Nobel da Paz Shirin Ebadi - Conferências do Estoril 2013, Público

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Nobel da Paz Shirin Ebadi - Conferências do Estoril 2013, Público
ID: 47510254
05-05-2013
Tiragem: 41267
Pág: 28
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 27,21 x 30,26 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 3
“O Irão é um vulcão que pode entrar
em erupção a qualquer momento”
Shirin Ebadi Nobel da Paz, a primeira presidente do Tribunal
de Teerão está exilada há quatro anos. Vive entre aeroportos. Se
voltasse, seria certamente presa. Em Portugal, defendeu uma
mudança sem violência. “Não queremos ser outra Síria”
Entrevista
Bárbara Reis Texto
Daniel Rocha Fotografia
Shirin Ebadi chegou a Lisboa vinda
de Londres, onde chegara, na
véspera, vinda dos Estados Unidos.
Hoje já está em Baku, capital do
Azerbaijão, para falar num fórum
que, a cinco mil quilómetros de
distância, soa a tão longínquo
quanto as Conferências do Estoril
— onde falou esta semana — soarão
aos azeris.
A Nobel da Paz de 2003 não
pára.
“Viajo dez meses por ano para
que a imprensa livre escreva o que
estou aqui a dizer hoje.” Advogada
e ex-presidente do Tribunal de
Teerão, Ebadi fala com uma
expressão séria, a sua imagem de
marca, e sem hesitar na escolha
das palavras.
Nesta breve entrevista de
20 minutos, metade dos quais
“gastos” na tradução de farsi para
inglês a seguir a cada resposta,
a advogada iraniana quase não
altera o tom da voz. É a tradutora
que, entusiasmada com o que
ouve, introduz alguma variação
no naipe de cores — suave, irada,
convicta, serena. “Trabalhar é
talvez a sua forma de enfrentar
o exílio”, diz num momento de
pausa a assistente, que veio de
Londres para traduzir a mulher
mais famosa do Irão a seguir a
outra Shirin (Neshat, a artista que
vive em Nova Iorque e que faz
parte dos circuitos internacionais
de arte contemporânea) e Marjane
Satrapi, autora dos Persepolis, livro
e filme de animação nomeado para
os Óscares.
Em 2003, quando soube que
ganhara o Prémio Nobel da Paz,
Shirin Ebadi estava em Paris.
No livro O Despertar do Irão
– Memórias da Revolução e de
Esperança (Edit. Guerra e Paz,
2007), conta que, quando aterrou
em Teerão, gritou com todas as
suas forças: “Deus é grandioso!”
“Todos ficaram gelados de
surpresa”, escreve. O islão, diz
há anos, é o seu ponto de partida
para criticar o regime iraniano.
Na conferência que deu no Centro
de Congressos do Estoril resumiu
os últimos 35 anos do Irão com
uma frase: “Em 1979, fizemos uma
revolução e expulsámos o xá. Mas
não chega derrubar um ditador
porque, no seu lugar, pusemos um
ditador religioso que é ainda mais
violento e que quer enfiar o Corão
pela nossas gargantas abaixo
prometendo-nos o paraíso.”
O problema, defendeu,
“não está no Corão”, que “não
é diferente dos outros livros
sagrados”. O problema está no
facto de “a cultura patriarcal
explorar a religião”: “São os
homens que interpretam todos
os livros sagrados. Na Bíblia, por
exemplo, a mulher é culpada por
todas as coisas, foi ela que cometeu
o pecado. Mas qual foi o pecado de
Eva?” A sua conclusão: “Todas as
religiões têm de ser interpretadas
de modo a que sejam compatíveis
com os direitos humanos e a
democracia.”
Ebadi, que como advogada
fez perguntas toda a vida, gosta
de responder às perguntas com
perguntas suas. Que anuncia
com ironia: “Agora tenho eu uma
pergunta para vocês, europeus
inteligentes e de mente aberta:
onde é que vocês pensam que os
ditadores põem o dinheiro que
roubam aos seus povos? Põemnos nos vossos bancos. E para
onde vão quando se reformam?
Compram belas casas aqui. Por
favor não aceitem o seu dinheiro
sujo. Façam o mundo um lugar
mais pequeno para os ditadores.”
Shirin Ebadi, que em Junho
faz 66 anos, esteve no Irão pela
última vez em 2009. Tinha um
compromisso marcado há muito
e saiu na véspera das eleições
que acabaram num banho de
sangue transmitido em directo
nos ecrãs da CNN. Se voltar, diz,
no mínimo será impedida de
trabalhar; previsivelmente será
presa. No Estoril, contou que o
marido, engenheiro, e a irmã,
dentista, foram presos e libertados
sob caução, “mas tiram-lhes os
passaportes”: “A minha família é
refém do facto de eu ser Nobel da
Paz. Confiscaram todas as minhas
propriedades e leiloaram os meus
bens. Fecharam o escritório da
minha organização. No Irão sou
inútil. Fora, posso ser útil e posso
ser a voz do povo.” Sabe que é
ouvida no Irão porque recebe
“constantemente ameaças de
morte” do regime. “Eles dizem
ao meu marido e à minha irmã:
‘Se ela não parar a sua actividade,
vamos acabar com ela.’ Mas não
tem importância. Todos nascemos
e todos morremos um dia.”
Uma entrevista-relâmpago com
uma mulher sem medo.
O Irão tem estado fora dos
radares dos media e das
organizações de direitos
humanos internacionais. A
situação melhorou ou o Governo
conseguiu calar a oposição?
Todas as notícias sobre o Irão estão
focadas no programa nuclear do
Governo iraniano. Isso encobre
os direitos humanos e por isso
não há notícias sobre violações
dos direitos humanos. Como
resultado, a situação dos direitos
humanos no Irão está a deteriorarse muito rapidamente, ao ponto
de o rapporteur especial das
Nações Unidas para o Irão, Ahmed
Shaheed, ter descrito a situação no
país como “crítica”.
As manifestações pródemocracia em 2009 foram um
sinal de reforço do movimento
a favor das reformas. O que
aconteceu à energia e coragem
que vimos nas ruas de Teerão há
quatro anos?
Por causa do aumento da violência
do Estado, as manifestações de
rua diminuíram e praticamente
desapareceram. Já não acontecem.
Mas isso não significa que o
número de pessoas insatisfeitas
com o regime tenha diminuído.
Pelo contrário. O número de
dissidentes no Irão aumentou. O
Irão é como um vulcão que pode
entrar em erupção a qualquer
momento.
Descreve os jovens iranianos
com palavras fortes: “Escolhem
a resiliência em vez da anomia”,
mostram “criatividade face ao
dogma”. Espera que saiam à rua
nas eleições presidenciais de
Junho?
Os jovens iranianos estão muito
insatisfeitos com a situação actual.
Porque querem liberdade e não a
têm. Porque não há empregos e
há uma inflação cada vez maior.
Tão alta que o Fundo Monetário
Internacional colocou o Irão em
terceiro lugar na lista dos países
com a maior inflação do mundo.
Felizmente, os jovens iranianos são
contra a violência e não recorrem
às armas. Protestam de forma
pacífica. E isso é uma inspiração
que nos dá esperança de que o Irão
não se transforme noutra Síria.
Felizmente os nossos jovens são
muito sábios. Tenho a certeza
de que vão fazer o máximo para
garantir que não há mais um
“Reformar demora
muito tempo. Mas
a guerra civil não é
a solução”
“A ‘Primavera’ só
chegará ao mundo
árabe no dia em
que as mulheres
não tiverem de
enfrentar leis
discriminatórias”
ID: 47510254
05-05-2013
Tiragem: 41267
Pág: 29
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 27,13 x 30,26 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 2 de 3
Multimédia
Ver vídeo da entrevista em
www.publico.pt
banho de sangue. Por causa
da forma extrema com que as
manifestações foram esmagadas
pela violência estatal em 2009.
Por isso, a expectativa é que, em
Junho, haja protestos cívicos e
greves.
Em 2009 Hossein Moussavi e
Mehdi Karroubi candidataramse contra o regime do Presidente
Ahmadinejad. Agora, estão
presos e não se sabe se haverá
candidatos reformistas. Dez anos
depois de receber o Nobel, tudo
parece estar a piorar no Irão.
Sim, a situação dos direitos
humanos e da democracia está
muito pior do que em 2009.
Moussavi e Karroubi estão
literalmente na prisão, não apenas
em prisão domiciliária. E estão
privados dos mais básicos direitos
que qualquer prisioneiro tem.
Quanto aos reformistas, eles talvez
nomeiem alguns candidatos, mas
não há qualquer garantia de que
o Conselho dos Guardiães aprove
um que seja ou que os eventuais
candidatos passem o crivo do veto
do conselho.
Os jovens pedem uma “mudança
de 1979%”. Ainda acredita na
evolução gradual em vez da
revolução?
Nós não queremos nenhum tipo
de violência. Temos trabalhado
muito para garantir que todas
as mudanças acontecem sem
violência. Fazemos tudo para
evitar todo e qualquer tipo
de violência. E acredito que a
maioria dos iranianos pensa
assim. Os iranianos não querem
ver no Irão o que se passa hoje na
Síria. Por isso concentramos as
nossas actividades no esforço de
persuadir o Governo — forçar o
Governo — a aceitar as exigências
do povo, de modo a que haja
uma mudança gradual e não
uma mudança súbita através da
violência.
Não receia que os jovens fiquem
velhos sem terem democracia e
liberdade?
Concordo que reformar demora
muito tempo. Por outro lado, a
guerra civil não é a solução — seria
nefasto para o país. O facto é que
temos de escolher entre dois maus
cenários. Temos de escolher o
menos mau: tentar, através de
acções e actividades pacíficas,
tornar o governo democrático.
A economia e as dificuldades que
as pessoas têm no dia-a-dia vão
ter um peso maior na mudança
do que a oposição política?
As duas dimensões são necessárias
— a económica e a política. Eu
acredito que, com um bom e sólido
planeamento, vamos conseguir
persuadir o Governo a optar por
um caminho democrático.
Viu as manifestações de 2009
como a semente da Primavera
Árabe, mas hoje a Síria, a
Líbia e o Egipto são o centro
das atenções. A semente
foi esmagada pela própria
Primavera Árabe?
Quando fala de Primavera
Árabe tenho que lhe dizer que
não concordo com a expressão
“Primavera”, porque a
“Primavera” só chegará ao mundo
árabe no dia em que as mulheres
não tiverem de enfrentar leis
discriminatórias.
Os iranianos têm a experiência
de uma revolução e, além disso,
a experiência de oito anos de
guerra com o Iraque. Não querem
repetir os banhos de sangue. E foi
por isso que, em 2009, quando o
Governo aumentou a brutalidade
para esmagar as manifestações
de protesto nas ruas, as pessoas
encontraram outros meios de
se manifestarem que não são
violentos.
A ciberpolícia criada em 2011
explica parte desta calma
aparente?
O Governo criou uma ciberpolícia
para monitorizar as actividades
das pessoas na Internet e nas
redes sociais e, como resultado,
muitos dos nossos activistas
foram presos. Um deles, o blogger
Sattar Behesht, foi assassinado na
prisão no ano passado. Mas nada
disso impediu os jovens iranianos
de terem os seus blogues e de
escreverem artigos. Felizmente, os
jovens mantêm os seus sites e os
seus blogues.
O Nobel da Paz ajudou o Irão?
O Governo iraniano não gostou
nem por um momento que eu
tivesse ganho o Prémio Nobel
da Paz. Não o anunciaram em
nenhum órgão de comunicação
social e quando as pessoas
protestarem e perguntaram: “Mas
porque é que não há notícias do
Nobel?”, eles puseram uma notícia
minúscula no alinhamento da
noite na televisão, quando toda a
gente já estava a dormir.
E para si qual foi o impacto? Por
as coisas nem sempre serem
claras, usa muito a expressão
“por sorte ou azar”. Neste caso
qual delas foi?
A mim beneficiou-me, porque me
ajudou na minha acção, porque
me deu meios para falar e para
me dirigir ao mundo. Tornei-me
a voz do povo iraniano em fóruns
internacionais.
Sente-se mais poderosa, apesar
das ameaças de morte?
Sim, porque agora a minha voz é
mais forte e sou ouvida por muito
mais pessoas.
Foi por causa das suas repetidas
denúncias públicas contra
a Nokia Siemens Networks
que a empresa de redes de
telecomunicações cancelou
o contrato que tinha com o
Governo iraniano?
Eu disse o que as pessoas queriam
que fosse dito e fiz tudo para que
o que o povo iraniano queria que
fosse dito fosse ouvido pelo mundo
inteiro.
Disse recentemente que agora
é a Sony Ericsson que está a
ajudar o regime iraniano a
prender dissidentes através das
telecomunicações. Isso ainda é
verdade?
Infelizmente, a Sony Ericsson
também fez um contrato
semelhante ao da Nokia Siemens
Networks com o Irão, mas este ano
também o cancelou.
Quem fornece agora o serviço
de redes de telecomunicações
ao Irão?
Por causa das sanções americanas
contra o Irão, todas as empresas
que tenham contratos com o
Irão perdem acesso ao mercado
americano. É por isso que estão a
cancelar os contratos com o Irão.
E se alguma empresa faz negócios
com o Irão, fá-lo às escondidas.
Neste momento não há empresas
ocidentais a ajudar o regime?
Praticamente nenhuma. Os bancos
iranianos estão sob embargo e
por isso é muito difícil transferir
dinheiro para o país.
Viver há quatro anos no exílio,
entre os EUA e Londres, onde
as suas filhas vivem, fez mudar
a forma como olha para o Irão e
para o Ocidente?
Não. Eu já sabia como era o
Ocidente.
ID: 47510254
05-05-2013
“O Irão é como um
vulcão que pode
entrar em erupção”
Entrevista à Nobel da Paz
Shirin Ebadi, a advogada
que viaja dez meses por ano
para falar do Irão p28/29
Tiragem: 41267
Pág: 1
País: Portugal
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Period.: Diária
Área: 10,56 x 4,32 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 3 de 3