Estratégia de Gladstone para a democratização do sufrágio. São
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Estratégia de Gladstone para a democratização do sufrágio. São
1 Estratégia de Gladstone para a democratização do sufrágio Antonio Paim SUMÁRIO Significado do tema A reforma eleitoral de 1832 O movimento “cartista” Como a prática liberal incorpora nova política econômica Estratégia para chegar-se ao sufrágio universal A ilusão de que haveria sistema político ideal Arremate final 2 Significado do tema No estudo da evolução da doutrina liberal subsiste uma grave lacuna: dar-nos conta da argumentação do precursor de sua aproximação ao ideal democrático: William Gladstone (1809/1898). Os textos em que a apresenta foram incluídos numa coletânea intitulada Glendings of Past Years. 1848-78 e praticamente passaram desapercebidos. A rigor, a omissão deve-se em parte a que nem sempre damo-nos conta deste fato singelo: o surgimento do liberalismo acha-se associado ao processo de formação do governo representativo, questão que dizia respeito à soberania de uma instituição denominada de Parlamento. Interessava e dizia respeito aos nobres, vale dizer, à classe proprietária existente na época. Portanto, nesta sua fase inicial, nada tinha a ver com o que depois chamou-se de sistema democrático representativo. Estávamos nas ilhas britânicas no século XVII, centúria dominada por uma luta de vida ou morte tendo como centro as relações entre os nobres e o monarca ou entre duas instituições: o Parlamento e a Monarquia. O ideal democrático provém do continente, achando-se associado à Revolução Francesa (segunda metade do século XVIII). Dessa associação resulta que acabe identificado com a anarquia e a crônica instabilidade política. Restaura-lo seria obra de Aléxis de Toqueville (1805/1859) pensador francês ao qual ocorreu descrever uma experiência de bom funcionamento da desse regime político, no livro A democracia na América (1835). Antes de procedermos à análise dos textos mencionados cumpre fixar o contexto histórico em que atuou Gladstone. A reforma eleitoral de 1832 Gladstone obteve o seu primeiro mandato parlamentar em 1832, integrante da bancada do Partido Conservador. Em 1830, chegou ao poder o Partido Liberal depois de longo predomínio conservador. Vigorava o sistema distrital, achando-se o país dividido em 600 distritos, geralmente abrangendo unidade administrativa denominada condado (shire). Os centros mais populosos subdividiam-se em mais de um distrito. Estes, em geral, elegiam dois deputados. Nas últimas décadas do século XVIII e início da seguinte, o país fora governado por William Pitt (1759/1806), do Partido Liberal, que lograra criar a consciência de que a independência do Parlamento dependia da extinção do que ficou conhecido como “burgos podres”, isto é, condados de diminuta população, perpetuando a presença de parlamentares susceptíveis de colocarem-se ao serviço do Monarca.. Não teve entretanto apoio parlamentar para levar à prática essa reforma. 3 Nas décadas subseqüentes, conclui-se a Revolução Industrial --cujo marco inicial é geralmente fixado na década de sessenta do século XVIII, quando é patenteada a máquina a vapor. Iria introduzir grandes modificações na distribuição populacional do país. Formaram-se cidades e novos centros econômicos, dando surgimento a integrantes da elite proprietária sem dispor do direito de fazer-se representar. De volta ao poder, os liberais encontraram uma situação mais favorável e lograram obter maioria para adoção dessa reforma. Não obstante, a Câmara dos Lordes rejeitou o projeto. O gabinete liberal ameaçou com a nomeação de tantos lordes whigs quantos se fizessem necessários para quebrar a maioria conservadora, com o que, afinal, a Câmara dos Lordes acabou cedendo. A Reforma Eleitoral seria promulgada em 1832. A nova lei suprimiu a representação de 56 circunscrições com menos de 2 mil habitantes e reduziu para um único deputado a dos condados que não passassem de 4 mil habitantes. Nada menos que 43 cidades adquirem representação no Parlamento. Mantendo a legislação em causa a exigência de renda, a representação continuava sendo monopólio da classe proprietária, privada desse direito a maioria da população. Não se tratava, portanto, de adesão ao ideal democrático. Não quer isto dizer que esse ideal estivesse ausente da opinião pública inglesa. Ao contrário disto, nessa mesma época há um grande movimento em seu favor que cumpre examinar posto que trará à luz o espírito que nutria a elite inglesa nessa matéria. O movimento “cartista” Essa denominação foi dada na Inglaterra à campanha, levada a cabo por políticos e pensadores que se consideravam radicais, estruturado em torno da Carta das Liberdades do Povo, cujo programa abrangia cinco pontos: 1) sufrágio universal; 2) voto secreto; 3) eleições anuais; 4) supressão da exigência de renda; e , 5) remuneração aos deputados. Acontece que essa postulação era derivada das idealizações sobre a pessoa humana postas em circulação pelo pensador francês Jean-Jacques Rousseau (1712/1778), amplamente difundidas no curso da Revolução Francesa. Nada mais contrário às concepções dominantes na elite inglesa. No Parlamento inglês vigorava a convicção de que somente a elite proprietária dispunha de interesses que poderiam levá-la a contrapor-se ao Monarca, justamente relacionados à propriedade. A experiência história teria comprovado ser a única força capaz de opor-se ao absolutismo monárquico. Não tendo interesse próprio a defender, o resto da população poderia facilmente tornar-se massa de manobra da Monarquia. O reexame desse ponto de vista seria obra de Gladstone, como teremos oportunidade de documentar. 4 A liderança cartista criticou acerbamente a Reforma Eleitoral de 1832 e, durante certo período, conseguiu realizar manifestações e atos públicos amplamente concorridos em favor da Carta. A partir de 1848, o cartismo entra em declínio e acaba por desaparecer de todo. Semelhante desfecho sugere que seu prestígio popular decorria da força de outras aspirações sociais, como a liberdade de comércio e a melhoria das condições sanitárias das cidades e, em geral, do ambiente dos novos locais de trabalho surgidos com a indústria. Na medida e que o Parlamento adota o livre-cambismo e promove a modernização das cidades e a melhoria das condições de trabalho, as reivindicações cartistas, tomadas isoladamente, revelam a sua face de “corpo estranho”, isto é, alheio à composição estratificada da sociedade e à tradição de levar em conta a situação real e não as puras abstrações. Tanto isto é verdade que os itens do programa cartista que caracterizavam a democratização do sistema acabaram sendo levados à prática, “segundo o espírito inglês”, pode-se dizer. A adoção do livre-cambismo iria alterar profundamente a composição da sociedade inglesa, ao propiciar o acesso à prosperidade de novas camadas, circunstância a que estaria atento Gladstone. Como a prática liberal incorpora nova política econômica O aparecimento da obra Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, em 1776, da autoria de Adam Smith (1723/1790), em que preconiza uma política alternativa ao mercantilismo vigente, em nada alterou a prática seja da Inglaterra seja do conjunto das nações européias. Não se trata de que tivesse caído no esquecimento. No período que estamos considerando, havia na Inglaterra um amplo movimento em favor das medidas que preconizava, baseadas no abandono do protecionismo. A indústria inglesa, ávida de novos mercados, sonhava com a eliminação, por toda parte do mundo, das barreiras opostas à sua penetração. O movimento nesse sentido seria denominado de livrecambismo, desde que o cerne da questão residiria no livre comércio. Obedecia à liderança de Richard Cobden (1804/1865), rico industrial de Manchester e que se tornou uma das personalidades importantes do Partido Liberal. A oportunidade para a adoção de suas idéias ocorreria, em 1845, em decorrência de uma colheita desastrosa que criou uma situação insuportável para as camadas mais pobres da população. Diante da gravidade do quadro, o Primeiro-Ministro Conservador Robert Peel (1788/1850) decide votar a proposta liberal abolindo as taxas de importação dos cereais estrangeiros. O fato acarreta uma grave crise no Partido Conservador. Entre outros, Peel ganha a adesão de Gladstone. Afastando-se do Partido Conservador, o 5 grupo de Peel fica durante vários anos como uma facção independente mas finalmente Gladstone adere ao Partido Liberal e torna-se seu líder. Educado para tornar-se pastor anglicano, Gladstone era não só um homem de grande cultura como interessado em questões muito distanciadas da política partidária, às quais dedicaria alguns de seus livros, a exemplo da teologia; da crítica da Igreja Católica na sua luta anti-liberal e rigidamente hierarquizada em torno do Papa, bem como da moralidade em geral. Homem de princípios, conseguiu dar grande coerência doutrinária ao Partido Liberal. É uma presença marcante na política inglesa da segunda metade do século XIX, ao lado de seu famoso rival Benjamin Disraeli (1804/1891). Herdeiro da liderança do Partido Conservador com o afastamento de Robert Peel, Disraeli revelou grande pragmatismo, com que contribuiu para manter acesa a chama da reforma. À derrocada da Lei dos Cereais seguem-se importantes passos na eliminação do protecionismo. Assim, em 1849 são abolidas todas as restrições à frequência de navios estrangeiros nos portos ingleses e, em 1852, suprimem-se diversas tarifas alfandegárias e reduzem-se as demais. Com base nesse regime de liberdade comercial, o país ingressa num vigoroso ciclo de progresso material. A indústria consolidou-se e introduziram-se nas cidades os sistemas de saneamento erradicando-se as clássicas epidemias. O empenho de fazer surgir o núcleo urbano da era industrial torna-se bem sucedido, com a abertura de grandes avenidas, a implantação de parques públicos, etc. Suspendem-se as restrições à organização das trade-unions e os sindicatos ganham em força e organização. O Parlamento aprova disposições protegendo o trabalho das mulheres e dos menores. Criam-se as primeiras caixas de assistência, embriões da moderna previdência social, e o Poder Público encoraja a construção de habitações mais cômodas, dotadas dos novos recursos sanitários. Moderniza-se a legislação penal. Dá-se grande impulso à educação, tornada acessível às diversas camadas da sociedade. O período histórico em causa seria denominado de Era Vitoriana, considerando que os grandes eventos antes enumerados tiveram lugar durante o reinado da Rainha Vitória (1819/1901), que assumiu o trono em 1837, tendo portanto reinado durante 64 anos. O importante a destacar é que a Inglaterra da Era Vitoriana é certamente o país do Leão Britânico dominando por toda parte (chegou a abranger quase um terço do globo terrestre, com grandes centros no Canadá, Índia, Austrália, África do Sul e Egito). Mas igualmente, em sua própria sede, uma nação de classe média afluente, com base na difusão da prosperidade que tem lugar a partir da grande indústria, que estimula a emergência de novas atividades, com a multiplicação incessante do comércio e dos serviços. 6 É certo que a descrita evolução do quadro social propiciou a democratização do sufrágio. Contudo, tal não ocorreria por geração espontânea, encontrando, ao invés disto, consistente oposição. Donde a relevância do trabalho teórico desenvolvido por William Gladstone. Estratégia para chegar-se ao sufrágio universal Conforme foi referido, Gladstone estava destinado a tornar-se pastor anglicano. Dessa formação preservaria o interesse por temas relacionados à religião e à moral. Assim, publicou The State in its Relations with the Church (1838); Church Principles Considered in Their Results (1840); The Vatican Decrees in Their Bearing on Civil Allegiance (1874) e The Impregnable Rock of Holy Scripture (1890). Seu interesse pela temática moral levou-o a promover a edição da obra de Joseph Butler (1692/1752), personalidade que os estudiosos consideram ter exercido grande influência sobre a doutrina moral de Kant. Manifestou igualmente interesse pela cultura grega, tendo publicado, em 1858, Studies in Homer and the Homeric Age. Gladstone conseguiu reunir biblioteca monumental que chegou a dispor de cerca de trinta mil volumes, iniciativa que deu margem à organização de centro de estudos de sua obra. A primeira reunião de textos dispersos ocorreu-lhe em 1879, quando editou Glendings of Past Years, 1843-1879, em 7 volumes. Editaria ainda, em 1897, Later Glendings. No primeiro volume da primeira coletânea é que se encontram os textos que dizem respeito à estratégia adotada por Gladstone para alcançar, progressivamente, --assegurando experimentação que pudesse desarmar espíritos--, a introdução do sufrágio universal. Tenha-se presente que se tratava de prerrogativa exclusivamente masculina, excluídas que estavam as mulheres do direito de voto, questão então postergada. O volume em apreço intitula-se The Throne and the Prince Consort; the Cabinet and Constitution. A questão do trono ocupa a primeira metade do livro, dedicando-se a subsequente ao problema eleitoral. Discute-se a extensão ao interior da prerrogativa, facultada aos chefes de família da capital através de lei promulgada em 1867. Essa idéia provinha do Partido Liberal, desde logo recusada pelo governo conservador. Comprovada a condição de chefe de família, estava dispensado da prova de renda. A praxe então adotada (no chamado sistema eleitoral censitário) fixava a renda mínima exigida para ter direito de voto, o mesmo ocorrendo a quem pretendesse dispor da prerrogativa de candidatarse aos cargos eletivos. 7 Essa recusa provocaria, entretanto, uma tal comoção social que os conservadores assumiram-na e o Parlamento a tornou lei em 1867. O texto intitula-se O direito eleitoral dos condados e presumivelmente responde às objeções de quem designa como Mr. Lowe, pelo visto representante da bancada conservadora na Câmara dos Comuns. Não explicita que função exerce nem a data em que foi elaborado mas a da publicação na revista The Ninetheenth Century de novembro de 1877, de onde provem a transcrição. A pretendida extensão é estabelecida ainda em fins dessa década de sessenta, no transcurso de seu primeiro governo (de 1867 a 1874). Nesse período introduziu o voto secreto. A premissa fundamental que adota em sua argumentação consiste em enfatizar a necessidade de deixar de considerar-se a extensão do sufrágio como se se tratasse de interesse partidário. Escreve: “As liberdades de nossos cidadãos são de uma importância muito grande para que possam ser resolvidas por interesses de partido. Estas liberdades devem estender-se, apesar de todas as conseqüências para os partidos, até os limites extremos que sejam compatíveis com a Constituição e com a ordem existente. São por si mesmas um dom tão precioso, exercem uma ação tão poderosa sobre a educação do país, que servem ao propósito de desenvolver e multiplicar as forças e energias da nação, que nada pode lhes opor, a não ser a necessidade de sustentar a ordem pública.” A partir dessa premissa não considera que os liberais devam levar em conta a suposição de que a extensão do direito de voto aos chefes de famílias dos condados irá fortalecer o Partido Conservador no interior. Ainda que considere falsa essa idéia, afirma: “sejam quais forem as conseqüências, do ponto de vista dos partidos, vale mais que uma nação, que soube dar-se um governo livre, seja governada livremente, que a base desse governo seja sólida e livre, assegurando que os privilégios e franquias não sejam distribuídas caprichosamente mas com mão firme e imparcial.” Registrando em seguida que sem embargo dos defeitos na constituição do governo representativo, que somente com a reforma de 1832 tenham sido corrigidos, a experiência inglesa era considerada, como diz, “entre todos os Estados o único no mundo que, apesar dos seus grandes defeitos havia deixado penetrar em seu sistema bastante quantidade de ar puro, para que a liberdade, ainda que restrita, pudesse nele viver.” A questão nova surgida, acrescenta, adveio “da idéia de representação do trabalho por membros da classe operária.” A seu ver, se fosse levado em conta que se tratava da classe média, forçoso é reconhecer que ninguém pode atrever-se a atribuir-lhe inépcia para o exercício de tal direito, partindo de considerações abstratas. 8 Quanto ao argumento segundo o qual esse passo ameaça-nos, como dizem os conservadores, “cairmos no fundo de um abismo”, recorda que foi esgrimido em 1832 e quando da apresentação do projeto de 1866. Ao contrário do que apregoavam, ao ser-lhe assegurado o direito de voto, pela última dessas leis, a classe média londrina “mostrou-se afeiçoada a nossas instituições, animada de espírito reto e razoável, ao corrente dos assuntos políticos, capaz o suficiente para formar seu critério acerca do negócio público e, sobretudo, disposta a seguir a opinião e os conselhos das camadas superiores.” Arremata: “em 1867 decidimos que os chefes de famílias da cidade possuíam em geral as qualidades necessárias e em grau suficiente para exercer o direito ao sufrágio. Agora é questão de saber se essa medida, pelos mesmos motivos, deve estender-se aos chefes de famílias dos condados”. Glastone desqualifica a discussão que focalize “capacidade” e “aptidão para decidir” porquanto o egoísmo e outras características pessoais que possam contrapor-se ao interesse púbico existem nas diversas camadas sociais. Assim, irá direto ao ponto: a reivindicação do sufrágio universal. Começa por indicar que “em toda idéia que se aproxima do sufrágio universal há algo que ataca o sistema nervoso, sobretudo quando esta idéia se combina com a igualdade eleitoral, que para muitos equivale ao homicídio.” Prosseguindo: “Miremos ao monstro mais de perto e tratemos de analisar seus aspectos. Que se entende por sufrágio universal? Significa que os súditos de Sua Majestade, adultos e do sexo masculino que não apresentem incapacidade especial e que se encontrem nas condições de residência e demais determinadas pela lei pública, terão o poder de exercer uma influência direta e por meio do voto no governo de seu país.” Entende que por achar-se vinculado ao direito de propriedade, o monopólio da representação por esse grupo social passou a ser considerado como uma espécie de décimo primeiro mandamento. O tema, entretanto, parece-lhe pode ser analisado do ângulo da qualificação. Examinando a questão desse ângulo, afirma: “veremos que existem várias razões para que se considere que todo homem tenha o poder que lhe confere o direito de voto. Em primeiro lugar, pelos impostos e contribuições que paga e pelo uso que faz dos objetos de consumo, contribuindo para as rendas públicas. Em segundo lugar, por seu trabalho (sem mencionar agora os que possuem um capital) contribui para a riqueza pública. Em terceiro lugar, porque pelo menos em nove casos em cada dez, deu à sociedade garantias, constituindose em chefe de família na qual colocou a maior parte de suas afeições; e, em quarto lugar, assim como possui todos os meios de tornar-se útil, deve possuir também o de tornar-se perigoso para a nação e de ser para ela uma carga, como indigente, vagabundo ou criminoso.” 9 A diferenciação que se pode estabelecer consiste em que, “se o valor numérico dos votos é igual, o valor dos homens que proporcionam este contingente de votos é desigual.” Cita Burke: “o direito de governar reside na sabedoria e na virtude.” O absurdo encontra-se na suposição de que, da extensão do sufrágio, resulta que todos podem governar. Na verdade entretanto, essa inferência não decorre da premissa de estender o direito de votos a todos os cidadãos que se encontrem na condição indicada. Destaca que tendo sido a limitação do direito de fazer-se representar associada à propriedade estabeleceu um critério que permitiu efetuar de modo seguro, diríamos em termos atuais, a transição da monarquia absoluta para a proporcional. Sem embargo de que, nem por isto deve ser considerada como inamovível. O fato inconteste, mobilizado por Gladstone, é que, depois da extensão do voto aos chefes de família da cidade “um Parlamento viveu, outro nasceu e chegado ao seu fim sem que lhes possa atribuir, tanto a um como ao outro, um único ato de injustiça perpretado contra as classes trabalhadoras ou qualquer ato que haja prejudicado às classes superiores.” À luz desse fato, classifica como “imaginários” os alegados perigos e mesmo “a imaginação de fantasmas erguidos perante o país, como se pudesse servir de argumento sério contra uma proposição que não dá lugar à emergência de uma questão constitucional e que não tem outro objeto senão dar à segunda metade de nossos trabalhadores, chefes de família, o que já demos à primeira.” Escreve Gladstone: “Não há nenhuma idéia política que haja contribuído menos à formação do sistema político deste país que a paixão igualitária. A de justiça, fazendo abstração da igualdade, está muito arraigada entre nossos cidadãos, mas não sucede o mesmo com a igualdade, fazendo abstração da justiça. Não foi a paixão da igualdade que impulsionou os trabalhadores da Inglaterra a lutar com todas as suas forças e 1831 e 1832 em favor de um ato de reforma que sabiam muito bem que não só não conferia à sua classe em geral o direito de voto senão que suprimia o sistema eleitoral verdadeiramente popular que existia.” Conclui deste modo essa parte da argumentação: “Em realidade, a duras penas o amor à liberdade na Inglaterra é mais forte que o amor à aristocracia, como me dizia um dia sir William Molesworth, um dos filósofos políticos mais notáveis, ao falar da força desse sentimento no povo: é uma religião.” E, mais: “um observador político não apenas deve fixar-se nesse traço, mas dar-se conta de que, sem isto, não será para ele nossa história mais que uma cadeia de enigmas dos quais impossível será encontrar a chave.” 10 A ilusão de que haveria sistema político ideal Na parte final desse longo ensaio (cerca de 40 páginas), Gladstone irá ferir uma questão que evidencia sua predisposição para tornar-se o grande estadista que foi. Trata-se da tese de que “quanto mais vivo menos vejo nas instituições de nenhum povo a tendência a aproximar-se de um tipo ideal.” Segundo o seu entender, a atividade parlamentar insere vícios e defeitos muito difíceis de superar. Os dois grandes perigos adviriam do que denomina de gerentocracia e de plutocracia. Enumera as condições que, praticamente, influem na escolha daqueles que encontram-se em seu exercício ou pretendem ocupar-se da atividade parlamentar: nascimento, o talento, experiência acumulada no exercício de outras atividades, a propriedade, as relações comerciais e industriais, o dinheiro e outras tantas que poderiam ser multiplicadas. Em que pese essa diversidade, as mais relevantes seriam: “em primeiro lugar, o progresso rápido e constante do poder do dinheiro; em segundo, a quase completa anulação das probabilidades que para entrar no Parlamento têm os homens que somente contam com seus talentos e seu caráter, vale dizer, as qualidades superiores a todas para servir ao país.” Os mais prejudicados seriam os jovens. Teria em vista, antes de mais nada, as dificuldades para a renovação. Os americanos, que copiaram o sistema (distrital) inglês, procuraram minimizar o problema realizando o que se convencionou denominar de “eleições primárias”, isto é, a escolha dos candidatos é efetivada por votação de que participam membros e simpatizantes do partido. Nos países (europeus) de democracia consolidada, onde vigora o sistema proporcional, na confecção da lista estimula-se a formação de chapas concorrentes às respectivas convenções, fazendo-as preceder de amplo debate no interior da agremiação. Na Inglaterra firmou-se a tradição de que o candidato a concorrer pelo distrito é escolhido pelo órgão dirigente, sancionado em reuniões com a participação dos membros do partido. Nessas reuniões, de um modo geral, o candidato compromete-se com determinados pontos do programa partidário. De seu sucesso junto aos eleitores e, no caso de ser eleito, a sua permanência no posto vão depender do desempenho parlamentar. Persiste o problema da renovação mas sempre estará na dependência tanto do seu desempenho parlamentar como junto ao eleitorado. Nunca se chegará ao ideal, como constata Gladstone, mas ao que é humanamente possível. Voltemos ao texto. Escreve a propósito da dificuldade de incorporar jovens talentos: “Houve honrosas e distinguidas exceções; mas, em geral tanto valeria 11 preparar-se aos quarenta e cinco ou cinqüenta anos para tarefas às quais, desde a juventude, deveria fazê-lo. Esta mescla de dutibilidade e de força, que é absolutamente necessária nos mais elevados trabalhos do homem de Estado, forçosamente encontrar-se-á fora do nosso alcance, se não ocorre em tempo oportuno. Há, em verdade, um papel e esfera de ação no Parlamento para homens de meia idade e para os que, como eu, ultrapassaram este limite; mas isto não compensa a perda destes jovens, de que tanta necessidade teremos no futuro, e que devem ser a verdadeira esperança do país.” Referindo-se diretamente aos membros da Câmara dos Comuns, divide-os em duas categorias: “a primeira é a dos homens mais aptos para servir ao país; a segunda, a daqueles cujo principal objeto é servir-se a si mesmos.” Esclarece que não se trata de corrupção, mas dos que querem “elevar-se na sociedade”. Afirma que “talvez não deva desejar-se a exclusão total dessa categoria de homens; mas seu aumento progressivo não pode deixar-se de considerar como uma verdadeira calamidade nacional.” A ascensão desse tipo de gente decorreria, segundo supõe, do aumento dos dispêndios exigidos para eleger-se. Atribui ao Partido Conservador a responsabilidade pela ausência de providências para reduzilos. Para corrigir o problema só restaria que “em cada circunscrição o partido deveria empenhar-se na escolha de candidatos sem atender a outra coisa senão o interesse do país.” Entende que tal não ocorre nas circunscrições urbanas, das quais se ocupa. Escreve: “se tal sucedesse, não veríamos, como vemos hoje, fechadas as portas do Parlamento a um grande número de homens de experimentado mérito e que prestaram ao país serviços dignos de memória.” Encerrando a análise desse ponto afirmará: “As liberdades públicas estão em absoluto nas mãos dos corpos eleitorais. Não é da Coroa nem da aristocracia que temos o que temer; o sensível para elas são as profundas e mesquinhas influências que se exercem dentro e fora de seu próprio meio; é a indiferença pelos assuntos públicos, o culto da riqueza, que caracteriza a desonra de nossa época.” E, ainda, “o dever dos eleitores é buscar o melhor representante; a dificuldade estriba em conhecer em que consiste a superioridade de uns sobre os outros, e esta é a dificuldade que todavia não superamos.” Arremate final No ano seguinte (1878), voltaria ao tema em dois escritos, ambos publicados na mesma revista (Nineteenth Century). Prende-se o primeiro -que intitulou como a “última palavra sobre o direito eleitoral nos 12 condados”-- à circunstância de que o seu oponente (Mr. Lowe, como indica) teria distorcido seus pontos de vista numa réplica que se seguiu ao texto antes resumido. Basicamente resume os argumentos invocados em favor da extensão do direito de voto aos chefes de família dos condados do interior. Nesse conjunto, valeria destacar a forma como apresenta o valor da experimentação de qualquer reforma. Escreve: “(Destaquei) que a experiência de 1869 a 1877 provou que a ampla admissão dos trabalhadores, como elemento de nosso corpo eleitoral, nos proporcionou mais Parlamentos preocupados com os interesses legítimos do trabalho, mas de nenhum modo dispostos a sacrificar os direitos das outras classes.” O oponente acusa-o de atribuir aos pobres “virtudes, atitudes e talentos” que, a seu ver, seriam “imaginários.” Atribui-lhes, ao contrário, somente defeitos o que não passaria de preconceito. Refere-os para avaliação do leitor: “buscam sempre mais criar-se uma propriedade do que respeitar a dos demais”. “Exigem que seus salários aumentem, que os artigos de seu consumo sejam livres de todo imposto e que os que os produzem sejam protegidos contra a concorrência” Entende que Gladstone, em relação à propriedade deseja sobretudo feri-la, “como todos os desgraçados e exacerbar a ferida quando pretendo torna-la duradoura.” Balanceando a arenga de seu oponente, afirma: “uma presunção não é uma prova e pode ser combatida por testemunhos e argumentos contrários. Que testemunhos ou argumentos nos opõe a réplica? Nem uma única vez recorre à experiência do povo inglês; nem por casualidade cita um único exemplo de um corpo eleitoral, fundado no sufrágio dos chefes de família, que haja tratado de atender aos direitos dessa minoria composta dos cidadãos ricos e instruídos, e cuja perigosa condição inspira tantos alarmes e compaixões.” Insiste em que “o povo inglês não ameaça nossas instituições senão que trata de viver em perfeita harmonia com elas e mostrou que em virtude de um capricho e não de um princípio se dá a um homem o que se recusa a outro.” Conclui: “Não sonho com uma idade de ouro; sempre haverá não poucas desditas que deplorar; não poucas injustiças a reparar. Mas ao menos separemos as dificuldades inúteis que resultam de loucas recriminações e trabalhemos todos com paciência e boa vontade, conduzindo e dirigindo o melhor possível o movimento de nosso tempo.” O último texto é bastante breve, confrontado aos precedentes. Deseja apenas registrar que o debate ter-se-ia revelado bastante mobilizador, achando-se, a seu ver, plenamente esclarecido. Afirma taxativamente que “agora se compreenderá claramente que nossa discussão não se encaminha no sentido de saber se o governo deve pertencer ao povo melhor que as classes acomodadas.” Adianta: “não existe um povo bastante considerável, para merecer o nome de nação, que seja, no sentido próprio da palavra, 13 governado por si mesmo. O máximo do que parece possível alcançar, nas condições da natureza humana, é que o povo eleja aos que hão de governar e que, em circunstâncias excepcionais, é importante que obre diretamente sobre eles. A história nos demonstra quão raro é que este resultado seja logrado de uma maneira completa.” O último governo liberal liderado por Gladstone (1892-94) obtém do Parlamento a eliminação do sistema eleitoral censitário --associado à renda do eleitor e do candidato--, seguida da criação de distritos de importância análoga, cada um elegendo um deputado.O eleitorado eleva-se a 4 milhões, equivalentes a 28,5% da população acima dos vinte anos de idade, Alcançava-se, portanto, o sufrágio universal masculino, a que então se limitava. A extensão do direito de voto às mulheres somente ocorreria após a primeira guerra, em duas etapas, sendo a final em 1928. Assim, na Inglaterra, o chamado “processo de democratização da idéia liberal” demandaria um século, avançando cautelosamente após sucessivas experimentações. Sua fundamentação teórica, como vimos, seria obra da grande figura liberal que seria William Ewart Gladstone (1809/1898).