A imagologia da diáspora em Intérprete de Enfermidades
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A imagologia da diáspora em Intérprete de Enfermidades
A imagologia da diáspora em Intérprete de Enfermidades Maíra Borges Wiese* Resumo O presente artigo trata-se de uma proposta de interpretação do livro de contos Intérprete de Enfermidades, da escritora Jhumpa Lahiri, livro este que recebeu o prêmio Pulitzer 2000 e foi referido pela crítica como objeto revelador de uma nova voz na literatura norte-americana. Essa “nova voz” forma-se a partir de um background cultural que espelha-se nos contos: Jhumpa Lahiri nasceu na Inglaterra, é Þlha de imigrantes indianos, mas reside nos Estados Unidos desde os três anos de idade. Os contos, por sua vez, trazem um apanhado coeso de representações culturais relativas às sociedades e indivíduos em contextos resultantes da diáspora, especiÞcamente a população de imigrantes indianos em território norte-americano. Torna-se inicialmente importante destacar a proposta do livro em Þgurar-se enquanto um conjunto de Þcções cuja temática e discurso objetivam a representação desse contexto acima comentado. Pode-se aÞrmar que Intérprete de Enfermidades trata-se de um livro sobre a população de imigrantes indianos nos Estados Unidos, sendo seus desdobramentos obviamente complexos e variantes. Assim sendo, este artigo debruça-se sobre a forma como estas representações atuam através da composição das personagens, das escolhas narrativas, dos objetos-símbolos que permeiam os cenários e da demarcação do tempo histórico. Compreendendo que estes elementos narrativos fazem parte das formulações imagéticas próprias da literatura, e de que estas são dotadas de signiÞcados simbólico-culturais, discursivos e ideológicos, a análise dos contos adotará como perspectiva crítica as proposições teóricas e metodológicas dos estudos sobre imagologia, inseridos no campo da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais. Palavras-chave: Literatura e cultura. Diáspora. Imagologia. Literatura norte-americana. Introdução A coletânea de nove contos que compõe o livro Intérprete de Enfermidades (Interpreter of Maladies, 1999), da escritora Jhumpa Lahiri, debruça-se intencionalmente sobre aspectos da diáspora. Mais especiÞcamente, a diáspora indiana cujo destino é os Estados Unidos. Excetuando-se * Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários e Culturais da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Graduada em Letras pela Universidade Federal da Paraíba, com habilitação em Línguas e Literaturas de Língua Portuguesa e Inglesa. (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 13 dois contos,1 todos os outros trazem personagens em situações produzidas por esse contexto, e que passam a transitar em esferas culturais distintas. As marcas dessa trajetória de deslocamento e as dissimilitudes culturais são evidenciadas pela autora através de uma ampla construção de referências imagéticas, que vão se arquitetando como dois mundos em comparação. Servem-nos como índices culturais os cenários, seus objetos, a gastronomia, a língua, os comportamentos, as marcas de identidade nacional. No conto “Um verdadeiro Durwan”, a velha senhora Boori Ma é varredora de escadas de um prédio em alguma cidade norte-americana, e passa os dias a rememorar a boa vida antes das perdas sofridas com o declínio de Calcutá, após a independência e divisão da Índia. Já o Senhor Pizarda, em “Quando o Senhor Pizarda vinha para jantar”, vive em recorrente angústia pela falta de notícias sobre sua família, que, em outubro de 1971, convivia com os conßitos violentos em Dacca, na guerra civil paquistanesa, mesmo ano em que ele ganha bolsa de estudos para residir nos Estados Unidos. No conto “A Sra. Sen”, as incompatibilidades culturais entre Índia e América tornam o cotidiano de sua personagem principal um aglomerado de adversidades e tropeços depois da contratação de seu marido para ensinar em uma universidade norte-americana. Em “O terceiro e último continente”, a comum tentativa de estudar e ter uma vida melhor no estrangeiro move o personagem principal, também narrador, a sair da Índia para ir, inicialmente, à Inglaterra, e depois aos Estados Unidos. No conto “Esta abençoada casa”, a incompatibilidade entre dois jovens indianos, recém-casados, residentes nos Estados Unidos, torna-se evidente após Twinkle, uma esposa espirituosa e com trejeitos ocidentais, se encantar pela devoção religiosa dos antigos moradores da nova casa e querer preservar os objetos cristãos nela deixados, apesar do casal não ser cristão. Em “Um problema temporário”, Shukumar e Shoba acompanham o inevitável Þm do casamento, ao passo que funcionários da companhia de energia consertam o problema de eletricidade que havia atingido a vizinhança. E por último, no conto “Sexy”, à medida que a indiana Laxme conta a sua amiga americana Miranda o desenrolar da traição do marido de sua prima, aquela, por sua vez, acaba por se envolver com um bengali casado e se vê, aos poucos, perdida numa relação infrutífera. É importante destacar que esses enredos tratam de temas e problemas que vão além das questões relacionadas à diáspora, e que existem possibilidades inÞnitas de abordá-los. Porém, é perceptível ao leitor a existência de uma constante, ou melhor, de uma intenção evidente de retratar, de algum modo, os indianos em terra estrangeira. Este artigo faz apenas um recorte de análise, o que não signiÞca desconsiderar a complexidade de questões sociais, políticas e individuais presentes nos contos de Lahiri. 1 14 A saber: “Intérprete de Enfermidades”, que trata do movimento inverso, ou seja, de turistas norte-americanos na Índia; e “O tratamento de Bibi Haldar”, que relata um drama familiar também ambientado no país indiano. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> No que diz respeito ao processo de análise literária, isto é, à análise de como os caracteres textuais e narrativos (tema, personagem, etc.) são construídos enquanto intenção de ser texto Þccional pleno e complexo, este mesmo processo passa pela necessidade de compreender o porquê e como dos discursos, atitudes e linguagens de seus personagens, de seus enredos subjacentes, dos signiÞcados simbólicos e metafóricos dos elementos do texto. Nos contos de Jhumpa Lahiri, todos, ou quase todos, esses elementos estão relacionados a questões próprias das sociedades e indivíduos em contextos provocados pela diáspora, e muitos deles emergem enquanto signo/representação de unidades culturais. Neste sentido, a análise literária toma como urgente as contribuições dos Estudos Culturais – necessidade que vem se evidenciando e fortalecendo após a crise metodológica dos estudos literários na década de 60, e a consequente percepção da importância de se estabelecer uma maior aproximação com outras áreas das Ciências Humanas (RIBEIRO; RAMALHO, 2001). Esta abertura metodológica, e revisão crítica, também fora vivenciada pela Literatura Comparada na década de 70, quando começou a se destacar a importância da historicidade e da complexidade cultural presentes no texto literário. Como comenta Eduardo Coutinho (2001, p. 318) sobre esse aspecto, “a obra ou série literárias não podiam mais ser abordadas por uma óptica exclusivamente estética; como produtos culturais, era preciso que se levassem em conta suas relações com as demais áreas do saber”. É neste sentido que esta breve análise dos contos de Jhumpa Lahiri dialoga com as perspectivas propostas pela Literatura Comparada, por compreendê-la, como propõe Helena Buescu (2001, p. 20), “como espaço reßexivo privilegiado para a tomada de consciência do caráter histórico e cultural do fenômeno literário, quer insistindo em aproximações caracterizadas por fenômenos transtemporais e supranacionais quer acentuando uma dimensão especiÞcamente cultural”. Inserindo-se mais especiÞcamente num dos ramos de investigação da Literatura Comparada, a Imagologia, este artigo procurará sublinhar as construções imagéticas (imagens literárias) desenvolvidas por Jhumpa Lahiri, na sua intenção de caracterizar os espaços que deÞnem e delimitam as culturas em destaque no texto. São imagens que incorporam tanto a visão cultural formulada pelo narrador como pelos próprios personagens que, enquanto indianos e/ou norte-americanos, possuem percepções distintas sobre aquilo que chamamos de o “Outro” ou o “estrangeiro”. Assim, não poderiam ser mais pertinentes as contribuições de Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux em “Da imagem ao Imaginário”, do livro Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura (2001), já que partem da compreensão de que a imagem em um texto literário funciona, em certos contextos, como “um conjunto de ideias sobre o estrangeiro”, “como elemento cultural que remete à sociedade” (p. 57). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 15 Sendo um exemplo típico deste indivíduo da diáspora e/ou de seus efeitos, Jhumpa Lahiri, nascida em Londres, Þlha de imigrantes indianos e criada em Rhode Island, Estados Unidos, decide escrever sobre as experiências de indivíduos com trajetória semelhante. E este processo acaba por resultar num estilo próprio, em que as imagens do Oriente e Ocidente são elementos fortemente reforçados em todos os sete contos selecionados, propondo a existência daquilo que intitulo no trabalho de “imagologia da diáspora”. Este texto divide-se, dessa forma, em duas partes: na primeira, analisar-se-á os mecanismos de caracterização e diferenciação cultural promovidos pelo narrador, buscando perceber os signiÞcados que carregam. Tal caracterização se realiza na medida em que Jhumpa Lahiri não opta por apenas referir-se à nacionalidade de seus personagens, mas sim por (re)produzir, através de inúmeras referências e descrições, o próprio universo cultural dentro texto. A segunda parte, por sua vez, concentrase no ponto de vista dos personagens. Se antes o narrador construía as imagens e discursos enquanto um indivíduo “neutro”, “sem nacionalidade”, como agora os personagens, que são indivíduos com identidades nacionais e culturais Þrmemente ou razoavelmente marcadas, representam e percebem o Outro? Isso visa a compreender como a percepção dos indianos sobre a cultura americana, e vice-versa, é representada e interpretada por Jhumpa Lahiri. Na impossibilidade de abarcar a análise de uma grande quantidade de imagens, apenas algumas passagens serão selecionadas, as quais possam apontar para uma possível conclusão sobre as formas adotadas pela autora para representar os imaginários culturais e as experiências da diáspora. 1 As escolhas narrativas na representação de aspectos da diáspora Conforme referi anteriormente, podemos propor uma separação entre as formas de construção imagética presentes no livro Intérprete de Enfermidades. Por um lado, temos o narrador, que é responsável por arquitetar os cenários, descrever os personagens e escolher os caminhos do enredo; por outro, os personagens que, enquanto Þguras “autônomas”, possuem opiniões e discursos próprios. Digo “autônomas” (entre aspas) porque tanto o narrador quanto os personagens fazem parte, obviamente, de um discurso engendrado pelo escritor. Os elementos culturais nos contos de Jhumpa Lahiri são aspectos-chaves para compreender o universo diaspórico sobre o qual a autora se volta. Nesse sentido, o narrador assume função essencial, pois articula imagens e discursos que caracterizam as experiências da diáspora. 16 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> Diferentemente dos personagens, o mesmo raramente assume um posicionamento cultural ou ideológico explícito, mas estes últimos podem ser questionados através da observação e interpretação das escolhas narrativas e descritivas realizadas pelo narrador. Abordando o livro como um todo, é perceptível, como já mencionei anteriormente, a intenção da autora de escrever sobre situações e conßitos vivenciados por indianos nos Estados Unidos. Talvez tal escolha deva-se ao fato da mesma ser de origem indiana e ter vivido maior parte de sua vida neste outro país, contexto que acaba por lhe ser familiar. Dos sete contos que aqui abordo, quatro deles possuem um aspecto em comum: seus personagens são quase todos professores universitários emigrados pela oferta de emprego ou estudantes universitários envolvidos em alguma tese de pós-graduação. Apesar da recorrência desta escolha narrativa – que é representativo de um tipo de ßuxo migratório intenso, vivenciado por proÞssionais, intelectuais ou estudantes –, Jhumpa Lahiri não opta por tematizá-las ou estender-se numa caracterização mais minuciosa. Em termos de função narrativa, elas servem mais como uma “ponte”, um mecanismo para situar o leitor sobre os papéis e níveis sociais de seus personagens, bem como, e talvez, principalmente, para justiÞcar e/ou demarcar a posição sociocultural dos indianos em território norte-americano. Nos contos “A Sra. Sen” e “Quando o Senhor Pizarda vinha para jantar”, por exemplo, o motivo de deslocamento é, no primeiro caso, uma oferta de trabalho como professor universitário de matemática, e, no segundo, uma bolsa de estudos para investigar o “tipo de folhagem da Nova Inglaterra”. Porém, não são as origens da diáspora que de fato importam para a autora, e sim seus desdobramentos, que implicam, precisamente, em representações e questionamentos de ordem cultural. Em todos os contos selecionados, os dois universos culturais – o indiano e o norte-americano – estão delimitados. Isso não signiÞca dizer que convivem em separação absoluta, já que as interações provocadas pela diáspora implicam tanto em choque cultural, resistência, como também em hibridismos, assimilações e ressigniÞcações. A descrição desses ambientes assume caráter essencial na narrativa de Jhuma Lahiri, já que são permeados por imagens e referências que nos lembram, quase que didaticamente, como e de que são compostos os dois países. Neste ponto, é o narrador que assume, na maioria das vezes, essa função de “decorador”, incluindo na caracterização e ações de seus personagens, bem como nos ambientes frequentados, objetos, cores e nomes ligados à cultura indiana. Por ser a Índia a “cultura estrangeira”, ela se torna o foco das atribuições imagéticas em nível cultural, estabelecendo-se como o princípio da diferenciação. Apesar de o tratamento a essas diferenças não assumir largamente a carga comum da excentricidade, a autora não deixa de recorrer a estereótipos. No conto “Sexy”, por exemplo, em seu segundo parágrafo, o narrador menciona de imediato que a personagem Laximi passa os dias a comer “uma mistura picante de bolachas e amêndoas fritas e moídas”, que possui Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 17 um retrato do Taj Mahal na mesa do trabalho, e que almoça com sua amiga Miranda em restaurante indiano. As mulheres indianas de “Um verdadeiro Durwan”, “A Sra. Sen” e “O terceiro e último continente” mantêm o hábito do uso do sari e se alimentam de pratos típicos – seja caril de galinha ou galinha Mughlai, guisado rogan josh ou doce halvah. A presença contínua desses elementos possui signiÞcado que vai além do caráter “decorativo”. A autora enfatiza um dado cultural que pode ou não expressar-se com rigor na vida de um imigrante: a manutenção dos hábitos originais, a rejeição à cultura estrangeira, a prática da comparação qualitativa. Nos contos de Intérprete de Enfermidades, as reações a essa relação cultural são abordadas de forma complexa e relativizada. Porém, existem recorrências de alguns aspectos narrativos e discursivos especíÞcos que podem evidenciar um posicionamento particular da autora – posicionamento esse que é distribuído melhor entre os personagens. As escolhas do enredo realizadas pelo narrador, neste primeiro ponto, atuam como peças simbólicas, alegorias. Um dos aspectos principais é a questão da diferença. Apesar de Stuart Hall, no seu ensaio “Pensando a Diáspora” (2003), propor que abordar a diáspora através de uma percepção binária da diferença é compreendê-la de forma fechada e limitada, tal prática comparativa é um mecanismo essencial da autora para delimitar os espaços culturais e a interação entre eles. No conto “A Sra. Sen”, a mãe do menino Eliot – que é norte-americana – Þgura como um contraste absoluto à indiana Sen – seja pelas roupas, hábitos alimentares ou formas de relacionamento. Tal comparação é geralmente estabelecida pelo garoto Eliot e as diferenças comentadas denotam elementos característicos das duas culturas. O teor das comparações – e isso parece inicialmente irrelevante, mas, pela recorrência, torna-se importante comentar – possui um caráter sutilmente qualitativo. Quando Eliot e sua mãe chegam ao apartamento da Sra. Sen,2 o mesmo comenta: Vestia um sári de um branco brilhante com padrões de corações alongados cor de laranja, mais próprio para um evento nocturno que para uma tarde de Agosto com uma neblina persistente. Os lábios estavam pintados com um bâton transparente, cor de coral e brilhante estando um bocadinho deste já a ultrapassar a linha dos lábios. No entanto, era a sua mãe, pensava Eliot, vestindo uns calções de bainhas viradas para cima e calçando uns sapatos com salto alto de corda, quem parecia esquisita. O cabelo curto dela, de uma cor semelhante à dos calções, é que parecia demasiadamente fraco e vulgar, naquela sala onde todas as coisas se encontravam tão cuidadosamente cobertas e, também ali naquela sala, tanto os joelhos rapados como as coxas da mãe sobressaiam exageradamente expostos (LAHIRI, 2001, p. 136-137). 2 18 Ver o resumo dos contos na Introdução do trabalho. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> Os hábitos alimentares das duas personagens também são descritos de forma a destacar a distância ou oposição entre as duas: enquanto a Sra. Sen passa as tarde a cortar legumes e a procurar peixe fresco para o jantar, Eliot e sua mãe comem a pizza que “invariavelmente encomendavam” (p. 143). No conto “Quando o Senhor Pizarda vinha para jantar”, os alimentos cuidadosamente preparados pela mãe da pequena Lília, que são recorrentemente descritos por ela, são também um contraste aos “hábitos alimentares estranhos das colegas americanas de banco” de sua mãe (p. 50). Seus pais, oriundos da Índia, também reclamavam que “o supermercado não vendia óleo de mostarda, os médicos não iam a casa, os vizinhos não davam um salto a casa uns dos outros sem convite” (p. 40). Já no conto “O terceiro e último continente”, o narrador deÞne a data de 20 de julho de 1969 para a chegada do personagem principal aos Estados Unidos, evidenciando a diferença entre identidades nacionais: enquanto todos os norte-americanos vibravam com a conquista da Lua, o indiano que chega – o personagem principal – sentia absoluta indiferença ao acontecido. Neste mesmo conto, há uma passagem em que um cachorro ataca o sári de uma jovem indiana, em algum trecho da Avenida Massachusetts. Enquanto elemento para o desenvolvimento do enredo, ela não revela importância alguma. Qual seria, então, sua função na narrativa? Somente através de uma análise mais detalhada poder-se-ia estabelecer uma interpretação mais clara. O que busco destacar é a não-gratuidade das escolhas narrativas, a intenção temática e discursiva presente na elaboração de Lahiri. A prática comparatista é uma das principais ferramentas utilizadas em Intérprete de Enfermidades para estabelecer as diferenças culturais. Mas além da diferença, outros fatores tornam-se importantes para compreender os efeitos da diáspora, como a noção de pertencimento, de conßito, de diálogo cultural, etc. A necessidade de manter as raízes e os costumes nacionais é um dos pontos-chaves das narrativas de Intérprete de Enfermidades. Para compreendê-la, é necessário pensar sobre algumas questões, como as feitas pelo próprio Stuart Hall (2003) no seu estudo sobre a diáspora: “o que a experiência da diáspora causa a nossos modelos de identidade cultural? Como podemos conceber ou imaginar a identidade, a diferença e o pertencimento, após a diáspora?” (p. 28) ou “como imaginar sua relação com a terra de origem, a natureza de seu “pertencimento?” (p. 26). A permanência de hábitos tradicionais do país de origem, às vezes mesmo uma tentativa completa de transposição, assume graus alternantes. Em “A Sra. Sen”, ela atinge um nível elevado, já que sua personagem principal rejeita qualquer tipo de assimilação da cultura estrangeira e tenta transpor para dentro do seu apartamento o máximo de elementos que a permitam sentir-se em casa, isto é, em sua casa anterior, na Índia. A sensação de pertencimento vai desde o ato de buscar nos hábitos Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 19 cotidianos esses elementos identitários à formação de laços com pessoas de mesma nacionalidade. Esta necessidade de pertencer a um mesmo grupo, independente dos gostos e predileções individuais, é um dos aspectos que caracterizam a “identidade nacional”. No conto “Quando o Senhor Pizarda vinha para jantar”, o encontro entre os pais da menina Lília (personagem-narradora) e o Senhor Pizarda se estabelece por esse motivo. Como narra Lília, seus pais viviam “à procura de compatriotas, costumavam passar a pente Þno as listas de nomes publicadas pela universidade, todos dos semestres, na mira de encontrar nomes que lhes indicassem gente da sua parte do mundo. Foi deste modo que descobriram o Senhor Pizarda, telefonaram-lhe, e convidaram-no para nossa casa” (LAHIRI, 2001, p. 40). Sabemos que os modelos de sociedades multiculturais variam de acordo com a forma de interação e convivência entre diferentes culturas – a nacional e a do imigrante – em um mesmo ambiente. Os quatro modelos principais da cultura norte-americana – “the assimilationist model”, “the melting pot model”, “the mosaid model” e o “transnacionalism”3 – estão diversamente representados em Intérprete de Enfermidades, através de um apanhado de proposições imagéticas e simbólicas. Em comparação às personagens indianas que mantém os costumes essenciais de sua cultura, como o uso do sári, a “submissão” ao marido, a responsabilidade pelos cuidados do lar e da família, etc., as personagens Shoba de “Um problema temporário” e Twinkle de “Esta abençoada casa” não demonstram mais tantos aspectos da cultura de origem; ao contrário, possuem vários traços que são típicos da cultura norte-americana ou ocidental. Ao compararmos a Sra. Sen às duas últimas personagens, percebemos que as três caracterizam respostas diferentes ao país receptor: a Sra. Sen mantém os laços sociais e culturais bastante estreitos com a cultura de origem, buscando transpor os costumes para a nova terra e rejeitando os hábitos desta última (transnationalism); Shoba e Twinkle, por sua vez, incorporaram aspectos da nova cultura e já demonstram pouca identiÞcação com os costumes da terra natal (assimilationist). Entretanto, não são apenas esses modelos mais puros a serem percebidos. Tanto o modelo de hibridismo em que há ao mesmo tempo manutenção, perdas e assimilação de costumes, resultando em uma terceira cultura (Melting pot), como o Mosaic model, em que culturas diferentes convivem paralelamente, sem assimilações, estão presentes nos contos. Pensar através desses modelos é uma forma de visualizar as formas de reação aos desdobramentos da diáspora. E é através desses signiÞcantes simbólicos, das escolhas narrativas e discursos dos personagens que se constrói uma rede ininterrupta de signiÞcados ou representações culturais nos contos de Lahiri. 3 20 Conforme Serena Nanda e Richard L. Warms em Cultural anthropology. Belmont: Wadsworth, 2004. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> 2 Atitudes e discursos dos personagens Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, no capítulo “Imagologia”, do livro Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura (2001), estabelecem coordenadas essenciais para compreender o processo de construção imagética na literatura. O capítulo torna-se ainda mais pertinente para esta análise devido ao enfoque dado às imagens culturais – a representação de indivíduos ou culturas estrangeiras. Nos contos de Jhumpa Lahiri, a interação entre personagens oriundos de lugares diferentes resulta, inevitavelmente, em formulações e opiniões sobre os modos de vida e hábitos do Outro. Neste sentido, é através dos personagens que podemos observar essas opiniões de forma mais clara. Machado e Pageaux comentam sobre essa importância que os personagens assumem: “No que diz respeito à Þxação dos princípios organizadores do texto, deverá atentar-se em tudo o que é linha divisória entre o Ego e o Outro, principalmente no plano das personagens representadas” (2001, p. 72). Perceber através dos personagens de que forma eles imaginam o Outro é uma forma de compreender os mecanismos utilizados pela autora para alegorizar e, por conseguinte, discutir questões relacionadas à diáspora. Machado e Pageaux propõem quatro atitudes principais assumidas pelo escritor para representar o Outro, das quais duas (“fobia” e “Þlia”) são representadas com maior frequência e nos servem como guia para analisar os personagens de Intérprete de Enfermidades. Uma das atitudes de maior evidência é a “fobia”. Ela existe quando “a realidade cultural estrangeira é tida por inferior ou por negativa em relação à cultura de origem [...] e esta atitude desencadeia, como reacção, uma sobrevalorização de toda ou de parte da cultura de origem” (MACHADO; PAGEAUX, 2001, p. 73). No conto “Esta abençoada casa”, o personagem Sanjeev, diferentemente de sua esposa Twinkle, rejeita fervorosamente todos os objetos cristãos encontrados na sua nova casa, enquanto Twinkle, apesar de origem hinduísta, admira a religiosidade dos antigos moradores, atribuindo aos objetos encontrados (efígie de Cristo, quadro dos Três Reis Magos, estátua da Virgem Maria, etc.) certo caráter divino e protetor. Sanjeev, por sua vez, se posiciona com objeção: para ele, a estatueta de Cristo era “ridícula” e todos os outros objetos não passavam de um monte de “parafernália cristã”: “para Twinkle, aqueles objetos tinham um certo signiÞcado, para ele, não tinham nenhum. Irritavam-no” (LAHIRI, 2001, p. 165). Este conßito torna-se o centro temático do conto e revela para o leitor um sensação múltipla de incompatibilidade amorosa entre os recém-casados, intransigência cultural por parte de Sanjeev e exagero simbólico por parte de Twinkle. Entretanto, enquanto indivíduos da diáspora, os dois personagens espelham as reações cotidianas de conßito cultural e também de identiÞcação. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 21 Contrário à “fobia”, perceber na cultura estrangeira elementos “positivos” e estabelecer com ela uma relação de respeito e diálogo remete à atitude de «Þlia», isto é, “quando a realidade cultural estrangeira é tida por positiva e situa-se no interior de uma cultura igualmente considerada de maneira positiva. [...] a Þlia desenvolve processos de avaliação e de reinterpretação do estrangeiro. À aculturação brutal que implica a mania, opõem-se a troca de ideias, o diálogo de igual para igual com o Outro” (MACHADO; PAGEAUX, 2001, p. 74). Twinkle e Eliot, por exemplo, são os personagens mais representativos desta atitude. Assim como no conto “Esta abençoada casa” há personagens que assumem posturas opostas, em “A Sra. Sen”, os três personagens principais também retratam pontos de vistas diferentes. A mãe de Eliot, por exemplo, considera a Sra. Sen e seus hábitos um tanto quanto estranhos; sente-se sempre incomodada ao entrar no apartamento e prefere não estabelecer relações com o casal indiano. Ela não aceita os lanches que a Sra. Sen oferece e, constantemente, olha para os objetos do apartamento com olhar de rejeição. Eliot, ao contrário, aceita aquele simulacro cultural representado pelo apartamento da Sra. Sen e por ela própria, adequando-se com prazer aos costumes e regras do ambiente (aprende a descalçar os tênis antes de entrar, come os biscoitos indianos oferecidos pela Sra. Sen, passa boa parte das tardes a observá-la cortando legumes no chão da sala, pergunta-lhe sobre a vida da Índia e aprende sobre os rituais de matrimônio e nascimento). Porém, assim como a mãe de Eliot, a Sra. Sen insere-se no outro extremo, e sua inadequação e resistência à cultura norte-americana é alegorizada em diversas situações: ao estabelecer comparações como, por exemplo, em “aqui, neste lugar para onde o senhor Sen me trouxe, há noites em que não sou capaz de dormir, tanto e tão longo é este silêncio” (LAHIRI, 2001, p. 140), ou quando, durante os treinos de direção, expressa, mais uma vez, sua incompatibilidade para com a cultura norte-americana – “Toda a gente, toda esta gente, muito viver no seu mundo” (p. 145) –, chegando a seu ápice quando, ao Þnal, ela bate o carro contra a pilastra de alguma rua movimentada. Considerações Þnais Os conceitos e contribuições da Imagologia nos possibilitam atentar para as construções imagéticas dentro do texto literário e perceber signiÞcados simbólicos e discursos do autor. “Enumerar, desmontar e explicar estes tipos de discurso, mostrar e demonstrar de que maneira a imagem, tomada globalmente, é um elemento duma linguagem simbólica – eis o objetivo fundamental da imagologia” (MACHADO; PAGEAUX, 2001, p. 62). Os contos de Intérprete de Enfermidades representam, se tomados como um todo, uma obra que se dedica a discutir a experiência indiana da diáspora e as relações traçadas em território norte-americano. Apesar de terem aspectos 22 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 13-24, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> em comum, os contos propõem formas diferentes de reagir à interação com a nova cultura. Não é possível compreendê-los através de modelos únicos – como a assimilação do “american way of life” ou o constante conßito cultural –, já que também simulam outras perspectivas. Porém, pode-se da mesma forma questionar a aÞrmação de que na “diáspora, as identidades se tornam múltiplas” (HALL, 2003, p. 27). Antes de poder dizer consistentemente quais os signiÞcados ideológicos das narrativas e de seus elementos nos contos de Jhumpa Lahiri, é preciso analisar detalhadamente cada conto por vez. Este artigo, devido ao espaço-tempo delimitado, não proporciona uma pesquisa mais cuidadosa. Entretanto, é possível aÞrmar, assim como para o leitor atento torna-se possível identiÞcar, que estes contos, reunidos em um único livro, possuem uma proposta especíÞca – o que o torna uma obra-referência à literatura da diáspora. Recebido em outubro de 2011. Aprovado em novembro de 2011. The Imagology of Diaspora in Interpreter of Maladies Abstract This paper offers a view about Jhumpa Lahiri’s book Interpreter of Maladies, which was awarded the Pulitzer Prize in 2000. Considered by the critics as a new voice in American literature, she has a cultural background that plays an important role in her works. Lahiri was born in England to an Indian family, but has lived in the United States since she was three years old; therefore, her narratives bring a series of cultural representations related to groups or individuals in a diasporic context, speciÞcally within the Indian immigrant community. Further, it is important to understand, in the Þrst place, book as a collection of Þction about the moves of diaspora and their whole set of circumstances. Interpreter of Maladies can be listed as diasporic literature featuring complex and diverse developments. Thus, the main issue in this paper is to analyze how characters, narrative choices, and symbolic objects are framed to represent cultural matters. Understanding that these elements make part of ordinary literary images, which has cultural, discursive, and ideological meanings, this analysis will adopt - as a critical perspective – the theoretical and methodological propositions of Imagology, inside Comparative Literature and Cultural Studies. Keywords: Literature and culture. Diaspora. Imanology. North-American literature. Referências BUESCU, Helena Carvalhão. Grande angular. Comparativismo e práticas de comparação. Lisboa: Gulbenkian/FCT, 2001. COUTINHO, Eduardo F. ReconÞgurando identidades: literatura comparada em tempos pós-coloniais na América Latina. In: BUESCU, Helena et al. (Org.). Floresta encantada: novos caminhos da Literatura Comparada. Lisboa: Dom Quixote, 2001. 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