreu pelo menos duas vezes para o
brasileiro Carlos Chagas. Contudo, uma delas encontra-se envolvida em um mistério,
culminado com a ausência de premiação do Nobel de Medicina em 1921.
Neste artigo objetivamos descrever as circunstâncias das indicações oficiais
de Carlos Chagas, em especial o enigma de 1921. Para tal, foi realizada extensa
revisão bibliográfica de artigos, livros e jornais da época desde sua primeira
recomendação, em 1913. O levantamento de dados bibliográficos foi realizado
por meio de dados das fontes Scielo, Medline e Lilacs entre os anos de 1996 a
2008, utilizando descritores como história de “Carlos Chagas”, “Carlos Chagas e
Indicações”, “Carlos Chagas e Prêmio Nobel”, “Doença de Chagas/ Descoberta”.
Tal busca bibliográfica foi realizada em 2008; foram encontrados 18 artigos em
revistas médicas, dois livros e 19 matérias em jornais da época (Jornal do Commercio,
A Ephoca, A Noite, A Rua, Gazeta de Notícias, O Imparcial, Correio da Manhã).
2. Carlos Chagas:
biografia e descoberta
Carlos Ribeiro Justiniano Chagas nasceu em Oliveira-MG em 1878 e
doutorou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1903. Sua formação
médica foi certamente influenciada pelas profundas transformações no ensino
universitário realizadas naquela instituição pelo Visconde de Sabóia, entre 1882 e
1889. O período administrado por este diretor foi considerado áureo – ele havia
conseguido – reformar e aumentar as instalações da Faculdade, criar a Policlínica
do Rio de Janeiro e, principalmente, mudar o currículo, então considerado
ultrapassado. Sabóia estendeu o número de cadeiras para 26, introduziu aulas
práticas e livres, dentre elas de Anatomia Patológica, e introduziu a Medicina
Experimental. Todas essas medidas foram de fundamental importância para as
gerações de médicos que passaram a se formar, testemunhas e protagonistas de
uma época de incrível desenvolvimento da medicina, especialmente nas áreas de
microbiologia e parasitologia (Brenes, 1991; Edler, 1992). Desde o final do século
XIX, vários agentes infecciosos haviam sido descobertos e em todo o mundo as
pesquisas aconteciam de forma acelerada, com o objetivo de encontrar não apenas
o agente agressor, mas seus mecanismos de transmissão, fisiopatologia e combate
às doenças por eles causadas (Lyons et al.,1997).
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Ainda aluno, Chagas ingressou no Instituto Soroterápico de Manguinhos
(posteriormente Oswaldo Cruz) para adquirir habilidades na área de medicina
experimental. Esse instituto fora criado entre 1899/1900 para desenvolver
soros e vacinas em um período em que o Brasil estava infestado de epidemias
e navios recusavam-se a ancorar em nossos portos pelos perigos à saúde de
seus tripulantes. Um dos maiores problemas era a malária.
O pesquisador preparou sua tese de doutoramento em estudos
hematológicos no impaludismo, que, defendida com eficiência, proporcionou o
reconhecimento de seu orientador, Oswaldo Cruz, então diretor de Manguinhos.
Este o encaminhou para Santos, onde a malária grassava entre os operários
da Companhia Docas com tal violência que as obras do porto tiveram de ser
paralisadas. Chagas alcançou seu objetivo com sucesso quando, além de outras
medidas profiláticas, usou pela primeira vez o piretro, um inseticida de origem
vegetal, no combate ao mosquito transmissor (Chagas Filho, 1993).
Em 1907, foi convidado a controlar a malária em Lassance, um vilarejo
no norte de Minas Gerais. Ali, a doença igualmente dizimava os operários
da linha férrea Central do Brasil e era preciso combater o mal antes que
causasse incrível mortandade. Em meio aos trabalhos, o chefe da comissão de
engenheiros Cantarino Mota apresentou ao cientista um inseto hematófago e
de hábitos noturnos chamado de barbeiro pela população local. Motta também
alertou o pesquisador sobre o fato desses insetos infestarem especialmente as
casas de vítimas de bócio e de retardo mental (Coutinho et al., 1999; Dias,
2000; Lewinsohn, 1981; 2000).
Movido pela curiosidade, o pesquisador capturou alguns desses insetos e,
levando-os ao seu improvisado laboratório num vagão de trem, pesquisou o tubo
digestivo dos barbeiros. Ali encontrou um protozoário pertencente à espécie
Trypanosoma e, para estudar sua capacidade de infecção em mamíferos, Chagas
enviou alguns insetos infectados para Manguinhos. Na instituição, Oswaldo
Cruz contaminou saguis – animais isentos de infecção por qualquer outro tipo
de protozoário – e constatou o adoecimento destes animais. Em homenagem
a Oswaldo, o novo parasita encontrado foi batizado pelo pesquisador de
Trypanosoma cruzi. No dia 14 de fevereiro de 1909, Chagas consultou aquele
que seria o primeiro caso humano comprovado da parasitose: uma garota
de dois anos (Berenice) que apresentava febre alta, hepatoesplenomegalia e
edema duro no rosto. Pesquisando seu sangue periférico, pôde encontrar o
Trypanosoma cruzi, comprovando a existência de uma nova moléstia tropical
humana (Salgado, 1962; Lewinsohn, 1981; 2000; Coutinho et al., 1999; Dias,
2000).
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O inusitado na descoberta dessa tripanossomíase – que, por influência
do presidente da Academia Nacional de Medicina Miguel Couto, veio a ser
conhecida por Doença de Chagas – está no caminho inverso de sua pesquisa,
iniciada sequencialmente pelos estudos do inseto, do parasita que o infectava, da
capacidade de infecção em animais e por fim a descoberta da doença humana.
Desta forma, foram apresentados pelo mesmo pesquisador o agente etiológico,
os mecanismos de transmissão, a epidemiologia, os sintomas em suas diferentes
formas clínicas, a anatomia patológica e posteriormente sua profilaxia (Coutinho
et al., 1999; Dias, 2000; Lewinsohn, 1981; 2000).
Carlos Chagas, como membro das Academias de Medicina do Brasil, Lima,
Nova York e Paris, manteve-se atuante por toda a sua vida. Em 1917, com a
morte de Oswaldo Cruz, assumiu a diretoria de Manguinhos. Em 1918 atuou
incansavelmente na epidemia de gripe espanhola, criando hospitais de emergência
no Rio de Janeiro e prestando assistência à população. Entre 1920 e 1926,
exerceu o cargo de diretor-geral do Departamento de Saúde Pública do Rio
de Janeiro, aprimorando o serviço sanitário da cidade e organizando serviços
especializados de combate à tuberculose, hanseníase e doenças venéreas, que
grassavam entre a população. Em 1925 iniciou sua atividade como professor na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde instituiu a cadeira de Medicina
Tropical. Morreu subitamente em 1934, aos 55 anos.
3. Os
prêmios e as polêmicas
Carlos Chagas foi consagrado internacionalmente como um grande
pesquisador. Ele jamais fez algum intercâmbio em instituição fora do Brasil
que, reconhecidamente, não possuía nenhuma tradição para a pesquisa.
Em 1912 foi agraciado com o prêmio Schaudinn, conferido a cada quatro
anos pelo Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo, Alemanha, para os
melhores pesquisadores nas áreas de protozoologia e microbiologia (Coutinho et
al., 1999). O feito do brasileiro não foi pequeno. Concorriam ao prêmio nada
menos que Erlich e Metchnikoff (laureados com o prêmio Nobel em 1908, por
seus trabalhos sobre imunologia), Laveran (ganhador do Nobel em 1907 pelo
estudo sobre o papel dos protozoários nas doenças), Nicolle (laureado em 1928
por suas pesquisas sobre o tifo) e Leishman (que descreveu o agente do calazar).
A comissão julgadora era formada por vários cientistas, dentre eles, Koch (Nobel
em 1905, por suas pesquisas sobre tuberculose), Ross (Nobel em 1902, pelo
estudo sobre a contaminação do organismo humano pela malária) e Golgi (Nobel
em 1906, pelos trabalhos sobre a estrutura do sistema nervoso). Companheiros
e juízes de peso que enalteceram ainda mais a figura de Chagas.
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Durante sua primeira viagem aos Estados Unidos, a convite da Fundação
Rockefeller para professar um curso de Medicina Tropical na Universidade de
Harvard, Chagas foi laureado com o título honoris causa (1921). Dois anos depois,
recebeu o prêmio hors-concours pelos seus trabalhos sobre saúde pública e doenças
tropicais, expostos na conferência comemorativa do centenário de Pasteur, em
Estrasburgo (Chagas Filho, 1993). Em 1925, a Universidade de Hamburgo lhe
conferiu a medalha de ouro do prêmio Kummel.
Dentre as homenagens que Chagas recebeu, uma das que lhe deu maior
satisfação foi prestada pelo rei Alberto, da Bélgica. Em 1921 o rei prestigiou os
serviços realizados no Instituto de Manguinhos e entregou-lhe pessoalmente as
insígnias de comendador da Ordem da Coroa Belga (Chagas Filho, 1993).
Enquanto no exterior Chagas era homenageado por seu mérito científico, no
Brasil surgia um grupo opositor, que foi responsável pela grande polêmica vivida
na Academia Nacional de Medicina entre os anos de 1922 e 1923. Em seu livro
“Meu Pai”, Chagas Filho cita um episódio ocorrido no Instituto de Manguinhos
em 1910, que pode ter sido o estopim para a formação de uma ferrenha oposição
ao cientista (Chagas Filho, 1993).
Rocha Lima, pesquisador de Manguinhos que viria a descobrir o agente
causal do tifo exantemático, partiu para a Europa deixando a função de Chefe
de Serviço, vaga cobiçada por muitos pesquisadores do Instituto, dentre eles
Figueiredo de Vasconcellos. Realizado o concurso para ocupação do cargo,
Chagas, um dos mais novos integrantes do laboratório, foi o escolhido. Com a
morte de Oswaldo Cruz em 1917, o pesquisador foi designado como diretor do
Instituto e mais tarde também para a chefia do Departamento Nacional de Saúde
Pública. Foi a gota d’agua para Afrânio Peixoto, que almejava esta importante
posição política. Ele passou a liderar, juntamente com Figueiredo Vasconcellos
e Parreiras Horta, um grupo antagonista a Chagas, que encontrou os elementos
necessários para denegrir a imagem do pesquisador nas críticas de Rudolph
Kraus (Chagas Filho, 1993).
Este consagrado bacteriologista da Universidade de Viena, que então exercia
o cargo de diretor do Instituto de Bacteriologia de Buenos Aires, colocara em
dúvida a existência da Doença de Chagas. Kraus alegava ter encontrado barbeiros
infectados no Chaco argentino, mas não a ocorrência de casos de enfermidade
humana (Chagas Filho, 1993). Contestava também alguns itens sobre a divisão
inicial das formas clínicas da doença feita por Chagas – distúrbios endócrinos,
neurológicos e cardíacos. Chagas defendera que o bócio tireoidiano, afecção
então bastante comum no interior do Brasil, era causada pela tripanossomíase
e chegou a referir-se à doença como tireoidite parasitária. Kraus contestou as
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formas endócrina e nervosa e defendeu que elas, na realidade, correspondiam ao
bócio e cretinismo endêmicos, já descritos na Europa. Para explicar a ausência
de tripanossomíase na Argentina, o cientista e seus colaboradores apresentaram a
hipótese de que naquele país o T. cruzi teria sua violência atenuada, provavelmente
em função do clima. Estas colocações puseram em dúvida a própria definição
da doença de Chagas, principalmente em sua fase crônica, enquanto entidade
clínica diferenciada (Kropf, 2008).
Em 1916, no I Congresso Médico Nacional realizado em Buenos Aires, Chagas
defendeu seu conceito geral da doença, mas iniciou ali uma importante revisão
de suas ideias, ao minimizar os sinais tireoidianos e reforçando os elementos
cardíacos da fase crônica da doença. Em publicação posterior, apresentou a
etiologia parasitária do bócio como passível de revisão e deixou definitivamente de
mencionar a doença como tireoidite parasitária. Se Chagas, elegante e sutilmente
admitiu seu erro – o que em absoluto minimiza a importância e a dimensão de
sua descoberta – Kraus também o fez ao afirmar publicamente seu equívoco
sobre a ausência da tripanossomíase em território argentino (Kropf, 2008). Anos
mais tarde os pesquisadores Salvador Mazza e Cecílio Romaña comprovaram
definitivamente a grande extensão da moléstia naquele país.
A contenda, que seria normal entre dois cientistas, foi deliberadamente
aproveitada para a criação de um ambiente de inquietação e dúvidas e aqueceu
os já bastante exacerbados debates nacionalistas da década de 1920. O cerne dessa
questão foi a exposição nua e crua das péssimas condições de saúde no interior
do Brasil, e criaram-se assim outros dois polos antagônicos: o dos apaixonados
defensores da resolução de tamanha tragédia e o dos que preferiam esconder
os problemas nacionais aos olhos estrangeiros. No choque entre a ciência e a
política, o clima gerado permitiu que alguns médicos confrontassem os achados
de Chagas, supostamente ancorados pelos estudos argentinos e, para completar,
o acusaram de antipatriótico por expor a saúde pública do país desta maneira
(Kropf, 2008). Havia ainda aqueles que sequer acreditavam na existência da
tripanossomíase, seja por desconhecimento da doença ou porque seus interesses
pessoais assim não o permitiam.
Baseados nas pesquisas de Kraus, Parreiras Horta passou a fazer declarações
claramente tendenciosas, cheias de erros biológicos e geográficos que confundiram
a opinião pública. Os integrantes da Academia Nacional de Medicina compraram
uma disputa de caráter essencialmente pessoal com a finalidade de denegrir a
imagem de Chagas. Ridiculamente, após terem negado a existência da doença,
atribuíram sua descoberta a Oswaldo Cruz. Tal afirmação foi negada pelo próprio
filho de Oswaldo, Bento Cruz, que escreveu: “Julgo cumprir um dever declarando, em
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nome de minha família e no meu próprio, que Oswaldo Cruz atribuiu sempre essa descoberta,
integralmente, ao Dr. Carlos Chagas[...]” (Chagas Filho, 1993, p. 199).
Em função das dúvidas lançadas por Afrânio Peixoto e seus companheiros,
em discurso na Academia Nacional de Medicina sobre a importância da
tripanossomíase e sua extensão, Chagas solicita uma comissão para verificar
todos os trabalhos realizados. Trouxe da região de Lassance, 40 pacientes que
ficaram internados no Rio de Janeiro, para que assim seus opositores pudessem
comprovar o quadro clínico da doença. Mas alguns destes alegaram que aqueles
eram a totalidade de pacientes portadores existentes.
Em dezembro de 1923 a palavra final na Academia foi de Carlos Chagas,
que encerrou essa discussão em longa conferência reafirmando e explicitando os
seus conceitos, ao mesmo tempo em que analisava os deslizes cometidos por seus
inimigos em suas críticas infundadas (Lewinsohn, 2003).
Essa campanha contra Chagas, ocorrida entre 1922-23, coincidiu na época
com sua segunda nomeação ao Prêmio Nobel, que de certa forma deve ter
influenciado na decisão do Comitê Nobel. De acordo com a biografia de Salvador
Mazza, o historiador Jobino Pedro Sierra afirma:
“Em 1921, [Chagas] foi proposto para o Prêmio Nobel de Medicina e, quando tudo
indicava que lhe seria concedido, influências interferiram. O Instituto sueco havia-se
dirigido a entidades científicas do Brasil, solicitando dados sobre a sua personalidade
e a sua obra; porém alguns dos seus próprios compatriotas objetaram. Nesse ano, o
cobiçado louro mundial de medicina não foi concedido a ninguém” (Lewinsohn,
2003, p. 258).
4. Carlos Chagas
perdeu o
Nobel?
A indicação de Chagas por Manoel Augusto Hilário de Gouvêa, médico
otorrinolaringologista do Rio de Janeiro e membro da Academia, ao Nobel
de 1921 foi confirmada por Nils Ringertz, secretário da comissão Nobel para
Fisiologia e Medicina. Sua indicação havia sido examinada por Gunnar Hedén,
que aparentemente fez um relatório oral à comissão. Em seu livro “Três Epidemias.
Lições do Passado”, Lewinsohn relata que, tentando descobrir alguma informação
adicional sobre o mistério do Prêmio negado a Chagas, enviou cartas para
Estocolmo. Nelas incluiu o histórico da descoberta da doença de Chagas, além de
cartas de credenciamento da OMS, da FIOCRUZ e da UNICAMP, pedindo a
permissão para examinar os arquivos do Comitê Nobel. Muitas foram as tentativas
da pesquisadora, até receber a seguinte resposta:
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“Prezada doutora Lewinsohn, pelo que entendemos, V.S deseja examinar nossos arquivos
para obter a informação a respeito do doutor C. C. Ele foi nomeado por uma pessoa
em 1913 e por outra em 1921. Em 1921, houve uma avaliação. Este é todo material
existente em nossos arquivos a respeito dele. Nós poderíamos copiar as nomeações e a
avaliação e enviá-las a V.S.[...]” (Lewinsohn, 2003, p.260).
Ao receber as cópias prometidas pelo Nobel Office, os documentos eram
referentes apenas às nomeações. Em relação à avaliação feita na segunda nomeação,
Estocolmo afirmava tratar-se apenas de uma avaliação verbal. Surpresa com o
episódio, a pesquisadora questiona por que o secretário do Comitê teria oferecido
um documento que, provavelmente, existia em seu arquivo e depois de alguns dias
alegava ser inexistente. Certamente essa história é estranha e torna-se um grande
enigma difícil de ser descoberto, uma vez que o próprio Comitê desconhece ou
omite os verdadeiros fatos (Lewinsohn, 2003).
Em relação à nomeação de 1913 por Pirajá da Silva, também confirmada por
Nils Ringertz, muito pouco pudemos encontrar na literatura. Apenas acreditavam
que a indicação ainda fosse prematura, necessitando de mais estudos sobre a
doença, pois até 1912, somente 14 trabalhos haviam sido publicados sobre a
entidade, sendo 12 do próprio Chagas (Dias, 2000).
Sobre a nomeação não oficial de 1934, formou-se um movimento na Europa
liderado pelo hematologista Gustavo Pitaluga, que escreveu para Chagas pedindo
todas as suas publicações e o seu currículo para ser apresentado ao Comitê como
possível candidato ao Prêmio Nobel de 1936. Devido ao seu falecimento em
novembro de 1934 e sendo o prêmio não atribuído postumamente, a nomeação não
pôde ser levada a termo (Chagas Filho, 1993; Coutinho, 2008; Freire, 1999).
5. Conclusão
O brilhante pesquisador Carlos Chagas, responsável pela descrição de
uma das mais importantes doenças que atingem a população latino-americana,
acometendo, hoje, cerca de 12 a 14 milhões de pessoas na América Latina, sendo
3,5 milhões no Brasil (Dias, 2000), foi consagrado internacionalmente recebendo
diversas premiações e titulações. Porém, em seu próprio país, suas contribuições
à ciência não foram valorizadas em primeira instância. A consequência imediata
foi o retardo do ensino sobre a doença nas universidades e, por conseguinte, o
desconhecimento dos novos médicos formados sobre uma doença essencialmente
rural na época de sua descoberta. O Brasil litorâneo, mais populoso e com mais
recursos, dava as costas para o Brasil do interior, pobre e abandonado pelo poder
público de então.
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A polêmica da descoberta da doença de Chagas na Academia Nacional
de Medicina pode ter exercido uma influência negativa sobre a Comissão do
Nobel, não permitindo que o pesquisador fosse laureado em 1921. Nesse ano,
nenhum cientista foi premiado na área de Medicina e Fisiologia, motivo que
fortaleceu o enigma, pois se dava como certa a premiação de Carlos Chagas.
Este seria o primeiro prêmio Nobel brasileiro, talvez o único da nossa história
(Dias, 2000).
Contudo, esta não foi a pior parte da história. A doença de Chagas no
Brasil existe desde tempos pré-coloniais, porém, acredita-se que seu significado
epidemiológico tenha sido pequeno até o século XIX. Neste período, o
desequilíbrio ecológico causado por extensos desmatamentos nas lavouras de canade-açúcar e café, as migrações de um elevado número de pessoas para o interior
e a chegada ao país do mais importante transmissor da Doença de Chagas, o
Triatoma infestans, tornaram-na epidemiologicamente significativos e causaram a
contaminação de milhões ao longo dos anos (Gurgel et al., 2007). A morte lhes
poderia ter sido evitada se a doença tivesse sido reconhecida e controlada antes
que a tragédia acontecesse nas proporções por todos conhecidas.
A população pobre, desinformada e esquecida do poder público foi a
verdadeira vítima dessa infeliz história.
Referências
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Pública, v. 7, n. 2, p. 135-149, 1991.
Chagas Filho, C. Meu Pai. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz,
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Coutinho, M.; Coura, J. R. Carlos Chagas e a indicação ao Prêmio Nobel.
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Acesso em: 5 jul. 2008.
______ ; Dias, J. C. P. A descoberta da doença de Chagas. Caderno de Ciências
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Dias, J. C. P. Carlos Chagas: alguns aspectos históricos. Revista Patologia
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do
Prêmio Nobel
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Recebido em: 09/03/2009
Aprovado em: 23/06/2009
Cad. Saúde Colet., Rio
de
Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 –
809

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