O diálogo e seus sentidos na clínica fonoaudiológica

Transcrição

O diálogo e seus sentidos na clínica fonoaudiológica
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
LINGÜÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM
O DIÁLOGO E SEUS SENTIDOS NA CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA
MARIA LUCIA HAGE MASINI
SÃO PAULO
2004
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados
Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem
O diálogo e seus sentidos na clínica fonoaudiológica
Maria Lucia Hage Masini
Tese apresentada como exigência
parcial
para a obtenção do título de Doutor
em
Lingüística Aplicada e Estudos de
Linguagem
Sob a orientação
da
profª
drª
Roxane
Helena
Rodrigues Rojo
São Paulo – 2004
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
______________________________________
______________________________________
______________________________________
______________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
A quem trago sempre comigo,
Luiz, Julia e Eduardo.
Agradecimentos
A todos aqueles cuja leitura deste trabalho evocar lembranças de encontros
cotidianos, suscitar o reconhecimento, seja pela concordância ou discordância, do
que aqui está dito e provocar o desejo de resposta, o meu mais sincero
agradecimento.
Foi da possibilidade desses encontros, em toda sua diversidade, que esta obra se
constituiu.
Uma menção especial se faz necessária.
Pela seiva e pelo tempo de espera do florescer, meu muito obrigada à Profª. Drª
Roxane Helena Rodrigues Rojo, orientadora desta pesquisa e mentora do meu
amadurecimento intelectual.
Ao CEPE/PUC-SP, agradeço a bolsa concedida para a realização deste trabalho.
RESUMO
O diálogo sempre esteve no horizonte fonoaudiológico, quer como objetivo
final, quer como parte de seus métodos, tomado ora como estratégia para
obtenção de novos comportamentos verbais, ora como condição essencial para a
constituição do sujeito.
A partir da discussão da inserção da Fonoaudiologia na sociedade,
buscando reconhecer, em seu discurso, as marcas de outros discursos que o
compõem e com base na perspectiva enunciativa proposta por Bakhtin e sua
noção de interlocutores como sujeitos sociais e históricos, nossa pesquisa teve
como objetivo rediscutir a noção de diálogo na clínica fonoaudiológica.
Na metodologia, seguimos princípios bakhtinianos concernentes à pesquisa
no campo das ciências humanas, procurando responder às perguntas formuladas,
a partir do estabelecimento de uma relação dialógica com textos provenientes de
duas esferas, a saber:
1. Acadêmica:
discursos
fonoaudiológicos
que
elaboram
ideologicamente a clínica, na perspectiva sócio-interacionista;
2. Clínica: depoimentos de fonoaudiólogos sobre situações terapêuticas
em que o diálogo se faz presente.
Embora haja a assunção da premissa de que o diálogo é elemento da
metodologia terapêutica fonoaudiológica, a análise do material mostrou-nos que
ele ainda não figura como tal entre os temas mais estudados por profissionais da
área, nem é a ele atribuído um estatuto de instrumento terapêutico. Sua
conceitualização e uso na atividade terapêutica são dados por supostos, a partir
da explicitação da base teórica. Encontramos referências ao diálogo, somente de
forma indireta. Em ordem decrescente de incidência, ele é entendido como meio
propiciador: da cura do sintoma manifesto na linguagem; do confronto entre
funcionamentos lingüísticos; do cruzamento de vozes e da observação do estágio
cognitivo.
O aprofundamento da análise mostrou-nos ainda que faz toda a diferença
quando o terapeuta fonoaudiólogo retoma os enunciados do paciente com o
objetivo de respondê-los seja pela argumentação, dúvida, complementação,
concordância. Ao reconhecer no enunciado alheio suas próprias palavras
acolhidas dessa forma, o paciente sente-se pleno de palavras interiores e essa é
uma condição fundamental para a ressignificação de linguagem em sua vida.
Índice
Introdução ......................................................................................................... 1
Capítulo 1 – A clínica fonoaudiológica no final do século XX ............................ 8
Capítulo 2 – Metodologia ................................................................................... 42
Capítulo 3 – Produção científica da área I – publicações em revista
especializada ........................................................................................................ 57
Capítulo 4 – Produção científica da área II – dissertações e teses defendidas
em programas de fonoaudiologia...........................................................................99
Capítulo 5 – Depoimentos de fonoaudiólogos atuantes na área clínica ............ 123
Conclusão ......................................................................................................... 173
Anexos
INTRODUÇÃO
Clarice Lispector inicia seu livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres com uma vírgula. Há leitores que se apressam em trocar o exemplar,
julgando-o com defeito de edição. Outros aceitam o estranhamento que isso lhes
causa e buscam desfazê-lo com a continuidade da leitura. Aos poucos, vêem-se
em meio ao fluxo do pensamento de Lóri, personagem principal, tornando-se
evidente que ela já existia antes deles. A vírgula marcaria, então, a idéia de que a
vida já estava lá, antes do encontro autor, personagem e leitor.
Poderíamos dizer que Lispector exemplifica, com esse início de livro, o
conceito bakhtiniano de língua como fluxo ininterrupto de comunicação verbal. Ao
iniciar sua história com uma vírgula, a autora assume que os enunciados ali
presentes não são inaugurais da vida de Lóri; eles, por certo, estão ali em
resposta a enunciados anteriores. É o encontro entre o leitor e a personagem que
se instaura em meio a esse fluxo de enunciados. Isso cria um estranhamento e,
igualmente, a possibilidade de criação de novos sentidos para além do contar uma
história.
De maneira análoga, os enunciados desta tese não são inaugurais do tema
que aborda. No entanto, colocar a vírgula exige uma reflexão sobre a quem este
trabalho se dirige.
Esta tese parte do universo fonoaudiológico e a ele se dirige
fundamentalmente. No entanto sua construção encontra-se em outra esfera
acadêmica de produção de conhecimento, a saber, o Programa de Estudos PósGraduados em Lingüística Aplicada e Estudos de Linguagem. Isso implica a copresença de interlocutores, entre os seus destinatários reais, com conhecimentos
diversos acerca do universo abordado, exigindo da pesquisadora uma especial
atenção à escolha do marco inicial, de modo que não lhes pareça tão familiar que
beire o óbvio ou tão estranho que sugira problemas conceituais.
O tema aqui abordado é o diálogo na clínica fonoaudiológica.
Algumas afirmações são correntes entre profissionais da área. A atividade
terapêutica fonoaudiológica é essencialmente dialógica. Ou ainda: O diálogo como
elemento da metodologia terapêutica fonoaudiológica é, atualmente, um fato
incontestável na área. Ambas merecem um esclarecimento.
Como veremos em capítulos posteriores, a prática fonoaudiológica inicia-se
muito antes da regulamentação da profissão de fonoaudiólogo, sob a forma de
combate aos desvios da língua que se buscava unificar, no período da história
política brasileira caracterizado como Estado Novo. O fazer do profissional
preparado para tal – na sua maioria professores da rede pública – era
caracterizado basicamente por exercícios de correção da pronúncia e de inibição
do uso de estrangeirismos. Embora toda a atividade fosse baseada no diálogo, a
ele não era atribuído o estatuto de método de trabalho.
Com o surgimento dos cursos de graduação de Fonoaudiologia, que
visavam a regulamentação da profissão, teorias e métodos fonoaudiológicos foram
sendo elaborados. No entanto, durante muito tempo (cerca de duas décadas
desde a institucionalização acadêmica), a premissa foi a mesma: enfoque num
trabalho pontual com aspectos lingüísticos isolados que necessitassem de
correção. O diálogo caracterizava-se como parte secundária do trabalho: ou como
um aquecimento inicial, ou como uma possibilidade de verificação da eficácia dos
exercícios realizados ao final das atividades terapêuticas. É bastante conhecida na
área a expressão: Depois a gente continua a conversa, agora vamos trabalhar!
Como se qualquer trabalho com a linguagem pudesse prescindir de diálogo.
Quando profissionais da área começam a atribuir valor ao diálogo na
terapia e assumem a atividade terapêutica como essencialmente dialógica, isso
não significa necessariamente a assunção de uma abordagem com base no
dialogismo bakhtiniano, mas antes uma contraposição ao trabalho fragmentário de
linguagem até então realizado na clínica fonoaudiológica. Talvez o mais correto,
por ora, fosse dizer que os fonoaudiólogos passaram a valorizar a atividade
dialogal realizada com seus pacientes e a teorizar sobre ela.
Compreender os sentidos atribuídos ao diálogo pelos profissionais que
assumem a terapia fonoaudiológica como atividade essencialmente dialogal é
assunto ainda a ser amplamente discutido.
Esta tese não nasceu com a determinação primeira de estudar e discutir o
diálogo e seus sentidos na clínica fonoaudiológica.
O projeto inicial pretendido para o doutorado enfocava a clínica da escrita,
ainda carente de uma maior explicitação na área fonoaudiológica. A partir de um
olhar bakhtiniano, o objetivo era o de buscar caracterizar a clínica como lugar da
ressignificação da escrita na vida de crianças, adolescentes e adultos que, por
diversas razões, passam a ter uma relação de sofrimento com essa linguagem.
Autores como Nagamine (1995) e Calheta (1997), também apoiados em
noções bakhtinianas como dialogismo, vozes, recepção ativa e gêneros
discursivos para discutir o caráter terapêutico do trabalho com a escrita,
apontaram o diálogo como meio fecundo para a transformação da relação que o
paciente estabelece com a escrita.
Aprofundar a idéia, decorrente de uma postura dialógica bakhtiniana de
trabalho fonoaudiológico, em que terapeuta, paciente e todas as vozes que
compõem seus discursos seriam responsáveis pela construção de novos sentidos
que o paciente possa atribuir à sua linguagem, redimensionou o foco desse
projeto inicial.
Deste modo, independentemente de se na clínica da escrita, entendemos
que o diálogo tem fundamental importância no decorrer de qualquer processo
terapêutico fonoaudiológico. Estudá-lo revelou-se uma tarefa necessária para a
construção de conhecimento na área e, assim, o diálogo como método da clínica
fonoaudiológica tomou forma como objeto de nossa pesquisa.
A Fonoaudiologia sofreu mudanças significativas nesta última década. Os
anos noventa do séc. XX foram profícuos na revelação de tendências no trabalho
terapêutico fonoaudiológico. Parcerias com a Medicina e a Lingüística foram não
só ampliadas pela diversidade de correntes teóricas que contemplam, como
também cederam espaço a outras, como a Psicanálise, de modo a nos
depararmos hoje com uma variedade de vertentes para a construção de um
referencial teórico-metodológico na área.
A aproximação com tais vertentes colocou em evidência o diálogo como
instrumento básico do trabalho terapêutico. Sobre esse debate, Arantes (1994), ao
discutir as clínicas de linguagem existentes e suas filiações teóricas, diferencia a
intervenção fonoaudiológica clássica – aquela que se mantém no limite da
descrição da linguagem, aproximando-se da pedagogia, na medida em que
trabalha com noções de ensinar e corrigir – da que propõe como terapêutica –
aquela comprometida com a produção singular do paciente e com a interlocução
como responsável pela construção de novos sentidos.
Perrotta, Märtz & Masini (1995) afirmam que dialogar com as crianças, em
terapia, significa valorizar seu interesse pela reflexão e pelo conhecimento que
pode ser construído, confrontado ou partilhado, através de situações em que
práticas orais e escritas estejam presentes. É através do diálogo, segundo as
autoras, que a criança pode depreender um significado muito importante para o
ato de expressar-se verbalmente, que é o de dar-se a conhecer por meio de temas
com os quais se ocupa, das idéias e raciocínios que elabora sobre eles, bem
como da maneira singular com que busca dizê-los a seus interlocutores.
Tubero (1996), discorrendo sobre o trabalho com pessoas afásicas, afirma
que, num processo terapêutico, não há correção, não há erro. São possibilidades
históricas de escolha, a aceitação das mesmas e as trocas entre fonoaudiólogo e
afásico, buscando a compreensão e a comunicação, que tornam possível a
reconstrução da linguagem.
Pensar numa perspectiva dialógica, para autores como Aronis (1992),
Tassinari (1995) e Cunha (1997), significa abranger discussões sobre o setting
fonoaudiológico, a relação terapeuta-paciente nos seus aspectos transferenciais e
contratransferenciais, a dimensão da existência de um inconsciente na formação
do sintoma de linguagem.
Essas discussões, presentes no cenário fonoaudiológico, são aqui apenas
alguns exemplos de um debate ainda inicial na área. O fato de o diálogo ser
considerado como instrumento básico terapêutico pode garantir uma mudança de
práticas e de discursos fundantes, mas não invalida um questionamento sobre
eles. Há, no discurso dos fonoaudiólogos que assumem uma postura dialogal,
modos distintos de abordar a linguagem. Quais as conseqüências que isso traria
para a conceitualização e uso do diálogo na terapia fonoaudiológica?
Esta pesquisa teve como objetivo discutir a noção de diálogo na clínica
fonoaudiológica, procurando responder as seguintes perguntas:
1. Que noções de diálogo circulam no discurso fonoaudiológico atual?
2. Com quem o fonoaudiólogo dialoga em sua atividade terapêutica, que
vozes circulam na esfera terapêutica?
3. Como o par terapêutico tem vivenciado suas interações verbais?
Esta tese, em sua fundamentação teórica, alimenta-se de conceitos da obra
bakhtiniana. A primeira justificativa dessa escolha está no fato de Bakhtin nos
oferecer uma abordagem dialógica como metodologia nas ciências humanas.Tal
abordagem confere à pesquisa a possibilidade de falar sobre seu objeto – sujeito
tal qual o pesquisador, tomado por seu discurso – sem que sua voz seja
suprimida. A abordagem dialógica bakhtiniana nos possibilita dar um tratamento à
palavra do outro de modo a assegurar a presença das vozes do pesquisador e do
pesquisado, sem que isto signifique fusão das mesmas. E o que garante tal
possibilidade é a permanência do pesquisador num lugar exotópico, ou seja, um
lugar extraposicionado, a partir do qual o pesquisador possa ir ao encontro do
outro para ver como ele vê e depois ao seu lugar retornar para dar sentido ao que
o outro vê.
Assim, neste trabalho, para falar do diálogo na clínica fonoaudiológica foi
necessário conhecer os discursos da área, interrogá-los, deixar-se influenciar por
eles, buscar influenciá-los. Realizou-se um jogo de aproximações e
distanciamentos necessários para que a familiaridade – na medida em que o
pesquisador é um profissional da área – cedesse espaço ao estranhamento, ao
desconhecido que impulsiona a construção do conhecimento. Nesse sentido, a
compreensão daquilo que se busca compreender, uma compreensão ativa, como
nos mostra Bakhtin, deu-se através do exercício da palavra, em que a
interpenetração de vozes prevaleceu.
Do referencial teórico bakhtiniano, trabalhamos fundamentalmente com o
conceito de dialogismo e com os que dele decorrem como palavra autoritária e
palavra internamente persuasiva, compreensão ativa e responsiva e enunciado
concreto. Tais conceitos foram fundamentais para a compreensão dos discursos e
das práticas vigentes na fonoaudiologia, enfocadas nesta pesquisa. Como
veremos adiante, o conceito de plurilingüismo social também foi utilizado para uma
possível explicação, dentro de da perspectiva bakhtiniana por nós adotada, sobre
as escolhas de trabalho fonoaudiológico.
Tomamos como material a ser analisado, nesta pesquisa, produções
científicas da área – artigos, dissertações e teses – e depoimentos de
fonoaudiológicos acerca de suas práticas clínicas. O cuidado com a análise de
materiais tão diversos em seus contextos de produção está contemplado nos
capítulos referentes a cada um deles.
A seleção inicial tanto das produções quanto dos profissionais teve um
ponto de partida: a assunção de uma concepção interacionista de linguagem no
processo terapêutico. Sob a rubrica interacionista ou socio-interacionista, que na
história
da
fonoaudiologia
surge
como
uma
resposta
a
uma
vertente
comportamentalista do trabalho terapêutico, estão diferentes concepções de
linguagem e de sujeito. Esclarecê-las tornou-se condição essencial para uma
maior compreensão do(s) uso(s) do diálogo no trabalho terapêutico.
O primeiro capítulo desta tese está dedicado à caracterização da clínica
fonoaudiológica no final do século XX, a partir de seus principais conceitos e
aportes teóricos. Dentre esses últimos, especial atenção será dada às visões
interacionistas de linguagem, apresentadas no decorrer da caracterização da
clínica, na medida em que sejam necessárias suas explicitações. Nosso objetivo é
o de elucidar diferenças, entre essas visões, particularmente de conceitos
relacionados ao que nos cabe neste trabalho, a saber, os de interação e diálogo,
de modo que os fonoaudiólogos possam assumir um ou outro referencial com o
discernimento dos conceitos que dele decorre.
O segundo capítulo traz a explicitação da metodologia utilizada na
elaboração desta pesquisa e no tratamento dado ao material de análise.
Seguem-se, então, os capítulos de análise, que trazem, separadamente, a
produção científica na área realizada por pesquisadores seniores e por
pesquisadores juniores (respectivamente, artigos e dissertações/teses) e os
depoimentos de profissionais.
Como veremos, é na produção científica de pesquisadores seniores que
encontramos um amplo leque de discussões que nos possibilitaram a
caracterização do diálogo na clínica fonoaudiológica. Nas dissertações e teses, o
tema, já não tão diretamente abordado e apresentando indícios de simples
reiteração de conceitos discutidos na área, levou-nos a analisar os dados
encontrados, segundo os conceitos de ciência normal e ciência revolucionária de
Thomas Kuhn (1962).
A análise dos depoimentos, diferenciada das anteriores dada a natureza de
seu contexto de produção, ainda que nos tenha apontado aspectos interessantes
quanto à prática terapêutica fonoaudiológica, mostrou-nos uma preocupação com
o diálogo como método terapêutico ainda mais incipiente que a observada nas
análises anteriores.
O capítulo final configura-se, na verdade, como ponto de partida para
outras pesquisas na área. A partir da síntese do que discutimos ao longo desta
tese, evidenciando-se o que consideramos pertinente ao trabalho fonoaudiológico
com a linguagem,
buscamos apresentar uma possibilidade de trabalho
terapêutico em que se articulem a visão dialógica bakhtiniana de linguagem e a
postura winnicottiana de trabalho terapêutico.
CAPÍTULO 1
A CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA NO FINAL DO SÉCULO XX
Com quais características apresentava-se a clínica fonoaudiológica no final
do século XX?
Em pesquisa realizada, Freire & Ferreira (1994)1 observaram que o
atendimento terapêutico na área da linguagem é a principal atividade do
fonoaudiólogo: 85,9% dos 1276 fonoaudiólogos ouvidos, na época, atuavam
exclusivamente em terapia fonoaudiológica, com uma expressiva concentração
(67,2%) em consultórios particulares. A segunda esfera de maior concentração de
profissionais atuando terapeuticamente era a do serviço público de saúde (14,7%).
Confirmando a tendência apontada em pesquisas anteriores, a maior parte dos
pacientes em processos terapêuticos concentrava-se nas áreas dos distúrbios
articulatórios (15,3%), retardo de linguagem (14,4%) e distúrbios de leitura e
escrita (13,7%).
O Perfil do Fonoaudiólogo no Estado de São Paulo, apresentado em 1997,
pelo Conselho Regional de Fonoaudiologia, com 4507 profissionais, corroborou,
em parte, os dados já divulgados anteriormente. No final dos anos noventa do
séc.XX, o fonoaudiólogo mantinha como atividade principal o trabalho terapêutico
autônomo (54,61%), seguido do trabalho realizado em serviços públicos de saúde
(12,4%). Sua maior clientela concentrava-se na faixa etária de dois a dezenove
anos (92,51%), apresentando porém um expressivo crescimento nas faixas dos
bebês (31,11%) e idosos (40,07%). A área predominante de atuação ainda era a
da Linguagem (63,07%). Nessa pesquisa, no entanto, observou-se uma tendência
de crescimento de atuação na área de Audiologia (12,26%)2.
1
A pesquisa realizada em 1994 representa a terceira etapa de uma pesquisa maior, que teve início em 1987, e
que pretendia caracterizar o profissional da área dos Distúrbios da Comunicação. Nessa última etapa, foram
pesquisados os fonoaudiólogos dos Estados de São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
2
A Fonoaudiologia ainda apresenta-se dividida nas áreas: Linguagem, Audiologia e Voz.
O rápido panorama sobre o perfil do profissional da área fonoaudiológica,
mais do que esgotar a questão relativa a ele, tem a intenção de apontar
características de sua principal atividade, qual seja, a clínica da linguagem.
Desde finais da década de oitenta do séc. XX, diversos profissionais vêm se
dedicando a aprofundar fundamentos teóricos e práticos da clínica fonoaudiológica
(Maia, 1987; Masini, 1989; Souza, 1987, 1991; Arantes, 1994, 2001; Cunha, 1997;
Silva, 1999; Palladino, 2000, 2001; Guilhermino & Palladino, 2001; Amoroso &
Freire, 2001, entre outros).
Há uma tendência, nesses trabalhos, ainda que sob enfoques diversos, em
se analisar criticamente aquela que tem sido denominada clínica da objetividade.
2.1. A Clínica da Objetividade
Apontada como a clínica tradicionalmente voltada para a correção do erro,
a clínica da objetividade procurou respaldar-se na medicina, na psicologia do
desenvolvimento e na lingüística normativa, para legitimar sua prática e produção
teórica. Nessa perspectiva clínica, o sintoma de linguagem foi normatizado, isto é,
foi passível de uma classificação prévia, advinda de áreas de conhecimento que
não têm a linguagem patológica como seu objeto primário de estudo.
Como atestam Amoroso & Freire (2001: 19), a concepção de sintoma de
linguagem pela clínica da objetividade foi construída a partir da noção de erro,
visto como o negativo do positivo. Almeja-se a remoção do erro para o
restabelecimento de uma normalidade que, tratando-se de linguagem, significa
conformidade às estruturas que a compõem. Segundo Palladino (2000: 66), a
leitura do pathos, sob a ótica da objetividade, subtrai a diferença, a singularidade,
pois impõe um tratamento ortopédico às realidades humanas, conformando uma
leitura por expectativa em que o novo será aplacado, apagado, silenciado.
No exercício cotidiano da prática terapêutica fonoaudiológica, isso se traduz em
prescrições de atividades que visam a adequação ora de aspectos orgânicos,
considerados pré-requisitos para a aquisição da linguagem, ora de elementos
lingüísticos indispensáveis para o estabelecimento de uma comunicação
eficiente. O terapêutico cede, assim, espaço ao pedagógico e, como diz Arantes
(1994), a (rel) ação que melhor caracteriza essa perspectiva clínica é a de
ensinar/aprender.
Mas, na medida em que a construção do saber da área se aloja na prática,
como afirmam Cassavia & Maia (2001: 123), a existência da diversidade no que se
refere à linguagem, no âmbito da prática terapêutica fonoaudiológica, não pôde
passar desapercebida por seus profissionais.
Assim, como resposta à clínica da objetividade, surgem, na Fonoaudiologia,
dois movimentos favoráveis a mudanças na atuação e na compreensão dos
problemas de linguagem. Estamos nos referindo à denominada clínica da
subjetividade e ao que por ora denominamos clínica da intersubjetividade3.
2.2. A Clínica da Subjetividade
É consenso entre os profissionais que discutem essa perspectiva clínica a
instauração de um novo paradigma na área: o do saber aberto a múltiplas
possibilidades, já que o sujeito e a linguagem são caracterizados pela
singularidade.
Essa
perspectiva
traz
à
tona
novos
enfoques
para
questões
fonoaudiológicas como: conceito de sintoma de linguagem, lugar do terapeuta,
técnicas do trabalho terapêutico. Traz, em seu bojo, também, a assunção de
outras concepções de linguagem e novas parcerias na construção do
conhecimento.
No decorrer deste capítulo, veremos que há, por parte dos profissionais
favoráveis a essa perspectiva, uma ênfase maior em uma ou outra concepção, o
que acarreta diferenças significativas no conceito de sintoma de linguagem e,
3
Clínica da objetividade e clínica da subjetividade são termos já encontrados na literatura da área para
designar diferentes tendências de trabalho terapêutico e suas bases teóricas. O mesmo não ocorre com
clínica da intersubjetividade, termo que está sendo por nós cunhado para categorizar uma outra tendência
existente na área que, como veremos, tem por base em seus procedimentos terapêuticos a natureza social
da língua.
principalmente, no manejo do processo terapêutico. Como não há denominações
oficiais
para
essas
diferenças
de
ênfase,
optamos
por
apresentar
as
características da clínica da subjetividade a partir dos enfoques dados ao conceito
de sintoma de linguagem, à interpretação como técnica do trabalho terapêutico e
ao lugar do terapeuta, entendendo que, dessa forma, as semelhanças e
diferenças originadas pela ênfase dada a determinado construto teórico serão
apontadas.
Antes, porém, faz-se necessário apresentar a qual concepção de linguagem
os partidários da clínica da subjetividade estão filiados.
Para Andrade (2001), Lier-De Vitto & Fonseca (2001), Palladino (2001),
Amoroso & Freire (2001) e Rubino & Fonseca (1998), a singularidade na
linguagem surge a partir do estranhamento que uma fala pode causar aos falantes
em geral, tanto o que fala quanto o que escuta. Essa noção de singularidade tem
no interacionismo brasileiro, proposto por Claudia de Lemos, sua inspiração.
Retomemos alguns de seus aspectos que mais subsidiaram o pensamento
fonoaudiológico no interior da clínica da subjetividade.
Claudia de Lemos, pesquisadora brasileira da Aquisição de Linguagem de
linha interacionista, passa por duas fases distintas na elaboração de sua teoria de
aquisição de linguagem.
Desenvolvida na década de oitenta, a primeira fase está apoiada na idéia
de que a condição básica para a aquisição da linguagem é a interação com o
outro, aproximando-se de teses socio-interacionistas de aquisição de linguagem.
De Lemos tomou como unidade de análise da aquisição de linguagem o
diálogo adulto-criança e não mais a fala da criança isoladamente, como era
corrente nas áreas da Lingüística e da Psicolingüística, cuja tentativa era a de se
descrever uma gramática infantil. Suas formulações iniciais, segundo Teresa de
Lemos (2002), estudiosa da teoria interacionista brasileira, partem de estudos de
Melissa Bowerman (1973), Ronald Scollon (1973) e Jerome Bruner (1975)4.
De Bowerman, apreende que há uma flexibilidade na fala da criança que
rejeita a criação de gramáticas infantis. Construções gramaticais realizadas por
crianças, inesperadas do ponto de vista do adulto, são classificadas como
enigmas e não simplesmente erros, pois são construções possíveis em relação à
estrutura da língua.
De Lemos encontra no trabalho de Scollon, que descobriu sentenças
verticais na fala de crianças que ainda não formavam sentenças, uma
possibilidade de desvendar tais enigmas. Essa descoberta permitiu a De Lemos a
formulação de sua hipótese de que a criança depende do outro, do ponto de vista
da língua.
Vem, também, de Bruner a inspiração de tomar a linguagem como uma
atividade conjunta.
Para esse autor5, a aquisição da linguagem pela criança requer muito mais
do adulto do que Chomsky suspeitou. Ficar exposto a um fluxo de linguagem está
longe de ser tão importante quanto usá-la em meio ao ‘fazer’. Em outras palavras,
não basta o input, mas é necessária a interação. Um tipo de interação que
asseguraria o domínio lingüístico por parte da criança e que Bruner (1982: 177)
denomina Sistema de Apoio para a Aquisição da Linguagem (SAAL).
4
5
Bowerman e Scollon são autores de pouca projeção na área da Aquisição da Linguagem, mas que , segundo
Tereza de Lemos (2002), influenciaram De Lemos em sua teoria interacionista de Aquisição de Linguagem,
por apresentarem hipóteses acerca da fala da criança que se distanciavam da conduta corrente na época de
se encontrar universais de aquisição de linguagem. Esses dois autores são desconhecidos do público
fonoaudiológico. Já o trabalho de Bruner, autor respeitado entre os teóricos do socio-interacionismo, embora
pouco citado na Fonoaudiologia, pode ser facilmente reconhecido em alguns trabalhos da área, como
veremos adiante. Por esse motivo deter-nos-emos um pouco mais em alguns de seus conceitos.
Bruner, representante da geração de psicólogos evolutivos americanos, foi um dos estudiosos de Piaget que encontrou,
em suas pesquisas, evidências da importância da interação social no desenvolvimento intelectual da criança. Para ele, a
linguagem exerce importante papel no avanço intelectual, tanto através do processo formal de ensino-aprendizagem,
quanto das diversas situações cotidianas, em contato com adultos em suas diversas atividades.
Aproximando-se das idéias de Vygotsky, tendo sido, inclusive, um dos importantes pesquisadores no resgate para o
ocidente da produção vygotskiana, Bruner mostra-se particularmente sensível ao papel do meio e das diferenças
culturais em relação ao desenvolvimento intelectual. Todo seu estudo sobre a aquisição de linguagem deriva desta
noção de interação, em que as relações sociais adquirem relevância. Bruner não descarta a influência do fator biológico
sobre o desenvolvimento, mas é ele mesmo que afirma que a cultura e a busca por significado são a mão modeladora,
a biologia é a restrição e (...) cabe à cultura o poder de afrouxar essas limitações (Bruner, 1990: 30).
Bruner sugere que as primeiras interações entre um adulto e uma criança
são férteis em procedimentos, empregados por ambos, que constituem um
instrumento fundamental para a aquisição da linguagem verbal pela criança.
Baseado na idéia de Fillmore (1977)6, ele acredita que, para que a criança receba
as chaves da linguagem, ela deva participar primeiro de um tipo de relação social
que atue de modo consonante com os usos de linguagem no discurso, ou seja,
uma relação em que haja uma intenção compartilhada, uma especificação dêitica
e o estabelecimento de uma pressuposição. A esse tipo de relação, Bruner
denominou format.
Os formats pressupõem uma relação de complementaridade e
reciprocidade de papéis. A resposta de um dos participantes existe em função da
ação/resposta do outro, havendo não só um acordo como também divisão de
tarefas e iniciativas. A princípio, eles lidam com aspectos mais canônicos de
determinada cultura, permitindo à criança incorporar-se, de modo ainda provisório,
em suas regras fundamentais. Aos poucos, podem ser incorporados em rotinas
superiores, estabelecendo-se uma estrutura hierárquica. A criação de formats de
ordem superior mediante a incorporação de formats de sub-rotina é uma das
principais fontes de pressuposição (Bruner, 1982: 180).
Os primeiros formats (de ação e de petição) implicam uma ação conjunta,
ritualizada e sucessiva como, por exemplo, os jogos de dar e tomar, cadê/achou
(pee-ka-boo). Bruner observou que, uma vez tendo aprendido a responder a esses
formats, a criança é capaz de provocá-los e, aos poucos, assumir a iniciativa.
6
Fillmore propõe que a função das gramáticas seja a de estabelecer uma perspectiva sobre a cena que uma
oração representa.
Segundo as observações do pesquisador, é a partir desses formats que a criança
passa a realizar funções lingüísticas básicas como pedir ou indicar, tendo sempre
o adulto a orientá-la para que seu pedido seja compreendido. Assim, para Bruner,
é pela familiaridade e estrutura dos formats iniciais que a criança apreende as
estruturas lingüísticas básicas, aprendendo também a relacioná-las a suas
intenções. Graças à estrutura de conservação de pressupostos de um format, a
criança e o adulto envolvidos substituem, aos poucos, procedimentos indicativos
para outros do tipo intralingüísticos. É aí que entram os jogos de linguagem que
proporcionarão à criança elementos necessários para a construção do seu
discurso.
Com sua teoria de formats, Bruner (1982: 183) defende a hipótese de que:
Todas as culturas têm formas para criar formats de interação e discurso
cujo fim é o de fazer sobressair aspectos do mundo e da interação
social que se projetam mais facilmente nas categorias lingüísticas e nas
regras gramaticais.
Nessas interações iniciais, o adulto atua como modelo e organizador
daquilo que ainda não é domínio da criança, até que ela se sinta capaz de fazê-lo
sozinha. A idéia aí contida é a da Zona de Desenvolvimento Proximal, de
Vygotsky7, caracterizada pelas possibilidades de aprendizagem da criança
7
Vygotsky vê a relação com o adulto ou com parceiros mais experientes como a mola propulsora de todo o
desenvolvimento infantil. Para ele, desenvolvimento e aprendizado estão inter-relacionados desde os primeiros
focadas a partir dos processos ainda em formação. Nas palavras de Bruner (1982:
184), a ZDP seria como um préstimo de consciência que a criança recebe das
mãos do adulto e que conserva até que possa valer-se por si mesmo.
Para Teresa de Lemos (2002:170), Bruner com sua teoria instaurou a
intersubjetividade nos estudos da Aquisição de Linguagem, pois fez reconhecer
que a língua, afinal, é do Outro, auxiliando De Lemos (1982) na construção do
conceito de processos dialógicos na aquisição da linguagem pela criança.
Para a autora, especularidade e complementaridade8 constituem-se os
processos constitutivos do diálogo e da aquisição da linguagem. Por
momentos de vida de uma criança, sendo que o aprendizado humano pressupõe uma natureza social e um processo
através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que a cercam (Vygotsky, 1935: 117). No
aprofundamento dessa questão, Vygotsky desenvolveu um dos mais importantes conceitos de sua teoria: o de zona de
desenvolvimento proximal (ZDP). Para ele, há pelo menos dois níveis de desenvolvimento intelectual. Um está
relacionado aos ciclos de desenvolvimento já completados (Vygotsky, 1935: 111), daí o nome de nível de
desenvolvimento real. Vygotsky atenta para o fato de toda a psicologia da época voltar-se apenas para esse nível
quando se avalia a capacidade intelectual de uma criança apenas por aquilo que ela consegue fazer sozinha. Ele, por
outro lado, acredita que soluções alcançadas em colaboração com adultos ou colegas mais experientes são um
indicativo maior de desenvolvimento do que aquilo que ela faz sozinha. Isto porque o fazer sozinha reflete funções já
amadurecidas, enquanto que o fazer em colaboração define as funções em maturação, ainda em processo embrionário.
Eis aí o nível de desenvolvimento potencial. A distância entre o nível de desenvolvimento real e o de desenvolvimento
potencial é a zona de desenvolvimento proximal ou imediato.
Paulo Bezerra (2001), tradutor diretamente do russo do texto integral de Pensamento e Linguagem de Vygotsky,
chama a atenção do leitor brasileiro para a tradução feita até então do termo zona de desenvolvimento proximal.
Segundo ele, o termo correto idealizado por Vygotsky seria zona de desenvolvimento imediato e não proximal, por dois
motivos. Nas palavras do tradutor:
Primeiro: o adjetivo que Vigotski acopla ao substantivo desenvolvimento (razuítie, substantivo neutro) é blijáichee,
adjetivo neutro do grau superlativo sintético absoluto, derivado do adjetivo positivo blízkii, que significa próximo.
Logo, blijáichee significa o mais próximo, proximissimo, imediato. Segundo: a própria noção implícita no conceito
vigotskiano é a de que, no desempenho do aluno que resolve problemas sem a mediação do professor, pode-se aferir
incontinenti o nível de seu desenvolvimento mental imediato, fator de mensuração da dinâmica de seu desenvolvimento
intelectual e do aproveitamento da aprendizagem. Daí o termo zona de desenvolvimento imediato (prólogo de A
construção do pensamento e da linguagem, 2001: XI). A denominação ZDP ou ZPD também é objeto de discussão de
outros autores. A idéia trazida por Bezerra de desenvolvimento mais próximo, imediato é observada nas palavras de
Vygotsky (1935:113): (...) a zona de desenvolvimento proximal permite-nos delinear o futuro imediato da criança e seu
estado dinâmico de desenvolvimento, propiciando o acesso não somente ao que já foi atingido através do
desenvolvimento, como também àquilo que está em processo de formação.
8
Esses termos são emprestados do trabalho desenvolvido por Camaioni (1978) acerca de interações adultocriança e criança-criança. Na teoria de De Lemos eles deixam de corresponder à interação propriamente dita,
passando a se referir à relação entre os enunciados (cf. Lemos, 2002: 192)
especularidade entende-se a incorporação pela criança de parte ou do todo do
enunciado do adulto. Complementaridade seria a resposta da criança a um
enunciado imediatamente anterior do adulto. De Lemos subdivide esse processo
em complementaridade inter-turnos (a resposta a um enunciado anterior) e intraturnos (a incorporação de parte do enunciado anterior do adulto com uma
complementação da própria criança). Para a autora, a especularidade no nível
segmental e a complementaridade no nível suprasegmental fazem surgir a
complementaridade no nível segmental.
Como vimos, na definição dos processos dialógicos, De Lemos aproxima-se
de Bruner. A importância conferida por ele à mãe por estar atenta aos gestos do
filho, imitando-os e também atribuindo-lhes significados, o que equivaleria a
projetar a criança como sujeito intencional, é reconhecida, de modo análogo, na
conceituação de De Lemos dos processos dialógicos. O processo de
especularidade, também observado nos enunciados da mãe em relação aos da
criança, seria uma forma de o adulto representá-la como sujeito de um enunciado.
Um sujeito que só se vê através do outro, que dele depende para fazer sentido.
No entanto, o conceito de sujeito (e de outro), para De Lemos, não é o
sujeito psicológico ou social. Nesse aspecto, a autora demonstra maior afinidade
aos estudos de Scollon, na medida em que, como ele, não toma a via do
recobrimento do lingüístico com um funcionalismo social ou cognitivo (Lemos,
2002:190). Assim como Scollon, entende que não é a intenção comunicativa o
primeiro apelo da criança, mas antes um apelo de ver reconhecido o que ela
produz.
Assim, especularidade e complementaridade não se referem a sujeitos,
mas a estruturas lingüísticas. Os processos que governam o diálogo estabelecem,
portanto, uma relação de submetimento à ordem lingüística. Isto significa o
abandono à intersubjetividade9.
No aprofundamento de sua teoria e na busca de explicações para a
aquisição da linguagem pela criança, De Lemos resguarda a idéia da flexibilidade
na fala da criança e de seu submetimento à ordem lingüística, mas faz críticas
tanto à visão cognitiva de aquisição de linguagem quanto à socio-interacionista.
Para ela, os teóricos destas correntes não conseguiram demonstrar como a
estrutura e as categorias da língua podem derivar de processos interativos. O fato
de Bruner admitir que a interação é importante para a aprendizagem da linguagem
em uso, não havendo, entretanto, correspondência entre a comunicação prélingüística e a aquisição de estruturas lingüísticas, é, para a autora, prova de que o
socio-interacionismo falhou na explicação da aquisição da linguagem.
O compromisso com a fala da criança e seus enigmas, sem que isso
significasse o abandono de uma interpretação estrutural em favor de uma
funcional, fez com que De Lemos se aproximasse, em sua segunda fase, da
lingüística de Saussure. Mais especificamente, foi o retorno de Lacan a Freud,
com sua releitura de Saussure e Jakobson, que inspirou o modelo de aquisição de
9
Lemos (2002) observa que o terceiro processo dialógico, o da reciprocidade, caracterizado pela capacidade da criança de
iniciar uma interação, tomando o outro como seu interlocutor, quebra com a relação de submetimento à ordem da língua
pois é pura intersubjetividade. Talvez essa seja a razão, segundo ela, do não aprofundamento desse conceito na teoria
interacionista brasileira. No trabalho em que De Lemos discute os processos dialógicos (1982), por exemplo, o conceito
de reciprocidade nem aparece.
De Lemos (1992), na medida em que essa releitura reacendeu a importância da
noção de estrutura na lingüística saussuriana.
Para Saussure, a língua é um sistema cujos termos são solidários: o valor
de cada um reside em relação à presença/ausência de outro. A noção de valor é
dada por um princípio paradoxal: diferença e semelhança de um significante em
relação a outro significante. Para o autor, não existem simplesmente unidades
lingüísticas, mas sim relações entre elas. Tais unidades estruturam-se em
relações sintagmáticas ou relações de contigüidade (o valor de uma unidade é
obtido a partir da relação estabelecida entre as unidades que a precedem e as que
a sucedem) e em relações paradigmáticas ou relações de similaridade (unidades
que podem ser substituídas por outra de igual valor).
Jakobson (1955), na busca de uma sistematicidade subjacente ao discurso
afásico, amplia as noções de paradigma e sintagma. A observação desse discurso
levou-o a crer na existência de uma redistribuição das funções lingüísticas. As
perdas e compensações na afasia apontam para a inter-relação dos elementos
lingüísticos, tal qual Saussure havia desenvolvido em sua teoria.
Utilizando-se dos conceitos de metáfora e metonímia, Jakobson reafirma a
existência de dois modos básicos de relação: a relação interna de similaridade
servindo de base à metáfora (que é uma ampliação do conceito saussuriano de
paradigma) e a relação externa de contigüidade determinando a metonímia (como
ampliação do conceito de sintagma). Para Jakobson (1955: 48),
os componentes de qualquer mensagem estão ligados necessariamente
ao código por uma relação interna de equivalência e ao contexto por
uma relação externa de contigüidade.
Usar esses conceitos de Saussure, relidos por Jakobson, para
compreender como se dá a aquisição de língua materna foi o caminho proposto
por De Lemos, por dois motivos: a relação de solidariedade existente entre léxico
e estruturas e a condição de interdependência entre os processos metafórico e
metonímico. Em outras palavras, a escolha/presença de um elemento lingüístico
pressupõe não só a ausência de outro que poderia substituí-lo como também a
noção de sua posição no encadeamento dos elementos.
Para De Lemos (1992), considerar essa interdependência significa dizer
que não há uma aquisição ordenada dos componentes da língua, isto é, não há
como sustentar a hipótese de que a aquisição do léxico, por exemplo, preceda a
da sintaxe.
A aquisição da linguagem se dá, portanto, a partir da submissão dos
significantes da criança a processos metafóricos e metonímicos, através de
relações com outros significantes. É a partir de fragmentos do discurso do outro –
assumido agora como discurso ou instância de funcionamento da língua
constituída (de Lemos, 1992: 128) – que a criança vai, em interação com esse
discurso, adquirindo não só o léxico como também as posições desse léxico numa
estrutura. Uma vez que existe o pressuposto de que a experiência da linguagem
em uso vivida pela criança antecede o conhecimento lingüístico exigido para tal, a
reorganização é, para de Lemos, um efeito de linguagem sobre a linguagem. E a
autora completa (1992: 132):
Na aquisição inicial da linguagem, o enunciado da criança é ouvido e
ressignificado pelo enunciado do adulto, já que seus significantes são
formas isoladas, independentes, cuja significação é dada por sua
posição em uma estrutura frasal ou textual.
O momento em que a criança passa a se autocorrigir é um indício de que
sua condição de interpretado mudou para a de intérprete de seu próprio discurso e
dos de outros.
A idéia do sujeito capturado pela língua, assumido como efeito da
língua/fala (Lier-De Vitto & Fonseca, 2001: 436), é incorporada por fonoaudiólogos
partidários da clínica da subjetividade. No caso da linguagem patológica, o que se
propõe é a observação do funcionamento de língua na fala e os efeitos por ela
produzidos nos falantes de uma mesma língua.
Passemos, então, para os conceitos fonoaudiológicos desenvolvidos por
essa vertente clínica.
2.2.1. Sintoma de linguagem
Para Andrade (2001: 264), se uma criança chega à clínica fonoaudiológica
é porque sua fala já produziu um efeito de estranhamento em alguém. Este
estranhamento inicial, no entanto, precisa ser compreendido pelo fonoaudiólogo,
para que se justifique ou não uma possível intervenção fonoaudiológica.
Rubino & Fonseca (1998) discorrem sobre o conceito de sintoma de
linguagem, apoiadas, por um lado, na idéia desenvolvida por De Lemos, de que
não é possível falar em padronização da emergência da linguagem, na medida em
que a homogeneização da produção lingüística não é observada nem mesmo
numa única criança. Por outro lado, respaldadas em Canguilhem (1966) e seus
conceitos de normal e patológico, entendem que, ainda que haja a tendência de
se buscar a norma na média das produções infantis observadas, nem tudo que é
menos freqüente é patológico10.
Tomando o erro tal como proposto na visão interacionista de De Lemos –
como um dos produtos possíveis do funcionamento da língua, que se estende a
toda manifestação na fala que ultrapassa e diverge da língua constituída – para
conceitualizar sintoma de linguagem, as autoras põem em cena a presença de
um falante e de sua escuta e a noção de efeito. Sendo a noção de divergência
próxima da de desvio, a noção de efeito que causa uma manifestação desviante
na fala é de estranhamento. Para as autoras, há estranhamento quando há
simultaneamente familiaridade e diferença. Ninguém estranha aquilo que não é
familiar na língua constituída. Em suas palavras, o que se estranha na fala da
criança é o modo através do qual a língua opera sobre os fragmentos (escutados
como familiares) rearranjando-os e produzindo o imprevisível e o equívoco
(escutados como diferença). Vê-se que só é possível falar em estranhamento
quando se está submetido à língua (Rubino & Fonseca, 1998: 9).
Numa definição tautológica, para as autoras, o patológico seria o efeito
particular que a fala desviante patológica produz; um efeito que, segundo elas,
não é alheio ao funcionamento da língua, mas, sim, um dos seus produtos.
Para Rubino & Fonseca (1998: 10), a distinção entre normal e patológico,
no âmbito da Fonoaudiologia, faz-se no espaço clínico propriamente dito. O
fonoaudiólogo não se desvencilha de sua condição de falante, mas, nesse espaço,
não se porta como um falante qualquer, porque sua escuta incide já sobre a
10
Canguilhem, em seu livro O Normal e o Patológico, discute a noção de norma, na área médica, advinda da
média aritmética. Ele defende a idéia de que o que está fora da norma não significa necessariamente um
desvio porque é precisamente nas diferenças em relação à norma que consiste a individualidade do ser
humano. Partindo da tese de que o corpo humano é produto da atividade social, a normatividade vital não
poderia ser obtida por um cálculo aritmético.
escuta de um outro que, porque estranhou a fala de alguém, dirige uma demanda
para o fonoaudiólogo de confirmação ou não de um estado patológico, bem como
de superação desse estado.
A escuta do fonoaudiólogo, de acordo com as autoras, diferenciar-se-ia da
do falante comum por estar impregnada de um saber técnico que busca confrontar
uma fala singular com a língua constituída.
Para Amoroso & Freire (2001), igualmente, a idéia de tomar a linguagem
em seu funcionamento trouxe novo foco para o diagnóstico em Fonoaudiologia,
pois inaugurou a incidência do olhar sobre a fala do sujeito e suas mudanças num
determinado período e não mais sobre a norma lingüística. Tal perspectiva
permitiu que o fonoaudiólogo concebesse o erro como indicativo do processo de
aquisição, pois previsto no funcionamento da língua.
No entanto, afirmam as autoras que a interpretação do sintoma de
linguagem não deve ficar na descrição do funcionamento da linguagem11 e do
efeito da fala de outro sobre esta. Na clínica da subjetividade, o sintoma deve
alçar o estatuto de possível elemento-chave na decifração do funcionamento das
estruturas da linguagem patológica (Amoroso & Freire, 2001: 22). E isso, seguem
as autoras, só é possível tomando o sintoma à semelhança de como é concebido
na psicanálise12. Aí, ele é definido como produto de uma formação psíquica
sobredeterminada (Amoroso & Freire, 2001: 22) e possui valor simbólico, pois
sinaliza algo sem sê-lo especificamente.
11
As autoras, no trabalho citado, ora utilizam-se da expressão ‘funcionamento de língua’, ora da expressão
‘funcionamento de linguagem’. Inicialmente, quando marcam suas posições teóricas, o uso de
‘funcionamento de língua’ está vinculado à teoria interacionista desenvolvida por De Lemos que, entre outros
aspectos, toma o outro como instância do funcionamento da língua constituída, regido por processos de
troca metafóricos e metonímicos. O termo ‘funcionamento de linguagem’ surge quando as autoras procuram
ampliar a noção de linguagem, a partir de conceitos propostos pela Análise do Discurso. Aí, a noção de
funcionamento leva em consideração as condições de produção como parte integrante do processo e
‘linguagem’ é tomada como lugar de confronto ideológico. Trata-se, portanto, de expressões que remetem a
teorizações diversas. No entanto, no decorrer do trabalho citado, a expressão ‘funcionamento de linguagem’
é utilizada em contextos em que o correto, pelo sentido atribuído pelas autoras, seria ‘funcionamento de
língua’. Esse fato é observado também em outros textos assinados por Freire.
12
Cabe um esclarecimento. Quando as autoras tomam o sintoma como é concebido na psicanálise, é
necessário ressaltar que se trata de uma determinada visão de psicanálise, a saber, a freudiana. Por vezes,
observamos o uso indiscriminado do termo psicanálise, por parte de alguns fonoaudiólogos. É salutar para a
área que seus teóricos explicitem a visão psicanalítica que usam como aporte teórico para a elaboração de
seus trabalhos.
Para as autoras, o sintoma de linguagem é concebido como uma
elaboração discursiva sobredeterminada13, de caráter imprevisível e contingente
(Amoroso & Freire, 2001: 22-23). A leitura do fonoaudiólogo dessa elaboração
discursiva deverá revelar regularidades no funcionamento da linguagem
patológica. E é no decorrer do processo terapêutico, a partir dos efeitos da
interpretação14 do fonoaudiólogo sobre a fala do outro (paciente), que
deslocamentos do sintoma poderão ser observados. Segundo as autoras, a
presença desses deslocamentos indica sinal de funcionamento de linguagem
(Amoroso & Freire, 2001: 26) e a ausência de deslocamentos, um funcionamento
patológico.
A determinação desse funcionamento patológico, para as autoras, pode
estar relacionada à regularidade de uma interpretação de um falante comum sobre
uma manifestação lingüística fixada como erro. O que poderia ser característica de
um processo de aquisição torna-se, então, patológico.
Em outras palavras, para Amoroso & Freire (2001),
o sintoma de
linguagem seria uma espécie de retorno de um recalque sobre determinada
elaboração discursiva, considerada regularmente como erro por interlocutores do
falante em questão.
Em nosso entender, levanta-se a questão: por que aquilo que é
característica de um processo de aquisição de linguagem para uns torna-se
patológico para outros? E, ainda: é possível existir base para a fixação de
determinada manifestação lingüística como erro que desconsidere valores sociais
e culturais de uma determinada época?
Sintoma de linguagem na clínica da subjetividade também é entendido
como o estranho que insistentemente se repete. Palladino (2001: 160) nos diz que
o sintoma de linguagem é uma afetação em que a fala do paciente, repetida e
13
Segundo Laplanche e Pontalis (1983: 641-642), há dois sentidos, na psicanálise freudiana, para o conceito
de sobredeterminação: 1º - não há uma causa para a formação psíquica, que é determinada por vários
fatores. 2º - cada formação remete a uma pluralidade de elementos inconscientes. A sobredeterminação,
como vista em Freud, implica uma rede complexa de elementos e uma determinação da qual o sujeito é
efeito. Do ponto de vista da língua, falar em sobredeterminação é admitir a equivocidade como característica
positiva da língua. A sobredeterminação impede que a língua seja uma; ao contrário aponta para uma
revelação imprevisível de combinações da língua.
14
O conceito de interpretação fonoaudiológica será detalhado adiante, ainda neste capítulo.
estranha, nos envolve. (...) O que vem provocar uma qualidade de ‘pathos’ é uma
trangressão que insinua a dor, e essa insinuação se apresenta no mesmo que se
repete. Para a autora, esse mesmo que se repete também leva a um efeito de
estranhamento que não nos remete ao riso ou compaixão preconceituosa, porém
surpreende pela dor que aí imprime sem pudor (Palladino, 2001: 160).
A noção de estranhamento – e, conseqüentemente, a de sintoma de
linguagem – ganham novos contornos quando a elas se associa a dor. Uma dor
que não se localiza no orgânico; uma dor psíquica.
Paralelo, então, ao movimento realizado em direção à visão interacionista
de aquisição de linguagem, outro movimento, em direção às teorias psicanalíticas,
desenvolve-se no interior da clínica da subjetividade.
Cunha (1997: 37) aponta para esse movimento, quando sublinha a
necessidade de o fonoaudiólogo abandonar uma surdez fonoaudiológica em favor
de uma escuta fonoaudiológica. Segundo a autora, isso significa deixar de ouvir
apenas a linguagem e o sintoma na sua literalidade e dar ouvidos também ao seu
conteúdo psíquico latente. Aqui, o sintoma de linguagem tem valor simbólico e o
discurso não pode ser tomado como autônomo em relação ao psiquismo. Isso
seria o mesmo que negar a existência de sujeitos dotados de aparelhos psíquicos.
Nesse trabalho, a autora procura demonstrar que, mesmo quando enfermo,
o discurso evidencia uma relação com o psiquismo. Respaldada pela teoria
freudiana, mais especificamente pelas noções de aparelho psíquico e de pulsão,
Cunha entende que critérios somáticos e lingüísticos, no procedimento
fonoaudiológico, não são suficientes para explicar e/ou resolver as questões de
linguagem que o cliente15 apresente. Para ela, sempre existirá algum sentido nos
ditos dos nossos clientes, mesmo quando forem, aparentemente, mal ditos
(Cunha, 1997: 84). Ao fonoaudiólogo cabe, então, uma escuta diferenciada desse
discurso, uma escuta com duas orelhas, como a própria autora denomina. Uma
para escutar os sintomas na sua especificidade; outra para seus conteúdos
latentes.
15
Esta autora refere-se ao paciente, denominação usual ao sujeito que procura atendimento fonoaudiológico,
como cliente. Procurando ser fiel à denominação utilizada pelos profissionais aqui citados, passaremos então
a usar a denominação ‘cliente’ quando no referirmos ao trabalho da autora em questão.
Cunha defende uma concepção de linguagem que tem o discurso como sua
unidade de análise. Assim, a atividade dialógica vem substituir procedimentos
metalingüísticos comumente usados na clínica fonoaudiológica. Pelas palavras da
autora, caberia ao fonoaudiólogo tomar o seu cliente numa ordem discursiva ao
invés de tentar ensiná-lo a falar direito (Cunha, 1997: 82). A autora se refere a
uma visão de linguagem que trate de seu funcionamento.
Embora use o termo funcionamento, Cunha não o toma como
funcionamento de língua ou funcionamento de linguagem como outros
fonoaudiólogos já discutidos neste capítulo. O uso, em seu trabalho, equivaleria a
pensar na relação entre sistema lingüístico e produção de sentidos que, uma vez
assumida a existência do aparelho psíquico, esta traria marcas do inconsciente.
Nas palavras da autora, se a linguagem é concebida como um trabalho simbólico
de produção de sentidos, se resulta da atividade dialógica intersubjetiva, ela não
pode ser tomada apenas na materialidade do código (Cunha, 1997: 73). A
atividade dialógica é aí tomada como a base para o exercício da intervenção
fonoaudiológica proposta pela autora, qual seja, a interpretação fonoaudiológica.
2.2.2. Interpretação
Pelo exposto até agora, podemos afirmar que partidários da clínica da
subjetividade
assumem
a
atividade
terapêutica
fonoaudiológica
como
essencialmente dialogal e apresentam a interpretação como a intervenção
terapêutica mais adequada à compreensão e transformação dos sintomas de
linguagem que chegam às clínicas fonoaudiológicas.
Retomando o que Rubino & Fonseca (1998) dizem sobre sintoma de
linguagem, vimos que a relação normal/patológico, no que se refere à linguagem,
realiza-se no espaço clínico fonoaudiológico. Sem abandonar sua condição de
falante comum, cabe ao fonoaudiólogo ter uma escuta diferenciada da fala do
paciente, apresentando-lhe interpretações possíveis de seus enunciados,
observando os efeitos nele produzidos.
Arantes & Lier-De Vitto (1998), ao apresentarem a interpretação
fonoaudiológica, inicialmente diferenciam-na da interpretação psicanalítica. Esta
seria uma interpretação aberta a novos sentidos; uma interpretação que amplia16.
A interpretação fonoaudiológica – a respaldada na teoria interacionista –
teria a função inversa, qual seja, a de restringir sentidos, sugerindo uma nova
ordem a fragmentos dispersos na fala do paciente. As autoras entendem que a
interpretação fonoaudiológica ocorre em dois tempos: a interpretação em cena e a
interpretação dos dados. A interpretação em cena é semelhante a do já-falante, no
contexto clínico, em que fonoaudiólogo e paciente estão submetidos um à fala do
outro, levando-se em consideração o fato da escuta diferenciada do terapeuta já
citada anteriormente. A interpretação dos dados é posterior a esse momento e é
feita pelo fonoaudiólogo que, agora, debruça-se sobre o material lingüístico
produzido na sessão fonoaudiológica e os analisa segundo critérios da teoria
interacionista. Como vimos anteriormente, tal teoria sustenta a idéia da autonomia
do funcionamento lingüístico, regido por leis internas de relações de valor. Caberia
ao fonoaudiólogo, ao interpretar os dados lingüísticos obtidos a partir de uma
sessão terapêutica, identificar o modo como essas leis regem o funcionamento da
linguagem dita patológica. Para os fonoaudiólogos compromissados com a teoria
interacionista proposta por De Lemos, a interpretação fonoaudiológica coloca-se
sempre na articulação entre a singularidade dos acontecimentos lingüísticos que
têm lugar na clínica fonoaudiológica e a universalidade de um funcionamento da
língua à qual a fala, tanto do paciente quanto do terapeuta, está submetida.
Também
Amoroso
&
Freire
(2001)
consideram
a
interpretação
fonoaudiológica um instrumento de investigação e intervenção no funcionamento
da
linguagem
patológica.
Para
as
autoras,
no
entanto,
não
basta
o
reconhecimento de traços estruturais, embora considerem de fundamental
16
Novamente parece-nos importante enfatizar que, no campo da Psicanálise, cada autor elabora sua teoria a
partir de uma situação clínica específica, situada num tempo histórico, que fornece princípios fundamentais
para essa elaboração. É a partir dessa matriz que também são elaborados seus modos de conduzir o
tratamento psicanalítico. Assim, a interpretação psicanalítica não é a mesma para as diferentes visões
teóricas da área. Quando as autoras afirmam que a interpretação psicanalítica amplia, parecem
desconsiderar debates existentes na área sobre o uso dessa técnica.
importância o aprofundamento desse conhecimento específico da área17.
Apoiadas em trabalho anterior de Freire (2000), apontam para a necessidade da
interpretação abranger a demanda familiar, isto é, o dizer do outro sobre a criança,
pois existem, segundo Freire (2000), duas formas opostas de interpretação da fala
da criança pelo outro, na estrutura familiar. Uma, considerada desviante dada a
semelhança aparente que as pausas, auto correções e substituições mantêm com
o que comumente é rotulado como patológico e outra, considerada não desviante
pois, na medida em que a mãe interpreta a fala de seu filho como semelhante à
sua, a criança se aliena nessa interpretação por se reconhecer nessa fala. Daí
ocorreria uma forma de desvio (Amoroso & Freire, 2001: 112).
Assim, para Amoroso & Freire (2001), a interpretação abrange dois
caminhos: um relativo ao aspecto estrutural da linguagem do sujeito e outro, à
apreensão do sentido do sintoma para os membros da família. É dessa forma que
as autoras vêem diferenciadas as interpretações de um falante comum e do
fonoaudiólogo em seu exercício profissional.
Guilhermino & Palladino (2001) consideram que o que faz a diferença entre
a interpretação do falante comum e a do fonoaudiólogo é o setting terapêutico, na
medida em que ele demarca o território que comporta apenas o que é fruto da
relação terapeuta/paciente, ou seja, o texto, e dessa forma garante a interpretação
como um instrumento de pesquisa clínico-terapêutico (Guilhermino & Palladino,
2001: 36).
Para as autoras, a interpretação fonoaudiológica deve permitir ao
fonoaudiólogo entrever para além dos sintomas de fala apresentados pelo
paciente e lançam mão da psicanálise e da análise do discurso de linha francesa
(ADF) para aprofundarem seu conceito de interpretação fonoaudiológica.
17
Em comunicação apresentada no 2o. Congresso Nacional da Associação Brasileira de Lingüística, na
Universidade Federal de Santa Catarina, em 1999, Freire & Cordeiro reconhecem a existência de três
estruturas clínicas, a partir da observação de certa regularidade no funcionamento da linguagem patológica.
São elas: (a) uma primeira em que os significantes repõem-se de forma estável, à semelhança do processo
de aquisição. Tais fenômenos dizem respeito aos chamados distúrbios articulatórios, retardo de linguagem e
distúrbio de leitura e escrita; (b) uma segunda, em que a alteração não pode ser vista sob a cristalização de
uma forma, mas na desorganização de um funcionamento, que nada tem de semelhante com o processo de
aquisição, pois implica um sujeito já da linguagem, são os casos de afasia; (c) uma terceira em que a
alteração do funcionamento opera na relação com o outro (outro suporte de língua), por exemplo, no caso
da gagueira (Freire & Cordeiro apud Amoroso & Freire, 2001: 24).
Apoiadas em Hermann (1991), as autoras entendem que a interpretação
depende da escuta do terapeuta, algo muito diferente do ato mecânico de ouvir.
Para elas, assim como para Hermann, o terapeuta precisa descobrir o que está
oculto nas palavras do paciente, do texto confeccionado a cada sessão
terapêutica (Guilhermino & Palladino,
2001: 39). Desse texto não faz parte
apenas o que foi dito, mas também os silêncios, os atos, a própria relação
terapêutica. Assim como entendido na ADF, segundo Orlandi (1999), o empírico
na fala de um sujeito é apenas parte de seu processo discursivo. É a interpretação
desse processo, no re-arranjo dos seus sentidos, que permite o conhecimento
daquele que discursa. Também na clínica fonoaudiológica, a escuta e o re-arranjo
dos sentidos dos discursos do paciente e de sua família são propostos pelas
autoras como fundamentais para a interpretação dos sintomas de fala. Embora
não apontem especificamente como isso acontece – dizendo que é no decorrer do
processo que o terapeuta vai se aventurar nos entremeios do discurso de seu
paciente (Guilhermino & Palladino, 2001: 48) –, as autoras sugerem que é na
relação transferencial que a interpretação ganha corpo, sendo possível a
elucidação de conteúdos latentes tão caros à compreensão dos sintomas da fala
dos pacientes.
A preocupação com o setting fonoaudiológico e a valorização das relações
transferenciais presentes em qualquer relação terapêutica levam
fonoaudiólogos partidários da clínica da subjetividade que se movimentam em
direção a teorias psicanalíticas a delinearem novos contornos para a
interpretação como técnica fonoaudiológica.
Retomemos Cunha (1997). Sua proposta de interpretação fonoaudiológica
é a de uma interpretação fonoaudiológica psicanalítica. Para ela, as noções de
transferência e de interpretação não são exclusivas da psicanálise, assim como os
fenômenos
inconscientes
também
não
o
são.
Assim,
a
interpretação
fonoaudiológica psicanalítica constitui-se numa modalidade de intervenção que
possibilita que o cliente ascenda à linguagem oral a partir da articulação entre
representações simbólicas corporais e conteúdos psíquicos inconscientes (Cunha,
1997: 141).
Para a autora, também na terapia fonoaudiológica, temos a fala marcada
pelo inconsciente. A diferença entre essa terapia e a psicanalítica está no fato de,
nessa última, a fala ser reveladora de conteúdos inconscientes e, na
fonoaudiológica, a fala é um fim em si, sendo os conteúdos inconscientes um meio
através do qual é possível interpretar os sintomas que se manifestam na fala
(Cunha, 1997: 146).
São dois, portanto, os tipos de intervenção propostos pela autora:
intervenção no plano psíquico (estabelecimento das relações do sintoma e a
história de vida singular) e a intervenção no plano corporal (abordagem específica
do sintoma). A atuação terapêutica fonoaudiológica estaria na articulação entre
esses dois planos.
2.2.3. Lugar do Terapeuta
Ao explicitarmos os conceitos de sintoma de linguagem e de interpretação na
clínica da subjetividade que, como vimos, desdobram-se segundo as diferentes
teorias de base adotadas, acreditamos ter apresentado também o lugar do
terapeuta nessa visão de clínica.
É no espaço clínico ou setting terapêutico – denominação utilizada pelos
fonoaudiólogos, dependendo do enfoque dado à determinada teoria de base – que
se desenvolve o trabalho terapêutico.
Ao fonoaudiólogo, a partir do exposto até aqui, cabe o papel de intérprete
diferenciado dos falantes comuns, pois tem a função de estabelecer uma ordem e
dar clareza à opacidade dos sintomas de fala dos pacientes, quer identificando
uma regularidade no funcionamento da linguagem patológica, quer elucidando
conteúdos latentes para além dos manifestos nos sintomas.
Nossa intenção, ao discorrermos separadamente sobre este item, lugar do
terapeuta, vem da observação da existência de uma tendência, no interior da
clínica da subjetividade, de reconhecer o setting terapêutico fonoaudiológico como
um espaço em que seja possível fazer emergir a singularidade do sujeito, a partir
de uma relação terapêutica propiciadora do autoconhecimento. Tal perspectiva de
trabalho tem por base a teoria psicanalítica de cunho winnicottiano.
O papel do terapeuta, sob essa perspectiva, é o de propiciar um espaço
terapêutico potencializador – análogo ao espaço potencial de Winnicott18 – do
conhecimento da realidade e da construção da singularidade do sujeito. Dois eixos
são fundamentais para o desenvolvimento desse espaço: a percepção do outro e
a relação terapêutica compartilhada.
Maia (1997, 2000), Louro
(2000), De Matteo (2001)
são unânimes em afirmar
que
a
clínica
fonoaudiológica é uma
clínica
centrada
nas
questões da linguagem,
sob
um
olhar
humanizador, de forma a
se
presentificar,
no
encontro entre terapeuta e
paciente,
não
só
os
sintomas aparentes na
linguagem do paciente,
mas toda sua história de
vida. As autoras entendem
que o paciente pode, ao
compartilhar sua história
com o outro, compreender
como
o
sintoma
de
linguagem se manifesta.
Através
dessa
compreensão
e
reconhecimento,
o
fonoaudiólogo pode ajudálo em sua transformação
e,
conseqüentemente,
ajudá-lo também em seu
vir-a-ser na relação com o
mundo.
Segundo De Matteo (2001: 25), graças ao espaço potencial o paciente
pode restabelecer sua historicidade, na medida em que:
18
Winnicott define o espaço potencial como o lugar do acontecimento humano, em que, de forma criativa e
compartilhada com o outro, a criança vai gradualmente passando da dependência absoluta à dependência
relativa rumo à independência; isto é, à sua constituição como sujeito, ao acontecimento humano.
Na relação terapêutica, o terapeuta e o paciente fazem parte de um
processo no qual cada um está sendo criado e descoberto pelo outro.
(...) Nesta relação torna-se possível o nascimento de uma realidade
compartilhada, que o paciente pode usar para enriquecê-lo, encorajá-lo
e sustentá-lo (De Matteo, 2001: 62).
Para os fonoaudiólogos que adotam a visão psicanalítica winnicottiana, a
linguagem é tomada como reveladora da historicidade do sujeito. Não por acaso,
os processos terapêuticos, nessa visão, apresentam inúmeros relatos de vida de
pacientes. Segundo De Matteo (2001: 93), as alterações de linguagem19
freqüentemente provocam nos pacientes um estado de dispersão de si mesmos,
cabendo ao fonoaudiólogo o acolhimento, a escuta de sua linguagem, em seu
aspecto discursivo, procurando observar o que se revela de sua existência. Poder,
então, manifestar-se através de histórias guardadas na memória é, para o
paciente, uma forma de se integrar novamente: ao ser reconhecido pelo outro,
voltar a se reconhecer. Desse reconhecimento nasce a possibilidade de
organização na construção do ser.
2.3 Um excedente de visão
Como foi dito no início deste capítulo, os trabalhos aqui citados analisam
criticamente a clínica fonoaudiológica tradicional, a chamada clínica da
objetividade. Chamou-nos a atenção, no entanto, a constante referência a essa
vertente clínica, ainda que o autor em questão estivesse mais voltado, no
momento, para a explicitação de sua própria visão.
Maia (1987: 162), por exemplo, ao discutir esse enfoque do trabalho
fonoaudiológico, diz que o encontro com a linguagem doente jamais era uma
descoberta, mas uma afirmação da presença dos desvios já conhecidos e a única
alternativa presente era a de corrigí-los. Dez anos mais tarde, as palavras de
19
Pelos autores aqui citados dentro dessa tendência, as alterações de linguagem também se referem a
alterações de voz e de articulação da fala.
Cunha (1997: 38) evidenciam a sobrevivência dessa visão quando ela diz, como
que complementando a afirmação anterior, ouve-se/percebe-se uma fala
‘defeituosa’ na perspectiva de ‘consertá-la’ e, somente depois, ela se tornará algo
passível de atribuição de sentidos.
O que leva uma visão de clínica ser retomada e debatida por profissionais
diversos, por tanto tempo e até tão recentemente? Em nosso entender, a alusão
constante a essa visão leva-nos a crer que ela ainda figure – com vida e muita
força – no horizonte fonoaudiológico e mereça atenção.
A perspectiva bakhtiniana de análise adotada nesta pesquisa ajuda-nos a
responder essa questão. Um novo enfoque pode completar-lhe o horizonte ou, ao
menos, acrescentar-lhe novos elementos.
Além das constantes retomadas da visão mais tradicional de clínica
fonoaudiológica, ainda que para criticá-la ou negá-la, não é raro os fonoaudiólogos
depararem-se com depoimentos semelhantes a este que se segue:
Ele saiu daqui [de uma sessão terapêutica] animado, falante. Fomos no
carro conversando e então ele me disse: Mãe, posso te dar uma
pergunta? Eu lhe falei que não era ‘dar uma pergunta’, era ‘fazer uma
pergunta’. Ele então disse: Mãe, posso te fazer uma pergunta? E aí ele
fez a pergunta e eu respondi. Pouco tempo depois, ele falou de novo:
Mãe, posso te dar uma pergunta? Eu comecei a ficar intrigada – será
que ele não escutou o que eu falei? – e insisti: Não é dar, meu filho, é
fazer uma pergunta. Aí ele fez a pergunta e eu respondi. Pouco tempo
depois, mas bem pouco mesmo, ele falou outra vez a mesma coisa:
Posso te dar uma pergunta? Aí eu não agüentei, eu estourei, disse que
ele não podia nem me dar, nem me fazer uma pergunta enquanto não
aprendesse a falar direito. Será que esse menino não vai aprender
nunca a conversar corretamente?
(depoimento de uma mãe à fonoaudióloga de seu filho
de seis anos, em terapia fonoaudiológica por apresentar
as chamadas trocas fonológicas e discurso pouco
elaborado).
Aprender a falar corretamente para depois conversar com as pessoas. A
preocupação com o como se fala e a busca de um trabalho que vise a eliminação
de falhas e erros para se garantir uma comunicação eficiente está presente no
desejo daqueles que procuram uma terapia fonoaudiológica.
Como pudemos observar, a clínica da subjetividade responde a isso, ora
voltando-se ao funcionamento lingüístico ora voltando-se ao funcionamento
psíquico daqueles considerados portadores de patologias de linguagem, o que, de
nossa parte, não esgota a questão.
Conforme nos ensina Bakhtin/Volochinov (1929), a partir de sua proposta
metodológica, é voltando-se para a história do objeto de análise, neste caso, a
Fonoaudiologia, que podemos melhor compreender sua constituição como esfera
de atividade humana e suas complexas características.
A Fonoaudiologia, no Brasil, surgiu como instituição acadêmica, no princípio
da década de sessenta do séc. XX, tendo como objetivo formar profissionais
especialistas no trato com pessoas portadoras de anormalidades ou dificuldades
na oralidade e na escrita, os chamados distúrbios da comunicação.
Sua origem, no entanto, remonta a uma época anterior, na qual a idéia de
distúrbio da comunicação, mais do que uma dificuldade de origem orgânica ou
emocional, era fruto de tensões sociais oriundas da busca de uma sociedade
homogênea20.
O período compreendido entre as décadas de vinte e de quarenta do
séc.XX, marcou o início das primeiras práticas fonoaudiológicas. Nesse período,
vivia-se, no Brasil, a formação de um Estado forte e de uma identidade nacional.
A heterogeneidade da população era entendida como um entrave ao
desenvolvimento pretendido e, com o movimento nacionalista em expansão, as
discussões em torno da unificação da língua ganharam espaço. O espírito de
20
Este tema foi amplamente discutido por Figueiredo Neto (1988) e Silva (1999), em suas dissertação de
Mestrado e tese de Doutorado, respectivamente.
nacionalização e a necessidade de unificação da língua nacional provocaram
discursos inflamados, que disseminaram a idéia de que o português era uma
língua difícil, que poucos dominam e, conseqüentemente, reservada a uma
pequena parcela da população.
Médicos,
filólogos,
educadores
procuraram,
em
seus
discursos,
justificativas para a necessidade do controle do Estado sobre a língua. Silva
(1999) que, em sua tese de Doutorado, estuda a relação entre a formação da
língua nacional e a origem das práticas fonoaudiológicas e questiona a forma pela
qual o fonoaudiólogo concebe e lida com o conceito de norma em seu trabalho
terapêutico e científico, oferece-nos alguns exemplos desses discursos que
contribuíram para a cristalização da idéia de que o português era uma língua para
poucos. Ei-los:
Os delinqüentes da língua portuguesa fazem do princípio histórico –
‘quem faz a língua é o povo’ – verdadeiro moto para justificar o
desprezo de seu estudo, de sua gramática, de seu vocabulário,
esquecidos de que a falta de escola é que ocasiona a transformação, a
deteriorização, o apodrecimento de uma língua. Cozinheiras, babás,
engraxates, trombadinhas, criminosos é que devem figurar, segundo
esses derrotistas, como verdadeiros mestres de nossa sintaxe e
legítimos defensores do nosso vocabulário.
(Almeida, N. Dicionário de Questões Vernáculas. 2a ed.
São Paulo: LCTE, 1994 apud Bagno, M. Preconceito
Lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola,
1999, pp79-80).
Nós de jornal temos freqüentemente ensejo de comprovar como
escrevem mal, não só os próprios jornalistas, mas também os
advogados, os médicos, os engenheiros, e outros diplomatas que
comparecem às redações com artigos e conferências. A oratória, nas
sociedades científicas, nas assembléias políticas, no tribunal do júri, por
toda parte, é quase sempre um torneio de mau português. Jornais,
revistas, livros são repositários de erros contra a língua que bradam aos
céus. O rádio não lhe fica atrás. E tudo atesta que os brasileiros, em
geral, não sabem português.
(Amaral, R. O ensino do português. Revista da Academia Paulista
de Letras, no 8: 48. São Paulo. 1939)
Desde o período colonial até meados deste século, havia um
consenso quanto à gravidade da situação da língua nacional, com
base na idéia de que poucos sabiam ler e escrever no Brasil. Havia
a idéia da ´pecha de colonial’ à qual era associada não só a idéia de
deslize gramatical como a suspeita de sangue africano.
Práticas que ridicularizavam os vícios, dialetos e outras
particularidades da colônia, além de comuns eram aprovadas e
incentivadas pela monarquia instalada no Brasil. Era propagada a
idéia de que ‘falar um bom português’ demonstrava não só
‘fidelidade política, como de cultura, de educação social e até
mesmo (quando a evidência do sangue não desmentisse) de
pureza de sangue.
(Luccock, T. Notas sobre o Rio de Janeiro, 1942 apud Lima
Sobrinho, B. A língua portuguesa e a Unidade do Brasil. Rio de
Janeiro: Coleção Documentos Brasileiros. J. Olímpio/MEC, v.99, 1a
ed. 1958, 2a ed. 1977: 72).
Silva (1999) entende que a fixação de uma língua padrão – a que
representava a erudição e o poder das classes mais altas do país – em detrimento
de diversas variantes construídas pelos também diversos grupos sociais que
compunham a sociedade brasileira levava a um exercício de discriminação social.
O português adotado como padrão, segundo a autora, cumpria dupla
função: carregava a herança do reino e dispunha em lados opostos a língua culta
e a vulgar, a nacional e as variantes, a urbana e a rural e, por que não dizer, a
normal e a patológica.
Grupos sociais, para se nacionalizarem, foram pressionados a abandonar
seus costumes, sua cultura, sua língua, sendo alvo de práticas de normatização
da língua nacional, das quais a reabilitação – a prática fonoaudiológica – fazia
parte.
Bakhtin (1965), com a análise que faz da obra literária de Rabelais,
mostra-nos a importância de se considerar o contexto histórico e social no
estudo da linguagem. Para ele, qualquer análise desvinculada desse
contexto pode ser superficial e até equivocada. Nesse estudo, ele nos
mostrou o quanto é impossível compreender profundamente a linguagem
rabelaisiana, o chamado realismo grotesco, sem mergulhar na cultura
cômica popular da era medieval e, mais precisamente, no rito carnavalesco.
A linguagem de Rabelais, para o autor, reflete o tipo de comunicação que se
estabelecia no carnaval: uma comunicação mais condizente com a
eliminação provisória das hierarquias e diferenças sociais. Uma espécie de
linguagem familiar em praça pública (Bakhtin, 1965: 15). A obra de Rabelais
retratou a transformação lingüística ocorrida na época, oriunda da
emergência do novo mundo e das novas forças sociais, o que levou Bakhtin
(1965: 415) a afirmar: As línguas são concepções do mundo, não abstratas,
mas concretas, sociais, atravessadas pelo sistema das apreciações,
inseparáveis da prática corrente e da luta de classes.
Voltando ao contexto nacional aqui focalizado, é importante ressaltar que o
movimento de nacionalização e de integração de imigrantes e migrantes aos
valores da elite urbana foi acolhido e assimilado pela opinião pública, na medida
em que já existia disputa de espaço nos centros industriais entre trabalhadores
brasileiros (oriundos dos centros urbanos) e trabalhadores estrangeiros e
brasileiros de outras regiões do país. Pode-se dizer que, conseqüentemente, o
sentido político-ideológico da unificação da língua foi igualmente acolhido e
assimilado. Falar bem, seguindo os padrões da norma culta, tornou-se um valor
social com características ideológicas.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), Bakhtin/Volochinov afirmam
que, diferentemente do que defendiam na época a filosofia idealista e a visão
psicologista, todo signo é fenômeno do mundo exterior e tem caráter ideológico. A
consciência é um fato sócio-ideológico (Bakhtin/Volochinov, 1929: 35). Os signos,
criados nas interações sociais, dão forma à consciência humana individual. E a
palavra, por acompanhar e apoiar todos os outros signos, constitui-se como o
signo ideológico por excelência, privilegiado pela consciência e pela comunicação
entre os homens na vida cotidiana.
O modo de funcionamento de grupos sociais, a que os autores
denominaram, com base em Plekánov (1922), psicologia do corpo social, realizase através da interação verbal. Nessa perspectiva, a palavra, para
Bakhtin/Volochinov, penetra em todas as relações humanas, registra as lentas
mudanças sociais e é determinada pelas relações de produção e pela estrutura
sócio-política. A palavra como fruto de criação ideológica de cada época histórica
tem sua sobrevivência como signo vinculada à ideologia do cotidiano. Desta se
alimenta e ganha novos contornos. Ainda que, em uma determinada época, uma
palavra, uma obra literária, por exemplo, pareça adormecida, é do vínculo com a
ideologia de uma outra época que ela pode renascer.
Assim, entendemos que o bem falar tornou-se um valor ideológico que foi
sendo realimentado nas esferas de comunicação do cotidiano de diferentes
épocas e de diferentes grupos sociais e que, ainda hoje, re-acende em situações
de conflito, não apenas advindas da luta de classes, mas também de qualquer
relação intersubjetiva em que haja hierarquia e poder. Como a trazida pela mãe do
paciente, no depoimento acima citado.
Nossa hipótese é a de que a concepção de clínica tradicional sobrevive
porque a visão de linguagem que a sustenta – a que reconhece e partilha os
preceitos da ideologia do bem falar – ganha eco em outras esferas do cotidiano,
como a escolar, a familiar e outras de trabalho, em que o uso da linguagem é
fundamental. A ideologia do bom/mau falante ainda está viva em nossa sociedade
e é a clínica fonoaudiológica uma das esferas de atividade humana a ela mais
identificadas.
O questionamento da mãe, bem como as afirmações das autoras acima
citadas são, nas palavras de Orlandi (1992: 12), enunciados que ecoam e
reverberam efeitos de nossa história em nosso dia-a-dia. Mesmo que, com a
criação dos primeiros cursos acadêmicos, a origem da Fonoaudiologia tenha sido
desprovida de seus determinantes históricos em nome de um processo de
especialização do saber científico, as alusões atuais a essa prática clínica
denunciam que seu primeiro discurso fundador21 talvez tenha sido apenas
aparentemente descartado.
2.4. Clínica da intersubjetividade
Há profissionais preocupados com a relação entre a clínica fonoaudiológica
e a ideologia do bem falar.
Na elaboração de seus trabalhos, procuram levar em conta o contexto de
produção em que determinado evento lingüístico é produzido para avaliar a
dimensão do que é considerado patológico e intervir de modo a que o paciente
possa transformar a relação conflituosa que estabelece com a linguagem em seu
cotidiano.
Masini (1989); Levy (1994); Perrotta, Martz e Masini (1995); Morato (1995,
1996); Dauden e Mori (1997); Coudry (2002); Berberian (2003), dentre outros,
dentro de suas especificidades, são unânimes em afirmar que o trabalho
terapêutico, desde o momento de sua avaliação, leva o paciente ao exercício vivo
da linguagem. Esses profissionais assumem a proposição de que a linguagem só
se efetiva na prática dialógica, segundo acepção bakhtiniana. Isso significa
considerar a interação verbal como o lugar de produção de enunciados em que se
explicite o para quê, para quem, onde, quando e porquê dizer e/ou escrever algo.
Em 1952-53/1979, Bakhtin afirma que aprender a falar é aprender a
dominar os gêneros discursivos, aprender a estruturar seus enunciados mais
típicos.
Sempre atribuindo importância ao estudo das mudanças históricas para a
compreensão das mudanças nos gêneros e no interior do sistema da língua,
21
Entendemos por fundador, o discurso que inaugura uma nova significação diferenciada. Aquele que, como
diz Orlandi (1992: 13), cria uma nova tradição, re-significa o que veio antes e institui aí uma memória outra.
(...) O sentido anterior é desautorizado. Instala-se outra “tradição” de sentidos.
Bakhtin dá ênfase, nesse estudo, àquilo que caracteriza o gênero – o enunciado –
e adverte: ignorar sua natureza e particularidades é enfraquecer o vínculo entre a
língua e a vida. É ele quem diz: A língua penetra na vida através dos enunciados
concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a
vida penetra na língua (Bakhtin, 1952-53/1979: 282).
Aquilo que é fundamental para a teoria bakhtiniana – a relação dialógica –
pressupõe uma língua, mas não existe no interior do sistema lingüístico. Assim,
não são as palavras, nem as orações - como unidades de língua - as responsáveis
pelo significado do enunciado. Este, sempre orientado pela interação social dos
participantes da enunciação, compreende tanto a parte verbal quanto a
extraverbal de uma dada situação de comunicação concreta e imediata. Somente
o enunciado, e não a oração, dirige-se a alguém, pressupõe o outro, incita uma
atitude responsiva em relação a enunciados anteriores, confirmando-os ou não,
antecipando-lhes futuras respostas. Daí o enunciado ser considerado a unidade
real da comunicação verbal, o elo da cadeia da comunicação verbal. Suas
particularidades que o definem como tal e o distinguem, portanto, da oração são:
acabamento específico do enunciado; a expressividade do locutor e sua relação
com os outros.
Centremos nossa atenção no acabamento específico do enunciado.
O mais importante critério para o acabamento é a possibilidade de
responder (respondibilidade). Não basta que o enunciado seja inteligível no nível
da língua (Bakhtin, 1952-53/1979: 299). É preciso que ele suscite essa
possibilidade de resposta, diretamente relacionada à totalidade do enunciado. E o
que determina essa totalidade são três fatores interdependentes e relacionados às
esferas de comunicação verbal em que os sujeitos estão inseridos: tratamento
exaustivo do tema; intuito ou querer dizer do locutor; as formas típicas de
estruturação do gênero (Bakhtin, 1952-53/1979: 299). Seja num simples diálogo
seja na elaboração de um trabalho científico, esses fatores operam na elaboração
do enunciado.
O primeiro deles – tratamento exaustivo do tema – varia conforme a esfera
de comunicação em que esteja inserido. Nas simples perguntas do cotidiano, será
quase que total, na medida em que há padronização de enunciados em
determinados gêneros discursivos. Na literatura e nas ciências, será relativo,
justamente pela maior possibilidade de criação. O que é importante de se
ressaltar, tanto para um pólo quanto para o outro, é a condição do enunciado
suscitar uma resposta. E tal condição está relacionada ao segundo fator
responsável pela totalidade do enunciado, o intuito discursivo ou querer dizer do
locutor.
O intuito discursivo está vinculado à situação concreta de comunicação e
aos parceiros dessa situação que, conhecedores de seus enunciados anteriores,
são capazes de captar o querer dizer do locutor logo nas primeiras palavras.
Estamos nos remetendo ao último fator, as formas típicas de estruturação do
gênero. Bakhtin o considera o mais importante dos três fatores.
O autor fala em escolha do gênero por parte do locutor em determinada
situação de comunicação, no entanto não há escolha intencional por parte do
falante. Há sim uma coerção, não da língua – como afirma Saussure - mas dos
gêneros discursivos que penetram na vida e na consciência do falante22. Nas
palavras de Bakhtin (1952-53/1979: 302):
Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala
do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentirlhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão aproximada do todo
discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim. (...) Se não
existissem os gêneros discursivos e se não os dominássemos, se
tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se
tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação
verbal seria quase impossível.
É a partir do domínio que temos de gêneros discursivos diversos que
saberemos lidar com a coerção dos mesmos sobre nós, que saberemos usá-los
com criatividade e eficiência.
Na
prática
terapêutica,
para
Morato
(1995:
2),
que
trabalha
fundamentalmente com afásicos, isso equivale a
que nos voltemos para variadas formas e posições enunciativas dos
sujeitos, sua capacidade pragmática de reconhecer seus interlocutores
e suas propostas discursivas, suas possibilidades de manipular
22
Bakhtin fala do valor normativo dos enunciados estáveis de determinado gênero e afirma não haver
combinação absolutamente livre das formas da língua num enunciado para contrapor à idéia saussuriana de
que o enunciado – a fala – é um ato puramente individual, sendo a língua um sistema social e esta sim,
prescritiva.
diferentes sistemas de referência e de (re) construção de condutas
simbólicas em meio a diferentes atividades discursivas.
O enfoque dado a contextos efetivos de produção de sentidos é também
privilegiado por autores como Berberian (2003: 26), que afirma:
A análise da introdução ao uso da leitura e escrita para a criança mostra
o ‘para que’ e ‘onde está’ o ler e escrever em sua vida. A construção de
conhecimentos por parte da criança acerca da leitura e escrita depende,
decisivamente, da forma como a escrita está situada em seu cotidiano
familiar, escolar e no contexto mais amplo da sociedade, ou seja, nos
usos, nas representações, nas funções e nos valores atribuídos à
escrita, nas diferentes interações sociais vivenciadas por ela.
E, ainda, por Levy (1994: 11), ao afirmar que, no trabalho com pacientes
com dificuldades de leitura e escrita, (...) além das regras [gramaticais] há valores
sociais atribuídos a elas. (...) O que se diz (o que se deixa de dizer) não é dito (ou
silenciado) por acaso. (...) A situação em que se está é constitutiva da linguagem
que se usa.
Essa perspectiva de trabalho fonoaudiológico reconhece a existência de
uma diversidade social de linguagens (Bakhtin, 1934/35). A idéia de uma língua
única só existe, para Bakhtin, como um sistema abstrato de normas lingüísticas.
Seu estudo não reflete, de modo algum, a evolução histórica da linguagem.
Tiremos o discurso de sua orientação exterior e teremos somente seu cadáver nu
nos braços a partir do qual nada saberemos, nem de sua posição social, nem de
seu destino (Bakhtin, 1934-35: 99).
Os gêneros discursivos são conceituados como linguagens socialmente
típicas com vocabulário próprio e um sistema de acentos específicos23. Em cada
período da vida sócio-ideológica, convivem dialogicamente diversas linguagens.
Para Bakhtin, a linguagem, em cada período histórico, é verdadeiramente
pluridiscursiva. À convivência dialógica da linguagem de diversos grupos sócioideológicos, de diferentes momentos históricos, Bakhtin denominou plurilingüismo
social, e é aí que reside a riqueza de seu estudo.
Para o autor (1934/35: 74), plurilingüismo social é a coexistência, no interior
de uma língua nacional única, de
Maneirismos de grupos, jargões profissionais, linguagens de gêneros,
fala de gerações, das idades, das tendências, das autoridades, dos
círculos e das modas passageiras, das linguagens de certos dias e
mesmo de certas horas (cada dia tem sua palavra de ordem, seu
vocabulário, seus acentos).
Uma coexistência longe de ser pacífica. Bakhtin nos mostra que, no interior
do plurilingüismo social, opõem-se dinamicamente forças criadoras da vida
lingüística. São as chamadas forças centrípetas – responsáveis pela centralização
lingüística, pela idéia de língua única – e forças centrífugas – responsáveis pela
descentralização, pela diversidade. Para o autor (1934/35: 82), cada enunciação
que participa de uma língua única (das forças centrípetas e das tendências)
pertence também, ao mesmo tempo, ao plurilinguismo social e histórico (às forças
centrífugas e estratificadoras).
23
Aparecendo, nesta tese, pela primeira vez, o termo acento na acepção bakhtiniana corresponde à orientação
apreciativa da palavra. Além dos dois níveis de significação, tema e significação, toda palavra carrega
também um acento apreciativo. Este pode ser transmitido pela entoação expressiva, determinada pela
situação mais imediata e também pelo horizonte social de grupos sociais específicos, que tem em sua infraestrutura econômica a base de sua determinação. A questão do acento é tão importante para a teoria
bakhtiniana que Bakhtin/Volochinov (1929: 132) afirmam: Sem acento apreciativo, não há palavra.
Assim, ao tomarmos a língua como um sistema de categorias gramaticais
abstratas, não o fazemos por ser o natural; estamos sim orientados
ideologicamente para isso. A tendência a se considerar a língua única nada mais
é que supervalorizar as forças centrípetas em detrimento das centrífugas.
No exercício da clínica fonoaudiológica, deparamo-nos freqüentemente
com a dinâmica dessas forças. No entanto, a Fonoaudiologia constituiu-se
historicamente como uma atividade que age a favor das forças centrípetas da vida
lingüística.
Do que observamos, neste capítulo, a respeito da clínica tradicional, é
possível dizer que, nela, o trabalho fonoaudiológico com a palavra neutraliza sua
natureza dialógica. Ao submeter o paciente a uma língua padrão, nega-se-lhe o
papel de participante ativo de uma comunidade lingüística.
A clínica da subjetividade, por sua vez, ao assumir a natureza dialogal do
processo terapêutico, representa um avanço para o trabalho fonoaudiológico. No
entanto, com sua complexa composição de forças, o que resulta, como vimos, em
diferentes conceitos e olhares terapêuticos, parece-nos desconsiderar a existência
do plurilingüismo social.
Plurilingüismo
social
reconhecido
e
contemplado
na
clínica
da
intersubjetividade e tão caro a quem cotidianamente trabalha com vozes
consideradas dissonantes na sociedade.
A assunção da natureza interativa da linguagem, por parte de
fonoaudiólogos, representa, sem dúvida, um divisor de águas na área terapêutica,
mas um olhar mais apurado à noção de diálogo na reflexão teórica da área e ao
seu uso na terapia fonoaudiológica se faz necessário. E isso é assunto para os
próximos capítulos.
CAPÍTULO 2
METODOLOGIA
Esta tese, em sua metodologia, seguiu princípios bakhtinianos
concernentes à pesquisa no campo das ciências humanas.
Segundo Bakhtin (1959-1961), as ciências humanas não tomam o homem
como seu objeto de estudo, mas aquilo que lhe é mais caracteristicamente
humano: o discurso. Mais propriamente, um discurso construído numa relação
dialógica, na medida em que é coletado e trabalhado como tal, em discurso.
Discursos teóricos, ou coletados em campo, apresentam-se ao pesquisador sob a
forma de textos. Assim, para o autor, o texto é a substância das ciências
humanas:
Lá onde o homem é estudado fora do texto e independentemente do
texto, não se trata mais de ciências humanas (mas de anatomia, de
fisiologia humanas, etc) (Bakhtin, 1959-1961: 334).24
Texto tomado como enunciado, pois produzido por alguém e dirigido a um
outro, numa dada situação concreta. Como vimos, em Bakhtin, o enunciado é um
elo na cadeia de comunicação verbal ininterrupta e seus sentidos não existem fora
de seu contexto dialógico. Quando tomado para análise por um outro sujeito – o
pesquisador –, num outro tempo, cria-se uma nova relação dialógica, um novo
sentido, já que a posição única em que o pesquisador se encontra possibilita a
emergência de um novo olhar. É o lugar exotópico de que fala Bakhtin, aquele que
garante possibilidades de completude naquilo que o outro não pode completar-se,
justamente por não ter um excedente de visão de si mesmo.
Amorin (2001), em trabalho que retoma Bakhtin nas Ciências Humanas,
ajuda-nos a clarear esses conceitos.
Segundo a autora, o conceito bakhtiniano de exotopia instaura
necessariamente um tratamento dialógico dos dados nas Ciências Humanas,
posto que o objeto de que se fala já é objeto falado e objeto falante. Verdadeira
polifonia que o pesquisador deve poder transmitir ao mesmo tempo que dela
participa (Amorin, 2001: 19).
24
Esta citação encontra-se em um texto, cujo título é O problema do texto nas áreas da lingüística, da
filologia, das ciências humanas, tentativa de uma análise filosófica, não revisto pelo autor e publicado
postumamente, em Estética da Criação Verbal, em 1979.
Polifonia25 que dá vida à criação: não existe trabalho criador, construção de
conhecimento, sem o confronto de enunciados, sem o reconhecimento da
pluralidade de vozes e contextos que habita um texto.
Esta tese procurou responder às perguntas que formula, a partir do
estabelecimento de uma relação dialógica com textos provenientes de duas
esferas, a saber:
3. Acadêmica:
discursos
fonoaudiológicos
que
elaboram
ideologicamente a clínica, na perspectiva enfocada;
4. Clínica: depoimentos de fonoaudiólogos sobre situações terapêuticas
em que o diálogo se faz presente.
1. Esfera Acadêmica
No que se refere à primeira esfera, o corpus foi composto pelas teses e
dissertações defendidas por profissionais da área, nas universidades Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP), antiga Escola Paulista de Medicina, por serem ambas as únicas
que possuem programa de pós-graduação26 na área de Fonoaudiologia, no
Estado de São Paulo, e também por artigos publicados em uma revista científica
da área, a Revista Distúrbios da Comunicação. O foco da análise está centrado na
discussão que esses artigos, dissertações ou teses fazem a respeito do diálogo e
da interação na clínica fonoaudiológica.
O levantamento das dissertações e teses dos programas de pós-graduação
já citados foi feito nas bibliotecas centrais de ambas as Universidades. Utilizamos
um procedimento básico para ambas, qual seja, a busca bibliográfica a partir de
palavras-chave como fonoaudiologia, clínica, diálogo, com a intenção de
selecionar apenas as pesquisas relativas ao tema em questão. Cabe salientar que
essa primeira busca não trouxe resultado positivo, pois a palavra diálogo não
figura entre aquelas consideradas chave. Foi necessário então que se ampliasse o
leque dessas palavras, a saber: fonoaudiologia, clínica, linguagem, terapia.
25
Amorin assume polifonia como sinônimo de dialogismo, sublinhando que o próprio Bakhtin, ao longo de sua
obra, utiliza indiscriminadamente os dois termos, apesar de designar polifonia como variante de dialogismo.
No trabalho aqui citado, Amorin (2001: 139) diz preferir o termo polifonia a dialogismo por esse último
evocar, mais facilmente, a idéia de diálogo face a face, que é a forma mais exterior e superficial do
dialogismo.
26
Na época da coleta dos dados. A Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), no decorrer do
desenvolvimento desta pesquisa, iniciou seus trabalhos de pós-graduação na área.
A escolha da Revista Distúrbios da Comunicação deve-se ao fato de ser a
primeira revista científica da área, iniciada em 1981, com publicações ininterruptas
e periódicas de artigos, comunicações, resenhas de livros e de teses sobre temas
pertinentes à área fonoaudiológica e afins. De responsabilidade da Faculdade de
Fonoaudiologia da PUC-SP, atualmente, essa revista é indexada pela base de
dados LILACS e arbitrada pela CAPES com conceito B.
Segundo levantamento feito, a Revista Distúrbios da Comunicação
publicou, desde seu primeiro número até o momento da coleta dos dados,
encerrada em 2001, um total de 152 artigos, sendo 45 (aproximadamente 29% do
total) os que abordam linguagem e terapia fonoaudiológica.
1.1. Procedimento de Análise
Os textos selecionados foram escaneados e analisados pelo Word Smith
Tools (WS Tools)27, um software que auxilia a análise lingüística de um corpus. É
importante salientar que a análise quantitativa, que um programa de computador
oferece, não invalida uma análise mais qualitativa do discurso; ao contrário, dá-lhe
credibilidade, uma vez que o software opera a partir de princípios básicos que
garantem a consistência e a abrangência do que se busca analisar. São três os
princípios do WS Tools, segundo Sardinha (1999: s.p):
1. Ocorrência: o item procurado deve estar presente. Não é possível fazer
uma previsão de um item inexistente.
2. Recorrência: os itens devem se repetir para que seja possível observar
a relevância dos mesmos. Isso não significa, no entanto, que um item
que ocorra uma única vez seja desprezado.
3. Co-ocorrência: os itens existem na presença de outros. É a coocorrência, isto é, as fronteiras do item que vão garantir-lhe o sentido.
Na presente pesquisa, utilizamos as seguintes ferramentas do programa:
1. Wordlist: é uma ferramenta que realiza listas de palavras. As listas
podem ser elaboradas por ordem alfabética ou por freqüência no corpus
27
Word Smith Tools é um software de análise lingüística, criado por Mike Scott e publicado pela Oxford
University Press, com cinco anos de existência.
em questão. Nesta pesquisa, privilegiamos a lista por freqüência, que já
nos trazia dados sobre a recorrência das palavras. Cabe explicitar que o
programa foi preparado para identificar todas as palavras, inclusive as
de uma única ocorrência. A tabela abaixo é um exemplo de parte de
uma lista de palavras por freqüência, trazendo as trinta palavras mais
freqüentes de determinado corpus desta pesquisa28. É apenas parte de
uma lista, para visualização do leitor (ela, na íntegra, ocupa vinte e oito
páginas). De todas as palavras computadas pelo programa, nosso foco
incidia sobre os substantivos. Assim, no caso desta lista, podemos
observar que a palavra de maior recorrência nesse corpus é linguagem,
seguida de clínica e trabalho.
N
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
28
Word
DE
A
E
QUE
O
DA
DO
SE
EM
UM
LINGUAGEM
UMA
PARA
COMO
NA
COM
NO
AS
É
OS
AO
À
NÃO
POR
DOS
OU
DAS
CLÍNICA
TRABALHO
SER
Freqüência
1.032
886
663
626
541
453
301
280
275
224
216
211
208
203
203
189
188
158
156
156
154
147
141
126
115
104
97
96
81
75
%
4,65
3,99
2,99
2,82
2,44
2,04
1,36
1,26
1,24
1,01
0,97
0,95
0,94
0,92
0,92
0,85
0,85
0,71
0,70
0,70
0,69
0,66
0,64
0,57
0,52
0,47
0,44
0,43
0,37
0,34
Trata-se da lista por freqüência das dissertações e teses defendidas no período de 1996 a 1999.
2. Concord: é a ferramenta que possibilita a visualização das fronteiras da
palavra em questão, isto é, de quais modos a palavra selecionada está
combinada no corpus em estudo. Trata-se de uma ferramenta essencial
para o estabelecimento dos sentidos atribuídos à palavra. Quando
solicitado o uso dessa ferramenta para determinada palavra, o programa
abre novas janelas pelas quais é possível se observar os contextos em
que a palavra aparece, em cada um dos textos do corpus selecionado.
Há ainda a possibilidade de se ampliar o contexto até a visualização do
texto integral, caso necessário. A tabela abaixo é exemplo de
visualização dessa ferramenta, com o mínimo de contextualização da
palavra diálogo nas dissertações e teses do período de 1996 a 1999:
N
1
2
3
4
5
6
Concordance
psicanalíticas vão exercer influências na execução deste
trabalho; Algumas dessas abordagens serviram de
interlocutoras no diálogo entre teoria e prática. E no
decorrer da apresentação do caso, essas referências
estarão aparecendo. Mesmo a evolução do modo de
compreensão do quadro
por descaracterizá-la, uma vez que o que se faz é a
"importação", o "empréstimo" de conceitos e teorias sem
um diálogo efetivo, sem uma real articulação com as
especificidades de nossa clínica.
Hoje se fala da
necessidade de se "re"construir um método clínico
fonoaudiológico
precisamos estabelecer cada vez mais efetivos
diálogos com as "áreas mães" da Fonoaudiologia. Na
possibilidade do diálogo está posta como condição, que
se marquem dois lugares, dois olhares que possam se
cruzar, se relacionar. E, portanto esse é o ponto de parti
na origem e na história do
desenvolvimento
psicanalítico o modelo de pesquisa em psicanálise: o
diálogo permanente entre teoria e a prática. A
articulação teórica sem referência à clínica corre o risco
de aproximar-se das manifestações do pensamento
delirante.
lugares, dois olhares que possam
se cruzar, se
relacionar. E, portanto esse é o ponto de partida e o de
chegada desse diálogo: o estabelecimento de um lugar
para a Fonoaudiologia. De um
lugar que permita
contemplar questões e estabelecer novos diálogos
contatos físicos substituíam a comunicação através da
palavra. Na sala de espera, por exemplo, não se ouvia
qualquer diálogo entre os pais e meu paciente e, ao
Set
3.879
Tag
Word No.
c:\meusdo~1\te 77
sesp~1\teses9~
1\oproce~1.txt
1.336
c:\meusdo~1\te 41
sesp~1\teses9~
2\entreo~1.txt
1.584
c:\meusdo~1\te 49
sesp~1\teses9~
2\entreo~1.txt
2.961
c:\meusdo~1\te 90
sesp~1\teses9~
2\entreo~1.txt
1.615
c:\meusdo~1\te 49
sesp~1\teses9~
2\entreo~1.txt
578
c:\meusdo~1\te 29
sesp~1\teses9~
1\escuta~1.txt
invés de chamá-lo, eles geralmente preferiam buscá-lo
para conduzi-lo a outro lugar. É importante ressaltar que
essa postura
também opta por uma determinada terapêutica. No 2.062
presente trabalho, a visão de linguagem está em
posição de diálogo e não de palavra, isto é, o papel do
interlocutor não é neutro, não é de treinador. "A criança
adquire linguagem por sua inserção na língua, o que
geralmente dramatiza a exposição, reproduzindo sons 2.002
da natureza -o trovão, a chuva, o vento - e anima o
diálogo dos bichos com voz peculiar..." [15] Da mesma
forma oral, são feitos os relatos históricos, as
reprimendas, os conselhos e a transmissão de regras,
porém o
linguagem, um questionamento sobre as práticas e as 1.632
representações que o corpo tem recebido parece
fundamental. O diálogo com essa ou aquela área de
conhecimento, a pluralidade de opções de atuação
oferecem, a um só tempo, conhecimentos e reflexões
baseados em saber
7
8
9
c:\meusdo~1\te 86
sesp~1\teses9~
1\proces~1.txt
c:\meusdo~1\te 59
sesp~1\teses9~
1\anarra~1.txt
c:\meusdo~1\te 51
sesp~1\teses9~
2\pratic~1.txt
3. Keywords: é a ferramenta capaz de identificar quais as palavras-chave
de um corpus. Palavra-chave não significa necessariamente a palavra
de maior freqüência no texto. A escolha de tais palavras dá-se a partir
do contraste entre as listas de palavras do corpus em estudo e a lista de
um corpus referência, que não pertence à mesma área ou temática do
primeiro. As palavras chaves seriam aquelas cujas freqüências são
estatisticamente diferentes no corpus de estudo e no corpus de
referência (Sardinha, 1999: s.p). Em outras palavras, o que se sobressai
num corpus em estudo, em relação ao de referência, é o que o
caracteriza. O corpus de referência utilizado, nesta pesquisa, é o oficial
do Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos de
Linguagem – LAEL/PUC-SP –, utilizado por todos os pesquisadores
deste programa que fazem essa análise lingüística. Abaixo, um exemplo
da visualização de palavras-chave de parte do corpus desta tese.
N
WORD
FREQ.
1
2
3
4
5
6
É
NÃO
LINGUAGEM
À
CLÍNICA
CRIANÇA
716
645
585
405
260
253
TESES.LST
%
0,82
0,74
0,67
0,47
0,30
0,29
FREQ.
0
0
287
0
0
0
FOLHA.LST
%
5.806,1
5.229,9
3.648,1
3.282,8
2.107,0
2.050,3
KEYNESS
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
SÃO
FONOAUDIOLÓGIC+
RELAÇÃO
SEU
DESENVOLVIMENT+
PRÁTICA
FONOAUDIOLOGIA
HISTÓRIA
SEUS
OUTRO
AINDA
DISTÚRBIOS
JÁ
OUTROS
TERAPÊUTICO
250
220
213
184
168
158
152
138
129
122
105
121
103
99
102
0,29
0,25
0,24
0,21
0,19
0,18
0,17
0,16
0,15
0,14
0,12
0,14
0,12
0,11
0,12
0
0
0
0
0
0
10
0
0
0
0
26
0
0
3
2.026,0
1.782,8
1.726,0
1.491,0
1.361,3
1.280,2
1.156,9
1.118,2
1.045,2
988,5
850,7
844,1
834,5
802,1
799,3
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
0,000000
O uso dessas ferramentas auxiliou na determinação dos conceitos de
diálogo e de interação utilizados pelos fonoaudiólogos em sua produção
acadêmica. Com base nessa determinação, pudemos discutir diferenças
observadas no uso desses conceitos, agrupando-os em categorias. O resultado
obtido da análise desse corpus documental está no capítulo dedicada à produção
científica da área (capítulo 4).
2. Esfera clínica
A segunda esfera está relacionada ao âmbito da atividade terapêutica do
fonoaudiólogo, a mais exercida entre os profissionais da área, segundo o Perfil do
Fonoaudiólogo de 1997 (54,61%).
Para a constituição desse outro corpus documental, um grupo de seis
fonoaudiólogos foi formado com o objetivo, inicialmente, de se discutir sobre o
diálogo em curso de processos terapêuticos escolhidos pelos profissionais.
Isso não pôde acontecer por dois motivos, um de ordem mais pragmática e
outro, diria, mais teórico-metodológica dentro da área da Fonoaudiologia. O
primeiro motivo refere-se ao fato de os profissionais que compuseram o grupo não
estarem com processos terapêuticos a serem iniciados, na época da organização
do corpus. Este entrave tinha solução possível, viabilizando-se um acordo com
uma instituição que, por receber um grande número de pacientes novos, poderia
fazer encaminhamentos para que esses profissionais atendessem nas mesmas
condições que a instituição. A concretização desse convênio levaria um tempo
maior do que o planejado inicialmente, mas seria um caminho para a coleta de
dados, se o impasse relativo ao segundo motivo não fosse, do nosso ponto de
vista, mais difícil de resolver em curto prazo.
Como toda atividade terapêutica, a fonoaudiológica segue princípios de um
setting terapêutico. Entende-se por setting ou enquadramento, o rigor na maneira
como a dupla – terapeuta e paciente – vai se relacionar a fim de que possam se
estabelecer as relações pertinentes ao processo terapêutico.
Setting é um tema bastante debatido na área da Psicanálise. Embora haja
entendimentos diversos nas diferentes teorias psicanalíticas, é consenso que nele
estão envolvidos fatores como: tempo, freqüência, dia, local e também a função do
terapeuta, disponibilidade e atitude profissional. As diferenças ficam por conta do
manejo do setting. Há correntes psicanalíticas que consideram um erro qualquer
modificação no enquadre para responder a solicitações de pacientes que não se
encaixam no setting mais tradicional. Há também, na direção oposta, aqueles
psicanalistas que entendem o setting como o lugar que proporciona o
desenvolvimento psíquico do paciente e procuram, assim, considerar e
compreender as modificações do setting terapêutico como facilitador de um
processo psicanalítico que leve a uma mudança psíquica29.
Na Fonoaudiologia, embora tenhamos os primeiros movimentos para essa
discussão datados da década de 90 (Aronis, 1992 e Tassinari, 1995), o tema
ainda é novo e controverso (são do ano de 2000 as primeiras teses que
explicitamente trazem o termo setting como discussão principal30).
No que tange a esta pesquisa, duas questões foram levantadas. Num
primeiro momento, pensamos em desenvolvê-la com processos terapêuticos em
curso. Ponderou-se, no momento da configuração do grupo, que discussões
regulares sobre casos terapêuticos em desenvolvimento, ainda que com objetivo
de coleta de dados para uma pesquisa, assemelhar-se-iam a uma supervisão, e,
inevitavelmente, os processos terapêuticos estariam sendo influenciados por isso.
Do ponto de vista estrito da pesquisa, não víamos nisso grande problema, se a
análise dos dados pudesse comportar essa variável. Qualquer terapeuta no
exercício de seu trabalho há de reavaliá-lo, pelas inquietações que sua prática
provoca, a partir da busca de novos conhecimentos em que se inclui a supervisão.
No entanto, quando se pensa no enquadre terapêutico, a idéia de se desenvolver
pesquisa com pacientes ainda em tratamento não está de todo amadurecida na
área, talvez por rigores na visão do setting ou mesmo por poucos debates sobre o
assunto. A polêmica recai, inclusive, sobre a metodologia da coleta de dados e
que, aqui, relaciona-se à segunda questão.
Ainda é bastante atual a discussão sobre gravar e/ou filmar processos
terapêuticos. Arantes (2001) considera fundamentais os registros em áudio e/ou
vídeo, principalmente num processo de avaliação da linguagem. Acredita que a
leitura do que foi vivido na situação terapêutica pode ganhar novos contornos,
uma nova compreensão, quando tomada à distância, pois para ela – e também
29
Este é o tema da tese de doutorado de Sueli Hisada, doutora em Psicologia Clínica pela USP. Quem tiver
interesse em entrar em contato com os diversos entendimentos sobre setting psicanalítico, sugerimos a
leitura de seu livro Clínica do Setting em Winnicott, Revinter, Rio de Janeiro, 2002.
30
Estou me referindo às teses de Magalhães Jr, Hipólito V. O setting na terapia fonoaudiológica: estudo de
caso de atendimento domiciliar e de Lembi, Patrícia M.T.R O setting na clínica fonoaudiológica: um estudo
através de discursos de fonoaudiólogos, ambas defendidas no Programa de Fonoaudiologia, em 2000.
para Andradre (2000)31 – o discernimento só vem depois do momento em que fala
e seus efeitos são produzidos.
Em outra direção caminha Cunha (2000), que considera a memória do
terapeuta fundamental, não só para o trabalho terapêutico, mas também para o
científico. Apesar de não excluir, necessariamente, a utilização de variadas formas
de registro, acredita que
Recordar-se da própria experiência é, ao meu ver, critério essencial e,
dito nos cânones do discurso científico altamente fidedigno. É na
atemporalidade dessas lembranças e nas marcas dos afetos que elas
carregam que podemos também justificar nossas escolhas. (Cunha,
2000: 97)
Quando esta polêmica começou, por volta de meados da década de oitenta,
não havia discussão quanto à necessidade de transcrições das sessões.
Simplesmente tudo era transcrito para posterior análise. Ocorre que esta se fazia
à luz do rigor da língua escrita e, fatalmente, os fonoaudiólogos incorriam em erros
de avaliação, na medida em que buscavam na oralidade dos pacientes
características próprias da escrita. Foi no sentido de alertar para essa postura
equivocada e perigosa que Masini (1989) e Garcia & Cunha (1991) posicionaramse na época. Vale salientar que essa postura equivocada não é privilégio da
Fonoaudiologia e, ainda hoje, está longe de ser considerada caduca, não podendo
ser, infelizmente, ignorada.
Bagno (1999) descreve e analisa mitos que contribuem para a perpetuação
do que chama de preconceito lingüístico, que ainda existe em nosso país, e a
valorização da oralidade pelas características da escrita é um deles32. Posicionarse então, na época, contra a transcrição feita pelos fonoaudiólogos era antes uma
posição política que ingenuidade teórica, como fez parecer Arantes (2001).
Movimento semelhante pôde ser observado quando o tema em questão foi o uso
da técnica na terapia fonoaudiológica.
Atualmente, vemos que estamos, na Fonoaudiologia, em um outro patamar
para abordar essa questão. E devemos essa nossa condição atual ao esforço dos
diversos profissionais que procuraram compreender mais profundamente nossas
práticas.
Acreditamos que: (1) se, como fonoaudiólogos, não avaliarmos a oralidade
segundo características da escrita, compreendendo que há mesmo outras
perspectivas de olhar, de ler a linguagem do outro; (2) se não nos abstivermos de
viver a interlocução em nome da reflexão posterior, pois o processo terapêutico
ocorre, de fato, a partir das situações vividas pelo par terapeuta-paciente; (3) se
não abrirmos mão dos sentimentos despertados pela fala do outro no momento da
31
Em texto inédito citado por Arantes, em sua tese de Doutorado.
32
O mito em questão é o de número 6: O certo é falar assim porque se escreve assim.
interlocução, também em nome do olhar mais distanciado, então gravar e/ou filmar
sessões terapêuticas podem ser elemento constitutivo do setting fonoaudiológico,
uma vez que há aspectos da corrente verbal que só o registro audio-visual da
situação é capaz de reter. Este recurso seria válido tanto para a terapia quanto
para a pesquisa fonoaudiológica.
No caso da presente pesquisa, no entanto, a opção foi de trabalhar com
casos já encerrados, evitando-se assim qualquer influência sobre eles. Cada
integrante do grupo escolheu, segundo os próprios critérios, um atendimento para
ser apresentado e debatido pelos outros participantes. Todos os profissionais
trouxeram seus casos na forma de relatos orais baseados em suas anotações
terapêuticas, que, nem sempre, continham transcrições de diálogos ou mesmo
observações sobre eles, o que em si já é um dado relevante para a análise.
São sujeitos desta pesquisa seis fonoaudiólogos que caracterizam suas
práticas terapêuticas como atividades dialógicas (consideremos, por ora, o sentido
dialogal como explicitado na introdução). O grupo foi formado a partir de um
convite feito via e-mail33 – que explicitava o propósito da pesquisa – a quinze
profissionais da área, sugeridos por outros fonoaudiólogos do conhecimento do
pesquisador. Constavam da lista inicial, profissionais formados pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Universidade de São Paulo (USP),
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e São Camilo. Vale salientar que
respostas positivas ao convite só foram dadas por profissionais que, de certa
forma, já conheciam a pesquisadora como professora do curso de Fonoaudiologia
da PUC-SP. Todos os profissionais que integram o grupo são formados por esta
instituição, alguns tendo sido, inclusive, alunos da pesquisadora. Isso nos parece
compreensível na medida em que há pouca disponibilidade de profissionais da
área em colaborar com exposição de suas práticas em trabalhos científicos de
pesquisadores a eles desconhecidos. No entanto, não desqualifica a pesquisa na
medida em que os dados são analisados levando-se em conta essa variável.
Segue-se a caracterização desses profissionais34:
Rita:
Tempo de atividade terapêutica: cinco anos. Trabalha, desde que se formou, numa escola,
nos setores educacional e clínico. Desde 2000, desenvolve atividade acadêmica,
ministrando aulas no Curso de Fonoaudiologia e atuando no setor de clínica
33
Infelizmente, não temos mais o texto original do e-mail, pois, num lamentável incidente, muitos dos dados
desta tese se perderam, alguns dos quais irrecuperáveis como é o caso dos e-mais de convites e respostas
dos participantes.
34
Os nomes dos participantes da pesquisa, assim como das pessoas citadas nos depoimentos foram
trocados, no intuito de se preservar suas identidades.
fonoaudiológica. É mestre em Distúrbios da Comunicação pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e organiza cursos e palestras na área de fonoaudiologia.
Carmen:
Tempo de atividade terapêutica: quatro anos. Além do consultório, atua clinicamente numa
instituição assistencial e numa instituição de pesquisa da limitrofia, onde trabalha com
crianças e jovens que têm dificuldades de aprendizagem.
Branca:
Tempo de atividade terapêutica: cinco anos. Atua em consultório com outros
profissionais, como psicólogos e psicopedagogos, o que contribuiu para a
configuração de um atendimento um pouco diferenciado. Defendeu seu mestrado
em Distúrbios da Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, no decorrer dos trabalhos deste grupo.
Leila:
Tempo de atividade terapêutica: dois anos. Na época de faculdade, realizou trabalhos com
pacientes paralíticos cerebrais. Depois de formada, trabalhou um ano no berçário de alto
risco de um hospital público. Atualmente, numa instituição de cuidados infantis, trabalha na
parte de Audiologia Ocupacional, com operadoras de telemarketing. Procurou dar um
caráter terapêutico ao trabalho com essas operadoras, daí o fato de ter aceitado o convite
para compor o grupo.
Regina:
Tempo de atividade terapêutica: treze anos. Fonoaudióloga e psicóloga, formou-se em
audiologia numa universidade do sul da França. Foi professora na PUC de Campinas, na
área de Audiologia. Anos depois, começou o Curso de Psicologia. Trabalha como psicóloga
clínica e fonoaudióloga, depois de revalidar seu curso de fonoaudiologia aqui no Brasil.
Heloisa:
Tempo de atividade terapêutica: dois anos. Atuou numa escola para deficientes mentais e
atualmente trabalha numa instituição de deficiente mental, onde atende pessoas portadoras
de paralisia cerebral, síndrome de West e autismo.
Os encontros, realizados
no segundo semestre de
2001, foram quinzenais,
por vezes com alguns
intervalos maiores devido
a feriados, com duas horas
de duração, e, em cada
um, a discussão teve por
base
um
trabalho
desenvolvido
por
um
profissional.
Estas
discussões compõem o
corpus de depoimentos
sobre
práticas
fonoaudiológicas
destes
profissionais.
2.1. Procedimento de Análise
Os encontros com o grupo, seis ao todo, foram filmados e transcritos. Cabe
salientar que os depoimentos foram transcritos com pausas, prolongamentos,
repetições e hesitações presentes na linguagem oral do expositor e dos demais
participantes, por considerarmos que determinadas características dos enunciados
construídos no momento da exposição foram significativas para a compreensão da
relação dialógica que ali se instaurava e para a análise dos dados. A transcrição
seguiu algumas normas usadas no projeto NURC/SP, a saber:
Ocorrências
Incompreensão de palavras ou
segmentos
Sinais
(
)
Exemplos
o menino ROB...( ) e: eu ia fazendo
Hipótese do que se ouviu
Truncamento (havendo homografia,
usa-se acento indicativo da tônica
e/ou timbre)
Entonação enfática
(hipótese)
/
e que tava intervin/ interferindo
muito na escrita
maiúscula
Prolongamento de vogal e
consoante (como s, r)
-
Interrogação
?
Qualquer pausa
Comentários que quebram a
seqüência temática da exposição
Leituras de textos
assim de CARA já chega com/olha
só:
:
Silabação
Comentários descritivos do
transcritor
ela tem muito (a simbolizar)...
e: comecei a: eu disse
... no começo: hi-pe-ra-tividade...
tinha irmãos ela?
...
então... eu trouxe um caso... para
vocês
((minúscula))
--
((risos))
--
“ ”
Superposição, simultaneidade de
vozes
Sublinhando os segmentos
superpostos
Diferenciação de vozes nas
citações literais de um diálogo
Alternância entre negrito e itálico
eu perguntei primeiro --eu faço
essa pergunta para a criança...
uma criança um pouquinho maior
se ela sabe porque que ela ta vindo
ali comigo... -“Clara fez um túnel escondido e
escreveu meu nome... as iniciais do
meu nome... ROB”.
mas essa cobra é
perigosa?
•
é perigosa...
eu falava que eu vou lhe conhecer ;
porque ela viu os brinquedos eu
quero brincar
•
Obs: Nas duas últimas ocorrências estão sendo usadas notações elaboradas pela
pesquisadora para atender exigência do corpus em questão.
Os depoimentos dos profissionais, isto é, os textos colhidos em campo trazem
relatos de processos terapêuticos. Já que, sempre a partir da perspectiva bakhtiniana, o
sentido é da ordem do acontecimento, tais textos trazem, então, várias enunciações e
sentidos: os construídos na própria situação terapêutica, os do momento da
elaboração/preparação dos depoimentos e os do instante mesmo de cada depoimento
perante o grupo. Assim, ficamos diante de textos em que a pluralidade de vozes se fez
evidente e nosso trabalho, fundamentalmente, foi o de reinterpretá-los, buscando, na
palavra do outro, marcas que ressaltassem sentidos do diálogo na prática fonoaudiológica.
De certa forma, em diversos momentos, os depoimentos mostraram conservar fragmentos
do diálogo ocorrido na sessão fonoaudiológica, dando-nos indícios de como ele é
compreendido e construído pelo par terapêutico.
O resultado dessa re-interpretação está no capítulo de análise dos depoimentos
(capítulo 5).
CAPÍTULO 3
PRODUÇÃO CIENTÍFICA DA ÁREA
ARTIGOS EM REVISTA ESPECIALIZADA
No capítulo de Metodologia, já havíamos dito que foram selecionados para análise
quarenta e cinco artigos, publicados na Revista Distúrbios da Comunicação, por tratarem
de assuntos relativos à terapia fonoaudiológica, dentro da perspectiva enfocada, qual seja, a
da assunção de uma visão interacionista de linguagem no processo terapêutico.
Este número corresponde a aproximadamente 29% do total de textos publicados
(152 artigos), desde o número inaugural, em 1981, até o final da coleta, em 2001,
envolvendo autores profissionais de diferentes localidades brasileiras, vinculados ou não a
universidades diversas, como mostra o gráfico 1:
Podemos
observar
que,
dos
artigos
selecionados,
a
maioria
(aproximadamente, 69%) foi produzida por profissionais vinculados à PUC-SP. Há
duas possibilidades de leitura deste dado.
A revista científica em questão, como vimos na Metodologia, é de
responsabilidade da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP, sendo, portanto,
compreensível que seus profissionais privilegiem-na para publicação de seus
trabalhos.
Por outro lado, é importante considerar o recorte feito para esta pesquisa.
Como já dissemos, foram selecionados artigos que abordam aspectos
relacionados à terapia fonoaudiológica. Teixeira (1993), ao analisar as tendências
temáticas de pesquisas acadêmicas na área fonoaudiológica, constatou que, a
partir da segunda metade da década de oitenta do séc XX, houve uma
concentração de trabalhos na área de atuação e procedimentos terapêuticos
fonoaudiológicos (também observada na análise dos artigos, como veremos, aqui
agrupados na categoria Métodos Fonoaudiológicos), apontando para uma
crescente reflexão sobre a clínica fonoaudiológica. Segundo a autora, esses
estudos foram fundamentalmente desenvolvidos por pesquisadores da PUC-SP
(Teixeira, 1993: 46). Embora a autora enfoque exclusivamente a produção de
dissertações e teses, essa mesma tendência é observada, nesta pesquisa, na
produção de artigos científicos.
Os
artigos
selecionados
tratam
de
assuntos
referentes
à
terapia
fonoaudiológica, a partir de temas específicos. Para nossa análise, tomamos o
foco principal do artigo como critério de categorização. O mesmo critério foi
utilizado quando havia sobreposição de temas. Um artigo, por exemplo, que
abordasse o trabalho terapêutico com a escrita com foco no contexto terapêutico
grupal, para efeito de categorização, foi privilegiado o enfoque no trabalho grupal.
Chegamos, assim, às seguintes categorias:
•
Métodos fonoaudiológicos: agrega artigos que discutem princípios
fonoaudiológicos e procedimentos terapêuticos, de modo geral, na clínica
fonoaudiológica. Estão nesta categoria artigos que discutem a interpretação
na clínica fonoaudiológica, a relação com outras áreas de conhecimento,
tais como, lingüística, medicina e psicanálise, a questão da subjetividade no
contexto terapêutico, o contexto terapêutico grupal.
•
Avaliação de linguagem: agrega artigos que discutem especificamente a
problemática da avaliação de linguagem no processo terapêutico
fonoaudiológico.
•
Escrita: traz artigos que discutem o trabalho com a escrita, no contexto
terapêutico, em seus aspectos singulares, tais como, a interpretação da
escrita na clínica fonoaudiológica, a caracterização de uma demanda
terapêutica, a compreensão da escrita em situações terapêuticas.
•
Transtornos psíquicos: os artigos classificados nesta categoria discorrem
sobre o trabalho fonoaudiológico com pacientes psicóticos e autistas.
•
Transtornos neurológicos: apresenta artigos que fazem a discussão de
casos terapêuticos de pacientes com seqüelas neurológicas, tais como
afasia e paralisia cerebral.
•
Voz: apresenta artigos que discutem as possibilidades terapêuticas de
trabalho com a voz.
•
Surdez: apresenta artigos que discutem especificamente aspectos do
trabalho fonoaudiológico com sujeitos surdos, tais como a identificação de
estratégias utilizadas no processo terapêutico, o desenvolvimento de um
trabalho grupal, o trabalho com pais desses sujeitos.
•
Família: o artigo classificado nesta categoria discute a inserção da família,
de modo geral, no trabalho terapêutico fonoaudiológico.
No gráfico 2, podemos ver a distribuição dos artigos por temas:
Como dissemos anteriormente, seguindo a tendência da produção de
dissertações e teses, há uma maior concentração de artigos na categoria
Métodos Fonoaudiológicos, com 49%. Transtornos Neurológicos vem em
seguida, com 16% do total. Os outros temas têm uma distribuição mais
equilibrada: Surdez e Avaliação de Linguagem (9%), Escrita (7%), Transtornos
Psíquicos e Voz (4%) e Família (2%).
O gráfico 3 apresenta a relação entre a distribuição dos artigos por temas e
a vinculação acadêmica dos autores:
Podemos observar que as duas categorias de maior concentração de
artigos são também as que apresentam autores com maior diversidade de
vinculação institucional. Levando-se em conta o recorte realizado para a análise
dos dados desta pesquisa, este gráfico nos traz indícios da circulação acadêmica
dos temas da área fonoaudiológica.
Vemos,
então,
que
princípios
fonoaudiológicos
e
procedimentos
terapêuticos da clínica de cunho interacionista são os temas mais desenvolvidos
por pesquisadores de diferentes universidades, a saber, PUC-SP, USP, UNIMEPPiracicaba e UNICAP. Trabalhos que abordam aspectos relativos à afasia e à
paralisia cerebral, temas da segunda categoria, Transtornos Neurológicos, são
desenvolvidos, fundamentalmente, por profissionais da PUC-SP, USP e
UNICAMP.
Nas
categorias
Surdez
e
Transtornos
Psíquicos,
temos,
respectivamente, profissionais da PUC-SP e PUC-CAMP e PUC-SP e USP. Nas
demais categorias, Avaliação de Linguagem, Escrita, Voz e Família, apenas
profissionais da PUC-SP.
Em relação à análise do conteúdo dos artigos, como também já
anunciamos na metodologia, todo o corpus foi submetido ao WS Tools, com o
objetivo de verificar o uso de duas palavras especificamente – diálogo e interação
– e os sentidos atribuídos a elas. Procuramos, assim, rastrear as noções de
diálogo que circulam no discurso sobre a clínica fonoaudiológica, após a assunção
da atividade terapêutica como sendo com base no diálogo.
Ainda retomando o que foi dito na metodologia, trabalhamos, por meio do
WS Tools, com a ocorrência, a recorrência e a co-ocorrência dessas palavras, nos
artigos selecionados, analisados separadamente, por categorias e no seu
conjunto.
3.2.
A não ocorrência dos termos diálogo e interação
Quando
submetidos
separadamente
Tools,
ao
WS
observamos
a
ausência de uso de ambas
as palavras – diálogo e
interação
–
em
aproximadamente 25% do
total de artigos (11 artigos).
Esta
não
ocorrência,
no
entanto, não se caracteriza
por artigos que fujam ao
tema
aqui
analisado.
Embora não tenham feito
uso explícito das palavras,
demonstram,
em
seu
conteúdo, sentidos diversos
de atividade com ênfase no
diálogo
na
clínica
fonoaudiológica,
como
mostra o anexo 1.
Observamos,
artigos,
nesses
uma
importante
característica que marca a
produção científica na área.
Aqueles datados de meados
da
década
de
apresentam
oitenta
uma
clara
preocupação em discutir a
fonoaudiologia
como
prática social, em que sejam
considerados a história e os
papéis
sociais
protagonistas.
de
seus
Esse
fato
também foi observado por
Teixeira
(1993),
em
sua
análise das dissertações e
teses produzidas na área.
Segundo
a
autora,
a
preocupação em se discutir
o papel do fonoaudiólogo e
as condições históricas e
políticas
sua
que
atividade
determinam
levou
os
profissionais
a
direcionarem
seus
trabalhos
para
novos
procedimentos
terapêuticos.
Há,
nessa
perspectiva, germes de uma
concepção
de
terapêutica
atividade
voltada
ao
diálogo.
Conceitualizar,
por
exemplo, a voz como sendo
o resultado de um esforço
histórico
contínuo
da
humanidade na construção
da
relação
falada
ou
explicitar a necessidade de
compreender a história do
paciente na intersecção da
história da doença e do
contexto mais geral da vida
do
paciente
ou,
ainda,
alertar o terapeuta para os
usos
sociais
durante
da
o
escrita
processo
terapêutico
é,
no
nosso
entender,
apresentar
a
atividade terapêutica como
dialógica
dentro
de
determinada acepção, ainda
que assim não tenha sido
explicitada. Remete-nos a
Bakhtin e sua concepção de
que
uma
comunicação
constante é o fundamento
da própria vida.
Da mesma forma, tomar o
paciente pelo que dele é
dito em discursos alheios é
também
partir
concepção
de
dialógica
atividade
uma
de
terapêutica,
embasada, no entanto, em
outros
pressupostos
teóricos.
É
o
que
aqui
observamos,
fundamentalmente,
nos
artigos datados de meados
da
década
de
noventa.
Estes partem da idéia de
discurso (e é esse o termo
mais
usado
em
seus
artigos) como efeito dos
sentidos35 e também das
premissas
por
desenvolvidas
Lacan36.
O
desdobramento disso, no
processo
fonoaudiológico,
terapêutico
aparece
sob a forma de uma escuta
do profissional voltada para
os discursos – familiares,
escolares e outros –, uma
35
A idéia de discurso como efeito de sentidos é desenvolvida pela Análise do Discurso de linha francesa (ADF),
mais especificamente por Pêcheux. Para chegar a esse conceito, a ADF parte da relação entre línguadiscurso-ideologia. Toma a língua como a materialidade do discurso, com ordem própria, mas não autonomia
e o discurso como resultado de um processo de significações realizado por sujeitos afetados pela ideologia e
pela língua. Uma vez assim afetados, os sujeitos não transmitem informações simplesmente. Estão
emaranhados nesse complexo processo, cujos sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados. Daí a
definição de discurso como efeito de sentidos (Orlandi, 1999).
36
Lacan, com sua releitura de Freud, contribui para o arcabouço teórico da Análise do Discurso, na medida em
que estabelece como premissa de sua clínica o inconsciente estruturado como linguagem.
vez
que
o
paciente
é
tomado pelo que dele é dito
no discurso dos outros.
Temos ainda artigos, no
decorrer
desse
mesmo
período,
que,
explicitamente,
privilegiam
as contribuições de clínicas
psicanalíticas para a clínica
fonoaudiológica. Sendo a
atividade
terapêutica
psicanalítica
baseada
no
diálogo, essa passa a ser
condição primeira para a
atividade fonoaudiológica.
Assim,
entendemos
que
esses artigos apresentam
sim conteúdo do que se
busca
integrando-se
compreender,
à
análise,
como veremos a seguir.
3.2.
A ocorrência e recorrência dos termos
Observemos o gráfico 4:
Todas
as
categorias
apresentam artigos em que
podemos
observar
presença
dos
termos
diálogo
e
interação.
gráfico
4
aponta,
categorias,
o
a
O
por
número
absoluto dos artigos que
apresentam apenas um dos
termos
e
dos
apresentam
que
ambos,
coerentemente relacionados
à sua base teórica37.
37
O anexo 2 traz, discriminadamente, por categoria, quais foram os artigos analisados. Não há referência ao
autor, porque não é a autoria que nos interessa nessa análise, mas sim as tendências observadas na
produção científica da área.
Os sentidos atribuídos aos
termos
são
diversos,
embora se observe certa
constância
em
todas
as
categorias.
Tomêmo-las uma a uma.
3.2.1.
Métodos
Fonoaudiológicos
Em
Métodos
Fonoaudiológicos, houve a
maior variedade de sentidos
atribuídos ao termo diálogo.
Isso pode estar relacionado
ao fato de essa categoria
congregar
artigos
que
discutem a fonoaudiologia e
seus
métodos,
sob
enfoques distintos.
Assim, o diálogo foi tomado
como:
•
Intercâmbio entre teorias;
•
A cura do sintoma manifesto na linguagem por ele mesmo;
•
Confrontação entre funcionamentos de linguagem;
•
Cruzamento de vozes.
Nessa
categoria,
recorrência
ao
houve
termo
diálogo como intercâmbio
de teorias (em 20% dos
artigos),
próprio
processo
de
de
um
teorização,
refletindo o movimento da
área,
já
descrito
em
capítulos anteriores. Aqui,
reivindicou-se,
mais
explicitamente,
o
diálogo
com a psicanálise, com a
aquisição de linguagem de
cunho interacionista, com a
saúde
pública,
com
a
análise do discurso de linha
francesa.
O diálogo, quando tomado
como
comunicação
entre
duas pessoas, apresentou
sentidos diversos.
O
sentido
de
recorrência,
maior
porque
desenvolvido
num
maior
número de artigos (60% do
total), é o que entende o
diálogo numa perspectiva
psicanalítica, qual seja, o da
cura por ele mesmo. No
caso
trata-se
da
fonoaudiologia,
da
cura
da
linguagem pelo diálogo. A
contribuição
advinda
da
psicanálise é a de que o
diálogo entre terapeuta e
paciente faz emergir uma
terceira
voz
(Fonoaudiologia
Psicanálise
e
38
I,
1997) ,
o
inconsciente, garantindo ao
fonoaudiólogo uma escuta
psicanalítica da história do
paciente, que o torna capaz
de atribuir novos sentidos
para experiências, conflitos
e dificuldades do paciente.
A possibilidade de serem
consideradas,
no
espaço
terapêutico
fonoaudiológico,
as
relações
transferenciais,
próprias
de
relação
qualquer
humana,
mas
especificamente
trabalhadas
psicanalítico,
trabalho
no
cenário
confere
ao
fonoaudiológico,
segundo
os
analisados,
uma
artigos
maior
compreensão do paciente
em
questão
conseqüentemente,
38
e,
uma
O título colocado entre parênteses refere-se, doravante, ao artigo analisado em que se encontra o
fragmento ou expressão citada.
maior
eficácia
do
tratamento.
São representativos desse
enfoque, os fragmentos:
Não qualquer clínica, nem qualquer linguagem [encontro entre
clínica e linguagem]. Mas uma clínica que acolhe a instância do
inconsciente, tanto quanto ao funcionamento psíquico do cliente
quanto do terapeuta (é sempre conveniente ressaltar). E uma
linguagem que deve ir além da materialidade da fala (embora dessa
não prescinda), e, polissêmica, dirigir-se a um outro que a recria
(Fonoaudiologia e Psicanálise I, 1997).
A relação terapêutica é o que há de mais subjetivo no método
clínico-fonoaudiológico: a partir dela a transferência opera, tanto
em relação aos pais, quanto em relação à criança. (...) Deste modo,
o sintoma, mesmo que primariamente de etiologia orgânica,
sempre carregará as marcas subjetivas do sujeito, estando muitas
vezes os conflitos psíquicos ancorados nessa disfunção plausível
para o quando patológico, ou seja, podendo-se aqui pensar numa
sobreposição de sintomas (Objetividade e subjetividade nos
processos terapêuticos fonoaudiológicos, 2000).
(...) a assimilação de pressupostos psicanalíticos pela clínica
fonoaudiológica [significa] um redimensionamento [de seus
construtos] com base em uma escuta voltada para o sujeito, sua
história e a história de suas relações. (...) se o fonoaudiólogo
trabalha com linguagem, com todas as variantes que advêm deste
trabalho, e se a linguagem é constituinte do sujeito, seu trabalho
clínico precisa ser sustentado numa concepção própria de sujeito
e nos fundamentos que permitem a compreensão do
desenvolvimento sujeito-linguagem. (Fonoaudiologia e Psicanálise:
um encontro possível, 1995)
(...) fazer migrar – sem profanar, sem sacralizar – conceitos
psicanalíticos para o campo fonoaudiológico pressupõe:
1. Abandonar a surdez em favor de uma escuta fonoaudiológica
deliberadamente dissociada, que nos possibilite...
2. Rever a noção de sintoma de linguagem, agora com duas
metafóricas orelhas, uma para ouvir a materialidade da palavra,
outra para escutar os seus possíveis sentidos e, assim,
estaremos autorizados a...
3. Realizar interpretações fonoaudiológicas, isto é: intervir
terapeuticamente de forma a possibilitar que o cliente ascenda à
linguagem a partir da articulação entre representações
corporais
e
conteúdos
psíquicos
inconscientes.
(Fonoaudiologia e Psicanálise I, 1997).
De um prisma, [trabalhar] aquilo que efetivamente não funciona na
criança e para isso opera-se com múltiplas técnicas terapêuticas
necessárias ao tratamento da especificidade de cada caso. Entram
em cena a neurologia, psicomotricidade, foniatria etc. De outro
prisma, é necessário que se desenvolva uma certa escuta analítica,
que permita ao fonoaudiólogo ser um outro na relação com o
paciente, capaz de significar para este suas experiências e seus
conflitos. (Fonoaudiologia e Psicanálise: um encontro possível,
1995).
Ao sentido acima descrito,
seguem-se,
proporção
na
de
mesma
recorrência
(20%), outros dois sentidos:
confrontação
entre
funcionamentos
de
linguagem e cruzamento de
vozes.
A idéia de diálogo como
confrontação
de
funcionamentos
de
linguagem está vinculada à
perspectiva
interacionista
de aquisição de linguagem,
elaborada por De Lemos
(1982, 1992), já explicitada
anteriormente.
Nessa perspectiva, interação é diálogo, é movimento da linguagem sobre a
linguagem (Subjetividade e Linguagem: um olhar sobre a psicologia do
desenvolvimento e a aquisição da linguagem, 1997). Aqui, o sujeito não é socius
(De Lemos, 1992), não é ele que se apropria da linguagem. Ao contrário, é
capturado por ela e cindido em falante/ouvinte.
Dialogia (Processo terapêutico fonoaudiológico: um enfoque para a relação
terapeuta-paciente, 2001) é tomada aqui na acepção de comunicação face a face
não por dois sujeitos históricos, tal como Bakhtin os toma em sua teoria dialógica
de linguagem, mas sim como duas instâncias de funcionamento discursivo
(Subjetividade e Linguagem: um olhar sobre a psicologia do desenvolvimento e a
aquisição da linguagem, 1997). Podemos observar esse enfoque em um dos
artigos que analisa a postura do terapeuta ao questionar o paciente quando não
compreende o que ele diz:
Há um constante questionamento da terapeuta aos dizeres da criança, o
que poderia indicar uma quebra da dialogia. No entanto, tal fato não foi
visto desta forma, ao contrário, foi a mola propulsora do funcionamento
da linguagem, pela constante atribuição de sentidos. (...) Há indícios de
interpretação, atribuição de forma e sentido para as produções
lingüísticas desta criança fora do âmbito terapêutico e, portanto, ela está
atravessada pela linguagem. (Processo terapêutico fonoaudiológico: um
enfoque para a relação terapeuta-paciente, 2001)
Um outro sentido atribuído
ao
diálogo
é
o
de
cruzamento de vozes. Vozes
de outros que compõem o
discurso do sujeito.
Diálogo ou interação verbal
aqui aparece como lugar da
produção da linguagem e
dos
sujeitos
processo,
se
que,
nesse
constituem
pela linguagem (O grupo
terapêutico
fonoaudiológico, 1999). A
linguagem é compreendida
como:
Um processo sócio-histórico, cuja origem possa ser rastreada em
práticas discursivas, recolocando a questão do distúrbio em um
referencial que considere os usos efetivos e comunicativos da
língua. (A linguagem na clínica fonoaudiológica: implicações de
uma abordagem discursiva, 2001)
Um pressuposto básico observado nos artigos que compõem essa
categoria é o da constituição social, história e cultural do ser humano. Como
conseqüência desse pressuposto, tem-se a assunção de que também a
consciência se forma por meio de processos internos de retomada e réplica da
interação sobre os objetos sociais (A consciência, esta replicante, 1991).
O sujeito, constituindo-se como desdobramento do outro (A consciência,
esta replicante, 1991), é tomado, nessa perspectiva terapêutica, como sujeito
histórico. Para ele, o trabalho terapêutico deve estabelecer rotinas significativas de
interação, de linguagem, de dialogia, um espaço em que ele possa assumir seu
papel de interlocutor (A linguagem na clínica fonoaudiológica: implicações de uma
abordagem discursiva, 2001).
A linguagem é tomada na sua natureza dialógica e, usando as palavras de
Bakhtin (1953/1979: 313-314), isso equivale a dizer que:
A experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o
efeito da interação contínua e permanente com os enunciados
individuais do outro. É (...) um processo de assimilação, mais ou menos
criativo, das palavras do outro (e não das palavras da língua).
A discussão sobre a condição de linguagem patológica não se faz isolada
das condições culturais de determinado grupo social. Retoma-se aqui a ideologia
do bem falar e de que forma e com que intensidade o paciente e seus
interlocutores estão sob seu domínio. O trabalho terapêutico, delineado nesta
categoria, busca a ressignificação para o paciente do uso da linguagem,
envolvendo-o em situações significativas discursivas, em práticas orais ou
escritas. O papel do terapeuta aqui é o de co-autor dos processos discursivos,
desenvolvendo um trabalho conjunto no espaço de elaboração, de interação, de
relação dialógica entre o sujeito e o [fonoaudiólogo] avaliador (A linguagem na
clínica fonoaudiológica: implicações de uma abordagem discursiva, 2001).
Nessa categoria, cabe salientar, pudemos observar o desenvolvimento de
um trabalho terapêutico grupal justificado pela própria tomada de posição teórica.
Observemos o fragmento de um dos artigos, cujo enfoque da perspectiva de
trabalho é a dialogia e seu cruzamento de vozes:
Crianças em contexto terapêutico grupal que já vêm equipadas com
recursos e estratégias lingüísticas representativas de seu legado cultural
irão,
no
processo
terapêutico,
apropriar-se
de
outras
estratégias/recursos – e amadurecer/diversificar as possibilidades de
uso daquelas já trazidas inicialmente -, num processo de crescimento e
enriquecimento contínuo, que vem a contribuir para o seu próprio
desenvolvimento ulterior quanto para o desenvolvimento do outro e,
assim, da sua cultura (O grupo terapêutico fonoaudiológico, 1999).
3.2.2. Transtornos Neurológicos
Em Transtornos Neurológicos, o termo diálogo aparece em 71,4% dos
artigos. Observamos, aqui, alguns dos sentidos atribuídos ao diálogo na categoria
anterior e um novo:
•
Intercâmbio entre teorias;
•
Confrontação entre funcionamentos de linguagem;
•
Cruzamento de vozes;
•
Forma de observação do estágio cognitivo.
Iniciemos a discussão por esse último.
O
diálogo
compreendido
como forma de observação
do estágio cognitivo tem
por
base
a
visão
construtivista piagetiana. A
interação adulto-criança (no
caso, o terapeuta e seu
paciente)
é
vista
como
propiciadora
do
desenvolvimento cognitivo.
Aqui,
o
diálogo
considerado
é
como
possibilidade de avaliação
da linguagem da criança,
para classificá-la dentro dos
esquemas
piagetianos.
A
linguagem fica submetida
ao
desenvolvimento
cognitivo
e
o
foco
do
trabalho terapêutico recai
sobre a função simbólica
mais geral.
seguintes
Vejamos os
fragmentos
de
um mesmo artigo:
Era deixado num primeiro momento para que o material fosse
manipulado e para que criança o explorasse e conhecesse. A partir daí,
ou espontaneamente era dito o que ela estava fazendo ou então
respondia à pergunta característica inicial de um diálogo sobre uma
situação que está sendo construída: "0 que você está fazendo?".(...)
Quanto à análise dos dados relativos à linguagem, observamos que as
amostras obtidas durante as sessões de trabalho forneceram os
elementos essenciais para nossa avaliação. Nossa preocupação
fundamental não é fazer uma análise do ponto de vista lingüístico com
relação ao nível de desenvolvimento fonético-fonológico, sintático e
semântico. O que nos interessa é averiguar se, com os elementos
disponíveis cada criança consegue, do ponto de vista semiótico,
estruturar sua realidade e comunicá-la. É por esse motivo que, ao
selecionarmos nossas variáveis de controle do estudo, incluímos a
comunicação não oral (gestos, mímica, desenho, escrita).(...)
Já é sabido que determinados objetos podem facilitar a manipulação por
parte do paralítico cerebral, ou mesmo dificultar. Assim, por exemplo,
objetos muito pequenos, de forma escorregadia e sem arestas, ou mais
pesados, podem prejudicar o desempenho da criança em vista da
dificuldade que podem trazer com relação ao manuseio. Mas, o mais
importante é acrescentar a esses dados o fato de como interferem
diretamente no próprio desenvolvimento da linguagem e da cognição,
uma vez que limitam a ação exploratória e estruturadora da criança
sobre o objeto, o conjunto de objetos, a realidade de uma forma mais
ampla. (Considerações sobre o brinquedo e a linguagem de crianças
PCs, 1992).
Nessa categoria, interação é o termo mais recorrente, sendo entendido
como ação da criança sobre o meio, geradora do desenvolvimento de estruturas
cognitivas responsáveis pela compreensão e pela adaptação da criança à
realidade. Observemos o seguinte fragmento:
Podemos afirmar que o ponto de partida dessa gênese é a ação,
responsável pelas trocas, pela interação organismo-meio, realizando-se
através da adaptação. A criança, exercitando seus reflexos, constrói
seus esquemas motores que são, por sua vez, a condição de ação no
meio, que acabará por atribuir significado à sua experiência, isso do
ponto de vista exógeno, além de o serem do ponto de vista endógeno,
isto é, da organização interna em nível neurológico. (Considerações
sobre o brinquedo e a linguagem de crianças PCs, 1992)
O termo diálogo entendido como confrontação entre funcionamentos de
linguagem e cruzamento de vozes aparece, aqui, tal como foi descrito na
categoria anterior. Há, no entanto, nos artigos analisados, fragmentos de
processos terapêuticos em ambas as perspectivas, que nos permitem aprofundar
nossa
análise
quanto
aos
sentidos
atribuídos
ao
diálogo
na
terapia
fonoaudiológica.
Tais fragmentos referem-se a terapias desenvolvidas com sujeitos afásicos.
Em O papel do fonoaudiólogo na terapia do afásico39 (1994), a situação
terapêutica é tida como uma situação discursiva e o fonoaudiólogo como coconstrutor da linguagem do paciente.
Os fragmentos que se seguem (doravante chamados de F-1), segundo
informações contidas no artigo, são de um atendimento a um senhor de sessenta
e um anos, de classe média baixa e nível primário de escolaridade, que
apresentava, como seqüela de um acidente vascular isquêmico, dificuldades na
linguagem, apresentando um distúrbio de similaridade, isto é, dificuldades quanto
ao pólo metafórico da linguagem. Nos fragmentos de diálogo apresentados no
artigo, segundo as autoras, será possível observar o terapeuta utilizando-se
principalmente do processo de especularidade de natureza metafórica como
instrumento básico na reconstrução da linguagem do paciente.
Situação 1. (referindo-se a uma foto de um álbum de família)
T.: quem é, seu Nelson? Quem é esse?
P.: esse aqui, Mau, Mau, Mauricío, Mauricío...
T.: Mauricío?
P.: Mauricío, então, Mauricío.
T.: Esse aqui é o Maurício?
P.: Maurocío, então Maurocía, Mauro, Maurocía, Maurocía,
T.: Maurocía?
P.: e Marocí, Ma, Ma, Maurocía...
T.: Num sei quem é!
P.: Maurocía, Marassú, Marúcia, Maurocío...
T.: Vamo vê?
P.: Maurocío.
T.: Maurício?
P.: Maurúcio esse aqui.
Situação 2. (ainda referindo-se ao álbum de fotografia)
T.: Vizinho?
P.: é.
T.: Hum!
39
Todas as informações aqui citadas, bem como os termos utilizados e a transcrição dos fragmentos de
diálogo são de responsabilidade dos autores do texto. Possíveis incorreções no uso de teorias e vaguidão na
caracterização das sessões serão discutidas na análise subseqüente.
P.: Lá em cima, desse mulhé, dessa senhora, aqui já feriado, já, já,
foi, cabo.
T.: Morreu?
P.: já, já foi.
T.: Esse homem aqui morreu? (indicando a foto)
P.: Esse aqui, esse aqui, esse aqui, outro, esse aqui morreu.
T.: Hum!
Situação 3. (vendo um livro de animais)
T.: como chama esse passarinho aí?
P.: nu sei, é, num sei, como chama esse
T.: aqui ta dizendo que chama pica-pau
P.: isso, aquele, que joga to-tó-tó-tó, to-tó-tó-tó, é, passarinho, esse, (SI)40,
ganta esse aqui
(depois de alguns segundos de conversa sobre o passarinho)
T.: este passarinho aqui?
P.: é passa, para, passarapa, para, pau
T.: passarinho
P.: é
T.: ahn...pica-pau
P.: é é, esse aqui, então, esse aqui... (aponta para o passarinho)
(depois de alguns segundos de conversa sobre o passarinho)
T.: então fala esse passarinho aqui... (apontando para o pica-pau)
P.: ahn? Arapau, ara...
T.: pica-pau...
P.: pi, picãu, pi, picáu, pi, pi, picau
T.: pica...
P.: cau...
(mais alguns segundos)
T.: este também é pica-pau
P.: é, esse aqui, só esse aqui, esse aqui também
T.: este passarinho também é pica-pau
P.: pi, picau, pi, pi, ca, u
T.: pau
Em Discutindo a classificação das alterações da linguagem escrita nas
afasias a partir de uma perspectiva discursiva (2001), a linguagem é tomada na
perspectiva enunciativo-discursiva. Segundo informações contidas no artigo41, os
fragmentos (doravante, F-2) referem-se a diálogos construídos em uma sessão de
40
(SI) – segmento ininteligível
41
Todas as informações bem como as notações das sessões são de responsabilidade do autor.
grupo e entrevista pessoal, no Centro de Convivência de Afásicos (CCA), com o
foco sobre a linguagem do sujeito EF, um senhor de sessenta e oito anos,
advogado. Observa-se no trabalho desenvolvido no CCA a simultaneidade de
práticas significativas orais e escritas no curso de uma mesma sessão terapêutica.
Situação 1. Este texto do qual temos um esboço foi realizado no contexto do
diálogo que se segue. EF comenta com os demais integrantes do CCA sobre a
viagem que fará a Petrolina. Enquanto está falando, ele escreve com a mão em
sua perna, na perna da investigadora e procura uma caneta para escrever.
PETRO
JUZEI
RIO
EF: //usando a escrita no ar como prompting, fala//Pe::to::li::na.
Imc: Petrolina? É a divisa?
EF: Ah //afirmando//
Imc: (...) Bahia...Pernambuco...(...) Bom!!! Escreve aí. Vamos ver o
que ele vai escreve...//EF escreve enquanto fala ao grupo//
Iem: O sr. EF contou uma história uma vez...cês lembram? Ele
morava numa cidade, atravessava o rio e estudava na outra.
Lembra disso?//pergunta ao grupo// Depois o sr. EF explica.
Parece que atravessando o rio já é outro estado, né?
Bahia/Pernambuco. Não tem uma história assim?
Imc: Tinha. Que é Petrolina. Ele escreveu “Petrolina” e “Juazeiro”
//Imc lê o que EF escreveu
Imc: Ah. É isso aí então. E tem um rio no meio.// a EF// Como é
que se chama esse rio no meio? É o rio São Francisco?
//EF afirma com a cabeça//
Iem: mas, sabe, sr. EF, a gente não conhece a região. É isso
mesmo?
EF: //EF fala enquanto escreve// Ri::o São Fan::cis::co.
Iem: Tem o rio São Francisco entre Petrolina e Juazeiro. Juazeiro
pertence à Bahia e Petrolina a Pernambuco?
Imc: Tem uma ponte que vai pra Petrolina...que vai pra
Pernambuco. Ele escreveu só um pedaço. Ele só escreveu um
pedacinho e pronto.
Iem: //Iem lê a escrita de EF// Petro, Petrolina, Juazeiro e Rio São
Francisco.
Situação 2.
Trata-se do esboço de uma produção escrita de EF. Ele havia
combinado de assistir ao jogo do Brasil no CCA, junto com o grupo. A
investigadora pediu-lhe que simulasse uma situação hipotética e escrevesse um
bilhete para as outras investigadoras (de apelidos Maza e Dudu, presentes no
momento), desculpando-se por não poder assistir mais ao jogo no CCA e dizendo
que assistiria com os filhos.
DUDO E MAZA
NA
Fui AO
jogo não
Filhos
Sem mais.
FRANÇA
(EF escreve novamente o texto procurando organizá-lo melhor)
foi
Não
com
jogo
filhos
Em F-1, em primeiro lugar, é importante observar que não há uma
preocupação dos autores em passar para o leitor uma contextualização da
situação de produção do diálogo. Qual seria, por exemplo, o propósito de se olhar
um livro de animais com um senhor de 61 anos de idade? Teria partido desse
senhor o interesse em observar o álbum de fotografias; tratava-se de um evento
especial que ele desejava partilhar com a terapeuta? A resposta a essas questões
aparentemente óbvias ou até desnecessárias faz toda diferença na compreensão
do discurso elaborado. O que podemos depreender do diálogo construído é que
as situações criadas serviram apenas como suporte para o estabelecimento de
uma estrutura ou uma categoria lingüística qualquer.
Como citado pelas próprias autoras no decorrer do artigo, o terapeuta
utilizou-se principalmente do processo de especularidade de natureza metafórica
como instrumento básico na reconstrução da linguagem do paciente. Em seu
procedimento terapêutico, terapeuta e paciente são tomados como instâncias de
funcionamento
lingüístico.
Assim,
o
diálogo
desenvolvido
nas
sessões
fonoaudiológicas assume o lugar de meio propiciador do encontro desses
funcionamentos, objetivando a reorganização do funcionamento tomado como
desviante ou patológico em outros discursos.
Nos episódios de F-1, o objetivo proposto pelo terapeuta era o de diminuir o
distúrbio de similaridade apresentado pelo paciente e, para tal, o fonoaudiólogo
recortou do discurso do paciente os paradigmas considerados sem significados,
contribuindo para que ele pudesse reestruturá-lo.
Na situação 2 de F-1, observa-se a dificuldade do paciente em usar a
palavra morreu. Em seu lugar, ele diz: já, já foi, cabô. A retomada do terapeuta –
esse homem aqui morreu? – faz com que o paciente, em sua resposta, incorpore
em seu discurso a mesma palavra, demonstrando aceitação do sentido atribuído
às suas palavras.
Movimento similar não foi observado nos outros dois episódios. O recurso
usado pelo terapeuta não levou o paciente a uma reorganização do enunciado
considerado patológico. Ao contrário, o apresentado nos fragmentos sugere um
silenciamento do paciente nas situações discursivas.
Nesses dois episódios, a idéia de autonomia da língua, assumida pelo
terapeuta, autorizou-o a perseguir um objetivo lingüístico – e não discursivo – qual
seja, a nomeação correta de duas palavras. De modo diverso do que ocorreu na
situação 2, quando o terapeuta buscou um paradigma que melhor expressasse a
idéia de já foi, cabô, nessas outras situações, o fonoaudiólogo pôs em evidência a
face fonológica da palavra em detrimento dos sentidos a ela atribuídos e possíveis
de serem partilhados por ambos os interlocutores.
Retomemos alguns construtos teóricos que subsidiam o trabalho desse
fonoaudiólogo. Segundo Jakobson (1955), o comportamento verbal normal é
bipolar, ou seja, há trânsito entre os dois modos básicos de relação entre os
elementos lingüísticos (relação interna de similaridade e relação externa de
contigüidade). Já o comportamento afásico tende à unipolaridade. No caso em
questão, o senhor N. apresentava distúrbio de similaridade, ou seja, dificuldade
em ordenar as unidades do código de acordo com sua semelhança. Palavras
sugeridas pelo contexto tendem a ser mais fácil de serem encontradas que as
selecionadas dentro de uma mesma categoria. A atitude adotada pela terapeuta,
na situação 2, mostrou coerência com esse princípio, o que não podemos dizer
das outras situações.
Um outro construto teórico assumido pelas autoras, dentro da visão
interacionista de aquisição de linguagem, é o de que o erro (na elaboração da
linguagem) é considerado um dos produtos possíveis do funcionamento da língua.
Em decorrência disso, podemos inferir que, nos enunciados produzidos pelo
paciente, o considerado desviante foi assim determinado pelo interlocutor do
momento.
Amoroso & Freire (2001), conforme explicitado em capítulo anterior,
afirmam que o caráter patológico da linguagem é determinado por uma
regularidade de interpretação de um falante comum sobre uma manifestação
lingüística fixada como erro. Essa regularidade de interpretação se dá pelo
estranhamento que se repete a esse falante/ouvinte, em diversas situações
discursivas em que tal manifestação lingüística ocorra.
No caso em questão, não é possível, ao menos na situação 1 de F-1,
atestar que o enunciado destacado pelo terapeuta para reorganização – o nome
do filho – seja tomado como erro por uma regularidade de interpretação de um
falante comum sobre essa manifestação lingüística. Seria possível afirmar que, em
situações cotidianas de comunicação, seu filho Maurício não o atenda quando
chamado de Mauricío?
A escolha do enunciado para reorganização, portanto, não parece ter
partido da regularidade de que falam os autores, mas sim de critérios do terapeuta
fonoaudiólogo que, como sabemos, historicamente busca eliminar desvios da
norma padrão.
Como sustentar a tese, ao menos no curso do processo terapêutico, de que
terapeuta e paciente são instâncias de funcionamentos lingüísticos?
Estamos diante, sim, de sujeitos socius, cujas escolhas não estão
desvinculadas de suas histórias. No caso do terapeuta, vale acrescentar: e da
história da profissão para a qual foi formado.
Uma leitura bakhtiniana de F-1 autoriza-nos a dizer que houve, por parte do
terapeuta, um discurso orientado para um interlocutor, em que as forças
centrífugas e a palavra autoritária tiveram forte influência. Como vimos,
anteriormente, palavra autoritária é a que exige reconhecimento e assimilação
incontestes e as forças centrífugas trabalham em favor da unificação e
normalização da língua padrão. Ou é Maurício ou não sei quem é, ainda que a
foto, a história e o vínculo terapêutico digam o contrário.
A busca da nomeação correta eliminou a possibilidade de se observar as
réplicas do paciente aos enunciados do terapeuta e a uma possível relação
dialógica ali instaurada. Volochinov (1926: 191) nos diz que o todo de um
enunciado é composto por uma parte verbal e por outra extra-verbal, sendo que
esta integra-se ao enunciado como um elemento indispensável à sua constituição
semântica. Munidos desse olhar, parece-nos que o paciente, na situação 3, sabe
de que pássaro se trata, quando aponta para a figura no livro, ou quando faz uso
do que nos parece ser uma onomatopéia de seu movimento característico (to-tó-tó
– bicar em árvores), ou quando fala sobre seu canto.
É curioso observar, também, uma desvalorização pelo que poderia ter sido
o tema42 desse encontro: toda vez que parece ter havido um desenvolvimento do
diálogo, o fonoaudiólogo/co-autor do texto opta por colocar uma observação entre
parênteses – depois de alguns segundos de conversa sobre o passarinho – tal
qual apontado, em capítulo anterior, no depoimento da mãe que se recusava a
responder quando seu filho queria lhe dar uma pergunta. Essa observação reitera
a idéia de que o terapeuta/interlocutor não estava voltado para seu outro (um
senhor de sessenta e um anos, afásico, mas consciente de sua condição) e nem
para os sentidos de seus enunciados.
42
Tema, na acepção bakhtiniana, como produto de enunciados numa dada situação concreta, levando em
conta os enunciados anteriores que o determinaram.
Perguntamos então: que tema faria desse encontro uma prática discursiva
significativa?
Em F-2, observamos um movimento diverso.
Enquanto o paciente, EF, procura dizer – com a ajuda da escrita – para
onde vai viajar, as investigadoras buscam retomar o que ele falou ou escreveu não
como palavra a ser corrigida no interior da língua, mas como mais um enunciado
da cadeia verbal daquele paciente e daquele grupo, remetendo-os a um universo
conhecido, fazendo referências a outras elaborações discursivas.
O interlocutor de EF, ao tomar suas produções – PETRO (escrita) e
Pe::to::li::na (oral) – e indagar: Petrolina? A Divisa?, não está simplesmente
repetindo o que ele diz. Diferente do que vimos anteriormente, quando retoma em
seu próprio discurso as mesmas palavras do seu interlocutor, fá-lo como forma de
reiterar o discurso do outro, procurando garantir sua compreensão ativa. Ao ver
sua suposição confirmada por EF, seu interlocutor se volta para o grupo,
solicitando a participação, com a retomada de enunciados anteriores de EF: o sr.
EF contou uma história uma vez...cês lembram? Ele morava numa cidade,
atravessava o rio e estudava na outra. Lembra disso// pergunta ao grupo// Depois
o sr. EF explica.
Não se furtando a completar, a indagar, a propor novas elaborações, as
investigadoras adotam uma atitude de responsividade43 de que fala Bakhtin, isto é,
a de serem responsáveis por um enunciado que nasce em resposta a um outro. E
essa atitude, no interior de situações discursivas significativas, tende a levar os
outros interlocutores a fazerem o mesmo, ou seja, sentirem-se responsáveis por
outros enunciados nos diversos contextos em que circulam. É o que podemos
observar na situação 2 de F-2. Sugerida a situação discursiva – deixar um bilhete
para as outras investigadoras que não estavam ali presentes, avisando-lhes da
impossibilidade de assistir ao jogo como combinado – EF não só escreveu,
sentindo-se portanto minimamente capaz de fazê-lo, como procurou reelaborá-lo,
43
Bakhtin, em toda sua obra, trabalha com o conceito de responsabilidade. Responsabilidade tornou-se
responsividade, que significa responsabilidade de seguir com a palavra do outro, o que dá à linguagem sua
orientação dialógica.
tomando para si o enunciado, com a consciência de que é necessário dar-lhe
acabamento de modo a incitar no outro o movimento de resposta.
Voltando à situação 1 de F-2, mais adiante, uma das investigadoras diz: Ah.
É isso aí então. E tem um rio no meio.// a EF// Como é que se chama esse rio no
meio? É o rio São Francisco? EF afirma com a cabeça e a investigadora continua:
mas, sabe, sr. EF, a gente não conhece a região. É isso mesmo? E enquanto
escreve, EF fala: Ri::o São Fan::cis::co. Ao perguntar ao paciente se era do rio
São Francisco que falavam, a investigadora mostra que não estava tomando a
palavra de EF como oração/constituinte da língua, mas sim como enunciado/elo
de uma cadeia verbal ininterrupta de comunicação.
Como dissemos acima, tomar o enunciado, numa postura responsiva, isto
é, complementá-lo, questioná-lo, leva o interlocutor a seguir em seu próprio
discurso, na medida em que se sente instigado a fazer sua réplica. É o que
acontece com EF, quando, com a ajuda da escrita no ar, diz: Ri::o São
Fan::cis::co. Esse seu enunciado é, por certo, uma apreensão da palavra do outro
bastante significativa, pois aquele que apreende a enunciação de outrem não é
um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras
interiores (Bakhtin/Volochinov, 1929: 147). Aspecto tão caro para aquele que se
tornou afásico.
Em F-2, vemos um sujeito com dificuldades na elaboração do discurso, mas
que, com a co-autoria de seus interlocutores – pelo uso da palavra internamente
persuasiva – segue adiante no diálogo, sentindo-se presente e produtivo nas
situações discursivas a ele significativas.
Retomando F-1, podemos dizer que, na situação 2, o terapeuta tomou a
produção de seu interlocutor já, já foi, cabô, como um enunciado na situação
discursiva que ali se instaurava. Ao usar em sua réplica, esse homem aqui já
morreu?, proporcionou a seu paciente sua retomada, não como palavra da língua
corrigida, mas como enunciado, já que se mostrava dentro dos possíveis sentidos
a serem construídos naquele contexto. A palavra do terapeuta, nessa situação,
caracterizou-se como internamente persuasiva, pois foi compreendida pelo
paciente fazendo surgir uma nova palavra sua em resposta.
Voltaremos a essa questão mais adiante.
3.2.3. Surdez
Observamos, na categoria Surdez, o uso do termo diálogo em 75% dos
artigos analisados. Embora a amostra, nessa categoria, seja pequena, há, em
relação aos sentidos atribuídos ao diálogo, uma tendência importante de ser
apontada, que diz respeito ao modo como o sujeito privado de audição é
denominado.
Há trabalhos em que ele é apresentado como deficiente auditivo. Nesse
caso, o enfoque recai sobre o déficit de audição e suas conseqüências
decorrentes no uso da linguagem oral. O objetivo do trabalho, nessa perspectiva,
é o de desenvolver sua capacidade de comunicação oral.
A necessidade de se considerar o diálogo, na terapia fonoaudiológica com o
deficiente auditivo, surge no momento em que fonoaudiólogos observam que
apenas a exposição da criança deficiente auditiva à linguagem oral não é
suficiente para o desenvolvimento da oralidade. Observemos os seguintes
fragmentos:
Havia a crença de que a partir do uso de amplificação sonora, intensa
estimulação auditiva e exposição adequada a padrões de fala e
linguagem, a comunicação oral emergiria naturalmente, chegando a
criança deficiente auditiva a alcançar, desta forma, pleno domínio da
linguagem oral. Tinha-se então como objetivo principal, nessa época,
desenvolver na criança uma atitude ouvinte.
(...)
As sessões de terapia serviam de modelo para a mãe e esta procurava
absorver o padrão da terapeuta: "Aprender a encher a criança de sons",
de acordo: com Whetnall (1971), falar para a criança e pela criança,
verbalizar ações e situações, eram os princípios básicos.
(...)
Isto [a modificação no trabalho] ocorreu a partir das observações das
emissões orais das crianças deficientes auditivas que participaram
deste programa e da atitude de comunicação de suas mães, que se
caracteriza pela maneira incessante de falar, descrição da situação
desvinculada do contexto interacional.
(...)
Aos objetivos iniciais do trabalho acrescentou-se uma preocupação com
os comportamentos comunicativos não verbais e a ênfase na relação
dialógica. Pôde-se observar que havia grande preocupação com o
contexto situacional, mas não se criava a situação de diálogo.
(Programa clínico para o deficiente auditivo em idade precoce: uma
crítica retrospectiva, 1986).
Nessa perspectiva enfocada, a tendência é a de se caracterizar o diálogo
como interação face a face, levando em conta os requisitos básicos de uma
conversação.
(...) ficar atenta cada vez mais em uma atividade; olhar para o rosto do
falante; perceber que a comunicação verbal existe; iniciar a interação.
(Programa clínico para o deficiente auditivo em idade precoce: uma
crítica retrospectiva, 1986).
A imitação verbal passou a ser uma das estratégias de aquisição de
linguagem levando a criança a perceber os vários momentos e as
diferentes funções da linguagem oral. (Programa clínico para o
deficiente auditivo em idade precoce: uma crítica retrospectiva, 1986).
O processo terapêutico com a criança deficiente auditiva deve ter como
foco de atenção a aquisição e o desenvolvimento da linguagem, com a
utilização máxima da audição residual pela amplificação sonora.
(Identificação de estratégias no processo terapêutico de uma criança
deficiente auditiva, 2001).
A partir do pressuposto que a aquisição de linguagem se dá na
interação com o outro, o momento terapêutico inicial, segundo as
autoras, deve privilegiar o reconhecimento, por parte dos pais, do
potencial de interlocução de sua criança. O trabalho de linguagem
apóia-se na situação interacional em que terapeuta e criança constroem
sua história a partir de situações lúdicas, o conhecimento mútuo
facilitando a atribuição de significados. O terapeuta tem por desafio criar
situações lúdicas das quais deve emergir o diálogo, descobrindo as
estratégias mais atrativas para cada criança. É desejável que ambos terapeuta e criança - venham a se tornar parceiros num jogo de
múltiplos sentidos. Acreditamos que esta concepção de linguagem tem
trazido transformações significativas no desenvolvimento de linguagem
de crianças deficientes auditivas, questionando propostas de
treinamento auditivo e de fala. A constituição do sujeito como falante, de
fato, se dá nas experiências de linguagem vividas nas situações
dialógicas e não em situações de aprendizado de estruturas da língua.
(Identificação de estratégias no processo terapêutico de uma criança
deficiente auditiva, 2001).
Semelhanças podem ser observadas nas citações de um e outro artigo,
ainda que quinze anos os separem. A perspectiva interacional é mantida como
meio propiciador de desenvolver a linguagem oral; de fazer com que a criança
reconheça e utilize as diferentes formas dessa linguagem, sempre visando a
ampliação de sua capacidade em utilizar sua audição residual. No último artigo
mencionado, há uma maior preocupação com o desenvolvimento do diálogo na
terapia e um exemplo ali exposto pode nos ajudar a compreender o que está
sendo considerado por situações dialógicas44.
Terapeuta (T.) e Carolina (C.) compartilham a brincadeira de procurar e
achar o fantoche, proporcionando o suspense, a expectativa de procurar
e a surpresa do que vai ser encontrado. O suspense e a surpresa
mantêm o contato de olho de C. com a T., garantindo sua atenção; C.
sabe do que está sendo falado, podendo chamar, procurar, olhar,
apontar e achar. Usualmente, o fantoche fica em uma caixa, em cima de
um armário, e C. tem conhecimento disto.
Quadro 1 -Transcrição da Situação 1
Procurar e achar o fantoche que não está no lugar usual
T: Vamo chamá agora a dona barata? (coloca a mão ao lado da boca e
vira o pescoço em direção aonde o fantoche costuma ficar guardado)
Dona barata.
C: Baa (simultaneamente ao chamado do fantoche, vira o pescoço na
mesma direção que T.)
T: Cadê a dona barata? (gesto de cadê com as mãos)
C: Lá (aponta para o lado oposto de onde o fantoche está)
T: Não (gesto de negação com dedos e cabeça)
C: (gesto de negação com a cabeça)
T: Olha a dona barata ali, ó (aponta na direção do fantoche)
C: (olha na direção do fantoche, levanta-se e segura a cadeira)
T: Dona barata úú úú (põe a mão ao lado da boca) Olha a barata ali, ó,
CaroI (aponta na direção do fantoche)
C: (larga a cadeira e busca o fantoche)
T: Achô!
44
O fragmento de diálogo citado obedece a transcrição feita pelo autor do artigo.
Embora os autores do artigo não se refiram às idéias de Bruner, é a essa
visão de interacionismo que nos remete o trabalho por eles apresentado. Como já
vimos anteriormente, Bruner considera que a interação social assegura o domínio
lingüístico. Para ele, não basta input lingüístico e sim interação. É o que vemos
nas citações de ambos os artigos.
No fragmento de terapia, podemos observar uma preocupação do terapeuta
em trabalhar com assuntos já conhecidos pela criança, num formato de interação
bastante definido. Trata-se dos formats de Bruner, um tipo de relação com
intenção compartilhada, especificação dêitica e estabelecimento de uma
pressuposição que pode ser, por diversas vezes, repetido, variando-se os temas.
Nos formats, como vimos anteriormente, o adulto trabalha com aspectos
mais canônicos de uma determinada cultura, o que permite à criança uma
possibilidade de incorporação gradativa de suas regras fundamentais. Essas
interações pressupõem uma relação de complementaridade e reciprocidade de
papéis: a resposta de um dos participantes existe em função da ação/resposta do
outro, havendo também divisão de tarefas e iniciativas.
O que observamos no fragmento citado é o conhecido jogo infantil
cadê/achou que se enquadra na estrutura dos formats. A inserção da criança
nesse tipo de interação é para garantir, a partir de uma sensibilidade ao contexto
da criança, sua compreensão e progressiva participação nas regras da cultura
ouvinte. Assim como Bruner, que admite que a cultura afrouxa os limites impostos
pelo fator biológico, as autoras dos artigos entendem que a inserção de crianças
deficientes auditivas na cultura ouvinte, por meio de interações sociais próprias
dessa cultura, ajuda-as a lidarem com seu déficit de audição. É o que podemos
depreender da explicação que dão ao realizado em terapia:
Chamar o brinquedo pelo nome, privilegiando a pista auditiva, propicia
que a criança esteja atenta para o que vai ouvir e estabeleça o feedback
acústico e articulatório em uma situação em que está à procura de algo
que já conhece.
(...)
A face acústica do que está sendo dito é relacionada ao vivido,
promovendo a atribuição de sentido ao que é falado pelo outro. Nesse
sentido, desencadeia-se o processo de significação em uma situação
previsível e acusticamente facilitada, o que leva à compreensão, mais
tarde, em situações em que o sinal esteja distorcido ou com pouca
intensidade.
Numa situação terapêutica posterior, o terapeuta retoma a brincadeira dos
fantoches – entre eles, o da dona Barata – e com eles canta uma conhecida
música infantil:
T: Olha a barata aqui ó, vamu vê como ela faz (coloca o fantoche na
mão)
C: (coloca a mão em cima de sua boca simultaneamente à ação acima)
T: A barata diz que tem sete saias de filó, é mentira da barata, ela tem é
uma só (aponta para o fantoche e faz o número um com o dedo)
C: (aponta para o fantoche e faz o número um com o dedo
simultaneamente à ação da T.)
T: Rá rá rá (cobrindo a boca)
C: Á á á (cobrindo a boca)
T: Ró ro ró (cobrindo a boca)
C: Ú ú ú (cobrindo a boca)
T: Ela tem é uma só rá rá rá ró ró ró ela tem é uma só (faz gesto do
número um)
C: (vira a cabeça para o lado e pega o fantoche da mão da T.
simultaneamente à ação acima)
Bakhtin (1952-53/1979: 316) nos diz que todo enunciado é repleto de ecos
e lembranças de outros enunciados. É o que podemos inferir da inserção da
música da barata à brincadeira com o fantoche da dona barata. No entanto, pela
ausência de qualquer alusão nesse sentido, por parte do terapeuta, tanto na
sessão fonoaudiológica como na análise do artigo, observamos que essa inserção
não tem necessariamente relação com uma possível ampliação de conhecimento
de mundo da criança. Ainda que se configure como uma possível ressonância
dialógica, de que fala Bakhtin (1952-53/1979), não foi esse o valor atribuído pelos
autores, como podemos observar em:
Na Situação 2 (Quadro 2), T. e C. cantam uma música infantil
sincronizada com movimentos corporais próprios e do fantoche; aqui,
ocorrem trocas dinâmicas entre criança e adulto, trocas de pistas
auditivas e visuais, e de quando e como é o modo de preencher os
espaços visuais e auditivos, permitindo a utilização de estratégias que
visam o uso máximo do sinal acústico. A ênfase no trabalho de atenção
auditiva visa também, conforme a Situação I, o aprimoramento do
feedback acústico e articulatório, mas, neste caso, a música e, em outra
situações, as rimas proporcionam oportunidades significativas para
aumentar as estruturas suprasegmentais da linguagem oral, objetivando
uma melhora da inteligibilidade da fala (Flexer, 1994).
Desta forma, a situação interacional desenvolvida no processo terapêutico
parece levar em conta apenas o contexto imediato em que terapeuta e paciente
estão, frente a frente, desenvolvendo um diálogo que, na acepção bakhtiniana, é a
forma mais fraca do dialogismo.
Vimos até aqui os possíveis sentidos atribuídos ao diálogo quando se toma
o sujeito privado da audição por deficiente auditivo. Quando, no entanto, ele é
tomado por surdo, há indícios de que a relação educacional ou terapêutica se
estabeleça sob outras bases.
Dentro de nossa pequena amostra, nessa categoria, encontramos um único
artigo que aponta para essa outra tendência, sem, no entanto, desenvolvê-la.
Nele, o autor enfatiza a importância de se pensar sob que condições a criança
surda está sendo levada a produzir linguagem. Vejamos alguns fragmentos:
O sucesso ou o fracasso do trabalho com crianças surdas têm sido
freqüentemente relacionado à forma como elas têm acesso à
linguagem. Raramente se leva em conta o fato de que os problemas em
relação à linguagem e à constituição da língua não são decorrentes
apenas dos limites impostos pela surdez ao acesso à oralidade, mas,
sobretudo das alterações que se desencadeiam no processo interativo
da criança surda com os ouvintes e que, portanto, acarretam
modificações nas condições de produção da linguagem.
(...) no âmbito da Educação Especial tanto a escolha da abordagem
como da língua na qual o diálogo em sala de aula deva se dar envolve
não só fundamentos lingüísticos, mas também aspectos sociais,
culturais, antropológicos, políticos e educacionais-pedagógicos. Assim,
tanto uma como outra são escolhas orientadas por diferentes razões,
tais como: maior possibilidade de integração com os ouvintes ou maior
possibilidade de desenvolvimento cognitivo e lingüístico. Tais objetivos,
no entanto, não serão alcançados apenas por intermédio dos recursos
utilizados para compensar as limitações impostas pela surdez ao
acesso à linguagem. Eles serão atingidos à medida que forem
fornecidas à criança surda as condições de produção da linguagem de
que ela necessita. (Considerações sobre a escolha de uma abordagem
que viabilize à criança surda o acesso à linguagem, 1995)
No artigo, não há referências explícitas às interações verbais
estabelecidas com o sujeito surdo, mas a alusão à atenção a aspectos sociais,
políticos, culturais, antropológicos nos leva a crer que esse sujeito não é
considerado apenas por seu déficit de audição, mas por sua identidade de surdo
construída historicamente, o que provavelmente provoca diferenças qualitativas no
estabelecimento da interação e do diálogo45.
3.2.4. Avaliação de Linguagem
Na categoria Avaliação de Linguagem, o termo interação prevalece sobre o
termo diálogo, aparecendo em 100% dos artigos analisados. Nesses em que só
há a ocorrência do termo interação, observamos uma filiação dos autores a teorias
que, como já vimos em outras passagens desta pesquisa, não consideram o
caráter histórico e social da linguagem, tomando a interação adulto-criança ou
como a interação que o sujeito (no caso a criança) estabelece com o meio, ou
como interação entre estruturas de língua. Estamos nos referindo às visões
piagetiana e interacionista proposta por De Lemos, respectivamente. Essas teorias
têm auxiliado os fonoaudiólogos a pensarem as avaliações fundamentalmente de
crianças que apresentam ausência ou atraso de linguagem verbal.
Destacamos os fragmentos:
45
Esta pesquisa não tem como objetivo aprofundar o tema no âmbito da surdez, trabalhando apenas com o
material coletado, conforme já explicitado. Para um mergulho no tema sugiro a leitura das teses de
doutorado de Ana Claudia Lodi e Rossana Arcoverde, defendidas no Programa de Lingüística Aplicada e
Estudos de Linguagem, PUC-SP, 2004.
Costuma-se privilegiar a linguagem para avaliar e compreender a
própria linguagem. Mas será isto possível quando ela está ausente ou
mesmo pouco desenvolvida? Tarefa difícil! Até mesmo pouco produtiva,
principalmente porque sabemos que a linguagem não é algo que se
desenvolve de forma autônoma, como se fosse uma simples questão de
tempo. Encontrar soluções que nos ajudem em nosso trabalho depende
de conhecermos melhor os problemas com que lidamos. Por isso, há
necessidade de irmos além da linguagem.
(...)
A questão pode ser colocada da seguinte forma: temos à nossa frente
uma criança apresentando uma história de atraso de linguagem. Como
podemos tentar compreender o problema desta criança que ainda não
fala, ou que tem uma linguagem muito elementar? O que proponho aqui
é procurar situar o desenvolvimento mais amplo da criança para, daí,
tentarmos compreender o atraso de sua linguagem. Precisamos buscar
respostas para perguntas do tipo: Qual o nível de desenvolvimento
cognitivo que a criança possivelmente já atingiu? Todo o
desenvolvimento está prejudicado? Ou o comprometimento maior é em
relação à linguagem? Existem outras condutas simbólicas? Que nível de
representação a criança pode ter alcançado? Quais as diferenças entre
estas diversas situações? É possível detectar fatores causais? Que
implicações esses conhecimentos podem ter para a terapia? (A
evolução do simbolismo como base para a compreensão e diagnóstico
do retardo de linguagem, 1991)
***
Pode-se pensar que a interpretação da fala da criança pelo outro nem
sempre se apresenta com os mesmos efeitos, ou seja, pode caminhar
em direções diferentes daquelas observadas pelos estudos em
aquisição de linguagem. Quero dizer que a interpretação coloca em
cena não qualquer adulto e qualquer criança, mas um certo adulto e
uma certa criança. Para desenvolver esta afirmação, proponho um
retorno ao trabalho de Faria (op.cit), que identifica a criança a um dos
elementos de uma estrutura pai-mãe-criança. A concepção da estrutura,
na qual o valor de cada elemento não depende apenas do que ele é por
si mesmo, mas sobretudo da posição que ele ocupa em relação aos
outros elementos do conjunto, permite a circunscrição de posições que
são ocupadas por cada um desses elementos. Essas posições são
definidas pela autora como as seguintes:
1. a de sujeitos - ou seja, considerando que temos sempre diante de nós
não apenas um pai, uma mãe e um filho, mas antes de mais nada um
homem, uma mulher e uma criança.
2. a de funções - lembrando que cada um dos elementos dessa
estrutura está exercendo um papel em relação aos outros, que cada um
desses elementos deve ser considerado como exercendo uma única e
determinada função em relação ao outro elemento, além de não apenas
o segundo elemento participar dessa relação, mas dele depender
também a função do terceiro elemento.
3. a de lugares - em que a combinação de todas as relações
estabelecidas, a interação desses sujeitos com as funções permitirão
que se deduza uma tópica para além das funções. Trata-se de uma
tópica não encarnada, em que os lugares se definem a partir da posição
que puderem ocupar os sujeitos com funções; é uma tópica dedutível da
inter-relação desses elementos.
Se isso for verdadeiro, essas posições, materializadas na interpretação
da fala da criança, podem ser determinantes do processo de aquisição
de linguagem. Ou seja, estou supondo que, além da interpretação que
leva ao deslocamento da criança em seu processo de aquisição de
linguagem, tal como propõe o interacionismo, pode haver outras formas
de interpretação, que terão outros efeitos. Parto, ainda, do pressuposto
de que o funcionamento da linguagem da criança, em decorrência das
posições que esta ocupa em relação a seus intérpretes - pai -mãe- o
outro - pode sofrer perturbações e que nem sempre ocorrerá como dele
fala a aquisição da linguagem. (O diagnóstico nas alterações de
linguagem, 2000)
Não privilegiando a interação social e as construções conjuntas de
conhecimento que dela decorrem, as visões piagetiana e interacionista que
subsidiam o pensamento fonoaudiológico no âmbito da avaliação de linguagem,
contribuíram para que o terapeuta assumisse uma postura de observação e
escuta. Há, nos artigos elaborados a partir da visão interacionista, ênfase no
direcionamento do trabalho do fonoaudiólogo à escuta cuidadosa dos outros
discursos que compõem o universo do paciente. Vejamos o que nos mostra este
fragmento:
Isto sinalizaria a necessidade de se pensar uma intervenção terapêutica
específica para cada uma dessas formas. Estas, ainda, apontam não só
para a inexorabilidade de se incluir a mãe e seu discurso sobre a fala da
criança na reflexão sobre a patologia, como também a necessidade de
escutar a criança e não simplesmente tomá-la a partir da queixa dos
pais. Escutá-la, para decidir com ela sobre sua própria terapia, uma vez
que ela se apresenta inicialmente não por uma demanda sua, mas pela
demanda de seus pais. (O diagnóstico nas alterações de linguagem,
2000)
O termo diálogo, que, nessa categoria, aparece em 50% dos artigos, vem
referendar a postura de escuta e de observação dos movimentos da língua,
estando, portanto, vinculado à categoria que aqui denominamos como
confrontação entre funcionamentos de linguagem. Observemos o seguinte
fragmento:
(...) O método de avaliação muda, e o que se põe em foco é o
funcionamento da linguagem do paciente, descrita a partir dos
processos dialógicos e analisados pelo modo como os princípios
metafórico e metonímico se articulam nos atos enunciativos. A gravação
é recomendada, já que a unidade mínima de análise deve ser o diálogo
(ou, mais especificamente, o espaço discursivo): a fala do outro
interpretando as produções da criança. Assim, será possível vislumbrar
como a criança, enquanto sujeito da linguagem (que opera movimentos
na estrutura da linguagem), assume posições discursivas e, portanto,
como se engendram as redes de significação e os efeitos de sentido
que daí germinam. (Questões sobre o diagnóstico fonoaudiológico em
crianças pequenas, 1999)
É importante que se ressalte que processos dialógicos aí citados não se
referem ao processo de encadeamento de enunciados em que se transparece a
multiplicidade de vozes que compõem a linguagem em uso, mas sim, ao suporte
em que se articulam os eixos metafórico e metonímico da estrutura da língua. Na
mesma direção segue a expressão espaço discursivo que, seguindo a teoria
interacionista, seria o encontro entre instâncias de funcionamento da língua
constituída.
3.2.5. Escrita
Na categoria Escrita, tivemos um número muito pequeno de artigos a
analisar. O termo diálogo aparece em 50% dos artigos, o que significa figurar em
apenas um deles.
Embora o contexto em que apareça denote o sentido de situação
conversacional (trata-se do título de um texto produzido por um paciente - Um
diálogo sobre a reportagem "Índio cresce na base do sofrimento", em A escrita na
clínica fonoaudiológica, 1999), o artigo apresenta um trabalho terapêutico que
aponta para uma articulação entre textos que circulam no cotidiano, no contexto
terapêutico. Aponta, ainda, para a construção de diferentes sentidos que a leitura
de um texto pode suscitar em diversos pacientes, a partir do olhar e da posição
em que cada um se encontra.
Ainda que não haja explicitação de uma posição teórica do trabalho com a
linguagem, a postura terapêutica adotada nos remete especificamente a alguns
conceitos bakhtinianos, como os de gêneros discursivos e ressonância dialógica
constituída no encontro de enunciados de diferentes interlocutores. Isso é
semelhante ao que observamos, em outro artigo referente ao tema escrita,
discutido no início deste capítulo, em que nem o termo diálogo, nem o termo
interação figuram. Naquele momento, dizíamos que alertar o terapeuta para os
usos sociais da escrita durante o processo terapêutico (tema do artigo) era, no
nosso entender, apresentar a atividade terapêutica como dialógica dentro da
concepção bakhtiniana.
O termo interação aparece no outro artigo que completa a amostra desta
categoria. Nele, fala-se em interação entre o sujeito e o objeto escrita, visando
construção de valores e usos sociais. Longe de tomar a escrita como domínio do
código gráfico e das regras do português, o artigo enfatiza que é no mergulho no
processo social de constituição da escrita – práticas de letramento – que a criança
é preparada para a alfabetização. No entanto, quando o artigo enfoca a questão
do erro, afirma
Privilegiamos uma outra direção, ou seja, aquela na qual o processo de
aquisição da escrita será significado a partir de: uma releitura de erro,
que passa a ser considerado como lugar privilegiado de análise,indício
da relação que a criança tem com a escrita; uma concepção que atribui
à escrita o lugar de constituição do sujeito e do funcionamento da
língua. (Interpretação da escrita infantil, 2001)
Passa a assumir, então, a teoria interacionista proposta por De Lemos para
o desenvolvimento do trabalho terapêutico, reinterpretando o erro, visto agora
como indícios de saber a língua. Oscilando entre tomar a escrita como objeto
histórico-social e interpretar as produções de pacientes que contenham erros
como indícios do funcionamento da língua tal qual propõe De Lemos, o artigo
enfoca a questão da autoria do texto, buscando inspiração na Análise do Discurso
de linha francesa. Um novo deslocamento se produz: o sujeito que mantém uma
relação histórica e social com a escrita constitui-se – segundo afirmação presente
no artigo – no que Pêcheux chama de forma-sujeito, pois ao mesmo tempo em
que é assujeitado pela ideologia, ocupa um lugar verdadeiramente seu na
formação discursiva que o determina. O artigo passa a falar, então, da relação –
da interação – entre interlocutores na construção de sentidos como uma troca de
efeitos de linguagem, não derivada da intenção ou da consciência dos
interlocutores. O sentido de interação, portanto, está mais próximo do que temos
aqui colocado, na categorização dos sentidos do diálogo, como confrontação de
funcionamentos de língua.
3.2.6. Transtornos Psíquicos
Em Transtornos Psíquicos, encontramos a ocorrência do termo diálogo em
100% dos artigos, com sentidos similares. Neles, o diálogo foi tomado como
interação face a face.
A amostra analisada, nessa categoria, também foi pequena: apenas dois
artigos. Um deles traz um estudo de caso de uma criança autista. Nesse artigo, as
teorias que subsidiam o trabalho terapêutico estão explicitadas no seguinte
fragmento:
Adotando as influências da lingüística sócio-interacionista e da
psicanálise, parto de uma visão de sujeito constituído nas suas relações
com o outro, e de linguagem como sendo o campo discursivo de uma
dada família inserida numa dada cultura "no interior da qual o sujeito
encontrará
seus
enunciados
identificatórios"
(Aulagnier,
1979).
(Aprendendo a falar com Marie, 1999)
Ainda que, segundo afirmação do autor, toda a relação esteja mediada por
um campo discursivo, a ênfase da análise recai sobre as relações transferenciais
e contratransferencias desenvolvidas no processo terapêutico. Quando seu olhar
se volta para a linguagem verbal, fala sobre o diálogo colocando-o entre aspas,
como se não considerasse efetivamente um diálogo a forma pela qual a criança
escolheu para se comunicar com seu terapeuta.
Numa sessão, ela estava repetindo em inglês uma das histórias Disney,
falando muito enrolado. Eu então disse: "Marie, sabe por que você só
tem historinhas Disney na sua cabecinha? É por que você não tem a
sua história". Como acontece-me às vezes, digo ou faço coisas sem
saber porquê e comecei a falar "Sapsuí, pukabá", uma seqüência de
palavras por ela criada e que durante algum tempo ela repetia muitas
vezes, mas que há dois anos tinha desaparecido dos nossos "diálogos".
(Aprendendo a falar com Marie, 1999)
As palavras inventadas pelo paciente parecem-nos não terem sido
reconhecidas como enunciados, na medida em que o próprio diálogo não foi
valorizado como tal. O foco do trabalho terapêutico não está na linguagem em seu
uso, mas sim na experiência emocional vivida pelo par terapêutico.
Embora o segundo artigo caminhe em outra direção, o sentido atribuído ao
diálogo também é o de interação face a face. É tomado como sinônimo de
conversa, como podemos observar no seguinte fragmento:
Essas crianças se caracterizam por uma linguagem fluente, não
apresentam alterações fonológicas e sintáticas e parecem estabelecer
um diálogo ou uma conversa com seu interlocutor fonoaudiólogo (...) (A
relação discursiva entre terapeutas e crianças psicóticas, 1996)
O artigo visa analisar os
enunciados produzidos pelo
paciente e pelo terapeuta a
fim de estabelecer possíveis
categorias e classificações
de linguagem do psicótico.
Parte
da
relação
idéia
de
uma
discursiva,
mas
volta seu estudo para a
produção de enunciados e,
mais especificamente, para
a utilização de determinado
léxico que classificaria os
enunciados
em
interacionais, de memória,
perceptuais,
cognitivos,
sobre estados mentais e
sobre
estados
físicos.
Sobre
a
terapia
fonoaudiológica, diz:
O modelo terapêutico adotado no ambulatório é o de interação; a
relação entre a terapeuta e a criança se dá por meio de atividades
lúdicas e no discurso ou na linguagem de ambos, na tentativa de
estabelecer alguma relação. Não existe planejamento terapêutico,
treinamento de fala ou de linguagem, tampouco previsibilidade da
duração do processo terapêutico. (A relação discursiva entre terapeutas
e crianças psicóticas, 1996)
Discurso aqui parece se
adequar mais à Teoria dos
Atos
de
Fala
(Austin
e
Searle, 1969), que classifica
os
enunciados
tomados
numa determinada situação
de
fala.
Eliminando
as
ecolalias e também aqueles
enunciados
que
não
se
encaixam na categorização,
como afirmado no artigo, o
autor
incompatibiliza-se
com a idéia de discurso
como prática de linguagem,
cujos
sentidos
construídos
são
histórica
e
socialmente.
Há,
neste
observação
artigo,
uma
curiosa
a
respeito do que se produziu
em termos de linguagem,
nas
sessões
fonoaudiológicas.
Constatou-se pelos corpora
uma
sucessão
de
enunciados iguais e que
giravam em torno de um
mesmo
tema.
interpretado
inflexibilidade
destas
Isto
como
foi
uma
ou
rigidez
crianças
para
reconhecerem
em
seu
interlocutor um sujeito com
papel diferente do delas e
com
idéias
próprias.
No
entanto,
verificou-se
também que o terapeuta
repetiu freqüentemente os
enunciados das crianças,
com a mesma entonação,
estrutura frasal e léxico. O
diálogo
estruturou-se
em
um conjunto de perguntas e
respostas, sempre voltado
para a nomeação das ações
que
estavam
sendo
executadas na terapia. Na
conclusão,
rigidez,
fala-se
em
inflexibilidade
e
mesmice na linguagem de
crianças psicóticas.
Lembrando
Bakhtin
e
o
campo de força criado pelo
embate
das
centrífugas
e
forças
centrípetas,
um olhar como o apontado
nesse
artigo
discurso(s)
leva
à
para
de
psicóticos
estagnação
movimentos,
possibilidade
o(s)
dos
da
de
novas
construções de sentidos e
da
transformação
de
estados patológicos. É a
prevalência
das
forças
centrípetas e isso se reflete
na
situação
mantida
dialogal
na
terapia
fonoaudiológica:
não
há
lugar para a dúvida, para a
argumentação,
para
o
conflito, para a exposição
de
idéias,
estejamos
ainda
que
falando
de
sujeitos com dificuldades
de
ordens
diversas.
Do
nosso ponto de vista, reside
aí a verdadeira rigidez.
Mantendo-se
dependente
exclusivamente do contexto
próprio
de
cada
terapêutica,
sessão
entendemos
que o diálogo tido como
situação
dialogal
ou
interação face a face – não
visa
o
favorecimento
da
ressignificação do uso da
linguagem
por
parte
do
paciente. A fim de ilustrar o
que
estamos
querendo
dizer, voltemos ao artigo
anterior,
para
vermos
o
desfecho da sessão em que
o terapeuta, sem saber o
porquê, repete as palavras
inventadas pela paciente:
Ela me olhou e para meu completo espanto, começou a reproduzir a
maneira como eu a chamava nesta mesma época. Eu conseguia fazê-la
rir, chamando-a pelo seu nome com várias entonações, timbres, ritmos
e freqüências. Diante disto, eu disse para ela: "Você se lembrou! Era
assim que eu falava seu nome! Então você tem uma história comigo na
sua cabeça!". Marie, me olhando, sorriu para mim com uma expressão
de vitória no rosto. (Aprendendo a falar com Marie, 1999).
Vitória no rosto talvez por
ter
reconhecido
enunciado
no
alheio
suas
próprias palavras, o que a
fez se sentir um ser pleno
de palavras interiores, como
já
vimos,
neste
anteriormente,
mesmo
capítulo.
Podemos, aqui, levantar a
hipótese que isso possa ter
remetido
a
criança
situações
e
enunciados
anteriores,
fazendo
a
das
palavras alheias (o modo
como
o
terapeuta
a
chamava), agora, palavras
próprias. Involuntariamente,
o
terapeuta
recuperou
alguns elos da cadeia de
comunicação
estabelecendo
paciente.
E
que
com
isso
fazer toda diferença.
3.2.7. Voz
vinha
sua
parece
A
última
categoria
analisada, Voz, apresenta,
em seu único artigo, os
termos diálogo e interação.
O
objetivo
principal
do
artigo parece-nos ser o de
não dissociar a voz do uso
da linguagem, estendendo
essa implicação ao trabalho
com pacientes que trazem
queixas de voz.
Observemos os seguintes
fragmentos:
Penso que a voz faz parte do movimento incessante da linguagem.
Aquilo que um bebê, a princípio, compreende do discurso do adulto é a
sua voz, ou seja, as entonações melódicas e não necessariamente as
palavras - quando se diz algo, a forma de dizer vem junto. E essa forma
varia enormemente, e, muitas vezes, nela aparecem alguns paradoxos
da linguagem - a cada palavra dita, por exemplo, corresponde uma
penumbra de significações que podem obscurecê-la ou até mesmo
negá-la. A voz evidencia também, em variadas situações, o confronto
entre sentimentos e idéias contraditórios dentro e fora de quem fala.
(Algumas reflexões sobre a terapia de voz, 1999).
O que ressoa em nós e nos outros, quando falamos? Sons? Idéias?
Palavras? Imagens? Sensações físicas? Afetos de várias ordens, até
então insuspeitos? De onde falamos?
A intenção de falar é atravessada por assertividades, angústias, desejos
de esclarecimento, poder, sedução, por medo. Nem sempre é possível
discernir a intenção, portanto, faz-se necessária uma disponibilidade de
escuta do terapeuta para além das categorias vocais por ele já
estudadas. Disponibilidade para o que o paciente diz e para o que ele
não diz, mas que transparece em sua voz, em seu modo de expressão,
para que, aos poucos, isso que não se sabe possa ser conhecido, talvez
compreendido. (Algumas reflexões sobre a terapia de voz, 1999).
A queixa de voz está necessariamente comprometida com o uso da voz,
ou seja, surge quando é necessário estabelecer uma comunicação com
o outro. Surge, portanto, na interação verbal (Bakhtin, 1979) - a voz está
implicada com a linguagem oral e é nela que ganha sentido, orgânico
inclusive. Afinal, não há um aparelho fonador já constituído a princípio
no homem. (Algumas reflexões sobre a terapia de voz, 1999).
Neste artigo, vemos uma ênfase na construção social da linguagem para
compreender e trabalhar os problemas de voz que, tradicionalmente, na
Fonoaudiologia, são tomados em sua dimensão orgânica. Quando diz que não há
um aparelho fonador já constituído a princípio no homem, a autora do texto aponta
para o fato de existir um processo histórico em sua constituição – ligado à
construção social da linguagem –
já que os órgãos que o compõem,
originalmente, fazem parte do aparelho respiratório. Essa hipótese associada ao
fato de admitir o atravessamento de outras idéias e desejos no instante mesmo de
um dizer e a necessária presença do outro para que a voz e suas queixas ganhem
sentido, são idéias que nos remetem à categoria de diálogo cruzamento de vozes,
já anteriormente desenvolvida.
Nos artigos agrupados a partir de seus temas principais, observamos
diferentes noções de diálogo em circulação. Vimos que, na conceitualização do
diálogo, há penetração de diversas teorias e conceitos que visam responder às
demandas dos diferentes objetos de análise, aqui representados nas categorias
métodos fonoaudiológicos, transtornos neurológicos, transtornos psíquicos, voz,
escrita, surdez, avaliação de linguagem. Podemos hipotetizar que, para cada um
dos objetos em pauta, a Fonoaudiologia apresenta propostas de métodos clínicos,
ligadas às teorias de base.
Métodos Fonoaudiológicos, categoria que traz discussões sobre princípios
fonoaudiológicos e procedimentos terapêuticos, agrega as noções que mais
aparecem nas demais categorias, a saber, diálogo como propiciador: da cura do
sintoma manifesto na linguagem, do confronto entre funcionamentos de linguagem
e do cruzamento de vozes.
Em Transtornos Neurológicos, o diálogo foi tomado como propiciador: do
confronto entre funcionamentos de linguagem, do cruzamento de vozes e da
observação do estágio cognitivo, na medida em que as bases teóricas de tais
categorias são as que, tradicionalmente, na Fonoaudiologia, proporcionam uma
reflexão sobre os transtornos de linguagem provocados por problemas orgânicos.
Movimento análogo foi observado em Avaliação de Linguagem, que
fundamentalmente, apresentou trabalhos referentes à linguagem de crianças com
atraso de linguagem. Nesta categoria, observamos a presença do conceito de
diálogo como propiciador: da observação do estágio cognitivo e do confronto entre
funcionamentos de linguagem.
Em Voz e Escrita, encontramos o diálogo como propiciador do cruzamento
de vozes que corresponde a uma tendência, observada na área fonoaudiológica,
de considerar a natureza social da linguagem.
O diálogo entendido como interação face a face foi observado nas
categorias cujo foco de análise centrava-se em aspectos tangenciais à linguagem
como vimos em Surdez e Transtornos Psíquicos.
A assunção de uma ou outra noção de diálogo implica diferentes noções de
sujeito que fazem diferença na condução do processo terapêutico, observada
tanto no acolhimento dado ao que o paciente diz, quanto na atribuição de valor às
vozes que circulam no contexto terapêutico. Determinadas escolhas teóricas
contribuem para uma conduta mais rígida do terapeuta no decorrer do processo
terapêutico, levando-o, muitas vezes, a não responder necessariamente ao que
seu paciente diz, mas sim ao que a teoria diz. Vimos que eventuais fragilidades no
domínio do arcabouço teórico e técnico assumido fazem prevalecer ainda uma
outra voz,
a do discurso fundante mais arraigado na Fonoaudiologia, o da
correção das formas lingüísticas baseadas numa determinada norma padrão.
No próximo capítulo, analisamos os sentidos atribuídos ao diálogo nas
dissertações e teses elaboradas no campo da Fonoaudiologia, buscando verificar
se, na elaboração dos trabalhos de pesquisadores em formação, existe a mesma
distribuição de conceitos
aqui encontrada. Mais adiante, veremos se há eco
dessa elaboração teórica na prática terapêutica dos fonoaudiólogos.
CAPÍTULO 4
PRODUÇÃO CIENTÍFICA DA ÁREA
DISSERTAÇÕES E TESES
Trabalhamos
com
dissertações
e
teses
produzidas
no
período
compreendido entre o final da década de oitenta do século XX e o ano de 2001,
data limite da coleta de dados.
Como critérios iniciais de coleta, privilegiamos os trabalhos que continham,
na busca bibliográfica, as seguintes palavras-chaves: Fonoaudiologia, Linguagem,
Clínica, Terapia. O resultado desta busca inicial mostrou-se bastante diverso, nas
bibliotecas centrais das duas universidades consultadas, a saber, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP), antiga Escola Paulista de Medicina.
Encontramos, na PUC-SP, uma lista de dissertações trazendo pesquisas
realizadas não só no Programa de Pós-Graduação da área de Fonoaudiologia,
mas também de áreas afins, como Lingüística Aplicada, Psicologia Social,
Psicologia da Educação, Psicologia Clínica, para onde costumam migrar vários
fonoaudiólogos. Já na UNIFESP, a busca inicial constava de nenhum trabalho.
Nova busca foi feita utilizando-se das palavras-chaves fornecidas pela
própria biblioteca, quais sejam, Fonoterapia e Distúrbios da Comunicação. Tais
termos para busca, no nosso entender, podem já marcar uma diferença de olhar
para a produção científica na área fonoaudiológica: em lugar da linguagem, os
distúrbios da comunicação, possivelmente determinando um foco mais específico
de análise nas patologias que originam problemas de linguagem.
Talvez não por acaso continuamos não encontrando nada na biblioteca
central. A especificidade do trabalho nos levou à biblioteca setorial onde
encontramos os trabalhos voltados para a área fonoaudiológica. Estes visavam,
na grande maioria, a descrição e caracterização de aspectos relacionados aos
distúrbios da comunicação e à população atendida. Como temas desenvolvidos,
podemos citar a especificação de um teste de discriminação auditiva; o
conhecimento de senso comum e senso acadêmico e sua influência no tratamento
da gagueira, do ponto de vista do aluno de Fonoaudiologia; a caracterização da
população atendida pelo serviço das unidades básicas de saúde do município de
Embu; avaliação curricular dos cursos de Fonoaudiologia no Brasil.
Nada havia, porém, dentro do último critério escolhido para esta coleta, qual
seja, trabalhos que discutissem temas relacionados à terapia fonoaudiológica,
tendo como pressuposto o caráter interacional do processo terapêutico. Ainda que
haja trabalhos sobre o tema proposto realizados por fonoaudiólogos em outros
programas de pós-graduação desta instituição, estes não aparecem numa busca
bibliográfica que enfoque a Fonoaudiologia e, portanto, não puderam ser
computados46.
Deste modo, chegamos a um número significativo de trabalhos realizados
por profissionais da fonoaudiologia a partir do levantamento obtido na biblioteca da
PUC-SP, que nos trouxe também um trabalho produzido em outra instituição.
O corpus, então, consta de setenta e uma dissertações de mestrado e seis
teses de doutorado.
É significativa a desproporção encontrada entre dissertações e teses
coletadas para análise. Segundo o Perfil do Fonoaudiólogo do Estado de São
Paulo (1997), 37% dos 4507 fonoaudiólogos entrevistados fizeram cursos pósgraduação. Destes, 92,33% optaram por cursos classificados como de
aperfeiçoamento, aprimoramento, especialização e pós-graduação lato sensu.
Somente 5,48% concluíram mestrado e 1,09%, o doutorado. Embora o Perfil
aponte para uma tendência de aumento no número de mestres e doutores, a
busca maior dos fonoaudiólogos tem sido por cursos destinados à reciclagem
profissional, visando um aprimoramento de seu trabalho clínico.
A baixa porcentagem de fonoaudiólogos mestres e doutores, do nosso
ponto de vista, pode também ser explicada pelo fato de a realização de uma pósgraduação strictu-sensu, na área de Fonoaudiologia, estar relacionada à carreira
acadêmica, que está distante de ser a principal atividade do fonoaudiólogo (ainda
46
Numa busca posterior ao término da coleta e análise dos dados e utilizando-nos de outros caminhos de
navegação na Internet, encontramos uma tese de doutorado, produzida no Programa de Distúrbios da
Comunicação Humana, UNIFESP, cujo título Vamos publicar um livro? A pessoa deficiente auditiva e a escrita
na clínica fonoaudiológica levar-nos-ia a incluí-la no corpus desta tese.
segundo o Perfil, são 3,25% os profissionais que se dedicam à docência
universitária).
A desproporção entre dissertações e teses, encontrada na coleta, deve-se
ainda ao fato de termos, na área, um único programa de estudos pós-graduados,
nível doutorado, a saber, Programa de Distúrbios da Comunicação Humana, da
UNIFESP, cujas linhas de pesquisa enfocam prioritariamente aspectos orgânicos
da comunicação humana47. Profissionais que optem por desenvolver suas
pesquisas em linhas teóricas diversas, vinculam-se a outras áreas de
conhecimento. As mais procuradas têm sido Psicologia, Lingüística Aplicada,
Educação,
seguidas
por
Saúde
Pública,
Comunicação
e
Semiótica
e
Neurociências.
O fato de o Programa de Distúrbios da Comunicação Humana não incluir,
em suas linhas de pesquisa, visões socio-interacionistas
de linguagem é
indicativo da ausência de teses advindas desse programa em nosso corpus48.
Interpretação semelhante pode ser feita quanto à elaboração de teses em
programas inseridos em outras áreas de conhecimento. Embora suas linhas de
pesquisa possam contemplar visões teóricas que alimentem a construção do
conhecimento fonoaudiológico, não é característica da maioria desses programas
a discussão da dimensão clínica da linguagem. Isto pode levar os pesquisadores
da área a desenvolverem seus trabalhos em enfoques mais próximos dos
47
Em ata da sessão ordinária do Conselho Universitário da UNIFESP, realizada em 16 de junho de 2003,
consta a aprovação da criação do Departamento de Fonoaudiologia composto pelas disciplinas de Distúrbios
da Comunicação Humana e Audiologia. A comissão designada a dar o parecer relativo à criação do
Departamento enfatiza a evolução do curso de Fonoaudiologia, hoje com departamento próprio e o ensino
em Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana. A ênfase das linhas de pesquisa nos aspectos
orgânicos da comunicação humana fica transparente na seguinte afirmação expressa no documento: Estas
atividades de fonoaudiologia em nossa universidade trazem uma contribuição social expressiva, reintegrando
diariamente na sociedade pessoas que perderam, de uma forma ou de outra, a eficiência dos órgãos que nos
propiciam a comunicação verbal e que antes eram condenadas a viver na dependência de terceiros ou de
recursos públicos onerando a Sociedade. (...) Este departamento [Fonoaudiologia] juntamente com os
departamentos de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Oftalmologia, Neurologia e Psiquiatria
formará uma sólida estrutura no campo das Ciências dos Distúrbios da Comunicação. (site oficial da
UNIFESP)
48
Com exceção da tese anteriormente mencionada, outras produzidas, neste Programa, desenvolvem temas
como: Teste de escuta dicótica de dissílabos (SSW) e teste dicótico não verbal em pacientes epiléticos;
Diagnóstico fonoaudiológico: reconhecimento semântico e reconhecimento de frases acusticamente
distorcidas (PSI) em paralíticos cerebrais; Da disfunção vestíbulo-oculomotora em crianças com migrânea
sem áurea à vestibulometria com vectoelectronistagmografia digital; Análise perceptivo-auditiva e acústica da
emissão de vogal sustentada falada e cantada de regentes de coral; Eletromiografia: avaliação dos músculos
orbiculares da boca em crianças respiradoras bucais, pré e pós mioterapia, entre outros.
programas aos quais estão vinculados, distanciando-se do tema proposto para
esta tese.
Procuramos dividir as pesquisas selecionadas nas mesmas categorias
utilizadas na análise dos artigos, com algumas modificações necessárias para
contemplar temas que não apareceram nos artigos. Por este motivo, as categorias
Surdez e Transtornos Neurológicos sofreram fusão e ampliação, agora sob a
denominação Transtornos Orgânicos e/ou Neurológicos.
Assim, em ordem decrescente de produção, temos49:
•
Métodos Fonoaudiológicos: Reúne trinta e quatro dissertações e teses
que abordam temas relativos ao contexto terapêutico individual e grupal
fonoaudiológico, compreendendo: aspectos específicos do processo
terapêutico, uso de técnicas, métodos de abordagem terapêutica, relação
terapeuta-paciente, relação entre o fonoaudiólogo e outros profissionais,
relação entre as áreas de conhecimento. Reúne também pesquisas que
teorizam sobre problemas de linguagem sem etiologia orgânica.
•
Transtornos Orgânicos e/ou Neurológicos: Reúne dissertações que
abordam trabalhos com pacientes portadores de patologias com tais
características, tais como: paralisia cerebral, afasia, fissura lábio-palatina,
síndrome de Down e surdez. Cabe salientar o alto índice de trabalhos cujo
interesse centra-se no estudo da surdez e suas implicações terapêuticas.
Dos dezenove trabalhos, total da categoria, dez são sobre este tema.
•
Avaliação Fonoaudiológica: Reúne dissertações e teses que abordam
temas relativos, fundamentalmente, ao momento inaugural do processo
terapêutico. São oito os trabalhos nesta categoria.
•
Escrita: Reúne dissertações que discutem a linguagem escrita na clínica
fonoaudiológica. São seis pesquisas.
49
Os quadros que trazem discriminadamente as dissertações e teses analisadas estão no anexo 3.
•
Família: Reúne dissertações que enfocam a relação entre o terapeuta e a
família de seus pacientes. São ao todo cinco trabalhos.
•
Transtornos
Psíquicos:
Reúne
dissertações
que
abordam
especificamente o trabalho fonoaudiológico com pacientes com tais
transtornos, no caso desta amostra, a psicose infantil. São ao todo três
trabalhos.
•
Voz: Reúne uma dissertação e uma tese que discutem a voz na dimensão
terapêutica. São dois trabalhos.
O gráfico 5 nos mostra a distribuição das dissertações e teses por
categorias:
Explicitando, por categoria, o número de dissertações e teses
produzidas, temos a seguinte configuração, como nos mostra o gráfico 6:
A maior parte das teses de doutorado produzidas (80%) encontra-se na
categoria de Métodos Fonoaudiológicos. São trabalhos que teorizam sobre temas
ligados a princípios e procedimentos terapêuticos da área, valendo-se das
contribuições advindas de outras áreas de conhecimento. Esse dado reforça a
idéia, já defendida anteriormente, de que a vinculação a um Programa de PósGraduação
de
outra
área
de
conhecimento
leva
os
pesquisadores
a
desenvolverem, em seus trabalhos, temas pertinentes ao campo fonoaudiológico,
respeitando as perspectivas adotadas nas linhas de pesquisa próprias dos
programas escolhidos. É compreensível, então, que as teses (assim como as
dissertações realizadas em outros programas que não os de Fonoaudiologia) que
apareceram em nossa coleta, advenham dos Programas de Lingüística Aplicada e
Psicologia (Social, Clínica e da Educação), cujas linhas de pesquisa possibilitam a
reflexão da dimensão clínica da linguagem.
Vejamos o gráfico 7 das dissertações e teses produzidas em outros
programas:
Na medida em que os temas das pesquisas enfatizam aspectos mais
específicos da linguagem (ver anexo 4), o programa escolhido tende a ser o de
Lingüística Aplicada.
No que diz respeito ao tema central desta tese, o diálogo na clínica
fonoaudiológica, não encontramos nenhum trabalho em todo o corpus que o
abordasse
especificamente
como
parte
da
metodologia
terapêutica
fonoaudiológica.
Submetido ao exame do léxico, por meio do Word Smith Tools (conforme
explicitado na Metodologia), o corpus nos revela que nosso conceito tema,
diálogo, é tomado majoritariamente nas acepções de conversação, interação
diádica, seqüência de turnos conversacionais, desmerecendo maior detalhamento
em sua conceitualização.
Se tomarmos as categorias de diálogo trabalhadas no capítulo
anterior, quais sejam, intercâmbio entre teorias; a cura do sintoma manifesto
na linguagem por ele mesmo;
confrontação entre funcionamentos de
linguagem; cruzamento de vozes; forma de observação do estágio cognitivo,
veremos que é a idéia de intercâmbio entre teorias e entre teoria e prática a
mais recorrente nas pesquisas analisadas. E a maior incidência dessa
concepção de diálogo concentra-se na categoria Métodos Fonoaudiológicos,
evidenciando
a
busca
da
interlocução,
ainda
tão
necessária
à
Fonoaudiologia, com diferentes áreas de conhecimento.
Foram pouco expressivas em termos quantitativos50 e qualitativos as
aparições do termo diálogo e de relação dialógica numa concepção diversa
da citada acima.
É em Transtornos Orgânicos e/ou Neurológicos, que o termo diálogo mais
aparece em concepções diversas: confrontação entre funcionamentos de
linguagem e cruzamento de vozes.
Vejamos o fragmento:
A visão de linguagem está em posição de diálogo e ao da palavra,
isto é, o papel do interlocutor não é neutro, não é de treinador. A
criança adquire linguagem por sua inserção na língua. O adulto
interpreta a criança como forma de dar sentido dentro do que ele
próprio está submetido. (Processo terapêutico na clínica
fonoaudiológica: estudo do caso de uma criança com síndrome de
Down, 1999)
Na citação acima, a explicitação da visão de linguagem vem na
perspectiva de respaldar o papel atribuído ao adulto como interlocutor. A
idéia de que ele interpreta a criança está ancorada na visão interacionista de
linguagem, discutida anteriormente, sem trazer nenhuma problemática nova
à questão.
Passemos para os outros fragmentos:
(...) diálogo na perspectiva histórica, interlocução com o afásico
como possibilitadora de reconstrução de sua linguagem. A terapia
fonoaudiológica fundamenta-se principalmente na relação
dialógica terapeuta/paciente tomando caminhos os da história
enquanto narração e a memória enquanto refacção da história
vivida. (A narração do afásico:busca de um caminho em
fonoaudiologia, 1992)
50
Em números absolutos o termo diálogo aparece 15 vezes em todo o corpus. Para se ter uma idéia da
dimensão diminuta desse número, basta compará-lo ao termo de maior recorrência, linguagem, com 585
aparições. O maior número de combinações com esse termo é feito com as palavras clínica e terapia. A idéia
de clínica/terapia de linguagem está vinculada à também freqüente expressão alterações/sintomas/distúrbios
de linguagem.
A partir do deslocamento aqui proposto [partir da neurolingüística de
cunho discursivo para o estudo da linguagem escrita nas afasias],
devem ser levadas em conta, tanto na oralidade quanto na escrita, as
categorias que são próprias aos momentos discursivos: o jogo dialógico,
a
construção
conjunta
da
significação,
a
intersubjetividade,
a
intercompreensão, a interdiscursividade, as condições e modos de
produção da linguagem escrita e oral, os aspectos históricos-culturais da
sociedade escrita e sua influência na oralidade. Assim, a compreensão
da linguagem (oral e escrita) como essencialmente dialógica faz com
que a escrita e a leitura também sejam vistas como um trabalho
conjunto, uma parceria entre sujeitos, resultantes dessa dialogia própria
da linguagem.(O lugar da linguagem escrita na afasiologia: implicações
e perspectivas para a Neurolinguística, 1999)
Assim como na análise dos artigos, são em pesquisas ligadas à linguagem de
afásicos que encontramos uma atenção um pouco mais dirigida à questão do
diálogo no processo terapêutico, provavelmente imposta pela dificuldade de
interlocução observada nos sujeitos afásicos. A perspectiva da última dissertação
citada põe em cena uma discussão que, do nosso ponto de vista, falta na área e
muito viria a contribuir para elucidar o conceito de diálogo em nossa atividade
terapêutica.
Não é apenas uma coincidência o fato de essa dissertação ter sido produzida num
programa de estudos pós-graduados em Lingüística Aplicada. A maior parte das
pesquisas, como veremos a seguir, sugere-nos que a preocupação dos
pesquisadores da área incide sobre conceitos da clínica da subjetividade, dentre os
quais, com vimos anteriormente, a relação dialógica não faz parte.
Para reafirmar essa nossa posição, tomemos um fragmento de dissertação
pertencente à categoria Métodos Fonoaudiológicos:
(No decorrer das sessões terapêuticas, sr P. fazia questão que eu o
conhecesse através da sua história de vida, através das experiências que
ele um dia vivenciou e que possibilitaram que ele se tornasse o sr. P.)
P: Acho que eu tô precisando fazer um pouco de exercício, vai me
ajudar! Minha voz tá entupida! Eu num trouxe texto, vamos ver o
caderno? (me mostra o caderno que no início do processo terapêutico
nós usávamos para anotar alguns exercícios)
T: (pego o caderno e começo a folhear e a olhar juntos) Nossa! Quanta
coisa já passamos juntos!
P: (risadas) Faz tempo ne! A senhora tá ficando velha! (risadas)
T: Quem tá ficando velha?
P: A senhora! (risadas)
T: Eu!!!
P: Como passa o tempo não! Vai fazer dois anos que começamos! Vai
fazer três anos que eu fui operado!
T: O senhor lembra o que o senhor não gostava de fazer aqui?
P: Eu num gostava de escrever...de ficar na frente do espelho...
(...)
P: No começo a gente fazia mais exercícios...
T: Deixa eu ver, é.. nos primeiros seis meses! Faz muito tempo que a
gente está na leitura dos textos e nas conversas ... o que o senhor tá
achando?
P: Tá bom! Eu pronuncio melhor as palavras... Quando eu fico nervoso
fica ruim de eu falar direito! Eu tenho que me acostumar a falar mais
calmo, ler mais calmo! As meninas falam pra eu falar mais devagar.
T: O que o senhor sente quando elas fazem isso?
P: Eu sinto que elas estão me ajudando a corrigir, pra eu falar melhor.
(...)
P: eu num me importo que a voz não saia bem, eu quero que os outros
me entendam...eu num tenho do que reclamar...a vida é tão boa!
T: O que é a coisa mais gostosa da vida?
P: A amizade, a amizade é a coisa mais gostosa da vida! A gente tendo
saúde e amizade, não falta mais nada na vida! (risadas) Eu comecei a
trabalhar com oito anos e não parei mais.. eu casei de novo e vi o
patrão desprezar um doente.. eu falei pro meu pai, vamos embora! O
patrão só quer a gente com saúde, quando ficar velho ele vai desprezar
também... olha aquilo me doeu por dentro! Eu tinha casado fazia um
ano e meio! Se o senhor ficar doente o que vai acontecer ! Só quer nóis
com saúde! O meu pai não quis...
Um aspecto importante no processo terapêutico do sr. P., era investir
num
trabalho
funcional,
ou
seja,
precisávamos
exercitar
o
direcionamento do fluxo aéreo nasal para a cavidade oral através de
técnicas que utilizassem a função articulatória. Mas o seu desejo não era
falar perfeitamente, mas sim poder voltar a habitar sua boca como um
ser que tinha história (...)
Na relação terapêutica, o terapeuta e o paciente fazem parte de um
processo no qual cada um está sendo criado e descoberto pelo outro.
Essa mutualidade e reciprocidade é muito mais do que mera relação
dialógica (...)
(A função terapêutica na clínica fonoaudiológica: um estudo de caso,
2001)
Em detrimento de todo um processo de construção conjunta de um conhecimento,
a atividade dialógica é aqui classificada pela autora da dissertação como mera,
sendo-lhe, então, atribuído o sentido de interação face a face. Mais adiante, na
mesma dissertação, encontramos a seguinte passagem:
Um aspecto fundamental nesse tipo de trabalho foi poder estar atenta
às comunicações pré-verbais do sr. P., para poder compreender
elementos que só se manifestam ao nível pré-verbal, ao nível do ato.
Visando a evolução do sr. P. a partir da clínica do self, pude contemplar
nele, as concepções a respeito da vida, do estar no mundo e das
características etno-culturais que fundamentam a subjetividade do sr.
Pedro e do seu vir-a-ser na relação com o outro.
(A função terapêutica na clínica fonoaudiológica: um estudo de caso,
2001)
O desconhecimento ou desconsideração a uma concepção de linguagem que
considere fatores históricos e sociais, num processo dialógico por excelência, em
que sejam considerados aspectos verbais e extra-verbais para a produção de
sentidos, levou a autora dessa dissertação a acreditar que a abrangência
pretendida, em seu trabalho terapêutico, só seria possível a partir de um conceito
psicanalítico, qual seja, o da clínica winnicottiana do self.
Veremos, na seqüência desse capítulo, que a postura assumida pela autora dessa
dissertação não se diferencia da maioria dos outros pesquisadores da área: em
nome da comprovação de conceitos assimilados, no campo da Fonoaudiologia e
áreas afins, deixa-se de indagar novas problemáticas que se nos apresentam.
E o que encontramos, então, como produção científica da área
fonoaudiológica nas dissertações e teses, no enfoque determinado?
Tomando o conceito de ciência normal de Thomas Kuhn (1962: 29),
entendemos que a produção científica de pesquisadores em formação, que
desenvolvem mestrado ou doutorado no âmbito da Fonoaudiologia,
caracteriza-se por uma pesquisa firmemente baseada em uma ou mais
realizações científicas passadas cujo objetivo é a articulação de fenômenos
e teorias já fornecidos pelo paradigma no qual a pesquisa está baseada. Em
outras palavras, quando comparada à produção científica de pesquisadores
seniores (publicada em livros e periódicos especializados) vemos que há
uma forte tendência em se reiterar conceitos nela desenvolvidos.
Do nosso ponto de vista, é isso que justifica encontrarmos, entre as
dissertações, fundamentalmente, uma retomada do caminho percorrido pelo
profissional para justificar sua filiação teórica. É a necessidade da
reafirmação constante da assunção de um novo paradigma.
Como era de se esperar, esta retomada foi observada na categoria
Métodos Fonoaudiológicos. Vejamos os seguintes fragmentos:
(...) Neste momento do meu fazer clínico [inicial], vejo o sujeito como
sendo o responsável por sua linguagem (e suas alterações) e desta
forma, sua história de vida está em segundo plano. Considero a
presença de uma competência lingüística em cada criança e para tanto o
meu papel seria o de propiciar situações para a utilização (e ativação) de
sua linguagem, já instituída. Conjuntamente e contrapondo-se a teoria
inatista, também aplicava-se a minha prática clínica alguns dos preceitos
da teoria behaviorista de Skinner ou teoria comportamentalista (...)
Busquei conhecer e entender mais profundamente os pressupostos
teóricos dos processos de aquisição e desenvolvimento da linguagem e
suas contribuições clínicas. (...)
Desta forma, a partir de uma
necessidade do meu "fazer clínico", começou a ganhar valor uma
concepção de linguagem, onde "a constituição do conhecimento e a
constituição da linguagem são um processo de partilha: os aspectos
fonológicos, sintáticos e mesmo semânticos são negociados pelos
interlocutores" (DE LEMOS, 1982). A linguagem, segundo essa corrente
teórica é sócio-construída, ou seja, "é através da linguagem, enquanto
AÇÃO SOBRE O OUTRO (ou procedimento comunicativo) e enquanto
AÇÃO SOBRE O MUNDO (ou procedimento cognitivo) que a criança
constrói a linguagem, enquanto OBJETO sobre o qual vai poder operar"
(DE LEMOS, 1989, p.120).
[Num momento posterior a estas reflexões] este "fazer clínico" começou
a acontecer sob um olhar mais observador e critico, impulsionado pelos
pressupostos
teóricos
sócio-construtivistas
de
aquisição
e
desenvolvimento de linguagem e por uma visão contextualizada de
cliente, o que conduzia a uma clínica bastante diferente da inicial.
(Prática e teorização na Clínica Fonoaudiológica: relato de uma
vivência, 1997).
A clínica fonoaudiológica, aqui tomada na sua dimensão de clínica da
linguagem, traz em sua prática ao longo do tempo a concepção de
linguagem enquanto instrumento de comunicação. (...) Tomar a
linguagem como instrumento de comunicação significa conceber que
sujeitos já constituídos utilizam a linguagem como um código que
possibilita a comunicação, código este que, comum a todos os falantes,
deveria possibilitar uma comunicação perfeita. Dessa maneira se faz
possível então, pensar na possibilidade de uma simples ‘adequação’
desse instrumento que num determinado momento não está servindo de
forma satisfatória à sua função.
Neste trabalho, me proponho a refletir acerca da clínica fonoaudiológica
a partir de uma outra concepção de linguagem (...). Vejo a linguagem
como estruturante do sujeito. É ela que marca e interpreta o indivíduo
desde o nascimento colocando-o numa rede de sentidos que possibilita
a emergência do sujeito. (...) Ao vermos a linguagem como fundante
desta [da subjetividade] se faz absolutamente necessário repensarmos a
Fonoaudiologia e seus ‘pilares de sustentação’. (Entre o olhar, o sentir e
o escutar: um estudo sobre o fenômeno transferencial na Clínica da
Linguagem, 1998).
Idéias contidas, nestas passagens, tais como constituição da linguagem como
processo de partilha; visão contextualizada de cliente; linguagem como
estruturante do sujeito, ou ainda, linguagem como fundante da subjetividade, têm
sido foco de debate na Fonoaudiologia há, pelo menos, uma década. O estatuto de
constitutividade da linguagem ou de uma subjetividade fundada na linguagem
permeia, desde então, o discurso fonoaudiológico. Palladino (1991), procurava, já
nesta época, repensar a Fonoaudiologia, caracterizando o desenvolvimento da
clínica fonoaudiológica, a partir de concepções de linguagem assumidas, tais como
a de representação da realidade e a de [a linguagem ser] constitutiva da
realidade.
Para a autora, a assunção da linguagem como representação leva os
profissionais a compreenderem a linguagem como reflexo de um real já préexistente, tornando-se imobilizante. Conhecida a patologia e suas características,
conhecida está também a linguagem do paciente. O fazer e o dizer apresentam-se,
nesta concepção, como dois domínios independentes, entre os quais não há
reciprocidade observável em quaisquer contextos, inclusive o clínico. Já a assunção
da idéia de constitutividade, ainda segundo a autora, possui um poder
revolucionário, por ser a linguagem força propulsora na construção de todo e
qualquer devir (Palladino, 1991: 139).
No cenário clínico, isso se traduziria na singularização de um fenômeno – a
patologia da linguagem – na figura do paciente e na possibilidade de
transformação deste estado patológico. É Palladino (1991: 145) quem diz:
A pessoa (a quem cabe a terapêutica, ‘o paciente’) é a fonte da
singularização absoluta destes fazeres e dizeres já particularizados no
fenômeno. (...) Na situação clínica, o fonoaudiólogo traz consigo este
particular ‘geral’ [trazido pelo estudo do fenômeno] e, ao mesmo tempo,
toma para si o particular ‘particular’ [trazido pelo estudo da pessoa], que
ao serem recriados (reinterpretados) nessa partilha, promovem a
construção de um caminho terapêutico único.
A busca de um caminho terapêutico único e a necessidade de se considerar o sujeito,
sua história e, a partir daí, compreender as alterações observadas em sua linguagem, ainda
têm levado fonoaudiólogos, em suas pesquisas, a justificarem suas filiações teóricas em
visões não reducionistas de linguagem.
Mesmo que um conceito esteja sendo trabalhado por pesquisadores que pensam os
princípios e métodos fonoaudiológicos, o que deveria valer para a comunidade científica da
área, o que nos mostram as pesquisas é que esse mesmo conceito é desenvolvido
repetidamente pelos profissionais que atuam em diferentes segmentos do campo
fonoaudiológico. É o reconhecimento de realizações científicas passadas proporcionando os
fundamentos para a prática posterior que se concretiza como continuação de uma pesquisa
determinada.
É o que vemos na categoria Transtornos Orgânicos e/ou Neurológicos. A recusa
em reduzir os sintomas de linguagem a aspectos orgânicos e articulatórios revelou-se o
mote, consensual na amostra analisada, para a realização das pesquisas na área, que giram
em torno da justificativa da escolha do novo aporte teórico.
Tomemos os seguintes fragmentos:
Tendo como lugar de reflexão a minha atividade clínica, proponho-me a
discutir um outro vértice desse atendimento - o da linguagem. Mostro
que é a adoção de uma concepção de linguagem, no caso o
Interacionismo em Aquisição de Linguagem, que diferencia o trabalho
fonoaudiológico daquele realizado pelo fisioterapeuta. Desta forma os
benefícios da técnica de manuseio oral e global da abordagem Bobath
ficam restritos ao seu objetivo específico, isto é, a adequação das
alterações motoras e sensoriais.
A minha opção por uma teoria interacionista foi determinada em função
do papel estruturante do adulto – enquanto instância da língua
constituída – no processo de aquisição da linguagem. Segundo o
interacionismo, é pela interpretação do adulto, pela interação da criança
com a linguagem, em funcionamento no adulto, que esta é inserida no
simbólico. É nesse sentido que esta teoria possibilita uma outra saída
para a criança afetada e sua família. E também, um outro lugar teóricoclínico para o fonoaudiólogo. É pela possibilidade de ser falada pelo
outro, via atividade interpretativa, que a criança pode ocupar uma outra
posição, distinta daquela que é delimitada pelos sintomas da patologia.
(Paralisia Cerebral na Clínica Fonoaudiologia: Primeiras Questões sobre
Linguagem, 1996).
(...) Propostas de trabalho com crianças surdas concentram-se em
discussões metodológicas, investindo no aspecto acústico-articulatório.
Porém, o que se vê são intermináveis anos de atendimento com
resultados, na maioria das vezes, bem insatisfatórios.
Será que o empenho em superar os obstáculos perceptuais na criança
surda é suficiente para lidar com a questão da linguagem que nela se
instala na sua interação com seu interlocutor ouvinte? Acredito que não.
Refletir sobre a linguagem no trabalho com a criança surda é necessário
à
medida
em
que
há
um
compromisso
com
sua
fala
e,
conseqüentemente, com alguma concepção de linguagem. É esta
filiação que determina o entendimento sobre a natureza do processo de
aquisição de linguagem e do papel do outro na relação da criança com a
língua, questão de suma importância para um profissional que ocupa um
lugar/posição específico em relação à linguagem na sua atuação.
((Res)Significando a questão da linguagem no trabalho com a criança
surda, 1998)
(...) O sujeito é, na relação dos dizeres, assujeitado pela linguagem; ou
seja, o dizer das falas dos pais ganha sentido no discursivo – no dizer
do outro. Daí percebe-se através do discurso dos pais, que foram eles
os primeiros a observar o sinal da surdez, e sente-se como este
diagnóstico da deficiência interfere na vida, e no desenvolvimento psicosocial e na integração da família. A teoria interacionista proposta por De
Lemos é identificada como lugar que leva em conta a questão da
linguagem em sua autonomia. A partir do entendimento da linguagem
como funcionamento, noções e procedimentos adotados na ‘orientação’
do atendimento à criança surda são repensados. (Os Efeitos do
Diagnóstico nos Pais da Criança Surda: uma Análise Discursiva, 2001).
A necessidade de se pontuar as especificações de uma terapia de linguagem
em contrapartida à premência da adequação dos aspectos orgânicos, imposta
tanto pela própria Fonoaudiologia como por áreas tangenciais, fez com que esta
nova orientação fosse não só assumida pelos fonoaudiólogos mas retomada
sempre no mesmo patamar. Observemos que a última citação data de 2001,
sendo portanto uma pesquisa recente. No entanto, ela apresenta a teoria
interacionista proposta por De Lemos como uma alternativa para que o trabalho
fonoaudiológico com o surdo possa ser repensado, desconsiderando ou ainda
reiterando o mesmo enfoque que já tenha sido desenvolvido numa pesquisa
anterior.
O movimento de reiteração de conceitos concernentes a um paradigma foi
observado constantemente nas diferentes categorias. Vejamos o que acontece
com o conceito de lugar do terapeuta na clínica da linguagem.
Vimos, em capítulo anterior, que a clínica da subjetividade instaurou novas
discussões em torno do tema, cabendo ao terapeuta o papel de intérprete
diferenciado dos falantes comuns, com a função de dar clareza à opacidade dos
sintomas da fala de seu paciente.
Nas dissertações e teses, esse conceito foi retomado da seguinte forma:
Em Métodos Fonoaudiológicos:
[a tomada de posição sócio-construtivista] constitui o fonoaudiólogo
como aquele cuja prática se apóia numa visão de que sua própria
linguagem vai ser estruturante da linguagem do Outro – o sujeito da
terapia fonoaudiológica. (A abordagem dialógica – uma proposta social
em Fonoaudiologia, 1990).
Ao atribuir à clínica da linguagem a condição de ser um espaço da fala
do outro desloca-se o terapeuta de lugar. Ele passa de seu lugar
tradicional de ‘modelo de fala’ para um lugar de ‘escuta’. (Entre o olhar,
o sentir e o escutar: um estudo sobre o fenômeno transferencial na
clínica da linguagem, 1998).
(...) o fonoaudiólogo ocupa um lugar de não-saber, pois não é possível
determinar imediatamente, como na Medicina, se tal manifestação é ou
não patológica. O que pode ser alçada é a descrição do funcionamento
da linguagem do sujeito e o efeito da interpretação do terapeuta sobre
esta. (Os Sentidos do Sintoma na Clínica Fonoaudiologia, 2000).
(...) o lugar do terapeuta é definido como sendo aquele que vai propiciar
um encontro com o paciente testemunhando o lugar do servir, do
interlocutor. Assumindo um lugar de ouvir o paciente como um ser
histórico, o terapeuta abre espaço para o aparecimento do self, para o
acontecimento
humano.
(A
Função
Terapêutica
na
Clínica
Fonoaudiológica: um estudo de caso clínico, 2001).
Citações de pesquisas produzidas de 1990 a 2001 não apontam necessariamente
para um aprofundamento do conceito de lugar de terapeuta apresentado pela
clínica da subjetividade. A pesquisa, nessa perspectiva, tem funcionado mais como
uma senha para pertencer a uma mesma comunidade científica que para
desvendar novos desafios impostos à área. Segundo Kuhn (1962: 30),
comprometimento e consenso aparente às teorias que compõem um paradigma
são pré-requisitos para o ingresso numa comunidade científica. Reunindo-se a
outros membros dessa comunidade o novo integrante raramente provocará, com
sua prática, desacordos sobre aspectos fundamentais do paradigma. Se, por um
lado, isso vem a fortalecer o paradigma em questão, por outro, não há espaço
para problemas que já não estejam previstos pelo paradigma.
Nesse sentido é compreensível que, em pesquisas das diferentes
categorias, reapareça o conceito (ou problema) da mesma forma.
Em Avaliação da Linguagem:
O fonoaudiólogo, em sua atividade clínica, lida com uma face da
linguagem bastante peculiar: a fala que, em sua dimensão patológica,
produz naquele que escuta um efeito de frustração e perplexidade.
(Diagnóstico e Clínica de Linguagem, 2001).
Em Voz:
(...) além dos conhecimentos específicos [arsenal técnico-teórico que o
fonoaudiólogo necessita adquirir sobre a patologia ou o distúrbio e seu
respectivo tratamento], necessitava compreender a singularidade de
cada paciente (...) (Processo terapêutico na Clínica das disfonias –
constituição de um espaço potencial na relação terapêutica, 2000).
Movimento semelhante é observado quanto ao conceito de sintoma de
linguagem. Observemos novamente fragmentos por categorias:
Em Métodos Fonoaudiológicos:
A abordagem dialógica [proposta pela autora] entende os desvios de
linguagem como indícios de subjetividade, como marcas da história
interacional do sujeito, cuja significação precisa ser buscada.(A
abordagem dialógica – uma proposta social em fonoaudiologia, 1990).
(...) entende-se que a leitura do sintoma de linguagem, no processo
diagnóstico, abrange dois caminhos: um, em relação à interpretação do
aspecto estrutural (no tocante às diversas instâncias de estrutura da
linguagem do sujeito) e outro, referente à apreensão do sentido do
sintoma para cada elemento desta estrutura (pai, mãe, criança). (...) O
que pode ser alçada é a descrição do funcionamento da linguagem do
sujeito e o efeito de interpretação do terapeuta sobre esta. (Os Sentidos
do Sintoma na Clínica Fonoaudiológica, 2000)
Em Voz:
Ao me deparar com os pacientes, intrigava-me com os possíveis
significados de seus sintomas, já que a demanda de minha clínica se
constituía, predominantemente, de pessoas que não apresentavam
alterações orgânicas que justificassem os distúrbios presentes [aqui o
conceito de sintoma é revozeado das palavras de Cunha (1995:49),
tanto na presença quanto na ausência de disfunções somáticas, a
dimensão psíquica não pode ser desprezada, isto é, o sintoma precisa
ser também considerado como linguagem] (Processo Terapêutico na
clínica das disfonias – constituição de um espaço potencial na relação
terapêutica, 2000).
Em Família:
A história de Caio e de sua mãe revela íntima relação entre o
sintoma de linguagem manifesto e a inserção do sujeito no
contexto familiar. (...) o sintoma é a forma encontrada pelo sujeito
para denunciar a sua angústia perante a situação de desajuste
familiar na qual ele se encontra. (Implicações da Família nos
transtornos de linguagem: um estudo de caso, 1999).
Uma outra característica da ciência normal, que pode ser observada nas
citações acima, é dar como pressuposto que a comunidade científica tem os
mesmos conhecimentos e conhecem o mundo de uma mesma forma. Bastando a
explicitação de alguns conceitos que identifiquem os pesquisadores como
membros de uma mesma comunidade, o resto é dado como pressuposto pela
área, de modo a se dispensar maiores explicações sobre possíveis divergências.
O que funciona como a senha de identificação da comunidade científica
apresentada até então é a assunção da linguagem como estruturante do sujeito,
uma das teses centrais da teoria interacionista proposta por De Lemos, na área da
Aquisição da Linguagem.
A
escolha
desta
teoria
parece
justificar-se
pelo
anseio
da
área
fonoaudiológica em circunscrever seu objeto, qual seja, as manifestações
patológicas da linguagem dita patológica. Como pudemos observar nas citações
acima, a singularização quer do paciente, quer do processo terapêutico exigem
uma visão de linguagem não homogeneizante. Para De Lemos (1992, 1994), como
vimos em capítulos anteriores, não é possível falar em padronizações da
emergência da linguagem, na medida em que a homogeneização da produção
lingüística não é observada nem mesmo numa única criança. Aqui, o erro não
parte da noção de regularidade e sim da de singularidade. Singularidade
reconhecida por De Lemos, na medida em que a autora entende o erro como
sendo um dos possíveis funcionamentos da língua, extensivo a toda e qualquer
manifestação que se diferencie da língua constituída. Se,
na
Aquisição
de
Linguagem, o erro está atrelado à idéia de mudança em relação a um estado
anterior da produção lingüística de uma mesma criança, na Fonoaudiologia, esta
idéia de particularização trouxe nova luz à conceitualização de erro/sintoma de
linguagem.
Embora todos os trabalhos até agora citados partam da assunção inicial de
uma visão interacionista de linguagem, o conceito de erro não pode ser
considerado como uma conseqüência direta desta visão. Grosso modo, poderíamos
afirmar que, por um lado, temos fonoaudiólogos empenhados em relacioná-lo ao
universo lingüístico e, por outro, ao psicanalítico.
Retomando algumas idéias discutidas em capítulo anterior, Rubino e
Fonseca (1998: 1), ao abordarem a linguagem patológica, apresentam a idéia de
estranhamento – uma qualidade diferente entrevista como patológica, por um
falante leigo, de uma produção lingüística qualquer -, como a busca de um
atendimento terapêutico. Segundo as autoras, há estranhamento quando há,
simultaneamente, familiaridade e diferença. Para as autoras, a distinção entre o
normal e o patológico será produzida no espaço clínico propriamente dito, cabendo
ao fonoaudiólogo discernir, neste estranhamento inicial, o que justificaria a
intervenção desse profissional. Enumerando alguns dos pressupostos desta visão,
temos:
1. Somos todos falantes assujeitados, capturados pela estrutura da língua.
2. O erro é tomado como um dos possíveis funcionamentos da língua.
3. É o terapeuta que vai discernir, no espaço clínico, o normal do
patológico.
Sendo o erro considerado um funcionamento possível e, portanto, não parece
haver nada que a estrutura da língua não suporte, a distinção entre o normal e o
patológico recairá sempre para a escuta – impregnada por diversos fatores – de
sujeitos, independente do funcionamento da língua e ainda que submetidos a ela.
Quais os critérios, então, para a classificação do patológico?
Talvez esse seja um dos problemas que o mundo imponha à área
fonoaudiológica, mas que as pesquisas dentro da ciência normal acabam por
suprimir por subverter seus compromissos básicos.
E um dos compromissos
básicos do paradigma aqui discutido é a noção de sujeitos enquanto instâncias de
funcionamento de linguagem.
Como dissemos há um outro universo ao qual está relacionado o sintoma de
linguagem: o psicanalítico. A incorporação dessa perspectiva não invalida a
assunção da teoria de linguagem citada anteriormente, como vemos em Cunha
(1997: 30):
A adoção de uma teoria de linguagem que favoreça a ‘reflexão teórica’
sobre os distúrbios da linguagem não é condição suficiente para a
interpretação fonoaudiológica dos sintomas singulares manifestos na
linguagem. Eis aí um deslize: uma condição necessária ao campo
fonoaudiológico foi tomada como suficiente.
Estamos, no entanto, diante de outra noção de sintoma de linguagem. Nesta linha,
Tassinari (1995), citada em todas as dissertações que desenvolvem este tema, diz
que as contribuições freudianas são inúmeras no campo das ciências humanas,
especificamente no campo terapêutico, demonstrando que muitos sintomas
emergentes no corpo podem ser constituídos por uma lógica inconsciente.
Do mesmo raciocínio parece partilhar Cunha (1997: 51-53), quando apresenta
alguns de seus pacientes, dos quais destacamos, a título de ilustração:
A menina surda que agredia todos que não a compreendessem
oralmente, indo depois refugiar-se no colo da mãe; a moça que
engordava e emagrecia na proporção inversa ao aparecimento de suas
crises vocais; a moça judia que detestava sua própria voz, por achar
parecida com a voz da mãe.
Sintomas que se manifestam na linguagem, ou ainda, dito de outra forma, a
linguagem como o lugar do sintoma. Para ambas as autoras, impossível
desconsiderar a existência de representações psíquicas, ainda que a linguagem
continue sendo o lugar da resolução dos sintomas. Assim sendo, segundo Tassinari
(1995), impossível separar sujeito desejante de sujeito falante, num trabalho que
vise constituir sua linguagem.
Temos aí mais um problema (que não vimos contemplado nas pesquisas da área).
Da assunção inicial da linguagem como estruturante do sujeito à noção
psicanalítica de escuta que, como a própria autora afirma, implica a noção de
inconsciente, passamos por duas noções de sujeito. Seriam compatíveis essas
noções?
O sujeito de que fala o Interacionismo, proposto por De Lemos, é aquele
assujeitado, submisso às leis das estruturas (da ideologia, da língua). Há uma
ordem de determinação (sincrônica, atemporal) da qual a fala não escapa.
Saussure nos fala de uma subjetividade sujeita (um sujeito assujeitado) a uma
ordem anterior: o determinismo da língua sobre a fala e o falante. E em qualquer
fala, como ensina Jakobson, há uma língua em operação.
Quanto ao sujeito da Psicanálise, vimos que a noção de sujeito é dependente da
teoria psicanalítica adotada. Ogden (1996) afirma que, no núcleo de uma
experiência psicanalítica, está a criação de um terceiro sujeito, que existiria na
tensão com o analista e analisando como sujeitos separados e no contexto do
enquadre psicanalítico. Assim, existindo visões psicanalíticas diversas, há noções
de sujeitos igualmente diversas.
As dissertações, aqui analisadas, que enfocam o trabalho com a linguagem numa
perspectiva psicanalítica, fazem referência, basicamente, a duas visões da área:
freudiana e winnicottiana.
O sujeito de Freud implica um descentramento de si mesmo, isto é, não é
coincidente com sua consciência. Ele é o que resulta das relações entre
consciência e inconsciente, ambos mutuamente dependentes.
Já Winnicott refere-se ao ser humano e não ao sujeito. Para o autor é inerente ao
humano a tendência ao amadurecimento e seu processo de personificação
depende do encontro com o outro. O ser humano winnicottiano é o que vive e
experencia, sempre dependente de seus contextos familiar e
cultural no dado
momento histórico.
Quando pensamos no sujeito assujeitado às leis da língua do Interacionismo ou no
sujeito sustentado pela inter-relação consciência/inconsciente de Freud, podemos
supor que estamos diante de sujeitos submetidos a determinados funcionamentos
que se prestam, necessariamente, a revelações e não a transformações.
A clínica fonoaudiológica que se pauta em uma ou outra visão, ou em ambas,
estruturalmente, não é diferente. Ambas rejeitam a idéia de que a clínica
fonoaudiológica seja o lugar de se ensinar a falar corretamente. Ambas rejeitam,
também, uma visão mais social da linguagem, fazendo, de nosso ponto de vista,
uma leitura superficial do conceito51.
51
Encontramos em uma das dissertações, mais ligada à perspectiva psicanalítica, uma afirmação a respeito,
ancorada numa voz representante da clínica de vertente interacionista. Ei-la: É bastante conhecida a
caricata figura, da qual salientam-se louváveis exceções, do fonoaudiólogo que trabalha ‘na interação com a
interação’. Sua teoria: interacionismo, sua técnica: interagir. Como nos aponta Arantes (1992) ‘sociologizouse’ a clínica, a partir de uma noção de interação como atividade relacional, expressa por ações recíprocas
entre indivíduos, presentes no brincar e/ou dialogar, pressupondo-se alternância entre participantes,
O manejo terapêutico revela-se também muito próximo, na medida em que ambas
adotam
a
interpretação
como
técnica
terapêutica.
Ainda
que
autores
representativos de cada vertente afirmem conceitualizá-la de modo diverso, a
interpretação fonoaudiológica está atrelada:
•
Na clínica de linha interacionista, ao funcionamento da língua. Pela
interpretação, o terapeuta oferece possíveis sentidos para a fala do
paciente, visando criar efeitos de estranhamento do paciente à sua
própria fala, o que o levaria à adoção da fala do terapeuta, considerado
aí como funcionamento da língua constituída.
•
Na clínica de linha psicanalítica freudiana, à possibilidade de resolução
de conflitos psíquicos. Na medida em que conteúdos psíquicos afloram à
consciência através da linguagem e é na própria linguagem que se
encontram os sintomas do paciente, a interpretação fonoaudiológica
visa poder revelar tais conteúdos e, conseqüentemente, resolver o
sintoma da linguagem.
Ambas, ainda, entendem o fazer clínico como uma atividade baseada no diálogo,
entendida como atividade dialogal como vimos, a partir da qual pode-se observar,
em uma, o funcionamento da língua e, em outra, o funcionamento do psiquismo.
Por outro lado, como vimos em capítulo anterior, uma clínica fonoaudiológica de
linha psicanalítica winnicottiana, na medida em que trabalha com o conceito de
espaço potencial, abre uma possibilidade para que o terapeuta lide com a teoria a
qual se filia de forma menos dogmática, mais criativa. O terapeuta assume um
papel de interlocutor de seu paciente, uma vez que toma como premissa que o ser
humano é história com o outro. Isso reflete no modo como a linguagem é
estabelecimento de contato ocular, partilha de intenções, além de outros comportamentos, linguísticos ou
não, que caracterizam uma relação a dois. Sendo assim, onde estaria a especificidade dos atos clínicos
fonoaudiológicos? (Fonoaudiologia e Psicanálise: a fronteira como território, 1997).
abordada e construída, no contexto terapêutico. Ao assumi-la, tal qual foi
concebida por Winnicott, a saber, reveladora do self em dimensões poéticas,
terapeuta e paciente permitem-se utilizar a linguagem discursiva de maneira
pessoal.
No entanto, quando o fonoaudiólogo depara-se com rico material
elaborado discursivamente com seu paciente associa-o exclusivamente a manejos
dessa clínica psicanalítica (como explicitado no fragmento de dissertação
apresentado anteriormente neste capítulo).
Trazer à tona essas questões seria uma contribuição para a construção do
conhecimento no campo da Fonoaudiologia.
Estaríamos desenvolvendo pesquisas que, nos dizeres de Kuhn (1962: 25-26),
caracterizar-se-iam como revoluções científicas, na medida em que alterariam os
padrões daquilo que se tem considerado problema ou sua solução. E os resultados
das revoluções científicas não seriam mero incrementos ao que já é conhecido,
fato observado nas dissertações e teses aqui analisadas.
No próximo capítulo, veremos como profissionais da área pensam o uso do diálogo
em suas atividades terapêuticas.
CAPÍTULO 5
ANÁLISE DOS DEPOIMENTOS
O presente capítulo traz a análise de depoimentos feitos à pesquisadora por
profissionais da área, em situações de discussão grupal, previamente
estabelecidas.
Nossa intenção, neste capítulo, é o de rastrearmos os sentidos do diálogo
no discurso do fonoaudiólogo acerca de sua prática, buscando possíveis
ressonâncias daqueles atribuídos na produção científica da área, analisada nos
capítulos anteriores. Para tal foi composto um grupo de profissionais que, a cada
encontro, discutiu um caso terapêutico apresentado por um dos participantes.
Embora a formação do grupo tenha sido descrita no capítulo de
metodologia, ela será aqui retomada, para melhor compreensão da análise. Para a
configuração do grupo, fizemos contato com profissionais da área de nosso
conhecimento, que atuam em diferentes setores, como saúde pública, hospitais
particulares, clínicas fonoaudiológicas, para que pudessem fazer indicações de
pessoas que se encaixavam no perfil desejado, qual seja, o de atuar como
terapeuta e assumir uma visão interacionista de linguagem. Segundo indicações,
quinze fonoaudiólogos foram convidados a participar da pesquisa. Constavam da
lista inicial, como já dissemos, profissionais formados pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), Universidade de São Paulo (USP), Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP) e São Camilo. O convite foi respondido
positivamente por seis fonoaudiólogos. Cabe ressaltar que todos esses
profissionais já conheciam a pesquisadora da Universidade a qual é vinculada,
alguns tendo sido seus alunos na graduação. Tal fato deve ter influenciado na
aceitação do convite e, como veremos, foi determinante no estabelecimento de
algumas situações enunciativas.
Foram necessários dois encontros iniciais para a apresentação da proposta
de trabalho a ser desenvolvida com o grupo, pois não conseguimos, inicialmente,
um único horário comum em que pudéssemos reunir todos os seis participantes.
Ao todo, foram seis encontros, quinzenais, realizados na clínica da pesquisadora,
em dias e horários em que não havia outra atividade em andamento. Em alguns
momentos, devido a feriados, os intervalos foram de três semanas. Cada
encontro, com duração de duas horas, foi gravado em áudio e vídeo e transcrito,
seguindo os critérios adotados pelo projeto NURC-SP, como consta na
metodologia.
Uma característica marcante desse grupo foi a imprevisibilidade da
presença de seus componentes. Não tivemos um único encontro em que todos os
participantes estivessem presentes. Como, geralmente, a falta era justificada no
próprio dia do encontro, a composição do grupo era sempre uma surpresa,
inclusive para a pesquisadora. Tal como apontado por Amorin (2001: 261), o
campo enunciativo aí instaurado era sempre da ordem da instabilidade e a
configuração dos lugares enunciativos não era passível de ser prevista.
Considerando a configuração sempre instável dos lugares enunciativos e
considerando ainda a proposição bakhtiniana – a palavra se dirige – veremos que
a exposição oral dos participantes foi constantemente determinada pelo caráter
único de cada encontro. Os depoimentos, tomados como enunciados, carregavam
uma pluralidade de vozes que buscamos aqui identificar.
Cabe novamente relembrar as características de cada participante.
Nome
Formação
Tempo de
atuação
profissional
Área(s) de atuação
Rita
Fonoaudióloga
(PUC-SP)
Cinco anos
Clínica e docência na área
de linguagem
Carmen
Fonoaudióloga
(PUC-SP)
Quatro anos
Clínica em instituição
educacional para limítrofes
Branca
Fonoaudióloga
(PUC-SP)
Cinco anos
Clínica multidisciplinar
Leila
Fonoaudióloga
(PUC-SP)
Dois anos
Audiologia ocupacional
Regina
Fonoaudióloga
(formação no
exterior e
revalidação na
PUC-SP) e
Psicóloga
Treze anos
Docência na área de
Audiologia e clínica
psicológica/fonoaudiológica.
Heloisa
Fonoaudióloga
(PUC-SP)
Dois anos
Clínica em instituição para
deficientes mentais, onde
atende portadores de
paralisia cerebral, síndrome
de West e autismo
6.1. Os encontros
O primeiro encontro foi dedicado a uma explicação bastante genérica sobre
a pesquisa, mais com o intuito de situar os participantes no contexto da pesquisa
que de influenciá-los em seus depoimentos. Houve um tempo dedicado também
às apresentações dos profissionais, já que nem todos se conheciam. Dele
participaram: Rita, Branca e Carmen. Cada uma delas teve um tempo determinado
para apresentar-se às colegas. Rita foi a primeira, seguida de Branca e Carmen.
6.1.1. A apresentação de Leila
No segundo encontro, novamente foi necessária a explicação da pesquisa e
da forma de funcionamento do grupo, já que outros componentes, que não haviam
comparecido ao primeiro, ali estavam. No entanto, nesse, já houve um depoimento
de um profissional que não estava no primeiro dia. A justificativa para apresentar
já seu trabalho, diferente dos outros participantes que ainda estavam escolhendo
os casos para o relato, era a de que não falaria especificamente de um caso e sim
do trabalho desenvolvido numa instituição que julgava vir ao encontro da proposta
da pesquisa.
Assim estava configurada a situação:
Dos participantes do primeiro encontro, apenas Carmen estava presente.
Outros dois, Leila e Regina, completaram o grupo, configurando o campo
enunciativo da seguinte forma: entre os três sujeitos de pesquisa presentes não
havia nenhum conhecimento prévio. Nas apresentações iniciais, ficou bastante
evidente a diferença de formação entre Regina (mais tempo de atuação e
formação em duas áreas, sendo uma no exterior) e Carmen e Leila (ambas com
menos tempo, respectivamente cinco e dois anos, oriundas da mesma
Universidade). Em algum período da graduação, todas foram alunas da
pesquisadora. Leila usou de sua apresentação para também apresentar seu
trabalho. As três sentaram-se nos sofás, que ficam encostados em paredes
contíguas. Leila num deles e Carmen e Regina no outro. Pouca variação houve
das posições tomadas inicialmente (Carmen, inclusive sentou-se no mesmo lugar
escolhido, no primeiro dia. Como veremos sua participação foi mínima nesse
episódio). Nos momentos finais do encontro, as participantes levantavam-se para
buscar algo para beber, colocado num móvel disposto na parede oposta à do sofá
em que Leila estava. A pesquisadora, também presente, ficou mais afastada do
grupo, sentada próxima aos equipamentos de áudio e vídeo, procurando assim
não caracterizar sua presença como efetiva na discussão. Por vezes, fez
intervenções que levassem a expositora a explicitar mais o que estava falando.
Pelo que foi proposto no primeiro encontro, eram esperadas exposições
orais de um caso seguidas de debate entre as participantes. Considera-se a
exposição oral de casos terapêuticos uma ‘esfera específica de atividade
humana’52 bastante familiar aos fonoaudiólogos, na medida em que,
freqüentemente, este profissional é solicitado a falar de um paciente em situações
diversas.
Uma exposição oral, seja de que temática for, pressupõe uma preparação,
um planejamento do material que vai ser apresentado a interlocutores que se
colocam como ouvintes até que lhes seja dada a possibilidade de falar. Estas
características – de planejamento prévio e interlocutores/ouvintes – são típicas de
uma elocução formal. Segundo Brait (1999: 99), constitui marca de estilo da
elocução verbal uma cuidadosa escolha lexical trabalhada sintática e
semanticamente, de modo que o assunto seja tratado segundo sua especificidade
e segundo o ponto de vista do expositor. No entanto, a construção composicional
e o estilo53 de uma elocução verbal ficam submetidos às especificidades da
interação verbal estabelecida.
No dia em questão, como dissemos, a participante acabou por expor seu
trabalho ainda na sua apresentação para as outras participantes, desconhecidas
para ela até o momento. Sabia que todas tinham feito a graduação na PUC-SP,
mas em épocas diferentes, de modo que não as conhecia da Universidade.
Leila era uma das participantes que menos tempo de formada e de atuação
profissional tinha. O trabalho que veio a relatar estava sendo encerrado e ela
desejava elaborar um relatório do mesmo para ser entregue à instituição. Embora
não tivesse se preparado para uma elocução formal, tinha os dados, tanto na
cabeça quanto no papel: fora para o encontro munida dos questionários que
aplicava com as operadoras de telemarketing com quem trabalhava. Seu desejo
de dizer vinha da ausência de respostas que sentia dos membros da instituição,
em relação ao seu trabalho. São delas as palavras, ditas num certo momento de
sua exposição:
(84) To levantando tudo isso... ((mostra o material que tem em mãos))
todos esse dados aqui... todas essas queixas... o que eu vou fazer com
elas? Por que eu/ assim como elas também não tem com quem dizer/
eu não tinha... entendeu? Eu falava pra ele/ pro médico... como um
52
Para usar uma terminologia bakhtiniana. Em Estética da Criação Verbal (1952-53), Bakhtin utiliza a
expressão na conceitualização de gêneros do discurso, considerando que todas as esferas de atividade
humana estão relacionadas ao uso da língua e elaboram tipos relativamente estáveis de enunciados por ele
denominados gêneros do discurso.
53
Terminologia bakhtiniana. Segundo Bakhtin (1952-53: 279), conteúdo temático, estilo e construção
composicional fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado e todos eles são marcados pela
especificidade de uma esfera de comunicação.
desabafo... um estudo de caso... poxa... né:: mas assim/ pra eu poder/
eu não tinha um acesso à diretoria... à organização... às coordenadoras
mesmo...
Sua fala inicial é de apresentação da instituição54 em que trabalhava para
situar em seguida a atividade que realizava:
(1) Esse trabalho que eu desenvolvo... agora já estou um pouco
afastada né: da Estrela da Vida... uma instituição filantrópica que tem
um setor de telemarketing que é o que arrecada a verba para manter
essa instituição... Então assim... as operadoras têm um período de seis
a oito horas de trabalho... que elas ficam no telefone... contando um
pouco qual é a dinâmica da instituição... por que/que elas precisam
desse dinheiro: né: para colaborar e:: assim até convencer o
colaborador... essas pessoas que ligam para a nossa casa mesmo né...
com esse colaborador/ o doador dá uma certa quantia que vai ser
depositada na conta da Estrela da Vida... então eu resolvi fazer um
trabalho de fazer a audiometria admissional periódica e demissional
dessas operadoras de telemarketing...porque elas ficam com fone o dia
inteiro na orelha... a intenção inicialmente era de fazer um trabalho até
um pouco mais extenso: né:: assim pensando na acústica do
ambiente... que é deficitária por sinal... das condições do fone delas
né... é:: não só pensando na audição... mas também na qualidade
vocal... porque elas falam em ambiente que tem ar condicionado... tem
carpete... muitas têm alergia:: rinite e por aí vai... mas isso não foi
possível... em função da organi/da questão organizacional né:: a Estrela
da Vida é uma instituição que tem uma filosofia muito forte religiosa...o
importante lá é ta passando a filosofia da empresa... se preocupando
mais com essa arrecadação né... são duas questões... eles tinham
medo que entrando uma pessoa que falasse/desse outra visão para
elas... outra forma de trabalhar e influenciasse na dinâmica que já existe
há vinte anos né... uma coisa certa... já tem um discurso pronto quando
elas ligam/na forma de colaborar... bom... então o meu trabalho seria
fazer a audiometria mes::mo... audiometria admissional... como eu falei
na primeira/na primeira palavra que eu tive... ficou muito vazio fazer só
a audiometria... chega lá: entra na cabine faz a otoscopia... ta tudo
íntegro na membrana timpânica... vamos fazer a áudio e acabou... então
eu comecei a fazer uma anamnese antes... levantando o quê e pra
quê... levantando o nome... informações gerais... função... data do
exame... informações sobre a audição.. se acha que ouve bem... se
acha que não ouve... porque que não acha... sintomas coceira zumbido
tontura... se já teve dor de ouvido ou não... antecedentes pessoais... é::
doenças de infância.. catapora... sarampo -- a gente sabe que tem
54
O nome da instituição foi trocado, para que fique preservada sua identidade.
influência na audição -- e outras também/ inflamação na garganta...
bronquite... exposição a ruído... se mora em lugar ruidoso... se já teve
uma outra ocupação em lugar/ambiente ruidoso ( ) há quanto tempo ta
como operadora na instituição... o histórico familiar... atividades de
lazer...hábitos e vícios... aí: eu faço a otoscopia e ao/e quanto à voz/se
já apresentou rouquidão... por quanto tempo... se era acompanhada por
quadro inflamatório ou não... se usa um medicamento... se usa essas
soluções caseiras né:: mel::: própolis pra dar uma/uma mascarada nos
sintomas...então eu ia levantando essas questões... é:: inicialmente eu
fazia essa/essa anamnese individual...
Ainda nesse turno inicial, Leila repetiu, por algumas vezes, o esquema de
trabalho na instituição, talvez movida pela necessidade de falar e ser ouvida.
Como sua apresentação se distanciava de uma elocução formal, logo algumas
intervenções foram feitas pelas outras participantes. A pesquisadora foi a primeira
a intervir, no sentido de Leila precisar mais o que estava dizendo em relação a
uma mudança em seu trabalho.
(1) Leila: (...) eu pensei... por que não juntar as quatro e fazer em
grupo... será que não ia ser até mais rico? né:: porque às vezes... eu
sentia até que individual era aquela coisa tete a tete... por que
anamnese é muito restrita... por mais que você tente sair ela é restrita...
ela é muito ligada é:: à doença mesmo...
(2) Pesquisadora: (...) conta um pouco como é que era mesmo a
chegada delas... elas chegavam... elas esperavam você falar... elas já
falavam alguma coisa... elas só respondiam exatamente o que ta na
anamnese ou você sentia que elas queriam falar uma outra coisa ou até
elas falavam outras coisas...como era sua escuta para isso, ta?
(3) Leila: ta:: então assim:: até quando você me faz essas perguntas/
essas questões... vêm milhares na minha cabeça né:: porque na hora
eu tinha de correr contra o tempo... então hoje eu vejo que tinha coisas
assim:: eu tampava a escuta ((bateu uma mão na outra)) se eu deixasse
ia... como foi muitas vezes... Se pensa e fala... dane-se e vamos
continuar...
Regina, sentindo-se autorizada pela atitude da pesquisadora, passa a
intervir mais no discurso de Leila. Sua primeira intervenção provoca o seguinte
encadeamento de enunciados:
(4) Regina: Quando/quando o paciente começa a falar muita coisa... tem
que cortar... redirecionar e ( )
(5) Leila: redirecionar é:: redirecionar... sim:: eu sentia às vezes que era
uma pena redirecionar/ não precisava direcionar...
(6) Regina: sim::
Há pontos interessantes no enunciado (4), proferido por Regina. O primeiro
deles é a escolha da palavra paciente, que aparece pela primeira vez nessa
situação enunciativa. O trabalho descrito por Leila não se caracterizava como
terapêutico – contexto em que mais circula tal palavra –, mas, mesmo assim, foi a
ele que Regina se remeteu. Bakhtin nos ensina que selecionamos palavras para
compor nosso enunciado, a partir de outros enunciados que geralmente circulam
no mesmo gênero discursivo de uma dada esfera de atividade humana. A escolha,
portanto, não se dá pelo sistema lexical da língua. Quando Regina toma a palavra
paciente o faz a partir de seu referencial de trabalho, exclusivamente terapêutico,
trazendo para a situação em questão, em que se presentificava outra forma de
atuação fonoaudiológica, sua possibilidade de compreensão desse contexto.
Outro aspecto interessante diz respeito à multiplicidade de sentidos que
uma palavra carrega dentro do enunciado. Quando Regina afirma que tem de
cortar quando o paciente começa a falar muito, aparentemente parece estar
concordando com Leila em sua não escuta a possíveis necessidades das
operadoras, tomando talvez parte de seu enunciado – (3) (...) eu tampava a
escuta ((bateu uma mão na outra)) se eu deixasse ia... – pelo todo, sem
considerar uma possível dúvida que tal enunciado carregava. Nesse sentido,
acredita contribuir, acrescentando um dado novo – ter de redirecionar.
Mas, já nos dizia Bakhtin (1929a: 132), compreender é opor à palavra do
locutor uma contrapalavra, ainda que seja uma mesma palavra, do ponto de vista
de seu complexo sonoro. Leila, em seu enunciado subseqüente, retoma a palavra
redirecionar, extraposicionada, isto é, situada em um outro lugar, o que lhe
confere um novo sentido ao enunciado: (5) (...) redirecionar... sim:: eu sentia às
vezes que era uma pena redirecionar/ não precisava direcionar... . Enquanto
Regina parece dizer que é preciso sim redirecionar aquilo que o paciente fala,
Leila questiona o valor desse redirecionamento.
Estamos diante do que Bakhtin/Volochinov (1929) conceituam como valor
apreciativo da palavra. Além dos dois estágios da capacidade de significar –
significação e tema – a palavra possui valor apreciativo que indica o horizonte
apreciativo social de seu locutor. Essa observação se faz necessária para
compreendermos a seqüência desse encontro.
Leila ainda demorou um pouco para entrar efetivamente no tema da
mudança provocada no seu trabalho. Quando o fez, parecia ter consciência da
circularidade do discurso, ao dizer: (26) que eu vi que quando eu fui pro grupo –
você me puxa se eu ficar voando – (voltada para a pesquisadora. Mas não seria
também uma resposta ao enunciado de Regina – tem que cortar...?) e continuou:
(29) quando eu fui pro grupo... eu percebi... o quê? que uma falava: né:
até então é:: tem coceira? não... não tenho... a primeira não tem:: a
segunda não tem... aí a terceira:: eu tenho sim... sabe porque que eu
tenho coceira às vezes? o fone não é bom..., o fone tem uma
esponjinha que esfarela e ele pode dar uma infecção... anda me
coçando e anda me incomodando... eu tenho coceira sim... essa era
a terceira... a quarta já falava no discurso dela... sabe que eu também
tenho? (31) (...) as outras duas que já tinham falado que não tinham::
muitas vezes... sabe que eu também tenho? E o fone me incomoda,
né? Aí trazia... Isso que eu to falando que foi rico...
Regina procura com uma nova intervenção – sobreposta ao enunciado de
Leila – conferir o significado da riqueza de que falava Leila:
(32) Regina: a fala de uma estimula a outra::
(33) Leila: é...
(34) Regina: a dizer, se ela diz eu também posso dizer
(34) Leila: referência né? mas é isso né:: é:: acho que assim::
(36) Regina: também...
(37) Leila: é:: acho que::
(38) Regina: dividir...
(39) Leila: dividir... se ela disse eu posso dizer também... uma
referência... não tinha lembrado...é: é: bom né:: aí é que eu falo que foi
rico... que aí ia/ sabe/ dava... aumentava... que disso vinha outras
coisas também...
Riqueza, para Regina, era a possibilidade de a fala de uma operadora
estimular a fala da outra, o que para Leila significava referência. Nota-se, pelo
enunciado (36), que Regina não havia pensado desta forma, qual seja, a de
construção de referências a partir de diversas falas. Ao verbalizar também...
Regina demonstra acolher esse sentido, mas procura apresentar o seu, qual seja,
o de dividir [enunciado (38)]. No encadeamento dos enunciados, Leila age como
da forma anterior: retoma a palavra, mas não a incorpora como quer seu
interlocutor, reafirmando, logo em seguida, o sentido que atribui ao seu enunciado:
dividir... (...) uma referência... (...) aumentava... que disso vinha outras coisas
também...
Ao dizer que a quarta operadora já falava no discurso da terceira, afirmando
que isso era muito rico, Leila corrobora a importância que Bakhtin atribui à relação
eu-outro. Para o autor, o sujeito toma consciência de si, originalmente, através do
outro, de quem recebe a palavra e a orientação ideológica que servirão de base
para a compreensão de si mesmo. Ao abandonar a anamnese individual e partir
para a experiência grupal, Leila abre espaço à diversidade, ao conhecimento
compartilhado e confrontado próprio de uma relação dialógica, ainda que o termo
não tenha aparecido, até então, em sua apresentação oral. É no discurso citado
das operadoras, em outros momentos dessa situação, que observamos o caráter
dialógico que Leila desejava imprimir em seu trabalho:
(41) Leila: (...) aí surgia:: antes não tinha isso... -- porque não tinha
mesmo anamnese... era só audiometria -- antes não precisava disso...
algumas já assim:: por que que hoje vai ter que ter? outras já se
interessavam... hum:: vamos ter uma coisa diferente ((risos))
A certa altura de sua apresentação, Leila fala de sua posição no grupo
formado com as operadoras de telemarketing:
(62) Leila: então:: esse grupo que eu peguei... são três operadoras que
é a coisa de duas delas têm dez anos de função.. na Estrela da Vida...
não é função de telemarketing... Estrela da Vida foi o primeiro
emprego... dez anos e uma delas tem quinze anos:: de função... aí eu
vou falar... tem toda uma raiz da filosofia... da religião... que eu acredito
que eu também ajudo a agüentarem essa pressão... porque é uma
pressão muito grande...
(63) Pesquisadora: você acha que você ajuda como?
(64) Leila: ajudo como:: bom aí eu vou voltar...
(65) Pesquisadora: ta, então volta lá...
(66) Leila: me apresentei e tal... aí eu falo do discurso -- não sei se se
encaixa no autoritário ou no persuasivo -- mas meu discurso é
diferenciado que dá um efeito -- claro... afeta... todo discurso afeta -mas eu acho que esse mais:: quando eu falo assim pra elas... aqui é
um espaço -- eu falava isso -- me ajudem até ((risos)), aqui é um
espaço que eu quero que... é: gostaria que vocês trouxessem não
só as questões que eu vou estar levantando ... mas é:: questões e/e
acontecimentos que passam pelo campo que vocês trabalham... na
unidade de arrecadação: que vocês ficam... vocês há de ( ) / vocês
ficam de oito a dez horas naquela unidade de arrecadação... é
muito tempo... quase metade do dia de vocês né:: então acontecem
muitas coisas e eu quero que vocês tragam... sabe o que acontecia?
eu abria um leque que depois eu não agüentava...
Quando Leila vai explicar seu lugar no seu grupo de trabalho, lança mão de
conceitos da teoria bakhtiniana – palavra autoritária e palavra persuasiva – não
sabendo, no entanto, relacioná-los à sua atividade profissional. Aí, então, recorre
ao discurso citado – fragmentos de seu próprio discurso – elaborado na situação
discursiva com as operadoras, como podemos observar no enunciado (66).
Busca, com isso, uma antiga parceria com a pesquisadora – sua professora do
último ano de graduação –, época em que lhe foram ensinadas algumas noções
da teoria de Bakhtin. Na ocasião, era comum os alunos relatarem situações
terapêuticas por eles vividas para, no espaço da aula, serem analisadas a partir
de uma perspectiva bakhtiniana.
Esse não foi o primeiro momento em que Leila se referiu a Bakhtin no grupo
de pesquisa. Na seqüência do enunciado (39), no qual fala da referência, dizendo:
disso vinha outras coisas também..., a pesquisadora pergunta:
(40) Pesquisadora: você lembra alguma coisa... quando
você fala disso vinha outras coisas... tem alguma
situação que você lembra isso?
A intenção da pesquisadora era a de que Leila se lembrasse de algo vivido
com o grupo de operadoras, mas para sua surpresa, a lembrança foi de seus
tempos de aula. Aparece aí, pela primeira vez, a alusão aos conceitos.
(41) Leila: quando você disse assim pra mim:: tava falando de Bakhtin...
do discurso autoritário do discurso persuasivo... eu pensei numa coisa...
quando eu chegava lá... eu sem/chamava as quatro na sala... me
sentava... me posicionava e falava assim... me apresentava... bom dia:
meu nome é Leila... sou fonoaudióloga aqui da Estrela da Vida... to
trabalhando aqui no setor de telemarketing... por mais que vocês
não me conheçam/ porque a relação que a gente tem é mesmo nos
periódicos: o contato que a gente tem né:: mas aqui a gente vai
fazer a audiometria, que vocês já fizeram... ahn, já fizemos sim... e
hoje além disso/ não/ e hoje nós vamos fazer uma amamnese antes
-- não falo amamnese claro -- um: algumas questõezinhas a gente vai
levantar antes desse exame... até para iluminar o exame e a gente
se conhecer melhor... aí surgia:: antes não tinha isso -- porque não
tinha mesmo anamnese, era só audiometria -- antes não precisava
disso... algumas já assim... por que que hoje vai ter que ter, outras já
se interessavam, hum: vamos ter uma coisa diferente ((risos))
Nesse primeiro momento, também houve apenas a alusão aos conceitos.
Com o recurso do discurso citado, Leila procura possíveis complementações de
seus interlocutores, mais especificamente a pesquisadora/professora de outrora.
Como não houve resposta da pesquisadora a essa solicitação, Leila retoma os
conceitos, momentos depois, como observamos no enunciado (66).
A pesquisadora, propositalmente, não toma para si a responsabilidade de
responder a esse enunciado, a fim de evitar a reedição de uma outra situação
discursiva – a de sala de aula –, já vivida, em épocas diferentes, com os
componentes daquele grupo. Deixa que o tema seja trabalhado por ele. Regina,
então, assume o papel de principal interlocutora de Leila, dizendo:
(67) Regina: é... quando você abre isso: ela vai trazendo tantas/tantos
problemas que surgem lá...
Um desenvolvimento do que viria a ser o discurso autoritário ou persuasivo,
como parecia Leila querer, não acontece. A situação discursiva segue tendo como
interlocutores principais Regina e Leila, com algumas intervenções de ordem da
pesquisadora e o silêncio de Carmen. A única a estar presente na primeira
reunião marcada, não encontrou seu lugar na configuração enunciativa desse
encontro. Melhor dizendo, seu lugar foi pontuado pelo silêncio e por intervenções
inacabadas.
Estamos considerando intervenções inacabadas aquelas que não suscitam
respostas por parte dos interlocutores. A participação de Carmen, nesse encontro,
fora o silêncio, é pautada por enunciados dessa natureza. Observemos uma
dessas passagens. Aqui, Regina questiona Leila sobre o motivo de as operadoras
não quererem alongar a anamnese: seria a pressão de voltar ao trabalho ou o
medo de serem demitidas pela descoberta de uma perda auditiva?
(13) Leila: não... acho que tem as duas...tem esse lado também claro...
tem esse lado também... acho que não é só pela pressão... mas não só
é:: não só perda auditi/de ter uma perda auditiva... é uma:: questão que
tem que se levantar ta? acho que não só isso... tem outros fatores que
eu levanto... é:: o fato mesmo de estar lá vamos lá.. entra e não me
conhece... entendeu? você chegou para o exame periódico...a fono é lá.
(risos)
(14) Regina: a fono é lá é bom né? (risos)
(15) Leila: não é?
(16) Carmen: dá uma emoção ( )
(17) Leila: ( )
(18) Carmen: um convite ( ) que você possa...
(19) Regina: Ali é o banheiro, ali é a fono
(20) Leila: Não tem uma demanda, ela não ta indo lá porque ela quer.
(21) Regina: risos
Carmen faz seu primeiro comentário num momento da interação em que o
tom é de deboche em relação ao trabalho de fonoaudiologia na instituição. Seu
enunciado (16) tem esse tom, a emoção que dá... mas não é possível
compreender o que ela fala em seguida, porque há, em seu enunciado, uma
sobreposição da voz de Leila que fala algo também ininteligível, olhando para as
duas. Em seu enunciado seguinte (18), Carmen mantém o tom irônico, novamente
com um segmento ininteligível na sua fala. Sua intensidade de voz é baixa e some
perto das outras. Agora é Regina que sobrepõe sua voz à dela, dirigindo à Leila
seu olhar, que, com sua assertiva, retoma o tom mais sério da discussão. E
novamente Carmen se cala.
Carmen volta a se manifestar nos enunciados (42) e (57), com risos junto a
Regina; no (89), com um comentário que pouca ressonância tem no contexto
(Leila está falando que as operadoras trabalham nove horas com intervalo e ela
diz: mas mesmo assim::) e no (132), já no final da gravação do encontro, quando
procura discordar de Regina que aconselha Leila a fazer uma palestra inicial para
as operadoras, falando de seu trabalho. Ela diz: mas é difícil se não dão valor pelo
que ela tem... (fala que foi sobreposta pela voz de Regina que continuou a se
dirigir a Leila). No nosso entender, esse é seu enunciado mais significativo, pois
se coloca como resposta ao vivido nesse encontro e como anúncio do que será
sua apresentação em um encontro futuro, seu trabalho desenvolvido em uma
instituição que pouco acolhe.
Embora o termo diálogo só apareça em enunciados de Regina, como
quando ela procura sintetizar uma fala de Leila sobre as frustrações por que
passavam as operadoras de telemarketing, naquela instituição,
(79) Regina: acho que o que você está contando é que não tinha
diálogo... assim:: falta de comunicação...
a idéia de um trabalho permeado por uma relação dialógica nos parece evidente, ainda
que Leila mostre muitas dúvidas de como encaminhá-lo.
Sua tentativa de formar um grupo – e insistir nas referências e não na
divisão – é claramente um exemplo de trabalho com a linguagem em sua
diversidade, enfatizando a relação eu-outro, apontada anteriormente. Quando diz
que a fala da quarta operadora já estava no discurso da terceira, concretamente
está mostrando que a palavra do outro levada a um novo contexto – porque dito
por uma outra pessoa, extraposicionada, ainda que numa mesma situação
enunciativa – evidencia o caráter dialógico da linguagem, na medida em que
ganha sempre novo sentido. No caso das operadoras, amplia as possibilidades de
dizer: as duas primeiras não sentiam dor, a terceira sim, a quarta também e por
quê. Logo, as duas primeiras retomam suas afirmações, modificando-as.
Sobre sua postura diante do grupo, como ela própria sugere, parece-nos
sim que faz uso da palavra internamente persuasiva. Tem em mãos a anamnese,
um questionário previamente elaborado, mas abre a possibilidade de ouvir mais,
de entrelaçar suas palavras às das operadoras. Para Bakhtin (1934-35: 146), a
palavra internamente persuasiva organiza do interior as massas de nossas
palavras, em vez de permanecer numa situação de isolamento e imobilidade. E
isso provocou uma abertura de leque que Leila admitiu não agüentar mais.
Do lugar em que se colocou, Leila pôde vivenciar a dor do outro, mas não
soube (não pôde?) dar acabamento a ela. É de Bakhtin (1920-30/1979: 46) a
afirmação:
Quando me identifico com o outro, vivencio sua dor precisamente na
categoria do outro, e a reação que ela suscita em mim não é o grito de
dor, e sim a palavra de reconforto e o ato de assistência. Relacionar o
que se viveu ao outro é a condição necessária de uma identificação e
de um conhecimento produtivo, tanto ético quanto estético. A atividade
estética [ética] propriamente dita começa justamente quando estamos
de volta a nós mesmos, quando estamos no nosso próprio lugar, fora da
pessoa que sofre, quando damos forma e acabamento ao material
recolhido mediante a nossa identificação com o outro (...)
Sem a volta ao seu lugar, Leila vive a dor alheia como sua própria [(108)
gente:: parece que não... mas você se envolve de tal maneira que eu saí de lá e
eu não peguei minhas coisas ainda... parece que eu ainda estou lá: com elas... sei
lá o que é isso?] e, segundo nosso ponto de vista, busca, no grupo de pesquisa,
novos olhares que a completem e que a ajudem a dar o acabamento necessário
ao seu trabalho [(108) eu vou voltar né:: vou entregar o relatório...]
Daí o pedido de ser a primeira a fazer a apresentação oral, sem mesmo ter
feito preparo prévio da mesma.
Antes de finalizar a análise desse encontro, gostaríamos de salientar um
comentário de Regina, pouco antes do final da apresentação de Leila, que
também nos dá indícios de uma maior compreensão de sua própria apresentação,
realizada no encontro posterior a esse.
(97) Regina: acho que você até pode ter pensado em proporcionar mais
diálogo... com uma abertura maior também... será que você não pensou
na mudança dessa dinâmica? uma coisa é você estar com seu paciente
né:: outra coisa é estar com um grupo e abre o espaço...
Consideramos importante destacar também que, ao final da apresentação,
quando as três participantes estavam conversando informalmente, Leila levanta o
seguinte questionamento: mas... eu caía tanto às vezes no questionamento que
você [Regina] falou -- foi bom você ter falado -- era um fazer fonoaudiológico?
Retomaremos essa questão mais adiante.
6.1.2. Regina e seu caso clínico
Este foi o terceiro encontro do grupo de fonoaudiólogos e o segundo de
exposição e debate do caso. Como vimos, no encontro anterior, Leila apresentou
seu trabalho para dois outras componentes do grupo, além da pesquisadora.
Nessa segunda exposição, novamente o grupo não estava completo;
Mantêm-se em cena Regina e Leila; sai Carmen e entram Rita e Heloísa. Heloísa
vem pela primeira vez, mas já sabendo do funcionamento do grupo, porque
entrara em contato telefônico com a pesquisadora antes desse encontro. Branca
falta pela segunda vez consecutiva e dificuldades de ordem pessoal impedem-na
de prosseguir na pesquisa. A partir de então o grupo, oficialmente, terá a
participação de cinco profissionais.
Regina, a expositora da vez, é a que mais idade e tempo de formada tem.
Além disso, sua formação difere da dos outros participantes, porque parte dela foi
feita na França, na Universidade de Bordeaux, e parte, aqui no Brasil, na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Além de fonoaudióloga, Regina também atua
como psicóloga, tendo feito graduação em Psicologia.
A preparação para o início da exposição é típica de uma situação de
elocução formal. Regina traz consigo uma pasta com apontamentos de sessões
com o paciente em questão, para utilizar na apresentação. Senta-se num dos
sofás (no mesmo lugar em que sentara no encontro anterior), ladeada pelas outras
três, que se acomodam nos lugares em que estão, num gesto característico de
quem espera uma longa exposição. Estão todas relativamente próximas para
poderem observar o material que Regina vai mostrar durante sua exposição. A
pesquisadora como antes, colocou-se mais afastada da cena de discussão.
Correspondendo a uma das características da elocução formal, a expositora
desse segundo encontro é a que constrói os turnos mais longos, como podemos
observar em sua fala inicial.
(1) Regina: então... eu trouxe um caso... para vocês que eu trabalhei por
um ano -- comecei no dia 24 de janeiro de/ desculpe desde 12 de abril
de 2000 e terminei interrompido né o caso... no dia 2 do quatro...-então faz pouco tempo... então ta um pouco/ ta bem tranqüilo pra
lembrar é: de muitas passagens né - - então... Carla de onze anos foi
encaminhada para fazer uma avaliação de leitura e escrita... pela
escola... e: - - pronto -- ((arrumando o material que trouxe para a
apresentação)) ( ) ela não tinha uma escrita adequada para a
idade...tinha tido já um acompanhamento por um psicopedagogo por
alguns anos... desde que iniciou o ensino fundamental... primeira série...
sempre mantendo uma certa dificuldade para ler e escrever...quer
dizer... ela: Rejeitava... trabalhos em grupo na escola...dificuldades de
relacionamento -- então: ahn eu fiquei aqui tentando organizar um
pouquinho... só para dar pra vocês uma idéia -- ela chegou por
intermédio de uma outra paciente que também já tinha feito um trabalho
de leitura e escrita e: na primeira entrevista eu fiz só com a mãe... como
eu costumo fazer eu entrevisto sempre os pais... às vezes eu chamo os
pais e vem só um deles e no caso veio só a mãe... então aparentemente
os sintomas eram dificuldades para escrever... e que ela ia mal em
português... isso assim era a angústia da família em torno disso...
chamei a Carla numa outra sessão para conhecê-la: Carla é filha
única... quando ela chegou ela chegou com um comportamento um
pouco estranho é: um pouco desconfiada e: diz que não adiantava fazer
nenhum trabalho que ela já tinha feito um monte de traBAlho que não ia
fazer não ia fazer nenhuma diferença porque ela ia mal porque ela não
gostava mesmo e não ia escrever.... e que não tinha jeito de conseguir
fazer ela escrever.... mas assim... desde a primeira sessão ela ficou: eu
falava que eu vou lhe conhecer - - e eu costumo fazer as entrevistas
com crianças quando eu faço psicodiagnóstico: eu faço do mesmo jeito
só que no caso eu direciono para o trabalho de escrita mas no processo
diagnóstico... eu sempre procuro trabalhar conversando fazendo jogos,
desenhos sempre peço desenhos... - - eu tenho alguns desenhos do
primeiro encontro que são bem/ que elucidam bem a questão familiar...
que me pareceu muito forte o problema dela relacional e que tava
intervin/ interferindo muito na escrita e no trabalho:: no comportamento:
em tudo né.... e acho que ela se apresentou assim que eu/ sabe não
precisava/ eu perguntei primeiro -- eu faço essa pergunta para a
criança... uma criança um pouquinho maior se ela sabe porque que ela
ta vindo ali comigo... e se ela sabe o que eu faço... e às vezes elas
estão com uma idéia eu pergunto qual idéia que tem e depois eu falo
também algumas coisas....-- e: comecei a: eu disse olha... você vai
escrever algumas coisas também, mas primeiro você pode fazer
uns desenhos... aqui tem material... -- eu tenho material pra desenhar
material pra/ tem material de escritura que eu distribuo assim na
mesa...deixo papéis... deixo alguns jogos... deixo umas revistas uns
livros... deixo uma sala um pouco: digamos... convidativa pra fazer
alguma atividade... que a criança sinta que tem alguma coisa ali que
vai.../ eu trabalho com caixa/ com caixa lúdica como trabalho com
criança em terapia psicodiagnóstico né... eu trabalho com material
aberto pego jogos...-- num armário tem vários jogos --...então a gente
começa a conversar -- e ela me chamou muita atenção ao
comportamento dela... muito mais/ eu fiquei muito mais na hora que a
gente começou a conversar... eu não quero, eu não quero... uma coisa
assim mais de não/não ta se ligando mesmo a um trabalho: que eu
pudesse propor né... ela disse eu só gosto de brincar... aí ela viu os
brinquedos e eu quero brincar... eu disse então vamos fazer uns jogos
aqui mas vamos fazer uns jogos e vamos também fazer algumas
outras coisas... e aí ela começou... então no início assim: ela
conseguiu fazer alguns jogos... e:
A exposição, como podemos notar já neste primeiro fragmento, não
demonstra ter sido planejada previamente. Ao contrário, a expositora valeu-se da
memória que o contato com seus apontamentos do processo terapêutico, no
momento mesmo da interlocução, pôde recuperar. Acreditamos que, mesmo tendo
sido decidida, no primeiro encontro, a forma de funcionamento do grupo, a
característica da interação verbal estabelecida – interação face a face com
interlocutores, agora, mais conhecidos – prevaleceu, transformando a elocução
formal de um caso terapêutico em relato oral de uma experiência vivida
(terapêutica). Isso pode ser observado tanto pelo uso invariável da primeira
pessoa do singular, quanto pelos vários momentos em que a enunciadora utilizase do discurso citado, fragmentos de sua própria fala ou de outros (paciente e
pais). Vejamos alguns exemplos:
(1) (...) e às vezes elas estão com uma idéia eu pergunto qual idéia que
tem e depois eu falo também algumas coisas....-- e: comecei a: eu disse
olha... você vai escrever algumas coisas também, mas primeiro
você pode fazer uns desenhos... aqui tem material... -(1) (...) uma coisa assim mais de não/não ta se ligando mesmo a um
trabalho: que eu pudesse propor né... ela disse eu só gosto de brincar...
aí ela viu os brinquedos e eu quero brincar... eu disse então vamos
fazer uns jogos aqui mas vamos fazer uns jogos e vamos também
fazer algumas outras coisas... e aí ela começou...
(15) ELA [a mãe] não me trouxe nada muito diferente no começo ela me
trouxe depois... porque depois eu chamei aí eu digo olha no meu
trabalho eu faço pelo menos uma reunião mensal com a mãe e o
pai eu chamo no começo até eu entender melhor e direcionar o
trabalho...
(15) e aí o que eu vou vendo eu vou interpretando vou falando vou
orientando... faço orientação também né: e isso/ o pavor era assim: o
pai dizia Ah não: ela não/ eu vou falar com o diretor da escola.. ela não
vai repetir de ano ela não pode repetir de ano mas imagina que ela vai
repetir de ano... todo mundo passa porque que ela não passa?
(153) com a psicopedagoga me perguntando algumas coisas como que
tinha sido o tratamento... como que ela estava... eu disse olha ela
estava muito perdida.. e acho que ela continuava assim... eu acho
que essa menina precisa de muito tempo de terapia e a mãe
também precisa de trabalho para ajudar melhor sua filha... os
pais... e então a coisa ficou assim:
No contexto dessa exposição oral, o uso do discurso citado tal qual o temos
em esferas cotidianas de comunicação, em que o que foi citado não extrapola o
âmbito de uma situação determinada, parece-nos servir à expositora não apenas
para ilustrar um raciocínio, mas, por vezes, para substituí-lo. Isso já foi observado
na exposição de Leila, discutida anteriormente, e volta a aparecer em exposições
posteriores.
Em ambas as exposições, vemos o uso do relato em contextos em que
caberiam proposições mais conceituais. Isso nos faz lembrar Bruner (1990), que
atribui às narrativas grande parte da responsabilidade de construção do
significado, por serem elas formas poderosas de discurso, sobretudo para as
crianças. Tanto Leila quanto Regina recorrem à narrativa de uma situação vivida,
de modo a construírem com seus interlocutores, no momento de suas exposições
orais, um conhecimento mais teórico do assunto, esperado para a presente
situação enunciativa.
Essa postura, no nosso entender, por vezes, desloca os interlocutores do
foco da discussão principal, qual seja, o saber construído sobre aquele processo
terapêutico, para dados secundários que adiam a construção desse saber. Isso
pode ser observado na seqüência abaixo, já com a intervenção dos interlocutores
que, também tomados pela contingência da interação face a face e pela forma de
apresentação da expositora, logo se sentem livres para assumirem seus turnos
com questões como:
(58) Rita: ((lendo o texto de um dos desenhos de Carla)) “Um dia
passou vários cachorros e eu comi eles”...
(59) Regina: ((olhando para o desenho)) é...
(60) Rita: ((ainda olhando o desenho)) aí ela desenha até você de
cachorro?
(61) Regina: tudo... aí ela me comia também....
(62) Rita: todo mundo é cachorro... ela é cachorro todo mundo é
cachorro...
((todas vendo os desenhos em silêncio))
(63) Regina: nessa ela colocou editora Regina...
(64) Pesquisadora: aí tem um texto dela?
(65) Regina: tem um textinho...
(66) Leila: ((vendo a folha)) editora Regina...
(67) Pesquisadora: então Regina... deixa eu intervir nisso... então ela
escreveu né: então no dia catorze aqui ela escreveu ((lendo)) “um dia
uma pessoa estava no jardim e apareceu um monstro radical. Carla,
editora Regina”... surgiu daonde esse desenho e este texto...você
consegue se lembrar? da situação? surgiu como... qual foi a
continuidade? eu acho que tem até um desenho desse né: que ta
rodando... do monstro radical... que ela pôs toda a família.... será que é
esse o desenho?
(68) Regina: esse foi o primeiro... foi: ((olhando o texto)) ah, eu tenho a
impre:
(69) Pesquisadora: é no dia doze ela também escreveu...
(70) Regina: eu acho que: eu acho que esse aqui tem é: pode ser que
tenha sido no:: esse foi o primeiro desenho dela...
(71) Pesquisadora: então... e aí no dia doze também ela escreveu
((lendo)) “um dia passou vários cachorros e eu comi eles. Gaston é
gostoso que gostoso”. Então: os dois no mesmo dia... você lembra que
contexto era isso?
(72) Regina: eu tenho a impressão que esse tem a ver com aquele mas
deixa eu procurar mais alguma coisa ((volta a procurar no material))
muitas vezes o contexto era uma história que ela fazia um comentário e
um depois um desenho: agora eu não lembro mais: que livro de
cachorro... ((procurando no material))
(73) Rita: nesse desenho do radical também tem cachorro né... de
repente tem um monstro radical que comeu o cachorro ((risos))
(74) Regina: ela falava muito de cachorro/ ela não tinha cachorro e
queria ter cachorro...
(75) Heloisa: ela queria ter cachorro?
(76) Regina: ela não tinha cachorro...
(77) Heloisa: você não leu de uma historinha de cachorro: nada?
(78) Regina: ((procurando no material)) pois é ( ) acho que o que eu
poderia estar pensando aqui: às vezes eu peço pra olha: escreve o
que ta pensando o que tem vontade... eu acho que quando não tem
um contexto de livro de história eu peço para escrever o que tem
vontade também tem isso.... eu não consigo lembrar:: porque eu não
lembro de ter cachorro em algum livrinho dos que eu já/ dos que eu
costumo ler com as crianças ou dar....
(79) Heloisa: e ela falava que gostava de cachorro que queria ter um
cachorro...
(80) Regina: tinha FIXAÇÃO por cachorro... e assim: durante um
tempo a gente começou com ( ) isso aqui ((mostrando outro
trabalho)) ela fez uma cópia quem tem medo de bruxa -- da coleção
quem tem medo... que as crianças às vezes costumam ler -- e ela
fez questão de levar para a casa dela só que ela não escreveu o
que ela gostou...
A pesquisadora, com a sua intervenção, procura fazer com que a expositora
recupere o contexto em que foram produzidos os desenhos e textos observados
por todas, de modo a compreenderem a natureza do trabalho com a escrita
desenvolvido com sua paciente. Mesmo sem recordar o contexto preciso, em
momentos distintos desse mesmo fragmento, a expositora fala sobre seu trabalho
descrevendo algumas de suas ações, no decorrer do processo terapêutico:
(72) (...) muitas vezes o contexto era uma história que ela fazia um
comentário e um depois um desenho...
(78) (...) eu não consigo lembrar:: porque eu não lembro de ter cachorro
em algum livrinho dos que eu já/ dos que eu costumo ler com as
crianças ou dar....
Em outras palavras, quando há uma leitura de algum suporte de texto, este
serve de pretexto para a produção de um comentário escrito e um desenho. Na
ausência da leitura, a escrita é sugerida a partir do que o paciente esteja
pensando, aquilo que ele tenha vontade de escrever.
Tomemos como pressupostos o conceito de gêneros discursivos de Bakhtin
e a idéia subseqüente de que estamos sempre utilizando tais gêneros para falar.
Inseridos em uma determinada esfera de atividade humana, é esperado que
façamos uso do(s) gênero(s) relativos(s) a essa esfera e não é possível que se
faça uma combinação absolutamente livre das formas da língua num enunciado.
Estamos submetidos a uma coerção discursiva. Quanto maior for o domínio de
diversos gêneros discursivos, maior a condição de se fazer escolhas de
enunciado, dentro e fora de sua esfera de origem, e de se transitar nas diferentes
esferas de atividade humana.
Em contrapartida, pensamos que a inexperiência em determinado repertório
de gêneros discursivos poderia levar o locutor a uma sensação de fracasso quanto
à eficácia de seu discurso, em diferentes situações enunciativas. É com sujeitos
com essa história de vida que os fonoaudiólogos, freqüentemente, deparam-se na
clínica. O que podemos depreender, então, dos fragmentos do processo
terapêutico relatado pela expositora?
No trabalho relatado pela expositora, não parece haver orientação para um
trabalho voltado para a diversificação de interações verbais significativas e
conseqüente variação de gêneros discursivos. Há uma ênfase no uso da leitura
como pretexto para a elaboração de um comentário, como vimos, e como nos
mostra mais este fragmento (Regina lendo seus apontamentos de terapia):
(34) “após a leitura dessa história [História de Babar], solicitei a Carla
que fizesse um comentário por escrito, inicialmente Carla disse que
estava cansada porque já havia escrito MUIto na escola... finalmente
escreveu o comentário e desenhou o elefante”... ela fazia mais
desenhos... o trabalho era muito com desenho e um pouquinho de
escrita... era muito assim...
Ainda utilizando o conceito bakhtiniano de enunciado e suas características,
temos que todo enunciado é dirigido prioritariamente para o outro e sua
construção se dá em função da apreciação que o locutor faz dele, antecipando
respostas. Como veremos a seguir, a expositora queixa-se de que o trabalho com
escrita com essa paciente era muito difícil. Talvez possamos levantar algumas
hipóteses sobre por quê. Lembremos de que foi solicitado à paciente que fizesse
um comentário sobre o texto lido. Para quem? Com que finalidade? Em que esfera
de atividade humana estaria inserido tal comentário? O recorte a seguir nos traz
algumas respostas: (a pesquisadora pergunta, na seqüência do fragmento
anterior)
(35) Pesquisadora: deixa eu te fazer uma pergunta Regina... ela fez/ela
escreveu né: ela escreveu e desenhou você é: tem que intervenção
nessa hora? você também comenta em cima do texto dela: não
comenta... qual foi/ você tem uma lembrança de qual foi:
(36) Regina: eu comentava os textos... eu comentava: eu pedi para ela
ler o texto e às vezes quando ela observava falha eu dizia: ah:: ela
observava às vezes alguma falha também...
(37) Pesquisadora: Hum hum:: aí o comentário ia nesse sentido?
(38) Regina: o comentário ia nesse sentido e ia no tratamento do erro
né: como podia tratar que outro jeito ela tinha pra escrever aquela
palavra...- - eu tenho mais/ mas ta tudo solto realmente ((procurando
mais material de Carla)) esse aqui olha foi também um das primeiras
sessões... vinte e dois do quatro de dois mil...- -
A expositora explicita que sua devolutiva, isto é, sua resposta ao enunciado
de sua paciente, vai em direção à abordagem do erro, reeditando assim uma
prática escolar bastante conhecida. Ora, foi exatamente a esfera escolar que
encaminhou a criança para um trabalho específico. E, provavelmente, nessa
esfera, Carla tenha experimentado a sensação de fracasso citada anteriormente.
Da mesma forma que a terapeuta reedita uma das práticas escolares, é assim que
a paciente a percebe, entendendo então a escrita do comentário como mais um
pretexto (também) para que seus erros sejam apontados. Compreende-se aí a
resposta de Carla ao pedido da terapeuta: estava cansada porque já havia escrito
MUIto na escola... Não havia mais espaço para o mesmo e a resistência de Carla
talvez seja uma tentativa de comunicar essa saturação para sua terapeuta.
Bakhtin (1929:112) nos diz que:
(...) vemos a ‘ cidade e o mundo’ através do prisma do meio social
concreto que nos engloba. [E] na maior parte dos casos, é preciso supor
além disso um certo horizonte social definido e estabelecido que
determina a criação
ideológica do grupo social e da época a que
pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da
nossa ciência, da nossa moral e do nosso direito.
Embora estejamos, na Fonoaudiologia, num momento propício a novas
reflexões, acreditamos que a prática fonoaudiológica ainda oscila entre novos
paradigmas e seu discurso fundante mais arraigado: o da eliminação de erros da
linguagem.
Esse discurso data das primeiras práticas consideradas como
precursoras da Fonoaudiologia. A configuração do profissional que trataria
dos distúrbios da comunicação e o perfil do portador desses distúrbios
estruturaram-se, como vimos, a partir de ideais de uniformização da língua
do Movimento Nacionalista e de concepções da Saúde Escolar e da Escola
Nova. Segundo Figueiredo Neto (1988), as deficiências deveriam ser
eliminadas para que a língua pátria não fosse maculada. Estava instaurado o
preconceito lingüístico55, ainda hoje fruto de debates e denúncias. A
eliminação das deficiências não se efetivou, como se supunha, através de
programas oficiais e sim pela determinação de um profissional especializado
que se responsabilizasse pela re-educação (Figueiredo Neto, 1988: 78). Esse
profissional, inicialmente, foi o próprio educador, que, aos poucos,
ganhando novos conhecimentos e especializações nas áreas médica e
lingüística, transformou-se em fonoaudiólogo. Vale salientar que o primeiro
curso de Fonoaudiologia do Brasil, na Universidade de São Paulo, na década
de sessenta, tinha a exigência de que os alunos tivessem formação anterior
ligada ao Magistério, associando-se inevitavelmente a atividade do
fonoaudiólogo à área educacional.
Embora seja voz corrente entre os fonoaudiólogos, na atualidade, que
sua atividade não é pedagógica e sim terapêutica, suas ações, no tocante ao
trabalho com a linguagem, ainda denunciam esse horizonte social.
Voltemos ao relato da expositora. Por várias vezes, no decorrer de
sua exposição, ela fala que solicitava à Carla que escrevesse o que
quisesse, o que tivesse vontade. Eis o que aconteceu:
(89) Regina: ela falava disso [dos livros que ela queria copiar] ( ) eu
queria dizer pra ela que não era aquilo que eu tava querendo fazer
com ela...eu queria que ela escrevesse o que tava passando na
cabeça dela... as idéias que a gente tava conversando e que era a
partir daquele momento que a gente podia estar escrevendo
alguma coisa... eu queria a escrita espontânea dela...não queria
cópia mas ela tinha um hábito/ ela trazia/ uma vez ela trouxe pra
fazer lição na sessão... foi difícil ela trouxe e ficou na minha frente
e ficou fazendo... eu disse eu acho que eu não tenho nenhuma função
aqui: você pode voltar para sua casa e fazer lição porque eu não vou
fazer lição com você... eu acho que é outra coisa... ela ficou com muita
raiva... aí uma hora ela pára/ aí ela guardou: aí ela ficou: dando a
entender que ali não era lugar de fazer lição de casa eu não era
professora particular dela como ela tinha dito mas a outra fazia lição
comigo...
55
É do diretor do Laboratório de Fonética e Acústica, dr. João Lellis Cardoso, o depoimento sobre aquela
época: ‘Fizeram um levantamento em todos os parques infantis, umas 50 mil crianças mais ou menos (...)
Descobriu-se que as crianças dos Parques Infantis e das escolas eram uma calamidade, falavam tudo
errado, não cantarolavam, não sabiam nada”. ( Figueiredo Netto, 1988: 82)
Escrever o que tivesse vontade... e aí apareceu a lição de casa. Se era
para escrever o que tivesse na cabeça e se parecia à Carla ser aquele espaço
uma re-edição do escolar, por que não? Mas a terapeuta insiste em demarcar
território, com um discurso autoritário que invalida a possibilidade de
interlocução, embora Carla tenha arriscado uma insistência: mas a outra
fazia lição comigo... Interessante notar como a conjunção mas aí funciona
como um marcador conversacional que procura re-ordenar o dito (ou o
interditado) num outro ponto de vista (Marcuschi, 1986). Uma nova tentativa
de se fazer escutar. No entanto, no cruzamento de vozes que ecoavam
naquele espaço terapêutico, a que se sobressaiu para a terapeuta/expositora
foi a da outra, a psicopedagoga, que fez um trabalho anterior com a criança.
Essa é a hipótese que a pesquisadora parece ter levantado, no momento da
interação, na medida em que busca sua confirmação, na seqüência do
diálogo, como podemos observar no seguinte fragmento:
(180) Pesquisadora: na verdade: nessa situação -- vê se é isso -- você
respondeu à/ao trabalho dessa psicopedagoga e não a uma solicitação
que ela tava fazendo.. pode ser isso?
(( silêncio))
(181) Pesquisadora : você lembrou:
(182) Regina: (SI)
(183) Pesquisadora: da psicopedagoga...
(184) Regina: é... eu lembrei agora... e também quando ela me trouxe/
ela dizia assim por que você não vai comigo? isso foi um diálogo que eu
tive com ela... porque eu sou: eu eu não sou: a outra fazia... a outra
era a psicopedagoga que eu nunca/ não lembro do nome...não sei se eu
anotei alguma vez esse nome e essa outra fazia... ela brigava
comigo...ela brigou e eu dizia mas aqui é um lugar onde a gente vai
trabalhar algumas dificuldades em relação à sua escrita e algumas
dificuldades que você tenha outras... a gente vai fazer/ a gente
pode escrever: a gente pode fazer jogos: a gente pode fazer muitas
coisas... mas a gente não vai fazer a sua lição aqui... era catecismo
tudo/ nada... ela trouxe outras coisas que não tinha assim né... ela
trouxe coisas de:/ brigava comigo porque eu não fazia e no fim ela
parou...
(185) Pesquisadora: ela trazia coisas de: da escola em geral e:
(186) Regina: da escola e de outras situações... a lição de catecismo/sei
lá o que ela tinha que fazer ela queria usar a hora da sessão pra fazer...
eu sempre me coloquei na outra posição: na posição mesmo de que ali
não era um espaço para ela fazer digamos... tarefa de outro lugar...
... porque eu sou: eu eu não sou: Uma hesitação que parece denotar uma
reformulação que, no entanto, não se concretiza, não se torna substantiva. Carla
levava lição de casa para a terapia fonoaudiológica e também outros temas de sua
vida. Como o catecismo. Mas se ali não era o lugar e se
a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a
realizam, e também através dos enunciados concretos que a vida
penetra na língua (Bakhtin, 1952-53: 282)
que trabalho de linguagem sobrava para ser feito?
Nesta perspectiva, é possível de se compreender por que a
terapeuta/expositora suspendeu o trabalho com a escrita.
(91) Regina: a outra psicopedagoga que ela/ -- eu não sei: eu não sei
nem quem é mas foi alguém que trabalhou com ela que a mãe me falou
que era psicopedagoga que fazia lição de casa com ela – então: foi
muito difícil ela mudar é: um pouco a estratégia e saber que ali era um
outro lugar de trabalhar as dificuldades dela e ela dizia não preciso mais
vir aqui, não tenho mais nenhum problema... às vezes ela era muito
dura... às vezes ela me atacava me batia mesmo era muito agressiva
...tinha que dar uma contida legal... por isso que eu tive que parar
realmente o tratamento/ o trabalho com a escrita por um tempo porque
ela foi ficando... a mãe também tava:-- coincidentemente ou não-- a mãe
tava fechando uma firma... tava na lua de nervosismo chegou comigo eu
fiz umas sessões com a mãe até disse olha o que ta acontecendo que
a Carla ta numa agressividade total e a mãe ficava a sessão INTEIRA
esperando...
Na tentativa de se distanciar do pedagógico, que parecia estar ameaçando seu
trabalho terapêutico, a expositora busca, então, dar a contida legal, isto é,
trabalhar a questão emocional. O distanciamento do pedagógico leva também ao
distanciamento do trabalho com a linguagem. Vejamos outros enunciados:
(101) Regina: (...) o que eu posso pensar desse caso é que essa
rejeição com relação à escrita me parece:-- acho que até fundamentada
um pouco na psicanálise-- que tem uma relação muito estreita com o
conhecimento da mãe com a relação com a mãe... aquela coisa assim
de: foi muito muito forte isso pra mim: nesse caso... se você for buscar/
se você for um pouquinho atrás... -- eu não sei qual a experiência que
vocês têm também no trabalho com os pais -- mas esse caso foi muito
muito muito:: eu acho que ela tinha um potencial para melhorar mas ela
tinha um bloqueio e esse bloqueio tinha de ser trabalhado... e eu até
cheguei a pensar em ficar realmente trabalhando com ela na parte que
eu tinha pensado:no emocional e encaminhar/ quase que eu te
encaminhei [dirigindo-se à pesquisadora] esse caso... pra escrita...
(102) Leila: mas a mãe te procurou como fono...
(103) Regina: exatamente... mas ela sabia que eu sou fono e
psicóloga... eu me apresento como fono e psicóloga....
(104) Pesquisadora: eu acho que a gente pode abrir agora... até porque
todo mundo ta falando... uma discussão interessante né... certamente
com essa brecha que você ta dando aí: quase que encaminhei pra
você... bom: estamos na mesma condição de fonoaudiólogas né: de
fonoaudiólogas e terapeutas e de repente você percebe nesse caso -só to retomando o que você ta falando pra gente pensar que eu quero
escutar todo mundo falar disso -- e aí você percebe nesse caso que
tinha uma questão emocional e meio que: suspende a linguagem... vê
se eu fiz uma leitura correta do que você falou... suspende a linguagem
pra trabalhar o emocional...é isso ou não?
(105) Regina: mas não a linguagem... a escrita...
(106) Pesquisadora: a escrita...
(107) Regina: a linguagem né::
(108) Pesquisadora: ta/ que você retomava muito dentro de uma linha
de interpretação...
(109) Regina: de interpretação... sempre interpretava
(110) Pesquisadora: tudo o que ela tava colocando: você fazia uma
interpretação...
(111) Regina: desenho: escrita: tudo...
(112) Pesquisadora: psicanalítica?
(113) Regina: sim....
Como vimos no capítulo 2, Cunha (1997) faz um convite aos fonoaudiólogos
para que escutem seus pacientes com duas orelhas: uma para os sintomas em
sua especificidade e outra para os conteúdos latentes. O que observamos aqui, no
entanto, parece apontar para uma dificuldade de se realizar um trabalho que
considere efetivamente os dois aspectos.
Na exposição de Regina, parece haver um conflito em se realizar uma escuta
fonoaudiológica diferenciada, em que se considere a relação do discurso com o
psiquismo, associada ao trabalho com a linguagem que, como vimos, aproxima-se
do característico da clínica fonoaudiológica tradicional, a clínica da objetividade.
Na falta de novos paradigmas que sustentem o trabalho fonoaudiológico com a
linguagem, Regina opta por suspendê-lo, assumindo seu papel de psicanalista.
A dúvida de Leila sobre seu fazer fonoaudiológico e a decisão de Regina
em abandoná-lo parece-nos ser indícios da existência de um vácuo no trabalho
com a linguagem. Por muitas vezes, os profissionais questionam se eles estão ou
não sendo fonoaudiólogos. E, invariavelmente, a dúvida surge quando se procura
aprofundar o trabalho com a linguagem.
6.1.3. Rita e o atendimento de uma criança com atraso de linguagem
O quarto encontro –
a terceira exposição oral –
ficou sob a
responsabilidade de Rita, fonoaudióloga atuante há cinco anos na área terapêutica
e com experiência docente também na área de clínica de linguagem.
Como já dissemos anteriormente, a presente situação discursiva também
apresentou configuração inédita: Rita, sentada sozinha num dos sofás, Carmen e
Heloísa sentadas no outro. Notamos que as posições escolhidas no primeiro dia
mantiveram-se quase que inalteradas ao longo dos encontros, com exceção do
dia em que cada participante fazia sua apresentação. Nessa situação,
observamos que seu lugar ficava reservado no sofá no qual sentou-se o primeiro
expositor. Este sofá tornou-se uma espécie de parlatório.
Dos três participantes presentes neste encontro, apenas Carmen não
estava no anterior. Regina, por sua vez, que havia apresentado seu caso nesse
encontro, não compareceu aos posteriores. Ela justificou à pesquisadora motivos
particulares para essa ausência.
Rita trouxe apontamentos de sessões que serviriam de base para sua
exposição, mas pouco os utilizou. Sua exposição teve características de relato
oral, tal qual as anteriores já analisadas. Seus enunciados foram longos,
pouquíssimo interrompidos pelas outras participantes, que fizeram intervenções
mais de ordem de esclarecimento que de discordâncias ou complementações.
O caso apresentado foi o de um menino, de três anos e dez meses (idade
do início do processo terapêutico), levado à terapia fonoaudiológica por não estar
desenvolvendo a linguagem. Segundo Rita, inicialmente, ele apenas fazia gestos
indicativos daquilo que queria obter, prontamente atendido por seus familiares. O
início do processo terapêutico foi marcado por brincadeiras motoras de encaixe,
de formar torres com materiais diversos e o preferido pela criança era o lego56.
Com poucas sessões de terapia, é assim que Rita descreve seu trabalho:
(1) Rita: então ele ia fazendo vocalizações muito próximas do que a
gente estava falando... a gente montava: e ele escolhia/sabe aqueles
baldes de lego? Tinha os robozinhos:os jacarezinhos: e eu montava e
ele ia me dando as pecinhas de cor igual pra eu ir montando aí ele
destruía...aí eu ia jogando no balde e ia falando cesta... e ele eta e eu
falando cesta e ele eta e a gente ia jogando e era uma maravilha...
É interessante observar que, ainda que a expositora não faça menção a um
trabalho numa perspectiva cognitiva, fazer a alusão ao fato de que o menino lhe
dava as peças de cor igual é herança de uma visão interacionista piagetiana no
trabalho terapêutico fonoaudiológico. Ecos dessa abordagem, em que se preze a
hierarquização das estruturas cognitivas, aparecem na exposição de Rita, quando
diz:
(3) (...) e aí um dia ele pegou um carrinho e eu abri um jogo que tinha
um tabuleiro e a gente brincava de passar o carrinho por baixo do
56
Lego, brinquedo conhecido mundialmente, é formado por um conjunto de peças variadas em cor, tamanho
e forma, com um sistema próprio de encaixe que permite construções diversas. Normalmente, cada caixa de
lego traz uma série de sugestões de objetos que podem ser construídos, mas as possibilidades são infinitas.
tabuleiro como se fosse um túnel e aí ele queria ele passar por debaixo
do tabuleiro como se fosse um túnel...só que o tabuleiro era desse
tamanhinho ((mostra o tamanho com as mãos)) e aí começou a
simbolizar um pouco mais e não ser só mais montar e desmontar o
tempo todo...
(13) (...) ele nunca pediu pra levar a gravata que a gente brincava...nada
disso...dentro do que a gente fazia de mais simbólico ele não queria
levar...era sempre os brinquedos mais concretos...da parte mais inicial
da terapia...
A idéia de se iniciar o trabalho pelo concreto para depois encaminhar-se
para o simbólico traz a reboque uma das principais prerrogativas do pensamento
piagetiano, qual seja, a de que todo o início do desenvolvimento cognitivo está
relacionado às ações da criança. Para Piaget, o mesmo aconteceria com a
linguagem. Longe de transmitir o pensamento, a linguagem da criança estaria,
primeiramente, mais relacionada a modos de agir particulares (1923: 30).
Numa terapia fonoaudiológica, isso se traduz no uso da linguagem como
descrição da ação infantil. A linguagem aqui também é deslocada para um
segundo plano. Ainda que a criança fale, como é o caso citado no fragmento (1),
tal participação infantil na interlocução é tomada como imitação, sem a qual,
admite Piaget (1923), a criança não aprenderia nunca a falar. O trabalho
terapêutico parece incidir sobre a ação da criança, na medida em que a
brincadeira se repete sempre do mesmo modo, com as mesmas verbalizações,
até que um dia ela (criança) mude o seu foco de atenção. Em outras palavras,
espera-se das descobertas da criança em interações que estabelece com o meio
físico o seu desenvolvimento intelectual e lingüístico. Só a partir desse momento,
a terapeuta mostra uma outra postura em relação à linguagem da criança e ao que
pode ser construído nas interlocuções que surgem no decorrer do processo
terapêutico. Vejamos o que Rita fala sobre esse momento terapêutico:
(3) (...) e aí começou a simbolizar um pouco mais e não ser só mais
montar e desmontar o tempo todo...e as brincadeiras começaram a ser
muito mais interessantes...até eu também comecei a me divertir muito
mais com o atendimento também... -- eu queria lembrar qual foi a
brincadeira mais simbólica ((olha o material que trouxe para a
apresentação)) – ele tinha uma hipotonia mas não era isso que
caracterizava o seu atraso de linguagem...mas eu queria mexer na boca
dele e ele não deixava de jeito nenhum... aí um dia ele chegou: ele abriu
o armário: tinha dois telefones de plástico...tirou tudo o que tinha lá
dentro: um monte de jogos e brinquedos: e aí ele entrou lá dentro e
fechava feta tia feta...aí eu fechava o armário: ele ficava com um
telefone lá dentro e eu com um fora.. aí eu eu vou telefonar... aí eu
fazia o barulho trimm:: aí ele quem é? Aí eu é a tia... não é... aí ele
abria a porta e dizia: é a médica... aí eu dizia: é a médica... e aí ele dizia
como que tinha de ser a brincadeira... e aí a gente criou uma brincadeira
que durou uns dois meses...
Quando a expositora procura em seu material um exemplo mais explícito de
brincadeira simbólica da criança,
depara-se com um outro dado que julga
importante mencionar: a criança tinha hipotonia dos órgãos da fala e, embora para
a terapeuta isso não caracterizasse seu atraso de linguagem, parecia ser
imprescindível o trabalho pontual com esse aspecto. Esse dado, no entanto, está
relacionado à outra base teórica de forte influência no trabalho terapêutico da
clínica da objetividade, como vimos em capítulo anterior. Falar (e falar bem)
dependeria também da adequação funcional de lábios, língua, bochechas, pálato.
A possibilidade de a criança abrir espaço para uma brincadeira mais simbólica
configurou-se para a terapeuta também como uma possibilidade de intervir com o
trabalho específico de motricidade oral.
(3) (...) e me telefonava e dizia eu to doente...daquele jeito embolado
que ele falava... aí eu dizia:eu to indo... aí eu fazia barulho de
ambulância e tava chegando...aí eu abria o armário: aí dava pra pegar a
espátula: o vibrador: e fazer alguma coisa na boca dele e ele curtia...era
o único jeito de mexer na boca dele porque se saísse do armário não
podia mexer na boca dele...
Por mais que o aspecto miofuncional não fosse determinante nas
dificuldades de linguagem, ele esteve no horizonte do trabalho desenvolvido pela
terapeuta. É interessante observar que não há menções da expositora quanto aos
possíveis temas que estavam em circulação no decorrer das sessões
fonoaudiológicas. Sabemos que a brincadeira do armário durou por volta de dois
meses e, segundo a expositora, sempre do mesmo jeito no início das sessões.
Quando, num primeiro momento, nessa brincadeira, a terapeuta referiu-se a si
mesma como é a tia, nota-se que a criança a corrige dizendo não é, é a médica.
Havia, portanto, por parte daquela criança de três anos e dez meses, o
discernimento de alguns papéis sociais e suas possíveis hierarquias dentro de
contextos específicos. No instante dessa brincadeira, a terapeuta não era mais a
tia, aquela com quem ela estabelecia uma tal relação a ponto de sentir-se segura,
por exemplo, em dizer que não era para mexer em sua boca. A terapeuta era a
médica, essa sim, com autoridade de tocar a região inicialmente proibida.
Havia, então, a circulação de significados diversos e uma possibilidade de
construção de outros novos, levando-se em conta o horizonte social dessa
criança. Lembrando Vygotsky (1934), interação social e criação de significados
são indissociáveis na emergência e desenvolvimento da linguagem. Mas, para
isso, a criança tem de ser tomada como ser histórico, como parte de um todo
social. Assim como sua atividade também o deve ser, na medida em que põe à
mostra a capacidade da criança de reorganizar o que lhe é dado, transformando a
realidade a partir de um movimento em que a ação e pensamento estão fundidos.
Aquilo que, na brincadeira de médico no armário, poderia significar
efetivamente um trabalho de linguagem, ficou reduzido à condição única de
manipulação dos órgãos de fala da criança.
No decorrer do processo terapêutico, outras situações discursivas surgiram
apresentadas pela expositora como novas brincadeiras que a criança criava a
partir de materiais presentes na sala de terapia.
(5) Rita: (...) como começou isso [a brincadeira do pai que lutava contra
o lobo mau para defender sua filha] eu não me lembro...mas que ele era
meu pai foi ele que falou né: mas como começou eu não me lembro...
ele era meu pai e eu a filha dele... aí tinha o lobo mau e ele lutava com o
lobo mau e eu dizia ai pai to com medo... e ele calma minha filha e ele
vinha e beijava minha testa e aí rolava no chão: lutava como um
verdadeiro Jaspion57 e depois o lobo ia embora...
57
Jaspion: personagem de seriado infantil japonês. Trata-se de um guerreiro futurista que luta contra o mal.
(17) Rita: (...) depois desse período [período em que ele só saía da sala
de terapia se levasse algo de lá consigo] ele subia em cima da mesa e
ficava procurando estação no rádio e ficava dançando e pegava na
gaveta papel e ficava fazendo minhoca... era minhoca pai: minhoca
mãe: minhoca tia: minhoca Bel – que é a irmã dele – e não tinha
minhoca Pedro... ele dizia que não era minhoca... todo mundo era
minhoca e ele depois pegava o papel e picava tudo.. aí eu peraí...antes
de você desfazer a minhoca:vamos brincar... a minhoca Marcel – que
é o primo dele – brincava com a minhoca tia e aí ele ficava bravo: a
minhoca Marcel não vai brincar... aí eu falava então a minhoca da tia
vai brincar com a minhoca da Bel... e aí até que ele se fez minhoca
também e ele entrou como minhoca e se colocou no meio que ele tinha
se excluído que era todo mundo que ele tinha contato... e nessa época
que ele começou a sentar na mesa e a brincar comigo na mesa: ele já
saía mais tranqüilo...
É interessante notar que a expositora, durante sua apresentação
para o grupo, compara o garoto e sua forma de lutar a Jaspion, personagem de
desenho infantil. Pouco sabemos, entretanto, se essa comparação foi feita ao
próprio garoto ou, ainda, se houve referência a outros lobos maus que circulam no
universo da literatura infantil, o que seria uma forma de introduzir aspectos da
cultura infantil no trabalho terapêutico com a linguagem. Somente a partir da
entrada da criança na esfera da cultura humana é que se pode esperar que ela
saiba lidar com o discurso.
Pelo que foi explicitado na exposição oral do caso, a terapia era conduzida
de uma mesma forma: novas situações, sempre introduzidas pela criança e
assumidas pela terapeuta, que participava de acordo com o papel que lhe era
atribuído. O que se construía em termos de linguagem, durante as sessões, girava
em torno exclusivamente da situação em si, sem referências a outros contextos, a
outros possíveis significados, à construção de novos conhecimentos.
Aquilo que o garoto trazia como pertencente à sua cultura era sim acolhido
pela terapeuta, mas descaracterizado como tal, na medida em que o olhar da
terapeuta voltava-se para aspectos pontuais da fala da criança. Vejamos o
seguinte fragmento do seu depoimento:
(23) Rita: na brincadeira eu era participante mesmo... eu participava e
em alguns momentos:depois de um tempo: quando ele já tinha
condições de perceber até a questão a de fala dele:eu ia apontando
algumas coisas pra ele mas eram pontuações assim...que eu não
cortava muito a situação da brincadeira: por exemplo: na do médico
dava pra falar nossa o senhor está muito doente mesmo...o senhor
falou médito... não é médito... aí eu já ia com a espátula58 e é
médico... aí ele fala médico e ai eu ia tentando por coisas na brincadeira
e eu brincava muito com ele... era uma coisa de estar ali... ao mesmo
tempo em que eu ia interagindo eu prestava atenção em como estava a
linguagem dele/ a fala é:: eu participava de me esconder no chão: de
ficar com medo e aí ele falava calma filha calma... ai pai: to com
medo... é um monstro... aí ele pedia silêncio e ia lá: lutava de novo e
voltava e me agradava: eu participava junto da dramatização que ele
fazia tanto no médico como nas minhocas... eu intervinha de questionar:
por que que ele não era minhoca:: então as minhocas iam brincar: por
que que as minhocas só iam existir e deixar de existir... então assim de
mostrar que de repente ele podia ter uma função: que todos os
membros: pai:mãe:primo: irmã: eu: que ele conhecia estavam ali e ele
não... e depois ele querer estar junto porque as minhocas brincavam e
podia ser interessante que saísse daí... acho que em alguns momentos
eu questionava um pouco se ele não ia se colocar como minhoca por
exemplo... que música que ele gostava;quando ele ia mudando
música...nas músicas deu pra trabalhar bastante a parte articulatória:
porque ele cantava umas coisas que eu você não cantou isso... tal: e
aí ele ia procurar e aí acabava a música... ele não queria por CD até
porque os CDs que eu tinha eram muitos chatos e ele era muito
moderninho para os CDs que tinham lá...então ele queria ir procurando
outras músicas e ia cantando e a gente ia trabalhando bastante a
articulação nas músicas que ele ia cantando...
Assim como no depoimento anterior, o paciente traz para o contexto
terapêutico temas que lhe são significativos no cotidiano. Enquanto Regina
assume uma postura de recusar-se a fazer o que sua paciente desejava, porque
ali não era o espaço – conforme discutido anteriormente –, Rita incorpora o que
seu paciente tem a dizer. Em suas palavras, seu trabalho era o de estar ali,
interagindo ao mesmo tempo em que prestava atenção em como estava sua
linguagem.
Embora
aparentemente
distintas
em
suas
posturas,
embora
observemos esforços em se distanciarem de um trabalho fonoaudiológico
58
Uma das técnicas de produção do fonema /t/, muito difundida na prática fonoaudiológica, consiste em
segurar a ponta da língua no assoalho da boca, com o auxílio de uma espátula, no momento em que o
paciente emite esse fonema em substituição ao fonema /k/. Com a ponta da língua presa, o que se
movimenta em elevação é o dorso da língua: em lugar da emissão de /t/ temos então /k/. Aos poucos a
criança vai automatizando essa produção.
tradicional, quando o foco recai sobre a linguagem, o que vemos em ambas é
ainda uma reedição das prerrogativas do trabalho que nos parece ser o mais
conhecido, o mais arraigado, aquele realizado na clínica da objetividade.
Um último fragmento do depoimento de Rita ilustra essa constatação.
(17) (...) e nessa época que ele começou a sentar na mesa e a brincar
comigo na mesa: ele já saía mais tranqüilo: foi algo meio gradual... às
vezes ele pedia para levar alguma coisa...mas não fazia tanto show...aí
coincidiu com os sintomas de linguagem dele foram/ele chegou não
falando nada: só apontando mesmo... aí começou a produzir mais
anteriores...os posteriores: ficou mais para o final mesmo: eu não
trabalhei isso diretamente...
Falar da linguagem, dos sintomas que foram desaparecendo, é ainda falar
de fonemas adquiridos. Curiosa e compreensível (provocativa?) é a pergunta de
Heloísa, ao final da apresentação de Rita: por que você avaliou como atraso de
linguagem e não como distúrbio articulatório?
6.1.4. Carmen e seu trabalho terapêutico numa instituição educacional
Carmen foi a quarta integrante do grupo a fazer sua exposição oral. Foi a
mais longa apresentação e também a mais interrompida por intervenções diversas
dos outros dois participantes, Leila e Heloisa.
Entendemos que tais intervenções resultaram do andamento dos encontros
de forma geral. Talvez movida pela tendência observada de as expositoras não
caracterizarem seus depoimentos como elocuções formais, Carmen também não
trouxe material previamente elaborado, valendo-se igualmente da memória para
relatar seu caso. Além disso, Carmen, Leila e Heloisa foram os sujeitos de
pesquisa que compareceram a um maior número de encontros e que se
identificavam por terem menos tempo de formadas e de experiência profissional. A
familiaridade e cumplicidade entre elas garantiram certa informalidade no
encontro.
A apresentação de Carmen abriu três frentes de discussão: uma
relacionada ao conceito de limitrofia (diagnóstico dado ao seu paciente), outra
voltada para os procedimentos da instituição em que trabalha e a última ligada aos
procedimentos terapêuticos utilizados por Carmen na condução do caso. Houve
muitos questionamentos quanto às duas primeiras frentes de discussão aqui
mencionadas, por existir, entre os ouvintes, desconhecimento e discordâncias
quanto a determinados aspectos do trabalho desenvolvido na instituição.
Optamos por centrar nossa análise em sua conduta terapêutica, por
entendermos que abarcar integralmente os outros dois temas desviaria nosso foco
de atenção.
Carmen trouxe a história de Carlos, um jovem de vinte anos que ingressou
na Instituição Rio Grande, que oferece apoio multidisciplinar a jovens limítrofes,
por não conseguir concluir a educação formal em instituições educacionais
comuns. Carlos chegou a cursar até a oitava série, mas sem demonstrar
assimilação de conteúdos. Era um garoto agitado, sem capacidade de
concentração e também muito agressivo. Quando pequeno, sua mãe o
abandonara deixando-o aos cuidados do pai, que se casou novamente. Desde
então, foi sua avó paterna que assumiu sua criação. Quando o pai conheceu o
Instituto Rio Grande, Carlos já tinha dezessete anos e uma história de uso de
remédios como Tegretol e Gardenal para baixar a ansiedade.
Carmen entrou em contato com Carlos já no seu terceiro ano de Instituto.
Ele já estava, nessa época, com uma maior estabilidade emocional e com
perspectivas de fazer supletivo para assegurar o ensino fundamental. Os
profissionais do Instituto dariam o suporte técnico para que Carlos conseguisse
acompanhar as aulas do supletivo.
(23) Carmen: (...) então o Carlos ia de segunda:: de terça quarta e
quinta pro Rio Grande... terça quarta e quinta: e ainda saía mais cedo...
eu comecei a ver o Carlos só na quarta... e mesmo assim ele estava
sempre no corre corre por causa do supletivo pra tentar acompanhar...
prova trabalho tudo ele precisava da gente...e: e ele tinha bastante
dificuldade de organização... do pensamento: da fala... é:: de tudo ele
tinha dificuldade de organizar... ele era uma criança agitada: um jovem
que falava TUdo que vinha na cabeça...não interessa assim se era
hora... se era para a pessoa certa... era imaturo e::
Nesse momento, Carmen foi interrompida por Heloisa que a questionou
sobre o conceito de limitrofia. Assumindo a voz da instituição em que trabalha, ela
diz que limitrofia é um estado do ser, um estado de viver na imaginação sem
conseguir concretizá-la na realidade. Como dissemos anteriormente, tal definição
gerou muitos questionamentos e Carmen procurou, ao longo de sua exposição,
retomá-la, sempre tendo como parâmetro a voz institucional. Sobre Carlos, ela diz:
(38) Carmen: o que ele criou...o que ele inventou...seria isso...então o
Carlos ele imagina bastante... ele inventa...só que ele não consegue
organizar e codificar isso no papel...
(39) Pesquisadora: e nem na oralidade:
(40) Carmen: e nem na oralidade...
(41) Heloisa: então como é que você sabe que ele imagina tudo isso se
nem na oralidade e nem no papel:: como ele tem/como você vê:
(42) Carmen: então...porque/pelas atitudes dele...então: assim... só mais
um dado do Carlos antes de situar...colocar uma situação da
história...ele adora desenhar... e ele desenha muito bem -- pena que eu
precisei deixar no Rio Grande essa papelada porque ele está internado
atualmente -- então eu não pude trazer pra mostrar...o Carlos... ele por
desenhar ele traz tudo...e até na fala se você deixar solto vem... no
teatro ele representa:: ele vive o personagem...
(43) Leila: quando você fala deixar solto vem... como assim? o que
vem?
(44) Carmen: vem assim é: uma fala desconexa... mas do que ta/você
vê que é o Carlos... então ele vem de repente/vou por uma situação ( )
(45) Leila: Dá exemplo::que fica mais fácil
(46) Carmen: que é mais fácil...ele bateu: entrou na sala: oi...entrou:
sentou: sabe o que que é? me roubaram cinco reais da minha
carteira...daí eu falei: ta:: e aí:: então me roubaram cinco reais da minha
carteira...você tem dinheiro pra voltar Carlos: pra casa? Tenho...
então: e nisso todo mundo que estava na sala -- porque eu trabalho em
grupos -- todo mundo que estava na sala parou:: porque a gente estava
fazendo ( ) e ele vem com essa fala...aí dessa vez eu saí da sala: falei
espera só um pouquinho: é isso realmente que você quer dizer
Carlos? Ele falou é...então espera aí... aí eu fui e fiz uma dramatização
com eles que estavam na sala mas com outra coisa...eu bati na porta e
falei assim...putz esqueci meu celular...e fiquei parada olhando...ele
começou a rir... e aí ele pegou e falou assim: entendi...aí eu falei o que
você queria dizer Carlos? Era que roubaram:: seu dinheiro ou que
você não está com dinheiro e queria dinheiro emprestado pra outra
coisa:: aí ele parou e falou sabe o que que é:: é que eu queria na
verdade: eu vou ter que pagar: não lembro o que que era se era outro
ônibus que ele ia ter que pegar:
(54) Carmen: ele não foi roubado... ele veio sozinho... mas aí é que está
a imaginação e o:: a criatividade e a coisa deles... ele queria ir comprar
outra coisa no caminho ou pegar o ônibus mais longo que custava mais
pra chegar mais rápido... e ele inventou a história de terem roubado pra
pegar o dinheiro...
Carmen desenvolve seu trabalho com grupos de alunos do Instituto.
Conforme seu relato, nessa instituição, não há obrigatoriedade dos adolescentes
freqüentarem todos os dias os trabalhos a eles destinados. Eles freqüentam
quando querem. Isso faz com que alguns não obedeçam sequer os horários certos
de cada atividade, que foi o que ocorreu na situação acima trazida por Carmen.
Aquilo que seria um exemplo de fala desconexa, de pura imaginação,
sintetizado no fragmento (54), confundiu ainda mais as outras participantes do
grupo. A fala de Leila retrata essa afirmação:
(55) Leila: agora pra mim ficou confuso quando você conta isso... é::
acredito que você tenha é:: outras vivênci/outras ocorrências com ele:
é:: em outras situações outros contextos que fez você pensar
automaticamente que na hora em que ele foi roubado: ele estava
simulando... não simulando: ele estava trazendo isso...que quando você
conta: me faz pensar assim é:: como uma pessoa normal que chega e
fala assim: fui roubado e fala tipo ao invés de e aí? tipo assim: aonde?
Como? Que que te levaram? Como você tá? Então assim:: se você
está nesse caminho já é:: não sei é complicado...
O que nos parece que Leila reclama é a necessidade de acabamento do
enunciado.
Ao falar da existência de outras vivências, Leila procura crer que
enunciados anteriores dariam conta a ambos os interlocutores, nessa situação, de
compreenderem os sentidos aí construídos. Só isso, para ela, daria sentido ao
enunciado inicial de Carmen - tá: e aí? - em resposta ao de Carlos, porque, como
ela mesma diz em seguida:
(57) quando você fala e aí:: você fecha...tipo assim se eu falo pra você
to super triste... hahan... se eu ia contar que estou triste por alguma
coisa eu acabo me fechando... aí estou dizendo isso que você já deve
ter tido outras ocorrências já pra tomar esse caminho...pra tomar essa
atitude...
O que Leila busca compreender é o que Bakhtin nos aponta, como
vimos anteriormente, como o critério mais importante para o acabamento do
enunciado: a possibilidade de responder. A resposta tá: e aí? não parece aos
olhos de outros interlocutores dar um tratamento exaustivo ao tema de modo a
fazer com que o diálogo prossiga. O que Leila aponta, na ausência de enunciados
anteriores que sustentem o atual, é um certo descuido de Carmen em sua
elaboração na presente situação discursiva. Ela se justifica dizendo:
(62) o limítrofe ele:: se ele imaginar e não conseguir concretizar o que
ele imaginou...ele traz uma história muito longa... muitas vezes... e ele
vem te contar:: e fala e fala e é aquela coisa de rodear rodear rodear
rodear pra conseguir um fim... e muitas vezes eles não sabem o fim que
eles querem ter...
O que nos faz supor que, na dada situação discursiva, Carmen dialogou
com a voz institucional a respeito dos limítrofes em geral. A sua dramatização,
citada no fragmento (46), a princípio não é o que facilita e organiza os enunciados
posteriores de Carlos. Ela, inclusive, parece-nos muito similar ao que ele traz
inicialmente. Carmen sai da sala, bate na porta e diz putz esqueci meu celular...
Carlos ri, diz que entendeu, mas só explicita o que queria dizer depois das
insistentes dúvidas levantadas por Carmen e de sua complementação: o que você
queria dizer Carlos? Era que roubaram:: seu dinheiro ou que você não está com
dinheiro e queria dinheiro emprestado pra outra coisa... É a insistência de Carmen
motivada pela idéia genérica de que todo limítrofe vive na fantasia que leva Carlos
à reformulação de seu enunciado inicial, agora muito mais próximo do que
Carmen suspeitava (e talvez quisesse ouvir).
Vejamos os seguintes fragmentos em que Carmen fala de uma atividade
específica no Instituto, denominada vivência:
(70) (...) então a gente conta o dia-a-dia: o que aconteceu no dia
anterior: como foi o final de semana: alguma coisa que você queira
contar: ele chegou nuns momentos da vivência e falou gente::olha: eu
preciso falar... Vocês têm que dar muito valor para o Rio Grande...vocês
têm que dar muito valor pras coisas que vocês fazem aqui...vocês
precisam participar de tudo:
(78) (...) era uma fala legal: tinha coerência o que ele estava falando: era
importante: mas tava totalmente fora de contexto...
Ao ser questionada sobre por que ela considerava esta uma fala fora do
contexto, Carmen justifica:
(80) porque às vezes ele chegava:: nessa vivência... a gente chega
espera bater o sinal:: eles vêm: a gente forma um círculo e aí começa a
atividade: o pessoal fala um pouco sobre as coisas que aconteceram no
dia anterior: fala um pouco sobre as coisas que estão acontecendo:
olha: soltaram uma bomba lá: vocês viram?
Pela justificativa dada por Carmen a respeito do enunciado de Carlos estar
fora de contexto, entende-se que o esperado pelos coordenadores, na dada
atividade, era o relato de fatos que circulavam na mídia e não o relato pessoal de
algo que lhe aconteceu. Carlos trazia o tema da discriminação que parecia estar
sofrendo em seu cotidiano fora do Instituto Rio Grande, mas isso foi tomado como
mais um exemplo de sua dispersão, de sua não adequação à realidade.
Assim como no depoimento de Regina, o segundo da nossa série, falar o
que se tem vontade é solicitado aos pacientes, sem que haja uma explicitação da
situação discursiva instaurada e aquilo que é trazido por eles quase nunca
corresponde àquilo que deseja o solicitante, que, por sua vez, não toma atitude
responsiva em relação ao que está sendo dito pelos pacientes. A situação
instaurada é atravessada pela voz institucional que se sobressai, influenciando na
compreensão dos enunciados produzidos por Carlos e mantendo-o na condição
de limítrofe.
No decorrer de sua exposição, Carmen aponta como uma das maiores
dificuldades dos limítrofes com quem trabalha, Carlos inclusive, a compreensão de
leituras diversas. Cita trabalhos que realizou com contos de fada, contos de
literatura infanto-juvenil e poemas. Sobre esse último, seguem-se os seguintes
fragmentos:
(113) Carmen: na época das poesias... eu peguei bastante José Paulo
Paes...peguei para gostar de ler ((nome de uma coleção de literatura
juvenil)) algumas coisas... tinham algumas crônicas mas que abordavam
os mesmos temas...tinha algumas poesias que – eu não lembro o
livro...você tinha citado um sem ser o José Paulo Paes... eu não me
lembro – e aí: a gente sentou e eu comecei a ler o tema que eles
queriam... aí comecei a ler José Paulo Paes é: algumas poesias e
conforme vinha -- eu não lembro... eu sei que vinha pela música do funk
que tava na moda na época –
(114) Leila: da popozuda::
(115) Carmen: da popozuda...e aí ele vinha trazia a popozuda:
levantava começava a dançar... nisso os outros alunos alguns riam...
outros Carlos olha aí:: a Carmen ta querendo falar... Carlos pára presta
atenção::
(116) Heloisa: do nada ele começava a cantar ou tinha alguma palavra::
(117) Carmen: a palavra chamava... é que eu não lembro uma palavra
específica para poder estar falando...
(118) Leila: você diria que nesse momento dispersava ou enriquecia?
(119) Carmen: dispersava... ele dispersava todo o pessoal e ele não
conseguia se ater ao conteúdo...eu via que muitas vezes:: é:: ele fazia
isso porque ficava difícil para ele enfrentar o que estava sendo lido: o
tema que estava sendo abordado...
Podemos dizer que há, na postura de Carmen, uma preocupação em
trabalhar com a linguagem inserida em contextos discursivos específicos. Ela
atém-se aos temas (embora possa haver uma equivalência de sua parte entre
tema na acepção bakhtiniana e assunto), observa sua recorrência em gêneros
discursivos diversos, apresentando diferentes materiais ao grupo, abre espaço
para o surgimento da palavra do outro. E é aí que a tentativa da abordagem
dialógica fracassa.
Na situação citada a partir do fragmento (113), um poema de José Paulo
Paes suscita em Carlos a lembrança de uma música funk, presente no universo da
maioria dos jovens dessa época. É a palavra de Paes despertando em Carlos a
responsabilidade de tomá-la com novos contornos, mais próximos de sua
realidade, de sua linguagem, conforme observamos nos fragmentos (116) e (117).
A referência à popozuda não vem, no entanto, desvinculada de seu contexto de
origem. Assim, Carlos não só se refere à letra da canção como também a canta e
dança. Ainda que consideremos inadequada sua colocação (como parece ser a
avaliação de Carmen, no fragmento (119)), é a interação e o confronto entre suas
palavras e as de outrem que impulsionaria Carlos a continuar presente no fluxo de
comunicação verbal (não é esse um de seus principais problemas?).
Em lugar de acolher o enunciado de Carlos, Carmen autorizou, com seu
silêncio, a ordem a ele dirigida por colegas do grupo (fragmento (115)). Usando as
palavras de Bakhtin (1934-35), ao invés da terapeuta/expositora trabalhar no
sentido de despertar em Carlos a palavra autônoma, proporcionou sua
permanência em uma situação de isolamento e imobilismo.
6.1.5. Heloisa e seu caso de motricidade oral
Este foi o último encontro do grupo de pesquisa. Nele, apenas Carmen,
Heloisa e Leila compareceram, como no anterior.
Heloisa foi a única do grupo que trouxe seu relato previamente elaborado
para a exposição e o leu durante todo o encontro, mesmo sob protestos das
colegas que lhe pediam para não ler. Heloisa insistiu na leitura, dizendo ter muitos
detalhes dos quais não queria esquecer-se. Foram poucos os momentos em que
recorreu exclusivamente à memória para esclarecer ou enfatizar um ou outro
aspecto do trabalho realizado.
A leitura impôs aos participantes uma postura de ouvintes, sendo que as
intervenções ocorreram naqueles momentos em que Heloisa a dispensava, para
se aprofundar em um determinado aspecto.
O caso apresentado despertou o interesse do grupo, por tratar de um
assunto típico do universo fonoaudiológico: o atendimento de um paciente com
queixas relativas à motricidade oral, isto é, alguém com dificuldades no aparato
motor da fala e não de linguagem.
Pelo fato de o caso apresentado por Heloisa não estar finalizado no
momento da exposição ao grupo, optamos por não inseri-lo na íntegra na análise.
Dele, no entanto, selecionamos alguns tópicos, pela riqueza de dados que ele nos
traz.
Encaminhado por um dentista especialista em cirurgia buco-maxilar para
uma avaliação mio-funcional, o paciente trazia queixas relativas a dores de
cabeça, dificuldades na mastigação e também na articulação da fala por dores
excessivas na articulação têmporo-mandibular e conseqüente afastamento de
situações cotidianas de alimentação, por vergonha de estar com uma mastigação
tão dificultosa e ruidosa.
A diversidade de atuação na área fonoaudiológica se reflete também na
elaboração de seu discurso. Para falar de caso tão específico, o expositor utilizase de termos até então inéditos no grupo de pesquisa:
(3) Heloisa: na avaliação o resultado é : má oclusão: ela tem classe
dois: o molar superior se encontra de topo com o molar inferior: o canino
superior também se encontra à frente do canino inferior... toda a arcada
superior está além da relação normal: a mandíbula está em posição
distal da maxila... desgaste dental do lado esquerdo: principalmente do
primeiro molar maxilar esquerdo e dos primeiros molares
mandibulares... a dentina do primeiro molar maxilar está totalmente
exposta... há um desgaste tão grande que está totalmente exposta: mas
ela não tem sensibilidade... os côndilos mandibulares estão simétricos...
na face frontal e de perfil a postura facial em repouso é ligeiramente/
tem ligeiro desnivelamento de simetria das rugas da testa: do
arqueamento da sobrancelha e do sulco labial... do lado esquerdo: ao
levantar as sobrancelhas: a sobrancelha dela não levanta e aqui
((aponta a ruga da testa)) levanta... é totalmente assimétrica... a
mandíbula tem desvio lateral esquerdo mínimo e na postura mandibular
em repouso... (...) ao apalpar as zonas temporais e dos masseteres
encontra-se uma tensão muito grande do lado esquerdo: sendo que a
região mais ativa dos masseteres na contração está situada próxima do
ângulo mandibular...
(7) (...) faz uma deslocação brusca da ATM na mastigação... observei
que os músculos da mastigação entraram em espasmos: temporal
masseter e pterigoideu medial da abertura ao encerramento da
mandíbula...
(58) pela ressonância: pelo côndilo ela está há três anos/ fazendo as
contas pela eletromiografia: ela ta há três anos tendo desgaste... ela ta
com o côndilo: o líquido sinuvial não está nem mais funcionando...
Para Heloisa, nada mais natural que uma especificidade tão grande de caso
gerasse igualmente uma especificidade de atuação. Assim sendo, esclareceu ao
paciente que:
(1) (...) a terapia no caso dela ia consistir em exercícios mio-funcionais:
que no seu caso a terapia ia consistir basicamente da mesma forma...
A preocupação em esclarecer esse aspecto veio do fato de o paciente, já
na primeira sessão, dizer que estava na sua terceira tentativa de fazer terapia
fonoaudiológica. A desistência das outras duas foi resultado da sensação de
invasão e de pouco acolhimento, por se realizar um trabalho exclusivo de engole,
abre, mastiga, engole de novo... Mesmo sendo alertado por Heloisa que o trabalho
seria basicamente da mesma forma, o paciente se propôs a continuá-lo.
As sessões de avaliação aconteceram, segundo o relato da expositora, num
ritmo bem lento, pois o paciente sentia mesmo muita dor ao ter de movimentar sua
mandíbula, chegando a chorar algumas vezes em determinadas manobras. Ao
seu final e com todos os exames e avaliações em mãos, o paciente solicitou à
fonoaudióloga/expositora que lhe explicasse todos aqueles nomes complicados.
Nesse instante da exposição, Heloisa descreve ao grupo sua sala de
terapia, que terá, como veremos, papel fundamental no decorrer desse
atendimento. Nela, há dois ambientes quase que distintos. De um lado, uma mesa
e duas cadeiras, onde o terapeuta faz a entrevista inicial. De outro, uma bancada
com mais duas ou três cadeiras, todas de frente para um espelho disposto na
parede, local onde se realizam os exercícios e a avaliação. Passado o momento
da entrevista inicial, terapeuta e paciente acomodam-se sempre na bancada para
a realização do trabalho.
O paciente em questão parece ter entendido muito bem a dinâmica de
trabalho, porque, ao término da avaliação e da explicação que lhe foi dada a
respeito dos nomes complicados, invariavelmente, nas sessões em que
comparecia, antecipava-se à terapeuta, sentando-se na cadeira em frente à mesa.
Na primeira delas, ainda chegou a explicitar eu vim aqui hoje para conversar;
quando percebeu que a terapeuta não esboçava reação à sua atitude. Nas outras,
apenas sentava-se na cadeira, para desespero de Heloisa que se dizia sempre
preparada para fazer os exercícios.
Nessas sessões, o paciente trouxe histórias de vida, recentes e do
passado, que, de alguma forma para ele, relacionavam-se a seu problema. Ali, ele
chorou; chegou por vezes atrasado e também bastante adiantado em seu horário
de atendimento; determinou ele mesmo o momento de acabar a sessão, em
alguns
dias,
sob
a
alegação
de
ter
reuniões
importantíssimas,
e,
fundamentalmente, contou casos, falou de seu trabalho, confidenciou detalhes de
sua vida familiar. Tudo isso ante a perplexidade de Heloisa que, embora aceitasse
as atitudes de seu paciente, procurava também exercer o que julgava ser o seu
papel naquele caso.
(66) (...) ah:: nesse dia como ela sentou na minha cadeira: eu percebi
que ela não queria fazer exercício: não queria fazer nada... então o que
que eu fiz – saí da minha cadeira e fui para a bancada: peguei as luvas
pra ver se ela tinha algum movimento de ir até a bancada...
(116) (...) eu não fiz exatamente nada até agora em questão de OFA:
em questão de ATM: em questão de côndilo... eu tenho quarenta mil
idéias na cabeça e não consegui por a mão nela...
Essas cenas vividas por Heloisa e seu paciente em contexto terapêutico
remetem-nos ao conceito de contexto extraverbal que compõe, para o círculo de
Bakhtin, o enunciado concreto. Volochinov (1926) desenvolve o conceito,
explicitando que o contexto extraverbal é elemento indispensável à constituição
semântica do enunciado. Três são os fatores que compõem o contexto
extraverbal: o horizonte espacial comum, o conhecimento e compreensão da
situação, a avaliação comum dessa situação.
O paciente fez da forma como os móveis da sala estavam dispostos parte
fundamental do enunciado que explicitaria à terapeuta o seu desejo em relação à
continuidade do processo terapêutico. A força do seu gesto, repetido tantas outras
vezes, foi tão grande que, como observamos no fragmento (66), é a terapeuta
quem o utiliza, em determinado momento, para persuadi-lo do contrário.
Enquanto, para a terapeuta, o tema desse atendimento deveria ser o
trabalho mio-funcional, conforme explicita no fragmento (116), para o paciente o
tema era a compreensão da existência desses sintomas, na medida em que
insistia em saber que relação poderia ser feita entre eles e determinados episódios
de sua vida. Quanto a isso, a expositora/terapeuta diz:
(56) (...) neste momento pensei em falar será que ela está me vendo
como analista?
(86) (...) na primeira vez que ela chegou assim pra mim: eu não
conseguia olhar pro olho dela e dar uma devolutiva pra ela... eu queria
falar alguma coisa pra ela... pra me conter eu olhava e anotava...
(88) Leila: mas porque você fala que não podia dar uma devolutiva para
ela?
(89) Heloisa: porque não era meu papel...
(90) Leila: não era seu papel::
(91) Heloisa: não.. para mim não é: acho que não tenho cacife pra isso...
de lidar com essas questões eu não tenho...
(92) Leila: de questões emocionais? Você acha que não é pra você?
(93) Heloisa: claro... não... ela precisa procurar uma terapia... aí eu já
encaminhei...
Lembremos que, em seu depoimento, Regina, a segunda a fazer sua
exposição oral, opta por suspender o trabalho com a linguagem para tratar das
questões emocionais. Heloisa, por sua vez, procura fechar qualquer possibilidade
de trabalho com a linguagem, pelo receio de se deparar com questões
emocionais. Vale citar que seu paciente afirmara já ter feito análise em outro
momento e que, por ora, não tinha interesse em retomá-la.
Ainda que corroída pela angústia de não estar trabalhando, Heloisa
escutava o que seu paciente lhe contava e, por vezes, respondia-lhe a partir do
que lhe era possível enxergar do lugar em que se encontrava. Isso foi surtindo um
efeito positivo no trabalho. Em seu depoimento, afirma que seu paciente, a certa
altura, lhe diz:
(133) (...) eu sei que você não é nem analista nem psicóloga: mas eu
me sinto muito bem com você... e sinto que saio daqui bastante aliviada
principalmente a minha mandíbula...quando eu saio daqui sou capaz de
ir até numa churrascaria... na semana seguinte ela vem: chega e senta
onde:: na BANCADA... oi Helô estou à sua disposição... hoje vim aqui
fazer exercícios... não é isso que você quer Helô: então vamos lá... hoje
nós vamos fazer exercícios...
Não se trata, então, prioritariamente de questões emocionais, mas antes de
histórias de vida que, para o paciente, fazia sentido serem contadas a alguém.
Já apresentamos, em outras partes desta tese, a importância da relação euoutro para Bakhtin. Neste capítulo, inclusive, já discutimos a necessidade de um
excedente de visão, conhecimento que só o outro tem de mim e que pode
completar-me. O primeiro encontro do homem consigo mesmo vem de fora. Nas
palavras do autor (1920-30/1979: 67-68):
Com efeito, assim que o homem começa a viver-se por dentro, encontra
na mesma hora os atos – os de seus próximos, os de sua mãe – que se
dirigem a ele: tudo quanto a determina em primeiro lugar, a ela e a seu
corpo, a criança o recebe da boca da mãe e dos próximos. (...) Sua
forma parece trazer a marca do abraço materno.
A visão que o homem tem de si mesmo só passa da percepção interna para
categorias cognitivas, éticas e estéticas a partir das relações que ele estabelece
com um corpo exterior ao seu. O corpo não é algo que se baste a si mesmo, tem a
necessidade do outro, de outro que o reconheça e que lhe proporcione sua forma
(Bakhtin, 1920-30/1979: 69).
No caso apresentado por Heloisa não há duas possibilidades de trabalho
excludentes: o fonoaudiológico mio-funcional ou o psicanalítico. Há, em primeiro
lugar, um sujeito que sofre, fisicamente inclusive, e que se apresenta a um outro
pela linguagem. Um sujeito que, a todo o momento, busca a alteridade para
compreender sua dor. O paciente de Heloisa não esperava dela uma intervenção
técnica psicanalítica. Buscava antes um acolhimento que, para ele, consistia sim
na intervenção técnica mio-funcional, mas, sobretudo, na partilha de suas histórias
relacionadas a esse sofrimento. A necessidade de contá-las visava uma
necessidade primeira de organizar esses momentos de vida vividos internamente
e que, pelo olhar do outro, poderiam ter um acabamento.
Os fonoaudiólogos participantes do grupo de pesquisa, mesmo partindo de
atividades de trabalho e casos distintos, apresentaram, em seus depoimentos, um
movimento muito similar em relação ao trabalho com a linguagem.
A
assunção
de
uma
perspectiva
interacionista
no
atendimento
fonoaudiológico – critério para a participação no grupo – revelou-se, de modo
geral, como a assunção da importância da interação verbal para o trabalho com as
dificuldades que o paciente apresenta na linguagem. Falar da linguagem do
paciente é, ainda, falar dos erros que apresenta; trabalhá-la no contexto
terapêutico ainda visa a eliminação desses erros, só que não mais através de
exercícios pontuais e sim através das conversas que surgem nas interações
estabelecidas nas sessões terapêuticas.
A maior parte dos diálogos construídos no decorrer dos trabalhos,
apresentados direta ou indiretamente nos depoimentos, trazia características
semelhantes: limitados às suas situações imediatas (a atividade realizada no
momento), com ênfase nas respostas igualmente imediatas a enunciados
construídos por um e outro interlocutor.
Não houve, de modo geral, por parte dos terapeutas, uma preocupação em
dar um tratamento dialógico, na
concepção bakhtiniana, aos enunciados dos
pacientes. Lembremos que o lobo mau presente na brincadeira do menino não fez
eco para a terapeuta, que perdeu a oportunidade de confrontá-lo com outros
lobos, trabalhando com aspectos da cultura infantil e, quem sabe, surpreendendose com possíveis respostas mais elaboradas do seu paciente.
E essa possibilidade de respostas mais elaboradas e bem acabadas não é
apenas teórica. Vimos terapeutas, no exercício de suas atividades, encaminhar
um trabalho com a linguagem em situações discursivas significativas e
específicas, fazendo valer a interdiscursividade. Vimos que isso impulsiona o
paciente a se colocar, quer com palavras alheias, quer com as próprias, dandolhes novos sentidos. Foi o que aconteceu na situação do encontro do poema de
José Paulo Paes e a música funk. Mas não sabemos o resultado desse encontro
pois o mesmo foi precocemente abortado. A palavra do paciente, como vimos, não
veio desvinculada do seu contexto de origem. Veio viva, provocativa e isso escapa
à uniformização a que os fonoaudiólogos estão historicamente habituados em seu
trabalho terapêutico.
O pouco domínio ou desconhecimento demonstrado em relação a novos
paradigmas da Fonoaudiologia tem feito com que os fonoaudiólogos não saibam
lidar com a palavra do outro. E qualquer aspecto que escape à configuração
conhecida de trabalho suscita dúvidas nos fonoaudiólogos quanto a seu papel
profissional.
Pelos depoimentos analisados, entendemos que admitir uma perspectiva de
trabalho baseada na interação verbal é antes um meio facilitador da emergência
da linguagem a ser corrigida que a assunção de um novo paradigma que exija
uma nova conduta terapêutica.
CONCLUSÕES
Em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola,
existe uma multiplicidade inumerável, ilimitada de
sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto,
no desenrolar do diálogo, ao sabor de sua evolução,
eles serão rememorados e renascerão numa forma
renovada. Não há nada morto de maneira absoluta.
Todo sentido festejará um dia seu renascimento.
(Bakhtin, 1974/1979: 414)
Enfim, o que pudemos compreender do diálogo na clinica fonoaudiológica?
Verdadeiro trabalho de arqueólogo foi realizado na elaboração desta tese.
Delimitado o sítio, procuramos em inúmeras escavações encontrar evidências,
dados que nos levassem a teorizar sobre o saber e fazer na clínica
fonoaudiológica de cunho interacionista ou socio-interacionista.
Deparamo-nos quase que de imediato com o que pode ser considerado
como as questões fonoaudiológicas atuais no âmbito terapêutico: a caracterização
do sintoma de linguagem, o lugar do fonoaudiólogo e seu saber técnico. Limpando
um pouco mais o terreno, pudemos observar os caminhos percorridos no
desenvolvimento dessas questões, tanto em direção às bases teóricas que as
sustentam quanto na dos seus desdobramentos na atividade terapêutica.
Não há uma resposta única para cada uma dessas questões que nos
autorizasse a caracterizar a fonoaudiologia no âmbito terapêutico . Ao contrário,
há o delineamento de fonoaudiologias distintas, cuja explicitação só seria salutar
ao crescimento e fortalecimento da área.
Tomar, portanto, a atividade terapêutica fonoaudiológica como
essencialmente dialógica não significa muita coisa, se desvinculada dos conceitos
próprios que a fundamentam.
Na busca dos dados que nos auxiliaram na compreensão do conceito e do
uso do diálogo na terapia fonoaudiológica de cunho interacionista ou sóciointeracionista, chegamos à seguinte constatação: embora haja a assunção da
premissa de que o diálogo é elemento da metodologia terapêutica
fonoaudiológica, ele ainda não figura como tal entre os temas mais estudados por
profissionais da área. Sua conceitualização e uso na atividade terapêutica são
dados por supostos, a partir da explicitação da base teórica.
Nos artigos desenvolvidos por pesquisadores seniores, publicados em
revista especializada, encontramos referências ao diálogo, somente de forma
indireta. Em ordem decrescente de incidência, ele é entendido como um meio
propiciador: da cura do sintoma manifesto na linguagem; do confronto entre
funcionamentos lingüísticos; do cruzamento de vozes e da observação do estágio
cognitivo.
Não encontramos, nas dissertações e teses, interesse específico no estudo
do diálogo. A tendência observada, nessa esfera de produção científica, é a de se
referendar conceitos que caracterizam a clínica da subjetividade, sem que as
diferenças existentes sejam explicitas ou questionadas.
Uma primeira conseqüência desse quadro no âmbito da atividade
terapêutica fonoaudiológica parece óbvia: ainda que se admita o uso do diálogo,
não é atribuído a ele um estatuto de instrumento terapêutico.
Uma segunda conseqüência nos parece mais preocupante.
A incorporação dos temas desenvolvidos nas esferas de produção de
conhecimento da área tem provocado transformações na atuação terapêutica
fonoaudiológica que merecem maior atenção.
Dissemos acima que a tendência das pesquisas acadêmicas para titulação
é a de referendar conceitos da clínica da subjetividade, sem que diferenças sejam
explicitadas.
A primeira delas, e que define todas as outras, está relacionada à
delimitação do objeto da fonoaudiologia.
Quando entendido como a linguagem patológica, o aporte teórico de maior
recorrência por pesquisadores da área é a teoria interacionista de aquisição de
linguagem e particularmente as noções de estranhamento e de erro como um dos
possíveis funcionamentos da língua.
A linguagem patológica seria então aquela que causa um efeito de
estranhamento em alguém. Teóricos da área que defendem essa tese, como
vimos, diferenciam-se quanto ao conceito de sintoma de linguagem. Para uns é o
efeito particular que a fala desviante produz, assim compreendida depois da
escuta do fonoaudiólogo que busca confrontar uma fala singular à língua
constituída. Para outros, é uma elaboração discursiva sobredeterminada, de
caráter imprevisível e contingente, cabendo ao fonoaudiólogo revelar uma
regularidade de funcionamento que a caracterize como linguagem patológica. A
determinação desse funcionamento patológico estaria relacionada à regularidade
de uma interpretação de um falante comum sobre uma manifestação lingüística
fixada como erro.
Para todos os que partilham dessa visão, o fonoaudiólogo não se
caracteriza como um falante comum. Embora não possa se desvencilhar de sua
condição de falante, mostra-se diferenciado, pois detentor de um saber que o
autoriza a determinar o que seria o patológico.
Na atividade terapêutica, o diálogo torna-se o meio propiciador do confronto
entre funcionamentos lingüísticos. A interação verbal estabelecida, nesse
contexto, não se dá entre sujeitos históricos e sim, entre instâncias desses
funcionamentos, buscando-se, pelo estranhamento, a transformação do
funcionamento patológico.
No cotidiano terapêutico, isso se traduz pelo estabelecimento de qualquer
conversa, porque o que está em jogo não é exatamente o que se diz para quem
se diz quando se diz e sim, como a língua opera naquela instância de
funcionamento. Não sendo sujeitos históricos, não há uma preocupação com uma
contextualização mais ampla daquilo que se diz no contexto terapêutico. As
interações verbais estabelecidas, sob esta ótica, levam terapeutas a restringirem o
diálogo ao seu contexto imediato, caracterizando-se muitas vezes pela descrição
das ações da situação ali instaurada.
Como vimos pelos fragmentos de sessões anteriormente discutidos, as
práticas de interpretação e de estranhamento, por parte do terapeuta,
caracterizam-se pela repetição de parte do enunciado do paciente, de modo a
propiciar-lhe reformulações.
No entanto, a palavra que o paciente dirige ao terapeuta não é tomada
como um enunciado concreto – em seus aspectos verbal e extraverbal –, porque o
objetivo do terapeuta é lingüístico e não discursivo. O estranhamento não se dá
por aquilo que se diz, mas sim pelo como se diz. A prática do estranhamento,
portanto, caracteriza-se mais como uma prática negativa behaviorista: repete-se o
modelo errado para que ele seja evitado. As reformulações feitas pelo paciente
caracterizam-se como respostas a essa prática. Como observado nos mesmos
fragmentos, tal conduta terapêutica tende a levar o paciente ao silenciamento.
A idéia de estranhamento no contexto da linguagem patológica parece-nos
apoiada em bases frágeis, na medida em que contempla parte de seus sentidos. É
interessante notar que teóricos partidários dessa visão não reconhecem, no termo
estranhamento, as idéias de desconhecimento ou preconceito. Fala-se em
equívoco, em desvio, sempre em relação à língua constituída.
Falar em preconceito implicaria a assunção do horizonte histórico-social no
contexto terapêutico, o que não está na base teórica adotada nessa perspectiva
clínica. No entanto, não podemos desconsiderar que tanto o preconceito como o
desconhecimento de diferentes usos efetivos da linguagem são fatores
determinantes
na
busca
do
atendimento
fonoaudiológico
e
devem
ser
considerados pelo terapeuta na sua conduta clínica.
Voltando à questão do objeto da área, não é para todos os teóricos da
fonoaudiologia que ele seja a linguagem patológica. Há quem entenda sê-lo o
sujeito que sofre, manifestando seu sofrimento na linguagem. Nessa perspectiva
terapêutica, o aporte teórico mais recorrente é o psicanalítico.
Ainda que profissionais filiados a essa perspectiva assumam a visão de
linguagem interacionista acima referida em seu arcabouço teórico, consideram-na
como condição necessária, mas não suficiente. Consideram-na necessária, pois
não se concebe um terapeuta de linguagem sem uma concepção de linguagem e
essa visão, como vimos, é a que respalda a idéia de singularidade requerida pela
fonoaudiologia atual.
Consideram-na necessária, mas não a desenvolvem no processo
terapêutico tal qual observado na vertente anterior, porque a contribuição advinda
da psicanálise – aporte teórico de maior peso – leva o terapeuta a uma escuta
psicanalítica da história do paciente.
O diálogo aqui é entendido como meio propiciador da cura do sintoma
manifesto na linguagem, porque tende a evidenciar uma terceira voz, a do
inconsciente.
Observamos, dentre os trabalhos desenvolvidos sob esse enfoque, duas
condutas terapêuticas distintas e que estão relacionadas à teoria psicanalítica
assumida e sua concepção de sujeito correspondente. Estamos nos referindo ao
trabalho fonoaudiológico de cunho freudiano e ao de cunho winnicottiano.
Os fonoaudiólogos, cuja atividade terapêutica é respaldada pela teoria
freudiana, desenvolvem seus processos terapêuticos enfocando o diálogo
produzido nos contextos imediatos das sessões fonoaudiológicas. Assim, aqui
também qualquer conversa que se estabeleça é pertinente ao trabalho, porque o
que se privilegia, nesse momento, são as relações transferenciais e
contratransferenciais desenvolvidas no processo terapêutico. Assumindo uma
posição de escuta, o terapeuta tem ouvidos para os enunciados de seus
pacientes, com objetivo determinado: o da busca da voz do inconsciente. Não há
uma valorização da linguagem em uso, mas daquilo que a linguagem deixa
transparecer do inconsciente.
O foco, nessa visão terapêutica, está em poder revelar ao paciente
conteúdos psíquicos conflituosos a fim de se resolver o sintoma manifesto na
linguagem. Mantendo-se dependente do contexto próprio de cada sessão, o
diálogo aí construído – caracterizado por interpretações fonoaudiológicas
psicanalíticas – visa mais uma revelação ao que se diz que o favorecimento da
ressignificação do uso da linguagem por parte do paciente.
A adoção dessa visão traz o risco de descaracterizar o trabalho
fonoaudiológico com a linguagem, na medida em que o terapeuta sente-se
autorizado (ou não) para enfocar conteúdos psíquicos conflituosos. Nos
depoimentos coletados, vimos os dois extremos da mesma questão. Num deles, o
terapeuta optou por suspender o trabalho fonoaudiológico com a linguagem, para,
ele mesmo, por ter formação psicanalítica, tratar das questões emocionais. No
outro, vemos um terapeuta desqualificar aquilo que efetivamente poderia ser um
trabalho fonoaudiológico, por se sentir atormentado pela pressão do entendia ser
conteúdos psíquicos e despreparado para enfrentá-los.
Já os fonoaudiólogos com atividade terapêutica respaldada na visão
winnicottiana trabalham com a idéia de espaço potencial e a de que o ser humano
é história com o outro. A adoção desses conceitos na terapia fonoaudiológica leva
o terapeuta a assumir um papel de interlocutor de seus pacientes. Mais livres da
obrigatoriedade da interpretação e revelação de conteúdos psíquicos
inconscientes, esses terapeutas se mostram mais propensos a escutar e participar
da construção das histórias de vida de seus pacientes. Isso se traduz em sessões
fonoaudiológicas em que observamos o diálogo construído sob uma perspectiva
discursiva, em que se consideram aspectos históricos e culturais, a compreensão
dos enunciados levando em conta suas partes verbal e extraverbal, a retomada
de enunciados anteriores que fazem sentido na constituição de outros posteriores.
No entanto, corre-se o risco, nessa perspectiva também, de se esvaziar o
trabalho fonoaudiológico com a linguagem, na medida em que se atribuem todas
as características do trabalho realizado ao conceito psicanalítico da clínica do self.
Em lugar de se construir um conhecimento que seja específico e criativo da área
fonoaudiológica, com contribuições da clínica winnicottiana, temos apenas o
referendo de conceitos produzidos em outra esfera de conhecimento.
Do nosso ponto de vista, os conceitos propostos pela clínica da
subjetividade prestam-se, no desenvolvimento da prática terapêutica, mais a
revelações ao terapeuta sobre o funcionamento da linguagem que a
transformações da linguagem em uso pelo paciente.
Pelo que apontamos até aqui, podemos afirmar que existe uma fragilidade
na incorporação e no próprio desenvolvimento desses conceitos produzidos na
área. Se, por um lado, tal fragilidade faz com que exista a possibilidade de
descaracterização do trabalho fonoaudiológico com a linguagem, por outro, faz
com que discursos mais arraigados da fonoaudiologia ecoem na prática
fonoaudiológica. É a explicação que vemos para a sobrevivência de conceitos
piagetianos, tanto na produção científica da área quanto no decorrer de processos
terapêuticos de crianças que não desenvolveram linguagem oral, quer pela
ausência de etiologia definida, quer pela presença de patologias neurológicas.
Embora com menor expressão dentro da área fonoaudiológica, o diálogo
também é entendido como meio propiciador da observação de estágios cognitivos.
E, em terapia, isso se traduz, novamente, na descrição das ações desenvolvidas
nos contextos imediatos ali instaurados, com a expectativa de que o paciente
repita, imite o enunciado do terapeuta, como forma de emergência de sua própria
linguagem.
Também em menor expressão, se comparada à clínica da subjetividade,
mas numa direção que resgata a perspectiva histórica da linguagem, aparecem,
na produção científica da área e de forma ainda difusa na prática terapêutica,
conceitos relacionados ao que aqui denominamos de clínica da intersubjetividade.
Para partidários dessa visão, o objeto da fonoaudiologia é o sujeito que
estabelece uma relação conflituosa com a linguagem, considerando no entanto
que esse conflito é de natureza social. Não há como determinar o que venha a ser
patológico na linguagem de alguém sem considerarmos suas condições de
produção: a(s) esfera(s) de atividade humana em que se encontra, a hierarquia
dos interlocutores, suas apreciações de valor, os recursos lingüísticos e
discursivos de que o sujeito dispõe.
Dentre as bases teóricas dessa perspectiva fonoaudiológica, destacamos a
visão dialógica bakhtiniana por encontrarmos ecos de alguns de seus conceitos,
já explicitados ao longo desta pesquisa, na prática terapêutica concernente a essa
visão.
No diálogo entendido como cruzamento de vozes, destacamos a existência
de uma preocupação com a palavra do outro. Os enunciados do paciente não são
(re) tomados como orações constituintes da língua, mas sim como elos da cadeia
de comunicação verbal. Foram produzidos em função de outros que os
precederam e merecem resposta.
Nesse sentido, observamos que os fonoaudiólogos, nessa perspectiva
terapêutica, adotam uma atitude de responsividade que, como vimos, tende a
levar seus interlocutores a fazerem o mesmo. Vemos, assim, pacientes/
interlocutores responsáveis por seus enunciados, sentindo-se capazes – dentro de
suas possibilidades – de reelaborá-los de modo a dar-lhes o acabamento
necessário para incitar no outro o movimento de resposta.
Parece-nos fazer toda a diferença quando o terapeuta fonoaudiólogo
retoma os enunciados do paciente com o objetivo de respondê-los seja pela
argumentação, dúvida, complementação, concordância. Ao reconhecer no
enunciado alheio suas próprias palavras acolhidas dessa forma, o paciente sentese pleno de palavras interiores e, como vimos em passagens anteriores, essa é
uma condição fundamental para a ressignificação da linguagem em sua vida.
Do lugar em que nos colocamos para a análise dos dados desta tese,
pudemos apreender aspectos que escaparam à compreensão dos atores inseridos
em determinadas situações terapêuticas. Conforme explicitamos ao longo das
análises, acreditamos que uma leitura dialógica bakhtiniana ampliaria essa
compreensão, favorecendo o fortalecimento do paciente no decorrer do processo
terapêutico.
A título de ilustração retomemos uma dessas situações. Em aprendendo a
falar com Marie, o terapeuta apresenta um caso de uma criança autista com quem
a comunicação era muito difícil de se estabelecer. Sua base teórica psicanalítica
autorizava-o, como explicita no artigo, a direcionar seu foco para o
estabelecimento das relações transferenciais e contratransferenciais e a fazer
interpretações que a ajudassem a revelar conflitos inconscientes. É imbuída dessa
autoridade que diz para a criança quando a vê contando de forma enrolada
histórias da Disney, em inglês: "Marie, sabe por que você só tem historinhas
Disney na sua cabecinha? É por que você não tem a sua história".
O terapeuta continua dizendo em seu relato que, sem saber porquê, ele
começou a falar palavras inventadas por ela (criança) em uma fase anterior e que
há muito tinham desaparecido do contexto terapêutico. Para seu completo
espanto, Marie começou a dizer seu próprio nome da forma como o terapeuta a
chamava, nessa mesma época. "Você se lembrou! Era assim que eu falava seu
nome! Então você tem uma história comigo na sua cabeça!". Marie, me olhando,
sorriu para mim com uma expressão de vitória no rosto.
Então, Marie tinha uma história.
Assim como Carlos, Carla, as operadoras de telemarketing, o paciente que
sofria dores terríveis em sua articulação temporo-mandibular, as crianças
psicóticas, as crianças surdas, Douglas, sr. Pedro, sr E.F., sr. N.
Assim também como todos os sujeitos que buscam atendimento
fonoaudiológico, cujas queixas estão cada uma a seu modo relacionadas ao uso
da linguagem.
É preciso que, de fato e de direito, como também já dissemos
anteriormente, consideremos nossos pacientes como participantes ativos de uma
comunidade lingüística, em que se reconheça a existência de um plurilinguismo
social.
Assumir o sujeito que sofre como o sujeito de nosso trabalho terapêutico
implica, do nosso ponto de vista, a adoção de uma postura de acolhimento dessa
dor que só se dá no encontro com o outro. Para isso, no contexto terapêutico, são
igualmente necessárias uma visão de linguagem e uma visão do ser humano que
partam (de) e promovam esse encontro.
Como vimos, Bakhtin nos ensina que o primeiro encontro do homem
consigo mesmo vem de fora. Assim, a dor que o homem carrega em seu interior
só ganha forma e acabamento no encontro com o outro, na medida em que este,
ao se identificar com sua dor e de seu lugar, completa-o justamente onde ele
sozinho não consegue completar-se.
Encontramos também em Winnicott a idéia da incompletude do ser humano
e de sua necessidade de se dirigir a um outro para que, através da experiência,
possa ser compreendido. Para esse autor, ser testemunha da experiência, da
existência do outro já é em si terapêutico.
Tanto para um autor quanto para o outro, dos lugares que ocupam na
construção do conhecimento, o sentido é da ordem do acontecimento humano.
Há um exemplo bastante ilustrativo dessa questão e que nos ajuda a
enfocar o trabalho terapêutico fonoaudiológico.
A fotografia é um trabalho de memória. A afirmação de Evgen Bavcar,
fotógrafo esloveno radicado na França, ganha um sentido especial quando dele
sabemos uma particularidade: Evgen é cego.
Perdeu a visão – de um olho e depois do outro – em acidentes diferentes,
ainda na infância. Aos onze anos, seu mundo perdeu definitivamente a luz. Aos
dezesseis, começou a fotografar. Complementando sua afirmação citada, Evgen
Bavcar diz trazer os originais na cabeça.
Entretanto, mais do que isso, seu processo de criação é pura alteridade.
Para fotografar, Evgen alimenta-se fundamentalmente de descrições de amigos
que o acompanham em seu trabalho.
Entendemos que ouvir a descrição do amigo de uma paisagem que decide
fotografar é como deslocar-se de sua posição para assumir a posição do outro;
mas o instante mesmo da foto é o retorno ao seu lugar de origem para dar
acabamento, com seu olhar de onze anos de mundo iluminado, à cena enunciada.
Ousaríamos dizer que Evgen Bavcar fotografa enunciados e gostaríamos de ver
junto às fotos as descrições dos amigos que as originaram. Teríamos aí o lugar da
tensão, da materialização do que Evgen vê do que o outro vê.
Enfocando o contexto terapêutico fonoaudiológico, entendemos que o
trabalho do terapeuta é o de poder viver a dor de seus pacientes, mas de um outro
lugar em que possa dar acabamento àquilo que vê do que eles vêem, àquilo que
falam ou escrevem sem, muitas vezes, a suficiente materialização da palavra.
É dessa possibilidade de exterioridade, de retorno ao seu lugar, que os
pacientes da clínica fonoaudiológica poderão constituir outros olhares de si,
diversos daqueles que só salientam a deficiência.
Evgen Bavcar disse, em entrevista, só nos vemos com o olhar do outro.
Criar a possibilidade de um olhar (para o outro) de ser produtivo, inserido na vida
social e cultural, eis aí o que pensamos ser responsabilidade ética do
fonoaudiólogo terapeuta.
Entendemos que a possibilidade da ressignificação da linguagem daquele
que procura a clínica fonoaudiológica é também da ordem do acontecimento
humano e está relacionada à capacidade do terapeuta em propiciar, a seus
pacientes, situações favoráveis ao acabamento de seus enunciados.
E o que seria necessário para esse acabamento, no âmbito do contexto
terapêutico fonoaudiológico?
Os achados desta tese nos dão indícios de que
a. o acolhimento às histórias que os pacientes contam a seus terapeutas,
do modo como lhes é possível contar;
b. a possibilidade e disponibilidade de o terapeuta responder aos
enunciados dos pacientes, procurando garantir uma compreensão ativa;
c. o cuidado de considerar os enunciados dos pacientes como elos de uma
cadeia maior de comunicação verbal, reconhecendo e atribuindo real
valor à existência de outras vozes na situação discursiva instaurada no
contexto terapêutico,
seriam as três condições básicas necessárias para que tal acabamento ocorra.
Acreditamos que a adoção da perspectiva dialógica bakhtiniana e de
preceitos winnicottianos acerca do humano em nosso trabalho terapêutico pode
nos auxiliar na elaboração de uma metodologia de trabalho fonoaudiológico com a
linguagem.
Para isso é necessário imprimir esforços na elaboração de novas pesquisas
na área. Isso vem explicar porque, na introdução desta tese, anunciamos o último
capítulo não como conclusão mas como ponto de partida para novos trabalhos.
E fiéis à idéia do diálogo inconcluso, pois há sempre uma multiplicidade de
sentidos prontos para renascer, temos a ousadia de encerrar esta pesquisa, à
moda de Clarice Lispector, assim,
Referências Bibliográficas
Amorim, M. (2001) O Pesquisador e seu outro – Bakhtin nas Ciências
Humanas. São Paulo: Musa.
Amoroso, M.R. & R.M. Freire (2001) Os sentidos do sintoma de linguagem
na clínica fonoaudiológica. In M. C.
Passos (org.) A Clínica
Fonoaudiológica em questão, pp. 13-29. São Paulo: Plexus.
Andrade, L. (2001) Os efeitos da fala como acontecimento na clínica
fonoaudiológica. Letras de Hoje, v.36 no.3: 261-265. Porto Alegre:
EDIPUCRS.
Arantes, L. (1994) O fonoaudiólogo, esse aprendiz de feiticeiro. In M. F.
Lier-de Vitto (org.) Fonoaudiologia: no sentido da linguagem, pp. 23-37.
São Paulo: Cortez.
_____ (2001) Diagnóstico e Clínica de Linguagem. Tese de Doutorado,
PEPG em Lingüística Aplicada e Estudos de Linguagem, PUC-SP.
Arantes, L. & M. F. Lier-De Vitto (1998) Sobre os efeitos da fala da
criança: da heterogeneidade desses efeitos. Letras Hoje, vol.33, no. 2:
65-71, Porto Alegre: EDIPUCRS.
Aronis, E. A (1992) Os caminhos de um processo fonoaudiológico: uma
possível descoberta. Dissertação de Mestrado, PEPG em Distúrbios da
Comunicação, PUC-SP.
Bagno, M. (1999) Preconceito lingüístico – o que é, como se faz. São
Paulo: Edições Loyola.
Bakhtin, M. (1920-30/1979) O Autor e o Herói. In Estética da Criação
Verbal. São Paulo: Martins Fontes.
_____ (1929) Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Ed.
Forense-Universitária.
Bakhtin, M. M./ Volochinov, V. N. (1929) Marxismo e Filosofia a
Linguagem. São Paulo: Hucitec.
Bakhtin, M. (1934/35) O discurso no romance. In Questões de Literatura e
de Estética – a teoria do romance. São Paulo: Hucitec.
_____ (1952-53/1979) Os Gêneros do Discurso. In Estética da Criação
Verbal. São Paulo: Martins Fontes.
_____ (1959-61/1979) O problema do texto nas áreas da lingüística, da
filologia, das ciências humanas, tentativa de uma análise filosófica In
Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes.
_____ (1965) A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento – O
contexto de François Rabelais. Brasília: Hucitec.
_____ (1974/1979) Epistemologia das Ciências Humanas, In Estética da
Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes.
Berberian, A.P. (2003) Princípios norteadores da avaliação fonoaudiológica
de crianças consideradas portadoras de distúrbios de leitura e escrita. In
A. P. Berberian; G. A. Massi & A. C. Guarinello (orgs.) Linguagem
escrita – referenciais para a clínica fonoaudiológica, pp.11-38. São
Paulo: Plexus.
Brait, B. (1994) As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso In D. L. P.
Barros & J. L. Fiorin (org.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade, pp.
11-27. São Paulo: EDUSP.
_____ (1999) Elocução Formal: O dinamismo da oralidade e as
formalidades da escrita. In D. Preti (org) Estudos da língua falada variações e confrontos, pp. 87-108. São Paulo: Humanitas.
Bruner, J. (1982) Los formatos de la adquisición del lenguaje In Acción,
pensamiento y lenguaje – compilación de José Luis Linaza. Madri:
Alianza Editorial.
_____ (1990) Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas
Calheta, P. (1997) Quando as histórias reconstroem a história: em cena a
linguagem escrita na clínica fonoaudiológica. Dissertação de Mestrado,
PEPG Lingüística Aplicada e Estudos de Linguagem, PUC-SP.
Cassavia, C.S & S.M. Maia (2001) Supervisão na clínica de fonoaudiologia:
um ensaio sobre os seus sentidos. In M. C. Passos (org.) A Clínica
Fonoaudiológica em questão, pp. 123-152 . São Paulo: Plexus.
Clark, K. & M. Holquist (1984) Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva.
Cunha, M. C. & A. L. M. Garcia (1991) Atenção: gravando...In R. H. R.
Rojo et al. (orgs) Fonoaudiologia e Lingüística,pp. . São Paulo: Educ.
Cunha, M.C. (1997) Fonoaudiologia e Psicanálise: a fronteira como
território. São Paulo: Plexus.
_____ (2000) (Des) esquecimento. Revista Distúrbios da Comunicação,
vol.12: 95-98. São Paulo: EDUC.
Dauden, A.T.B.C. & C.C. Mori (1997) Linguagem escrita: quanto se
escreve e para quê? Reflexões sobre a prática fonoaudiológica. In A. T.
Dauden & P.
Junqueira(orgs.) Aspectos atuais em terapia
fonoaudiológica, pp. . São Paulo: Pancast.
De Lemos, C.T.G. (1982) Sobre a aquisição de linguagem e seu dilema
(pecado) original. Boletim da Abralin,3: 97-126. Recife.
_____ (1986) Interacionismo e aquisição de linguagem. Revista DELTA,
vol.2/ n.2: 231-248. São Paulo: LAEL/PUC-SP.
_____ (1992) Los procesos metafóricos y metonimicos como mecanismos
de cambio. Substratum,1,n.1121-135. Barcelona.
De Matteo, G. (2001) A função terapêutica na clínica fonoaudiológica – um
estudo de caso. Dissertação de Mestrado, Pós Graduação em
Fonoaudiologia, PUC-SP.
Figueiredo Neto, L.E. (1988) As primeiras práticas fonoaudiológicas na
cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, PEPG em Distúrbios da
Comunicação, PUC-SP.
Freire, R.M. & L.P. Ferreira (1994) Quem é esse profissional, o
fonoaudiólogo? 3a etapa. Revista Distúrbios da Comunicação, n.7 (1):
45-53, São Paulo: EDUC.
Freire, R.M. (2000) O diagnóstico nas alterações da linguagem infantil.
Revista Distúrbios da Comunicação, vol.12 (1): 107-116. São Paulo:
EDUC.
Guilhermino, D. & R. Palladino (2001) Interpretação: o escutar para além
da palavra e do silêncio. In M. C. Passos (org.) A Clínica
Fonoaudiológica em questão, pp.31-49. São Paulo: Plexus.
Hisada, S. (2002) Clínica do Setting em Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter.
Jakobson, R. (1955) A afasia como um problema lingüístico. In M. Coelho
et al. (orgs) Novas Perspectivas Linguísticas, pp. 43-53. Petrópolis:
Vozes Editora.
Kuhn, T.S. (1962) A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo:
Perspectiva.
Lemos, M.T.G. (2002) A língua que me falta. Campinas: Mercado das
Letras.
Levy, I.P. (1994) Uma nova face de nau dos insensatos: a dificuldade de
vozear obstruintes em crianças de idade escolar. Tese de Doutorado,
Unicamp.
Lier- De Vitto, M.F. ( 2001) sobre o sintoma – déficit de linguagem, efeito
da fala no outro, ou ainda...? Letras de Hoje, vol.36 (3): 245-251. Porto
Alegre: EDIPUCRS.
Lier- De Vitto & Fonseca ( 2001) Lingüística, Aquisição da linguagem e
patologia: relações possíveis e restrições obrigatórias. Letras de Hoje,
vol. 36 (3): 433-439. Porto Alegre: EDIPUCRS.
Linaza, J.L. (1984) Acción, Pensamento y Lenguaje. Madri:
editorial
Alianza
Lispector, C. Uma aprendizagem, ou, o Livro dos Prazeres. Rio de Janeiro:
Francisco Alves.
Lembi, P. (2000) O setting na clínica fonoaudiológica: estudo através de
discursos e fonoaudiólogos. Dissertação de Mestrado, PEPG em
Fonoaudiologia, PUC-SP.
Louro, C.R. (2000) Processo terapêutico na clínica das disfonias:
constituição de um espaço potencial na relação terapêutica. Dissertação
de Mestrado, Pós-graduação em Distúrbios da Comunicação, PUC-SP.
Maia, S. (1987) Repensando a Fonoaudiologia... Revista distúrbios da
Comunicação, vol.2 (3/4): 161-164, São Paulo: EDUC.
_____ (1997) Fonoaudiologia e Psicanálise: encontros e desencontros.
Revista Distúrbios da Comunicação, vol.9 (1): 121-124, São Paulo:
EDUC.
_____ (2000) A singularidade e o trabalho clínico terapêutico. Revista
Distúrbios da Comunicação, vol.12 (1): 28 – 32, São Paulo: EDUC.
Magalhães, H. (2000) O setting na terapia fonoaudiológica: estudo de caso
familiar. Dissertação de Mestrado, PEPG em Fonoaudiologia, PUC-SP.
Masini, M.L. (1989) Em busca da linguagem na avaliação da linguagem.
Dissertação de Mestrado, Pós-graduação em Distúrbios da
Comunicação, PUC-SP.
Marcuschi, L. A. (1986) Análise da conversação. São Paulo: Cortez.
Marx & Engels (1973) A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes.
Morato, E. M. (1995) Produções e organização do sentido no contexto de
atividades discursivas: relato de experiência de um centro de
convivência de afásicos. Trabalho apresentado no IV Congresso LatinoAmericano de Neuropsicologia, Cartagena, Colômbia.(mimeo)
_____ (1996) Cognição, interação e atividade discursiva. Trabalho
apresentado no XI Encontro nacional da ANPOLL. (mimeo)
Morson & Emerson (1990) Mikhail Bakhtin: creation of a prosaics.
Stanford: Stanford University Press.
Nagamine, R. (1995) Produção e textos em uma situação clínica: novas
possibilidades de sentido. Dissertação de Mestrado, PEPG Lingüística
Aplicada e Estudos de Linguagem, PUC-SP.
Newmann & Holzman (1993) Lev Vygotsky. Cientista Revolucionário. São
Paulo: Edições Loyola.
Ogden, T. (1996) Os sujeitos da Psicanálise. São Paulo: Casa do
Psicólogo
Orlandi, E.P. (1992) Vão surgindo sentidos. In Discurso fundador – a
formação do país e a construção da identidade nacional, pp. .
Campinas: Pontes.
_____ (1999) Análise de Discurso – princípios e procedimentos.
Campinas: Pontes.
Palladino, R. (1991) O Discurso em Fonoaudiologia: a construção de
uma subjetividade. Revista Distúrbios da Comunicação,n.4 (2): 137146, São Paulo: EDUC.
_____ (2000) A objetividade e a subjetividade na Fonoaudiologia. Revista
Distúrbios da Comunicação, n.12(1): 61-73, São Paulo: EDUC.
_____ (2001) A linguagem e a (co)mensurabilidade dos fenômenos In M.C.
Passos, A Clínica Fonoaudiológica em Questão, pp. 153-162.São Paulo:
Plexus.
Perfil do Fonoaudiólogo no Estado de São Paulo (1997) – Conselho
Regional de Fonoaudiologia – 2ª Região – 4º Colegiado
Perrotta, Märtz & Masini (1995) Histórias de contar e de escrever – a
linguagem no cotidiano. São Paulo: Summus.
Piaget, J. (1923) A Linguagem e o Pensamento da Criança. São Paulo:
Martins Fontes.
_____ (1946) A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar.
_____ (1950) A Epistemologia Genética In Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural.
Roncari, L. (1988) Bakhtin e a Sabedoria In C.A. Faraco, Uma introdução a
Bakhtin. Curitiba: Hatier.
Rubino & Fonseca (1998) Sobre o normal e o patológico na linguagem:
algumas questões. Trabalho apresentado no Fórum de Discussões
sobre a reforma curricular da Faculdade de Fonoaudiologia – PUC-SP.
(mimeo)
Sardinha, T. (1999) Usando Word Smith na investigação da linguagem.
Direct
Papers
40
ISSN
1413-442x,
http://sites.uol.com.br/tony4/homepage.html
Silva, A.P.B. (1999) A construção da língua nacional. Tese de Doutorado,
Pós-graduação em História, PUC-SP.
Souza, L.A.P (1987) Caminhos e descaminhos da terapia fonoaudiológica.
Revista distúrbios da Comunicação, vol.2 (3/4): 177-182, São Paulo:
EDUC.
_____ (1991) Clínica e Linguagem – presságios de um entre possíveis
encontros. Dissertação de Mestrado, PEPG em Distúrbios da
Comunicação, PUC-SP.
Souza, G.T. (1999) Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo
Bakhtin/Volochinov/ Medevedev. São Paulo: Humanitas.
Tassinari, M.I. (1995) Relação terapêutica na clínica da linguagem: o país
de Alice nas vizinhanças da teoria psicanalítica. Dissertação de
Mestrado, PEPG em Distúrbios da Comunicação, PUC-SP.
Teixeira, D.O. (1993) A trajetória da pesquisa acadêmica em distúrbios da
comunicação: tendências temática 1978-1992. Dissertação de
Mestrado, PEPG em Distúrbios da Comunicação, PUC-SP.
Túbero, A. L. (1996) A história do Alfaiate: processo terapêutico de um
afásico In Passos, M.C. Fonoaudiologia: recriando seus sentidos,
pp.119-135. São Paulo: Plexus.
Vygotsky, L. S. (1930/1978a) Os problemas de Método In A formação
Social da Mente, pp. 77-99 . São Paulo: Martins Fontes.
_____ (1930/1978b) O instrumento e o símbolo no desenvolvimento da
criança In A formação Social da Mente, pp. 25-40. São Paulo: Martins
Fontes.
_____ (1932) A linguagem e o pensamento da criança na teoria piagetiana
In A construção do pensamento e da linguagem, pp. 19-96 . São Paulo:
Martins Fontes.
_____ (1934) Estudo experimental do desenvolvimento de conceitos In A
construção do Pensamento e da Linguagem, pp. 151-239. São Paulo:
Martins Fontes.
_____ (1935) As raízes genéticas do pensamento e da linguagem In A
construção do Pensamento e da Linguagem, pp. 111-150 . São Paulo:
Martins Fontes.
Volochinov, V. N. (1926) Le discours dans la vie et le discours dans le
poésie. In T. Todorov (1981) Mikhail Bakhtine. Le principe dialogique.
Paris: Editions du Seuil.
Anexos
ANEXO 1 – Tabela dos artigos que não apresentam os termos diálogo e
interação.
Título do artigo
(categoria)
Vinculação
Considerações
sobre a família
no
contexto
fonoaudiológic
o
(família)
PUC-SP
Algumas
considerações
sobre
a
relação
fonoaudiólogo
-criança
UNICAP
Cenhamepani:
o contexto da
escrita
(escrita)
PUC-SP
Repensando a
fonoaudiologia
...
PUC-SP
Caminhos
e
descaminhos
da
terapia
fonoaudiológic
a
PUC-SP
Os
usos
sociais da Voz
(Voz)
PUC-SP
Sobre
a
interdisciplinar
idade
no
contexto
terapêutico
(métodos
fonoaudiológic
os)
PUC-SP
Título do
artigo
(categoria)
Vinculação
Dizer
o
dito
(métodos
fonoaudio
lógicos)
S/ vínculo
Devaneios
sobre
o
pensar e o
agir
(métodos
fonoaudio
lógicos)
S/ vínculo
A
singularid
ade e o
trabalho
clínico
terapêutic
o
(métodos
fonoaudio
lógicos)
PUC-SP
ANEXO 2 – Tabela dos artigos que apresentam os termos diálogo e interação, por
categoria
1.
Métodos
fonoaudiológicos
Título
A
terapia
fonoaudiológic
a e a formação
do eu (A1)
Concepções
clínicas
em
fonoaudiologia
(A2)
Reflexão sobre
o
papel
do
fonoaudiólogo
(A3)
A consciência,
esta replicante
(A4)
Novas
contribuições
da lingüística
para
a
fonoaudiologia
(A5)
Psicanálise e
linguagem (A6)
Fonoaudiologia
e Psicanálise
(I) (A7)
Fonoaudiologia
e
psicanálise
(II) (A8)
Subjetividade e
linguagem (A9)
Subjetividade,
corpo
e
linguagem
(A10)
Fonoaudiologia
e
Saúde
Coletiva (A11)
O
grupo
terapêutico
A12)
Objetividade e
subjetividade
nos processos
terapêuticos e
fonoaudiológic
os (A13)
A
linguagem
na
clínica
fonoaudiológic
a
(A14)
O
processo
terapêutico
fonoaudiológic
o (A15)
2.
Transtornos
Neurológicos
Título
Vinculação
Considerações
sobre
situações de
brinquedo e a
linguagem de
crianças PCs
(A16)
USP
O papel do
fonoaudiólogo
na terapia da
afasia (A17)
PUC-SP
Eficácia
de
terapia
na
reabilitação de
um
paciente
portador
de
Alexia
Pura
USP
(A18)
Avaliação do
Afásico (A19)
S/ vínculo
A linguagem
do envelhecer
(A20)
PUC-SP
Rotinas
significativas e
práticas
discursivas
(A21)
UNICAMP
Discutindo a
classificação
das alterações
da linguagem
escrita
nas
afasias (A22)
UNICAMP
3. Surdez
Título
Programa
clínico
do
fonoaudiólogo
com um grupo
de pais de
crianças D.A
(A23)
O
trabalho
fonoaudiológic
o
com
um
grupo de pais
de
crianças
D.As. (A24)
Considerações
sobre
a
escolha
de
uma
abordagem
que
viabilize
acesso
à
linguagem
(A25)
Identificação
de estratégias
no
processo
terapêutico de
uma
criança
D.A. (A26)
4.
Avaliação de Linguagem
Título
Vinculação
Reflexões
sobre a
investiga
ção
de
linguage
m
em
crianças
pequenas
(A27)
PUC-SP
Evolução
do
simbolis
mo como
base para
o
diagnósti
co
do
retardo
de
linguage
m (A28)
PUC-SP
Questões
sobre o
diagnósti
co
em
crianças
pequenas
(A29)
PUC-SP
O
diagnósti
co
nas
alteraçõe
s
de
linguage
m (A30)
PUC-SP
5. Escrita
Título
Vinculação
A escrita na
clínica
fonoaudiológ
ica (A31)
PUC-SP
Interpretação
da
escrita
infantil (A32)
PUC-SP
6. Transtornos Psíquicos
Título
Vinculação
A
relação
discursiva
entre
terapeutas e
crianças
psicóticas
(A33)
USP
Aprendendo
a falar com
Marie (A34)
PUC-SP
7. Voz
Título
Vinculação
Algumas
reflexõe
s sobre
a terapia
de voz
(A35)
PUC-SP
ANEXO 3 – Tabela das dissertações e teses analisadas, por categoria
1. Métodos Fonoaudiológicos
Título
Sobre a gênese da gagueira
Relações Entre o Desenvolvimento
cognitivo e a constituição do
simbolismo: a consideração de tais
aspectos em uma proposta
fonoaudiológica
Instituição/Programa/Grau
I.
Ano
PUC-SP – Psicologia Social - Mestrado
1985
PUC-SP – Distúrbios da Comunicação Mestrado
1988
A abordagem dialógica: uma
proposta social em fonoaudiologia
PUC-SP – Psicologia da Educação –
Doutorado
1990
O texto literário da fonoaudiologia
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1990
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1991
A construção do personagem bom
falante
PUC-SP – Psicologia Social – Doutorado
1992
Leituras em busca de uma prática
fonoaudiológica
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1992
A alta na fonoaudiologia
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1992
A dimensão da técnica na clinica
fonoaudiológica: um estudo
preliminar
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1992
Os caminhos de um processo
fonoaudiológico: uma possível
descoberta
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação –
Mestrado
1992
Prática: um caminho para a revisão
da relação no atendimento
fonoaudiológico
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1992
Fonoaudiologia e grupo: construção
de um processo terapêutico
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1993
Escutando a criança na terapia
fonoaudiológica
PUC-SP -Distúrbios da Comunicação Mestrado
1994
Por entre os distúrbios articulatórios:
questões e inquietações
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1995
Fonoaudiólogo e psicólogo:
dialogando no processo terapêutico
de uma criança
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1995
Relação terapêutica na clinica da
linguagem
PUC-SP – Distúrbios da Comunicação –
Mestrado
1995
Refletindo sobre a clinica
fonoaudiológica: um estudo de caso
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1995
Entre silêncios e falas: a criança e o
atendimento
fonoaudiológico
Título
Fonoaudiologia e Psicanálise: a
fronteira como território
Prática e teorização na clinica
fonoaudiológica: relato de uma
vivência
Instituição/Programa/Grau
II.
Ano
PUC-SP – Psicologia Clínica - Doutorado
1997
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1997
Entre o olhar, o sentir e o escutar:
um estudo sobre o fenômeno
transferencial na clinica da
linguagem.
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
Práticas e representações corporais
em fonoaudiologia
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
A produção de sentido sobre
gagueira para mães que consideram
seus filhos gagos
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1999
Através dos discursos: a construção
do saber na fono...
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
2000
Concepções teóricas e praticas
fonoaudiológicas: o discurso do
fonoaudiólogo
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
2000
O processo terapêutico
fonoaudiológico sob o prisma da
relação terapeuta/paciente: um
estudo de caso
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
2000
Os sentidos do sintoma de
linguagem na clinica fonoaudiológica
PUC-SP - Fonoaudiologia - Mestrado
A atividade lúdica na clinica
fonoaudiológica
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
O "setting" na clinica
fonoaudiológica: um estudo através
de discursos de fonoaudiólogos
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
O "setting" na terapia
fonoaudiológica: estudo de caso de
atendimento domiciliar
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
Uma análise discursiva da gagueira:
trajetórias de silenciamento e
alienação na língua
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
A fusão das cores: o sentido
terapêutico na clinica
fonoaudiológica de grupo
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
A clinica fonoaudiológica:
retrospectivas e prospectivas
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
A função terapêutica na clinica
fonoaudiológica: um estudo de caso
clinico
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
Omideio – o que é isto? Questões e
reflexões sobre as dislalias (...)
PUC-SP – LAEL – Doutorado
1998
1998
2000
2000
2000
2000
2000
2000
2001
2001
2001
2. Transtornos orgânicos e/ou neurológicos
Título
Instituição/Programa/Grau
Ano
Reflexões sobre a terapia
fonoaudiológica da criança paraliticocerebral
PUC-SP – Distúrbios da Comunicação Mestrado
1987
As correções no discurso de
indivíduos idosos
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1990
A clinica fonoaudiológica: reflexões
sobre a questão das crianças com
fissuras labio-palatinas
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1990
A narração do afásico: busca de um
caminho em fonoaudiologia
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1992
Oficina de leitura com um grupo de
adolescentes surdos: uma proposta
fonoaudiológica
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1994
Paralisia cerebral na clinica
fonoaudiológica: primeiras questões
sobre linguagem
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1996
Historias de vida: uma possibilidade
de compreensão do surdo
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1997
(Res) significando a questão da
linguagem no trabalho com a criança
surda
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação –
Mestrado
1998
Paralisia Cerebral: A fala na escrita
PUC-SP – LAEL - Mestrado
1999
O lugar da linguagem escrita na
afasiologia (...)
UNICAMP – IEL - Mestrado
1999
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1999
PUC-SP – LAEL – Mestrado
2000
Estratégias de comunicação usadas
nas interações de crianças deficientes
auditivas e seus interlocutores
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
2000
Os efeitos da interpretação na
linguagem de uma criança surda
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
2000
Caderno de experiências no processo
terapêutico da criança portadora de
deficiência auditiva
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
2000
As contribuições dos jogos na
aprendizagem de alunos com
deficiência auditiva
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
2000
A utilização de musicas infantis na
terapia fonoaudiológica da criança
D.A.
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
2001
Os efeitos do diagnostico nos pais da
criança surda: uma analise discursiva
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
2001
Processo terapêutico na clinica
fonoaudiológica: estudo do caso de
uma criança com Sindrome de Down
Sob o efeito da afasia
A escrita de uma criança surda: uma
analise alternativa
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
2001
3. Avaliação de Linguagem
Título
Instituição/Programa/Grau
Ano
Em busca da linguagem: na
avaliação da linguagem
PUC-SP – Distúrbios da Comunicação Mestrado
1989
A escuta: o jgeito das queixas
fonoaudiológicas
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1991
A 1 entrevista na clinica
fonoaudiológica
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1992
Avaliação da linguagem em
indivíduos com Sindrome de Apert,
Crouzon e Pfeiffer
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1996
Os sentidos da entrevista inicial na
clinica fonoaudiológica
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação –
Mestrado
1998
Anamnese ou entrevista:
desfazendo equívocos na clinica
fonoaudiológica
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1999
A entrevista inicial: potencializadora
do estudo sobre clinica de fono
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
2000
Diagnóstico e clínica de linguagem
PUC-SP – LAEL - Doutorado
2001
a
4. Escrita
III.
Título
Produção de textos em uma situação
clínica: novas possibilidades
IV.
Instituição/Programa/Grau
1995
PUC-SP – LAEL - Mestrado
A significação nos processos de
leitura e escrita a partir da experiência
clínico-fonoaudiológica
PUC-SP – Psicologia da Educação – Mestrado
Quando histórias reconstroem a
história: em cena a linguagem escrita
na clínica fonoaudiológica
PUC-SP – LAEL – Mestrado
Um eclipse anular no sol da
linguagem escrita: desvendando os
sentidos da avaliação fonoaudiológica
(...)
Sobre o efeito sintomático e as
produções escritas de crianças
V.
1997
1997
1999
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
PUC-SP – LAEL – Mestrado
2000
A
n
o
Processo terapêutico fonoaudiológico:
um estudo de caso de linguagem
escrita
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
2001
5. Família
VI.
Título
Instituição/Programa/Grau
VII.
A clinica fonoaudiológica escutando a
mãe de crianças com Fra-X
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1994
A fala das mães gestantes e suas
interações com seus filhos
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1995
Escutando Marcelo: sobre a dinâmica
da família na produção de um sintoma
de linguagem
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1995
Implicações da família nos transtornos
de linguagem: um estudo de caso
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1999
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
2000
Instituição/Programa/Grau
Ano
Psicoses infantis: atuação
fonoaudiológica e seus resultados
PUC-SP – Distúrbios da Comunicação Mestrado
1990
O processo terapêutico
fonoaudiológico de uma criança
atendida em hospital-dia
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
1995
PUC-SP – Fonoaudiologia - Mestrado
2000
Da inclusão dos pais no atendimento
fonoaudiológico de crianças com
sintomas de linguagem: o que diz a
literatura
A
n
o
6. Transtornos Psíquicos
Título
A fonoaudiologia diante da posição
psicótica na infância: uma perspectiva
discursiva
7. Voz
VIII.
Título
Processo terapêutico na clinica das
disfonias: constituição de um espaço
potencial na relação terapêutica
A voz na interação verbal
Instituição/Programa/Grau
IX.
PUC-SP - Distúrbios da Comunicação Mestrado
2000
PUC –SP – LAEL – Doutorado
2000
A
n
o
ANEXO 4 – Tabela das dissertações e teses produzidas em programas de PósGraduação de áreas de conhecimentos afins
Psicologia Social
Sobre a Gênese
da Gagueira
A abordagem
dialógica : uma
proposta social
para a
fonoaudiologia
A construção do
personagem bom
falante
Fonoaudiologia e
Psicanálise: a
fronteira como
território
OMIDEO – o que é
isto? Reflexões
sobre as dislalias
Paralisia cerebral:
a fala na escrita
Sob o efeito da
afasia
Diagnóstico e
Clínica de
Linguagem
Produção de
textos em
situações clínicas
A significação
dos processos de
leitura e escrita a
partir de uma
experiência
fonoaudiológica
Em cena a
linguagem escrita
na clínica
fonoaudiológica
Sob o efeito
sintomático das
produções de
escrita
A voz na
interação verbal
X
Total
2
Psicologia Clínica
Psicologia
Educação
da
Lingüística
Aplicada
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
1
2
8
ANEXO 5 – Depoimentos
1º EXPOSIÇÃO DO GRUPO DE PESQUISA - 26/09/2001
Compareceram Leila, Regina, Carmen.
Os encontros são realizados na sala de espera do consultório da pesquisadora. As
participantes sentaram-se nos sofás, que ficam encostados em paredes contíguas. Pouca
variação houve das posições tomadas inicialmente. Leila começou apresentando seu
trabalho, com intervenções das outras duas que compareceram, conforme a transcrição
abaixo.
1. Leila: Esse trabalho que eu desenvolvo... agora já estou um pouco afastada né: da
Estrela da Vida... uma instituição filantrópica que tem um setor de telemarketing
que é o que arrecada a verba para manter essa instituição... então assim: as
operadoras têm um período de seis a oito horas de trabalho...que elas ficam no
telefone... contando um pouco qual é a dinâmica da instituição: por que que elas
precisam desse dinheiro né: para colaborar e: assim até convencer o colaborador
essas pessoas que ligam para a nossa casa mesmo né... com esse colaborador...
o doador dá uma certa quantia que vai ser depositada na conta da Estrela da
Vida... então eu resolvi fazer um trabalho de fazer a audiometria admissional
periódica e demissional dessas operadoras de telemarketing: porque elas ficam
com fone o dia inteiro na orelha... a intenção inicialmente era de fazer um trabalho
até um pouco mais extenso né: assim pensando na acústica do ambiente -- que é
deficitária por sinal -- das condições do fone delas né:: é: não só pensando na
audição: mas também na qualidade vocal porque elas falam em ambiente que tem
ar condicionado: tem carpete: muitas têm alergia rinite e por aí vai... Mas isso não
foi possível em função da organi/da questão organizacional né: a Estrela da Vida é
uma instituição que tem uma filosofia muito forte religiosa... o importante lá é ta
passando a filosofia da empresa... se preocupando mais com essa arrecadação
né... são duas questões... eles tinham medo que entrando uma pessoa que
falasse dessa outra visão para elas... outra forma de trabalhar e influenciasse na
dinâmica que já existe há vinte anos né... uma coisa certa: já tem um discurso
pronto quando elas ligam... na forma de colaborar... bom então o meu trabalho
seria fazer a audiometria mesmo... audiometria admissional... como eu falei na
primeira/ na primeira palavra que eu tive... ficou muito vazio fazer só a
audiometria... chega lá entra na cabine faz a otoscopia... ta tudo íntegro na
membrana timpânica vamos fazer a áudio e acabou.... então eu comecei a fazer
uma anamnese antes... levantando o quê e pra quê... levantando o nome
informações gerais: função: data do exame: informações sobre a audição: se acha
que ouve bem: se acha que não ouve: porque que não acha sintomas: coceira:
zumbido: tontura... se já teve dor de ouvido ou não... antecedentes pessoais é:
doenças de infância: catapora: sarampo: a gente sabe que tem influência na
audição... e outras também: inflamação na garganta: bronquite: exposição a ruído:
se mora em lugar ruidoso: se já teve uma outra ocupação em lugar: ambiente
ruidoso (SI)... há quanto tempo ta como operadora na instituição: o histórico
familiar: atividades de lazer: hábitos e vícios... aí eu faço a otoscopia e ao/e quanto
à voz... se já apresentou rouquidão por quanto tempo... se era acompanhada por
quadro inflamatório ou não... se usa um medicamento... se usa essas soluções
caseiras né: mel própolis pra dar uma: uma mascarada nos sintomas... então eu ia
levantando essas questões...é: inicialmente eu fazia essa/essa anamnese
individual... eu chamava quatro operadoras todo dia... geralmente logo: pedia né...
que fosse antes de iniciar o trabalho... pelo repouso auditivo... era uma coisa difícil
né: de ser cumprida também pela organização da empresa... né: eles queriam que
elas fizessem logo esse exame: mesmo que fosse uma vez por ano...porque elas
tinham que arrecadar: elas ganham por produtividade né... elas tinham que
arrecadar... então era uma coisa difícil e eu precisava/era o único momento que eu
tinha... eu precisava dar uma/ né aumentar aquilo lá: era o único contato que eu
tinha... eu queria: é: como é que eu posso falar: destrinchar o máximo que eu
pudesse aquilo lá... então é: a princípio era individual... eu fazia de oito horas a
oito e vinte e cinco e de vinte e cinco a vinte e cinco minutos e acho até que vale a
pena contar a história e um dia eu cheguei pra fazer esse exame... como tudo é
um pouco desorganizado... a sala tava fechada e não tinha onde fazer o exame...
a hora tava passando e eu pressionada com essa coisa que logo mais já iam
começar a ligar da coordenação pedindo que elas voltassem pro posto de
trabalho... e eu achei uma sala que tava cheia de cadeira até lá numerada e eu
pensei: por que não juntar as quatro e fazer em grupo... será que não ia ser até
mais rico né... por que às vezes eu sentia até que individual era aquela coisa tete
a tete: por que anamnese é muito restrita... por mais que você tente sair: ela é
restrita... ela é muito ligada é: à doença mesmo.... teve? Já teve a doença... já teve
aquilo... já teve aquilo? eu sinto isso: eu sentia isso... então ficava um pouco
fechada... elas deixavam de falar... só percebi isso depois... quando eu comecei a
fazer em grupo... e aí nessa sala... essa sala era um espaço até pequeno... eu
falei vamos entrar as quatro pra fazer a anamnese em grupo... Como assim em
grupo... a princípio elas falaram... como... né: ah: vamos ver: ué: vamos dividir
isso... todas não têm a mesma função... todas não tão trabalhando já não se
conhecem de lá? vamos dividir? vamos... e foi muito bom... foi: rico... a
experiência foi rica... então assim... foi a primeira vez: todo mundo apertado até
na sala... porque não era um espaço ideal naquele momento né: mas fez eu
mudar minha conduta... a partir daquele dia... eu comecei a fazer em grupo...
mudei a convocação e...
2. Pesquisadora – Deixa eu perguntar uma coisa... conta um pouco que eu acho que
é legal até pra gente ver essa diferença quando você fala mudou... foi bem rico...
bem diferente... conta um pouco como é que era mesmo a chegada delas... elas
chegavam: elas esperavam você falar: elas já falavam alguma coisa: elas só
respondiam exatamente o que ta na anamnese ou você sentia que elas queriam
falar uma outra coisa ou até elas falavam outras coisas...como era sua escuta para
isso, ta?
3. Leila – Ta... então assim: até quando você me faz essas perguntas: essas
questões: vêm milhares na minha cabeça né: porque na hora eu tinha de correr
contra o tempo... então hoje eu vejo que tinha coisas assim: eu tampava a escuta
(bateu uma mão na outra)... se eu deixasse ia... como foi muitas vezes... ce pensa
e fala: dane-se e vamos continuar....
4. Regina– Quando: quando o paciente começa a falar muita coisa... tem que
cortar... redirecionar e (SI)
5. Leila – redirecionar é: redirecionar sim: eu sentia às vezes que era uma pena
redirecionar... não precisava direcionar....
6. Regina– Sim:
7. Leila – mas é essa coisa que eu falo: a organização é muito forte nessa
instituição... a questão organizacional né: então assim é: tem várias questões...
pensando no individual... muitas chegavam é: já apressadas querendo ir embora...
eu via que tinha o que ser dito... eu sentia que tinha o que ser dito... mas elas
cortavam na hora de falar por ter que voltar pro posto de arrecadação né: então
assim é: um exemplo né: já teve dor de ouvido alguma vez? Tive...Quando?
ah, já tive mas não lembro quando... foi na infância...foram meses... anos...
ou foi recente? ah.. foram meses... Você vê assim... ela lembrava daquilo: ela
podia estar falando melhor... mas ela também tava tão pressionada para hora de
voltar que ela já cortava...
8. Regina: Você acha que ela tava se sentindo pressionada só por ter que voltar ou
porque era difícil estar falando
9. Leila: então:
10. Regina: dela né: de alguma eventual doença dela:
11. Leila: Hanhan...claro...
12. Regina: que você descobrisse alguma perda auditiva?
13. Leila: não... acho que tem as duas... tem esse lado também: claro. tem esse lado
também... acho que não é só pela pressão... mas não só é: não só perda auditi/ de
ter uma perda auditiva... é uma: questão que tem que se levantar, ta: acho que
não só isso...tem outros fatores que eu levanto... é: o fato mesmo de estar lá...
vamos lá/entra e não me conhece... entendeu? Você chegou para o exame
periódico: a fono é lá... (risos)
14. Regina: A fono é lá é bom... né: (risos)
15. Leila: Não é?
16. Carmen: Dá uma emoção... (SI)
17. Leila: (SI)
18. Carmen: um convite (SI) que você possa
19. Regina: ali é o banheiro... ali é a fono...
20. Leila: Não tem uma demanda... ela não ta indo lá porque ela quer...
21. Regina: risos
22. Leila: Ela não ta indo lá porque ela quer... é uma imposição... é imposto isso...
você é obrigado a fazer o periódico e é hoje às oito horas você vai lá e ela ta te
esperando né: tem isso... e daí eu chego e já você acha que ouve bem: como é o
seu nome: há quanto tempo você ta aqui: quer dizer: pensa você né: peraí né:
você não ta lá porque você escolheu... você vai lá porque te pediram para você
estar lá.... então tem esse lado: bom/uma coisa que eu escutei muito também:
pode ser que nem seja relevante: mas assim: é: logo de cara/ ta: depois mudava
isso... mas logo de cara... nossa você é tão menina... você é tão menina...
quantos anos você tem? no final já mudava essa postura... muitas vezes... mas
isso é coisa que pegava e pega mesmo... atrai... então eu acho que/ uma coisa
que deixava é: fugir além do horário era isso também de estar... a perda auditiva...
essa coisa de pá/ acha/ acha... você tem você não tem... você é você não é...
interrogatório... isso aqui é interrogação...
23. Pesquisadora: é interrogatório mesmo...
24. Leila: Por mais que eu não seguisse assim: b) acha que
25. Regina: O pior, né:
26. Leila: Não é? Eu tentava o máximo deixar isso mais à vontade né: nem levando/
claro que não eu seguia uma ordem... cada dia: cada hora era uma hora e ia
indo... né: mas isso intimida né: eu acho que isso é uma coisa também... que eu vi
que quando eu fui pro grupo -- você me puxa se eu ficar voando -27. Pesquisadora: ta/ não::
28. Regina: ta ótimo assim...
29. Leila: quando eu fui pro grupo... eu percebi o quê? que uma falava né: até então
é: tem coceira? Não ... não tenho... a primeira não tem, a segunda não tem... aí
a terceira: eu tenho sim, sabe porque que eu tenho coceira às vezes? O fone
não é bom... o fone tem uma esponjinha que esfarela e ele pode dar uma
infecção... anda me coçando e anda me incomodando... eu tenho coceira
sim... essa era a terceira... a quarta já falava no discurso dela... sabe que eu
também tenho?
30. Regina: Isso no grupo: quando você chamou o grupo para fazer a anamnese?
31. Leila: quando eu juntei é: ao mesmo tempo...com a primeira e a segunda: tem
coceira? não... tem coceira? Não... A terceira falava essa questão do fone: ah,
tenho sim... o fone não é bom... me coça... aí a outra já associava e as outras
duas que já tinham falado que não tinham/ muitas vezes: sabe que eu também
tenho? E o fone me incomoda né: aí trazia... isso que eu to falando que foi
rico..
32. Regina: A fala de uma estimula a outra...
33. Leila: é...
34. Regina: a dizer... se ela diz eu também posso dizer...
35. Leila: referência né: mas é isso né: é acho que assim...
36. Regina: também::
37. Leila: é: acho que:
38. Regina: dividir...
39. Leila: dividir... se ela disse eu posso dizer também... uma referência.... não tinha
lembrado é: é: bom né: aí é que eu falo que foi rico que aí ia sabe/ dava/
aumentava... que disso vinha outras coisas também....
40. Pesquisadora: Você lembra alguma coisa: quando você fala disso vinha outras
coisas... tem alguma situação que você lembra isso?
41. Leila: Quando você disse assim pra mim... tava falando de Bakhtin... do discurso
autoritário... do discurso persuasivo... eu pensei numa coisa... Quando eu chegava
lá: eu sem/chamava as quatro na sala... me sentava: me posicionava e falava
assim: me apresentava: bom dia... meu nome é Leila... sou fonoaudióloga aqui
da ESTRELA DA VIDA... to trabalhando aqui no setor de telemarketing... por
mais que vocês não me conheçam -- porque a relação que a gente tem é
mesmo nos periódicos -- o contato que a gente tem né: mas aqui a gente vai
fazer a audiometria... que vocês já fizeram... ahn: já fizemos sim... e hoje
além disso/não... e hoje nós vamos fazer uma amamnese antes -- não falo
amamnese claro – um/ algumas questõezinhas... a gente vai levantar antes
desse exame... até para iluminar o exame e a gente se conhecer melhor... aí
surgia: antes não tinha isso... porque não tinha mesmo anamnese: era só
audiometria... antes não precisava disso... algumas já assim... por que que hoje
vai ter que ter... outras já se interessavam... hum: vamos ter uma coisa diferente
(risos)
42. Regina e Carmen: (risos)
43. Pesquisadora: esse exame periódico é periódico de quanto em quanto tempo?
44. Leila: seis em seis meses...
45. Pesquisadora: E elas são funcionárias com um tempo já grande de:
46. Leila: sim...
47. Pesquisadora: não tem uma
funcionárias?
48. Leila: tem... tem...
49. Pesquisadora: também tem...
alta rotatividade... uma troca muito grande de
50. Leila: tem... mas assim: por exemplo: eu peguei aqui uns casos né: é: uma coisa/
é: noventa e oito por cento da população da unidade de arrecadação é do sexo
feminino...
51. Pesquisadora: hum hum
52. Leila: né: Até tem uma ação assim: porque a pressão é muito grande... acredito
que a mulher acaba agüentando um pouco mais essa pressão né: de segurando lá
é muito grande...
53. Pesquisadora: na verdade... na verdade... elas sofrem/ sofrem pressão dos dois
lados porque -- quem já não recebeu telefone de uma mulher da ESTRELA DA
VIDA...
54. Leila: hum,hum:
55. Regina: Quem não despachou... Olha, eu to sem tempo agora
56. Pesquisadora: É uma coisa completamente desagradável...
57. Regina e Carmen: (risos)
58. Leila: mas o que/na hora não to podendo e desliga mesmo... (SI) nós vemos isso
também: pela anamnese né: é: foi isso que você me falou e eu vou voltar pro (SI)
59. Pesquisadora: Ta legal...
60. Leila: do tempo que elas tão lá...
61. Pesquisadora: Hum hum
62. Leila: Então, esse grupo que eu peguei: são três operadoras que é a coisa de
duas delas têm dez anos de função... na ESTRELA DA VIDA... não é função de
telemarketing... ESTRELA DA VIDA foi o primeiro emprego... dez anos e uma
delas tem quinze anos: de função... aí eu vou falar... tem toda uma raiz da
filosofia... da religião.... que eu acredito que eu também ajudo a agüentarem essa
pressão... porque é uma pressão muito grande....
63. Pesquisadora: Você acha que você ajuda como?
64. Leila: Ajudo como:: bom aí eu vou voltar....
65. Pesquisadora: Ta, então volta lá.
66. Leila: me apresentei e tal.... aí eu falo do discurso... não sei se se encaixa no
autoritário ou no persuasivo... mas meu discurso é diferenciado que dá um
efeito... claro: afeta... todo discurso afeta.... mas eu acho que esse mais... quando
eu falo assim pra elas: aqui é um espaço -- eu falava isso -- me ajudem até
(risos) aqui é um espaço que eu quero que é: gostaria que vocês
trouxessem não só as questões que eu vou estar levantando mas é:
questões e e acontecimentos que passam pelo campo que vocês
trabalham... na unidade de arrecadação: que vocês ficam: vocês há de (SI)
vocês ficam de oito a dez horas naquela unidade de arrecadação... é muito
tempo... quase metade do dia de vocês né: então acontecem muitas coisas e
eu quero que vocês tragam... sabe o que acontecia? eu abria um leque que
depois eu não agüentava...
67. Regina: é... quando você abre isso/ ela vai trazendo tantas/tantos problemas que
surgem lá...
68. Leila: é, é...
69. Regina: que assim você vai ter que ter uma estrutura até...
70. Leila: não/ aí bom:
71. Regina: pra organizar isso e devolver mais organizado pra elas...
72. Leila: é:: eu abri muito... hoje eu vejo que eu abri muito... mas sabe porque eu
abria?
73. Pesquisadora: Como é que era a receptividade quando você falava isso?
74. Leila: a receptividade? Bom: elas... era só queixa só reclamação era só
reclamação: muita reclamação e muita queixa e em cima de tudo assim: ai que
bom que agora eu tenho esse espaço para falar né:
75. Regina: não existe contentamento nessa atividade... nessa tarefa...
76. Leila: Não...
77. Regina: é só frustração... muitas pessoas desligando o telefone no ouvido delas...
porque querem vender não sei o quê... querem passar não sei o quê... num local
assim descontentes:
78. Leila: eram as queixas... as queixas as frustrações o alívio de poder estar falando
ali... eu ficava né: tudo bem eu tava ali/ de poder falar ali e a fala de falar poxa...
há oito anos atrás tinha até umas dinâmicas tão boas antes de iniciar o/ o/ a carga
horária: o turno de trabalho elas cantavam se esticavam... sei lá... era bom... poxa
porque que hoje não tem mais? Elas pensavam assim: que desconsideração,
eles não olham para a gente... elas traziam isso...
79. Regina: Acho que o que você está contando é que não tinha diálogo... assim: falta
de comunicação...
80. Leila: Lá dentro?
81. Regina: Parece mais unilateral...
82. Leila: É: é imposto...
83. Regina: é imposto...
84. Leila: e assim: é: eu eu me questionava muito... né: até assim: umas das/ o que
me fez (SI)/ comecei a me olhar:: o que que eu to querendo fazer com isso... eu
sei que por um lado ta sendo bom para elas.. vai:: que às vezes eu falava: não to
fazendo nada... cheguei a pensar em falar isso questionar esse trabalho... não
peraí/ nada não/ claro que não né: claro que não... mas o que eu queria ver é
quero ver frutos... quero ver evolução nisso daí.... to levantando tudo isso ((mostra
o material que tem em mãos)) todos esse dados aqui... todas essas queixas... o
que eu vou fazer com elas? Por que eu: assim como elas também não tem com
quem dizer... eu não tinha entendeu? Eu falava pra ele/ pro médico: como um
desabafo um estudo de caso... poxa né: mas assim: pra eu poder/ eu não tinha um
acesso à diretoria à organização às coordenadoras mesmo....
85. Pesquisadora: Quando você fala que queria ver uma evolução... na sua cabeça o
que que é essa evolução? O que que você vislumbrava como evolução?
86. Leila: O que eu vislumbrava? É: por exemplo né: uma coisa/ as condições de
trabalho... primeiro a carga horária né: eu não tenho muito esclarecimento sobre
isso mas assim: eu sei que nove horas não é um turno para uma operadora de
telemarketing trabalhar... JAMAIS...entendeu? então isso era uma coisa que eu
tinha que entrar...
87. Pesquisadora: Sem intervalo: nove horas sem intervalo?
88. Leila: Não, com intervalo...
89. Carmen: mas mesmo assim...
90. Leila: Mesmo assim: sabe: não há/né/ não há matéria humana que agüente isso...
não tem como/ então/ horário de trabalho: as condições do fone... gente:
subumanas sabe:: a esponja caindo: o fone/ headset né: o bocal: como eram
poucos elas roubavam uma da outra para uma trabalhar com o da outra... o fone:
e isso era uma coisa que eu falava como evolução... vamos melhorar essa
condição: para elas se sentirem mais olhadas até... e produzir mais até... se
sentirem melhores: entendeu? meu caso era a evolução... elas se sentirem
melhores e olhadas mesmo... então o fone: a carga horária: a acústica do
ambiente: acho que era uma coisa que eu podia movimentar... se eu tenho uma
escuta lá dentro eu podia me movimentar para ganhar isso... não sozinha...
91. Regina: Quando você acabou esse trabalho você fez algum relatório? você
devolveu isso para a instituição?
92. Leila: é o que eu to fazendo... eu to saindo de lá há uns dez dias....já fiz outros... já
fiz alguns por exemplo: numa manhã -- to lembrando -- cinco operadoras vieram
reclamar a mesma queixa: a gente ta com dor de ouvido, estamos com dor de
ouvido... poxa... dor de ouvido não é tão simples de ter né: de aparecer uma dor
de ouvido... como que é essa dor... aí você começa a esmiuçar essa dor de
ouvido.... Você vai ver essa dor é dor assim: de orelha... de ouvido externo...
dolorido tava.... como você trabalha/ você começa a ver tinha muita relação com
as condições do fone: por que era um fone que elas não conseguem ouvir direito e
o que elas fazem? elas ficam pressionando contra o pavilhão aquele fone: e
realmente vai dar dor na orelha... aqui é cartilagem... se você dormir de mau jeito
no travesseiro vai dor...
93. Pesquisadora: agora deixa eu te perguntar uma coisa... quando você deixou de
fazer a anamanese individual e começou a fazer em grupo alguma coisa tinha na
sua cabeça pra você fazer/ ta certo que culminou com o fato de não ter a sala e aí
de repente estava apressada no horário e aí juntou todo mundo... mas tinha
alguma idéia né:
94. Leila: tinha...
95. Pesquisadora: Na sua cabeça de botar todo mundo junto? aí você falou que foi
super rico: falou da troca: deu o exemplo de duas primeiras não citarem a dor no
ouvido a aí tem coceira e aí a terceira citou e a quarta acabou se sentindo talvez
encorajada e citou também: aí as outras duas acabaram citando: aí você disse que
tinha outros exemplos dessa dinâmica de grupo.... o que que você tinha em
mente? vê se você consegue me responder isso... o que que você tinha em mente
quando botou todo mundo em grupo e o que mais você pôde observar na hora em
que elas começaram a falar.... então assim me parece que esse exemplo é um
exemplo de cooperação... elas se sentiram mais fortalecidas de estarem em grupo
e aí assumindo mais umas queixas que elas até tinham... só que individualmente
ninguém ia assumir... na hora que uma começa a falar outra começa a falar... elas
começam a assumir... e ai no que você estava falando... você até disse ahn: tinha
uma coisa de referência que tipo de referência é essa? o que que vinha pra esse/
pra/ pelas falas delas/o que que vinha? você falou que vinha reclamação... era
uma reclamação da direção: dos clientes: como que era isso?
96. Leila: é::assim: quando eu mudei essa forma de estar fazendo a anamnese né: se
eu fosse pensar no que eu poderia articular depois com esses dados eu não
faria... então eu até meio que vou fazer eu pensei assim de estar disponibilizando
mais até elas: em grupo eu acreditei/ acredito que consigo disponibilizar mais por
ser uma coisa: como você falou: tão assim fechada nesse caso né: não numa
clínica normal... numa atividade clínica... como se uma anamnese fechada em
grupo capaz que descontrair mais... deixar que isso viesse mais... cada um se
colocasse...
97. Regina: Acho que você até pode ter pensado em proporcionar mais diálogo... com
uma abertura maior também... será que você não pensou na mudança dessa
dinâmica... uma coisa é você estar com seu paciente né: outra coisa é estar com
um grupo e abre o espaço...
98. Leila: abre o espaço...
99. Regina: realmente para a conversa: para dividir...
100.
Leila: pra dividir:
101.
Regina: Dividir a dor pra dividir a alegria e uma porção de coisas...
102.
Leila: dividir e as referências ...como eu falei... uma falando e a outra ia
trazendo: agora além das queixas assim: quando em pensei num grupo eu pensei: já
que eu não to podendo articular muito lá dentro com elas: porque não dar uma
orientação aqui? uma orientação de conservação auditiva: uma orientação vocal: era
uma coisa: um espaço que eu tinha para fazer isso... é: tinham coisas que elas já
sabiam: que tinham escutado e não tinha uma anamnese antes... mas tinha uma
breve conversa com uma outra fonoaudióloga que tava lá né: então: por exemplo:
quando eu falava é: o porquê de estar alternando o fone né: ah só porque/ pra não
ficar surdo e tal... será que é isso: vamos esmiuçar isso aí: será que é só por isso: por
que que a gente alterna o fone né: e não a gente ia dividindo mais ampliando mais
isso... Eu não queria só/ eu comecei a perceber que tinham condutas que elas tinham
escutado e que muitas vezes eu perguntava e aí você ta fazendo? faz isso na
prática? ah, não... e muito eu percebia que era assim: porque só tinham jogado/ mas
o porquê/ o benefício que isso ia trazer a elas isso não tinham dado: então assim: ah:
eu ouvi falar que comer maçã é muito bom.. eu como maçã e não como
chocolate... por que maçã: porque que você come maça e não come chocolate?
Ah sei lá, então maça é adstringente, ela limpa desde a fase oral até o trato
vocal, chocolate é muito viscoso... né: pode atrapalhar... e assim a gente ia
conversando mais sobre isso... era um modo que eu podia dar uma orientação de
saúde vocal: orientação de conservação auditiva: porque isso também/ quando era
individual eu falava... parece que elas tinham de agüentar tudo lá sim... Não sei: eu
assim: até muito do que eu/ dessa prática eu to agora nesse espaço agora que eu to
começando a cair outras fichas... a analisar... vou ser sincera pra vocês ta... agora: eu
percebia que quando era individual essa orientação: não era como era em grupo...
porque em grupo: umas já tinham feito: podia falar isso: ah eu já fiz... por que que
você fez? Então era um espaço que eu podia/ porque você só vai fazer lá fora quando
tiver sentido, fazer por fazer: não vai né: comer maça é bom, mas por que é bom? E
elas não tinham procurado o porquê disso lá... Aí nisso quando você falava da
orientação: dos benefícios e dos malefícios de algumas condutas: de alguns
alimentos: de algumas posturas: sei lá... elas traziam também: ah sabe o que eu já
ouvi falar: que: por exemplo: mastigar cravo da índia faz bem pra voz... olha eu
nunca soube do cravo da índia... vou estar vendo/nunca soube/ mas eu sei disso
disso: e colocava né: falava pra fazer inalação com água só pra ir hidratando... a
água é excelente independente pra o que você está fazendo... ainda mais que
estão no ar condicionado que vai ressecando...né: era o espaço também para dar
orientação para elas... para dar... para dividir a orientação: elas me colocavam coisas
que depois eu ia ver e realmente era bom e eu passava para o próximo grupo
também... E eu nem sabia: começava a ver...
103.
Pesquisadora: Você teve retorno com os grupos que você fazia: não? Por
exemplo: esse grupo dessas pessoas que falaram: ah eu ouvi dizer que cravo da
Índia é bom e aí você falava: olha nunca soube que cravo da Índia é bom, vou
até ver, eu sei de, sei lá tal, tal, tal... aí você foi -- não sei se exatamente nesse
exemplo -- falando que vou pesquisar e descobriu que de repente cravo da Índia
é bom e passou para o outro grupo que cravo da índia é bom... Você teve algum
encontro com este primeiro grupo aí que disse pra você que cravo da Índia era
bom...você teve retorno desses grupos ou não?
104.
Leila: Olha, tiveram operadoras
encaminhamento de criança né:
que
retornaram:
na
procura
de
105.
Pesquisadora: O que eu queria saber era assim: a minha pergunta se teve
retorno era como é que você sentiu essas pessoas no retorno né: Se essa
conversa que você teve com elas gerou alguma coisa nelas... sei lá... ligou alguma
luz... se você viu alguma alguma mudança... porque ta claro uma mudança do
individual para o grupo né: do grupo na continuidade do grupo... na medida em
que você mudou o jeito de se colocar: você mudou o jeito de se colocar com elas:
você conseguiu ver alguma mudança: porque estaria aí talvez a continuidade do
seu trabalho né:
106.
Leila: o que eu vi quando eu tava na parte da orientação... quando eu dava
orientação uma delas já chegou a se manifestar ah isso eu já sabia... ah é? de
onde você soube: você teve alguma orientação... participou de uma outra
dinâmica? Não... a operadora que teve orientação com você me falou...
A fita acabou e pouco depois da troca elas se levantaram para fazer um intervalo. Foram,
inicialmente, Regina e Leila, ao móvel onde tinham as bebidas e comidas. De pé,
voltaram a falar do assunto.
107.
Leila: Gente... parece que não: mas você se envolve de tal maneira que eu
saí de lá e eu não peguei minhas coisas ainda... Parece que eu ainda estou lá com
elas... sei lá o que é isso? Eu vou voltar né: Vou entregar o relatório...
108.
Regina: Seria interessante você colocar muitas coisas nesse relatório né?
Você fez um trabalho....
109.
Pesquisadora (posicionada atrás da câmara): Eu também acho...
110.
Regina: um artigo....
111.
Pesquisadora: eu só estou com um receio da fita não ter gravado....
112.
((risos gerais))
113.
Regina: Eu acho que como trabalho/ eu acho que foi um trabalho muito
muito legal né: que a gente só pensou em diálogo na terapia... mas tava tendo
diálogo em várias situações e você até revelou isso né: em grupo:
114.
Leila: mas eu caía tanto às vezes no questionamento que você falou -- foi
bom você ter falado -- era um fazer fonoaudiológico? você sentia que era?
115.
Regina: ah sim:
116.
Leila: eu me questionava muito...
117.
Regina: é para os fonoaudiólogos saberem como que é isso né:: e a gente
tem que ser criativo no nosso trabalho...
118.
Leila: eu acho...
119.
Regina: Em qualquer lugar...
120.
Leila: em qualquer lugar, é....
121.
Regina: se tem/ se você/ se tem uma luz que bate: vai:: depois você vai ver
o que acontece... você vai para uma supervisora: você sai correndo:: faz alguma
coisa... mas na hora você só não pode colocar lá/ num foi pendurado a pessoa...
as outras coisas... você pode sabendo o porquê que você... um pouco né: Acho
que você vai seguindo né: não foi por acaso que você colocou/ porque você podia
não ter a sala/ tava pensando aqui: e chamar uma por uma...
122.
Leila: é: entrar uma de cada vez...
123.
Regina: Por que ela chamou três? ((olhando para a câmara)), quer dizer
tem uma coisa que você não sabe exatamente: quando você chamou porque nem
deu tempo: mas você juntou essas pessoas... alguma coisa tinha... Tem alguma
coisa que você nem sabe exatamente quando você chamou... mas você juntou
essas pessoas... alguma coisa tinha....
124.
Pesquisadora: Então: foi aquilo que eu coloquei... alguma coisa te fez
pensar pra botar essa mulherada junto...
125.
Leila: E até assim: eu acho: que eu/ eu via assim quando tava individual:
para tudo o que o/ esse contato que eu tenho aqui pra eu disseminar isso/ pra isso
se expandir: ta difícil com uma só: eu to aqui e tem uma só: ta fechado e é uma
só... na verdade, o que eu queria mesmo é estar na unidade de arrecadação
fazendo o meu trabalho...
126.
Regina: Queria ter mais:
127.
Leila: Por isso que já tava na minha cabeça querendo ampliar...
128.
Regina: Ampliar: exatamente....
129.
Leila: estar fazendo uma orientação grande.... estar fazendo uma
orientação grande: chamar logo dez...
130.
Regina: Fazer uma palestra inicial...Talvez seja uma proposta para um
outro trabalho... Vou fazer sim... mas eu gostaria de ter um momento...
131.
Carmen: Mas é difícil se não dão valor pelo que ela tem ...
132.
Regina: É muito difícil... não/mas aí é você que tem o trabalho... você tem
que/ tem que conversar com os dirigentes e olha meu trabalho é feito assim,
vou fazer assim... você é que vai dando um pouco a direção...
133.
Leila: É isso que você falou... acho que já tinha no meu inconsciente: um
desejo:: acho não tinha.... eu fiz uma programação: gente: de fazer uma
apresentação e uma palestra e tal...
134.
Pesquisadora: Um desejo ou um conhecimento do que é um trabalho com
linguagem?
135.
Leila: um conhecimento::
136.
Pesquisadora: Que aí é que eu acho que entra a questão que a Regina
colocou e que você falou né: de ficar angustiada se era fonoaudióloga ou se não
era fonoaudióloga...
137.
Leila: Como é que é? ((dirigindo-se para a pesquisadora)) fala de novo...
138.
Regina: Ela está angustiada: angustiada com o trabalho...
139.
Pesquisadora: Você tava falando de um desejo e aí eu to perguntando se é
um desejo ou um conhecimento do trabalho com a linguagem... que fez parte da
sua formação: entendeu? você se formou para trabalhar com linguagem e aí você
consegue identificar um formato aí de linguagem que você até disse -- espero que
tenha gravado em algum lugar -- que você até disse que elas chegam sabendo
que tem que responder umas perguntas e isso de alguma forma te angustiou....
140.
Leila: humhum...
141.
Pesquisadora: Não sei se isso é só um desejo ou se é um conhecimento aí
que você tem outro... que você tava querendo colocar em prática....
2ª EXPOSIÇÃO DO GRUPO DE PESQUISA – 09/10/2001
Neste dia, compareceram Rita, Regina, Leila e Heloisa.
Sentaram-se nos dois sofás da sala, ficando Regina entre as outras três. Foi ela
quem apresentou o caso para discussão. Trazia consigo uma pasta com o material,
apontamentos das sessões com seu paciente, para utilizar na apresentação.
1. Regina.: então... eu trouxe um caso... para vocês que eu trabalhei por um ano -comecei no dia 24 de janeiro de/ desculpe desde 12 de abril de 2000 e terminei
interrompido né o caso... no dia 2 do quatro... então faz pouco tempo... então ta
um pouco/ ta bem tranqüilo pra lembrar é: de muitas passagens né -- então...
Carla de onze anos foi encaminhada para fazer uma avaliação de leitura e
escrita... pela escola... e: -- pronto -- ((arrumando o material que trouxe para a
apresentação)) ( ) ela não tinha uma escrita adequada para a idade...tinha tido já
um acompanhamento por um psicopedagogo por alguns anos... desde que iniciou
o ensino fundamental... primeira série... sempre mantendo uma certa dificuldade
para ler e escrever...quer dizer... ela: rejeitava... trabalhos em grupo na
escola...dificuldades de relacionamento -- então: ahn eu fiquei aqui tentando
organizar um pouquinho... só para dar pra vocês uma idéia -- ela chegou por
intermédio de uma outra paciente que também já tinha feito um trabalho de leitura
e escrita e: na primeira entrevista eu fiz só com a mãe, como eu costumo fazer eu
entrevisto sempre os pais, às vezes eu chamo os pais e vem só um deles e no
caso veio só a mãe... então aparentemente os sintomas eram dificuldades para
escrever... e que ela ia mal em português... isso assim era a angústia da família
em torno disso... chamei a Carla numa outra sessão para conhecê-la Carla é filha
única... quando ela chegou ela chegou com um comportamento um pouco
estranho é: um pouco desconfiada e: diz que não adiantava fazer nenhum trabalho
que ela já tinha feito um monte de trabalho que não ia fazer não ia fazer nenhuma
diferença porque ela ia mal porque ela não gostava mesmo e não ia escrever.... e
que não tinha jeito de conseguir fazer ela escrever.... mas assim... desde a
primeira sessão ela ficou:: eu falava que eu vou lhe conhecer -- e eu costumo
fazer as entrevistas com crianças... quando eu faço psicodiagnóstico eu faço do
mesmo jeito... só que no caso eu direciono para o trabalho de escrita... mas no
processo diagnóstico... eu sempre procuro trabalhar conversan:do... fazendo
jogos... desenhos sempre peço desenhos... -- eu tenho alguns desenhos do
primeiro encontro que são bem/ que elucidam bem a questão familiar... que me
pareceu muito forte o problema dela relacional e que tava intervin/ interferindo
muito na escrita e no trabalho no comportamento em tudo né.... e acho que ela se
apresentou assim que eu: sabe não precisava/ eu perguntei primeiro --eu faço
essa pergunta para a criança... uma criança um pouquinho maior se ela sabe
porque que ela ta vindo ali comigo... e se ela sabe o que eu faço... e às vezes elas
estão com uma idéia eu pergunto qual idéia que tem e depois eu falo também
algumas coisas....-- e: comecei a: eu disse olha... você vai escrever algumas
coisas também, mas primeiro você pode fazer uns desenhos... aqui tem
material... -- eu tenho material pra desenhar material pra/ tem material de
escritura que eu distribuo assim na mesa...deixo papéis deixo alguns jogos... deixo
umas revistas uns livros... deixo uma sala um pouco: digamos... convidativa pra
fazer alguma atividade... que a criança sinta que tem alguma coisa ali que vai... eu
trabalho com caixa com caixa lúdica como trabalho com criança em terapia
psicodiagnóstico né... eu trabalho com material aberto pego jogos... num armário
tem vários jogos ...então a gente começa a conversar -- e ela me chamou muita
atenção ao comportamento dela... muito mais/ eu fiquei muito mais na hora que a
gente começou a conversar... eu não quero, eu não quero... uma coisa assim mais
de não/não ta se ligando mesmo a um trabalho: que eu pudesse propor né... ela
disse eu só gosto de brincar... aí ela viu os brinquedos e eu quero brincar... eu
disse então vamos fazer uns jogos aqui mas vamos fazer uns jogos e vamos
também fazer algumas outras coisas... e aí ela começou... então no início
assim: ela conseguiu fazer alguns jogos... e:
2. Heloisa: isso foi na primeira sessão que ela disse eu gosto de brincar?
3. Regina.: é... porque ela viu os brinquedos eu quero brincar...ela olhou a sala: e viu
que tinham algumas coisas que ela podia fazer e eu achei ótimo e: começo por
onde: a criança vai né: então ta bom... então vamos escolher... e ela vai escolher
direto os jogos aí eu... então aqui tem uma sessão... e tem também o trabalho com
argila e -- eu trabalho com tudo... o mesmo material que eu uso... para diagnóstico
de criança é: em fonoaudiologia é o mesmo... deixo tudo lá distribuído... só que é
um material que fica mais aberto e é também/ -- uma das coisas que ela pegou foi
a argila... trabalho com argila... então assim: ela logo quis manipular argila... e:
então nós preparamos a mesa a gente fixou ( )... uma mesa baixinha e aí eu fui
cortar a argila na cozinha... a gente tinha uma inteira e fui cortar um pedaço da
argila...-- a gente fica perto da sala de ludo uma sala... tem uma pia é como se
fosse uma edícula de uma casa... e lá tem o tanque... onde a gente vai lavar a
mão: tem uma mesa pequena duas poltronas e vários armários de jogos... é bem
grande é mais ou menos o tamanho dessa sala dividido um pouquinho com a
lavanderia... é a lavanderia de uma casa só que ali que a gente faz o trabalho... e
a criança vai lava suja limpa de novo: a gente limpa tudo junto então é assim... é
uma sala mesmo de trabalho de terapia... então aqui... ah/ eu comecei a descrever
-- a medida em que eu também vou escrevendo algumas coisas enquanto a
criança vai fazendo principalmente nas primeiras entrevistas...então à medida que
ela vai fazendo desenho ou fazendo algum: trabalho... não importa eu vou
escrevendo... acho importante depois eu ler: e fazer algum elo associativo...
alguma coisa vai: fazendo sentido... então aqui eu coloquei, ((leu as anotações de
terapia)) “Carla fez um túnel escondido e escreveu meu nome... as iniciais do meu
nome... REG”... né: ela tava me conhecendo a gente tava se conhecendo ( ) e ela
é: “depois ela fez um trenzinho com o nome REG que virou uma cobra”... --com
argila... né: eu tava trabalhando...-- “e essa cobra era uma cobra venenosa e
perigosa”... assim de CARA já chega com/olha só: vem com queixa de distúrbio de
leitura e escrita... olha: como que ela tava... extremamente agressiva mesmo muito
agressiva... aí ela disse eu sei tirar o veneno das cobras... ela falou assim pra
mim... né: mas essa cobra é perigosa...
4. Pesquisadora: ela falou?
5. Regina: ela falava...ela falava na lata ela dizia ela chu:
6. Pesquisadora: não/ela falou assim eu sei como tirar os venenos das cobras mas
essa cobra é perigosa?
7. Regina: é perigosa... é só tirar o veneno mas essa morde e a gente morre
((risos))... ((volta a ler)) “tem um carinha com nome REG” aí ela põe o meu nome
assim: marca assim o meu nome na:... né ali na cobra... “a cobra morde... morde o
menino REG” aí ela muda o sexo também... não sou mais eu já é o menino... ela
vai/ vai fazendo a versão dela... “dentro do túnel é perigoso” ela diz -- eu to falando
o que ela disse... escrevendo o que ela falou e eu escutando – “tem um monte de
morcegos”... -- ela tem muito (a simbolizar)... essa é a segunda sessão na primeira
sessão a gente fez só uns jogos... essa sessão é que ta muito forte... ela já tinha
tido um primeiro contato comigo—“eles chupam o sangue das pessoas”... ela
ADORAVA contar as coisas assim de uma forma muito dramática... sempre ou ela
estava atingindo alguém atacando alguém... ou ela se atacava também se
machucava muito... “as pessoas morrem...e esses animais são como os leões que
ficam com fome uma semana e comem o menino... o menino REG”...( ) e: eu ia
fazendo com certeza as interpretações aqui assim né: perguntando né.. eu acho
que você ta/ dizendo que ela tava realmente muito aterrorizada ali naquele lugar
que ela também não me conhecia e: numa interpretação mesmo do que ela/do
conteúdo que ela tava apresentando... né... que tava entendendo... ela não me
conhecia... da primeira vez ela também tinha ficado muito tempo com uma pessoa
que ela podia ta pensando que também eu podia estar é: sendo: uma: pessoa má
que tinha um veneno mas que ela tava podendo lidar com o veneno... isso foi
muito importante quer dizer: ela sabia lidar com o veneno das pessoas...
ESSA/essa sessão foi uma sessão que por muito tempo: nós fomos trabalhando...
alguns conteúdos que surgiram... ao mesmo tempo em que ela era agressiva ela
sempre queria me dar algum presente... ela tinha uma culpa: uma culpa terrível...
então a gente fabricava presente na sessão... então ela fazia algum objeto com
argila depois ela pintava/ela fazia presente... pegava papel: e colocava num papel
é: colorido e me dava de presente... cada vez que ela me atacava ela tinha que
me dar um presente depois... ou ela chegava depois com algum presente ou ela
queria que eu desse um presente para ela também... então...ela não fazia sozinha
as tarefas -- isso é uma coisa importante -- sempre eu tinha de fazer junto alguma
coisa, ela não conseguia é: se ela ia... fabricar algum presente pra mim: vamos
fazer um presente hoje essa coisa do presente ficava como se tivesse camuflando
toda uma agressividade dela e toda culpa que ela sentia...porque ela se sentia
muito má... ( ) em mim: o que ela sentia o conteúdo digamos... mundo interno dela
né: fui interpretando isso... até a gente conseguir chegar na escrita foi um
pouquinho... foi assim um trabalho: que demorou um pouco né...é: peguei alguns
livros: -- e não sei se vocês conhecem tem uns livrinhos da Flora:...é uma: autora
muito/ela fez alguns livros numa linguagem muito interessante... os (Gêmeos
Corintianos) -- e ela escolhe os livros, também tem essa coisa de ela escolher o
que quer ler, então vamos vamos ler alguma coisa e ela gostava de ler algumas
coisas... se interessava só....
8. Leila: é: Regina você falou... você fala que tinha um histórico de que na escola ela
tinha dificuldade em trabalho em grupo... mas ela tinha esse comportamento
agressivo por agressividade ou por essa coisa de ter dificuldade de enfrentar o
novo... o grupo... a diferença...
9. Regina: ela tinha dificuldade/ sempre teve dificuldade com todos os colegas ela
não tinha, ela não conse/ ela tinha uma amiga que não da classe dela que era
amiga do prédio onde ela morava... ela não conseguia ficar muito bem com as
crianças da classe com os colegas e eu fui chamada pela direção da escola... eu
tive uma entrevista longa com a diretora/ com a coordenadora... e que essa
menina desde muito pequenininha ela tinha sido vista por um psiquiatra que ia na
escola de vez em quando ver uns casos diferentes e era muito muito muito
complicado com os professores e com os colegas também... ela sempre tinha uma
agressividade muito forte...
10. Heloisa: tinha irmãos ela?
11. Regina: não...
12. Heloisa: não?
13. Regina: não tinha irmãos... e:: ela era muito/ ia muito bem em matemática... mas
tinha todo um pensamento diferente... tinha uma resolução às vezes diferente do
que era proposta pelas professoras de matemática e chegavam a um resultado
idêntico... o pensamento dela era um.../ ela adorava fazer contas... adorava... mas
escrever não despertou... tudo bem escrever as palavrinhas era mais difícil... era
copiar ela tinha uma coisa de só copiar copiar copiar e: a relação dela com a mãe
era uma relação extremamente ambivalente a mãe era muito muito muito tensa...
nervosíssima não sabia lidar com ela... e o pai indulgente... tudo ela podia fazer:
ele achava tudo ótimo... muito machão: deixa pra lá: então: era muito
complicado...ela tinha uma relação com a mãe que a mãe chegava a um ponto
que tinha que espancá-la...(SI) então era muito difícil... ela às vezes levava
presente pra mãe também... ela saía da sessão com alguma coisa para a
mãe...ela fazia para mim e pra mãe... é muito muito interessante isso... e: até um
tempo: --eu ia falar...( ) ((barulho de avião passando, prejudicando a escuta)) -quando ela começou o diagnóstico uns meses depois ela começou em abril e logo
vieram conversar comigo eu fui até lá e relatou todo o caso, como era a relação
dela na escola e que não sabiam se ela ia passar de ano... ela não fazia nada
direito... não tava conseguindo acompanhar as tarefas ela só queria BRINCAR né:
não parava quieta... ela passava de uma atividade para outra como/ -- quando eu
trabalho com criança pequenininha que às vezes não fica muito tempo numa
atividade... tem que ficar mudando de atividade: de vez em quando cada dez
quinze minutos você ta: fazendo um outro jogo a menos que ele fique uma meia
hora se você conseguir que uma criança fique num jogo já é muito para uma
criança de quatro ou cinco anos e era assim com ela -- ela ia mudando e fecha
agora não quero agora não... no começo: hi-pe-ra-tividade...
14. Leila: e nessa primeira entrevista com a mãe no início ela trouxe alguma coisa
diferente um dado assim:
15. Regina: ELA não me trouxe nada muito diferente no começo ela me trouxe
depois... porque depois eu chamei aí eu digo olha no meu trabalho eu faço pelo
menos uma reunião mensal com a mãe e o pai eu chamo no começo até eu
entender melhor e direcionar o trabalho... e eles/ o que apavorou: que eles vieram
né se tratar... vieram trazer a Carla pra se tratar/ no fim eles também tavam se
tratando comigo/ acaba todo mundo se tratando né... que eu faço reuniões e... e aí
o que eu vou vendo eu vou interpretando vou falando vou orientando... faço
orientação também né: e isso/ o pavor era assim: o pai dizia Ah não: ela não/ eu
vou falar com o diretor da escola.. ela não vai repetir de ano ela não pode repetir
de ano mas imagina que ela vai repetir de ano... todo mundo passa porque que
ela não passa? Sabe, tudo tentando facilitar: na cabeça dele facilitar a filha: a vida
dela e tava cada vez dificultando mais e ele ficava com ela durante o dia a mãe
saía pra trabalhar: só que ele não: não fazia as lições junto com ela... não tava
nem aí: e ele não ligava e ela achava ótimo ela dizia meu pai não briga comigo
meu pai é maravilhoso fazia tudo o que queria com o pai...
16. Heloisa: e a mãe que trabalhava
17. Regina: A MÃE/ o pai trabalhava: ele trabalhava assim: como se fosse um auditor
de engenharia...então ele ia... fazer: inspeções... e era só a partir do meio dia o
trabalho dele a partir das onze horas ele tinha um horário muito mais flexível... -ela vinha nas sessões no começo ela vinha de manhã depois ela mudou e ficou de
tarde-- mas na escola quando eu tive na escola: foi muito assim: eu acho que o
que eles puderam observar eu também pude observar nesses dois meses que eu
já estava em tratamento com ela... e: cheguei à conclusão que: tinha que um
pouco tratar: né do emocional mais direcionado para essa questão do que pegar
realmente no trabalho de escrita... eu não conseguia chegar lá...tava tava tão: tão:
aquém ainda... eu não conseguia mesmo... e quando/ eu acho esse trabalho com
argila esse material ela era muito assim: de rasgar coisas ela não tinha muita/
tinha um limiar de frustração baixíssimo... ela rasgava os trabalhos dela e jogava
no lixo... pra eu conseguir segurar o trabalho dela era muito difícil ela mesmo
jogava e não deixava/ você não vai pegar é HORRÍVEL o que eu faço é horrível o
que eu faço... Ela se colocava numa posição assim de que... tudo o que ela
colocou nesse início nessa sessão que eu achei muito né -- até quando eu retomei
o caso/ é bom a gente retomar os casos pra ver o quanto de conteúdo ela trouxe
nessa sessão... tudo o que ela me deu durante um ano de tratamento...
18. Rita.: bem...queria te perguntar ...
19. Regina: diga...
20. Rita : é: você falou que demorou para entrar na parte de escrita mesmo...
21. Regina : demorei...
22. Rita: quando você entrou você já tinha na verdade feito um trabalho antes com ela
... e aí o que que você tinha de dados da escrita dela, por que tinha uma queixa de
de
23. Regina: Ah, (SI) era uma coisa assim, eu fiz no começo...
24. Rita.: de: de: da escola tinha essa queixa... a queixa da mãe e por mais tinha
tinha essa/ esse lado emocional todo até pra: ver o lado emocional e até deixar a
escrita um tempo em latência assim: o que que tinha na escrita dela que ia fazer
ela repetir de ano?
25. Regina.: olha... ela tava na acho que segunda série/ não ((procura no material
dela))
26. Rita.: ((risos)) quinta? se ela tava na segunda ela já tinha repetido várias vezes
27. Regina: já tinha repetido: ela tava na quarta série já tinha repetido tava na quarta
série
28. Pesquisadora: ou então não... ela pode ser uma das/ daquelas atrasadas que faz
aniversário no segundo semestre... nem atrasada mas faz aniversário no segundo
semestre... entra com dez na quarta série mas termina a quarta série com onze...
é esse o caso dela? então não tinha repetido ainda... qual é a data de nascimento
dela?
29. Regina: data de nascimento deixa eu ver ((procurando o material)) é 24 de janeiro
de noventa...
30. Pesquisadora: então ela tava um ano atrasada era pra estar na quinta série...
31. Regina: Ela fez em mais anos tem uma coisa assim: ficou mais tempo na pré
escola... desde o começo já foi muito difícil...mas assim... eu acho que eu vou
agora responder pra você...eu só decidi parar um pouquinho depois que eu
conversei com a diretora da escola...que eu já tinha tentado um trabalho de leitura
de escrita então o que eu tenho aqui um início de sessão aqui ((procurando no
material)) que ela escolheu a leitura de um livrinho que eu tenho -- um livrinho de
leitura cursi é: de mão é: leitura:
32. Rita.: cursiva
33. Pesquisadora: letra cursiva
34. Regina: letra cursiva leitura cursiva ((risos)) que era a história do Babar o elefante
Babar -- são poucos os livros que tem né assim com letra cursiva -- e é uma
história que encanta muito as crianças a história do Babar uma história que no
comecinho o caçador mata a mãe... ela ficou nessa história um tempão: então eu
fazia várias leituras com ela ((procurando nas anotações)) aí coloquei (lendo)
“após a leitura dessa história, solicitei a Carla que fizesse um comentário por
escrito, inicialmente Carla disse que estava cansada, porque já havia escrito muito
na escola, finalmente escreveu o comentário e desenhou o elefante”... ela fazia
mais desenhos o trabalho era muito com desenho e um pouquinho de escrita... era
muito assim...
35. Pesquisadora: você tem esse comentário que ela escreveu?
36. Regina: ((procurando no material)) acho que tenho... eu tenho ( ) eu tenho o
desenho ((mostra)) olha a “história de Babar” ((lendo a folha escrita e desenhada
por Carla)) esse foi uma parte da história... algumas figuras que ela pôde observar
no meio do livro
37. Pesquisadora: esses desenhos Regina:
38. Regina: ah, ta aqui, ta aqui
39. Pesquisadora: são desenhos copiados...
40. Regina: ela copia também os desenhos ela copia...
41. Leila: esse ta bem bonito...((vendo os desenhos que passam de mão em mão)) ela
assina Carla ou Carla ela coloca a assinatura e o nome dela é isso?
42. Regina: é... ela risca/ olha a assinatura dela ela risca tudinho...
43. Leila: e põe ( )
44. Regina: é... “Aí no final da sessão ((lendo novamente)) Carla pega outra folha e
desenhou uma figura de leão”... essa figura aí ((mostra)) “Carla decidiu perguntar
por lápis de cor”... ela gostava muito de fazer muito trabalho de pintar bem: bem
repetido mesmo... ela era uma menina bonita graciosa sabe... olhava e não podia
pensar que tivesse um trabalho tão: repetido aí eu disse assim: ((voltando a ler))
“Carla quis esconder o desenho e só me mostrar quando ela acabasse”... Ela fazia
muito disso porque eu queria ver como ela começava por onde ela começava...
que faz sentido como ela se direciona na folha as cores que ela vai usando... um
pouco a ordem eu olho isso e comento isso com ela... mas ela fazia assim e
virava: dizia que não fazia então tinha uma coisa assim...
45. Pesquisadora: deixa eu te fazer uma pergunta Regina... ela fez/ela escreveu né:
ela escreveu e desenhou você é: tem que intervenção nessa hora? você também
comenta em cima do texto dela: não comenta... qual foi/ você tem uma lembrança
de qual foi:
46. Regina: qual foi intervenção?
47. Pesquisadora: é: sua intervenção...
48. Regina: eu comentava os textos... eu comentava: eu pedi para ela ler o texto e às
vezes quando ela observava falha eu dizia: ah:: ela observava às vezes alguma
falha também...
49. Pesquisadora: Hum hum:: aí o comentário ia nesse sentido?
50. Regina: o comentário ia nesse sentido e ia no tratamento do erro né: como podia
tratar que outro jeito ela tinha pra escrever aquela palavra... eu tenho mais/ mas ta
tudo solto realmente ((procurando mais material de Carla)) esse aqui olha foi
também um das primeiras sessões... vinte e dois do quatro de dois mil...
((todos vendo os trabalhos de Carla))
51. Pesquisadora: quem é Maura?
52. Regina: é a mãe...
53. Heloisa: é a/ é a mãe?
54. Pesquisadora: ela chama Carla...
55. Regina: o pai é Osmar...
56. Heloisa: por que atrás está escrito Maura? ((mostra um dos desenhos de Carla
com o nome Maura atrás))
57. Regina: ah: eu que escrevi: porque eu perguntei quem era e escrevi atrás...
58. Rita: ((lendo o texto de um dos desenhos de Carla)) “Um dia passou vários
cachorros e eu comi eles”...
59. Regina: ((olhando para o desenho)) é...
60. Rita: ((ainda olhando o desenho)) aí ela desenha até você de cachorro?
61. Regina: tudo... aí ela me comia também....
62. Rita: todo mundo é cachorro... ela é cachorro todo mundo é cachorro...
((todas vendo os desenhos em silêncio))
63. Regina: nessa ela colocou editora Regina...
64. Pesquisadora: aí tem um texto dela?
65. Regina: tem um textinho...
66. Leila: ((vendo a folha)) editora Regina...
67. Pesquisadora: então Rita deixa eu intervir nisso... então ela escreveu né: então no
dia catorze aqui ela escreveu ((lendo)) “um dia uma pessoa estava no jardim e
apareceu um monstro radical. Carla, editora Regina”... surgiu daonde esse
desenho e este texto...você consegue se lembrar? da situação? surgiu como...
qual foi a continuidade? eu acho que tem até um desenho desse né: que ta
rodando... do monstro radical... que ela pôs toda a família.... será que é esse o
desenho?
68. Regina: esse foi o primeiro.. foi: ((olhando o texto)) ah, eu tenho a impre:
69. Pesquisadora: é no dia doze ela também escreveu...
70. Regina: Eu acho que: eu acho que esse aqui tem é: pode ser que tenha sido no:
esse foi o primeiro desenho dela...
71. Pesquisadora: então... e aí no dia doze também ela escreveu ((lendo)) “um dia
passou vários cachorros e eu comi eles. Gaston é gostoso que gostoso”. Então: os
dois no mesmo dia... você lembra que contexto era isso?
72. Regina: eu tenho a impressão que esse tem a ver com aquele mas deixa eu
procurar mais alguma coisa ((volta a procurar no material)) muitas vezes o
contexto era uma história que ela fazia um comentário e um depois um desenho:
agora eu não lembro mais: que livro de cachorro... ((procurando no material))
73. Rita: nesse desenho do radical também tem cachorro né... de repente tem um
monstro radical que comeu o cachorro (( risos))
74. Regina: ela falava muito de cachorro/ ela não tinha cachorro e queria ter
cachorro...
75. Heloisa: ela queria ter cachorro?
76. Regina: ela não tinha cachorro...
77. Heloisa: você não leu de uma historinha de cachorro: nada?
78. Regina: ((procurando no material)) pois é ( ) acho que o que eu poderia estar
pensando aqui: às vezes eu peço pra olha: escreve o que ta pensando o que
tem vontade... eu acho que quando não tem um contexto de livro de história eu
peço para escrever o que tem vontade também tem isso.... eu não consigo lembrar
porque eu não lembro de ter cachorro em algum livrinho dos que eu já: dos que eu
costumo ler com as crianças ou dar....
79. Heloisa: e ela falava que gostava de cachorro que queria ter um cachorro...
80. Regina: tinha FIXAÇÃO por cachorro... e assim: durante um tempo a gente
começou com ( ) isso aqui ((mostrando outro trabalho)) ela fez uma cópia quem
tem medo de bruxa -- da coleção quem tem medo... que as crianças às vezes
costumam ler -- e ela fez questão de levar para a casa dela só que ela não
escreveu o que ela gostou...
81. Pesquisadora: ela copiou...
82. Regina: ela copiou alguma coisa/ alguns trechos que ela gostou/ ta aqui/ da bruxa:
ela sempre escolhia alguma coisa mas realmente: agora não consigo mesmo
lembrar...
83. Pesquisadora: ta/ não/ tudo bem...
84. Regina: não consigo recordar... mas provavelmente: tem momentos que eu pego
alguma coisa que ela tem vontade de escrever... ou então a gente ta falando/ ela
podia estar falando de cachorro e aí eu pedi para ela escrever... isso pode
acontecer também/ é a direção que eu daria... digamos... e eu sempre disse a
ela... foi a única coisa que eu guardei de cópia ela queria sempre copiar eu dizia
mas não precisa copiar... a gente vai escrever do jeito que você puder
escrever (não gostaria:) não porque na escola eu faço assim... na escola... eu
sempre tentava diferenciar da escola com a sessão: e tinha uma coisa de ela
sempre querer fazer cópia e eu pegava... lia a história ficava com o livro e ela
ficava imaginando... fazendo algum comentário e: foi muito difícil... eu não
consegui chegar à abordagem do erro muito legal com ela... porque eu tive de
voltar a partir de/da metade do ano passado a trabalhar mais a: parte emocional
dela que tava muito muito complicado... trabalhei muito com os pais... fiz muitas
sessões com eles/ assim praticamente de um mês e meio em um mês e meio eu
chamava e:
85. Heloisa: quantas vezes por semana você atendia ela?
86. Regina: eu atendia duas vezes por semana... no começo era uma sessão... depois
eu aumentei para duas... no segundo semestre até o final e ela infelizmente: a
coisa tava andando: quando ela se mudou para Atibaia...
87. Rita: engraçado porque assim: ela não gostava de escrever mas ela levava um
livro pra copiar em casa...
88. Heloisa: que ela mostrava copiava
89. Regina: ela falava disso ( ) eu queria dizer pra ela que não era aquilo que eu tava
querendo fazer com ela...eu queria que ela escrevesse o que tava passando na
cabeça dela... as idéias que a gente tava conversando e que era a partir daquele
momento que a gente podia estar escrevendo alguma coisa... eu queria a escrita
espontânea dela...não queria cópia mas ela tinha um hábito/ ela trazia/ uma vez
ela trouxe pra fazer lição na sessão... foi difícil ela trouxe e ficou na minha frente e
ficou fazendo... eu disse eu acho que eu não tenho nenhuma função aqui: você
pode voltar para sua casa e fazer lição porque eu não vou fazer lição com
você... eu acho que é outra coisa... ela ficou com muita raiva... aí uma hora ela
pára/ aí ela guardou: aí ela ficou: dando a entender que ali não era lugar de fazer
lição de casa eu não era professora particular dela como ela tinha dito mas a outra
fazia lição comigo...
90. Heloisa: a outra você diz?
91. Regina: a outra psicopedagoga que ela/ -- eu não sei: eu não sei nem quem é mas
foi alguém que trabalhou com ela que a mãe me falou que era psicopedagoga que
fazia lição de casa com ela – então: foi muito difícil ela mudar é: um pouco a
estratégia e saber que ali era um outro lugar de trabalhar as dificuldades dela e ela
dizia não preciso mais vir aqui, não tenho mais nenhum problema... às vezes ela
era muito dura... às vezes ela me atacava me batia mesmo era muito agressiva
...tinha que dar uma contida legal... por isso que eu tive que parar realmente o
tratamento/ o trabalho com a escrita por um tempo porque ela foi ficando... a mãe
também tava:-- coincidentemente ou não-- a mãe tava fechando uma firma... tava
na lua de nervosismo chegou comigo eu fiz umas sessões com a mãe até disse
olha o que ta acontecendo que a Carla ta numa agressividade total e a mãe
ficava a sessão INTEIRA esperando... ela levava e ficava esperando... mas
assim... ela era extremamente educada não parecia aquela agressividade toda
não se manifestava tanto e ela tinha uma coisa de se machucar muito...ela
começou a se machucar:
92. Pesquisadora: a Carla?
93. Regina: a Carla...
94. Leila: como?
95. Regina: fazendo tudo para cair e se machucar... na escola tinham me dito isso e
no meio/ ela foi: assim: -- sabe aquela criança que não/ ela tinha algum problema
acho... talvez assim até motor mesmo: ela saía correndo: ela não tinha muita é:
digamos...
96. Heloisa: coordenação?
97. Regina: é uma coordenação pouco alterada... então facilmente ela se batia nas
coisas assim: sabe?
98. Heloisa: mas era uma coisa proposital ou...
99. Regina: não...
100.
Heloisa: não era...
101.
Regina: não parecia proposital... ma/quando ela se machucava ela fazia
questão de mostrar a ferida dela... olha como eu esto:, olha só: eu não chorei... e
ela tinha um pouquinho de azar também/ ela quebrou o pé/ uma vez que estava lá
e ela adorou.... minha sala era/ ela queria subir pra ir no banheiro... ela não foi no
banheiro de baixo -- a gente tem um banheiro embaixo -- ela foi no lá de cima/ foi
sentada... mostrando pra todo mundo na sala de espera como ela tava doente....
subia descia e fazia sempre um certo escândalo com as coisas dela.... Eu não
consegui realmente fazer um trabalho de leitura e escrita com ela... mal consegui
conter toda essa agressão dela... por um tempo e e aí a mãe depois foi pra/ veio
dizer que ia mudar de cidade... que não tava conseguindo ficar aqui em São
Paulo... ia abrir alguma coisa lá e o pai ia ficar viajando... eu fiquei me
perguntando nesse caso né... como que/o que que eu pude ajudar... acho que eu
ajudei um pouco na compreensão só dessas emoções porque o trabalho com
leitura e escrita a gente fez muito pouco... na verdade só nos primeiros meses:
depois eu tive que direcionar e logo no segundo semestre/foi a partir de agosto
que começamos duas sessões por semana e no comecinho do ano ela já foi/ até
tinha falado acho que talvez agora ela esteja um pouquinho melhor... a mãe
tinha fechado uma firma e tava mais calma e ela foi se acalmando um pouco mais
também... mas foi muito difícil.... o que eu posso pensar desse caso é que essa
rejeição com relação à escrita me parece:-- acho que até fundamentada um pouco
na psicanálise-- que tem uma relação muito estreita com o conhecimento da mãe
com a relação com a mãe... aquela coisa assim de: foi muito muito forte isso pra
mim: nesse caso... se você for buscar/ se você for um pouquinho atrás... -- eu não
sei qual a experiência que vocês têm também no trabalho com os pais -- mas esse
caso foi muito muito muito:: eu acho que ela tinha um potencial para melhorar mas
ela tinha um bloqueio e esse bloqueio tinha de ser trabalhado... e eu até cheguei a
pensar em ficar realmente trabalhando com ela na parte que eu tinha pensado:no
emocional e encaminhar/ quase que eu te encaminhei Pesquisadora: esse caso...
pra escrita...
102.
Leila: mas a mãe te procurou como fono...
103.
Regina: exatamente... mas ela sabia que eu sou fono e psicóloga... eu me
apresento como fono e psicóloga....
104.
Pesquisadora: eu acho que a gente pode abrir agora... até porque todo
mundo ta falando... uma discussão interessante né... certamente com essa brecha
que você ta dando aí: quase que encaminhei pra você... bom: estamos na mesma
condição de fonoaudiólogas né: de fonoaudiólogas e terapeutas e de repente você
percebe nesse caso -- só to retomando o que você ta falando pra gente pensar
que eu quero escutar todo mundo falar disso -- e aí você percebe nesse caso que
tinha uma questão emocional e meio que: suspende a linguagem... vê se eu fiz
uma leitura correta do que você falou... suspende a linguagem pra trabalhar o
emocional...é isso ou não?
105.
Regina: mas não a linguagem... a escrita...
106.
Pesquisadora: a escrita...
107.
Regina: a linguagem né:
108.
Pesquisadora: ta/ que você retomava muito dentro de uma linha de
interpretação...
109.
Regina: de interpretação... sempre interpretava
110.
Pesquisadora:
interpretação...
tudo
o
que
111.
Regina: desenho: escrita: tudo...
112.
Pesquisadora: psicanalítica...
113.
Regina: sim....
ela
tava
colocando:
você
fazia
uma
114.
Pesquisadora: ta... agora eu quero jogar pra todo mundo...você tem uma
formação também psicanalítica... -- psicanalítica né: que a gente fala? -- não sei se
o resto do grupo tem essa formação psicanalítica... todo mundo acompanhou o
caso... e aí? que que vocês pensam? como vocês encaminhariam essa questão?
vou fazer uma outra pergunta também... na/na: avaliação né: na hora que você ta
olhando o caso... quando você chega a essa conclusão que a Reginahegou ta
difícil de entrar na escrita porque tem outras questões impossíveis
115.
Regina: que já tava trabalhando que eu achei
116.
Pesquisadora: Isso:
117.
Regina: eu achei que não dava conta de trabalhar os dois: não dava pra eu
fazer duas sessões de psicanálise e uma de escrita... não dava nesse caso:
118.
Pesquisadora: então: é isso que eu quero ver como todo mundo ta
pensando...
119.
Regina: comigo... tinha uma relação transferencial aí de uma outra coisa aí
que tava complicando...
120.
Pesquisadora: então... no caso do fonoaudiólogo não ter essa/essa
bagagem ou a condição de fazer um trabalho interpretativo como você fez...(SI) de
não ter ou optar por não -- ou optar... to pensando agora -- por não fazer esse
caminho... suspende o trabalho ou há outra coisa que fazer?
121.
Rita: é: até o que eu tava pensando... e a mãe veio te procurar como fono
aí você pensou em: e aí o trabalho meio que assumiu mais o lado psicológico
psicanalítico do que o de fono que foi até o que a Pesquisadora falou: ficou em
suspense... e AÌ você ia encaminhar para uma fono... pensou até em
122.
Regina: ficou... pensei...
123.
Rita: e aí eu pensei por que não o contrário... se ela te procurou como
fono?
124.
Regina: porque eu já tinha com ela uma relação estabelecida que eu achei
que não seria mais... não seria conveniente mudar: eu tava numa outra posição...
125.
126.
Heloisa: mas você tava numa posição de psicanalista ou de fono?
Regina: eu assumi
127.
Leila: ela estava na posição de psicanalista
128.
Regina: Eu assumi de comum acordo com a escola com os pais... foi tudo
conversado... quando eu assumi isso/que eu resolvi: fiquei pensando... eu fiquei
dividida e agora ou eu me encaminho como psicóloga ou e aí eu já to
conhecendo e aí conversei com os pais e eles preferiram que eu desse
continuidade no momento nessa contenção da agressividade dela... porque ela já
havia estabelecido uma relação comigo...
129.
Pesquisadora: hum hum...
130.
Regina: que positiva ou não ela era ambivalente tanto quanto era com a
mãe dela... então ficava difícil sair nesse momento e ficar só com o outro
trabalho...até porque ela recusava o outro trabalho também...
131.
Rita: aí no trabalho de fono não entraria essa relação? não de
interpretações psicanalíticas tão densamente assim: mas não entra/não seria a
relação que ela estabeleceu no começo que até: de repente levar a lição lá pra:
não confundindo com a psicopedagoga mesmo mas
132.
Regina: é... mas eu fiz um corte... eu fiz um corte nessa questão de levar a
lição porque não era o lugar e eu considero que não é o lugar de fazer lição... mas
ela depois não trouxe mais lição...
133.
Heloisa: você também...
134.
Regina: eu tenho que definir o setting...eu tenho que definir o que eu faço
como fono e eu converso com criança também olha: eu tava fazendo esse
trabalho agora... agora a gente vai fazer uns jogos: vai parar um pouquinho...
mas depois a gente pode de repente retomar num outro momento... A minha
idéia era de/eu também tinha de dar conta da questão da escrita/ eu tava
preocupada...
135.
Heloisa: hum hum...
136.
Regina: e eu conversei duas vezes com a diretora da escola... uma em
julho e de alguma forma foi surgindo a questão também da escrita... eu acho que
foi melhorando alguma coisa porque ela passou de ano... e ela se interessou em
algumas coisas mas não era/ eu não estava centrada nesse trabalho.. não que eu
tivesse abandonado... não abandonei mas não estava centrada como estou
centrada em outras crianças que eu atendo e outros adolescentes que eu
atendo...é diferente... com ela foi realmente uma das vezes que eu tive mais
dificuldades de estabelecer essa/ eu tive que fazer uma definição e eu defini junto
com a direção da/ com a coordenadora da escola que conhecia bastante o caso...
e que via a: também a: digamos... a evolução dela na escola e com os pais que
eram pessoas letradas (SI) que tavam entendendo e estavam me dando apoio...
tavam vindo nas sessões os dois o pai inclusive estava vindo sempre... eu dizia
quero vocês dois: não quero só um você é o pai... precisa saber... ele dizia
ah: mas é difícil... às vezes a gente ficava duas horas conversando com os
pais...eles brigavam...
137.
Heloisa: Regina:
138.
Regina: questões de/ desculpa/ vai ( dirigindo-se à Heloisa)
139.
Heloisa: não/ desculpa... acaba de falar...
140.
Regina: eles brigavam... às vezes um dizia você é indulgente... não você é
que ta cobrando demais... então era aquela coisa que eu tinha que fazer uma
mediação... mas eu acho que esse trabalho conjunto/ eu fiquei assim com pena de
ser interrompido... eles mudaram de cidade e aí não teve jeito... tive que entrar em
contato com uma pessoa de lá que deve ter dado continuidade ao trabalho...que
tinha me procurado para saber e ela estava muito feliz lá...
141.
Rita: e a outra pessoa você sabe se era fono ou:
142.
Regina: era uma psicóloga... eles procuraram direto acho que
psicopedagoga... acho que fez uma avaliação mas a última vez que vi a Carla -eu tava vendo esses cachorrinhos aqui.. não tinha (SI) esses cachorrinhos aqui -ela saiu do meu consultório me deu um abraço me deu um beijo: estou indo
embora... olha: vou ter um cachorro agora porque eu vou pra uma casa e você vai
ser comida pro meu cachorro tchau.
143.
Heloisa: comida pro meu cachorro?
144.
Regina: e eu nunca esqueço... ela saiu da porta (SI) ((risos)) então tinha
coisas muito fortes e a mãe dela não sabia o que fazer... eu disse deixa ela ir e
era do direito dela porque ela podia realmente dizer uma porção de coisas... mas
não falava: só quando ela foi embora... falou lá do portãozinho assim: você vai ser
comida pro meu cachorro....
145.
Pesquisadora: como é que você entendeu isso?
146.
Regina: como eu entendi?
147.
Leila: como? Imagina... ((risos))
148.
Pesquisadora: como você entendeu você vai ser comida para o meu
cachorro?
149.
Regina: ela falava tão/ ela era tão agressiva que realmente eu entendi que
ela ia ser comida do meu cachorro...
150.
Heloisa: VOCÊ ia ser comida do cachorro dela...
151.
Regina: ((risos)) eu ia ser comida do cachorro dela... --a falha ((risos))
gravou?-152.
Pesquisadora: ta aqui gravado... agora não tem jeito...
153.
Regina: eu acho que era um desprezo... ela estava manifestando um
desprezo em relação a mim... eu era um nada... você é comida... quer dizer é uma
coisa: ao mesmo tempo que comida é boa ela pode ser uma coisa ruim...mas era
o jeito que ela sempre lidava com as coisas... então eu/eu: ela falou sorrindo você
vai ser comida pro meu cachorro... mas aí ela me contou muito feliz... ela saiu
felicíssima porque ela ia para um lugar que ela se dava muito bem... e a notícia
que eu tive foi por meio dessa entrevista que eu tive--por telefone... não foi
pessoalmente... -- com a psicopedagoga me perguntando algumas coisas como
que tinha sido o tratamento... como que ela estava... eu disse olha ela estava
muito perdida.. e acho que ela continuava assim... eu acho que essa menina
precisa de muito tempo de terapia e a mãe também precisa de trabalho para
ajudar melhor sua filha... os pais... e então a coisa ficou assim: foi pouco
tempo/um ano e era muita coisa: era muito: olha Pesquisadora eu ia te mandar de
presente... ((risos)) você não ia ser a comidinha de cachorro dela não... ((risos))
pra fazer um trabalho de escrita sabe: separado mesmo...
154.
Leila: Eu ia perguntar... até quando você tem essa colocação ah: eu ia
encaminhar para a Pesquisadora... quando você fala: acho que ela tinha que ficar
com uma psicanalista né: tendo um trabalho em/ pelo trabalho emocional/ pra dar
suporte para um trabalho de escrita:
155.
Regina: Sim:
156.
Leila: você fala isso... agora assim: no caso se for encaminhar ela mesmo
para outra fono né quer dizer... pela dificuldade você achou que ela precisava
desse trabalho pré para chegar na escrita... será que essa fono não teria é: vai
saber como:
157.
Regina: tem um trabalho... tem um trabalho... digamos... continuar um
trabalho como psicóloga dela e ( ) uma fono... acho que os dois juntos... eu não
queria fazer um trabalho ao mesmo tempo que eu não tava dando conta ao
mesmo tempo...
158.
Leila: ao mesmo tempo...
159.
Regina: eu tava privilegiando uma área...
((Leila e Reginaontinuam conversando, mas passa um avião que impossibilita a
escuta de suas falas por alguns segundos))
160.
Regina: não tive... não tive muita opção mesmo nesse caso... primeira vez
que isso me acontece...
161.
Leila: (SI) uma opção dela mesmo: de defesa... a lição: essa resistência: né
(SI) eu vejo que isso ta tudo muito ligado...porque esse é um trabalho mesmo
emocional para chegar a isso... mas assim (SI) é trabalhada mesmo sem ela
saber... claro ela ta percebendo até/de uma outra maneira você precisa
disponibilizar para conseguir chegar (SI) num trabalho e assim é:
162.
Rita: posso te interromper?
163.
Leila: pode...
164.
Rita: eu não sei se de repente precisa de um trabalho antes pra chegar...
por que às vezes até teve um trabalho: vamos supor: com a psicanalista e com a
fono junto porque ela vai apresentar a resistência por exemplo pra escrever (SI)...
com a escrita... ela gosta de ler e faz cópia em casa e quer mostrar que também
sabe... que também é capaz com aquilo que é difícil... gosta/vai bem em
matemática... mas eu acho engraçado porque eu:/ é difícil pelo menos no que eu:
assim: é difícil ver quem gosta: quem não gosta muito de escrever mas adora ler
que gosta de ler né: e ela tem isso...
165.
Regina: mas eu fiz alguns trabalhos no meio desse tempo só que não foi
tão direcionado mas alguma coisa eu tentei: eu fazia livrinho com ela... recortava...
fazia assim as folhinhas tipo diário... ela ia escrevendo algumas coisas: eu fazia:
ela fazia cartinha::
166.
Heloisa: tipo diário você falou?
167.
Regina: tipo diariozinho... algumas coisas que ela podia ir escrevendo... o
livrinho a gente construía na sessão: pegava várias folhas: fazia o livrinho e ela ia
escrevendo... entendeu... eu fui inserindo muitas coisas de escrita mas não era
assim só trabalhar o texto não... Era assim: historinha: história em quadrinhos: a
gente fazia -- é que eu não tenho aqui...
168.
Leila: sabe: eu to te falando
169.
Regina: ERA muita coisa...mas eu vou falando... história em quadrinho,
vamos fazer uma? então pintava muitas coisas pra ela escrever um pouco... mas
era muito pouco: ela precisava escrever mais... precisava trabalhar mais... mas foi
o que eu pude fazer no meio de tudo isso... quando eu privilegiei uma área e não
que eu estivesse esquecido totalmente da outra... eu sabia/eu tinha um foco ali
também uma coisa que tava/e eu tava apreensiva porque ela tinha que terminar o
ano... ela tinha que escrever: aí é que ta: como é que você faz?
170.
Heloisa: Regina, quando ela trazia lição de casa pra você será que ela não
sentia vontade de fazer lição de casa com você?
171.
Regina: ah, sim, mas eu não, eu não:
172.
Heloisa: não será que você podia aproveitar esse momento pra entrar pra
introduzir a escrita, leitura:
173.
Regina: só que ela queria fazer cópias que ela trouxe... a única coisa que
ela trouxe: cópia e queria que fizesse junto com ela ((outro avião passando,
prejudicando a escuta das falas)) ( ) realmente esse trabalho/ eu tava num outro
espaço sabe não estava no espaço de professora de ajudar:
174.
Rita: ( ) acho que tem muito ponto ( ) até para usar esse gancho... porque
acho que tava mais definido:
175.
Regina: ( ) então... eu acho que você ta assim: eu tava mais olhando um
pouco como que ela tava assim se aproximando da escrita... eu vi que ela tava se
aproximando ela tava se direcionando:
176.
Heloisa: pegar como um gancho...
177.
Regina: mas não pegar isso: é... é... eu não peguei... não peguei desse
jeito não... porque chegou um momento que eu não queria repetir o que tinha
acontecido com a outra psicopedagoga... acho que eu tinha isso na minha
cabeça... estava muito definido para mim...
178.
Pesquisadora: então deixa eu ver... deixa eu pegar uma coisa aí: é: você
na/na hora -- retomando aí o que a Heloisa falou -- que ela traz a lição de casa...
você não pegou por esse gancho de de repente ser um momento que ela queira
mesmo fazer um par com você nisso até para reverter... porque na hora você
pensou -- só to retomando o que você ta falando só pra ficar mais claro pra você
me dizer se é isso mesmo -- você retomou a imagem da outra terapeuta da
psicopedagoga (SI)?
179.
Regina: (SI) senti não, eu me aproximei da escrita por outro meio:
180.
Pesquisadora: na verdade: nessa situação -- vê se é isso -- você
respondeu à/ao trabalho dessa psicopedagoga e não a uma solicitação que ela
tava fazendo.. pode ser isso?
(( silêncio))
181.
Pesquisadora: você lembrou:
182.
Regina: (SI)
183.
Pesquisadora: da psicopedagoga...
184.
Regina: é... eu lembrei agora... e também quando ela me trouxe/ ela dizia
assim por que você não vai comigo? isso foi um diálogo que eu tive com ela...
porque eu sou: eu eu não sou: a outra fazia... a outra era a psicopedagoga que
eu nunca/ não lembro do nome...não sei se eu anotei alguma vez esse nome e
essa outra fazia... ela brigava comigo...ela brigou e eu dizia mas aqui é um lugar
onde a gente vai trabalhar algumas dificuldades em relação à sua escrita e
algumas dificuldades que você tenha outras... a gente vai fazer/ a gente pode
escrever: a gente pode fazer jogos: a gente pode fazer muitas coisas... mas a
gente não vai fazer a sua lição aqui... era catecismo tudo/ nada... ela trouxe
outras coisas que não tinha assim né... ela trouxe coisas de:/ brigava comigo
porque eu não fazia e no fim ela parou...
185.
Pesquisadora: ela trazia coisas de: da escola em geral e:
186.
Regina: da escola e de outras situações... a lição de catecismo/sei lá o que
ela tinha que fazer ela queria usar a hora da sessão pra fazer... eu sempre me
coloquei na outra posição: na posição mesmo de que ali não era um espaço para
ela fazer digamos... tarefa de outro lugar...
187.
Heloisa: você sentia mesmo que ela queria usar o espaço pra fazer lição?
188.
Regina: sim sim ela queria usar em todas as outras situações eu acho que
eu fui um pouquinho mais exigente: tentei ser mais rigorosa: porque ela tinha um
problema muito sério de limite sabe: na escola era relatado que ela ia quase bater
nos professores... ela batia na mãe: ela queria bater no pai... então lá também ela
às vezes me bateu... algumas vezes... não assim de chegar:
189.
Rita: e aí?
190.
Regina: eu seguro a mão... digo não... o que é que houve?por que?
seguro como se fosse um filho que seguro a mão... você não deixa o filho bater
em você né? quando você tiver um ((risos)) mas é um pouco assim de segurar e
de mostrar... depois ela morre de:/ te pedindo desculpas... mas não era de bater/
ela não vinha me dar um murro... assim: ela passava sem querer... era aquele sem
querer querendo sabe: e me jogava tinta assim: ela sabia e eu dizia olha: não
vale: tem algumas coisas que a gente não vai fazer aqui... jogar tinta: ela me
jogava/ quando desenhava e me jogava tinta... teve uma vez que eu fiquei toda
cheia de tinta e disse e agora? eu tinha que trabalhar o resto do dia cheia de
tinta... então: tinha algumas coisas: que tinha que segurar... ela era muito muito
agressiva...
191.
Pesquisadora: oi: Heloisa... não entendi o que você falou...
192.
Heloisa: falta de limite... nessas horas ela/ela:
193.
Regina: você tem que dar o limite... aí ela ficava aí/ às vezes a gente só
pintava um pouquinho e parava... mas aí: eu/aí aos poucos fui construindo um
pouco: um espaço em que ela podia fazer umas coisas e não podia outras... e ela
ia aceitando... isso foi o mais difícil... então: eu acho que tava assim: muita coisa
tinha que ser trabalhada... né: no emocional dela... na própria/ na estrutura dela
que tava complicada... a parte psíquica tava muito muito atingida... e os pais não
tavam lidando com isso bem.. né... então: eu me pergunto... porque se essa
menina tivesse digamos... uma relação com os pais... né/na família... diferente
talvez ela: não tivesse tantos problemas... essa é a hipótese que eu faço...ela é
inteligente mas para a escrita ela é bloqueada...
194.
Leila: por que na escrita?
195.
Regina: porque apareceu aí... às vezes aparece noutra área...pode
aparecer uma disfluência pode aparecer é: um sintoma... eu vejo isso como um
sintoma... aparece um sintoma em algum lugar então: ela tinha motricidade ela
tinha uma certa inteligência que podia: por que ela não conseguia? Às vezes ela
escrevia umas coisas que eu acho que era possível ela ir mais adiante... ela me
dava dicas de que ela podia ir mais adiante mas ela não quis...
196.
Heloisa: não queria?
197.
Regina: assim ela /ela recusava...
198.
Heloisa: ela tinha medo de errar?
199.
Regina: tinha...
200.
Heloisa: muito?
201.
Regina: ela achava que era horrível o que ela fazia... ela se ela assim tinha
uma atitude depreciativa com o que ela fazia... então:
202.
Heloisa: o que eu achei interessante de quando ela estava com pé
quebrado: que ela subiu né: e ela mostrava que: ela podia é: o fato que qualquer
outra pessoa não ia conseguir fazer isso... e ela:
203.
Regina: e ela ia/ ela podia (SI)...
204.
Heloisa: mostrava:
205.
Regina: ela mostrava e a mãe dela dizia ah ela adora... ela ficava/ colocava
o pé bem pra cima assim: deitada no sofá da sala de espera... e ficava...
colocando o pé pra cima -- que eu tinha um atendimento antes e então ela
chegava e ficava esperando -- e por azar quando ela foi tirar o gesso: o médico
lá/o enfermeiro sei lá quem tirou no pronto socorro... foi cortar com a tesoura e
cortou a perna nesse pedaço assim:
206.
Leila: nossa:
207.
Regina: por azar mas ela achou o máximo...
208.
Heloisa: ela achou o máximo?
209.
Regina: ela vinha contando radiante...
210.
Heloisa: porque ela não chorou...
211.
Regina: ela não podia mostrar que ela sentia dor...
212.
Heloisa: exato...
213.
Regina: né?
214.
Heloisa: e ela te contou que ela não chorou...
215.
Regina: não chorei e mostrava pra mim... quer dizer: e eu assim: né:
216.
Heloisa: realmente ela deve ter achava o máximo ter sido cortada... e o fato
de ela não chorar OLHA como eu sou forte...
217.
Regina: como eu sou forte...
218.
Pesquisadora: agora a minha questão ainda permanece no ar... ((risos de
todas)) ainda permanece no ar... porque a retomada que a Regina fez... deixou
claro que teve uma opção pela postura psicanalítica né? Bom... estamos agora
falando com pessoas: que não tem nem a formação para poder tomar essa
direção... estamos falando com pessoas que até: estudam né: dentro de seus
currículos... questões mais ligadas ao psiquismo... mas que tem: todo um/um
material de trabalho dentro de uma terapia fonoaudiológica... e aí: o que fazer
nesse caso? então é essa menina que a Ritaescreveu... com todas essas
dificuldades emocionais que ela ta apontando... e aí o que você ia falar ((dirigindose à Rita.))?
219.
Rita: eu ia falar... ((risos)) eu acho assim... se tem uma: não sei se vou usar
o termo certo...
220.
Pesquisadora: tudo bem... vai: (SI)
221.
Rita: uma demanda que de repente é um encaminhamento... no caso...
veio para mim como fono... e eu vou trabalhar como fono e tenho... trabalhando
um pouco com os pais e: tem um espaço ali que cabe um encaminhamento... e
que eles aceitam e que vai sendo... do jeito que você pondo: essa família é super
complicada... a mãe precisa/os papéis ali são super confusos... a menina ta indo
tão ambivalente como a mãe: em todas as questões tal/ acho que encaminharia
ou a mãe e manteria a menina comigo... ou até para ver porque ela está
confundindo vários espaços né: então: era com a psicopedagoga que era diferente
de você: porque já é um outro trabalho... de repente manteria talvez: ela só comigo
e: eu acho que: não de dar conta de um trabalho: de todo esse lado emocional...
mas entrando pela escrita... entrando talvez: num espaço de deixar ela brincar...
deixar ela se colocar e: acho que esse/eu ficaria aí por um bom tempo...
222.
Heloisa: um bom tempo...
223.
Rita: um tempo e aí até conforme for de fato até ela ir para um
encaminhamento mas eu manteria ela comigo o tempo todo assim não só pela
relação que ira estar se formando mas acho que ela estava demonstrando tudo
isso num sintoma meu né do meu trabalho e aí eu ia estar entrando um tempo
pela brincadeira que ela falou eu quero vir para brincar né então iria demorar um
tempo para entrar também na escrita? Provavelmente mas ela também mostrava
vou entrar na escrita né ela mesmo trazia a escrita a leitura e aí disso eu ia
trabalhando com ela é: acho que dentro dos materiais que você foi colocando que
nem eu gosto de trabalhar muito com diário com vários gêneros de escrita e
trabalhando mas é: sem entrar tanto, eu não entraria direto nessa área emocional
mas pensaria um encaminhamento ou dar uma idéia e veria o que isso dá se a
mãe dela teria essa demanda pra estar indo ou de repente se a mãe não vai e o
caso está empacando muito e que essas questões a escola está pedindo aí seria
um outro profissional trabalhando, eu acho que pensaria mais ou menos dentro
dessa forma não deixaria o lado de fono nem suspenso nem junto ou alguma
coisa porque eu não daria conta de dar junto nem tenho formação para isso, mas
pensaria primeiro até por vir procurar fono ficaria um tempo com isso como fono
para ver o que dava para ser feito.
224.
Heloisa: É difícil né, eu encaminharia para uma psicóloga com certeza tanto
a Carla quanto os pais e ficaria comigo com certeza não sei quanto tempo
225.
Pesquisadora: e ficaria de que forma com você? A Regina até falou um
pouco que eu até queria retomar algumas coisas
226.
Heloisa: Eu ia trabalhar o que ela ia me trazer eu ia trabalhar: é que é difícil
falar por exemplo no meu caso quando ela falou que ali não era pra fazer lição de
casa eu ia trabalhar a lição de casa, eu ia falar que ali não era espaço para isso eu
já te disse anteriormente que não é espaço para isso mas no momento que eu
visse que ela tava querendo fazer lição de casa se eu visse que ela não estava
querendo usar o espaço pra catequese se ela se sentisse à vontade de fazer lição
comigo ela ia fazer lição comigo, o que ela ia me trazendo eu ia ta trabalhando,
mas acho que com certeza ela ia encaminhar para o psicólogo com certeza ia
trabalhar junto.
227.
Regina: Você acha a escrita fica você ia conseguir trabalhar a escrita
fazendo lição de casa?
228.
Heloisa: Não nesse momento não traz a lição de casa para fazer (outro
avião passando prejudicando a escuta das falas) nesse momento se ela tava
querendo fazer lição de casa comigo eu queria ver se ela tava interessada na
coisa do tempo pra matar se ela se sentia à vontade ia tentar interpretar o que ela
tava querendo com essa lição de casa ia só tentar pra saber não ia falar de
primeiro momento não aqui não é com certeza você deve ter seus motivos, é
muito difícil falar no genérico né? (dirigindo-se para Regina)
229.
Regina: Não, não
230.
Heloisa: Que por trás de tudo isso você já teve outras não sei
231.
Pesquisadora: Na verdade a gente ta fazendo gente é uma leitura
recortada de um momento que já foi, a própria Regina ta lembrando de outras
coisas
232.
Regina, Leila, Heloisa: É é isso claro
233.
Pesquisadora: É tudo
234.
Rita: O ruim é isso como são casos o que a gente ta não ta atendendo não
dá para voltar atrás (risos)
235.
Pesquisadora: Por isso mesmo, a idéia é tentar trazer o que foi pensar
agora e assim mesmo nuns recortes e nessa releitura: de um caso que já acabou
e que não dá para a gente voltar atrás, aí a gente segura essa coisa do setting não
estamos invadindo nenhum setting (risos)
236.
Regina: Eu acho que isso tudo quando eu digo olha eu não foquei a escrita,
trabalhei algumas vezes um pouco de escrita um pouco de leitura mas não com o
foco que eu tenho quando trabalho exatamente isso é: ela teve uma evolução na
escola, a partir do momento em que algumas coisas dela puderam ser contidas na
sessão, aí é que ta, como? A gente não soube a gente sabe depois porque vêm os
pais e te falam vem a diretora e fala, o que que acontece ali a gente tem que estar
pensando dia a dia, o que que acontece na cabeça de uma criança
237.
Pesquisadora: Você sabe dizer que que melhoras são essas que ela teve
na escola? Melhoras em que sentido
238.
Regina: Ela conseguiu por exemplo ficar um pouquinho mais centrada nas
lições, quer dizer acalmou um pouco, eles diziam olha ela está um pouco mais
calma ela está conseguindo ficar um pouco mais com os coleguinhas então a
situação dela da socialização que a gente pode pensar na escola ficou melhor a
relação com os professores também, e isso também decorre no trabalho que ela
pode ficar centrada e trabalhar melhor entender melhor as explicações essas
coisas assim ela foi melhor ela passou de ano ela foi bem, e ela disse eu passei
de ano ela ficou toda feliz quer dizer eu fiz assim vamos ver o que vai acontecer
né eu fui por aqui se eu tivesse tentado tentado tentado só o trabalho de escrita
com ela eu teria perdido todo o resto e acho que não estaria andando sabe você
fica entre a cruz e a caldeirinha aí
239.
Heloisa: é: eu imagino
240.
Pesquisadora: Eu queria escutar a Leila falando disso
241.
Leila: Quanto ao encaminhamento eu penso que eu não encaminharia nem
mãe nem criança inicialmente eu também queria ter um tempo é: mesmo porque
assim levando em conta é: você sente que não só a criança como a família toda ta
uma turbulência aí, então chegar e você já falar que há uma necessidade sem ela
mesma achar que necessita e você encaminhar não sei se caberia logo assim de
início eu né pensaria, agora a paciente né a Carla né quanto à Carla eu penso é:
não que eu daria conta de toda a questão emocional que não tenho formação
psicanalítica mas assim eu ia sei se é aventurar mas entraria nessa questão um
pouco assim como? Como até a Regina falou tem a demanda né ela tem essa
demanda de leitura e escrita só que assim é: que seria o meu foco claro eu queria
chegar lá meu objetivo final seria esse chegar lá, agora eu percebo que ela
direcionou muito isso ela deu muitos toques ela acenou muito né, eu entraria por
esse direcionamento dela é: queria chegar no meu onde eu queria mas ia pegar
esse gancho dela (SI) por exemplo no brincar quando ela fala quero brincar, até
pelo brincar, não que eu vá fazer uma leitura psicanalítica e tal mas seria até é:
sanado vai um pouco essas questões essa: quando ela escreve que ela rabisca
tipo uma auto estima um pouco uma auto-estima rebaixada essa agressividade
essa dificuldade de lidar com o grupo com as outras crianças acho que o brincar
proporcionaria isso para ela e claro que eu pegaria esse gancho com certeza de
brincar, eu acredito que esse brincar essa coisa de sei lá de brincar de casinha
brincar de misturar não importa o brincar né você sair você interpretar se colocar
num papel essa mudança é: (SI) muito no trabalho da escrita porque a escrita se
ela ta com essa aversão da escrita ela tem um sofrimento ela mostra um
sofrimento, que fica na escrita, como ela lida na família como ela lida na escola
como ela lida com a terapeuta né, então eu acho todo esse trabalho do brincar
essa direção que ela dava a catequese mesmo até a: a lição de casa acho que eu
ia dando assim é: credibilidade até do interesse dela para chegar na escrita para
trabalhar a escrita, eu pegaria muito esse gancho porque é: (SI) escrever né, tudo
o que você sabe melhor que você sabe falar melhor é: que você conhece sabe
falar melhor, tudo o que você conhece sabe escrever melhor né, agora se nem ela
mesma tava conseguindo se ver nem conseguindo lidar com essas questões como
ela conseguiria chegar na escrita eu penso, né, é: então assim acredito que todo
esse esse pré é para aproveitar muito essa chegada dela não se sentir, por
exemplo quando você fala né ela não queria que visse, de não se sentir
investigada como são os seus meios, acho que a gente tem que dar a
oportunidade de assim, mostra como você é, acredito nisso, e vamos junto num
caminho acho que por aí é por aí não é, claro que você não vai chegar hoje não
vai fazer lição mas uma vez você vai poder falar não por que isso, né é: até que
ponto ela tava também é: claro eu ia estar investigando ela tava querendo (SI) as
questões dela pra ficar mais fácil de lidar ou era um interesse mesmo mas assim
no meu objetivo eu ia pegar todos esses gan: muitos desses ganchos que é do
interesse dela é ela que traz né, acho que eu tenho o ideal onde eu quero chegar
mas assim como vai ser acho que não vamos brincar de carrinho se ela quer
brincar de casinha vamos brincar de casinha, vai ser muito mais construtivo, eu
acho que eu pegaria esse gancho pra chegar e assim vejo muito importante em
estar assim é: mesmo no brincar é: acreditar nessa menina é: apostar nela deixar
ela se movimentar para ver e assim cutucaria essa coisa é: essa agressão muito
grande né é: essa escuridão ela ta se escondendo é o poço é o túnel o túnel vira
uma cobra ao mesmo tempo em que você é o túnel escuro que é o novo que é o
obscuro né eu não conheço você vira um trem você vai levar ela prum caminho né
mas você vira uma cobra pode ser que você pique ela (SI)
242.
Regina: Mas ela sabe lidar com o veneno da cobra essas primeiras
entrevistas foram as mais elucidativas de todo o percurso, por isso que é sempre
bom fazer um diagnóstico uma entrevista mais minuciosa e acho que quando a
criança chega ou o adulto chega eles falam eles chegam muito, eles se abrem e
colocam assim as situações extremamente importantes eu tava pensando em
como a gente chega a atingir uma meta em termos de terapia né, uma meta de
trabalho é: no caso de leitura e escrita você tem vários aspectos você aprendeu
com a Pesquisadora muita coisa (risos gerais), você aprendeu com outro com
outro e de repente e daí? Como você pode aplicar tudo isso quando de que jeito?
Cada paciente é: um é diferente do outro você tem um jeito de chegar quando
chegar só que você tem que pensar que tem uma escola que ta exigindo isso e aí?
De repente eu questionei uma hora eu disse será que não é melhor essa menina
repetir de ano e tratar do emocional? Pra mim isso era claro e eu conversei isso
com os pais cheguei a conversar com os pais e conversei também com a direção
eu tive que ter essa conversa, vamos ver mas ela tem potencial eu tinha idéia de
que ela podia chegar de alguma forma ela me passou é: uma possibilidade ela
tinha potencial que tinha que ser né mexido ali para que ela pudesse chegar, eu
tava pensando assim né quando a demanda é uma eu tenho um paciente e outro
que não é questão de leitura e escrita (SI) cuido muito dessa área (SI) e é um
doce o menino mas de vez em quando ele manifesta essa agressi: ao o contrário
dela só de vez em quando eu tenho que fazer de tudo para ele se manifestar para
sair alguma coisa de alguma forma e um dia eu tava com um deles no computador
no consultório eles começaram a escrever então o de leitura e escrita escrevia e
os outros começaram a mexer (SI) e ele resolveu fazer um texto, fez um texto
lindo e eu comecei a trabalhar o texto com ele como eu trabalho um texto de
leitura e escrita ele estuda numa escola bilíngüe no Instituto Pasteur, então é uma
farra o que ele faz o que escreve com v o que era com f não sei o que mas ele é
um menino inteligentíssimo ele pegou o abc corrigiu tudo ficou um texto lindo e eu
mandei para o jornal, quer dizer não tem nada a ver eu fiz isso eu no meio do meu
trabalho mesmo como psicanalista eu pude fazer alguma coisa nada impede então
é a linguagem tudo é o que eu digo eu to trabalhando tudo ele resolveu escrever
então e ele escreveu exatamente a problemática dele que tava dentro da casa
dele os pais estavam se separando e ele estava atrapalhado ele escreveu um
texto muito bonito é que eu não tenho aqui comigo que é outra parte então eu não
to meu foco não é esse mas de repente a gente começou a trabalhar ele achou
ótimo foi só aquela vez não quis mais e a gente mudou de assunto (SI) então eu
acho que a gente tem que ter um pouco de flexibilidade não é eu sou isso ou sou
aquilo é: eu acho que tem uma bússola às vezes né pra onde que ta indo a coisa
você tem um foco uma meta de tratamento mas nada impede de você ter algumas
estratégias que permeiam uma área ou outra né em termos de técnica de atuação
profissional... é isso...
3º EXPOSIÇÃO DO GRUPO DE PESQUISA - 17 de outubro de 2001
Neste terceiro dia, novamente o grupo possui uma configuração diferente da anterior.
Compareceram Rita e Heloísa, que estavam no encontro anterior, e Carmem, que não
havia faltado no último encontro.
Parte do início da apresentação de Rita não foi gravada por falhas do equipamento de
áudio e vídeo.
Temos a seqüência desse primeiro enunciado.
1. Rita: então ele ia fazendo vocalizações muito próximas do que a gente estava
falando... a gente montava: e ele escolhia/sabe aqueles baldes de lego? Tinha os
robozinhos:os jacarezinhos: e eu montava e ele ia me dando as pecinhas de cor
igual pra eu ir montando aí ele destruía...aí eu ia jogando no balde e ia falando
cesta... e ele eta e eu falando cesta e ele eta e a gente ia jogando e era uma
maravilha...na hora de ir embora: ele só chorava lá embaixo...ele não queria ir
embora:brigava com a mãe dele:mas ia embora...depois e um mês/um mês e
pouco:ele começou a me chutar na sala na hora de ir embora...a gente fazia a
cesta e depois ele pegava o balde e jogava pela sala inteira e chutava a porta do
armário e aquela era uma coisa que eu não sabia como lidar...O que ele estava
fazendo porque era claro que ele não queria ir embora...ele chegava feliz e
satisfeito...tudo transcorria bem legal;ele participava de tudo mas na hora de ir
embora:quando percebia que estava chegando o final: quando a gente começava
a guardar o material: aí ele começava a se rebelar e isso durou até o final dos
atendimentos...eu sempre atendia a mãe dele mais ou menos uma vez por
mês...não era uma coisa fixa e a gente sempre conversava como estava em
casa...ela dizia ele vem pegar minha mão o que que eu faço? Então sempre em
cima do que ela vinha falando::
2. Heloisa: ela vinha o quê?
3. Rita:ela vinha me perguntar o que fazer porque assim: ele vem pegar minha mão
pra me mostrar que quer tal coisa...então: em cima do que ela ia perguntando eu
ia falando... a gente tinha um encontro mais ou menos certo de pelo menos uma
vez por mês a gente se encontrava... a gente chegou a um tal nível de vinculação
que ela vinha e só contava as coisas dela: problemas com o marido: ele tinha
outra mulher: o filho presenciava tudo isso/o Pedro: ele via a mãe chorando e
então tinha toda essa confusão: ela o marido e que ele presenciava tudo... aí as
sessões foram acontecendo dessa forma... e com o tempo – ele sempre ficava nos
mesmos brinquedos -- e aí um dia ele pegou um carrinho e eu abri um jogo que
tinha um tabuleiro e a gente brincava de passar o carrinho por baixo do tabuleiro
como se fosse um túnel e aí ele queria ele passar por debaixo do tabuleiro como
se fosse um túnel...só que o tabuleiro era desse tamanhinho ((mostra o tamanho
com as mãos)) e aí começou a simbolizar um pouco mais e não ser só mais
montar e desmontar o tempo todo...e as brincadeiras começaram a ser muito mais
interessantes...até eu também comecei a me divertir muito mais com o
atendimento também... -- eu queria lembrar qual foi a brincadeira mais simbólica
((olha o material que trouxe para a apresentação)) – ele tinha uma hipotonia mas
não era isso que caracterizava o seu atraso de linguagem...ms eu queria mexer na
boca dele e ele não deixava de jeito nenhum... aí um dia ele chegou: ele abriu o
armário: tinha dois telefones de plástico...tirou tudo o que tinha lá dentro: um
monte de jogos e brinquedos: e aí ele entrou lá dentro e fechava feta tia feta...aí
eu fechava o armário: ele ficava com um telefone lá dentro e eu com um fora..aí eu
4.
5.
6.
7.
8.
9.
59
eu vou telefonar... aí eu fazia o barulho trimm:: aí ele quem é? Aí eu é a tia...
não é... aí ele abria a porta e dizia: é a médica... aí eu dizia: é a médica... e aí ele
dizia como que tinha de ser a brincadeira... e aí a gente criou uma brincadeira que
durou uns dois meses...sempre o comecinho:sempre brincando do mesmo
jeito...ele entrava no armário sempre numa pose assim ((fica na posição em que
Pedro ficava no armário)) porque ele não cabia no armário: e me telefonava e dizia
eu to doente...daquele jeito embolado que ele falava... aí eu dizia:eu to indo... aí e
fazia barulho de ambulância e tava chegando...aí eu abria o armário: aí dava pra
pegar a espátula: o vibrador: e fazer alguma coisa na boca dele e ele curtia...era o
único jeito de mexer na boca dele porque se saísse do armário não podia mexer
na boca dele...então era aquele posicionamento ÓTIMO...todo torto ((mostra como
o trabalho era realizado, ironizando))... e aí brincava:fechava a porta...eu volto na
semana que vem... ai ele ligava pra mim de novo e eu dizia: ta doente de
novo:mas o que você tem? E ele dizia que tudo doía e eu ia lá de novo... aí
começou a mudar a brincadeira...às vezes começava no armário e depois ele
saía... eu tinha uma caixa com coisas de supermercado e tinha uma gravata velha
que ele pegou e falou que ele era o meu pai e eu a filha dele...
Heloisa: você que sugeriu esses papéis?
Rita: como começou isso eu não me lembro...mas que ele era meu pai foi ele que
falou né: mas como começou eu não me lembro... ele era meu pai e eu a filha
dele... aí tinha o lobo mau e ele lutava com o lobo mau e eu dizia ai pai to com
medo... e ele calma minha filha e ele vinha e beijava minha testa e aí rolava no
chão: lutava como um verdadeiro Jaspion59 e depois o lobo ia embora... a mãe
dele dizia que ele saía de lá lutando...entrava no ônibus lutando e ela tinha que
dizer que ali não era lugar de fazer aquilo...ele saía lutando contra todos os lobos
maus...com todas as brincadeiras: ele continuava fazendo o show na hora de ir
embora... e ele sempre queria levar alguma coisa da sala e eu dizia não
dá...quando você voltar vai estar aqui de novo... -- aquela coisa bem teórica né
– eu segurava o jeito de ele me chutar... eu tentei de tudo: saía antes que ele da
sala: falava eu vou sair você vai ficar? E ele vou... eu descia: a mãe chamava: a
irmã chamava: e ele ficava lá... era eu que queria ir embora mais cedo mesmo...
mais cedo não: no horário...
Heloisa: ele ia na escola?
Rita: não...ele ficava o dia inteiro com a mãe... ele tinha um nível sócio mais
baixo...
Carmen: quantos anos ele tinha?
Rita: três anos e dez... logo ele fez quatro anos... ele até foi buscar escola: meio
no momento em que a gente estava preparando a alta... a mãe estava se
separando do marido procurando uma escolinha no bairro novo onde ela ia
morar... e aí ele sempre pedia pra levar uma coisa para ir embora e teve um dia
que eu não agüentava mais levar chute: e aquele escândalo: tinha paciente
esperando e ele ia embora chorando e ele pediu para levar uma caminhonete de
plástico e aí eu deixei...falei pra ele trazer na outra sessão e aí eu entendi o que
que ele estava precisando mesmo...o pneuzinho de plástico da caminhonete
estava gasto:empoeirado de tanto que ele rodou... de tanto que ele brincou como
caminhãozinho... aí ele começou a levar o mesmo brinquedo e trazer de volta... aí
ele levou um carrinho de ferro que voltava gasto de tanto usar... eu falava que era
de responsabilidade dele cuidar e trazer o que ele levava e aí um dia o pneu do
Jaspion: personagem de seriado infantil japonês. Trata-se de um guerreiro futurista que luta contra o mal.
carrinho de ferro soltou e logo na sala de espera ele já falou ó tia soltou: foi sem
querer..foi sem querer... aí a gente consertou e um dia ele quis levar o lego... aí a
mãe mesmo disse que ele tinha lego e aí ele levou dois cubinhos e depois a mãe
falou que ele ficou o tempo todo só brincando com os dois cubinhos: colocando
um em cima do outro... só os dois que ele tinha levado da terapia...
10. Heloisa: você falou: o nível sócio-econômico dele: ele tinha brinquedos em casa?
11. Rita: tinha...tinha poucos mas tinha... tinha ele e a irmã... eles moravam no fundo
da casa da cunhada da mãe... ms na separação ela conseguiu uma casa no
Sonho Meu aquele projeto social...
12. Heloisa: e ele queria levar só os brinquedos que vocês usavam na terapia ou
qualquer um?
13. Rita: não era sempre/jogos ele não queria/era sempre os brinquedos que a gente
já tinha brincado:lego a gente já tinha brincado:carro a gente já tinha brincado: ele
nunca pediu pra levar a gravata que a gente brincava...nada disso...dentro do que
a gente fazia de mais simbólico ele não queria levar...era sempre os brinquedos
mais concretos...da parte mais inicial da terapia...
14. Pesquisadora: e quando ele começou a levar os brinquedos para casa ele parou
com as atitudes de chutar?
15. Rita: diminuiu... ele só falava que não queria ir embora e ele falava que queria
levar esse e tal...
16. Pesquisadora: e essas atitudes foram diminuindo...
17. Rita: foram... aí um belo dia eu falei agora ele já está melhor e não vai levar... aí
voltou tudo para trás ele quase me espancou na sala... ele ficou muito bravo...falou
que ele ia continuar levando e aí eu vi que o vínculo que a gente tinha ainda
precisava manter em outros lugares por mais tempo... e aí ele ficou levando e eu
fiquei agüentando essa de ele levar e ele agüentou bem levar e tomar conta mais
ou menos até abril do ano seguinte...depois desse período ele subia em cima da
mesa e ficava procurando estação no rádio e ficava dançando e pegava na gaveta
papel e ficava fazendo minhoca... era minhoca pai: minhoca mãe: minhoca tia:
minhoca Bel – que é a irmã dele – e não tinha minhoca Pedro... ele dizia que não
era minhoca... todo mundo era minhoca e ele depois pegava o papel e picava
tudo.. aí eu peraí...antes de você desfazer a minhoca:vamos brincar... a
minhoca Marcel – que é o primo dele – brincava com a minhoca tia e aí ele ficava
bravo: a minhoca Marcel não vai brincar... aí eu falava então a minhoca da tia vai
brincar com a minhoca da Bel... e aí até que ele se fez minhoca também e ele
entrou como minhoca e se colocou no meio que ele tinha se excluído que era todo
mundo que ele tinha contato... e nessa época que ele começou a sentar na mesa
e a brincar comigo na mesa: ele já saía mais tranqüilo: foi algo meio gradual... às
vezes ele pedia para levar alguma coisa...mas não fazia tanto show...aí coincidiu
com os sintomas de linguagem dele foram/ele chegou não falando nada: só
apontando mesmo... aí começou a produzir mais anteriores...os posteriores ficou
mais para o final mesmo: eu não trabalhei isso diretamente...ele tinha a voz muito
hiponasal60: ele vivia entupido e a casa onde ele morava tinha muito bolor...eu
mandava pro otorrino ((médico otorrinolaringologista)) mas morando naquela casa
isso não ia curar... ele tinha um quadro alérgico super complicado...então aí tava
coincidindo a época que ele tava mudando de casa: a mãe se separando do
marido e aí ele ficou comigo até novembro...em setembro a gente/em agosto
começou a trabalhar a entrada dele numa escolinha meio período...ele não ia
60
Voz hiponasal: voz com pouca nasalização. No caso de Pedro, havia um quadro alérgico que fazia com que
ele estivesse constantemente com o nariz entupido e, portanto, sem condições de produzir sons nasais.
ainda todos os dias...ficava alguns dias só pra ir adaptando porque a mãe dele só
tinha conseguido vaga pro ano seguinte... que aí iam conseguir colocar ele na
escola... aí ele já tava empolgado com lancheira... de ter uma lancheira era o que
ele mais queria: e ele falava que não: que aquilo lá era todo mundo muito chato...
era aquela insegurança de vou para a escola: não vou pra escola né: quero ir mas
ao mesmo tempo era um espaço muito novo...então ele começou a fazer uma
adaptação de alguns dias da semana e a gente começou a intercalar o
atendimento é: semanal...ao invés de duas vezes por semana:passou a ser
semanal e em setembro passou a ser de quinze em quinze dias até novembro:que
coincidiu com as férias e logo em seguida ele ia pra escola e acabou tendo alta...
no último dia ele veio com uma máquina fotográfica e queria tirar foto... aí veio
ele;veio a Bel:veio a mãe tirar fotografia...e é isso mais ou menos o Pedro...
18. Pesquisadora: você olhando agora...você disse que esse atendimento foi em 99...
o que você diz desse trabalho? Faria tudo igual ou teria um novo olhar?
19. Rita: eu acho que não insisti muito pra trazer o pai para dentro do trabalho...acho
que entrei no papo da mãe...acabei entrando nesse lado:não abri espaço para
ele...acho que assumi a mãe como referencial único do Pedro... e ele era Junior e
eu não trouxe o pai... e ele era muito engraçado... uma vez ele pediu para ir ao
banheiro -- ele pedi algumas vezes pra ir ao banheiro – e banheiro de consultório á
assim: tem box cheio de coisas e ele perguntava onde você toma banho? Ele
achava que eu morava lá... eu explicava que eu não tomava banho lá...um dia ele
tava apertado e eu perguntei você quer fazer xixi? E ele disse homem não faz
xixi:homem mija... mas ele encheu a boca pra falar e eu achei a coisa mais linda e
eu não trouxe o homem que era o referencial dele então: ficava assim: ele lavava
a mão e voltava par a brincadeira do jeito que ela tava... se era o lobo mau ele
voltava pra matar o lobo mau: se jogava no chão: fazia sonoplastia...
20. Heloisa: o lobo mau imaginário?
21. Rita: imaginário...
22. Pesquisadora: e que papel você tinha nas brincadeiras?
23. Rita: na brincadeira eu era participante mesmo... eu participava e em alguns
momentos:depois de um tempo: quando ele já tinha condições de perceber até a
questão a de fala dele:eu ia apontando algumas coisas pra ele mas eram
pontuações assim...que eu não cortava muito a situação da brincadeira: por
exemplo: na do médico dava pra falar nossa o senhor está muito doente
mesmo...o senhor falou médito... não é médito... aí eu já ia com a espátula61 e
é médico... aí ele fala médico e ai eu ia tentando por coisas na brincadeira e eu
brincava muito com ele... era uma coisa de estar ali... ao mesmo tempo em que eu
ia interagindo eu prestava atenção em como estava a linguagem dele/ a fala é:: eu
participava de me esconder no chão: de ficar co medo e aí ele falava calma filha
calma... ai pai:to com medo... é um monstro... aí ele pedia silêncio e ia lá: lutava
de novo e voltava e me agradava: eu participava junto da dramatização que ele
fazia tanto no médico como nas minhocas... eu intervinha de questionar: por que
que ele não era minhoca:: então as minhocas iam brincar: por que que as
minhocas só iam existir e deixar de existir... então assim de mostrar que de
repente ele podia ter uma função: que todos os membros: pai:mãe:primo: irmã: eu:
61
Uma das técnicas de produção do fonema /t/, muito difundida na prática fonoaudiológica, consiste em
segurar a ponta da língua no assoalho da boca, com o auxílio de uma espátula, no momento em que o
paciente emite esse fonema em substituição ao fonema /k/. Com a ponta da língua presa, o que se
movimenta em elevação é o dorso da língua: em lugar da emissão de /t/ temos então /k/. Aos poucos a
criança vai automatizando essa produção.
que ele conhecia estavam ali e ele não... e depois ele querer estar junto porque as
minhocas brincavam e podia ser interessante que saísse daí... acho que em
alguns momentos eu questionava um pouco se ele não ia se colocar como
minhoca por exemplo... que música que ele gostava;quando ele ia mudando
música...nas músicas deu pra trabalhar bastante a parte articulatória: porque ele
cantava umas coisas que eu você não cantou isso... tal: e aí ele ia procurar e aí
acabava a música... ele não queria por CD até porque os CDs que eu tinha eram
muitos chatos e ele era muito moderninho para os CDs que tinham lá...então ele
queria ir procurando outras músicas e ia cantando e a gente ia trabalhando
bastante a articulação nas músicas que ele ia cantando...
24. Pesquisadora: qual era o repertório dele?
25. Rita: era o Tchan: boquinha da garrafa -- ele punha a boneca no chão e ia
dançando como se a boneca fosse garrafa... ele dramatizava e cantava junto... ele
era bem solto... eram sempre essas músicas que estavam mais no auge na
época... a gente achava várias músicas no rádio que ele gostava de cantar... eu
procurei ser diferenciada para ele...de primeiro mostrar que eu ia entender
ele...que não ia aceitar algumas coisas que ele fazia como só apontar o que ele
quer e eu falar e ele ficar mais quieto como os outros aceitavam... ao mesmo
tempo: eu tentei mostrar para ele que o que ele tava falando:num primeiro
momento: ia ser aceito e que depois aquilo lá podia ir se modificando e a mãe dele
falava agora a gente tem que falar pra ele ficar quieto... ele brigava com a irmã o
dia todo...
26. Carmen: a mãe não achava esquisito você só brincar com ele?
27.Rita: não...desde o começo: eu sempre falo para todos os casos que chegam...eu
falo pra a mãe e para o pai: se eu fosse trabalhar alguma coisa na sua fala... a
gente ia conversar e trabalhar na sua fala... com criança se eu fizer duas
perguntas pra ela: ela não vai querer mais vir aqui... e aí os pais entendem porque
tenta conversar com uma criança de três anos qual o seu nome? Em dois segundos
ela já foi embora... então eu explico que o universo dele é brincando: que é assim que
eu consigo que ele fique comigo; que ele fale: que eu possa falar com ele: que a gente
tenha um assunto... e eles entendem que o assunto do filho é o brincar...
4ª EXPOSIÇÃO DO GRUPO DE PESQUISA - 31 de outubro de 2001
Compareceram Carmen, Leila e Heloisa. Carmen não se baseia em material prévio para
fazer sua apresentação que se caracteriza como um relato oral de uma experiência.
1. Carmen: Primeiro eu vou comentar de onde: esse paciente: me surgiu e como ele
me conhece...eu trabalho num lugar chamado Instituto Nilo de Pesquisa e Apoio a
familiares de jovens limítrofes...é uma:: instituição particular mas sem fins
lucrativos...que
pesquisa
a
limitrofia...que
é
uma
dificuldade
no
aprendizado...dificuldade de concentração dificuldade de...é:: alfabetização muitas
vezes...e essas são crianças que chegam pra lá...chegam normalmente quando já
estão jovens adolescentes/jovens...e já com: um descrédito sócio-cultural...já têm
um cotidiano conturBAdo familiar e são essas crianças que chegam...os pais
chegam lá sem saber o que fazer... e esse jovem chegou com/em 1997...ele hoje
tem vinte:: dezessete na época...e vem com o histórico que:: o pai tomava conta na
verdade é a avó paterna...e a mãe tinha abandonado essa criança...aos cuidados do
pai...o pai não tinha percebido até ele chegar aos sete/oito anos que:: começaram
as primeiras dificuldades dele na escola...ele não conseguia se concenTRAR ficava
muito agiTADO não conseguia é: apreender o conteúdo e por isso tudo se irritava
muito...brigava: e chegou a várias psicólogas... por causa da escola e essas
psicólogas não deram conta...segundo o pai...e ele chegou e ficou conhecendo o
Nilo...nessa época eu não tive contato com eles...só fui ter contato em 2000...
quando eu comecei o trabalho...e aí o pai já tava:: na angústia de saber o que fazer
com ele soube que ele tava bem: mas não tinha nada de escolarização...tinha
passado até:: oitava/nem oitava acho que sexta ou sétima série...não: tinha
aprendido nada não tinha um bom:: conteúdo mesmo um bom aprendizado...então
de repente um supletivo porque ele já tava bem::emocionalmente e ele até antes de
chegar ao Nilo por conta dessas psicólogas ele tinha chegado também ao psiquiatra
e tinha chegado a algumas intervenções...
2. Heloísa: Internações? Bebida?
3. Carmen: essa dificuldade esse agito essa agressividade...
4. Heloisa: ele tomava remédio?
5. Carmen: Chegou a tomar Tegretol e:: não sei se era Gardenal:
6. Heloisa: ele tinha convulsões?
7. Carmen: nada sem ter nenhuma... mas eles costumam medicar com Tegretol coisa
assim mais para baixar ansiedade... e aí ele chegou ou ao Nilo e ficou sem nada
sem medicação nenhuma e foi regredindo para a homeopatia... e aí ele já
conseguiu:: por conseguir toda essa: estabilização emocional... ele já conseguiu
chegar a fazer supletivo...a equipe toda pedagogo psicólogo a gente da área
fonoaudiológica...ficamos assim: pensando se seria o melhor caminho já pro Carlos
ou não... e::
8. Heloisa: O supletivo você diz?
9. Carmen: o supletivo... se era época mesmo de ele estar fazendo o supletivo...mas o
pai estava numa agonia numa coisa com o supletivo e por fim colocou e pediu só o
apoio...e o Nilo ajudava nesse lado pedagógico...ia dar o suporte técnico pra ele... e
ele começou::
10. Heloisa: isso aos dezesseis, né:: [ ]
11. Carmen: Isso isso não quando ele entrou no Nilo mas ele já devia ter uns
dezessete:
12. Heloisa: ta
13. Carmen: ta? Que foi aí já quando eu já estava no Nilo em 2000...
14. Heloisa: de segundo grau?
15. Carmen: primeiro grau...e aí ele começou a fazer supletivo e todas as atividades
que tem no Nilo...porque o Nilo acredita que nós temos quatro corpos... o vital que
dá força toda dá vontade... o psíquico que é toda a parte é: de sentimentos mesmo...
o físico e o mental...no caso o mental que é essa parte da organização:: da parte
pedagógica em si era o que estava sendo trabalhado com ele...mais
diretamente...os outros corpos ele acabou não tendo tempo para fazer...tinha que
sair mais cedo para poder chegar a tempo na escola que ele morava na zona leste e
o Nilo num município vizinho, na zona sul...então ele levava duas horas e pouco e
então ele tinha que sair mais cedo para poder estar dentro do horário...
16. Heloisa: e esses quatro corpos quem cuida... os pedagogos... fonoaudiólogos ou
cada um tem::
17. Carmen: Cada um dentro da sua área e [ ]
18. Heloisa: e a fono cuida de que corpo?
19. Carmen: do mental...
20. Heloisa: Só?
21. Carmen: por causa da linguagem...
22. Heloisa: perfeito...
23. Carmen: mas como nós somos quatro corpos em um::: nós acabamos trabalhando
todos porque ele tem que estar com vontade para estar mexendo com esse lado
pedagógico com esse lado da linguagem...precisa ter o físico para escrever essa
coisa da linguagem...então você acaba trabalhando todos mas diretamente com
um... e aí ele ficava nesse vai e vem e acabava não sendo trabalhado pelas outras
áreas...e o pai começou/arranjou um emprego na/com o tio que tem uma
gráfica...então o Carlos ia de segunda:: de terça quarta e quinta pro Nilo terça quarta
e quinta: e ainda saía mais cedo... eu comecei a ver o Carlos só na quarta... e
mesmo assim ele estava sempre no corre corre por causa do supletivo pra tentar
acompanhar...prova trabalho tudo ele precisava da gente...e
( ) e ele tinha
bastante dificuldade de organização... do pensamento: da fala... é:: de tudo ele tinha
dificuldade de organizar...ele era uma criança agitada: um jovem que falava TUdo
que vinha na cabeça...não interessa assim se era hora... se era para a pessoa
certa... era imaturo e::
24. Heloisa: vou te perguntar uma coisa Carmen...
25. Carmen: pode perguntar...
26. Heloisa: lá é classificado em limítrofes leves: severos...como que é essa
classificação? Não? Não tem...
27. ((Carmen responde negativamente com a cabeça))
28. Carmen: Não tem... a limitrofia lá vem:: limítrofes puros::
29. Heloísa: puros que seria:
30. Carmen: Que é o que a gente não tem SÓ a limitrofia ou limitrofia com alguma coisa
como a paralisia cerebral: com uma deficiência mental junto::
31. Heloísa: ta...
32. Carmen: porque segundo:: a Cecília/que é o que a gente está pesquisando lá... a
gente está pesquisando uma metodologia... e a Cecília que é a coordenadora do
instituto... ela diz pra gente que a limitrofia é um estado do ser...igual a gente tem
um estado de convulsão: a gente tem um estado da limitrofia...que é esse estado de
não conseguir fazer a passagem do hemisfério direito pro esquerdo...então as
dificuldades todas de ir no esquerdo...eles têm...que é a dificuldade do cognitivo do
concreto...dificuldades do palpável... ele tem...ele não tem dificuldade com:: é:: o
imaginário... a coisa de inventar...
33. Heloisa: a criação...
34. Carmen: a criação toda vem espontânea...tanto é que a gente trabalha o vital com
eles...que é a parte da vontade nessa coisa da criatividade...eles fazem desenho
argila escultura...tudo isso né...
35. Pesquisadora:
deixa eu fazer uma pergunta já que a gente está aí na
conceituação...o que é que seria uma limitrofia pura... que você falou que no Nilo
vocês não têm...
36. Carmen: Não tem... seria esse estado de é:: viver no abstrato...porque limítrofe ele
imagina e cria tudo...eles por terem essas deficiências associadas eles não
conseguem é:: eles têm um déficit nos outros corpos...eles não conseguem
concretizar o que eles têm de imaginação...
37. Leila: seria por exemplo um paralítico cerebral com uma dificuldade motora não
poder executar o que ele criou?
38. Carmen: o que ele criou...o que ele inventou...seria isso...então o Carlos ele imagina
bastante ele inventa...só que ele não consegue organizar e codificar isso no papel...
39. Pesquisadora: e nem na oralidade:
40. Carmen: e nem na oralidade...
41. Heloisa: então como é que você sabe que ele imagina tudo isso se nem na oralidade
e nem no papel:: como ele tem/como você vê:
42. Carmen: então...porque/pelas atitudes dele...então: assim... só mais um dado do
Carlos antes de situar...colocar uma situação da história...ele adora desenhar... e ele
desenha muito bem...pena que eu precisei deixar no Nilo essa papelada porque ele
está internado atualmente...então eu não pude trazer pra mostrar...o Carlos... ele por
desenhar ele traz tudo...e até na fala se você deixar solto:vem...no teatro ele
representa::ele vive o personagem...
43. Leila: quando você fala deixar solto: vem...como assim? o que vem?
44. Carmen: vem assim é: uma fala desconexa...mas do que ta/você vê que é o
Carlos...então ele vem de repente/vou por uma situação ( )
45. Leila: Dá exemplo::que fica mais fácil
46. Carmen: que é mais fácil...ele bateu:entrou na sala:oi...entrou: sentou:sabe o que
que é?me roubaram cinco reais da minha carteira...daí eu falei:ta:: e aí::então me
roubaram cinco reais da minha carteira...você tem dinheiro pra voltar Carlos pra
casa?Tenho...então: e nisso todo mundo que estava na sala:porque eu trabalho em
grupos...todo mundo que estava na sala parou:: porque a gente estava fazendo ( ) e
ele vem com essa fala...aí dessa vez eu saí da sala: falei espera só um
pouquinho: é isso realmente que você quer dizer Carlos? Ele falou é...então
espera aí... aí eu fui e fiz uma dramatização com eles que estavam na sala mas
com outra coisa...eu bati na porta e falei assim...putz esqueci meu celular...e fiquei
parada olhando...ele começou a rir... e aí ele pegou e falou assim:entendi...aí eu
falei o que você queria dizer Carlos? Era que roubaram:: seu dinheiro ou que
você não está com dinheiro e queria dinheiro emprestado pra outra coisa::aí
ele parou e falou sabe o que que é::é que eu queria na verdade: eu vou ter que
pagar: não lembro o que que era se era outro ônibus que ele ia ter que pegar:
47. Heloisa: ele ia sozinho Carmen?
48. Carmen: que é mais longo...não...
49. Heloísa: com o pai?
50. Carmen: com o pai:uma:: um irmão pequeno que nasceu...
51. Heloisa: então ele realmente não foi roubado...
52. Carmen: e o pai tem uma madrasta... não...
53. Heloisa: ta...
54. Carmen: ele não foi roubado... ele veio sozinho...mas aí é que está a imaginação e
o:: a criatividade e a coisa deles...ele queria ir comprar outra coisa no caminho ou
pegar o ônibus mais longo que custava mais pra chegar mais rápido...e ele inventou
a história de terem roubado pra pegar o dinheiro e:
55. Leila: agora pra mim ficou confuso quando você conta isso... é:: acredito que você
tenha é:: outras vivênci/outras ocorrências com ele: é::em outras situações outros
contextos que fez você pensar automaticamente que na hora em que ele foi
roubado: ele estava simulando/não simulando: ele estava trazendo trazendo
isso...que quando você conta:me faz pensar assim é::como uma pessoa normal que
chega e fala assim: fui roubado e fala tipo ao invés de e aí? tipo assim: aonde?
Como? Que que te levaram? Como você tá? Então assim:: se você está nesse
caminho já é:: não sei é complicado:
56. Carmen: eu sei:é difícil:
57. Leila: se você já está nesse caminho – só um minuto – de ir por essa linha de que
nesse momento ele está em criação: está representando alguma coisa::acreditei/tem
furos::nem sempre é a mesma coisa...é: que às vezes pode ser uma coisa que/
pode ter acontecido alguma coisa...é que tem o bloqueio do diálogo/discurso mesmo
que você disponibiliza pra ele...quando você fala e aí:: você fecha...tipo assim se eu
falo pra você to super triste...hahan... se eu ia contar que estou triste por alguma
coisa eu acabo me fechando... aí estou dizendo isso que você já deve ter tido outras
ocorrências já pra tomar esse caminho...pra tomar essa atitude...
58. Carmen: sim...porque assim...
59. Leila: não sei se ficou confuso o que eu coloquei:
60. Carmen: não: eu consegui entender...
61. Heloisa: eu também...
62. Carmen: o limítrofe ele:: se ele imaginar e não conseguir concretizar o que ele
imaginou...ele traz uma história muito longa... muitas vezes... e ele vem te contar:: e
fala e fala e é aquela coisa de rodear rodear rodear rodear pra conseguir um fim... e
muitas vezes eles não sabem o fim que eles querem ter...
63. Leila: Hahan...
64. Carmen: não sei se eu consegui passar?
65. Heloisa: precisa organizar isso pra ele?
66. Carmen: aí eu preciso organizar pra ele...por isso que eu coloco pra ele: nesse
caso::eu coloquei pra ele dessa maneira para ele pra ele perceber o que ele fez...pra
deixar concreta a situação...pra que ele soubesse que:: primeiro bate na porta: fala
dá licença...posso perguntar uma coisa? Aconteceu isso...eu to precisando de um
dinheiro... para que ele consiga de uma maneira mais fiel chegar ao que ele quer/ de
uma maneira mais efetiva... e:: o Carlos/ele:: é:: voltando um pouco nesse histórico
dele: ele entrou nesse supletivo...fez isso/essa coisa conturbada por um ano: um
ano e pouco... ele passou no supletivo de primeiro grau entrou no supletivo de
segundo... chegou no supletivo de segundo ele estressou...ele não conseguiu mais
porque era trabalho: corre corre: tem que estudar: e aí o Nilo começou: os outros
profissionais tendo que fazer as coisas pra ele...na minha área ele não ia mais...
67. Heloisa: por que Carmen?
68. Carmen: Por conta de ter que dar conta: dos trabalhos das provas: ele não tava
dando conta de tudo... e o Nilo estava tendo que dar conta:: então ele ia só na
pedagoga... e a pedagoga tinha que fazer a tarefa por ele...tinha que estudar com
ele... tinha que fazer as coisas com ele e ele não conseguia ser ele...ele não
conseguia ter esses ((estala os dedos)) lapsos: essas viagens dele pra gente poder
nortear...
69. Leila: hahan...
70. Carmen: e o trabalho que eu faço lá no Nilo é de: leitura e escrita porque eles têm
muita dificuldade nisso... e junto com a leitura e escrita vem o discurso oral
também...então muitas vezes vem o discurso oral: a gente debate conversa sobre o
assunto: para depois vir o discurso escrito que é onde eles têm a dificuldade
maior...então ele não estava tendo essa coisa pra gente poder organizar...não
estava tendo toda essa parte...então ele estava perdido: ele chegava na vivência
que é um momento que a gente é:: quase uma confraternização...um momento
muito espiritualizado do Nilo...então a gente conta o dia-a-dia: o que aconteceu no
dia anterior:como foi o final de semana: alguma coisa que você queira contar: ele
chegou nuns momentos da vivência e falou gente::olha: eu preciso falar... Vocês têm
que dar muito valor para o Nilo...vocês têm que dar muito valor pras coisas que
vocês fazem aqui...vocês precisam participar de tudo:
71. Heloisa: Desculpa: me perdi...quem falou isso?
72. Carmen: o Carlos... ele chegava na vivência e o relato dele era esse...o quanto o
Nilo era bom... o quanto precisava perceber que as pessoas fora não davam
valor...desprezavam
73. Heloisa: tinha um momento: tinha um momento para ele:
74. Carmen: ele falava eu quero falar...
75. Heloisa: e como vocês reagiam diante disso?
76. Carmen: a gente ouvia... e muitas vezes assim:: um coordena... não são todos que
opinam...e quem estava coordenando muitas vezes ouvia e falava hahan é isso...ta
vendo gente: o quanto é importante: o quanto é legal o Nilo... quando vocês sofrem
muitas vezes lá fora...não eram com essas as palavras mas era esse o
debatido...nesses momentos que ele vinha...
77. Heloisa: nesse momento ele não estava fantasiando: não estava viajando no seu
ponto de vista?
78. Carmen: não estava viajando: mas eu via muitas vezes que estava fora de
contexto...era uma fala legal: tinha coerência o que ele estava falando: era
importante: mas tava totalmente fora de contexto...
79. Heloisa: Como foi isso: ainda não entendi direito...
80. Carmen: porque às vezes ele chegava:: nessa vivência... a gente chega espera bate
o sinal:: eles vêm a gente forma um círculo e aí começa a atividade: a o pessoal fala
um pouco sobre as coisas que aconteceram no dia anterior: fala um pouco sobre as
coisas que estão acontecendo: olha: soltaram uma bomba lá: vocês viram?
81. Heloisa: então a palavra ( ) ou se coloca um:
82. Carmen: se coloca aleatoriamente ou às vezes tem uma proposta dada...ah: hoje
por exemplo ah de repente o que vocês colocaram de fantasia no Halloween?
83. Heloisa: todo dia é isso, Carmen?
84. Carmen: todo dia é uma coisa diferente e um debate assim sempre tem:
85. Heloisa: e nesse dia ele se colocou:
86. Carmen: ele soltou isso... do nada...que ele gosta do Nilo: que o Nilo é o que
colocava as coisas:: que:
87. Heloisa: desculpa -- só para eu ter uma idéia – anteriormente alguém estava falando
isso?
88. Carmen: não...
89. Heloisa: nada...
90. Carmen: nada...
91. Heloisa: nem no dia anterior aconteceu nada em relação ao Nilo?
92. Carmen: não:
93. Heloisa: nem no mesmo dia?
94. Carmen: não:não...
95. Heloisa: Foi assim:: por isso que você disse que foi um pouco fora:
96. Carmen: que um pouco fora de contexto o que ele tava colocando...
97. Heloisa: você trabalhou com ele por quanto tempo?
98. Carmen: então... eu fiquei com ele nesse ano de 2000... que foi quando ele
conseguiu/a gente ainda conseguiu resgatar ele...mas o trabalho comigo assim: foi
legal no começo mesmo de 2000... do meio de 2000 pro final: começaram a
aumentar as provas: começaram a sugar bastante e aí ele começou a não aparecer
mais e a sugar bem o lado pedagógico...
99. Leila: Quando você fala que o pai tinha uma expectativa muito grande de ver o filho
estudando e ele tinha essa expectativa?
100. Carmen: não... ele até criou:: essa expectativa por conta do pai depois...e o
cotidiano familiar dele era muito conturbado... só de ele não ser filho desejado pelo
pai...ser desejado pela mãe: depois a mãe parou de tomar anticoncepcional pra
depois rejeitar o filho... então ele já fica com essas coisas na cabeça.. né:
101. Heloisa: porque ele sabe disso?
102. Carmen: ele sabe de toda a história dele...então é complicado... e o trabalho em si
nesse começo de ano – voltando um pouco no que você tinha falado de saber
dessas coisas de viagem: de como é difícil:: eu coordenava e organizava um pouco
a fala para ele – ele sentava em muitas situações e lia contos: fábulas: poesias e
dependendo da época do que eles estavam trazendo era uma coisa que eu
abordava com eles...
103. Heloisa: em grupo...era sempre em grupo...
104. Carmen: sempre em grupo...
105. Heloisa: de quantos?
106. Carmen: cinco:seis... dependendo... e não era fixo o grupo... ta: tinha hora que:: e
não era fixo também o nível deles... de vez em quando pintava um deficiente mental
assim no meio...nada severo: mas pintava...ou até mesmo quem tinha uma
dificuldade muito maior de leitura... e outros que tinham uma facilidade
maior...porque uma das limítrofes: ela já escreveu um livro de poesias...com autor:
com auxílio nosso:: revisado:: lido com ela vai volta vem....então ele chegava e a
situação era:: dois tatames/tapetes...ele vinha: sentava: e todos sentavam aí: vamos
ler qual vocês querem? eu trouxe esse e esse tal e conforme ia/começava a ler
por exemplo a poesia: vinha uma palavra na cabeça dele: dessa palavra já puxava
uma música::
107. Heloisa: ele?
108. ((Carmen afirma com movimentos de cabeça))
109. Carmen: e aí ele já começava a cantar a música...
110. Pesquisadora: Carmen, você tem um exemplo concreto -- porque você fala assim
tinha então uma poesia – você tem uma sessão ou fragmentos de uma sessão?
111. Carmen: vem mas não vêm as falas...
112. Pesquisadora: recupera e vamos ver o que é que vem...pode não vir a fala inteira
dele...mas assim exemplos mais :: por exemplo li com eles a poesia x de José Paulo
Paes sei lá: fala isso... e quem sabe recupera um pouco mais...pra gente ter um
exemplo concretão...
113. Carmen: ta... na época das poesias... eu peguei bastante José Paulo
Paes...peguei para gostar de ler ((nome de uma coleção de literatura juvenil))
algumas coisas... tinham algumas crônicas mas que abordavam os mesmos
temas...tinha algumas poesias que – eu não lembro o livro...você tinha citado um
sem ser o José Paulo Paes... eu não me lembro – e aí: a gente sentou e eu
comecei a ler o tema que eles queriam... aí comecei a ler José Paulo Paes é:
algumas poesias e conforme vinha -- eu não lembro... eu sei que vinha pela música
do funk que tava na moda na época –
114. Leila: da popozuda...
115. Carmen: da popozuda...e aí ele vinha trazia a popozuda: levantava começava a
dançar... nisso os outros alunos alguns riam... outros Carlos olha aí:: a Carmen ta
querendo falar... Carlos pára presta atenção::
116. Heloisa: do nada ele começava a cantar ou tinha alguma palavra::
117. Carmen: a palavra chamava... é que eu não lembro uma palavra específica para
poder estar falando...
118. Leila: você diria que nesse momento dispersava ou enriquecia?
119. Carmen: dispersava... ele dispersava todo o pessoal e ele não conseguia se ater
ao conteúdo...eu via que muitas vezes:: é:: ele fazia isso porque ficava difícil para
ele enfrentar o que estava sendo lido: o tema que estava sendo abordado... outras
horas porque ele queria:: ter um tempo que ele não precisava ser cobrado...e aí eu
tava sendo cobr/cobrando dele:: uma fala uma opinião...eu falava muitas vezes: eu
parei o Carlos e disse Carlos:: aí eu ficava em silêncio até ele vir falar... aí quando
ele vinha falar comigo eu falava/ ele parava de falar e ta ta bom Carmen...e aí eu
falava é que eu quero a sua opinião... porque dentro da limitrofia ele tinha opiniões
boas... ele tinha uma noção de mundo: conhecimento de mundo muito
grande...experiências passadas assim de solidão: experiências passadas de
relacionamento... de se apaixonar por uma pessoa e não ter: coisas que os outros
muitas vezes não tiveram...
120. Leila: e ele tinha espaço pra ta trazendo isso?
121. Carmen: tinha... porque eu trazia essas poesias... eu deixava muito aberto... ele ia
conversava com um: perguntava a opinião porque dessa poesia ah: que temas
você quer escrever sobre? Porque a poesia sempre coloca alguma
coisa...algum sentimento que a gente quer passar:: e aí ele trazia essas coisas
de solidão: trazia essas coisas de dificuldade...de conviver no mundo... então isso
seria muito interessante de ele estar passando – eu colocava isso pra ele –pra gente
poder ajudar a enfrentar...
122. Heloisa: Você punha assim como uma ajuda?
123. Carmen: como uma ajuda...
124. Heloisa: ele tinha apoio psicológico também não tinha?
125. Carmen: tinha...mas o complicado do Nilo – aí é o déficit do Nilo com instituição -eles deixam as crianças: os jovens livres para escolher o que eles precisam o que
eles querem o que eles estão com vontade de ir...
126. Heloisa: han::
127. Carmen: então não tem o trabalho psicológico direto... não tem uma sessão
psicológica... tem o aPOIO psicológico...então não é trabalhado a fundo muitas
questões com eles... a psicóloga da época ela até participou muitas vezes dos
grupos... a gente leu bastante Lygia Fagundes...Lygia Bojunga...a gente leu Tchau
que coloca mil questões...
128. Heloísa: Tchau?
129. Carmen: Tchau... não sei se você conhece... é porque: ((olha para Pesquisadora))
130. Heloisa: não... ((olha para Pesquisadora))
131. ((este livro foi trabalhado numa disciplina ministrada pela pesquisadora na época
em que Carmen foi sua aluna))
132. Carmen: o Tchau: gente é fascinante o livro... é um livro de contos que a Lygia
reúne algumas dificuldades assim:: cada conto é uma... um é a dificuldade de lidar
com o outro: né: que é o Tchau:: ((busca aprovação no olhar de Pesquisadora)) o
Tchau:: Não sei... O Tchau é o da dificuldade de lidar com a inveja:
133. Pesquisadora: esse não é o Tchau...
134. Carmen: como chama esse?
135. Pesquisadora: A troca e a tarefa...
136. Carmen: A troca e a tarefa...que é de trocar assim:: ela troca né: o que ela tem de
dificuldade de lidar que é com a inveja da irmã: o ciúme da irmã pela tarefa.. que é
o escrever... então ela escreve sobre isso e alivia esse peso do coração... o outro é
a dificuldade de lidar com o econômico...um tem muito e um menino que não tem
nada ganha uma bolsa de estudos e vai estudar nessa escola onde todos
têm...então é de lidar com essas dificuldades co a frustração de não ter... de::será
que ele vai gostar de mim... porque eu não tenho...nossa : ele tem o bife que eu
sempre sonhei...ele come todo dia o bife... e eu ofereci uma pipoca numa casa que
não tem nada... uma pipoca murcha: tenho uma mãe que tem dificuldades e
tal...então eu começava a ler esses livros pra dar isso pra eles... essa oportunidade
de eles estarem falando e colocando pra fora o que eles estavam sentindo...e nesse
final de 2000 eles fizeram poesias e a gente montou um livro de poesias... e cada
um trouxe o que ele é pra ele...então uma que é toda eufórica a poesia dela é sobre
o fogo...a outra que tava pensando se ficava com um menino se namorava um
menino... é sobre um super herói que vinha salvá-la... que era o amor da vida dela...
a outra fez uma que era do beijo beijinho::que era na época a dificuldade do
relacionamento:
137. Heloisa: O Carlos chegou a fazer?
138. Carmen: fez:: fez:: a dela era sobre solidão... e uma outra sobre Deus...que Deus é
tudo que a gente tem que agradecer a Deus o que a gente tem...então a dificuldade
toda lá no Nilo: é por conta dessa/de não ter uma coisa sistemática...de não ter
horário das sessões... de não ter:: é:: cada um vai no que quer...então quando
começa a apertar o calo numa determinada área eles não vão...
139. Leila: eles não têm o compromisso...
140. Carmen: e aí a gente tem que resgatar...
141. Heloisa: difícil isso, hein?
142. Carmen: Muito difícil...aí a gente tem que resgatar e aí resgatar ao mesmo tempo
você não está deixando ele ser...
143. Heloisa: é lógico...
144. Carmen: então com o Carlos o difícil foi nesse final de ano continuar o trabalho
com ele... porque eu já tinha conseguido assim mostrar para ele o discurso dele...ver
que o discurso não estava sendo coerente com a situação: que muitas vezes os
outros pedem um discurso coerente...que tendo um discurso coerente é que ele vai
conseguir se mostrar fora...que ele vai conseguir argumentar com o pai: o que ele
quer...ele vai conseguir pedir para o pai carinho...igual muitas vezes ele colocou pra
gente num bilhete dos dias dos pais...o quanto ele queria que o pai estivesse
presente... e eu falei você vai entregar esse bilhete pro seu pai? Não.. porque
não Carlos? Ta hiper lindo seu bilhete...não: não ta bom...não ta legal... meu pai
não vai ler...meu pai não vai gostar disso... e aí eu trabalhava com eles: o gostar do
quê? Era porque estava com erros de português ou porque ele não tinha
conseguindo colocar o que ele estava conseguindo no bilhete? Aí eu abria espaço
para a gente JUNTOS estar colocando outras coisas que eles falavam muitas
vezes:: entrecortadas no discurso e que não estavam colocadas no discurso
escrito... então aos poucos eu direcionava o discurso oral: e aí direcionado o
discurso oral para o que ele queria: a finalidade: como ele conseguiria aquela
finalidade: o discurso escrito...aí ele estaria colocando ah: uma carta se faz assim:
então vamos fazer um bilhete...legal:é pro seu pai:: aí no começo de 2001 ele
veio pro Nilo solicitando MUITO e MUITO a parte pedagógica...e muito MAIS
angustiado... e isso vinha na fala... Angustiado: porque ele via que os outros
xavecavam as meninas e ele não...que é: já tinham um jeitão diferente do dele e que
ele não estava acompanhando o discurso dos outros... que achavam que ele era
bobo...
145. Heloisa: ele falava isso: não::
146. Pesquisadora: os outros do::
147. Carmen: do supletivo... e ele era...
148. Leila: era o quê?
149. Carmen: bobo... fora era bobo...
150. Heloisa: como assim: Carmen:
151. Carmen: na pra gente...mas assim: ele era um jovem; que a gente -- hoje ele tem
vinte -- pelo discurso dele você não dava catorze pra ele... catorze quinze::
152. Leila: então: assim::
153. Carmen: porque ele não tinha um discurso de vinte anos... ele não conseguia
organizar o que ele tinha de conteúdo: o que ele tinha de experiência já: pra mostrar
os vinte anos dele...
154. Leila: ( ) não: porque:: você trabalhava o discurso só: no discurso né: claro... e:
assim: a gente tomando né:: tendo já essa idéia da característica do limítrofe né:
essa coisa da falta de concentração : de estar avoado: de viver mais na imaginação
que na realidade: eu fico pensando se a gente não acaba mesmo perdendo no
discurso: quando você está trabalhando até pra estar organizando melhor esse
discurso:: porque ele está te trazendo um discurso desorganizado: você vai devolver
estruturado...fico pensando se a gente não perde de estar nessa concepção né: de
ele estar na imaginação e de não estar se colocando...porque quando você fala -você contou do discurso desorganizado e da defasagem do discurso de vinte anos –
mas assim: ele traz coisas importantes nesse discurso por mais desestruturado::
passa os conflitos com o pai:: e de::
155. Carmen: mas nessas horas que até mesmo ele não estava a fim de ouvir: eu trago
alguns assuntos quando ele entrecortava algum discurso que eu tava tendo a leitura
que eu tinha: vinham essas coisas muitas vezes... vinha dizendo que ah:: por que
que você tá agitado hoje:Carlos?ah: não to agitado: foi sei lá o que:: fiz sei lá o
que ontem... aí ele trazia outras coisas... ele fugia daquele discurso que ele tava da
dança da bundinha... do funk... e já entrava de repente no discurso da coisa que
acontecia em casa...
156. Leila: você acha que por desorganização do discurso ou por fuga mesmo do que
você tava tocando?
157. Carmen: tinha os dois...
158. Leila: por que se a gente pensar em fuga é perfeitamente normal ( )
159. Carmen: tinha os dois... tinha os dois... tinha momentos que eu via que era
tranqüilo o que eu estava conversando pra ele... mas ele queria falar de outra
coisa...que é aí que está o limítrofe né: de ele sair... ele queria falar sobre a coisa
que estava perturbando ele em casa: então ele vinha e trazia o discurso de
casa...entendeu: muitas vezes... apesar de ser fora de hora... aí a gente trabalhava
isso com ele: e com todo mundo... aí a gente aproveitava: várias vezes eu comecei
a ler a poesia e não conseguia terminar...aí a gente entrava em determinados
assuntos: por exemplo...
160. Pesquisadora: não conseguia terminar por quê? Porque o grupo todo ficava nessa
coisa de lembrar de uma palavra que lembrava outra coisa: é isso?
161. Carmen: não... por que assim: a palavra já trouxe a música: a música já trouxe
uma situação: e a gente ficava na situação...porque era o que o grupo queria
abordar...o grupo queria abordar a situação...
162. Pesquisadora: agora isso você encara como positivo ou negativo?
163. Carmen: positivo...eu acho positivo...no momento assim: eu consegui lucros..né:
eu consegui desenvolver um trabalho com eles nisso...né: eu abordava determinado
tema e quando vinha o trabalho com a poesia: que eu trazia aquele tema... eles já
conseguiam mais fortemente colocar aquele tema...eles já traziam: já discutiam
aquela poesia: pra estar colocando no trabalho ...então já vinham coisas na cabeça:
de vivências mesmo de coisas que a gente falou: de coisas que eles leram... aí a
gente afunilava e direcionava pra poesia...
164. Leila: humhum...
165. Carmen: e aí o Carlos nessa época de 2000: ele estressou completamente...e
bastante... aí um dia: ele saiu -- ele tinha uma prova no supletivo – ele saiu cedo:
eram umas duas horas... e com sempre fazia ele foi embora... e a gente percebendo
essa angústia dele... quando a gente está indo embora na estrada... a gente
encontra o Carlos andando na beira da estrada: e sozinho: e cantando e pulando
pela estrada...isso quase cinco horas...
166. Heloisa: sem o pai ele estava?
167. Carmen: sem o pai: porque ele ia embora sozinho... ele pegava três ônibus pra
chegar em casa...
168. Leila: e aí?
169. Carmen: e aí a gente viu o Carlos sozinho a gente:: no ato né: ligamos para o
Nilo:porque ele andou simplesmente uns cinco quilômetros sozinho... ligamos pro
Nilo porque a gente não conseguiu parar na estrada porque não tinha acostamento
não tinha nada...aí a gente ligou e Sandra: olha o Carlos andando sozinho na
estrada... Aí a Sandra que é a coordenadora foi::buscou o Carlos e disse que a
gente não ia conversar agora...perguntou se ele tinha dinheiro e colocou ele dentro
do ônibus para ele ir para casa como ele sempre fazia...
170. Heloisa: ele tinha prova naquele dia: né::
171. Carmen: tinha prova naquele dia...e aí no telefone eu não tinha passado da
questão financeira que ele queria juntar dinheiro: pra poder ajudar o pai que o pai
gastava muito dinheiro com ele...ela perguntou se ele foi para a casa: só que ele
não foi direto para a casa... ele foi para a casa da avó...paterna... ele ficou com
vergonha de ir para a casa... aí na casa da avó já tinham avisado para a Sandra
olha o Carlos chegou ta tudo bem...
172. Leila: posso falar uma coisinha?
173. Carmen: Claro...
174. Leila: se ele tinha essa autonomia de estar indo embora né: você acha que essa
posição foi adequada de:: foi tipo uma bronca né: não sei: do meu ponto de vista né:
vai para a casa:agora a gente não vai falar: depois a gente fala: achei... você acha
essa posição adequada?
175. Carmen: aí é que está... o diferencial do Nilo...eu sou um ponto no Nilo e o pessoal
é outro ponto...que eu to até na minha cabeça reorganizando... mas: não foi
adequado...tanto é o que aconteceu depois foi o seguinte... ele ligou e: por não ter
tido esse espaço para se colocar: ele chegou muito muito agressivo:
176. Heloisa: na casa da avó?
177. Carmen: na casa da avó... e chegou agitado... e pedindo para ser internado... aí o
pai não sabia o que fazer: acabou internado ele aqui em São Paulo: eu não sei o
nome do lugar: segundo o psicólogo do Nilo: barra pesada...
178. Pesquisadora: isso é agora... porque você falou que ele estava internado né:
179. Carmen: foi agora...mas isso foram outras coisas que aconteceram outras
internações... ele foi internado: topado: por que aí é que está a noção do limítrofe
né: esses devaneios essas coisas que a gente precisa organizar e por na real pra
ele...ele começou a fazer o que ele tem a liberdade de fazer no Nilo com a gente
que a gente leva na brincadeira e brinca com ele... ele fez de frente para uma equipe
médica de um hospital barra pesada...ele começou a dizer eu to louco: o:o: eu sou
doente o:o: e era uma brincadeira: a gente sabe que era uma brincadeira:
180. Heloisa: ele já fez com vocês?
181. Carmen: muitas vezes fez: pulava: falava e brincava ih: vou desenhar aqui: e
ficava falando sozinho... escrevendo...ele fazia... ele tinha autonomia...
182. Heloisa: ele tem esse diagnóstico desde quantos anos?
183. Carmen: ele chegou: o pai conta nos relatórios do Nilo desde os oito anos quando:
184. Heloisa: ele começou a perceber...
185. Carmen: e não foi o pai.. foi a psicóloga que/a professora da escola que
encaminhou...
186. Pesquisadora: eu estou me lembrando de uma corrente na homeopatia que diz
que o sujeito que está com uma questão emocional grave que entra num surto: ele
precisa viver o surto: porque é vivendo o surto que ele vai encontrar condições de
elaborar o que precisa ser elaborado pra voltar...mas não tem nenhum médico que
banque isso porque se deixar no surto por si: pode ser que o cara não volte mais...
O Nilo será que tem isso? Quando você fica falando que lá o cara faz o que quer na
hora que quer...quando aperta:
187. Carmen: Não tem isso:
188. Pesquisadora: não: então: será que não tem exatamente isso? O cara tem que
viver essas coisas que ele passa que ele quer:: o Carlos: ele fala ah eu to louco O
Nilo todo acolhe isso...mas ele fazer isso num outro contexto: por exemplo num
hospital psiquiátrico tradicional:: bom o cara foi dopado: foi internado e vai ficar lá sei
lá quanto tempo...será que vocês têm essa coisa de deixar aflorar isso?
189. Carmen: não... o Nilo ele peca por não ter a noção de mundo que os jovens
precisam viver.. eles se vêem numa ilha... somos nós; nós acolhemos: somos nós:
nós...não abre a possibilidade muitas vezes pra eles: de que existe um mundo aí e
que o mundo tem várias coisas pra ser/várias situações... várias coisas que eles
precisam viver...então no Nilo pode...mas se sabe que lá fora têm outras
experiências a serem vividas...e quando a gente muitas vezes recorta algumas
coisas pra eles: a gente é podada...no trabalho lá dentro...
190. Heloisa: Qual o objetivo do Nilo então?
191. Carmen: é difícil ... acho que nem o Nilo sabe qual é o objetivo dele...
192. Leila: e você num grupo: onde você intervém? O que você pretende nisso? Eles
estão lá: você pensa em organizar a fala: o discurso: como?
193. Carmen: então: é: com eles eu dou experiências para eles... situações variadas
assim discursivas... então: a gente escreve cartas quando eles estão trazendo
alguma agonia tipo ah: eu não sei minha mãe mora longe eu preciso falar que ta
tudo jóia... eu to com saudade...Ah: então como a gente podia matar essa
saudade? Que tal uma carta assim assim assim...você não lembra que em
determinado lugar a gente viu uma carta que sei lá quem pediu isso? Olha
quantas cartas a gente tem aqui...vamos fazer uma carta então? Então a gente
faz a carta...uma coisa que foi muito legal que a gente fez com eles a gente
trabalhou muito no ano passado: foi com contos...contos de fada: os contos
fantásticos... e aí eu conseguia trabalhar com eles assim bastante essa questão do
devanear...era uma vez tal...muitas vezes são situações que podem acontecer...
muitas vezes não... então eu trazia situações do Perrault muitas vezes porque o
Perrault teve muita coisa do fiel né: do chapeuzinho ser comida pelo lobo... então eu
dava pra eles esse contexto todo... que na verdade a chapeuzinho mesmo foi
comida pelo lobo... e que se no dia a dia isso de repente acontece também né: você
pode sair por aí e ser assaltada e estuprada por aí...então é: não esse exemplo mas
eu já dei uns exemplos do dia a dia para eles... do legal e do que não/de repente
fora não ia ser tão bom... então eu trabalhava bastante isso... ah: vamos ler o
jornal...revistas: é vamos ver poesias...
194. Leila: você acha que seu trabalho ficava bem marcado em leitura e escrita?
195. Carmen: ((ri)) ficava... ficava sim... tanto é que o meu papel ali foi confundido com
o pedagógico...não tinha claro o que eu fazia mas sabiam que eu trabalhava com a
escrita com a linguagem escrita e para eles era o pedagógico...
196. Pesquisadora: Eu to aqui pensando... você com o pedagógico...
197. Carmen: ficou demarcada a parte da escritura/do trabalho com a escrita...
198. Pesquisadora: hum...
199. Carmen: não ficou demarcado como eu via a escrita como eu abordava o discurso
escrito: como e abordava o discurso oral: isso não ficou visível para eles... essa
noção do erro que o pedagógico tem... do ter que escrever certo...
200. Pesquisadora: e isso não era/ não fazia parte do seu trabalho: de escrever certo:
de visar o erro?
201. Carmen: do meu trabalho ((nega com a cabeça)) pra mim ficou demarcada...pra
equipe não...isso criou até uns atritos lá...nas reuniões: de eu falar eu não vou
corrigir uma carta: se ela escreveu casa com z não tem porque eu corrigir
agora... eu vou estar reforçando mais ainda que/ você não sabe: você não
consegue: oh: ta vendo você presta atenção que casa é com s: porque aí vai
ser importante vai esquecer escrevendo casa com s tudo o que você queria
dizer sobre a casa...isso para eles não tinha importância...
202. Heloisa: eles não vêem isso:
203. Pesquisadora: e era isso que você:
204. Carmen: e era isso que eu via... o importante era ele dizer a casa foi pintada era
azul era bonita: eu to sentindo falta da minha casa e não escrever casa com s ou
z...e era mais ou menos isso... e o Carlos ficou uns dois dias na clínica e aí o pai
veio pedir socorro para o Nilo dizendo o que aconteceu... e nessa época a Cecília
ligou para ele e falou olha não vamos nos responsabilizar...tira o Carlos dessa
clínica já que essa clínica não é o que a gente quer...dopar o menino...não precisa
disso...
205. Heloisa: quem não quer?
206. Carmen: a gente como instituição não quer... e aí o Carlos saiu e não tava em
condições emocionais e físicas para estar indo para casa...ele estava totalmente
dopado...então ele veio ao Nilo: pra ficar na residência... que é uma casa de uma
família de um dos alunos do Nilo que acolhe uma meia dúzia de alunos que os pais
moram um no Ceará: um aqui em Pinda: o outro no Rio; o outro e Ribeirão Preto: e
eles não podem estar indo e voltando pra casa e não tem um ponto aqui em São
Paulo ali perto onde eles ficarem... então essa família é ma família queda
alimentação: que dá o vínculo afetivo todo...então o Carlos ficou lá...parou o
supletivo...
207. Heloisa: por que não com o pai e com o avô e sim na residência?
208. Carmen: ele não estava em condições emocionais...
209. Heloisa: o pai?
210. Carmen: o Carlos...porque ele que pediu para ser internado...o pai que que eu
faço?levo não levo? Angustiado: olha o que aconteceu com o Carlos...e aí ele
chegou dopado e foi para essa casa...nessa semana a mãe veio -- a madrasta no
caso -- e o pai... essa a madrasta teve um menininho que não deve ter nem um
ano... e ela começou a contar:chorar pro psicólogo: pro pessoal do Nilo: que ela
estava angustiada pensando até em se separar do pai::porque não sabe o que fazer
com o Carlos... o Carlos tava muito ansioso...muito agitado... que ela não sabe se
porque a atenção de uma hora para outra que era só do Carlos: foi direto pro outro
menino que nasceu... que eles não colocaram nada dessa questão de falar: de ter
um espaço: ele tinha um mínimo de espaço e tudo o que ele fazia não tava certo:
tudo o que ele fazia desenhar? pra quê? Que que você vai ser desenhando?fazer
curso de computação pra quê?Você vai fazer computação gráfica pra quê? Então
ele era muito:: é:: tinha toda essa dificuldade: essa falta de vínculo: de espaço
naquela casa e aí já tiraram tudo... e a mãe falou tudo isso: tava agoniada e tal:e o
Nilo conversou: falou que era importante ele estar passando por uma avaliação
psicológica: de repente estar fazendo um trabalho sistemático psicológico...e estar
pensando de repente em alguma coisa na homeopatia...ele procurou um psiquiatra
nessa semana e ele avaliou e disse que o Carlos não tem muitos comprometimentos
psiquiátricos...e não tem nada assim...mas achou interessante ele estar procurando
por esses comprometimentos psicológicos...e aí procurar de repente uma
psicanálise para ele...
211. Leila: Você fala que não tem um compromisso dos pacientes nas sessões...como
você vê a evolução dos pacientes? Seria uma oficina ou acaba sendo um grupo de
terapia mesmo...
212. Carmen: é difícil porque muitas vezes eles não têm objetivo: então fica difícil ver...
eles na equipe Nilo...eu não ... eu tenho meu objetivo... pra mim é eles conseguirem
se colocar em várias situações... se colocar bem...é: conseguir sacar que ali eu vou
usar determinado discurso pra conseguir o que eu quero...para aquela pessoa eu
não posso usar aquele mesmo discurso para conseguir o que eu quero...eu não
posso chegar falando de abobrinha para conseguir o chuchu...eu tenho que chegar
pelo menos falando de legumes e aí de repente chegar no chuchu...
213. Leila: dá um exemplo...
214. Carmen: por exemplo nesse caso dele... se ele quer dizer que ele está triste por
causa do pai que o pai não dá atenção pra ele... vamos de repente chegar e falar de
tristeza... aproveita o tema da poesia que fala de tristeza ou chega contando de
repente que eu estou triste...
215. Heloisa: e ele normalmente vinha falando de:
216. Carmen: ah: eu vi que o Xuxa nadou ontem competiu ganhou o prêmio e depois
e::: você viu que ontem meu pai chegou em casa e disse que não podia falar comigo
e levar no parque que ele tinha prometido...
217. Heloisa: e você?
218. Carmen: eu pensei no dia dos pais eu só ficava olhando...
219. Heloisa: o que você falava?
220. Carmen: o que você quer mesmo falar: Carlos? O que você ta me contando?
Você quer falar sobre o seu pai? O que está passando na sua cabeça? Aí ele
vinha e trazia essa situação de casa: que o pai brigou com ele: um dia ele veio com
uma fala que a residência era uma droga...que ele tava de saco cheio de ir para a
residência...e que daí o Antunes vivia brigando na residência -- que é um dos caras
da residência – aí eu disse pára...calma o que você está querendo dizer? por
que o Antunes brigou com você?Você sabe que hoje me disseram para não usar
um dos banheiros que estava ruim...mas eu acabei usando o banheiro e aí entupiu:
o Antunes brigou comigo: aí eu fui lavar a mão e bati na pia: e aí a pia quebrou: e
você quer que o Antunes não brigue com você? Você ta vendo que ele ta no
direito de brigar com você? porque ele falou isso e isso... então eu punha num
contexto:punha o porque ali do que ele estava sendo questionado e não fora...
221. Pesquisadora: já confundi tudo o que vocês estão falando... vamos pegar o
exemplo do Xuxa... ele chega falando do Xuxa...o Xuxa nadou ontem:e aí então:
sabe meu pai: aí ele introduz o pai que é o motivo de ele estar chateado...só que ele
introduz o pai: na verdade o que eu entendi do seu exemplo: ele não conseguiu
dizer estou chateado com meu pai.... ele contou um fato... ele relatou um fato...então
os exemplos que você me deu me fazem a seguinte imagem na cabeça...ele vem
relatando fatos e aí você pergunta por quê? Ele não consegue elaborar exatamente
o porquê...logo de cara... ele não conseguiu dizer: porque o Antunes está pegando
muito no meu pé...ele conta o fato...ontem eu fui lavar a mão:: e a pia quebrou:e
depois o Antunes: então se você juntar: colocar num liquidificador e fazer um
mix...ali está a cena que fez o Antunes ficar bravo com ele... mas ele não conseguiu
dizer na forma já de argumentar pra você porque o Antunes está bravo...ele tem que
retomar o fato todo... é isso? E aí o seu papel::
222. Carmen: mas eu que tenho que ajudar ele a retomar:: porque ele não consegue
retomar...
223. Pesquisadora: você tem que ajudá-lo a retomar O fato?
224. Carmen: o fato...muitas vezes ele traz um fato...mas não ta direcionado com o fato
em si...não ta relacionado...
225. Leila:ele usa de outros acontecimentos::
226. Pesquisadora: pelo que está me dizendo: ele começa por um assunto que não tem
nada a ver::mas o seguinte pelo menos os personagens são os personagens que
são::
227. Carmen: os seguintes ou o outro::
228. Pesquisadora: aí ele vem com o relato... é isso?
229. Carmen: aí ele vem com o relato... é isso... então eu organizo...
230. Leila: dá mais uma impressão da necessidade dessa organização...que tem uma
desorganização: que ele tem essa intenção do que ele quer dizer...parece...mas
quando ele fala : ele não consegue ligar a causa e efeito...( )
231. Carmen: ele até sabe...eu não entendi o que você falou...
232. Leila: é:: ele junta umas coisas e você vai auxiliando a organizar...então me parece
mais a necessidade de estar organizando tudo do que um devaneio...do que ele
estar só devaneando...
233. Heloisa: é::
234. Pesquisadora: então não é uma questão de devaneio... não é uma coisa que o
limítrofe então: ele está sempre no imaginário: ou sempre fora da realidade... ele
não está conseguindo é se colocar numa situação naquilo que a situação está
pedindo... a situação está pedindo argumente...e ele está relatando... é isso você
acha?
235. Carmen: algumas vezes sim outras não...
236. Pesquisadora: outras é o devaneio mesmo::
237. Carmen: outras ele:: ele inventa uma situação mesmo...
238. Heloisa: difícil saber discernir isso né: Carmen::
239. Carmen: saber a diferença...muito difícil...no começo eu penei bastante com eles
porque eu não tinha essa experiência até saber um pouquinho do contexto de vida
de cada um... quando se tem o contexto dele é mais fácil entender... aí ele parou o
supletivo... e começou a fazer trabalho nessa clínica com esse psiquiatra: ele pediu
relatório nosso::pediu várias coisas do que dá pra fazer...aí o Carlos iria continuar no
Nilo e tendo esse apoio...
240. Leila: desse psiquiatra?
241. Carmen:isso desse psiquiatra e da psicóloga ou psicólogo que ele encaminhou...é:
o que aconteceu é que o Carlos fez isso...passou um tempo com a gente no Nilo:
indo sempre e desencanou do supletivo...o que aconteceu é que o pai achou que o
supletivo::
242. Leila: era importante::
243. Carmen: e ele continuou com as mesmas coisas e voltou para o supletivo... e ele
voltou com o mesmo apoio e voltou para o supletivo...o pai colocou na cabeça do
Carlos a importância do supletivo e pro Carlos ficou importante o supletivo: até para
adquirir: essa permissão em casa de mostrar olha como sou capaz... eu consigo...
porque pro pai era muito importante mesmo...atualmente não sei se o Carlos
continua no supletivo cursando ou não...porque o médico esse psiquiatra pediu para
o Carlos estar internado por algum tempo para ele ter alguns dados mais fiéis do
Carlos...
244. Heloisa: com que diagnóstico eles internam?
245. Carmen: não sei... então o que a gente sabe é que ele está internado: pra ele ter
mais dados mais coisas: e por enquanto eu suponho que ele esteja: pausado... e
nem largar o serviço que é uma coisa que a gente falou por pai...
5ª EXPOSIÇÃO DO GRUPO DE PESQUISA - 28 de novembro de 2001.
Este foi o último encontro do grupo de pesquisa. Nesse encontro, apenas Carmen,
Heloisa e Leila compareceram como no anterior. A exposição ficou por conta de Heloísa
que apresentou seu caso.
Heloisa foi a única do grupo que trouxe material previamente elaborado para a exposição
e o leu durante todo o encontro, mesmo sob protestos das colegas que lhe pediam para
não ler. Heloisa insistiu na leitura, dizendo ter muitos detalhes dos quais não queria
esquecer. Foram poucos os momentos em que dispensou a leitura. Nesses, recorria à
memória para esclarecer um ou outro aspecto do trabalho realizado.
1. Heloisa: eu escolhi esse caso: eu estou atendendo há três meses exatamente...na
realidade foram realizadas onze terapias e escolhi esse caso porque me chama
muito a atenção... ele está em processo terapêutico ainda... não dei alta para ela
ainda nem pretendo dar... eu até tinha comentado que eu não tinha nenhuma
terapia que eu tivesse acabado né:: então o nome dela é Jussara e foi
encaminhada pelo dr. Gustavo Mendes que é cirurgião buco-maxila... Ela tem
trinta e quatro anos e é professora, é casada há oito anos e trabalha nas redes
pública e privada de educação... a Jussara chegou no meu consultório em julho de
2001 encaminhada pelo dr. Gustavo e como a clínica ia entrar em férias em julho:
eu marquei a avaliação só em agosto... então fiquei vinte dias sem vê-la... aí a
Jussara chegou em agosto no consultório com queixa de dor de cabeça:
principalmente na região das têmporas... dificuldades de abrir a boca e de
mastigar queixando-se muito que nas horas das refeições sentia vergonha de
comer ao lado dos outros: que sua alimentação estava ficando ruidosa... nesse
momento – eu to lendo porque eu transcrevi tudo e tem muito detalhezinho: se não
eu perco – nesse momento em que ela falou pra mim que ela tinha vergonha de
comer em público: de comer na frente do marido: ela começou a chorar... ela
começou a ficar vermelha e as lágrimas saíam dos olhos dela... era um choro
silencioso... eu esperei ela parar de chorar e fiquei quieta... quando ela parou de
chorar ela falou exatamente isso: que ela não agüentava mais viver assim: com
essas dores horríveis: com essa vergonha de comer na frente dos outros... que
nem quando ela tentou emagrecer num regime ela perdeu tantos quilos quanto
agora... aí eu perguntei quantos quilos você emagreceu? Ela: três quilos e
meio... como ela trabalha o dia inteiro: ela come no refeitório e como ela estava
com muita vergonha de comer na frente dos outros: ela começou a só se alimentar
de sanduíche... daí eu perguntei para ela como ela conseguiu perder tantos quilos
em ta pouco tempo... aí ela falou assim: mas não é tão pouco tempo: são dois
meses...aí eu falei: então demorou muito para você procurar uma fono... aí ela
veio: não... você é a terceira fonoaudióloga que eu faço avaliação... terceira? Ela
falou: é... falei: na primeira você fez o quê? Na primeira eu fiz
avaliação...demorou um mês e meio... na segunda ela fez avaliação em duas
sessões e eu fiquei mais um mês com aquela fono... aí eu perguntei: por que
você não deu continuidade? Não dei continuidade porque não me sentia à
vontade... eu falei: à vontade como? Sei lá...aliás só me tocava o tempo
todo...abre e fecha: engole abre de novo mastiga... sei lá me sentia muito
invadida... eu não gosto disso... tudo bem... quando expliquei para ela que apesar
de não ter feito avaliação nela ainda... a terapia no caso dela ia consistir em
exercícios mio-funcionais: que no seu caso a terapia ia consistir basicamente da
mesma forma... é mas eu preciso de uma fono... então tudo bem... eu marquei
primeiro uma avaliação: e a gente fez a avaliação... na avaliação: é: -- vou falar a
conclusão da avaliação: tá –
2. Carmen: isso em agosto?
3. Heloisa: é em agosto... na avaliação o resultado é : má oclusão: ela tem classe
dois: o molar superior se encontra de topo com o molar inferior: o canino superior
também se encontra à frente do canino inferior... toda a arcada superior está além
da relação normal: a mandíbula está em posição distal da maxila... desgaste
dental do lado esquerdo: principalmente do primeiro molar maxilar esquerdo e dos
primeiros molares mandibulares... a dentina do primeiro molar maxilar está
totalmente exposta... há um desgaste tão grande que está totalmente exposta:
mas ela não tem sensibilidade... os côndilos mandibulares estão simétricos... na
face frontal e de perfil a postura facial em repouso é ligeiramente/ tem ligeiro
desnivelamento de simetria das rugas da testa: do arqueamento da sobrancelha e
do sulco labial... do lado esquerdo: ao levantar as sobrancelhas: a sobrancelha
dela não levanta e aqui ((aponta a ruga da testa)) levanta... é totalmente
assimétrica... a mandíbula tem desvio lateral esquerdo mínimo e na postura
mandibular em repouso... observação: eu corrigi passivamente com a mão o
desvio da paciente e daí ela sente muita dor... ela começou a lacrimejar... pedi
para ela abrir eu fui corrigir porque ela tem desvio para o lado esquerdo: quando
eu fui corrigir ela começa a chorar... na depressão e na abertura da boca a
paciente não consegue ter máxima abertura estalando ao tentar abrir... é um
estalo muito muito forte... ao apalpar as zonas temporais e dos masseteres
encontra-se uma tensão muito grande do lado esquerdo: sendo que a região mais
ativa dos masseteres na contração está situada próxima do ângulo mandibular -então quando ela contrai: do lado esquerdo aqui: ((mostra nela o lugar)) parece
uma parede... é uma coisa impressionante: é muito muito duro --- as outras
funções avaliadas estão em perfeitas condições: os lábios a língua palato duro e
palato mole estão em perfeitas condições... ao introduzir um pedaço de cenoura
na boca dela a mesma sente muita dor ao mastigar e com muito ruído... já quando
se introduz um pedaço de bolo: também a mesma coisa: muito ruído e muita dor...
ela na estava conseguindo comer absolutamente nada...
4. Leila: isso foi na avaliação que você fez?
5. Heloisa: é... isso durou quatro sessões...
6. Leila: não foi numa que já:
7. Heloisa: não: não: nem dava porque ela abria a boca dela já tinha que parar e
massagear e fechar de novo... ela não tava nem falando na primeira terapia... não
tava nem conseguindo falar... observação: faz uma deslocação brusca da ATM na
mastigação... observei que os músculos da mastigação entraram em espasmos:
temporal masseter e pterigoideu medial da abertura ao encerramento da
mandíbula... eles entraram em espasmos uma coisa a olho nu absurda... a
avaliação foi realizada em quatro sessões sendo que ela comparecia uma semana
e na outra faltava alegando que tinha reuniões na escola... – eu atendia ela no
sábado e ela tinha reuniões aos sábados: então ela vinha numa e faltava noutra...
8. Pesquisadora: ela tava desde quando com você?
9. Heloisa: desde agosto... terminada a avaliação da paciente Jussara: levei a
avaliação para o dr. Gustavo e na próxima sessão Jussara voltou... e disse que
queria dar continuidade ao tratamento... agora é setembro e outubro: ia começar o
processo terapêutico... o início da sessão Jussara chega com a ressonância
magnética nas mãos e com minha avaliação...querendo que lhe explicasse minha
avaliação e todos os nomes estranhos... com a avaliação nas mãos comecei a
explicar à Jussara e quando ela chega:: e quando ela chegou na explicação do
desvio esquerdo: ela começou a chorar de novo... – a minha sala tem uma
bancada e um espelho e duas cadeirinhas pequenininhas – então eu tava
começando o desvio como que é e nisso ela se olha de frente para o espelho e
começa a chorar novamente... chora chora chora chora::
10. Carmen: ela não falou o que pegou? Ela começa a chorar e tal:
11. Heloisa: exatamente... ela começa a chorar... é um choro que ela começa a ficar
vermelha e depois as lágrimas saem... não é ((mímica de um choro compulsivo)) é
como se ela estivesse conversando com você e as lágrimas saindo... por um
instante eu pensei será que ela estar com dor agora? Mas eu não tinha tocado
nela... só tinha explicado o desvio pra ela... até aí tudo bem... esperei que ela se
acalmasse e perguntei porque ela estava chorando e não respondia:: continuava
chorando... saí da sala: peguei um pouco de água e assim que cheguei ela pediu
desculpas: disse que ia embora que ela era muito sensível... então : na semana
seguinte Jussara não compareceu à sessão:: eu já estava esperando... no outro
era feriado que era doze de outubro também ela não compareceu... já na outra
semana Jussara chega com quarenta minutos de antecedência... eu sei que eu
passo pela sala de espera para chamar outro paciente; ela já está lá... abriu um
sorriso para mim e diz podemos ir? Eu falei não Jussara seu horário é às onze:
são 10:20h... ah ta bom... vou esperar...Ela estava com uma articulação boa... ao
entrar na sala : já chegou pedindo desculpas da semana passada... eu sou muito
sensível... choro por qualquer coisa: e começou a falar desde TPM, desde
sensibilidade: que ela não pode ver um filme e começa a relatar tudo que era
questão de sensibilidade... ta bom... nisso o dr. André que é dentista dela liga no
consultório e a gente tinha conversado duas semanas antes que a gente ia por
uma placa de relaxamento pra ela conseguir mastigar: conseguir articular que
enquanto isso/ enquanto eu não começasse a terapia ela precisava da placa... eu
ligo para o dr. André e aí ele entra na minha sala: a gente vai pra sala dele pra
moldar ela: pra fazer a placa de silicone e acetato...70% silicone e 30% acetato...
aí fizemos a placa: explicamos como ela ia funcionar com a placa: aí acabou a
sessão porque a sessão é de 30 min...
12. Carmen: nossa::
13. Heloisa: é tudo muito rápido... fim da sessão...
14. Leila: e não dava para falar mais nada?
15. Heloisa: não dava porque ela estava com molde na sala do dr. André: na sala do
dentista... não tinha tempo de voltar para minha sala porque eu já tinha tempo de
voltar para minha sala porque eu já tinha o paciente das 11:40h.... aí ta bom...
16. Carmen: esse que pediu o encaminhamento não trabalha com você?
17. Heloisa: exatamente: é só buco-maxila... exatamente... na semana seguinte a
placa dela já estava pronta e a terapia se resumiu a explicações de como é que
ela ia usar: pra como que ela ia usar: quando ela ia tirar: que ela ia mastigar de um
lado e do outro ... ótimo... na OUTRA sessão: na sessão seguinte Jussara chega
com CINQUENTA minutos antecipada... ao entrar na sala ela se senta na minha
cadeira que fica de frente pra mesa : ou seja: em todas as avaliações ela fica na
bancada: ela sabia que eu faço exercício de frente para o espelho e onde que ela
senta? De frente pra mim...
18. Leila: na sua cadeira?
19. Heloisa: não: a gente tem duas cadeiras: é como se fosse aqui Leila: tem uma
cadeira aqui e uma ali...
20. Leila: é que você tinha falado que ela sentou na sua cadeira... ela falou minha
cadeira... falou né?
21. Carmen: é: ela falou: mas deu pra entender...
22. Heloisa: bom aí né:: bom: era só o que faltava: imagina ela sentar na minha
cadeira... isso é muito importante... não: ela sentou na cadeira dela... é: que é pra
fazer a entrevista né: mas pra terapia em si era a outra: na bancada... ela chegou
e já sentou direto... e diz exatamente isso... ela senta – eu vou dramatizar --((Heloisa movimenta-se pela sala como a paciente o fez na sessão)) ela sentou:
botou as duas mãos ((coloca as mãos sobre a mesa)) eu vim hoje aqui pra gente
conversar... quer dizer...conversar...vamos conversar... então ta bom... com uma
cara que ela esperava alguma coisa de mim... meu Deus... eu já estava pronta
pros exercícios né:
23. ((risos de Leila e Carmen))
24. Heloísa: já tava né:: hoje eu vou por a mão na massa: né:: fala né:: estamos aqui
pra conversar... aí eu falei vamos lá...
25. Pesquisadora: desculpa: espera... ela falou vim hoje aqui para conversar... aí você
falou conversar?
26. Heloísa: não... conversar... vamos lá... nesse dia ela me contou que tinha
passado muito nervoso naquela semana... devido a problemas que estava
passando na escola e que tinha notado que estava acordando com a mandíbula
pesada... com um pouco de dor... que ela acordava com a mandíbula lateralizada
para o lado direito e com muito peso e que não conseguia nem tomar o café da
manhã... nisso ela começa a falar sem parar sobre toda semana que tinha
passado... o nervosismo o estresse trânsito as crianças na escola:: a diretora: a
nota que ela deu para um aluno:: um aluno que é deficiente mental que chegou na
escola: que ela não estava conseguindo lidar com essas questões:: o marido que
não tava conseguindo conversar com ela: que ela tava tão nervosa que não tava
conseguindo conversar direito... ela simplesmente derrubou tudo em mim... era
uma coisa atrás da outra... era um absurdo: era muito rápido: ela cuspia: e eu não
conseguia nem tempo de respirar e voltar/ lógico que eu nem tinha que devolver
nada pra ela: mas pelo menos um é... como eu não tinha nem tempo de falar
isso... ela ia enganchando uma coisa atrás da outra...
27. Leila: Quantos anos ela tem?
28. Heloísa: 32.. é uma professora... ela é muito inteligente...não dava pra eu falar: ela
falava e gesticulava o tempo todo...
29. Carmen: conta uma coisa pra mim... das outras sessões depois que você fez um
trabalho... ela já entrava e sentava na cadeira?
30. Heloísa: não... eu abria a porta e dizia pode sentar aqui... tem do lado direito e do
lado esquerdo e ela sabia que do lado direito era para fazer a avaliação...
31. Carmen: e você falava pode sentar aqui...
32. Heloisa: isso: pode sentar aqui: porque ela sabia que a gente ainda tava no
processo de avaliação...
33. Carmen: ela já entrava e ficava quieta:
34. Heloisa: sentava e fazia a avaliação...
35. Carmen: e dessa vez você não falou nada:
36. Heloisa: não: eu abri a porta: no que eu abro a porta ela passa por trás de mim e
senta na cadeira...
37. Carmen: entendi...perfeito...
38. Pesquisadora: na outra cadeira...
39. Heloisa: na outra cadeira de frente para mim... aí na semana seguinte Jussara
chegou atrasada e perde o horário... era quinze para meio dia:: eu:
40. Carmen: como que fechou:: aquela que ela: soltou tudo::
41. Heloisa: ela não parava de falar e gesticular gesticular...nisso toca o telefone:
graças a Deus: aí a secretária Heloisa você está atrasada quinze minutos: eu tava
a quarenta e cinco minutos com ela...
42. ((risos de Carmen))
43. Leila: você não fechou nada...deixou ela falar e ela foi embora...
44. Heloisa: eu não falava nada: Leila...eu fiquei empactada...eu não tava esperando
nada porque ela não dava nem tempo de eu falar assim ah: claro: não: nada...
era uma coisa atrás da outra...nisso que toca o telefone: eu falei fala para ela que
eu já estou indo: que eu vou me atrasar cinco minutos: ela pega -- isso é
importante hein – nossa: eu to te atrasando hoje né: semana que vem a gente
continua... pegou a bolsa e foi embora...
45. Leila: você não falou nada?
46. Heloisa: não ... eu fiquei assim ((faz cara de pasma))
47. Leila: agora vem cá: deixa eu te falar uma coisa... quando ela foi te procurar:
dizendo que estava com vergonha perante o marido: vergonha de comer:: de estar
sentindo essa dor: que quando acorda está com a mandíbula pesada e tal: você
falou com ela [gravador caiu] na história mesmo dela?
48. Heloisa: esse dia era o espaço pra eu conversar sobre isso... eu já tinha
planejado... eu ia fazer os exercícios: acabar de fazer a avaliação que o dr. André
havia me pedido por causa da placa: eu ia acabar de fazer isso e depois eu ia
começar a destrinchar a história da vida dela: porque a articulação têmporo
madibular tem muito a ver com o psicológico...
49. Leila: então... por isso que eu to perguntando...
50. Heloisa: muito: é: eu ia começar... não deu tempo: ela começou a jogar ...mas ela
jogou da semana passada e não da vida dela...
51. Leila: você achou melhor fazer esse levantamento no meio e não no início quando:
antes de começar a avaliar...
52. Heloisa: isso:
53. Leila: você achou melhor:
54. Heloisa: eu achei...que eu já me dei mal com uma assim... aí eu falei não... na
semana seguinte já eram dez para o meio dia : eu tava indo pegar outro paciente:
ela tava chegando na porta do consultório... nossa eu to atrasada né: aí:: cheguei
atrasada: perdi o horário né? eu falei é: Jussara... perdeu o horário... não tem
problema: é até melhor... hoje eu to muito sensível...pegou a bolsa dela e foi
embora de novo...
55. Leila: piração é: ((risos))
56. Heloisa: e a minha cabeça? E a minha cabeça? E eu: claro... ela mora vinte
minutos do consultório: ela vem de ônibus quando o marido dela não dá pra
trazer... não é uma coisa/ é melhor né: porque hoje eu to muito sensível... não deu
tempo nem de eu falar espera: é capaz que eu te atenda... nada... neste
momento pensei em falar será que ela está me vendo como analista? aí eu fiquei
quieta – eu até anotei aqui –
57. Leila: pára de ler...pára de ler...
58. Heloisa: parar de ler? Não... se não eu me perco... não dá: é muito detalhezinho...
na semana seguinte Jussara chega pontualmente às onze horas... então vamos
começar com os né: entra na sala: senta-se na cadeira de frente para a mesa
novamente e não na bancada: e começa a falar porque ela achou que estava tão
sensível na semana passada... eu perguntei: Jussara o que aconteceu na
semana passada... porque você achou que estava tão sensível? ai:: e
ficou/pôs a mão no coração ((Heloisa imita os gestos da paciente)) ai:: e pôs a
mão no coração... e eu falo meu Deus o que que eu faço? Heloisa: eu tava tão
sensível que eu acho que eu tava a ponto de nem conseguir falar com
você...Heloisa: eu ia chegar aqui e a gente não ia conseguir conversar... eu peguei
o gancho...então Jussara: mas o caso é que você ia estar tão sensível que
você não ia precisar falar: a gente ia conversar sobre outras coisas e eu ia
conversar com você: você não ia precisar falar nada porque eu ia acabar de
fazer o que o dr. André me pediu na semana passada...é: mas eu ia querer
conversar... eu falei mas agora Jussara a gente tem que entender que seu
espaço aqui é pra/ Eu tenho que reabilitar sua ATM... comecei a explicar:
peguei a ressonância de novo: peguei a avaliação: comecei a explicar pra ver e
ela olhava pra mim: não... de tudo isso eu já sei: eu já sei: você já me explicou...
acho que faz um mês atrás né Helô: eu já entendi... tanto é que eu te expliquei
do desvio e até agora você não me contou porque você chorou por causa do
desvio... por causa do meu pai...seu pai: é: meu pai... seu pai: é: desvio: meu
pai: -- ai gente: foi:: não gosto nem:: -- seu pai: é: sabe o que que é Helô: quando
a gente era pequena a gente tinha uma fazenda... tinha gado: cavalo: lá em
Fernandópolis... que é longe né: muito longe... e eu caí do cavalo e meu pai não
gostou... -- exatamente como eu to te contando... eu to até: -- meu pai não
gostou... por que seu pai não gostou? é: porque falava que eu não ia ser uma
boa amazona: e que eu tinha que aprender: que o meu futuro era ser uma
amazona... e ele me bateu aquele dia... na verdade ele me deu um soco... ele te
deu um soco: quantos anos você tinha Jussara? Eu acho que eu tinha uns oito
anos...falei: oito anos? é: por isso que eu comecei a olhar para o espelho aquele
dia e comecei a chorar... se não fosse ele eu não estaria assim hoje... falei não...
na época você teve algum problema? Ela falou não... quanto tempo você está
assim Jussara? Pelo que eu vendo encaminhado -- eu não falei isso -- por que o
dr. Gustavo disse que ela tava com essa queixa há oito meses... só que pela
ressonância: pelo côndilo ela está há três anos gente: fazendo as contas pela
eletromiografia: ela ta há três anos tendo desgaste ela ta com o côndilo: o líquido
sinuvial não está nem mais funcionando...aí tudo bem... então Jussara naquela
época...é: eu não sei se foi por causa disso...não: mas eu não ia estar assim...
aí ela se levantou: ficou na frente do espelho e disse: olha o meu rosto: olha como
ele está... -- e não dá pra ver gente... só fazendo uma avaliação mesmo que dá -eu disse não Jussara... se você olhar seu rosto você vai ver que não tem
nada... falei vamos supor que você soubesse eu era isso que aconteceu antes...
você teria vindo antes: você concorda? Se você olhar/você se olha no espelho
todo dia: você ta vendo alguma assimetria? não: não to... falei acontece que
quando eu te falei do desvio aquele dia: isso te pegou...
59. Carmen: e quando você falou que não deu para perceber como ela ficou?
60. Heloisa: ficou bem...voltou/olhou: olhamos para frente...
61. Carmen: então não dá para perceber?
62. Heloisa: meus olhos dá: mas qualquer um não dá...
63. Leila: por que não dá?
64. Heloisa: porque eu fiz a avaliação... porque olhando ela de frente não dá pra
perceber...
65. Leila: olhando de frente não dá...
66. Heloisa: não: não dá pra ver... é porque você vê desgaste: você vê má oclusão: eu
só comentei o desvio porque estava na avaliação... não falei olha você está com
um desvio esquerdo aqui... era só a avaliação ... ela foi levar a avaliação para o
dr. André e perguntou que que é esses nomes estranhos aqui: me explica...
comecei a explicar... o desvio aqui... não sei o quê... e no desvio ela começou a
chorar... aí ela ficou de frente para o espelho e sentou na cadeira de novo: sem eu
pedir nada... e a gente tem duas cadeiras na bancada e ela voltou de novo... ela
senta e fala assim...sabe porque eu também estou sensível Helô: porque o
próximo feriado está chegando do primeiro de novembro: e minha mãe me ligou e
perguntou se eu e o Miguel meu marido a gente ia pra lá em Fernandópolis... só
que nisso minha mãe pôs o treco no telefone...pôs quem Jussara? É: o treco:
meu pai: seu pai: o treco? Eu não queria falar com o treco e acabei falando e me
sentindo um nada... sei lá: não queria falar com ele... se ele não sabe conversar: é
um ignorante... não se interessa por nada: fiquei nervosa: fiquei sensível e eu não
quero falar com ele... não quero ir para lá... aí eu falei: treco? Eu não entendi o
que você quis dizer com treco... treco: meu pai... é: meu pai.. aquela coisa
poderosa: aquela pessoa mais egocêntrica do mundo...antes disso quando ela
falou aquela pessoa mais egocêntrica do mundo: ela começa a chorar de
novo...chora chora chora e começa a falar que não queria ter falado com ele... eu
não queria ter falado com ele: faz quatro meses que eu não falo com ele: não sei
por que minha mãe pôs ele no telefone: ela sabe que me faz mal: que eu não me
sinto bem quando eu falo com ele... o que que ele me traz de benefício? eu falei
se ela perguntava pra mim... ele não me traz nada de benefício... ele não me
acrescenta em nada... ela não gosta do Miguel: ele fala que ele é um inútil: ele fala
que eu poderia ter sido outra coisa na minha vida... não uma professora: eu não
sei mais o que eu faço da minha vida: eu não gosto do treco... do treco... ele sabe
disso... eu não sei porque ele me deixa nervosa: olha o estado que eu estou... aí
começa/ e ela chora e sai as lágrimas... é um choro silen/calado durante uns cinco
minutos... sabe: e fica quieta e fica quieta que não tem/ dá pra eu falar Jussara
pára de chorar/ o que ta acontecendo... me comove a ponto de eu ficar quieta
olhando para a acara dela e eu fico olhando... até que ela vai... enxuga as
lágrimas e começa a falar tudo novamente... aí eu falei: --- minto... nesse dia eu
não fiquei quieta... eu pedi para ela se acalmar: peguei um copo de água e falei:
semana que vem a gente continua... eu terminei... faltava uns:: acho que até
tinha passado: mas eu terminei... eu não agüentei... não sabia o que eu ia falar
para ela... não sabia o que poderia ter feito... falei: na semana que vem nós
continuamos... ta bom...na semana seguinte Jussara compareceu no horário
marcado... começamos novamente com Jussara de FRENTE para a minha
mesa... eu já não pedia para ela senta aqui ou senta lá... eu já esperava que
movimento ela ia ter... é nítido nesse momento que Jussara não queria sentar na
bancada: ser tocada: fazer nenhum exercício... nesse momento comecei a arrumar
minhas coisas... – ah:: nesse dia como ela sentou na minha cadeira: eu percebi
que ela não queria fazer exercício: não queria fazer nada... então o que que eu fiz
– saí da minha cadeira e fui para a bancada: peguei as luvas pra ver se ela tinha
algum movimento de ir até a bancada...nada... Jussara ficou sentada no mesmo
lugar e eu perguntei como tinha sido a semana... se sentiu dor: se a placa estava
boa: se estava adiantando: se ela tinha amanhecido com a boca menos dolorida:
se ela estava mais calma: se tava menos ansiosa:: ela me disse que estava muito
bem... que a única coisa que a deixa desequilibrada é o fato que ela acha que vai
ver o pai dela... falou bem isso... desequilibrada... nesse momento – pêra gente:
me perdi ((mexe no material que trouxe)) – nesse momento eu não consegui ficar
quieta... eu disse: Jussara que tanto seu pai te aflige? Pra que que eu fui
perguntar...
67. ((risos de todas))
68. Leila: o papo já tinha rolado...
69. Heloisa: mas do soco:
70. Leila: do soco...
71. ((Carmen ri))
72. Heloisa: pra que que eu fui perguntar... aflige pelo seguinte... ele me aflige na
pessoa de ser... na pessoa como é com minha mãe: como ele me criou... como
era com meus irmãos... tudo... eu não gosto do meu pai... ta: e aí: o problema é o
seguinte Helô: eu não gosto do meu pai... – ela é muito direta em algumas
coisas... ao mesmo tempo em que chora calada ela fala assim jogado – o
problema é o seguinte Helô: eu já fui varias vezes tro/ eu e minha mãe quase já
fomos várias vezes trocadas por várias peor...
73. Leila: por o quê?
74. Heloisa: peor... eu: PEOR:: é : cozinheira: arrumadeira:lavadeira...meu pai tinha
caso com todo mundo e minha mãe sabia disso... e eu tinha exatamente dez anos
na época...
75. Pesquisadora: falou isso eu e minha mãe fomos trocadas?
76. Heloisa: eu e minha mãe já quase fomos trocadas pelas peor várias vezes... eu e
minha mãe...eu e minha mãe já quase fomos trocadas pelas peor...arrumadeira:
passadeira...interessante que nessa hora ela falou calma... sabe com ar de : não
sei... como eu to falando aqui arrumadeira... cozinheira... lavadeira... é: jardineira...
meu pai já quase casou várias vezes com essas... já peguei meu pai na cama... -assim... não é: ((aplica um tom mais dramático na voz)) já peguei meu pai na
cama:: -- eu esperava isso dela de tanto que ela chorava... não foi nada disso...
77. Leila: ela já fez análise alguma vez?
78. Heloisa: calma... – perdi... espera aí – e eu na cama? é Helô:na cama com a
arrumadeira... olha eu só não peguei ele com a cunhada da minha mãe porque a
cunhada da minha mãe é: não: a tia? – espera gente ((procura em seu material o
dado preciso)) – só não peguei com a cunhada da Odete porque a Odete gostava
muito do meu pai... a Odete era a faxineira... só que ela falava comigo como se eu
soubesse quem era a Odete... sabe:
79. Carmen: e você não perguntava quem era a Odete?
80. Heloisa: não... deixava ela jogar...só não peguei com a Odete porque ela gostava
muito do meu pai: se não eu também pegava ele com a Odete... e aí Jussara: o
que acontece? o que acontece é que eu não suporto meu pai por causa disso...
ele não tem vergonha na cara... ele é uma pessoa super suja... pesada... suja
pesada mesquinha arrogante: eu ia anotando tudo...
81. Leila: você ia anotando na hora?
82. Heloisa: não: eu não sabia o que fazia... ela falava:
83. Leila: você anotava e não gravava?
84. Heloisa: os dois::
85. Leila: você gravava e transcrevia na hora?
86. Heloisa: porque Leila: na primeira vez que ela chegou assim pra mim: eu não
conseguia olhar pro olho dela e dar uma devolutiva pra ela... eu queria falar
alguma coisa pra ela... pra me conter eu olhava e anotava...
87. Carmen: hum hum...
88. Leila: mas porque você fala que não podia dar uma devolutiva para ela?
89. Heloisa: porque não era meu papel...
90. Leila: não era seu papel::
91. Heloisa: não.. para mim não é: acho que não tenho cacife pra isso... de lidar com
essas questões eu não tenho...
92. Leila: de questões emocionais? Você acha que não é pra você?
93. Heloisa: claro... não... ela precisa procurar uma terapia... aí eu já encaminhei...
94. ((Carmen ri ))
95. Leila: mesmo você falando que acha importante as questões emocionais
relacionadas à queixa dela: da tensão...
96. Heloisa: eu expliquei tudo isso pra ela... aí ta bom...aí começou a falar da história
conjugal do pai dela né... que eu já falei... ela pega – depois que ela fala do pai
dela – ela pega e bom e aí: isso que eu tenho com me pai: você acha que eu
tenho problema de ATM por causa do meu pai? e eu eu não sei... alguns meses
atrás você me disse que ele tinha te dado um soco... agora você ta falando
que é por causa das relações extraconjugais do seu pai... eu não sei onde ta
a ligação aí.. o que você acha? Vou pensar nisso... semana que vem te
respondo...
97. ((Carmen ri))
98. Heloisa: ótimo...nisso ela levanta: levanta Helô: eu levantei: ela me abraça
obrigada: do fundo do meu coração...
99. ((Carmen ri muito))
100.
Heloisa: vocês estão rindo né:: só comigo que acontece essas coisas... ta
bom... dez minutos pra me recuperar e tudo bem... na semana seguinte – já ta
acabando viu gente –
101.
Carmen: já tenho a resposta...
102.
Heloísa: do quê?
103.
Carmen: ela já tem a resposta...
104.
Heloisa: ah... na semana seguinte: ela entrou na sala antes do que eu ...
ela entrou : eu não tinha visto – o meu paciente anterior tinha faltado: ela
perguntou pra a secretária se eu já estava lá dentro: ela ligou para o meu
consultório: como não tocava ela disse pode ir pra lá que ela não ta atendendo
ninguém... --- quando eu saio da cozinha e vejo: ela já ta sentada...
105.
Carmen: aonde?
106.
Heloisa: na cadeira... aí senta toda bonitinha: aí eu entro no consultório e
ela levanta oi tudo bom? me abraça de novo... tudo bom... e aí Jussara... tudo
bom? é... tudo ótimo: mas essa semana também foi difícil viu... tive vários
problemas: o Miguel ta quase para perder o emprego: aí começa a falar da
engenharia do Miguel que é o marido dela... porque ele é engenheiro civil não sei
há quanto tempo e a área dele vai não sei o quê... e começou a falar falar falar e
eu to com medo que ele perca o emprego...falei: nossa é um problema... e aí
Jussara você pensou naquela questão que a gente tinha pensado na
semana passada? Eu pensei mas não consegui chegar a nenhuma conclusão...
eu falei posso te ajudar? Ela falou pode... que que você acha de eu te
encaminhar para você fazer análise? Já fiz... ah: você já fez? Já fiz durante
dois anos... e aí o que que você achou? Não gostei... aí eu falei – eu to de costas
para a Pesquisadora ela deve estar me achado maluca –
107.
Pesquisadora: não: não estou...
108.
Heloisa: ah:ta: aí:: eu já fiz durante dois anos... e aí Jussara... que que
aconteceu? eu acho um dado super importante... porque você não me disse
isso antes? Porque eu não tive confiança com ela... como assim relação de
confiança? Porque eu não me sinto à vontade... não conseguia contar os
problemas para ela... é: mas análise não é só para contar os problemas... é pra
gente levantar o histórico de vida: o que realmente aconteceu nessa história
com seu pai... é helô: mas eu chegava lá: ela mandava eu deitar : olhar para um
ponto fixo e dizer o que vinha na minha mente... na minha mente não vinha nada..
109.
Leila: e ela ficou dois anos com ela?
110.
Heloisa: dois anos...
111.
Leila: sem gostar?
112.
Heloisa: sem gostar... aí que eu questionei... então: você tinha tudo isso
e não gostava da terapia e não gostava da linha: porque que você ficou dois
anos com ela? porque meu pai –aí começa o meu pai de novo – porque meu pai
é: fez análise durante quinze anos sabe:: é: e depois que ele fez análise ele deu
uma melhorada... mas quando ele parou: ele voltou tudo a estaca zero... então: eu
me pego... será que eu faço: será que eu não faço? Sim... mas seu pai é um
caso e você é outro Jussara... – como é que você explica pra ela – não não não
... análise de divã pra mim não dá... mas tem outras linhas... você não precisa
deitar no divã: eu posso te encaminhar: eu conheço uma psicóloga ótima...
ela falou: Helô eu também conheço a área você esqueceu? Você é professora
com conhecimento em psicopedagogia... trabalha com criança... então:
obrigada... falei: justamente por você ser/ você tem mais clareza do que eu
nesse assunto... não Helô: não adianta que eu não vou fazer análise... não quero:
não vou e não vou... e começou a ficar nervosa e eu falei meu Deus...
113.
Leila: na cabeça dela o problema era o pai o conflito original... você não
tava tocando os exercícios de OFA:
114.
Heloisa: Nada...
115.
Leila: como que ela tava... porque ela não estava conseguindo comer...
116.
Heloisa: depois da placa melhorou tudo... melhorou tudo... a placa melhora
tudo... eu não fiz exatamente nada até agora em questão de OFA: em questão de
ATM: em questão de côndilo... eu tenho quarenta mil idéias na cabeça e não
consegui por a mão nela...
117.
Pesquisadora: posso te fazer uma pergunta?
118.
Heloisa: claro...
119.
Pesquisadora: ela estava te trazendo questões emocionais ou histórias de
vida?
120.
((Leila procura responder antecipando-se à Heloisa que fica quieta
inicialmente))
121.
Leila: histórias dela... ela tava trazendo ela quando eu falo emocional e o
que a pesquisadora pergunta me faz pensar: a gente é um ser emocional social
etc et e nesse sentido também é emocional... ela ta trazendo ela...
122.
Heloisa: como é que é ((dirigindo-se à pesquisadora))?
123.
Pesquisadora: ela está trazendo as histórias dela...
124.
Heloisa: os dois: viu Pesquisadora...
125.
Pesquisadora: e as coisas que você tava mexendo com ela tava fazendo
ela lembrar...
126.
Heloisa: exatamente...
127.
Pesquisadora: daí me chamou a atenção e a queixa? Ela tava comendo? E
ela tava né:
128.
Heloisa: então: eu vou chegar aí: após essa sessão Jussara sentou na
mesa e começou literalmente a falar de seus problemas com o Miguel: a
engenharia e tal... sempre se referindo aos seus problemas..
129.
Carmen: você já tinha passado... estava na parte que ela não ia :
130.
Heloisa: na terapia?
131.
Ah: ta... depois disso teve outra sessão que ela chegou falando que ela
tinha problemas pessoais só que ela tava se referindo que seus problemas de
ATM estavam cada vez melhor... estou ótima... quando ela sentou e falou estou
ótima... eu falei pronto... ela ta querendo né: não ta querendo que eu toque nela de
jeito nenhum...vem aqui fale: fale: to ótima Helô: olha aqui Helô olha... ((imita a
paciente abrindo e fechando a boca)) você escutou alguma coisa? estou ótima...
olha como eu to falando... ela olhava assim pro espelho: é a articulação né Helô:
então... olha a minha articulação... e eu...é: realmente... aí eu falei pra ela: você
ta bem não porque está vindo aqui; viu Jussara... você está bem por causa
da placa de relaxamento... eu poderia muito mais te ajudar se a gente tivesse
fazendo exercício... mas do eito que você ta falando que está ótima é só por
causa da placa... aí ta bom... aí digo que ela está bem por causa da placa de
relaxamento mas os exercícios iam ajudar muito... tentei começar a introduzir o
que efetivamente poderíamos fazer: fazer exercícios: por que ela ta procurando a
fono: pra que que ela tava indo lá... ela pega e nossa Helô: esqueci de te contar...
tenho que ir embora... só vim falar quinze minutos com você hoje... o que
Jussara? só vim falar quinze minutos com você hoje: que eu tenho uma reunião
importantíssima... quando eu comecei a introduzir isso pra ela: por que ela veio
fazer fono: sabe: eu tentava de qualquer jeito: Pesquisadora: estava me sentindo
perdida... Helô: esqueci de te falar: hoje só vai dar pra ficar quinze minutos que eu
tenho uma reunião... tchau Helô... um beijo ((levanta-se e sai andando pela sala
imitando sua paciente)) na outra sessão dei continuidade ao assunto da semana
passada...
132.
Leila e Carmen: ela que deu?
133.
Heloisa: eu.. eu.. eu nem esperei... ela entrou e eu já comecei a falar...
expliquei que as terapias que tínhamos feito até hoje estavam sendo de grande
benefício – espera aí: me confundi: foi aqui nessa sessão que falamos de
análise... mas tudo bem... na altera os fatores ((lê rapidamente e para si as
anotações)) olha o que ela falou... eu sei que você não é nem analista nem
psicóloga: mas eu me sinto muito bem com você... e sinto que saio daqui bastante
aliviada principalmente a minha mandíbula...quando eu saio daqui sou capaz de ir
até numa churrascaria... está difícil de atender a Jussara porque eu não sei o que
fazer... na semana seguinte Jussara falta e liga para dizer se eu poderia atender à
uma da tarde... eu na verdade poderia atendê-la mas eu disse que não ... dei
graças a Deus... na semana seguinte ela vem: chega e senta onde:: na
BANCADA... oi Helô estou à sua disposição...à minha disposição como
Jussara? hoje vim aqui fazer exercícios... não é isso que você quer Helô: então
vamos lá... hoje nós vamos fazer exercícios...Jussara: não sou eu que
quero...você que tem que querer... você: então vamos fazer os exercícios: olha:
vu até fechar minha boca... e fechou a boca... aí fizemos umas manobras e essa
foi a última semana e acabou por aí... foi sábado agora... eu não to dando conta
porque vejo que estou com papel de psicóloga... ao mesmo tempo em que me
sinto competente em poder devolver algo para ela: eu penso eu sou
fonoaudióloga; não sou psicóloga... então eu fico em cima do muro... fico
esperando ela falar....

Documentos relacionados