Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual

Transcrição

Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 1
PROJETO DE PESQUISA DOUTORADO
Título
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual
Orientador
John C. Dawsey
Autora
Carolina de Camargo Abreu
I. Resumo
Essa pesquisa propõe lançar luz sobre a experiência das festas raves de trance focando os
planos em conflito, carregados de tensão, operados nas montagens realizadas por esse modo de
festejar. Debruça-se especialmente sobre a performance das festas de trance enquanto “rituais
psicodélicos” e trata da instabilidade entre as imagens de espetáculo e de ritual que se entrelaçam,
inspirada pelas discussões travadas entre Victor Turner e Richard Schechner.
Mais do que caracterizar uma experiência trance da rave, essa pesquisa investiga a própria
procura por experiência pelos ravers. Neste caminho, propõe pôr em relação os conceitos ravers
de xxxperience e vibe, e as noções benjaminianas de erfahrung (experiência coletiva) e erlebins
(experiência individual ou de um grupo específico), orientada pelas preocupações do campo da
antropologia da experiência.
II. Introdução e justificativa (referências principais)
A forma de festejar rave tornou-se prática de muitos paulistanos desde meados dos anos
90. Raves são festas que se estendem por mais de quatorze horas consecutivas, movidas à música
eletrônica e psicoativos, principalmente o chamado ecstasy. Realizadas em lugares afastados dos
núcleos urbanos e de sua atividade cotidiana, as raves acontecem geralmente em sítios ou
fazendas escolhidos, alugados e preparados para a ocasião. No mês de março de 2007, por
exemplo, só no estado de São Paulo, aconteceram duas grandes raves, mobilizando
aproximadamente 10.000 pessoas cada, e, pelo menos, vinte outras raves menores que reuniram
entre mil e dois mil participantes.
Embora as raves sejam freqüentadas por jovens moradores de grandes centros urbanos,
diferenciam-se de outros eventos também embalados por música eletrônica que acontecem na(s)
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 2
cidade(s) - tipicamente em night clubs -, por instituírem o lugar da festa em espaços não marcados
pelos usos e divisões do território metropolitano, apropriando-se geralmente de áreas rurais, às
margens da cidade.
Minha dissertação de mestrado1 procurou anotar como na dinâmica sócio-política de dez
anos de raves no Brasil esse modo de festejar se desdobrou em dois discursos diferenciais: o do
techno e o do trance. Atenta às diferenciações entre esses discursos, já indicadas em meu
mestrado, essa pesquisa agora se debruça especialmente sobre o contexto das raves de trance a
fim de problematizar as justaposições que opera entre as imagens cambiantes de espetáculo e de
ritual.
As raves de trance, diferentemente daquelas de techno, propõem a realização da festa
enquanto um "ritual psicodélico" para a transcendência a universos paralelos - Trancendence e
Universo Paralelo são nomes de núcleos brasileiros que organizam os eventos. Nessas raves,
fogueiras são acesas próximas da pista de dança, toques de instrumentos de percussão juntam-se à
música eletrônica, muitos dos participantes enfeitam-se com adereços indígenas e pinturas
corporais de cores fluorescentes, projeções de raio-laser ressaltam o cenário de se estar “no meio
do mato”, imagens de divindades hindus são colocadas ao lado das pick-ups dos DJ´s, fala-se da
abertura de “portais dimensionais para conexão intergaláctica” através da dança coletiva.
O festival2 EarthDance de outubro de 2002, que reuniu cerca de três mil pessoas
acampadas em Cachoeira Alta (interior de Minas Gerais) durante quatro dias, marcou para às sete
horas do segundo dia de festa a realização de um “ritual” específico. Foi a primeira vez que notei
uma rave, tantas vezes denominada de “ritual” por seus freqüentadores, propor outro ritual: um
ritual durante o ritual.
Espetáculos diversos são comuns nessas festas, apresentações de malabares são
tradicionais durante as raves. Também são comuns apresentações circenses com panos, o uso de
fantasias diversas (como de fadas), máscaras (de aliens, por exemplo) e narizes de palhaços. Entre
os organizadores da rave Tribe, por exemplo, há um grupo de artistas e voluntários que realizam
intervenções, passagens e jogos com os participantes da festa, porém, na grande maioria das vezes
e na maioria da raves, os espetáculos e brincadeiras que acontecem durante a festa são criados
pelos próprios ravers3, e apenas raramente há momentos que se fazem distinções nítidas entre
1
Raves: encontros e disputas. São Paulo, PPGAS/USP. Dissertação de mestrado em Antropologia Social, 2005.
Festival é denominação usual para as raves de trance que se estendem por vários dias consecutivos. Geralmente
acontecem durante algum feriado prolongado, ou durante as férias de verão ou de julho.
3
O termo raver refere-se àquele que participa da rave sem nenhuma pretensão de criar uma denominação identitária.
A proposta é a de não essencializar, apenas notar os presentes no momento da festa. A constituição de identidades
sociais, nessa pesquisa, é considerada como um processo nunca completado, um movimento permanente, de
articulação discursiva - definido nos termos de Hall (2000) como identificação. A mesma perspectiva é expressa pela
proposta de performatividade de Butler (2000, 2003) e pela visão de Haraway (2000) quanto à natureza fragmentada e
2
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 3
espectadores e artistas, pois na rave essas posições se (con)fundem. A festa é arena e marca o
limite de um jogo mais amplo (Huizinga, 2004), na qual todos os presentes são participantes,
criam a rave.
A indistinção entre atores e espectadores na rave, faz da festa um jogo próximo ao
carnaval, onde espectadores não assistem, mas vivem a festa. Porém esse carnaval não ignora toda
diferenciação, como na Idade Média descrita por Bakthin (1983), pois o DJ ocupa um espaço
privilegiado, ora associado a um palco, ora a um altar.
No dia e hora marcados no festival Earthdance, ao redor de uma enorme fogueira,
juntaram-se aproximadamente duas mil pessoas. Surge então um índio de meia-idade pintado e
vestido cerimonialmente portando um cachimbo: tanga, exuberante cocar, adereços nos braços e
pernas, rosto todo coberto por tinturas. Ele procura, desastrosamente, num primeiro momento,
organizar a disposição espacial dos presentes, mas suas orientações não alcançam à multidão.
Como que desistindo, contenta-se apenas em ser o foco das atenções. Olhando para o fogo o índio
enuncia algumas palavras ou cantos que são inauditíveis para maioria, faz alguns gestos e põe-se a
dançar ao redor da fogueira. Os ravers, prontamente, seguem a movimentação, o que cria certo
tumulto, pois o raio da fogueira torna-se pequeno para uma dança coordenada de tantos. À música
eletrônica, que estava em volume mais baixo do que em outros momentos da festa, se junta o som
de djembês, bongôs e outros tambores. Por meia hora, as pessoas mantêm a dança em volta da
fogueira ajeitando-se no aperto da roda.
O fim da aparição do índio é sugerido pelo aumento do volume da música eletrônica, que,
como um chamado, pareceu conduzir os presentes para a arena paralela, a pista de dança.
Earthdance. outubro de 2002
Fotografias de Lisa & André Ismael 4
fraturada das identidades. Embora tenha suas condições determinadas de existência - o que inclui os recursos
materiais e simbólicos exigidos para sustentá-la - ressalta-se que a identificação é condicional, está alojada na
contingência e é recurso para o agenciamento político.
4
O uso das fotografias foi autorizado pelos autores que são freqüentadores, fotógrafos e organizadores de raves
brasileiras desde meados dos anos 90. A seqüência foi montada à partir de um painel de 104 fotografias disponível no
site Zuvuya (www.zuvuya.net/sites/raveon/earthdance/2002/english/noite.htm), que é mantido por um núcleo
brasileiro organizador de raves de trance e representa um importante ponto de visita, encontro e troca na internet para
os participantes de raves. Neste sentido, são como estórias sobre estórias que eles contam de si mesmos (cf. Geertz,
1989).
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 4
No dia seguinte ao espetáculo do “ritual”, encontro o índio sozinho numa mesa da
lanchonete da festa e vou conversar. Ele, Thini-á, representante da tribo Fulni-ô, dizia-se
indignado e frustrado, pois não havia sido ouvido, não lhe deram o espaço esperado. Achei
curioso pois ele havia feito tanto sucesso na noite anterior!?... Thini-á queria que a música da pista
fosse desligada para que ele pudesse falar sobre seu trabalho e propostas políticas5, porém eu bem
sabia que desligar a música eletrônica numa rave era um pedido inaceitável.
Desligar a música eletrônica significaria matar a festa, pois a música é como uma corrente
elétrica que impulsiona o coração da rave: a pista de dança. A pista da dança “bomba”, produz e
emana a energia que sustenta toda a festa.
As palavras têm um lugar bem localizado nesse festejar, ficam nas bordas, nos círculos de
amigos que rodeiam a pista, já que a pista aparece ser o cerna da rave, arena por excelência de
outra forma de comunicação: a dança coletiva. Também as palavras não são muito sérias, mas sim
descompromissadas: lembranças agradáveis, pequenas histórias engraçadas ou curiosas sobre
pessoas do grupo de amigos ou do próprio grupo. Tanto mais longe da pista de dança, mais sérios
parecem ser os temas, porém ainda em tom de elogio à festa, ao encontro, à diversão. Por
exemplo, à beira dos rios e cachoeiras que rodeavam a pista da Trancendence de julho de 2002
(festival realizado anualmente, entre 1999 e 2005, em Alto Paraíso de Goiás) falava-se da
competição desenfreada, da ansiedade e da falta de sentido da vida cotidiana na cidade para
elogiar uma vivência de “comunidade” na rave. Falava-se da correria e da solidão no dia-a-dia do
trabalho durante a semana para reiterar a satisfação em poder conversar sobre duendes, Deus,
propostas budistas, teorias da física quântica, efeito de psicoativos, o Calendário Maia - algumas
das coisas tidas como “realmente importantes” no contexto das raves de trance.
A palavra é marginal6 na rave, pois é a dança, elogiada como linguagem universal, a forma
de comunicação, atuação e produção de sentido privilegiada. Motivada pelos impulsos elétricos da
música e sustentada pelo incentivo químico de psicoativos, é a dança coletiva da pista que
“bomba” a energia para a transcendência a universos paralelos.
5
Conforme texto que Thini-á me enviou posteriormente por e-mail: “Thini-á (“estrela”, em Yathê) vem trabalhando
desde 1992 com projetos voltados para o público infantil e juvenil, atuando nas escolas de primeiro e segundo graus e
universidades, públicas e privadas, visando divulgar, a partir de um olhar interno, as riquezas e mazelas das culturas
indígenas em nosso país. Uma atenção especial é dada à questão ambiental, aos problemas relacionados aos
desmatamentos, poluição e outros males que afetam tão profundamente aos povos indígenas das florestas tropicais,
mas também do litoral e do cerrado.”
6
A palavra é marginal na rave, por vezes reticente, porém ocupa um lugar muito especial: a da conversa
descomprometida nas rodas de amigos. Essa oportunidade de “ficar de papo pro ar” na rave é característica e bastante
valorizada, especialmente no contraste à idéia de que na correria da vida diária as pessoas pouco conversam.
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 5
No canto da Earthdance, na lanchonete, o personagem que havia feito tanto sucesso numa
noite anterior, encontra-se sozinho, como querendo falar, contar a história de seu nome Thini-á,
mas sem ter audiência. Na montagem operada pelas raves de trance, o indígena brasileiro é
apenas um dos símbolos que estão sendo articulados.
O trance, além de estilo musical, pode ser considerado uma experiência lisérgica para alcançar
outros níveis de consciência. As pessoas buscam a transcendência ou espiritualidade no ambiente
psicodélico através da música, com auxilio das drogas, contato com imagens da cultura mística,
símbolos de deuses e rituais tribais.
O trance psicodélico tem uma conexão direta com o misticismo, fazendo referências
principalmente ao Xamanismo e ao Hinduismo.
Nos rituais xamânicos, ritmos fortes acelerados e o uso de plantas alucinógenas provocam os
efeitos de transe necessários para alinhar o corpo, mente e alma, atingindo uma suposta
comunicação dos índios com os seus deuses. Em transe e em outro plano espiritual, os índios
adquirem ensinamentos em suas experiências, sempre em contato com a natureza. No trance, as
batidas do xamanismo se tornam eletrônicas com caráter hipnótico à música, e as drogas, em
grande parte, sintéticas. Em ambos ambientes, seja no ritual tribal xamânico ou no ritual eletrônico
trance, a dança representa a busca por um estado de transcendência coletiva. Podemos inclusive
comparar os líderes espirituais, Xamãs, com os DJs. Ambos controlam o ritmo, a frequência, a
velocidade do som psicodélico, proporcionando aos demais o estado de transe.
O Psychedelic Trance recupera o sentido tribal e transcedental de dançar. As raves se comparam às
cerimônias indígenas religiosas, como as do Pow-wows americanos, ou nos cânticos noturnos do
índios Truká (interior de Pernambuco), que usam a música repetitiva e a droga Jurema para
contactar um universo paralelo. (Lívia Paupério, jornalista e raver, disponível no site Zuvuya,
capturado em 5 de maio de 2005)
Na perspectiva sugerida por Victor Turner, o ritual proposto pela rave talvez não possa ser
mais do que um teatro do ritual. Conforme caracteriza Turner (1982), os rituais que predominam
em sociedades pré-industriais - tal a citação dos Pow-wows e dos Truká acima - estão associados
a ritmos cíclicos, biológicos e sócio-estruturais, e integram-se centralmente ao processo social
total, produzindo símbolos que evocam significados intelectuais e emotivos comuns a todos os
membros do grupo. Em sociedades onde a esfera do trabalho separa-se da atividade ritual, tal
como nas sociedades industriais, surge a esfera do lazer como campo privilegiado para os
processos liminares de produção simbólica. Na esfera do lazer ou entretenimento, marginal às
arenas centrais da economia e política, a liminariedade - caracterizada nesse contexto por Turner
como liminóide - se dá por manifestações plurais, fragmentárias, e experimentais que ocorrem nas
interfaces e interstícios do conjunto de instituições centrais. Essas manifestações já não têm a
obrigatoriedade típica dos rituais, mas caracterizam-se como atividades de adesão voluntária,
optativa e individual7.
7
Se as análises de Turner podem, por vezes, sugerir uma perspectiva evolucionista - do ritual ao teatro - Richard
Schechner (1988) aponta que o mesmo facilmente se inverte. Elementos rituais interpenetram-se ao teatro e ao
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 6
Mas a “balada” que uma rave sugere é mais do que uma opção de lazer descomprometido
entre tantas que a metrópole pode oferecer, pois requer mobilizações de ordens diversas e é quase
sempre descrita como uma “experiência” marcante para seus participantes.
Xxxperience é o nome de um dos principais núcleos brasileiros de raves de trance8. O
nome deve ser lido em inglês - tal como a maioria das concepções e nomenclaturas específicas do
universo rave -, sugere uma “experiência” diferenciada que é reforçada pelo som prolongado do
X, e, omitindo a letra E, parece carregar algum segredo especial já que a letra X é usada
comumente como incógnita.
Louvado Seja Deus pela experiência prima e única que tive nesse fim de semana. O que acontece
quando pessoas que REALMENTE se esforçam para ir ao mundo dos sonhos???(...)
Uma energia cósmica vinda da imagem de Shiva me contagiou, meu corpo já não sentia nenhuma dor
ou cansaço depois de tanto dançar em sets anteriores e chego a gritar MEU DEUS! A cada virada,
parecia estar em outra dimensão uma sensação plena de bem estar misturada com momentos de
ARREPIO e CHORO. Olhava para o céu azul e agradecia à boa força que me proporcionou esse
momento único em minha vida. Era como se a música ouvida fizesse cócegas em meu cérebro.
Compartilho o momento com outras pessoas ao meu lado que estavam sentindo a mesma boa e mágica
sensação. (assinado por M-HIPNOTIC, capturado do site Zuvuya em 1 de junho de 2005 , grifo meu)
A experiência da rave, uma “experiência prima e única” é, antes de mais nada, sensorial,
orgânica, corpórea. Talvez possa ser, de alguma forma, mas não apenas, caracterizada como um
“estado somático”, tal como definido por John Blacking (1977).
A tese de doutorado em ciências sociais de Pedro Teixeira (2006) - intitulada Música
eletrônica e xamanismo: técnicas contemporâneas do êxtase - aponta a eficácia da música
eletrônica de pista para a produção de um transe exclusivo à sociedade tecnológica. O autor
analisa como os DJ´s trabalham com a sondagem dos liminares de resolução do corpo sonoro
motor de uma máquina de transe através de 3 parâmetros elementares:
(1) efeitos da altíssima intensidade (dB-decibéis) do som eletronicamente amplificado,
caracterizado pela experiência de imersão corporal em um ambiente vibratório;
(2) efeitos de diferentes faixas de freqüências (Hz- hertz) quando produzidas em altíssimo
volume, caracterizado pela experiência de diferenciação entre sons que penetram o corpo, colidem
com ele ou o dissolvem;
(3) efeitos de velocidades (BPM - batidas por minuto) do tempo musical metronicamente
controlado, caracterizados pela sincronização de ritmos infra e inter-corporais.
espetáculo, assim como aspectos teatrais se expressam nos rituais. Ver também introdução e resposta técnica do
projeto temático “Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual” (processo 06/53006-2, apresentado à
FAPESP), que propõe ver as performances como uma “trança” de elementos de ritual e teatro. Esse entrelaçar é tema
central dessa pesquisa que procura compreender a rave como montagem entre espetáculo e ritual.
8
O núcleo Xxxperience organiza raves no Brasil desde 1996. No mês de maio de 2007, o núcleo festejou sua 100º
edição.
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 7
Mesmo focando a música eletrônica de pista, o autor nota que a eficácia desta se dá pela
formação de um sistema de ressonância no qual os corpos dos dançantes não são passivos, não são
apenas vibrados, mas também vibram pela dança e acabam por concretizar um “corpo coletivo
sonoro-motor”.
O autor admite que seja preciso certa “disponibilidade” dos participantes para que a sinergia
som-movimento se alastre para todo o público, mas não considera os efeitos dos psicoativos
ingeridos na ocasião dessas festas.
Ora, se a festa é o espaço social, por excelência, permissivo ao uso de substância ilegais,
perigosas e ilícitas, arena propícia para o exagero, as experimentações, a violação de regras e
tabus (Durkheim, 1996; Bakthin, 1993; Turner, 1982; entre outros)9; a forma de festejar rave não
se vale de todas ou qualquer substâncias, mas caracteristicamente do ecstasy, a “droga”10 que já
foi chamada pelos seus usuários nos anos 90 de “pílula do amor”. Na rave, ingere-se o ecstasy,
uma tecnologia química bastante específica do século XX, que desde o final da década de 80 foi
apropriada como “droga recreativa” pela chamada “geração clubber”. Seus reconhecidos efeitos
não são apenas individuais, mas atravessam e criam um corpo coletivo.
O manual de psiquiatria clínica Aconselhamento em dependência química (2004:100)
reconhece que após aproximadamente 50 minutos à ingestão do ecstasy, não se registra
alucinações ou distorções perceptuais, apenas a “intensificação dos sentimentos, aumento de
insights e da empatia”. “Usuários reportam uma sensação de proximidade, bem-estar, aumento
das sensações táteis, do prazer sexual e das expressões de afeto”, “demonstram mais necessidade
de estar e conversar com outras” pessoas.
Na rave, alimenta-se o corpo com o ecstasy e, preferencialmente, com água (em detrimento às
bebidas alcoólicas) para não distorcer os efeitos desejados do ecstasy; nesse mesmo sentido,
também se fuma “maconha” para potencializar os tais efeitos do primeiro. Observam-se modos de
usos, quantidades e combinações de psicoativos (ecstasy, maconha, LSD, quetaminas, bebidas
energéticas, bebidas alcoólicas, tabaco) bastante regulados nas raves - inclusive diferenciados
entre as raves de techno e de trance (Abreu, 2005) -, mas vale, neste momento, apenas apontar o
uso predominante e característico do ecstasy a fim de notar a “disponibilidade” para produzir
certo “estado somático” individual e coletivo da experiência rave.
9
John Dawsey , em “Quarta-feira de cinzas” (2006: 2), cita Freud (1974: 168): “Um festival é um excesso permitido,
ou, melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma proibição”.
10
Cabe considerar que a conceituação de “droga” é construída historicamente por discursos jurídico-médicos e
contextos políticos específicos. Sobre o assunto ver Rodrigues (2004), Carneiro (2002) e McRae&Simões (2000). Ver
também Maurício Fiore.(2007) sobre a instabilidade e as controvérsias no jogo teórico- político da conceituação de
substâncias reguladas por instituições médicas brasileiras.
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 8
O impacto sensorial criado pela forma de festejar rave, dada a interação (1) da atuação do
ecstasy, (2) da música eletrônica de pista, (3) da dança coletiva que se estende por mais de 14
horas consecutivas, (4) em espaços sociais às margens da vida cotidiana urbana; produzem um
“estado somático” específico, reconhecido e controlado pelos freqüentadores das raves. Mas se
um choque sensorial é característico do festejar rave, não é por isso suficiente, já que apenas dizse que a festa foi boa quando “rolou a vibe”.
Vibe é expressão de comunhão, um compartilhar de sensações e emoções. Cabelo, numa
entrevista de agosto de 2004, definiu: “A vibe é a comoção geral, é a loucura em grupo”. Jef, do
mesmo grupo de amigos, mas em outra ocasião, numa entrevista de maio de 2005, falou do
assunto através da lembrança das raves que participou anos antes:
Vários amigos, todos na mesma sintonia, todos sem querer nada em troca. Pura e simplesmente
querendo compartilhar o momento de felicidade, todo mundo junto, é isso. É um traço muito fino que
liga todo mundo um ao outro, num sentimento comum, e todos eles. É a mesma finalidade de estar alí,
de dividir o momento único de felicidade e loucura. Estar ali, compartilhar isso. Aquele negócio do
sorriso bobo no rosto.
Marcelo (nome fictício), durante entrevista de junho de 2004, também definiu “vibe” em
termos muito próximos:
A vibe é um momento quando as pessoas acreditam estar pulsando no mesmo tempo, na mesma
sintonia, e... é isso. Ficam felizes juntos, dançam juntos, tem um sentimento coletivo... de vibe.
A dança, tal como sugere Marcel Mauss (2003), pode ser vista como uma técnica do corpo
que dá acesso a estados emocionais11, mas além de ser uma técnica intra-corpórea, é também
inter-corpórea. Neste sentido, a dança coletiva na rave é como um jogo, uma comunicação, entre
corpos. Nas pistas de dança das festas de trance, observa-se alguns movimentos regulares e uma
comunicação intensa entre os presentes. Na pista, todos dançam com todos, os limites da rodas de
amigos são tênues ou desaparecem, há uma troca intensa de sorrisos e olhares, essa é a conexão
primeira que cria a vibe da rave.
Vibe é a categoria, neste caso uma categoria nativa, para a experiência mais desejada da rave.
Experiência para Victor Turner (1986) é o processo de produção de significados. Processo de
significação da vida social que irrompe quando “algo acontece ao nível da percepção” - sendo que
o prazer ou a dor podem ser sentidos de forma mais intensa - e se completa através de uma forma
11
Mauss (2003), em “As Técnicas do Corpo”, reconhece a educação emocional operada por técnicas corporais
especialmente através do exemplo da “educação do sangue-frio”. Reconhece ainda que “no fundo de todos os nossos
estados místicos há técnicas corporais” (2003: 422).
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 9
de expressão. Nessa perspectiva, a festa seria uma expressão, uma performance que, no caso da
rave de trance se quer ritual, um “ritual psicodélico” próprio das sociedades industriais na virada
do século XXI.
Cabe pontuar que a noção de performance nesta pesquisa não se refere à linguagem ordinária
de papéis atuados e à manutenção do status que constitui a comunicação no processo social
cotidiano como define Goffman (1995), mas alude - nos termos definidos pelos trabalhos de
Turner (1982,1987) e Schechner (1985,1988) - à linguagem dramatúrgica que é expressa
especialmente quando se dá interrupções no fluxo diário da interação e os sujeitos atuam
conscientemente tentando mostrar aos outros o que estão fazendo ou devem fazer e exercitam,
assim, a habilidade humana de comunicar sobre o próprio sistema de comunicação. Nesse sentido,
Turner trata da performance como um meta teatro da vida social.
As raves de trance, como performance de um “ritual psicodélico”, operam montagens com
citações de “rituais tribais” característicos de “comunidades”, e tecnologias típicas de sociedades
do final do século XX.
No modo de festejar rave, símbolos diversos que se referem a certo imaginário sobre “rituais
ancestrais”12 (imagens de Shiva, frases musicais, pinturas corporais, o próprio espaço escolhido
como lugar da festa: no meio de uma floresta ou em praias desertas) são tingidos, sobrepostos,
atravessados por tecnologias ocidentais bastante específicas: (1) tecnologias de produção e
ampliação da música eletrônica, (2) a tecnologia química do ecstasy, (3) efeitos ópticos usados na
ambientação do lugar, como o estrobo, as cores fluorescentes, o raio laser13. A própria montagem
pode ser vista como uma tecnologia de comunicação, notoriamente usada pelo cinema, mas que é
também o princípio que opera a música eletrônica de pista.
Embora Turner aponte a performance como a expressão que completa uma experiência,
Edward Bruner (1986) ressalta que a relação entre experiência e suas expressões é sempre
problemática, sendo a tensão entre essas instâncias um campo de pesquisa chave para a
antropologia da experiência. A experiência estrutura expressões, e, por outro lado, as expressões
também estruturam a experiência. Essa relação dialógica de mútua dependência não foi assumida
como um dilema para Dilthey, mas como a base da natureza da informação nas ciências humanas,
o círculo hermenêutico.
12
Roger Bastide, em “O Sagrado Selvagem”, no final dos anos 70, observa os festivais de drogas e música (época,
por excelência, da psicodelia) e nota que os jovens recriavam o encontro extático dos homens e dos Deuses através de
um esteriótipo sobre o transe dos povos “primitivos”: a imagem de “selvagem”. Tal imaginário haveria se constituído
historicamente, principalmente, pelos olhares de exploradores, viajantes e missionários, - “sobretudo quando estes
viajantes eram médicos ou ainda mais, psiquiatras, porque eles chegam de um mundo ‘outro’ com seus preconceitos
de ocidentais, que desconfiam da linguagem do corpo” (1992: 144) - e se difundido pelo cinema e a televisão.
13
Tecnologias mecânicas, usadas para a produção de sensações sinestésicas, também poderiam ser citadas já que
algumas raves dispõem bung jump como atração especial, outras são realizadas em parques de diversões, por
exemplo.
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 10
No processo de expressar ou performar textos, estruturam-se unidades da experiência e de
significado. Na vida real, diz Bruner, todo começo tem antecedentes, e todo fim não implica que o
tempo parou ou que o evento acabou; nós é que criamos as unidades de experiência e significado
recortando-os na continuidade de nossas vidas. Todo contar é uma imposição arbitrária de sentido
no fluxo da memória, através do qual nós privilegiamos algumas unidades e desconsideramos
outras, e esse seria um processo essencialmente interpretativo e reflexivo.
No caminho traçado por Dilthey, Edward Bruner e Victor Turner concordam que “uma
experiência” seria caracterizada, marcada, identificada, como período de interrupção do fluxo da
vida quando a mente torna-se “consciente de si mesma”, do presente experimentado, articulando-o
com o passado e as possibilidades do futuro14. Períodos de reflexibilidade que conectam presente,
passado e futuro numa unidade de significado, momentos de um despertar e (re)contar
significativamente a vida.
Se por um lado, a performance do ritual das raves de trance procura por uma experiência
coletiva plena de significado - erfahrung na definição benjaminiana -, por outro, limita-se em não
ser mais do que a experiência de uma teatralização que ocorre na interface e interstício das
instituições centrais da sociedade, uma experiência individual ou de um grupo específico,
caracteristicamente uma erlebnis (Benjamin,1994; Turner,1982)15. A questão que surge, então,
relaciona-se propriamente a esse esforço e desejo por uma experiência coletiva nas raves. Referese ao problema de recriar universos plenos de significado em sociedades fragmentárias, à
nostalgia da experiência de communitas numa sociedade industrial.
Nos termos de Turner, as performances não são apenas unidades de sentido que ocorrem
naturalmente, mas são principalmente períodos de elevada atividade, quando os pressupostos
sociais estão mais expostos, quando os valores, as hierarquias e convenções podem ser
exagerados, invertidos e/ou subvertidos. Performances são para Turner eventos potencialmente
liminares: manifestação de anti-estrutura que se relaciona dialeticamente com a estrutura social
vigente.
A liminaridade se abre para possibilidades do inesperado e tem efeito de um “espelho mágico”
através do qual a sociedade pode ver a si mesma. Mas, enquanto nos rituais de sociedades
tradicionais esse espelho reflete imagens invertidas das estruturas, nas sociedades industrializadas
- caracterizadas pela separação entre as esferas do trabalho e do ritual, do descentramento e
14
Todo o trabalho de Victor Turner dedica-se especialmente para a pesquisa desses momentos quando “a vida parece
ser vivida mais intensamente”: rituais, revoluções, o teatro, definidos nos termos da performance, momentos que nos
seus últimos trabalhos vão sendo caracterizados como da erlebnis, da experiência vivida. Sobre como a noção de
experiência vai se delineando no trabalho de Turner ver John C. Dawsey (2005 a), “Victor Turner e antropologia da
experiência”.
15
Ver também John Dawsey (2005a) e Jeanne Marie Gagnebin (1994).
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 11
fragmentação da recriação de universos simbólicos, gerando e cedendo espaço a múltiplos
gêneros de entretenimento -, sugere Dawsey (2005a:167), estendendo a metáfora ao liminóide,
que esse “espelho mágico do ritual” estilha-se e “surge uma multiplicidade de fragmentos e
estilhaços de espelhos, com efeitos de caleidoscópios, produzindo uma imensa variedade de
cambiantes, irrequietas e luminosas imagens”.
III. Objetivos e hipóteses
Esta pesquisa procura lançar luz sobre a natureza da “experiência” nas raves de trance,
focando o esquecido, o rasurado e o oculto pelos seus discursos e atuações16. Volta-se para os
ruídos, os elementos não-resolvidos e esquecidos na criação de uma “xxxperience”.
Parte da desconfiança sobre a instauração de uma realidade absoluta e “paralela” pela
festa, e trata de sua fragilidade e de seu inacabamento. Procura pelos planos em conflito,
carregados de tensão que são operados nas montagens realizadas pelo modo de festejar rave.
Reconhece a operação de montagens em diversas ou múltiplas dimensões. A montagem
realizada entre o espetáculo e o ritual nas festas de trance, a montagem que se realiza sob os
signos do techno e do trance no universo mais amplo das raves, a montagem operada entre modos
de vidas cotidianos e de final de semana. Essa última pode ser notada nas falas de Pitty, 25 anos,
numa reportagem publicada pela revista Beatz (nº 6, 2003: 15-16), quando ela se define como
“double face” referindo-se à contraposição de sua imagem vestida de camisa, calça social e sapato
alto na atividade profissional em um departamento de marketing de uma empresa de
computadores, e suas vestes com roupas coloridas de tecidos leves que usa quando sai, quase
todos os finais de semana, para dançar nas raves de trance, onde se sente parte de um “outro
universo, imaginário e idealizado”. Nas rave, Pitty deixa à mostra a tatuagem de Ganesh que
cobre quase toda sua costa, ama tomar banho frio de cachoeira, admira borboletas e acredita em
fadas e duendes. “A possibilidade de ficar descalça purifica minha alma”, diz Pitty. Sobre a sua
primeira rave, à beira da represa de Guarapiranga, declara: “Dancei muito progressivo e vi o sol
nascer junto com um monte de gente ao meu lado. Descobri um mundo novo”.
Vários planos em conflito podem ser observados na forma de festejar rave, o trabalho de
campo poderá mostrar sua multiplicação e entrelaçamento. Porém vale ressaltar que é a proposta
desta pesquisa ficar atento, especialmente, às brechas, aos remendos das montagens que surgem
nos pequenos atos: um elogio sincero, um comentário pontual, um silêncio constrangedor.
16
Olhar para o esquecido, o rasurado e o oculto é proposta metodológica de Walter Benjamin (1994) e Clifford
Geertz (1989). Ver mais em John Dawsey (1998; 2005 b).
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 12
Momentos quando se faz notar que “nas irrupções do extraordinário também se encontra a
experiência do ordinário” (Dawsey, 2005a:174).
Esse parece ser o caso registrado em meu diário de campo sobre o festival Trancendence
de julho de 2002, quando estávamos, eu e uma colega, na beira de um rio - que fazia parte da área
da rave - quando um jovem casal se aproximou e se sentou conosco para conversar17. Eram
namorados há bastante tempo e tinham por volta de 20 anos. Ela dançava por entre as pedras e
dizia ser uma fada, queria, então, uma coroa de flores, que ele providenciou carinhosamente.
Disse que queria um “baseado”, e ele, sem dizer nada, o fez. Logo depois ela correu para o
encontro de um rapaz que tocava flauta um pouco mais acima de onde estávamos e voltou
contente contando ao namorado que conhecia o flautista. Ela era falante e divertida, ele apenas ria
como se divertindo com ela. O clima foi suave e ele atendeu a todos os desejos dela até que ela,
vendo duas moças a nadar sem roupas no rio (a nudez para o banho em rios e no mar é evento
comum nas raves de trance), anunciasse que queria também ficar nua e nadar. Ele prontamente
levantou o tom da voz e de forma decidida disse: “Não! Pelada não!”. Ela se recolocou: “Mas não
tem problema, aqui ninguém liga, olha outras pessoas...” Ele olhou para ela e indagou: “Você
realmente acha que ninguém liga?”. E ela simplesmente deixou da idéia sem mais responder.
No limite geográfico da rave, na beira do rio, observa-se, por um instante, a tensão entre a
possibilidade de uma romântica nudez, pura e descomprometida, e o “real” (“realmente” é
contundente na fala do namorado) da malícia que perpassa o despir e os olhos que observam a
nudez. O que se despe, nesse caso, é a fragilidade em se sustentar “um outro universo, imaginário
e idealizado” (cf. fala de Pitty).
Entendo que a (ou “uma”) experiência emerge não exatamente da adesão ou imersão no
mundo do extraordinário, mas da instabilidade dessa vivência, do movimento e da oscilação entre
o senso de fantasia, da instauração de “universos paralelos”, e o senso da realidade desprovido de
encanto, a perspectiva da festa como um simples entretenimento recreativo de fim de semana.
Por alguns momentos vive-se a certeza da existência do fantástico, em momentos
seguintes desconfia-se se aquele mundo maravilhoso não seria simplesmente efeito de “drogas” e
então, olhando à sua volta, tem-se novamente a certeza que aquilo é realidade, não simples
alucinação. Um jogo incessante de deslocamentos e guinadas que suspendem as certezas
duradouras, um movimento interminável de um pólo de compreensão para outro, entre a
construção de “portais dimensionais para conexão intergaláctica” e uma simples recreação de fim
17
É muito comum nas ocasiões das raves os presentes sentarem-se em grupos de pessoas que até então não se
conheciam, ou aproximar-se sem muitas formalidades e serem imediatamente reconhecidos como amigos.
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 13
de semana; entre a vivência de uma conexão humana direta e pura com os presentes (a chamada
vibe da festa), e o efeito químico do ecstasy.
Nesse movimento é difícil, se não impossível, se decidir entre uma e outra posição, pois
ambas não deixam de ser verdadeiras e nenhuma é verdadeira isoladamente. Esse movimento de
alternância entre posições - esse ir e vir incessante de lampejos e interrupções - é o processo que
Michael Taussig (1993) trata como montagem.
Montagem: alterações, brechas, deslocamentos e guinadas que ocorrem durante uma noite inteira;
súbitas interrupções, sempre em relação àquilo que, inicialmente, parece ser a ordem do ritual e,
mais tarde, assume ser pouco mais do que uma desculpa da ordem, dissolvendo-se em seguida em
ondas após ondas que interrompem a ordem ilusória, a ridicularizada, a colonial, refletida no
espelho. Interrupções para defecar, para vomitar, para pegar um pano com que enxugar o rosto,(...)
e nas fendas e guinadas, todo o universo se abre. (Taussig, 1993: 411, grifo meu)
Mesmo que consideremos que o entorpecimento por psicoativos favoreça a “viagem” para
o “mundo dos sonhos”, nessa viagem não se perde a possibilidade de compreensão do que se
mantém paralelo, uma visão sóbria do mundo. Nesse movimento de alternância entre posições,
nesse ir e vir incessante de lampejos e interrupções, alguma nova consciência se revela, como uma
“iluminação profana” (Benjamin, 1994).
Montagem: focalizar para a frente e para trás, partindo do indivíduo para o grupo; não se trata
simplesmente de auto-absorção, interrompida e descartada por meio da participação no grupo ou
com um ou dois membros dele; através dessa focalização para frente e para trás, do indivíduo para
o grupo e vice-versa, estabelece-se uma espécie de espaço lúdico e de um espaço para testes, a fim
de que se possa comparar as alucinações com o campo social do qual elas emanam. Então o
próprio espaço de representação é esquadrinhado. (ibid., p. 412, grifo meu)
No mesmo caminho traçado por Taussig, também inspirado em Benjamin, eu desconfio do
alcance totalizante do conceito de símbolo “em favor da fragmentação da montagem, não branca,
não homogênea, a qual, devido à inabilidade com que ela se ajusta, acaba por fraturar-se” (ibid.,p.
413); pois o modo de festejar rave aproxima-se mais de uma mistura alegórica instável do que de
uma síntese simbólica. Ora, a “experiência” possível na rave irrompe como efeito de sua
montagem em justapor o senso de fantasia ao senso exaltado da realidade, encorajando assim,
entre os participantes, especulações relativas aos porquês e motivos da própria representação.
IV. Plano de trabalho e cronograma de sua execução
A pesquisa será desenvolvida através de (1) levantamento bibliográfico, (2) trabalho de
campo, (3) levantamento videográfico sobre o tema e (4) produção videográfica.
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 14
O levantamento bibliográfico contemplará as discussões da antropologia da experiência e a
antropologia da performance sem perder de vista suas intersecções com outros campos e com a
teoria antropológica de forma mais ampla, a fim de refletir sobre suas potencialidades e limites.
Além das atividades do curso em disciplinas obrigatórias e eletivas oferecidas pelo
Departamento de Antropologia, outras atividades e discussões serão desenvolvidas junto ao
Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) e o Núcleo de Antropologia Performance e Drama
(NAPEDRA), tal como venho realizando desde 2002.
Também está previsto o levantamento e a leitura analítica de textos que atravessam o
universo das raves no campo das ciências humanas a fim de dialogar com as temáticas propostas.
O trabalho de campo irá focalizar principalmente a observação participante em festas raves
de trance. Considerando-se a festa como uma performance, a observação extrapola a festa
propriamente dita e deverá acompanhar também os estágios de preparação, aquecimento,
esfriamento e alguns dos desdobramentos da rave, tal como sugere Schechner (1988) para a
análise de uma “seqüência total da performance”18. Essa observação procurará acompanhar tanto
a perspectiva dos organizadores dos eventos como a dos participantes da rave. Para dar conta dos
desdobramentos das festas, estão previstas entrevistas com alguns participantes da rave em
situações desvinculadas à festa a fim de conversar sobre as impressões e as lembranças sobre o
evento, tal como o reconhecimento dos impactos dessa “experiência”.
Como materiais complementares, serão considerados artigos, fotografias, declarações e
conversas, veiculados em sites especializados já que esses se mostram como espaços (ainda que
virtuais) de comunicação e de interação privilegiada entre os ravers fora do espaço da festa 19.
A prática de extenso registro visual das raves e sua circulação em sites especializados é
comum e mostra peculiaridades. Os sites brasileiros dispõem em média mais de uma centena de
fotografias de cada rave, alguns registros chegam a disponibilizar mais de quinhentas fotografias
de uma única festa, e outros também dispõem vídeos com duração de até 10 minutos. A
quantidade, o enquadramento, a forma de circulação e acesso a essas imagens são consideradas
informações importantes para os objetivos dessa pesquisa.
O levantamento de vídeos produzidos sobre e nas raves, principalmente as de trance,
volta-se à proposta de reconhecer “estórias sobre eles que eles contam de si mesmos” (Geertz,
18
Os ravers falam em chill in referindo-se a um espaço de tempo e de encontro que antecede a saída dos grupos de
amigos da área urbana das cidades em direção da rave que geralmente acontece na região rural. Essa categoria nativa
pode ser associada a uma fase de aquecimento. Falam também em chill out para referir-se a espaços geograficamente
demarcados ou de tempo destinados para o descanso e o relaxamento previsto antes de diluição dos grupos de amigos,
antes das pessoas separarem-se e voltarem para suas casas particulares, período esse que pode ser considerado como
fase de esfriamento da performance.
19
Os principais sites brasileiros são: Balada Planet, Raurl e Zuvuya. No período da pesquisa, novos sites poderão
surgir, outros perder a importância.
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 15
1989: 316), pois um levantamento prévio indica que a grande maioria do material produzido no
Brasil é dirigida por ravers. Esses vídeos são vistos como artefatos culturais, produzidos através
de certo conhecimento técnico e da articulação de uma linguagem historicamente pertinente.
Considerar os propósitos dessas produções (seus objetivos e usos), a natureza das imagens
selecionadas, o imaginário e a afetividade que as atravessam, os discursos que perpassam esses
textos, a relação dessa linguagem com outras (a fotografia, os textos escritos), são alguns dos
focos de análise sobre o material.
A proposta de se produzir um vídeo durante a pesquisa atende ao objetivo do uso
estratégico da câmera como instrumento de pesquisa de campo e de reflexão sobre a prática
antropológica.
O vídeo possibilita o registro processual, sonoro e imagético de uma forma de expressão
complexa: a performance da rave. Seu uso é estratégico pois procura dar conta do registro da
unidade entre elementos de diversas naturezas que estão envolvidos na criação dessa
performance: cenários, danças, falas, indumentárias, símbolos, musicalidades, deslocamentos
espaciais, olhares, silêncios, etc. e que a descrição destrói ao recortá-los em universos separados.
Porém, mais do que produtora de registros, a câmera é reconhecida como elemento
mediador para representações, tanto para quem filma como para quem se porta frente à câmera.
Diante da câmera a pessoa filmada mostra-se como um personagem. O vídeo é também o vestígio
de um encontro, expressa tanto certo poder de controle da visão perspectiva, como também da
simultaneidade entre observador e observado.
O vídeo, usado como instrumento de pesquisa, paralelamente à observação participante
nas raves, possibilita-me, além do mais, refletir sobre a relação entre o visível e o invisível, o
audível e o inaudível, o perecível e o imperecível no universo social das raves.
Vale ainda pontuar que, tal como bem lembra Rose Satiko Hikiji (2005: 281), “opções à
escrita (vídeo, fotografia, montagens musicais), quando trazidas à etnografia, são enriquecedoras,
mas não excluem a necessidade do texto”, e o desafio que se põe é “paralelamente à incorporação
de materiais sonoros ou visuais, buscar formas de impregnar o texto com esses modos outros de
pensamento”.
O cronograma para a realização e finalização da pesquisa prevê sete semestres, ou seja,
três anos e meio, com atividades distribuídas conforme segue:
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 16
1º Sem.
2º Sem.
3º Sem.
4º Sem.
5º Sem.
Créditos em Disciplinas
x
x
Pesquisa bibliográfica e filmográfica
x
x
x
x
x
Pesquisa de campo
x
x
Organização do material de campo
x
x
Elaboração da tese
x
x
Finalização do vídeo
x
Defesa da tese
7º Sem.
x
x
x
Exame de Qualificação
Finalização da tese
6º Sem.
x
x
x
V. Forma de análise dos dados
A análise dos dados deverá ser sistematizada na forma de papers esporádicos e relatórios
semestrais consolidados. Os papers desenvolvem temáticas mais pontuais como material para a
discussão nos núcleos de pesquisa e também grupos de trabalho de congressos científicos. Já os
relatórios semestrais procuram informar as instituições financiadoras da pesquisa sobre o
desenvolvimento do trabalho e os resultados preliminares.
Em meados do quinto semestre, também poderá ser disponibilizado um vídeo, tal como
previsto pelo plano de trabalho e cronograma de pesquisa.
VI. Bibliografia do projeto
ABREU, Carolina de C. (2006). “Rituais na floresta, índios e cores fluorescentes: raves de trance no
Brasil” Paper apresentado no GT 39 – Performance, Drama e Sociedade da 25ª Reunião Brasileira
de Antropologia (Goiânia, 11 a 14 de junho de 2006).
________________ (2005). Raves: encontros e disputas. São Paulo, PPGAS/ USP. Dissertação de
mestrado em Antropologia Social.
BAKHTIN, Mikhail M. (1987) A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília.
BASTIDE, Roger (1992) “O Sagrado Selvagem”. Tradução de Rita de Cássia Amaral in: Cadernos de
Campo - revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da USP, nº. 2, ano 2. São
Paulo: USP, FFLCH, pp. 143-157..
BARTHES, Roland. (1990). “Diderot, Brecht, Eisenstein”. In: O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, pp. 85 –92.
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 17
BECKER, Howard S. (1977) “As regras e sua imposição” e “Consciência, poder e efeitos da droga”. In:
Uma Teoria da Ação Coletiva. Rio de Janeiro: Zahar Editores, pp. 86-107, 181-204.
BENJAMIN, Walter. (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.
BLACKING, John. (1977). “Towards an Anthropology of the Body”. In: The Anthropology of the Body.
London, New York, San Francisco: Academic Press, pp. 1- 28.
BOLLE, Willi. (2000). Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter
Benjamin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
BRUNER, Edward M. (1986) “Experience and Its Expressions”. In: V. Turner e Edward M. Bruner (eds).
The Anthropology of Experience. Urbana e Chicago: University of Illinois Press, pp. 3-30.
BUTLER, Judith. (2000). “ Corpos que pesam: sobre os limites discursos do ‘sexo’”. In: Guacira Lopes
Louro (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica.
________________ (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira.
CARNEIRO, Henrique. (2002). Amores e sonhos da flora. Afrodisíacos e alucinógenos na botânica e na
farmácia. São Paulo: Xamã Editora.
CLASSEN, Constance (1993). Worlds of sense: exploring the senses in history and across cultures.
London: Routledge.
D’ANDREA, Anthony A. Fischer. (2004) “Global Nomads: Techno and New Age as transnational
countercultures in Ibiza and Goa”. In: Graham St. John (ed.). Rave Culture and Religion. Londres
e Nova York: Routledge, pp. 236-255.
________________ (1999) “Can a Night-Club be a Sacred Space? New Age and Techno on Ibiza Island”.
Paper apresentado no II Anthropology of Religion Meeting (Chicago, 16 a 18 de abril de 1999).
DAWSEY, John C. (2005 a). “Victor Turner e antropologia da experiência”. Cadernos de Campo - revista
dos alunos de pós-graduação em antropologia social da USP, nº. 13, ano 14. São Paulo: USP,
FFLCH, pp. 163-176.
________________ (2005 b). “O teatro dos ‘bóias-frias’: repensando a antropologia da performance”. In:
Horizontes Antropológicos, nº.11, ano 24, pp.15-34.
________________ (1998). “De que riem os ‘bóias-frias’?: Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em
carrocerias de caminhões”. São Paulo: PPGAS/USP. Tese de livre docência em Antropologia
Social.
DURKHEIM, Émile. (1996). [1912]. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na
Austrália. São Paulo: Ed. Paulinas.
FIORE, Maurício. (2007). Uso de drogas: controvérsias médicas e debate público. São Paulo: Mercado
das Letras/ FAPESP.
FONTANARI, Ivan Paolo de P. (2004) “Sensibilidade eletrônica: música ritualidade jovem
contemporânea”. Paper apresentado na 24ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia
(Olinda, 12 a 15 de junho de 2004).
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 18
GAGNEBIN, Jeanna Marie. (1994) “Prefácio - Walter Benjamin ou a história aberta”. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, pp.
7- 21.
GOFFMAN, Erving. (1995) A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes.
GEERTZ, Clifford. 1989. [1973]. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan.
HALL, Stuart. (2000) “Quem precisa de identidade?”. In: Identidade e diferença: a perspectiva dos
Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes, pp 103-133.
HARAWAY, Donna. (2000). “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do
século XX”. In: Tomaz Tadeu da Silva (org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do póshumano. Belo Horizonte: Autêntica, pp.33-129.
HIKIJI, Rose S. (2005). “Possibilidades de uma audição da vida social” In: O imaginário e o poético nas
Ciências Sociais. José de Souza Martins, Cornélia Eckert, Sylvia Caiuby Novaes (orgs.). Bauru
(SP): Edusc, pp. 271-285.
HUIZINGA, Johan. (2004). Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva.
LABATE, Beatriz, GOULART, Sandra e CARNEIRO, Henrique. (2005) “Introdução”. In: LABATE, B. e
GOULART, S. (orgs). O Uso Ritual das Plantas de Poder. Campinas: Ed. Mercado de Letras, pp.
28-62.
LARANJEIRA, Ronaldo, FIGLIE, Neliana, BORDIN, Selma. (2004). Aconselhamento em Dependência
Química. São Paulo: Roca.
MACRAE, Edward. (2000) “Antropologia: Aspectos Sociais, Culturais e Ritualísticos”. In: SEIBEL,
Sérgio D. e TOSCANO Jr., Alfredo (orgs.) Dependência de Drogas. São Paulo: Atheneu, pp. 2534.
MAGNANI, José Guilherme C. (2002). “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. In:
Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS/ Edusc, vol. 17, nº 49, pp.11-29.
MAUSS, Marcel. (2003). Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.
MACRAE, Edward, SIMÕES, Júlio Assis. (2000). Rodas de fumo: uso da maconha entre camadas médias
urbanas. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia.
RODRIGUES, Thiago. (2004). Política e drogas nas Américas. São Paulo: Educ/FAPESP.
SCHECHNER, Richard. (1988). Performance Theory. New York and London: Routledge.
________________ (1985). Between Theater & Anthropology. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press.
TAUSSIG, Michael. (1993). “Segunda parte: Cura”. In: Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem:
um estudo sobre o terror e a cura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 143-459.
TEIXEIRA, Pedro P. (2006). Música eletrônica e xamanismo: técnicas contemporâneas do êxtase.
Campinas, IFCH/ Unicamp. Tese de doutorado em Ciências Sociais.
TURNER, Victor. (2005). “Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência (primeira
parte)”. Tradução de Herbert Rodrigues in: Cadernos de Campo - revista dos alunos de pósgraduação em antropologia social da USP, n 13, ano 14. São Paulo: USP, FFLCH, pp. 177-186.
Experiência trance da rave: entre o espetáculo e o ritual. 19
______________ (1982). From Ritual to Theater: The Human Seriousness of Play. New York: PAJ
Publications.
_______________ (1987). The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications.
VARGAS, Eduardo Vianna. (1998) “Os corpos intensivos: sobre o estatuto social do consumo de drogas
legais e ilegais”. In: DUARTE, Luis Fernando Dias e LEAL, Ondina Fachek (orgs.). Doença,
Sofrimento, Perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, pp. 121-136.
Projeto temático “Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual” (processo 06/53006-2,
apresentado à FAPESP).