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Jacques Derrida
EU – a psicanálise1
1> Tradução de Élida Ferreira. Este título propõe traduzir “Moi – la psychanalyse”, publicado pela primeira vez em língua inglesa, com o título “Me – Psychoanalysis”, como introdução à tradução para o
inglês de um artigo de Nicolas Abraham, “L’écorce et le noyau” [The shell and the kernel]. In Diacritics,
Johns Hopkins University Press, primavera de 1979 – versão completa. O texto francês foi em seguida
publicado em Confrontation (“Les fantômes de la psychanalyse”, Cahiers, 8, 1982) e mais tarde em
Psyché – Inventions de l’autre (Galilée. 1987-1998, p. 145-58). Para o português temos a tradução proposta por Maria José Coracini do texto “Moi – la Psychanalyse” (ALFA 44, n. especial. 2000, com o título “Eu – a psicanálise, p. 189-95); tradução feita a partir de uma versão francesa reduzida (cf. Meta,
v. 27-1. 1982). E agora proponho essa nova tradução para o português a partir da versão completa publicada em Psyché – Inventions de l’autre . (N. da T.)
pulsional > revista de psicanálise >
ano XV, n. 158, jun/2002
Between the “translation” and the “original,” Derrida introduces the English
translation of Nicholas Abraham’s L’Écorce et le Noyau. In that place where it is
impossible to say “I,” he writes about translation and presents a the possibility of
overcoming the borders between the “I” of psychoanalysis and the “I” (or ego), that
psychoanalysis talks about, in an “anasemic” process beyond, or short of, meaning.
The introduction also includes a postface by the Brazilian translator, which goes
well beyond the supposed limits of the translation of the presentation/introduction.
Key words
>Key
words: Translation, Nicholas Abraham, “anasemy”, psychoanalysis
artigos > p. 11-21
Derrida, entre a “tradução” e o “original”, está encarregado de introduzir a tradução para
o inglês de L’écorce et Le noyau de Nicholas Abraham. Nesse lugar impossível de dizer eu,
escreve sobre tradução e encena um diferimento sem fronteiras entre o EU da psicanálise e o EU de que fala a psicanálise, num processo anassêmico para além ou aquém do
sentido. Resta, ainda, desta introdução, um posfácio da tradutora brasileira, o qual transborda os supostos limites da tradução da apresentação/introdução.
>Palavras-chave : Tradução, Nicolas Abraham, anassemia, psicanálise
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artigos
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Aqui, introduzo – EU – uma tradução.
Seria muito dizer para onde eu serei, por
estas duas vias, conduzido: apagar-me da
entrada para facilitar sua leitura. Eu escrevo em “minha” língua, mas deveria, no seu
idioma, introduzir. Dito de outra forma, e
ainda na “minha” língua, apresentar alguém. Alguém que, nos inúmeros sentidos,
todos singulares, não está ali, embora reste bastante próximo e presente, para prescindir, portanto, de qualquer introdução.
Ao apresentar alguém a outro ou a vários, e
sob o olhar do hóspede e do anfitrião, dos
que na sua língua recebem e daqueles que
introduzem, a primeira regra de polidez é
não se colocar à frente. Ora, coloca-se à
frente, até tornar-se indispensável, logo
que se multiplicam as dificuldades de tradução (uma a cada passo, desde a minha primeira palavra) e que se constrange o intérprete do intérprete, aquele que deve, em
sua própria língua, introduzir por sua vez o
introdutor. Parece ter de prolongar indefinidamente as manobras dilatoriais, de desviar a atenção, de parar sobre si, de se
prender insistindo: eis o que me cabe, a
mim, o introdutor, e a meu estilo, à minha
maneira de fazer, de dizer, de escrever, de
interpretar, isso compensa o desvio, creiamme, eu me permito dizer-lhes, é uma promessa etc.
Mesmo assumindo a indiscrição ao sublinhar a manobra, não me retiro eficazmente
atrás da língua dita e presumida materna, já
que tudo parece a ela retornar; afinal, o que
quer que se diga a seu respeito, [parece] retornar a si.
Ora, não é disso que se trata aqui? Aqui,
onde? Entre L’écorce et le noyau.2
Pois eu já nomeei, induzindo-os desde já a
pensar isso, o que ouvirão Nicolas Abraham
falar a toda hora: a presença, o ser-ali (fort/
da) 3 ou não, a suposta presença a si na
auto-apresentação, todos os modos da introdução ou da hospitalidade dados a mim,
por mim, ao estrangeiro, a introjeção ou a
incorporação, todas as operações “dilatoriais” (os “meios, por assim dizer convencionais, oferecidos implicitamente por todo
contexto cultural, para melhor permitir, ao
menos no que se refere à fixação – de se
destacar da mãe maternante, tudo em si
significando um vínculo dilatorial”); ouvirão
Nicolas Abraham falar disso a toda hora, ao
mesmo tempo que de tradução. Pois é de
tradução que ele fala simultaneamente e
não apenas quando se serve da palavra, da
tradução de uma língua para a outra (com
as palavras estrangeiras) e mesmo de uma
língua nela mesma (com as “mesmas” palavras que mudam subitamente o seu sentido,
transbordam de sentido e mesmo o sentido,
embora impassíveis, idênticas a si mesmas,
imperturbáveis, permitindo-lhes ler, no
novo código dessa tradução anassêmica,
isso que precisaria de outra palavra, a mes-
2> Há uma tradução desse livro de Abraham e Maria Torok para o português, feita por Maria José Coracini (São Paulo: Escuta, 1995) com o título A casca e o núcleo . Esse livro inclui o artigo de 1968 cujo
título é, também, “A casca e o núcleo”. Não me utilizarei dessa tradução, quando Derrida cita o texto
de Nicolas Abraham e MariaTorok, buscando acompanhar a argumentação e a leitura proposta por J.
Derrida. (N. da T.)
3> O “jogo do fort/da que alimenta tantas especulações” é esclarecido a partir do processo de introjeção de um notável escrito inédito de 1963, “Le ‘crime’ de l’introjection”, agora acessível em L’écorce et
le noyau (ver, por exemplo, p. 128 do volume com este título, Aubier-Flammarion, 1978).
artigos
ele propõe e ao qual pertence a sua própria
escritura.
Ora, eis que estou encarregado, supostamente, de introduzir – EU – uma tradução,
a primeira sem dúvida, em inglês, de um
ensaio fundamental de Abraham. Eu deveria então apagar-me na entrada e, para facilitar a leitura, limitar os obstáculos de tradução que imporiam a minha escritura ou
meu hábito lingüístico. Que seja. Mas o que
fazer com o que pertence à própria língua?
EU [Moi], por exemplo.
Como tudo que diz respeito às línguas, há a
aliança de um limite com uma possibilidade.
Em francês, diferentemente do Ich alemão e
do I inglês, “eu” [moi] cai como uma luva ao
sujeito que diz eu [je] (“eu, eu digo, traduzo,
introduzo, conduzo, etc.”) [“moi, je dis,
traduis, introduis, conduis ... etc.”] e àquele que se coloca, deixa ou se faz colocar
como objeto (“prendo-me” [prends-moi],
por exemplo como “eu sou/estou” [je suis]
ou “traduzo-me” [traduis-moi], “conduzome” [conduis-moi], “introduzo-me”
[introduis-moi], etc.”). Uma luva por meio
da qual eu me toco, ou os dedos, como se
eu estivesse presente a mim mesmo no contato. Mas eu-me [je-me] pode em francês se
declinar de outra forma: por exemplo, “eu
me lembro”, [je me souviens], “eu me ridicularizo” [je me moque], “eu me satisfaço” [je
me fais plaisir] etc.
A aparência desse “como se” não é um fenômeno entre outros. Entre o “eu” e o “me”
[Entre le “je” et le “me”], o capítulo assim
intitulado situa um “hiato”, este que, separando “eu” [je] e “me” [me], escapa à reflexividade fenomenológica, à autoridade da
presença a si e a tudo que ela comanda. Tal
hiato da não-presença a si condiciona o
sentido que a fenomenologia tornou seu
tema, mas ele mesmo não é nem um sentido nem uma presença. “O domínio da psica-
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ma diante da psicanálise, esta outra língua
que se serve das mesmas palavras impondo-lhes uma “mudança semântica radical”).
Ao falar simultaneamente da tradução em
todos os sentidos, além ou aquém do sentido, ao traduzir o velho conceito de tradução na língua da psicanálise, Nicolas
Abraham lhes falará também da língua materna e de tudo que se diz da mãe, da criança, do falo, de toda essa “pseudologia” que
submete o tal discurso sobre o Édipo, a castração, o desejo, a lei, etc., a uma “teoria de
crianças”.
Mas se Abraham parece falar dessas coisas
arquiantigas, não é apenas para propor
uma nova “exegese”. Mas também para decifrar ou para desconstituir aí o sentido, e
depois reconduzir, pelas novas vias da
anassemia e anti-semântica, a um processo
anterior ao sentido e à presença. É também
para lhes introduzir ao código que lhes permitirá traduzir a língua da psicanálise, sua
nova língua que altera radicalmente as palavras, as mesmas palavras, estas da língua
corrente, da qual se serve ainda e na qual
se traduz em uma língua totalmente outra:
então, entre o texto traduzente e o texto
traduzido, nada aparentemente teria mudado, haveria, portanto, entre eles, apenas relações de homonímia! Mas, ver-se-á, que
serão relações de uma homonímia incomparável a qualquer outra. Há aqui, então,
conceitos de sentido e de tradução. E, ao
lhes falar da língua psicanalítica, da necessidade de traduzi-la de outra forma,
Abraham oferece a regra para ler A casca e
o núcleo: não se compreenderia aqui muita
coisa se o texto não fosse lido como
Abraham ensina, levando em consideração
a “anti-semântica escandalosa”, aquela “dos
conceitos des-significados em virtude do
contexto psicanalítico”. Este texto deve, então, decifrar-se com a ajuda do código que
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nálise, ele próprio, situa-se, precisamente,
sobre esse solo do impensado da fenomenologia.” Ao citar esta frase, não o faço
apenas para marcar uma etapa essencial no
trajeto do texto, o momento em que seria
mesmo necessário perguntar: “Como incluir
em um discurso, qualquer que seja, aquilo
mesmo que, para ser sua condição, lhe escaparia por essência?”. E logo depois: “Se a
não-presença, núcleo e razão última de
todo discurso, se faz fala, pode – ou deve –
fazer-se ouvir pela e na presença a si? Essa
parece ser a situação paradoxal inerente à
problemática psicanalítica.” A questão toca
de forma exemplar a tradução, a transposição de sua própria condição em um discurso. É desde já bastante difícil pensar isso,
uma vez que esse discurso, traduzindo assim sua própria condição, será ainda condicionado e faltará de certa forma a seu fim
bem como ao seu começo. Mas tal tradução
será ainda muito estranha: ela deverá traduzir em um discurso que “lhe escaparia por
essência”, a saber, um não-discurso, em outras palavras, chamado de intraduzível. E
não-apresentável. Esse in-apresentável que
seria preciso, por causa do discurso, traduzir em presença, sem nada trair de sua estrutura, Abraham o nomeia “núcleo”. Por
que? Deixemos a seu tempo essa questão
repousar.
Se citei a tal frase é, também, para avisar
que o “hiato” reproduz, também e necessariamente, um intervalo, o momento de um
salto no trajeto do próprio Nicolas
Abraham. O próprio quer dizer, na relação
a si, o eu-me-mim [je-me] de sua própria investigação: de fato, tanto quanto possível,
uma abordagem original aliando as questões psicanalítica e fenomenológica em um
campo em que não se aventurariam nem
psicanalistas nem fenomenólogos. Todos os
ensaios anteriores a 1968, data de L’écorce
e le noyau, guardam um traço ainda bastante produtivo. Refiro-me particularmente às
“Reflexions phénoménologiques sur les
implications structurelles et génétiques de
la psychanalyse” (1959) e a “Le symbole ou
l’au-delà du phénomène” (1961). Todos estes
textos estão organizados no volume que
porta o título L’écorce et le noyau (1978).4
Eles ali cercam ou recobrem o ensaio (poder-se-ia dizer homônimo) de 1968 e permitiriam, de uma perspectiva teleológica, ver
anunciarem-se todas as transformações que
decorreriam desses primeiros ensaios. E
isto não seria injustificado. Mas, por volta
de 1968, a necessidade de uma brisura, espaço de jogo e de articulação simultaneamente, marca uma nova relação da psicanálise com a fenomenologia, uma nova “lógica” e uma nova “estrutura” dessa relação.
Elas afetarão tanto a idéia de sistema estrutural quanto os cânones da “lógica” em geral. Temos um indício explícito ao fim do
ensaio de 1968, quando se faz a demonstração de que os “conceitos-chave da psicanálise” “não se dobram às normas da lógica formal: eles não se reportam a um objeto ou
coleção de objetos, eles não têm, no sentido
estrito, nem extensão nem compreensão”.
Em 1968, então, nova partida, novo programa de pesquisas, mas o percurso anterior
teria sido indispensável. Nenhuma leitura
poderia dali em diante prescindir dessas
premissas.
4> Na edição brasileira do volume A casca e o núcleo (Escuta, 1995), os referidos ensaios são traduzidos como: “Reflexões fenomenológicas sobre as implicações estruturais e genéticas da psicanálise” e
“O símbolo ou o além do fenômeno”. (N. da T.)
artigos
demos dizer. Se podemos dizer, e para dizêlo, o discurso psicanalítico, usando ainda as
mesmas palavras – aquelas da língua corrente e da fenomenologia colocadas entre
aspas –, cita-as uma vez mais para dizer
uma outra coisa, e outra coisa que sentido.
É esta segunda conversão que assinala as
maiúsculas com as quais os tradutores franceses, precisamente, dotaram as noções
metapsicológicas; e é ainda um fenômeno
de tradução que serve aqui de índice revelador a Abraham. Poderíamos reconhecer a
singularidade do que aqui se chama de tradução: ela pode já operar dentro da mesma
língua, no sentido lingüístico da identidade.
No interior do mesmo sistema lingüístico,
no francês, a mesma palavra, por exemplo
“prazer”, pode se traduzir como ela mesma
e, sem verdadeiramente “mudar” de sentido, passar para uma outra língua, a mesma
em que, tendo sido, contudo, total a alteração, quer seja na língua fenomenológica e
entre aspas, a “mesma” palavra funciona de
outra forma na língua “natural”, revelando,
porém, o sentido noético-noemático; quer
seja, na língua psicanalítica, essa própria
suspensão é suspensa e a mesma palavra se
encontra já traduzida em um código onde
não há mais sentido, de tal forma que, possibilitando por exemplo o que se sente ou
se entende por prazer, prazer não significa
mais ele mesmo, “o que se sente” (Freud,
em “Além do princípio do prazer”, fala de
um prazer vivenciado como sofrimento e
será preciso acentuar a conseqüência rigorosa de uma afirmação assim escandalosamente insustentável para a lógica clássica,
para a filosofia, para o senso comum, bem
como para a fenomenologia). Passar da palavra prazer na língua corrente para “prazer”, do discurso fenomenológico, e depois
ao “Prazer”, da teoria psicanalítica, é proceder a traduções insólitas. São traduções de
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Malgrado toda a fecundidade, malgrado o
rigor do questionamento fenomenológico,
uma ruptura se impõe e é nítida, um retorno bastante estranho, a conversão de uma
“conversão” que transtorna tudo. Uma nota
do capítulo “Entre o ‘eu’ e o ‘me’” [Entre le
je et le me] situa o “contra-senso” de Husserl “em relação ao sujeito do inconsciente”. O tipo de contra-senso é essencial e
deixa ler o hiato que nos interessa: Husserl
compreendeu o Inconsciente a partir da experiência, do sentido, da presença, como “o
esquecimento das experiências uma vez já
conscientes”. Será preciso pensar o Inconsciente subtraindo-o daquilo que ele mesmo
torna possível, a toda essa axiomática fenomenológica do sentido e da presença.
A fronteira, bastante singular com efeito, já
que ela vai dividir dois territórios absolutamente heterogêneos, ocorre daí em diante
entre dois tipos de “conversão semântica”.
Uma que opera no interior do sentido, para
mostrá-lo e guardá-lo, marca-se na tradução discursiva pelas aspas fenomenológicas: a mesma palavra, aquela da língua corrente, uma vez cercada pelas aspas, designa o sentido intencional colocado em evidência pela redução fenomenológica e por
todos os procedimentos que a acompanham. A outra conversão, a que a psicanálise opera, é absolutamente heterogênea à
precedente. Ela a supõe em um certo sentido, uma vez que não podemos compreendêla direito sem ter ido, da maneira mais conseqüente possível, até o fundo do projeto
fenomenológico (desse ponto de vista também a marcha de Nicolas Abraham pareceme de uma necessidade exemplar). Mas
inversamente, ela dá acesso àquilo que
condiciona a fenomenalidade do sentido,
desde então uma instância não-semântica.
A origem do sentido não é aqui um sentido
originário, mas pré-originário, se assim po-
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fato, uma vez que se passa de uma língua a
outra e que há uma certa identidade (ou
não-alteração semântica) que efetua esse
trajeto, deixa-se transpor ou transportar.
Mas é a única “analogia” com o que se denomina correntemente ou fenomenologicamente como “tradução”. E toda a dificuldade reside nessa “analogia”, palavra que será
preciso submeter à transformação anassêmica. De fato, a “tradução” em questão não
passa verdadeiramente de uma língua natural a outra: é a mesma palavra (prazer) que
se reconhece nos três casos. Dizer que se
trata de homônimo não seria falso, mas
este “homônimo” não tem como efeito designar, à sua maneira, sentidos diferentes.
Não são sentidos diferentes, não são mais
sentidos idênticos, sequer são análogos, e,
se as três palavras escritas diferentemente
(prazer, “prazer”, Prazer) não são homônimas, menos ainda sinônimas. A última dentre elas excede a ordem do sentido, da presença e da significação e “essa des-significação psicanalítica precede a possibilidade
mesma da colisão de sentidos”. Precedência
que deve também ser entendida, eu diria
ainda ser traduzida, segundo a relação de
anassemia. Esta remonta à fonte, e mais, à
fonte pré-originária e pré-semântica do
sentido. A tradução anassêmica não concerne às mudanças entre significações, entre significantes e significados, mas entre a
ordem da significação e o que, tornando-a
possível, deve ainda se traduzir na língua
do que ela torna possível, [deve] aqui ser
retomada, reinvestida, reinterpretada. É
esta necessidade que marca as maiúsculas
da metapsicologia traduzida em francês.
O que é então a anassemia? E a “figura” que
parecerá a mais “própria” para traduzir a
necessidade, é uma “figura” e o que é que
legitima a “propriedade”?
Eu deveria parar aqui, deixar agora o tradu-
tor trabalhar, e deixar vocês lerem. Entretanto, ainda uma palavra.
Eu introduzo aqui – EU – uma tradução e
então com esta única dificuldade, já – dizer
eu [moi] em todas as línguas – eu introduzo
[EU] a psicanálise em pessoa.
Como apresentar a psicanálise em pessoa?
Seria preciso para isso que ela pudesse de
qualquer maneira se apresentar, ela mesma. Nunca ela fez isso? Ela nunca disse “eu”
[moi]? “EU – a psicanálise”? Dizer “eu” [moi]
e dizer “o eu” [le moi] sabe-se que não seria
o mesmo. E poder-se-ia dizer “eu” [moi] sem
dizê-lo, sem o dizer em todas as línguas e
segundo todos os códigos. E eu [moi] não é
sempre um tipo de homônimo? Sem dúvida,
qualquer coisa que identifiquemos como a
psicanálise, terá ela dito “o eu”. Ela o terá
identificado, definido, situado –, e descentrado. Mas o movimento que marca um lugar em uma tópica não escapa forçosa nem,
em todo caso, simplesmente à jurisdição
dessa tópica. No momento em que ela se
apresentasse como o sujeito refletido, criticado, autorizado, nomeado de um “movimento”, de uma “causa”, de um discurso “teórico”, de uma “prática”, de uma “instituição”
multinacional de comércio, mais ou menos
bem consigo, a psicanálise não estaria para
tanto submetida, a priori, às leis da estrutura e, notadamente, à tópica da qual ela formará a hipótese. Por que, por exemplo, não
falar de um “Eu” [Moi] da psicanálise? E por
que não reconhecer nela a ação das leis da
metapsicologia? A dobra [repli] dessa estrutura deve ser reconhecida, mesmo que,
num primeiro momento, pareça se formar
segundo uma simples analogia: do mesmo
modo que a psicanálise quer nos ensinar
que há, além do Id [Ça] e do Superego
[Surmoi], um Ego [Moi], a mesma psicanálise, na condição de estrutura psíquica de
uma identidade coletiva, comporta instân-
trópico ou tópico dentre outros. Mas ele
avança primeiro como uma “imagem” ou
uma “comparação”:
O núcleo da psicanálise: isso que ela a si
mesma tem designado, na palavra de Freud,
como o “núcleo do ser”, o Inconsciente, e
seu “próprio” núcleo, seu “próprio” Inconsciente. Eu assinalo “próprio” e o deixo entre
aspas: mas nada é próprio aqui, nem no
sentido de propriedade como pertencimento (uma parte do núcleo, pelo menos, não
retorna de um Eu) nem no sentido da propriedade de uma figura em relação ao sen-
5> Obra traduzida para o português com o título: Vocabulário da psicanálise. Tradução realizada por
Pedro Tamen, sob a direção de Daniel Lagache. São Paulo: Martins Fontes, 1983. (N. da T.)
artigos
Eis, pois, uma realização que, para a psicanálise
inteira, é chamada a preencher as funções dessa instância à qual Freud conferiu a prestigiosa
designação de Ego [Moi]. Ora, referindo-nos, por
essa comparação, à própria teoria freudiana, nós
queremos evocar essa imagem do Ego [Moi] que
luta em duas frentes: em direção ao exterior,
temperando as solicitações e os ataques; em direção ao interior, canalizando os elãs excessivos
e incongruentes. Freud concebeu essa instância
como uma camada protetora, ectoderme, córtex
cerebral, casca. Esse papel cortical de dupla proteção, para o interior e para o exterior, nós o reconheceremos sem dificuldade no Vocabulário,
papel que não pode – assim compreendemos –
deixar de conter uma certa camuflagem daquilo
mesmo que está a salvaguardar. Ainda que a casca fique marcada por aquilo que ela abriga, aquilo que é ocultado por ela nela se revela. E se o
próprio núcleo da psicanálise não tem de se manifestar nas páginas do Vocabulário, não resta
dúvida de que, oculto e inatingível, sua função
pode ser atestada a cada passo por sua resistência em se submeter a uma sistemática enciclopédica.
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cias que poderão ser nomeadas como Id,
Superego e Ego. Longe de nos fazer ficar à
deriva numa analogia vaga, a figura dessa
relação nos dirá talvez mais ainda sobre os
termos da relação analógica do que uma
simples inspeção interna de seu conteúdo.
O Eu da psicanálise talvez não seja uma introdução malfeita ao Eu de que fala a psicanálise: o que deve ser um Eu, se algo como
a psicanálise puder dizer EU?
Reaplicar a um corpus, qualquer que seja, a
lei que ele faz seu objeto, analisar as condições e as conseqüências desta operação
singular, vejam o gesto inaugural de Nicolas
Abraham neste domínio. Inaugurando porque ele põe o ensaio sob a ação da tradução a qual fui encarregado supostamente,
como se diz em inglês, de introduzir. Inaugural, também, pela problemática que põe
em questão.
Tomando o Vocabulaire de la psychanalyse
de J. Laplanche e de J.-B. Pontalis (Paris,
PUF, 1967),5 aparentemente, como pretexto
mas fazendo algo mais e diverso, Abraham
colocou com efeito a questão do “direito” e
da “autoridade” de um tal “corpus juris”,
pretendendo ter “força de lei” quanto aos
“estatutos da ‘coisa’ psicanalítica”. E
Abraham acrescenta esta especificação essencial: “da ‘coisa’ psicanalítica, tanto em
suas relações com o mundo exterior quanto em sua relação consigo própria”. Essa
dupla relação é essencial naquilo que autoriza a “comparação” e a “imagem”, as quais
irão, em seguida, desempenhar um papel
organizador. É a figura casca-núcleo
[écorce-noyau] que, à origem de toda tradução figurativa, de toda simbolização e de
toda figuração, não seria um dispositivo
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tido do sentido próprio (a “figura” de “a casca e o núcleo” [l’écorce et le noyau], doravante o que se entende por anassemia não
funciona como nenhuma outra figura; ela
figura no título dessas “figuras novas, ausentes, dos tratados de retórica”).
Esta estranha figura sem figura, da-casca-edo-núcleo, tem lugar, encontra seu lugar,
anuncia seu título: ele é duplo e duplamente analógico. 1. A “comparação”: entre o
corpus juris, o discurso, o aparelho teórico,
a lei do conceito, etc., em resumo, o Vocabulário traz, de um lado, a razão e, de outro, o Eu da psicanálise. 2. A “imagem”: o Eu
– do qual fala a psicanálise – parece lutar
em duas frentes para assegurar uma dupla
proteção, interna e externa; assemelha-se a
uma casca. É preciso acrescentar ao menos
um terceiro título escondido como um núcleo sob a casca dessa segunda imagem (e
já essa figura singular opera sobre seu “próprio” abismo, uma vez que ela se comporta
em relação a si mesma como uma casca,
abrigando, protegendo, encriptando uma
outra figura de casca e de núcleo além de si
mesma, etc.): o “córtex cerebral” ou a
ectoderme invocada por Freud seria já uma
“imagem” emprestada ao registro “natural”,
colhida como uma fruta.
Mas não é somente por causa desse caráter
abissal que a “casca-e-o-núcleo” vai rapidamente exceder todo limite e se medir em
relação a todo risco possível, e, podemos
dizer, cobrir a totalidade do campo, se esta
segunda figura não implicasse uma teoria
da superfície e da totalidade que, veremos,
perde aqui toda a sua pertinência.
Que relação será exigida entre esta estrutura “casca-núcleo” e a “conversão” a que
Abraham se refere? Como introduzi-la a
essa “mudança semântica radical”, a esta
“anti-semântica escandalosa” que marcaria o
advento da linguagem psicanalítica? A “cas-
ca-e-o-núcleo” não é uma figura trópica ou
tópica dentre outras, um dispositivo bastante particular que seria abusivo generalizar, atribuindo-lhe tantos poderes? Não se
poderia conduzir a mesma operação a partir de uma outra estrutura trópica e tópica?
Essas questões e outras do mesmo tipo seriam talvez legítimas até um certo ponto.
Mas qual?
Há um ponto e um momento em que a imagem, a comparação, a analogia, cessam. A
“casca-e-o-núcleo” assemelha-se e não se
assemelha mais a sua proveniência “natural”. A semelhança, que se referiria à fruta
e às leis do espaço natural ou “objetivo”,
vem a ser interrompida. Na fruta, o núcleo
pode tornar-se uma superfície acessível por
sua vez. Na “figura”, não se chega nunca a
esse “por sua vez”.
Em um certo ponto, em um certo momento,
uma dissimetria se impõe entre os dois espaços dessa estrutura, entre a superfície da
casca e a profundidade do núcleo que, no
fundo, não pertencem mais ao mesmo elemento, e tornam-se incomensuráveis na relação mesma que eles não deixam de guardar. O núcleo não pode nunca, por uma
questão de estrutura, fazer superfície. “Este
núcleo-aqui”, não este da fruta tal qual
pode parecer para mim, a mim que o tenho
em minha mão, exibo-o depois de tê-la descascado etc. Eu, a quem um núcleo pode
aparecer e para quem um núcleo pudesse
me parecer, eu permaneço como a casca de
um núcleo inacessível. Esta dissimetria não
prescreve apenas uma mudança de regime
semântico, eu diria mais, um regime textual, tomando nota por aqui daquilo que, da
mesma forma e com o mesmo calibre, ao
retornar, prescreve uma outra lei de interpretação da “figura” (a casca-e-o-núcleo)
que a teria provocado.
Precisemos o sentido (sem mais sentido)
6> Cf. por exemplo “Le fantôme de Hamlet ou le VI’acte” [O fantasma de Hamlet ou o VI ato] precedido por “L’entr’acte de la ‘vérité’” [O entreato da “verdade”], in L’écorce et le noyau [A casca e o núcleo ,
1995] (Anasémies, II) Aubier-Flammarion, 1978. Esse volume traz uma epígrafe com um fragmento de
L’écho de plomb et l’écho d’or , de G. M. Hopkins traduzido por Abraham. A epígrafe do Verbier de
l’Homme aux loups era uma tradução de um trecho de Babits. O terceiro tomo de Anasémies se intitula Jonas, tradução e comentário psicanalítico do Livre de Jonas, de Mihaly Babits. E o quinto tomo:
Poésies mimées , traduções de poetas húngaros, alemães e ingleses...
artigos
Shakespeare, 6 etc.) e em meditar sobre a
tradução, nós o compreenderemos e o partilharemos melhor se nos transportarmos,
se nos traduzirmos a nós mesmos, tendo em
vista isto o que ele nos diz de anassemia e
de símbolo, e se o lermos voltando para o
seu texto seus próprios protocolos de leitura. Do mesmo modo, e como “figura” exemplar, a casca-núcleo deveria ser lida segundo a nova regra, anassêmica e simbólica,
pela qual, todavia, ela nos foi introduzida. É
preciso converter e voltar para ela a lei que
ela dera a ler. Fazendo isso, não se acede a
nada que seja presente, além da casca e de
sua figura. Além da casca (está) “a não-presença, núcleo e razão última de todo discurso”, o “intocável nucléico e a não-presença”. As “mensagens”, mesmo que o texto
nos faça triunfar, devem ser reinterpretadas segundo os novos “conceitos” (anassêmico e simbólico) do envio, da emissão, da
missão ou da missiva. O símbolo freudiano
do “mensageiro” ou do “representante”
deve sobretudo ser submetido à mesma reinterpretação (“Vimos como [...] o procedimento anassêmico de Freud cria, graças ao
Somato-Psíquico, o símbolo do mensageiro
e compreender-se-á mais adiante que ele é
capaz de revelar o caráter simbólico da própria mensagem. Em nome de sua estrutura
semântica, o conceito do mensageiro é um
símbolo enquanto alusão ao não-conhecível
por meio de um desconhecido, enquanto a
única relação dos termos é dada. Em última
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dessa dissimetria. O núcleo não é uma superfície dissimulada que, depois de atravessada a casca, poderia aparecer. É inacessível e desde então aquilo que o marca como
não-presença absoluta ultrapassa o limite
do sentido, disso que terá ligado para sempre o sentido à presencialidade. O inacessível de um núcleo que não se apresenta (escapando às leis da própria presença) intocável e in-significável, in-significável de outra forma pelo símbolo e pela anassemia,
esta é a premissa, ela mesma in-apresentável, dessa teoria insólita da tradução. Será
preciso traduzir, teria sido preciso traduzir
o in-apresentável, no discurso da presença,
o insignificável, na ordem da significação.
Uma mutação feita acontecimento nessa
mudança de ordem e na heterogeneidade
absoluta dos dois espaços (traduzido e traduzente) deixa na tradução a marca de uma
transmutação. Em geral, admite-se que a
tradução opera do sentido ao sentido por
meio de uma outra língua, ou de um outro
código. Aqui, ocupada com a origem assemântica do sentido, como a fonte não-apresentável da presença, a tradução anassêmica deve dobrar a língua para dizer as condições não linguageiras da linguagem. E, donde o mais estranho, ela pode fazê-lo, às vezes na “mesma” língua, no mesmo corpus
lexical (por exemplo: prazer, “prazer”, Prazer). O prazer, que Nicolas Abraham, durante toda a sua vida, teve em traduzir, sobretudo os poetas (Babits, G. M. Hopkins,
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análise, todos os conceitos psicanalíticos
autênticos se reduzem a essas duas estruturas, aliás complementares: símbolo e anassemia.”). O valor mesmo de autenticidade
parece-me (“conceitos autênticos”) não sairá intacto, em seu sentido corrente, dessa
transmutação.
Traduzir de outro modo o conceito de tradução, traduzi-lo em si mesmo fora de si
mesmo. A heterogeneidade absoluta, marcada pelo “fora de si mesmo” que porta,
além ou aquém do sentido, deve ainda ser
traduzida, anassemicamente, no “em simesmo”. “Tradução” guarda uma relação
simbólica e anassêmica com a tradução, a
isso a que se chama “tradução”. E, se eu insisto, não é apenas para reafirmar isso que
se diz e se faz aqui mesmo, a saber que se lê
a tradução de um texto que ele mesmo emprega para traduzir um outro texto. Tanto
que este último, esse primeiro, este que assina Nicolas Abraham já está versado na
mesma temática. Uma temática sem tema,
uma vez que o tema nuclear nunca é um
tema; dito de outro modo, nunca é um objeto presente à consciência atenta, posta
sob um olhar. O “tema” da “tradução” dá
entretanto todos os sinais de sua presença,
e, sob seu nome, sob seus homônimos em
todo caso, em A casca e o núcleo. Normalmente, que se trate da “vocação da metapsicologia” (“Ela tem de traduzir [ênfase
de Jacques Derrida] os fenômenos da consciência – auto ou heteropercepção, representação ou afecção, ato, raciocínio ou julgamento de valor – na língua com uma simbologia rigorosa, revelando as relações
concretas subjacentes que conjugam, em
cada caso particular, os dois pólos anassêmicos: Núcleo e Invólucro. Dentre essas relações, existem as formações típicas ou universais. Nós nos deteremos aqui em uma
delas, uma vez que esta constitui o eixo
tanto da cura analítica quanto das elaborações teóricas e técnicas que dela derivam”),
que se trate precisamente da formação mítica ou poética, a cada vez é preciso aprender a suspeitar de uma certa ingenuidade
tradutora e traduzir de outro modo: “O beócio pretende traduzir [ênfase de Jacques
Derrida] e parafrasear o símbolo literário e,
conseqüentemente, ele o abole irremediavelmente”. E mais adiante: “Esta maneira de
ver se impõe ainda mais quando o mito é
tomado como exemplar de uma situação
metapsicológica. Bem ingênuo seria aquele
que o tomasse pela letra e o transpusesse
[ênfase de Jacques Derrida] pura e simplesmente para o domínio do Inconsciente. E,
sem dúvida, os mitos correspondem a numerosas e variadas ‘histórias’ que se ‘reportam’ aos confins do Núcleo.”
Um certo “trans” assegura a passagem em
direção ou em procedência do Núcleo, por
meio da tradução, as trans posições trópicas, segundo as “figuras novas, ausentes
dos tratados de retórica”, todas as transferências [transferts] anassêmicas. Em sua relação com o Núcleo inapresentável e inaparente, ele [trans-] emerge dessa transfenomenalidade, cujo conceito tivera lugar desde “O símbolo ou o além do fenômeno” [Le
symbole ou L’au-delà du phénomène] (inédito de 1961, compilado no volume de
Anasémie II, intitulado A casca e o núcleo.
Devemos, então, nos reportarmos ali à
abertura do trabalho).
Em 1968, a interpretação anassêmica trata,
antes de mais nada, por certo, das temáticas freudianas e pós-freudianas: a metapsicologia, o “pansexualismo” de Freud que
seria “aquele – anassêmico – do Núcleo”,
esse “Sexo nucléico” que não teria “nenhuma relação com a diferença dos sexos” e
sobre o qual Freud teria dito “por anassemia, ainda, que ele é de essência viril” (eis
Artigo recebido em março/2002
Aprovado para publicação em abril/2002
artigos
sempre insuficiente e o trabalho iniciado
em colaboração com Maria Torok prossegue. As publicações seguintes de Maria Torok nos darão ainda mais razões para crer
na abertura desse trabalho à mais admirável fecundidade. Assim, eu não pude “situar”:
como situar o que é tão próximo e não cessa de ter lugar, aqui, alhures, ali, ontem, hoje,
amanhã? Esperava-se de mim, ainda, talvez,
que eu dissesse como era preciso traduzir
esta nova tradução. Eu não poderia fazer
nada além de acrescentar uma e dizer a vocês em suma: a sua vez de traduzir. E é preciso ler tudo, tudo traduzir, é só começar.
Uma última palavra antes de retirar-me da
entrada mesmo. Citando Freud, Abraham
fala aqui de um “território estrangeiro, interno”. E sabe-se que a “cripta” que ele vai
propor em conjunto com Maria Torok, o
novo conceito, tem seu lugar no EU [Moi].
Ela está alojada, como um “falso inconsciente”, como a prótese de um “inconsciente artificial”, no interior do ego clivado. Ela forma, como toda casca, uma face dupla. Ora,
uma vez que falamos aqui de uma dificuldade de tradução, em suma, da homonímia
dos “Eus” [des Moi] e da singular locução “o
Eu [le Moi] da psicanálise”, a questão coloca-se por si: e se houvesse a cripta ou o fantasma no Eu [le Moi] da psicanálise? Se digo
que a questão terá sido colocada, por si
mesma, como pedra angular, não é para
presumir o que “pedra” quer dizer. Nem
para decidir sobre a entonação com a qual
vocês diriam na falsa intimidade das declinações múltiplas do eu-me-mim: EU – a psicanálise, vocês sabem...
pulsional > revista de psicanálise >
ano XV, n. 158, jun/2002
aí, parece-me, uma das passagens mais provocativas e enigmáticas do ensaio), certas
elaborações vindas depois de Freud, cujas
“dependências” e “implicações” (“pseudologia da criança”, “teoria da criança”, “imobilismo” e “moralismo” etc.) Abraham situa.
Tantas direções traçadas para uma decifração histórica e institucional do campo psicanalítico. E, por conseguinte, de formas de
introjeção, de recepção ou de assimilação,
de desvios, de rejeição ou de incorporação
que ele pôde reservar a tais pesquisas.
Então, poder-se-ia dizer, essa interpretação
anassêmica comporta a si mesma. Ela se
traduz e demanda ser lida segundo os protocolos que ela constitui ou que ela mesma
performa. Isso que é dito aqui, em 1968, da
anassemia, do símbolo, da duplicidade do
traço, prescreve, retrospectivamente e por
antecipação, um certo tipo de leitura da
casca e do núcleo de A casca e o núcleo .
Todos os textos anteriores e posteriores a
1968 encontram-se aqui, de qualquer modo,
envolvidos entre a casca e o núcleo. É essa
leitura de fôlego com a qual vou aqui me
comprometer. Naturalmente, não se trata
apenas de ler, mas de, no sentido mais trabalhoso do termo, traduzir.
Como teria introduzido – EU – uma tradução? Espera-se talvez de mim que eu responda ao menos a duas expectativas. Primeiro, que eu “situe” o ensaio de 1968 no
conjunto da obra de Nicolas Abraham.
Acontece que ela ocupa cronologicamente
um lugar intermediário, entre as primeiras
pesquisas de 1961 e as teorizações mais célebres (a incorporação e a introjeção, a
criptoforia, o efeito de “fantasma”, etc.),
agora acessíveis em Anasémies I, Le Verbier
de l’Homme aux Loups, (1976) e os capítulos
II a VI de Anasémies II, L’écorce et le noyau,
(1978). Mas uma situação cronológica é
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