PDF - Revista Brasileira de Psicoterapia

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RBPsicoterapia
Revista Brasileira de Psicoterapia
Volume 14, número 2, 2012
www.rbp.celg.org.br
Resenha de filme
“Em um mundo melhor”: Algumas reflexões
sobre a violência no mundo atual
Luciano Isolan*
*
Psiquiatra e Psiquiatra da Infância e Adolescência. Mestre e Doutor em Psiquiatria pela
UFRGS
“Em um mundo melhor” (Haevnen) é um filme dinamarquês, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2011, dirigido por Susanne Bier.
Seu enredo é composto por várias tramas que se entrecruzam e nos fazem
refletir sobre as diversas formas de violência e as maneiras de lidar com ela
em diferentes contextos e faixas etárias.
Em uma dessas tramas está Elias (Markus Rygaard), filho de Anton
(Mikael Persbrandt), um médico que viaja frequentemente a um país da
África para trabalhar em um campo de refugiados e passa por problemas
conjugais com sua esposa Marianne (Trine Dyrholm). Paralelamente, temos
a história de Christian (William Johnk Nielsen), que volta da Inglaterra para
sua terra natal na Dinamarca com seu pai Claus (Ulrich Thomsen) após a
morte de sua mãe por câncer.
Elias é um estudante que sofre episódios diários de bullying na sua
escola, sendo vítima de agressões físicas e verbais perpetuadas por outro
estudante e seu grupo. Christian está em processo de luto pela perda da
mãe e tem uma relação conturbada com o pai, frio e distante emocionalmente, o qual culpa por ter sido omisso nos cuidados em relação à mãe. O
pai de Christian é um homem de negócios muito ocupado que nega a situação sofrida pelo filho e os vários indícios de que ele passa por dificuldades
emocionais. As histórias de Elias e de Christian se encontram quando os
dois se conhecem na escola. Apesar de muito diferentes, já que Elias é proveniente de uma família de classe média de pais que estão se divorciando e
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Christian é filho de uma família rica que morava em Londres, ambos são
excluídos e logo ficam amigos. Christian observa atentamente as agressões
sofridas por Elias e decide se vingar por ele. Age de uma forma extremamente violenta contra o agressor principal do amigo, cessando assim os
ataques contra Elias. Christian encontra, através da violência, uma forma de
canalizar sua raiva e tristeza pela morte da mãe.
Em outra trama, aparece Anton, o pai de Elias, que em uma das cenas
iniciais do filme está exercendo sua função de médico atendendo predominantemente vítimas de violência em uma região da África extremamente
miserável e perigosa. Anton nos é apresentado como um pacifista, com
grande preocupação social e que acredita que a violência apenas gera mais
violência. Em uma das cenas, ao ser esbofeteado no rosto por um homem,
após um desentendimento banal entre seus filhos, Elias e Christian observam espantados a atitude passiva de Anton e se perguntam como ele pode
simplesmente não fazer nada. Anton resolve ir ao local de trabalho desse homem para conversar sobre a situação que ocorrera e dar um exemplo para o
filho e para Christian de como lidar com a violência. Após ser novamente
agredido e não reagir, Anton tenta passar a mensagem aos filhos de como a
violência não resolve nada e diz ao homem que o agrediu que ele é um tolo
por agir daquela maneira. Essa reação do personagem nos faz refletir sobre
as formas adequadas de lidar com situações de violência e nos faz pensar na
complexidade do tema.
Elias encontra-se confuso e dividido frente a essas duas formas de lidar
com a violência. Enquanto o pai é partidário de uma forma pacífica de resolução de conflitos, o amigo Christian é movido por um sentimento de raiva e
vingança e parece visualizar o mundo de uma forma cruel e injusta, vendo na
violência a única saída. Tal violência, tão idealizada por Christian, em determinado momento do filme sai do seu controle. Elias é um personagem ético
e bondoso. Sofre pela ausência de amigos, pelo distanciamento físico do
pai, pela situação conjugal dos pais e encontra em Christian uma possibilidade de ter um amigo em um ambiente tão hostil e ameaçador quanto a escola.
O medo de perder a amizade de Christian é o que torna Elias vulnerável e
solidário à violência perpetuada pelo seu único amigo. Sabe-se que indivíduos que possuem um “melhor amigo” em sala de aula apresentam um risco
menor de se tornarem vítimas de bullying.
O bullying vem sendo um tema cada vez mais discutido no mundo
atual e é uma forma de violência que ocorre no âmbito escolar com graves
consequências a curto e longo prazo. Este é um problema social sério e complexo e, provavelmente, o tipo mais frequente de violência na infância e
adolescência. Bullying é uma palavra que tem origem no termo inglês bully,
que quer dizer “valentão”, “tirano”, “brigão”, e ainda não tem uma tradução
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adequada para o português. Por muito tempo, o bullying foi considerado
uma ocorrência normal e esperada na interação entre os estudantes que
não estaria associado a prejuízos para os indivíduos envolvidos nessa prática. Esse e outros mitos estão associados, sendo um dos mais equivocados o
de que o bullying seria uma brincadeira de criança e que não traria repercussões a curto ou longo prazo. Porém, pesquisas têm demonstrado o contrário, evidenciando uma ampla gama de prejuízos e uma alta prevalência
de problemas psiquiátricos associados a esse problema, tais como depressão, ansiedade, abuso/dependência de substâncias, sintomas psicóticos e
suicídio. O filme aqui discutido retrata essa forma de violência, tão antiga
quanto a própria escola, de uma forma que transcende padrões de linguagem e cultura e nos permite entrar em contato com um sofrimento que
muitas crianças vivenciam diariamente.
“Em um mundo melhor” é um filme instigante e interessante que
aborda a questão da violência no mundo atual e nos faz pensar sobre as
diferentes formas de lidar com ela a partir de diversos pontos de vista. O
filme não oferece solução fácil. O expectador é convidado a refletir e a tirar
as suas próprias conclusões, buscando quem sabe chegar de fato a um
mundo melhor.
Correspondência
Luciano Isolan
Av. Taquara, 386/805.
CEP: 90460-210
Porto Alegre, RS, Brasil.
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