Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual
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Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 1 PROJETO DE PESQUISA DOUTORADO Título Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual Orientador John C. Dawsey Autora Carolina de Camargo Abreu I. Resumo Essa pesquisa propõe lançar luz sobre a experiência das festas raves de trance focando os planos em conflito, carregados de tensão, operados nas montagens realizadas por esse modo de festejar. Debruça-se especialmente sobre a performance das festas de trance enquanto “rituais psicodélicos” e trata da instabilidade entre as imagens de espetáculo e de ritual que se entrelaçam, inspirada pelas discussões travadas entre Victor Turner e Richard Schechner. Mais do que caracterizar uma experiência trance da rave, essa pesquisa investiga a própria procura por experiência pelos ravers. Neste caminho, propõe pôr em relação os conceitos ravers de xxxperience e vibe, e as noções benjaminianas de erfahrung (experiência coletiva) e erlebins (experiência individual ou de um grupo específico), orientada pelas preocupações do campo da antropologia da experiência. II. Introdução e justificativa (referências principais) A forma de festejar rave tornou-se prática de muitos paulistanos desde meados dos anos 90. Raves são festas que se estendem por mais de quatorze horas consecutivas, movidas à música eletrônica e psicoativos, principalmente o chamado ecstasy. Realizadas em lugares afastados dos núcleos urbanos e de sua atividade cotidiana, as raves acontecem geralmente em sítios ou fazendas escolhidos, alugados e preparados para a ocasião. No mês de março de 2007, por exemplo, só no estado de São Paulo, aconteceram duas grandes raves, mobilizando aproximadamente 10.000 pessoas cada, e, pelo menos, vinte outras raves menores que reuniram entre mil e dois mil participantes. Embora as raves sejam freqüentadas por jovens moradores de grandes centros urbanos, diferenciam-se de outros eventos também embalados por música eletrônica que acontecem na(s) Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 2 cidade(s) - tipicamente em night clubs -, por instituírem o lugar da festa em espaços não marcados pelos usos e divisões do território metropolitano, apropriando-se geralmente de áreas rurais, às margens da cidade. Minha dissertação de mestrado1 procurou anotar como na dinâmica sócio-política de dez anos de raves no Brasil esse modo de festejar se desdobrou em dois discursos diferenciais: o do techno e o do trance. Atenta às diferenciações entre esses discursos, já indicadas em meu mestrado, essa pesquisa agora se debruça especialmente sobre o contexto das raves de trance a fim de problematizar as justaposições que opera entre as imagens cambiantes de espetáculo e de ritual. As raves de trance, diferentemente daquelas de techno, propõem a realização da festa enquanto um "ritual psicodélico" para a transcendência a universos paralelos - Trancendence e Universo Paralelo são nomes de núcleos brasileiros que organizam os eventos. Nessas raves, fogueiras são acesas próximas da pista de dança, toques de instrumentos de percussão juntam-se à música eletrônica, muitos dos participantes enfeitam-se com adereços indígenas e pinturas corporais de cores fluorescentes, projeções de raio-laser ressaltam o cenário de se estar “no meio do mato”, imagens de divindades hindus são colocadas ao lado das pick-ups dos DJ´s, fala-se da abertura de “portais dimensionais para conexão intergaláctica” através da dança coletiva. O festival2 EarthDance de outubro de 2002, que reuniu cerca de três mil pessoas acampadas em Cachoeira Alta (interior de Minas Gerais) durante quatro dias, marcou para às sete horas do segundo dia de festa a realização de um “ritual” específico. Foi a primeira vez que notei uma rave, tantas vezes denominada de “ritual” por seus freqüentadores, propor outro ritual: um ritual durante o ritual. Espetáculos diversos são comuns nessas festas, apresentações de malabares são tradicionais durante as raves. Também são comuns apresentações circenses com panos, o uso de fantasias diversas (como de fadas), máscaras (de aliens, por exemplo) e narizes de palhaços. Entre os organizadores da rave Tribe, por exemplo, há um grupo de artistas e voluntários que realizam intervenções, passagens e jogos com os participantes da festa, porém, na grande maioria das vezes e na maioria da raves, os espetáculos e brincadeiras que acontecem durante a festa são criados pelos próprios ravers3, e apenas raramente há momentos que se fazem distinções nítidas entre 1 Raves: encontros e disputas. São Paulo, PPGAS/USP. Dissertação de mestrado em Antropologia Social, 2005. Festival é denominação usual para as raves de trance que se estendem por vários dias consecutivos. Geralmente acontecem durante algum feriado prolongado, ou durante as férias de verão ou de julho. 3 O termo raver refere-se àquele que participa da rave sem nenhuma pretensão de criar uma denominação identitária. A proposta é a de não essencializar, apenas notar os presentes no momento da festa. A constituição de identidades sociais, nessa pesquisa, é considerada como um processo nunca completado, um movimento permanente, de articulação discursiva - definido nos termos de Hall (2000) como identificação. A mesma perspectiva é expressa pela proposta de performatividade de Butler (2000, 2003) e pela visão de Haraway (2000) quanto à natureza fragmentada e 2 Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 3 espectadores e artistas, pois na rave essas posições se (con)fundem. A festa é arena e marca o limite de um jogo mais amplo (Huizinga, 2004), na qual todos os presentes são participantes, criam a rave. A indistinção entre atores e espectadores na rave, faz da festa um jogo próximo ao carnaval, onde espectadores não assistem, mas vivem a festa. Porém esse carnaval não ignora toda diferenciação, como na Idade Média descrita por Bakthin (1983), pois o DJ ocupa um espaço privilegiado, ora associado a um palco, ora a um altar. No dia e hora marcados no festival Earthdance, ao redor de uma enorme fogueira, juntaram-se aproximadamente duas mil pessoas. Surge então um índio de meia-idade pintado e vestido cerimonialmente portando um cachimbo: tanga, exuberante cocar, adereços nos braços e pernas, rosto todo coberto por tinturas. Ele procura, desastrosamente, num primeiro momento, organizar a disposição espacial dos presentes, mas suas orientações não alcançam à multidão. Como que desistindo, contenta-se apenas em ser o foco das atenções. Olhando para o fogo o índio enuncia algumas palavras ou cantos que são inauditíveis para maioria, faz alguns gestos e põe-se a dançar ao redor da fogueira. Os ravers, prontamente, seguem a movimentação, o que cria certo tumulto, pois o raio da fogueira torna-se pequeno para uma dança coordenada de tantos. À música eletrônica, que estava em volume mais baixo do que em outros momentos da festa, se junta o som de djembês, bongôs e outros tambores. Por meia hora, as pessoas mantêm a dança em volta da fogueira ajeitando-se no aperto da roda. O fim da aparição do índio é sugerido pelo aumento do volume da música eletrônica, que, como um chamado, pareceu conduzir os presentes para a arena paralela, a pista de dança. Earthdance. outubro de 2002 Fotografias de Lisa & André Ismael 4 fraturada das identidades. Embora tenha suas condições determinadas de existência - o que inclui os recursos materiais e simbólicos exigidos para sustentá-la - ressalta-se que a identificação é condicional, está alojada na contingência e é recurso para o agenciamento político. 4 O uso das fotografias foi autorizado pelos autores que são freqüentadores, fotógrafos e organizadores de raves brasileiras desde meados dos anos 90. A seqüência foi montada à partir de um painel de 104 fotografias disponível no site Zuvuya (www.zuvuya.net/sites/raveon/earthdance/2002/english/noite.htm), que é mantido por um núcleo brasileiro organizador de raves de trance e representa um importante ponto de visita, encontro e troca na internet para os participantes de raves. Neste sentido, são como estórias sobre estórias que eles contam de si mesmos (cf. Geertz, 1989). Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 4 No dia seguinte ao espetáculo do “ritual”, encontro o índio sozinho numa mesa da lanchonete da festa e vou conversar. Ele, Thini-á, representante da tribo Fulni-ô, dizia-se indignado e frustrado, pois não havia sido ouvido, não lhe deram o espaço esperado. Achei curioso pois ele havia feito tanto sucesso na noite anterior!?... Thini-á queria que a música da pista fosse desligada para que ele pudesse falar sobre seu trabalho e propostas políticas5, porém eu bem sabia que desligar a música eletrônica numa rave era um pedido inaceitável. Desligar a música eletrônica significaria matar a festa, pois a música é como uma corrente elétrica que impulsiona o coração da rave: a pista de dança. A pista da dança “bomba”, produz e emana a energia que sustenta toda a festa. As palavras têm um lugar bem localizado nesse festejar, ficam nas bordas, nos círculos de amigos que rodeiam a pista, já que a pista aparece ser o cerna da rave, arena por excelência de outra forma de comunicação: a dança coletiva. Também as palavras não são muito sérias, mas sim descompromissadas: lembranças agradáveis, pequenas histórias engraçadas ou curiosas sobre pessoas do grupo de amigos ou do próprio grupo. Tanto mais longe da pista de dança, mais sérios parecem ser os temas, porém ainda em tom de elogio à festa, ao encontro, à diversão. Por exemplo, à beira dos rios e cachoeiras que rodeavam a pista da Trancendence de julho de 2002 (festival realizado anualmente, entre 1999 e 2005, em Alto Paraíso de Goiás) falava-se da competição desenfreada, da ansiedade e da falta de sentido da vida cotidiana na cidade para elogiar uma vivência de “comunidade” na rave. Falava-se da correria e da solidão no dia-a-dia do trabalho durante a semana para reiterar a satisfação em poder conversar sobre duendes, Deus, propostas budistas, teorias da física quântica, efeito de psicoativos, o Calendário Maia - algumas das coisas tidas como “realmente importantes” no contexto das raves de trance. A palavra é marginal6 na rave, pois é a dança, elogiada como linguagem universal, a forma de comunicação, atuação e produção de sentido privilegiada. Motivada pelos impulsos elétricos da música e sustentada pelo incentivo químico de psicoativos, é a dança coletiva da pista que “bomba” a energia para a transcendência a universos paralelos. 5 Conforme texto que Thini-á me enviou posteriormente por e-mail: “Thini-á (“estrela”, em Yathê) vem trabalhando desde 1992 com projetos voltados para o público infantil e juvenil, atuando nas escolas de primeiro e segundo graus e universidades, públicas e privadas, visando divulgar, a partir de um olhar interno, as riquezas e mazelas das culturas indígenas em nosso país. Uma atenção especial é dada à questão ambiental, aos problemas relacionados aos desmatamentos, poluição e outros males que afetam tão profundamente aos povos indígenas das florestas tropicais, mas também do litoral e do cerrado.” 6 A palavra é marginal na rave, por vezes reticente, porém ocupa um lugar muito especial: a da conversa descomprometida nas rodas de amigos. Essa oportunidade de “ficar de papo pro ar” na rave é característica e bastante valorizada, especialmente no contraste à idéia de que na correria da vida diária as pessoas pouco conversam. Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 5 No canto da Earthdance, na lanchonete, o personagem que havia feito tanto sucesso numa noite anterior, encontra-se sozinho, como querendo falar, contar a história de seu nome Thini-á, mas sem ter audiência. Na montagem operada pelas raves de trance, o indígena brasileiro é apenas um dos símbolos que estão sendo articulados. O trance, além de estilo musical, pode ser considerado uma experiência lisérgica para alcançar outros níveis de consciência. As pessoas buscam a transcendência ou espiritualidade no ambiente psicodélico através da música, com auxilio das drogas, contato com imagens da cultura mística, símbolos de deuses e rituais tribais. O trance psicodélico tem uma conexão direta com o misticismo, fazendo referências principalmente ao Xamanismo e ao Hinduismo. Nos rituais xamânicos, ritmos fortes acelerados e o uso de plantas alucinógenas provocam os efeitos de transe necessários para alinhar o corpo, mente e alma, atingindo uma suposta comunicação dos índios com os seus deuses. Em transe e em outro plano espiritual, os índios adquirem ensinamentos em suas experiências, sempre em contato com a natureza. No trance, as batidas do xamanismo se tornam eletrônicas com caráter hipnótico à música, e as drogas, em grande parte, sintéticas. Em ambos ambientes, seja no ritual tribal xamânico ou no ritual eletrônico trance, a dança representa a busca por um estado de transcendência coletiva. Podemos inclusive comparar os líderes espirituais, Xamãs, com os DJs. Ambos controlam o ritmo, a frequência, a velocidade do som psicodélico, proporcionando aos demais o estado de transe. O Psychedelic Trance recupera o sentido tribal e transcedental de dançar. As raves se comparam às cerimônias indígenas religiosas, como as do Pow-wows americanos, ou nos cânticos noturnos do índios Truká (interior de Pernambuco), que usam a música repetitiva e a droga Jurema para contactar um universo paralelo. (Lívia Paupério, jornalista e raver, disponível no site Zuvuya, capturado em 5 de maio de 2005) Na perspectiva sugerida por Victor Turner, o ritual proposto pela rave talvez não possa ser mais do que um teatro do ritual. Conforme caracteriza Turner (1982), os rituais que predominam em sociedades pré-industriais - tal a citação dos Pow-wows e dos Truká acima - estão associados a ritmos cíclicos, biológicos e sócio-estruturais, e integram-se centralmente ao processo social total, produzindo símbolos que evocam significados intelectuais e emotivos comuns a todos os membros do grupo. Em sociedades onde a esfera do trabalho separa-se da atividade ritual, tal como nas sociedades industriais, surge a esfera do lazer como campo privilegiado para os processos liminares de produção simbólica. Na esfera do lazer ou entretenimento, marginal às arenas centrais da economia e política, a liminariedade - caracterizada nesse contexto por Turner como liminóide - se dá por manifestações plurais, fragmentárias, e experimentais que ocorrem nas interfaces e interstícios do conjunto de instituições centrais. Essas manifestações já não têm a obrigatoriedade típica dos rituais, mas caracterizam-se como atividades de adesão voluntária, optativa e individual7. 7 Se as análises de Turner podem, por vezes, sugerir uma perspectiva evolucionista - do ritual ao teatro - Richard Schechner (1988) aponta que o mesmo facilmente se inverte. Elementos rituais interpenetram-se ao teatro e ao Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 6 Mas a “balada” que uma rave sugere é mais do que uma opção de lazer descomprometido entre tantas que a metrópole pode oferecer, pois requer mobilizações de ordens diversas e é quase sempre descrita como uma “experiência” marcante para seus participantes. Xxxperience é o nome de um dos principais núcleos brasileiros de raves de trance8. O nome deve ser lido em inglês - tal como a maioria das concepções e nomenclaturas específicas do universo rave -, sugere uma “experiência” diferenciada que é reforçada pelo som prolongado do X, e, omitindo a letra E, parece carregar algum segredo especial já que a letra X é usada comumente como incógnita. Louvado Seja Deus pela experiência prima e única que tive nesse fim de semana. O que acontece quando pessoas que REALMENTE se esforçam para ir ao mundo dos sonhos???(...) Uma energia cósmica vinda da imagem de Shiva me contagiou, meu corpo já não sentia nenhuma dor ou cansaço depois de tanto dançar em sets anteriores e chego a gritar MEU DEUS! A cada virada, parecia estar em outra dimensão uma sensação plena de bem estar misturada com momentos de ARREPIO e CHORO. Olhava para o céu azul e agradecia à boa força que me proporcionou esse momento único em minha vida. Era como se a música ouvida fizesse cócegas em meu cérebro. Compartilho o momento com outras pessoas ao meu lado que estavam sentindo a mesma boa e mágica sensação. (assinado por M-HIPNOTIC, capturado do site Zuvuya em 1 de junho de 2005 , grifo meu) A experiência da rave, uma “experiência prima e única” é, antes de mais nada, sensorial, orgânica, corpórea. Talvez possa ser, de alguma forma, mas não apenas, caracterizada como um “estado somático”, tal como definido por John Blacking (1977). A tese de doutorado em ciências sociais de Pedro Teixeira (2006) - intitulada Música eletrônica e xamanismo: técnicas contemporâneas do êxtase - aponta a eficácia da música eletrônica de pista para a produção de um transe exclusivo à sociedade tecnológica. O autor analisa como os DJ´s trabalham com a sondagem dos liminares de resolução do corpo sonoro motor de uma máquina de transe através de 3 parâmetros elementares: (1) efeitos da altíssima intensidade (dB-decibéis) do som eletronicamente amplificado, caracterizado pela experiência de imersão corporal em um ambiente vibratório; (2) efeitos de diferentes faixas de freqüências (Hz- hertz) quando produzidas em altíssimo volume, caracterizado pela experiência de diferenciação entre sons que penetram o corpo, colidem com ele ou o dissolvem; (3) efeitos de velocidades (BPM - batidas por minuto) do tempo musical metronicamente controlado, caracterizados pela sincronização de ritmos infra e inter-corporais. espetáculo, assim como aspectos teatrais se expressam nos rituais. Ver também introdução e resposta técnica do projeto temático “Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual” (processo 06/53006-2, apresentado à FAPESP), que propõe ver as performances como uma “trança” de elementos de ritual e teatro. Esse entrelaçar é tema central dessa pesquisa que procura compreender a rave como montagem entre espetáculo e ritual. 8 O núcleo Xxxperience organiza raves no Brasil desde 1996. No mês de maio de 2007, o núcleo festejou sua 100º edição. Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 7 Mesmo focando a música eletrônica de pista, o autor nota que a eficácia desta se dá pela formação de um sistema de ressonância no qual os corpos dos dançantes não são passivos, não são apenas vibrados, mas também vibram pela dança e acabam por concretizar um “corpo coletivo sonoro-motor”. O autor admite que seja preciso certa “disponibilidade” dos participantes para que a sinergia som-movimento se alastre para todo o público, mas não considera os efeitos dos psicoativos ingeridos na ocasião dessas festas. Ora, se a festa é o espaço social, por excelência, permissivo ao uso de substância ilegais, perigosas e ilícitas, arena propícia para o exagero, as experimentações, a violação de regras e tabus (Durkheim, 1996; Bakthin, 1993; Turner, 1982; entre outros)9; a forma de festejar rave não se vale de todas ou qualquer substâncias, mas caracteristicamente do ecstasy, a “droga”10 que já foi chamada pelos seus usuários nos anos 90 de “pílula do amor”. Na rave, ingere-se o ecstasy, uma tecnologia química bastante específica do século XX, que desde o final da década de 80 foi apropriada como “droga recreativa” pela chamada “geração clubber”. Seus reconhecidos efeitos não são apenas individuais, mas atravessam e criam um corpo coletivo. O manual de psiquiatria clínica Aconselhamento em dependência química (2004:100) reconhece que após aproximadamente 50 minutos à ingestão do ecstasy, não se registra alucinações ou distorções perceptuais, apenas a “intensificação dos sentimentos, aumento de insights e da empatia”. “Usuários reportam uma sensação de proximidade, bem-estar, aumento das sensações táteis, do prazer sexual e das expressões de afeto”, “demonstram mais necessidade de estar e conversar com outras” pessoas. Na rave, alimenta-se o corpo com o ecstasy e, preferencialmente, com água (em detrimento às bebidas alcoólicas) para não distorcer os efeitos desejados do ecstasy; nesse mesmo sentido, também se fuma “maconha” para potencializar os tais efeitos do primeiro. Observam-se modos de usos, quantidades e combinações de psicoativos (ecstasy, maconha, LSD, quetaminas, bebidas energéticas, bebidas alcoólicas, tabaco) bastante regulados nas raves - inclusive diferenciados entre as raves de techno e de trance (Abreu, 2005) -, mas vale, neste momento, apenas apontar o uso predominante e característico do ecstasy a fim de notar a “disponibilidade” para produzir certo “estado somático” individual e coletivo da experiência rave. 9 John Dawsey , em “Quarta-feira de cinzas” (2006: 2), cita Freud (1974: 168): “Um festival é um excesso permitido, ou, melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma proibição”. 10 Cabe considerar que a conceituação de “droga” é construída historicamente por discursos jurídico-médicos e contextos políticos específicos. Sobre o assunto ver Rodrigues (2004), Carneiro (2002) e McRae&Simões (2000). Ver também Maurício Fiore.(2007) sobre a instabilidade e as controvérsias no jogo teórico- político da conceituação de substâncias reguladas por instituições médicas brasileiras. Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 8 O impacto sensorial criado pela forma de festejar rave, dada a interação (1) da atuação do ecstasy, (2) da música eletrônica de pista, (3) da dança coletiva que se estende por mais de 14 horas consecutivas, (4) em espaços sociais às margens da vida cotidiana urbana; produzem um “estado somático” específico, reconhecido e controlado pelos freqüentadores das raves. Mas se um choque sensorial é característico do festejar rave, não é por isso suficiente, já que apenas dizse que a festa foi boa quando “rolou a vibe”. Vibe é expressão de comunhão, um compartilhar de sensações e emoções. Cabelo, numa entrevista de agosto de 2004, definiu: “A vibe é a comoção geral, é a loucura em grupo”. Jef, do mesmo grupo de amigos, mas em outra ocasião, numa entrevista de maio de 2005, falou do assunto através da lembrança das raves que participou anos antes: Vários amigos, todos na mesma sintonia, todos sem querer nada em troca. Pura e simplesmente querendo compartilhar o momento de felicidade, todo mundo junto, é isso. É um traço muito fino que liga todo mundo um ao outro, num sentimento comum, e todos eles. É a mesma finalidade de estar alí, de dividir o momento único de felicidade e loucura. Estar ali, compartilhar isso. Aquele negócio do sorriso bobo no rosto. Marcelo (nome fictício), durante entrevista de junho de 2004, também definiu “vibe” em termos muito próximos: A vibe é um momento quando as pessoas acreditam estar pulsando no mesmo tempo, na mesma sintonia, e... é isso. Ficam felizes juntos, dançam juntos, tem um sentimento coletivo... de vibe. A dança, tal como sugere Marcel Mauss (2003), pode ser vista como uma técnica do corpo que dá acesso a estados emocionais11, mas além de ser uma técnica intra-corpórea, é também inter-corpórea. Neste sentido, a dança coletiva na rave é como um jogo, uma comunicação, entre corpos. Nas pistas de dança das festas de trance, observa-se alguns movimentos regulares e uma comunicação intensa entre os presentes. Na pista, todos dançam com todos, os limites da rodas de amigos são tênues ou desaparecem, há uma troca intensa de sorrisos e olhares, essa é a conexão primeira que cria a vibe da rave. Vibe é a categoria, neste caso uma categoria nativa, para a experiência mais desejada da rave. Experiência para Victor Turner (1986) é o processo de produção de significados. Processo de significação da vida social que irrompe quando “algo acontece ao nível da percepção” - sendo que o prazer ou a dor podem ser sentidos de forma mais intensa - e se completa através de uma forma 11 Mauss (2003), em “As Técnicas do Corpo”, reconhece a educação emocional operada por técnicas corporais especialmente através do exemplo da “educação do sangue-frio”. Reconhece ainda que “no fundo de todos os nossos estados místicos há técnicas corporais” (2003: 422). Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 9 de expressão. Nessa perspectiva, a festa seria uma expressão, uma performance que, no caso da rave de trance se quer ritual, um “ritual psicodélico” próprio das sociedades industriais na virada do século XXI. Cabe pontuar que a noção de performance nesta pesquisa não se refere à linguagem ordinária de papéis atuados e à manutenção do status que constitui a comunicação no processo social cotidiano como define Goffman (1995), mas alude - nos termos definidos pelos trabalhos de Turner (1982,1987) e Schechner (1985,1988) - à linguagem dramatúrgica que é expressa especialmente quando se dá interrupções no fluxo diário da interação e os sujeitos atuam conscientemente tentando mostrar aos outros o que estão fazendo ou devem fazer e exercitam, assim, a habilidade humana de comunicar sobre o próprio sistema de comunicação. Nesse sentido, Turner trata da performance como um meta teatro da vida social. As raves de trance, como performance de um “ritual psicodélico”, operam montagens com citações de “rituais tribais” característicos de “comunidades”, e tecnologias típicas de sociedades do final do século XX. No modo de festejar rave, símbolos diversos que se referem a certo imaginário sobre “rituais ancestrais”12 (imagens de Shiva, frases musicais, pinturas corporais, o próprio espaço escolhido como lugar da festa: no meio de uma floresta ou em praias desertas) são tingidos, sobrepostos, atravessados por tecnologias ocidentais bastante específicas: (1) tecnologias de produção e ampliação da música eletrônica, (2) a tecnologia química do ecstasy, (3) efeitos ópticos usados na ambientação do lugar, como o estrobo, as cores fluorescentes, o raio laser13. A própria montagem pode ser vista como uma tecnologia de comunicação, notoriamente usada pelo cinema, mas que é também o princípio que opera a música eletrônica de pista. Embora Turner aponte a performance como a expressão que completa uma experiência, Edward Bruner (1986) ressalta que a relação entre experiência e suas expressões é sempre problemática, sendo a tensão entre essas instâncias um campo de pesquisa chave para a antropologia da experiência. A experiência estrutura expressões, e, por outro lado, as expressões também estruturam a experiência. Essa relação dialógica de mútua dependência não foi assumida como um dilema para Dilthey, mas como a base da natureza da informação nas ciências humanas, o círculo hermenêutico. 12 Roger Bastide, em “O Sagrado Selvagem”, no final dos anos 70, observa os festivais de drogas e música (época, por excelência, da psicodelia) e nota que os jovens recriavam o encontro extático dos homens e dos Deuses através de um esteriótipo sobre o transe dos povos “primitivos”: a imagem de “selvagem”. Tal imaginário haveria se constituído historicamente, principalmente, pelos olhares de exploradores, viajantes e missionários, - “sobretudo quando estes viajantes eram médicos ou ainda mais, psiquiatras, porque eles chegam de um mundo ‘outro’ com seus preconceitos de ocidentais, que desconfiam da linguagem do corpo” (1992: 144) - e se difundido pelo cinema e a televisão. 13 Tecnologias mecânicas, usadas para a produção de sensações sinestésicas, também poderiam ser citadas já que algumas raves dispõem bung jump como atração especial, outras são realizadas em parques de diversões, por exemplo. Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 10 No processo de expressar ou performar textos, estruturam-se unidades da experiência e de significado. Na vida real, diz Bruner, todo começo tem antecedentes, e todo fim não implica que o tempo parou ou que o evento acabou; nós é que criamos as unidades de experiência e significado recortando-os na continuidade de nossas vidas. Todo contar é uma imposição arbitrária de sentido no fluxo da memória, através do qual nós privilegiamos algumas unidades e desconsideramos outras, e esse seria um processo essencialmente interpretativo e reflexivo. No caminho traçado por Dilthey, Edward Bruner e Victor Turner concordam que “uma experiência” seria caracterizada, marcada, identificada, como período de interrupção do fluxo da vida quando a mente torna-se “consciente de si mesma”, do presente experimentado, articulando-o com o passado e as possibilidades do futuro14. Períodos de reflexibilidade que conectam presente, passado e futuro numa unidade de significado, momentos de um despertar e (re)contar significativamente a vida. Se por um lado, a performance do ritual das raves de trance procura por uma experiência coletiva plena de significado - erfahrung na definição benjaminiana -, por outro, limita-se em não ser mais do que a experiência de uma teatralização que ocorre na interface e interstício das instituições centrais da sociedade, uma experiência individual ou de um grupo específico, caracteristicamente uma erlebnis (Benjamin,1994; Turner,1982)15. A questão que surge, então, relaciona-se propriamente a esse esforço e desejo por uma experiência coletiva nas raves. Referese ao problema de recriar universos plenos de significado em sociedades fragmentárias, à nostalgia da experiência de communitas numa sociedade industrial. Nos termos de Turner, as performances não são apenas unidades de sentido que ocorrem naturalmente, mas são principalmente períodos de elevada atividade, quando os pressupostos sociais estão mais expostos, quando os valores, as hierarquias e convenções podem ser exagerados, invertidos e/ou subvertidos. Performances são para Turner eventos potencialmente liminares: manifestação de anti-estrutura que se relaciona dialeticamente com a estrutura social vigente. A liminaridade se abre para possibilidades do inesperado e tem efeito de um “espelho mágico” através do qual a sociedade pode ver a si mesma. Mas, enquanto nos rituais de sociedades tradicionais esse espelho reflete imagens invertidas das estruturas, nas sociedades industrializadas - caracterizadas pela separação entre as esferas do trabalho e do ritual, do descentramento e 14 Todo o trabalho de Victor Turner dedica-se especialmente para a pesquisa desses momentos quando “a vida parece ser vivida mais intensamente”: rituais, revoluções, o teatro, definidos nos termos da performance, momentos que nos seus últimos trabalhos vão sendo caracterizados como da erlebnis, da experiência vivida. Sobre como a noção de experiência vai se delineando no trabalho de Turner ver John C. Dawsey (2005 a), “Victor Turner e antropologia da experiência”. 15 Ver também John Dawsey (2005a) e Jeanne Marie Gagnebin (1994). Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 11 fragmentação da recriação de universos simbólicos, gerando e cedendo espaço a múltiplos gêneros de entretenimento -, sugere Dawsey (2005a:167), estendendo a metáfora ao liminóide, que esse “espelho mágico do ritual” estilha-se e “surge uma multiplicidade de fragmentos e estilhaços de espelhos, com efeitos de caleidoscópios, produzindo uma imensa variedade de cambiantes, irrequietas e luminosas imagens”. III. Objetivos e hipóteses Esta pesquisa procura lançar luz sobre a natureza da “experiência” nas raves de trance, focando o esquecido, o rasurado e o oculto pelos seus discursos e atuações16. Volta-se para os ruídos, os elementos não-resolvidos e esquecidos na criação de uma “xxxperience”. Parte da desconfiança sobre a instauração de uma realidade absoluta e “paralela” pela festa, e trata de sua fragilidade e de seu inacabamento. Procura pelos planos em conflito, carregados de tensão que são operados nas montagens realizadas pelo modo de festejar rave. Reconhece a operação de montagens em diversas ou múltiplas dimensões. A montagem realizada entre o espetáculo e o ritual nas festas de trance, a montagem que se realiza sob os signos do techno e do trance no universo mais amplo das raves, a montagem operada entre modos de vidas cotidianos e de final de semana. Essa última pode ser notada nas falas de Pitty, 25 anos, numa reportagem publicada pela revista Beatz (nº 6, 2003: 15-16), quando ela se define como “double face” referindo-se à contraposição de sua imagem vestida de camisa, calça social e sapato alto na atividade profissional em um departamento de marketing de uma empresa de computadores, e suas vestes com roupas coloridas de tecidos leves que usa quando sai, quase todos os finais de semana, para dançar nas raves de trance, onde se sente parte de um “outro universo, imaginário e idealizado”. Nas rave, Pitty deixa à mostra a tatuagem de Ganesh que cobre quase toda sua costa, ama tomar banho frio de cachoeira, admira borboletas e acredita em fadas e duendes. “A possibilidade de ficar descalça purifica minha alma”, diz Pitty. Sobre a sua primeira rave, à beira da represa de Guarapiranga, declara: “Dancei muito progressivo e vi o sol nascer junto com um monte de gente ao meu lado. Descobri um mundo novo”. Vários planos em conflito podem ser observados na forma de festejar rave, o trabalho de campo poderá mostrar sua multiplicação e entrelaçamento. Porém vale ressaltar que é a proposta desta pesquisa ficar atento, especialmente, às brechas, aos remendos das montagens que surgem nos pequenos atos: um elogio sincero, um comentário pontual, um silêncio constrangedor. 16 Olhar para o esquecido, o rasurado e o oculto é proposta metodológica de Walter Benjamin (1994) e Clifford Geertz (1989). Ver mais em John Dawsey (1998; 2005 b). Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 12 Momentos quando se faz notar que “nas irrupções do extraordinário também se encontra a experiência do ordinário” (Dawsey, 2005a:174). Esse parece ser o caso registrado em meu diário de campo sobre o festival Trancendence de julho de 2002, quando estávamos, eu e uma colega, na beira de um rio - que fazia parte da área da rave - quando um jovem casal se aproximou e se sentou conosco para conversar17. Eram namorados há bastante tempo e tinham por volta de 20 anos. Ela dançava por entre as pedras e dizia ser uma fada, queria, então, uma coroa de flores, que ele providenciou carinhosamente. Disse que queria um “baseado”, e ele, sem dizer nada, o fez. Logo depois ela correu para o encontro de um rapaz que tocava flauta um pouco mais acima de onde estávamos e voltou contente contando ao namorado que conhecia o flautista. Ela era falante e divertida, ele apenas ria como se divertindo com ela. O clima foi suave e ele atendeu a todos os desejos dela até que ela, vendo duas moças a nadar sem roupas no rio (a nudez para o banho em rios e no mar é evento comum nas raves de trance), anunciasse que queria também ficar nua e nadar. Ele prontamente levantou o tom da voz e de forma decidida disse: “Não! Pelada não!”. Ela se recolocou: “Mas não tem problema, aqui ninguém liga, olha outras pessoas...” Ele olhou para ela e indagou: “Você realmente acha que ninguém liga?”. E ela simplesmente deixou da idéia sem mais responder. No limite geográfico da rave, na beira do rio, observa-se, por um instante, a tensão entre a possibilidade de uma romântica nudez, pura e descomprometida, e o “real” (“realmente” é contundente na fala do namorado) da malícia que perpassa o despir e os olhos que observam a nudez. O que se despe, nesse caso, é a fragilidade em se sustentar “um outro universo, imaginário e idealizado” (cf. fala de Pitty). Entendo que a (ou “uma”) experiência emerge não exatamente da adesão ou imersão no mundo do extraordinário, mas da instabilidade dessa vivência, do movimento e da oscilação entre o senso de fantasia, da instauração de “universos paralelos”, e o senso da realidade desprovido de encanto, a perspectiva da festa como um simples entretenimento recreativo de fim de semana. Por alguns momentos vive-se a certeza da existência do fantástico, em momentos seguintes desconfia-se se aquele mundo maravilhoso não seria simplesmente efeito de “drogas” e então, olhando à sua volta, tem-se novamente a certeza que aquilo é realidade, não simples alucinação. Um jogo incessante de deslocamentos e guinadas que suspendem as certezas duradouras, um movimento interminável de um pólo de compreensão para outro, entre a construção de “portais dimensionais para conexão intergaláctica” e uma simples recreação de fim 17 É muito comum nas ocasiões das raves os presentes sentarem-se em grupos de pessoas que até então não se conheciam, ou aproximar-se sem muitas formalidades e serem imediatamente reconhecidos como amigos. Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 13 de semana; entre a vivência de uma conexão humana direta e pura com os presentes (a chamada vibe da festa), e o efeito químico do ecstasy. Nesse movimento é difícil, se não impossível, se decidir entre uma e outra posição, pois ambas não deixam de ser verdadeiras e nenhuma é verdadeira isoladamente. Esse movimento de alternância entre posições - esse ir e vir incessante de lampejos e interrupções - é o processo que Michael Taussig (1993) trata como montagem. Montagem: alterações, brechas, deslocamentos e guinadas que ocorrem durante uma noite inteira; súbitas interrupções, sempre em relação àquilo que, inicialmente, parece ser a ordem do ritual e, mais tarde, assume ser pouco mais do que uma desculpa da ordem, dissolvendo-se em seguida em ondas após ondas que interrompem a ordem ilusória, a ridicularizada, a colonial, refletida no espelho. Interrupções para defecar, para vomitar, para pegar um pano com que enxugar o rosto,(...) e nas fendas e guinadas, todo o universo se abre. (Taussig, 1993: 411, grifo meu) Mesmo que consideremos que o entorpecimento por psicoativos favoreça a “viagem” para o “mundo dos sonhos”, nessa viagem não se perde a possibilidade de compreensão do que se mantém paralelo, uma visão sóbria do mundo. Nesse movimento de alternância entre posições, nesse ir e vir incessante de lampejos e interrupções, alguma nova consciência se revela, como uma “iluminação profana” (Benjamin, 1994). Montagem: focalizar para a frente e para trás, partindo do indivíduo para o grupo; não se trata simplesmente de auto-absorção, interrompida e descartada por meio da participação no grupo ou com um ou dois membros dele; através dessa focalização para frente e para trás, do indivíduo para o grupo e vice-versa, estabelece-se uma espécie de espaço lúdico e de um espaço para testes, a fim de que se possa comparar as alucinações com o campo social do qual elas emanam. Então o próprio espaço de representação é esquadrinhado. (ibid., p. 412, grifo meu) No mesmo caminho traçado por Taussig, também inspirado em Benjamin, eu desconfio do alcance totalizante do conceito de símbolo “em favor da fragmentação da montagem, não branca, não homogênea, a qual, devido à inabilidade com que ela se ajusta, acaba por fraturar-se” (ibid.,p. 413); pois o modo de festejar rave aproxima-se mais de uma mistura alegórica instável do que de uma síntese simbólica. Ora, a “experiência” possível na rave irrompe como efeito de sua montagem em justapor o senso de fantasia ao senso exaltado da realidade, encorajando assim, entre os participantes, especulações relativas aos porquês e motivos da própria representação. IV. Plano de trabalho e cronograma de sua execução A pesquisa será desenvolvida através de (1) levantamento bibliográfico, (2) trabalho de campo, (3) levantamento videográfico sobre o tema e (4) produção videográfica. Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 14 O levantamento bibliográfico contemplará as discussões da antropologia da experiência e a antropologia da performance sem perder de vista suas intersecções com outros campos e com a teoria antropológica de forma mais ampla, a fim de refletir sobre suas potencialidades e limites. Além das atividades do curso em disciplinas obrigatórias e eletivas oferecidas pelo Departamento de Antropologia, outras atividades e discussões serão desenvolvidas junto ao Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) e o Núcleo de Antropologia Performance e Drama (NAPEDRA), tal como venho realizando desde 2002. Também está previsto o levantamento e a leitura analítica de textos que atravessam o universo das raves no campo das ciências humanas a fim de dialogar com as temáticas propostas. O trabalho de campo irá focalizar principalmente a observação participante em festas raves de trance. Considerando-se a festa como uma performance, a observação extrapola a festa propriamente dita e deverá acompanhar também os estágios de preparação, aquecimento, esfriamento e alguns dos desdobramentos da rave, tal como sugere Schechner (1988) para a análise de uma “seqüência total da performance”18. Essa observação procurará acompanhar tanto a perspectiva dos organizadores dos eventos como a dos participantes da rave. Para dar conta dos desdobramentos das festas, estão previstas entrevistas com alguns participantes da rave em situações desvinculadas à festa a fim de conversar sobre as impressões e as lembranças sobre o evento, tal como o reconhecimento dos impactos dessa “experiência”. Como materiais complementares, serão considerados artigos, fotografias, declarações e conversas, veiculados em sites especializados já que esses se mostram como espaços (ainda que virtuais) de comunicação e de interação privilegiada entre os ravers fora do espaço da festa 19. A prática de extenso registro visual das raves e sua circulação em sites especializados é comum e mostra peculiaridades. Os sites brasileiros dispõem em média mais de uma centena de fotografias de cada rave, alguns registros chegam a disponibilizar mais de quinhentas fotografias de uma única festa, e outros também dispõem vídeos com duração de até 10 minutos. A quantidade, o enquadramento, a forma de circulação e acesso a essas imagens são consideradas informações importantes para os objetivos dessa pesquisa. O levantamento de vídeos produzidos sobre e nas raves, principalmente as de trance, volta-se à proposta de reconhecer “estórias sobre eles que eles contam de si mesmos” (Geertz, 18 Os ravers falam em chill in referindo-se a um espaço de tempo e de encontro que antecede a saída dos grupos de amigos da área urbana das cidades em direção da rave que geralmente acontece na região rural. Essa categoria nativa pode ser associada a uma fase de aquecimento. Falam também em chill out para referir-se a espaços geograficamente demarcados ou de tempo destinados para o descanso e o relaxamento previsto antes de diluição dos grupos de amigos, antes das pessoas separarem-se e voltarem para suas casas particulares, período esse que pode ser considerado como fase de esfriamento da performance. 19 Os principais sites brasileiros são: Balada Planet, Raurl e Zuvuya. No período da pesquisa, novos sites poderão surgir, outros perder a importância. Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 15 1989: 316), pois um levantamento prévio indica que a grande maioria do material produzido no Brasil é dirigida por ravers. Esses vídeos são vistos como artefatos culturais, produzidos através de certo conhecimento técnico e da articulação de uma linguagem historicamente pertinente. Considerar os propósitos dessas produções (seus objetivos e usos), a natureza das imagens selecionadas, o imaginário e a afetividade que as atravessam, os discursos que perpassam esses textos, a relação dessa linguagem com outras (a fotografia, os textos escritos), são alguns dos focos de análise sobre o material. A proposta de se produzir um vídeo durante a pesquisa atende ao objetivo do uso estratégico da câmera como instrumento de pesquisa de campo e de reflexão sobre a prática antropológica. O vídeo possibilita o registro processual, sonoro e imagético de uma forma de expressão complexa: a performance da rave. Seu uso é estratégico pois procura dar conta do registro da unidade entre elementos de diversas naturezas que estão envolvidos na criação dessa performance: cenários, danças, falas, indumentárias, símbolos, musicalidades, deslocamentos espaciais, olhares, silêncios, etc. e que a descrição destrói ao recortá-los em universos separados. Porém, mais do que produtora de registros, a câmera é reconhecida como elemento mediador para representações, tanto para quem filma como para quem se porta frente à câmera. Diante da câmera a pessoa filmada mostra-se como um personagem. O vídeo é também o vestígio de um encontro, expressa tanto certo poder de controle da visão perspectiva, como também da simultaneidade entre observador e observado. O vídeo, usado como instrumento de pesquisa, paralelamente à observação participante nas raves, possibilita-me, além do mais, refletir sobre a relação entre o visível e o invisível, o audível e o inaudível, o perecível e o imperecível no universo social das raves. Vale ainda pontuar que, tal como bem lembra Rose Satiko Hikiji (2005: 281), “opções à escrita (vídeo, fotografia, montagens musicais), quando trazidas à etnografia, são enriquecedoras, mas não excluem a necessidade do texto”, e o desafio que se põe é “paralelamente à incorporação de materiais sonoros ou visuais, buscar formas de impregnar o texto com esses modos outros de pensamento”. O cronograma para a realização e finalização da pesquisa prevê sete semestres, ou seja, três anos e meio, com atividades distribuídas conforme segue: Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 16 1º Sem. 2º Sem. 3º Sem. 4º Sem. 5º Sem. Créditos em Disciplinas x x Pesquisa bibliográfica e filmográfica x x x x x Pesquisa de campo x x Organização do material de campo x x Elaboração da tese x x Finalização do vídeo x Defesa da tese 7º Sem. x x x Exame de Qualificação Finalização da tese 6º Sem. x x x V. Forma de análise dos dados A análise dos dados deverá ser sistematizada na forma de papers esporádicos e relatórios semestrais consolidados. Os papers desenvolvem temáticas mais pontuais como material para a discussão nos núcleos de pesquisa e também grupos de trabalho de congressos científicos. Já os relatórios semestrais procuram informar as instituições financiadoras da pesquisa sobre o desenvolvimento do trabalho e os resultados preliminares. Em meados do quinto semestre, também poderá ser disponibilizado um vídeo, tal como previsto pelo plano de trabalho e cronograma de pesquisa. VI. Bibliografia do projeto ABREU, Carolina de C. (2006). “Rituais na floresta, índios e cores fluorescentes: raves de trance no Brasil” Paper apresentado no GT 39 – Performance, Drama e Sociedade da 25ª Reunião Brasileira de Antropologia (Goiânia, 11 a 14 de junho de 2006). ________________ (2005). Raves: encontros e disputas. São Paulo, PPGAS/ USP. Dissertação de mestrado em Antropologia Social. 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