São Paulo em Perspectiva, vol.14 n.3 – Ciência e Tecnologia

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São Paulo em Perspectiva, vol.14 n.3 – Ciência e Tecnologia
A ESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS NACIONAIS DE AVALIAÇÃO E DE INFORMAÇÕES...
EDUCAÇÃO CIENTÍFICA
uma prioridade nacional
GLACI T. ZANCAN
Professora de Bioquímica da Universidade Federal do Paraná
Resumo: O avanço explosivo do conhecimento está marginalizando os povos que não dispõem de uma infraestrutura de pesquisa associada à formação de recursos humanos de alto nível e a uma educação científica
universal. A análise da situação do país mostra a necessidade da expansão da base de pesquisa acadêmica e da
inovação tecnológica. É destacada a urgência na mudança do sistema de ensino fundamental, médio e superior, passando de informativo para formativo, como meio de capacitação do homem para o mercado de trabalho, altamente dependente de um aprender contínuo.
Palavras-chave: educação científica; ciência e tecnologia; políticas públicas.
A
ciência é antes de mais nada um mundo de idéias
em movimento – o processo para a produção do
conhecimento – e busca descobrir a unidade
existente nas diferentes facetas da experiência do homem
com o seu meio. Assim como ela, as artes também procuram a unidade na variedade (Bronowski, 1965). As descobertas da ciência e o trabalho das artes são faces da
mesma criatividade e compreendem a recriação da natureza. É na formulação de hipóteses que o cientista usa
imaginação como o artista, mas trilha um caminho próprio quando exerce a crítica e a experimentação. A atividade científica busca soluções ao confrontar, o que poderia ser feito com aquilo que é (Jacob, 1997). Ela é a
principal realização do mundo atual e, talvez mais do que
qualquer outra atividade, distingue este século dos demais.
Devido à natureza social da ciência, a sua divulgação é
crucial para o seu progresso, sendo que o avanço da ciência da informação afeta todos os campos científicos
(Rutherford e Algreen, 1990).
Os benefícios da ciência são, no entanto, distribuídos
assimetricamente entre países, grupos sociais e sexos. O
desenvolvimento científico tornou-se um fator crucial para
o bem-estar social a tal ponto que a distinção entre povo
rico e pobre é hoje feita pela capacidade de criar ou não o
conhecimento científico (Unesco, 2000).
Já a tecnologia reflete e molda o sistema de valores e
estende nossas habilidades para mudar o mundo, sendo
uma força poderosa no desenvolvimento da civilização e
própria de cada cultura. As tecnologias, ao se tornarem
sofisticadas, estreitaram sua ligação com a ciência, tornando difícil, em alguns campos, separar uma da outra.
Como a tecnologia afeta o sistema social e cultural mais
diretamente do que a pesquisa científica, as implicações
imediatas de seus sucessos e fracassos refletem diretamente
na atividade humana (Rutherford e Algreen, 1990). É reconhecido que desenvolvimento tecnológico requer uma
sólida base científica. As novas tecnologias devem ser
direcionadas para processos produtivos seguros e limpos,
mais eficientes no uso dos recursos e na proteção do meio
ambiente. A ciência e a tecnologia devem ser dirigidas
para aumentar a competitividade, o emprego e a justiça
social (Unesco, 2000).
A tecnologia também não está distribuída igualmente
entre os povos. Apenas 15% da população da terra fornece todas as inovações tecnológicas do mundo. Mais da
metade da população mundial está apta a adotar essas tecnologias para produção e consumo, o restante corresponde a regiões tecnologicamente excluídas. A maioria dessas regiões estão nos trópicos e imersas na pobreza. É hoje
reconhecido que a tecnologia é mais excludente que o
capital e, juntamente com a ciência, define o futuro de um
povo. A capacidade tecnológica de uma economia depende não só de suas próprias inovações, mas também da
capacidade de adaptar as tecnologias desenvolvidas em
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outros lugares (Sachs, 2000). Para Sachs, “O mundo de
hoje é dividido não pela ideologia mas pela tecnologia.”
A Conferência Mundial sobre a Ciência declara que,
“sem instituições adequadas de educação superior em C&T
e em pesquisa, com uma massa crítica de cientistas experientes, nenhum país pode ter assegurado um desenvolvimento real” (Unesco, 2000). E o último relatório do Banco Mundial sobre Ensino Superior (World Bank, 2000)
complementa: “É pois vital para o futuro dos países em
desenvolvimento que eles assumam a tarefa de constantemente estimular e de manter seus talentos em ciência e
tecnologia” e exemplifica com o caso de países africanos
que passaram a ter dificuldades nas negociações internacionais devido ao desaparecimento da agenda de pesquisa em suas universidades.
Por outro lado, o avanço do conhecimento e sua apropriação comercial está colocando para a reflexão humana
uma série de indagações que outras épocas históricas não
vivenciaram. Os problemas decorrentes das novas tecnologias precisam e devem ser discutidos por todos, pois afetarão profundamente a vida do homem sobre a terra. Para
poder opinar e decidir é preciso primeiro conhecer.
Dentro desse contorno, é fundamental olhar criticamente a situação de nosso país. Nos últimos 30 anos, com
a finalidade de implantar a pesquisa nas universidades,
foi viabilizada a criação da pós-graduação com o financiamento dos grupos de pesquisa existentes na década
de 70. Os resultados estão aí para comprovar que as políticas públicas, quando são bem definidas e implantadas, resultam em sucesso. Na Tabela 1, apresenta-se a
expansão da formação de recursos humanos, cujo contingente vem sendo praticamente todo absorvido pelas
universidades. O país montou um parque de formação
de recursos humanos invejável, cobrindo praticamente
todas as áreas do conhecimento. Como a pós-graduação
nasceu e se desenvolveu estreitamente associada à pes-
GRÁFICO 1
Artigos Publicados em Periódicos Indexados no
Institute for Scientific Information
Brasil – 1994-00
Fonte: Dados coletados no web of science (www.webofscience.fapesp.br).
quisa, o número de artigos originais de pesquisa cresceu. Em 1996, o Brasil ocupava o 18o lugar em produção científica (King, 1997), que continua a crescer (Gráfico 1). Na realidade, houve crescimento em todas as
áreas do conhecimento acima da média mundial, mas a
produção, avaliada pelos artigos originais de pesquisa
publicados, ainda está ao redor de 1% da produção científica indexada no Institute for Scientific Information
(ISI). Outro dado importante é que esta produção está
concentrada na região Sudeste, mais particularmente em
São Paulo, gerando uma distribuição desigual entre as
diferentes regiões do país.
Os dados da Tabela 2 mostram que a capacidade de inovação tecnológica no Brasil é ainda muito baixa (Freeman,
1999) e precisa se expandir para que se possa não só atender às necessidades imediatas da população com tecnologias apropriadas, como também produzir bens e serviços
que impulsionem o desenvolvimento econômico. Essa tarefa depende basicamente da capacidade das empresas,
portanto, são necessários investimentos privados orientados por uma política industrial bem equacionada. O fato de
o país dispor de uma base científica razoável permite planejar o crescimento da inovação através do estímulo da integração das universidades com as empresas. Por outro lado,
há a necessidade de dispor de engenheiros nos centros de
desenvolvimento tecnológico das empresas, uma vez que
os números indicam que há apenas 0,6 pesquisador em tem-
TABELA 1
Número de Mestres e Doutores
Brasil – 1976-1999
Anos
Mestres
1976
1985
1992
1997
1998
1999
2.171
3.931
6.841
11.988
12.510
14.171
Doutores
138
718
1.504
3.633
3.945
4.656
Fonte: Guimarães e Humman (1995). MEC/Capes/DAV/SED.
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A ESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS NACIONAIS DE AVALIAÇÃO E DE INFORMAÇÕES...
TABELA 2
TABELA 3
Indicadores de Ciência e Tecnologia
Brasil, Coréia e Japão
1999
Corpo Docente das Instituições de Ensino Superior Públicas e Privadas,
segundo Grau de Formação
Brasil – 1998
Indicador
Cientistas e Engenheiros (por milhão de hab.)
Porcentagem de Investimento
Governo
Indústria
Outros
Total de Patentes
Porcentagem de Patentes obtidas
por Residentes no País
Brasil
Coréia
Japão
235
1990
5677
81,9
18,1
2.479
17,2
82,4
0,4
3.741
19,4
71
9,6
36.100
14
69
84
Grau de Formação
Públicas
Privadas
Total
Total
Doutorado
Mestrado
Especialização
Graduação
83.738
23.544
25.073
20.793
14.328
81.384
7.529
20.409
36.884
16.562
165.122
31.073
45.482
57.677
30.890
Fonte: MEC/Inep.
do país, equivalendo a uma média de 4,1 anos no Nordeste e 6,2 anos no Sudeste, em contraste aos 11,1 anos dos
países do OCDE (World Bank, 1999). Os dados mostram
que o país tem um desempenho educacional médio, como
médio é o índice de desenvolvimento humano recentemente
publicado pelo PNUD (2000). Convém entender que essas informações refletem médias estatísticas e, portanto,
escondem enormes desequilíbrios internos.
Os números melhoraram nos diferentes níveis de ensino, mas certamente a qualidade não atende às necessidades do mundo atual. Os problemas avolumam-se em todos os níveis educacionais. A reforma acadêmica das
universidades é premente e começa já com o sistema de
acesso. Será necessário enfrentar com criatividade o gargalo do ingresso, pois, ao se eliminar, por motivos econômicos, um universo de jovens criativos, potencialmente
capazes de gerar conhecimento e inovações, está se limitando nossas chances competitivas, há a necessidade da
reforma de gestão das universidades por parâmetros
gerenciais modernos, com a implantação de uma autonomia responsável e socialmente controlada no sistema federal de ensino superior.
As políticas para o desenvolvimento do sistema universitário público devem promover o crescimento mais
harmônico entre as diferentes regiões do país para evitar
que a formação das elites fique circunscrita a uma única
região. Paralelamente, é preciso melhorar os métodos de
avaliação do desempenho dos egressos para que a qualidade do ensino no nível superior seja aprimorada.
Por outro lado, é primordial alterar a vida acadêmica,
podendo-se fazer algumas sugestões para modernizar o
processo de formação: estimular a flexibilização dos currículos através de programas de estudos individualizados
usando a tutoria; incentivar os jovens criativos, envolvendo-os nas atividades de pesquisa e extensão; estimular os
jovens empreendedores com a criação de empresas jovens;
Fonte: Freeman (1999).
po integral para 1.000 trabalhadores, índice muito baixo
quando comparado ao de países de economia menor que a
nossa (World Bank, 1999).
Se, por um lado, é preciso expandir a capacidade de
inovação, por outro, é fundamental não esquecer de que a
base científica precisa crescer ainda mais para atingir pelo
menos uma posição equivalente à nossa economia, sem o
que se perderá a competitividade internacional. A recente
criação dos fundos setoriais é um fator importante na expansão da inovação, mas deve-se ressaltar que, sem o suporte de um parque científico forte, não haverá inovação.
Como o incremento da ciência ocorreu nas universidades, vale a pena se deter sobre as repercussões do crescimento observado no interior do sistema de ensino superior. Os dados da Tabela 3 mostram que o número de
Doutores no sistema de ensino superior é pequeno e concentra-se no sistema público (MEC, 2000). Os números
são globais e mesmo dentro do universo das instituições
públicas há uma grande heterogeneidade. Portanto, estamos longe da universalização da pesquisa nas universidades, como sonharam Anísio Teixeira (1968), Florestan
Fernandes (1979), Darci Ribeiro (1975) e tantos outros.
Outro fator a destacar é que o crescimento do ensino superior, voltado para o ensino profissionalizante, se deu
fundamentalmente no sistema privado que, já em 1980,
era responsável por 64% das matrículas (MEC, 2000).
Outro dado que emana das análises disponíveis sobre
o ensino superior é que o sistema de acesso é perverso ao
excluir os jovens de famílias de menor poder aquisitivo
(World Bank, 1999). O problema da exclusão, infelizmente, não está só no ensino superior, na realidade, aparece
no ensino secundário seja na cidade seja na zona rural.
Além disso, o tempo de permanência na escola diminui
com o poder aquisitivo, e é desigual nas diferentes regiões
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so Nacional, desenha corretamente a formação do magistério, calcando-a na pesquisa como princípio orientador.
Os professores de todos os níveis precisam estar conscientes de que a ciência não é só um conjunto de conhecimentos, mas sim um paradigma pelo qual se vê o mundo. Para
colocar o sistema educacional em novo patamar, próprio
do novo século que se inicia, o professor deverá ser um
orientador de seus alunos no processo da descoberta e da
reflexão crítica. Logo, a pesquisa educacional precisa ser
ampliada, pois as experiências educacionais nem sempre
podem ser transportadas de uma realidade sociocultural
para outra, exigindo que sejam estimuladas por investimentos apropriados.
O desafio é criar um sistema educacional que explore
a curiosidade das crianças e mantenha a sua motivação
para apreender através da vida. As escolas precisam se
constituir em ambientes estimulantes, em que o ensino de
matemática e da ciência signifique a capacidade de transformação. A educação deve habilitar o jovem a trabalhar
em equipe, a apreender por si mesmo, a ser capaz de resolver problemas, confiar em suas potencialidades, ter
integridade pessoal, iniciativa e capacidade de inovar. Ela
deve estimular a criatividade e dar a todos a perspectiva
de sucesso.
Neste contexto deve-se deixar claro que as políticas
públicas para área de ciência e tecnologia devem ser amplas, envolvendo não só a inovação, mas, fundamentalmente, o desenvolvimento das ciências, tendo ainda a educação científica, em todos os níveis, como prioritária. É
preciso considerar que o analfabetismo científico aumentará as desigualdades, marginalizando do mercado de trabalho as maiorias que hoje já são excluídas. Para ser bemsucedida, a reforma do sistema educacional deve nascer
da comunidade, envolver e valorizar os professores, a fim
de que possamos ter alguma perspectiva como nação, na
sociedade do conhecimento.
integrar os grupos de pesquisa das universidades com um
objetivo comum, visando atender às demandas da sociedade. Cabe à universidade a liderança do sistema educacional e, para isso, ela deve ser crítica, competente e eficiente.
Os currículos desde o ensino fundamental até o superior estão desenhados para que os estudantes memorizem
um vasto número de fatos, não relacionados com sua vida
diária. Aqui valeria a pena lembrar o texto de Paulo Freire
(1967): “A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos
da criação, re-criação e decisão, vai dinamizando o seu
mundo. E, na medida em que cria, recria e decida, vão se
transformando as épocas históricas (...) Por isso, desde já
saliente-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará a sua vocação natural para integrar-se. Necessitávamos de uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e
política. Uma educação que possibilitasse ao homem a
discussão corajosa de sua problemática. Educação que o
colocasse em diálogo constante com o outro. Que o identificasse com métodos e processos científicos”.
Considerando que hoje fica difícil entender o mundo
em que vivemos sem o conhecimento dos princípios básicos da ciência e da tecnologia, “é fundamental aumentar
o capital humano da nossa população através de uma educação científica voltada para o apreender como apreender” (Toffler, 1970).
A Declaração da Unesco coloca: “A educação científica, em todos os níveis e sem discriminação, é requisito
fundamental para a democracia. Igualdade no acesso à
ciência não é somente uma exigência social e ética: é uma
necessidade para realização plena do potencial intelectual
do homem.”
Trata-se de selecionar a informação pertinente e que
seja necessária para fundamentar raciocínio e decisões. A
mudança básica significa não se limitar a memorizar um
conjunto desconexo de fatos, mas sim estruturar um
arcabouço relevante para análise de conceitos básicos para
a compreensão da ciência.
Os membros da comunidade científica brasileira tem
hoje mais uma tarefa: lutar para mudar o ensino de informativo para transformador e criativo. Este desafio é uma
tarefa gigantesca, pois abarca todos os níveis de ensino
sem privilegiar um em detrimento de outro. Para que se
atinjam os objetivos de alterar o sistema educacional, é
preciso concentrar esforços na formação dos professores.
O Plano Nacional de Educação, elaborado pelo Congres-
NOTAS
E-mail da autora: [email protected]
[email protected]
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
UNIVERSIDADE, INOVAÇÃO E
IMPACTO SOCIOECONÔMICO
FLAVIO FAVA-DE-MORAES
Professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e Diretor Executivo da Fundação Seade.
Foi: Reitor da Universidade de São Palo, Secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico e
Diretor Científico da Fapesp
Resumo: O papel da universidade é inquestionável para a formação de pessoas qualificadas e para o desenvolvimento socioeconômico de um país, principalmente quando fundamentado em uma política científica tecnológica articulada no espaço das relações entre universidade, Estado, empresariado e outros setores sociais.
Uma pesquisa sobre o MIT aponta nessa direção, ao demonstrar a importância da inovação e do fomento
econômico propiciados pela atuação de seus alunos, professores e pesquisadores. Mérito acadêmico, ação estratégica para pesquisa, investimentos e transferência de conhecimento tornam-se referências para o alcance
da mudança social e consolidação de uma sociedade. Considerações semelhantes podem ser admitidas notadamente para as Universidades Públicas do Estado de São Paulo.
Palavras-chave: universidade e sociedade; inovação tecnológica e desenvolvimento; impacto socioeconômico.
M
uito se discute sobre o real significado da Universidade no papel posterior dos seus recémformados no desenvolvimento socioeconômico do país, estado ou cidade em que passam a atuar. Esta
análise envolve muitos indicadores, tais como: integração a projetos de pesquisa inovadora em Universidades
ou Institutos; participação em empresas modernas e competitivas; e criação de novas empresas de serviços ou tecnologias avançadas. Em qualquer dos casos, o objetivo
é contribuir para mudanças tecnológicas, econômicas e
sociais que afetem positivamente a riqueza nacional ou
regional.
Importante estudo neste sentido foi recentemente concluído nos Estados Unidos, sob a coordenação e patrocínio do Banco de Boston, identificando a importância do
Massachusetts Institute of Technology (MIT), através do
seu alunado e das suas pesquisas inovadoras, na economia do Estado de Massachusetts, nos EUA e no exterior.
Se esta avaliação mostrou-se relevante naquele país,
sua divulgação no Brasil é fundamental por constituir prova
convincente do inquestionável papel socioeconômico que
uma boa Universidade oferece para a sociedade e para a
nação. Missão esta reconhecida por poucos e negada por
muitos representantes dos poderes constituídos, que, por
miopia, amiúde atacam a Universidade como centros
elitistas, ociosos, privilegiados e descolados dos interesses das políticas governamentais e das demandas sociais.
Um dado inicial impressionante do MIT é a constatação de que as empresas criadas por seus alunos ou docentes egressos constituem, sozinhas, a 24ª economia mundial. São 4.000 empresas, com 1,1 milhão de empregados
e US$ 232 bilhões de faturamento anual (superior ao PIB
de muitos países, como, por exemplo, a Tailândia). Portanto, é enorme o impacto que uma Universidade de Pesquisa (no caso, o MIT) gera nos mais variados aspectos
da economia de uma nação.
A maioria destas empresas não é de grande porte, sendo que 1.500 foram criadas na década de 90, com uma
média anual de 150 empreendimentos novos e inovadores. Todas, além de possuírem profissionais qualificados,
são preferencialmente de alta tecnologia aplicada a um
limitado número de setores, como o da eletrônica, responsável por 13% das empresas, 57% dos empregos e 56%
das vendas das 4.000 já citadas.
O MIT tem como missão atrair os estudantes mais
talentosos do país (e do exterior), fornecendo com precisão o “estado da arte científico-tecnológico”, estimulando-os precocemente no espírito empreendedor
e no enfrentamento de riscos e gerando neles a confiança de que gente talentosa que trabalha em equipe vence desafios resolvendo problemas. É interessante destacar que apenas 8,7% dos estudantes do MIT são do
Estado de Massachusetts e que muitos dos seus professores são estrangeiros, demonstrando que a Insti-
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UNIVERSIDADE, INOVAÇÃO E IMPACTO SOCIOECONÔMICO
ria absurdo encarar a relação custo/benefício dessa interação na Universidade sob o campo da lucratividade financeira sem considerar outras destacadas repercussões
diretas e indiretas. A participação do financiamento empresarial na pesquisa universitária deve, contudo, merecer muita cautela para que não ocorra “sigilo e privatização (capitalização) do saber”, o que seria um desastre total
para os valores acadêmicos. O alerta se faz necessário
porque já há muitos casos em que, para manter laboratórios e salários, pesquisadores comprometem-se a não publicar até mesmo resultados de pesquisa básica conveniada
sem prévia autorização da empresa patrocinadora. Um
exemplo marcante foi divulgado pelo Wall Street Journal
(1996), quando uma empresa farmacêutica proibiu a publicação de pesquisa aceita por revista científica conceituada, ao saber que fármacos muito mais baratos de empresas concorrentes mostraram-se substitutos terapêuticos
eficientes, fato que comprometeria o mercado da sua droga em US$ 600 milhões anuais. Porém, cabe destacar que
a pesquisa básica executada “espontaneamente” pela Universidade ainda é comprovadamente a maior fonte de resultados aplicáveis do que a pesquisa dita “encomendada” por empresa. O setor empresarial, sem dúvida, está
mais diretamente interessado na pesquisa tecnológica inovadora, haja vista que só a IBM incorpora ao seu
patrimônio, atualmente, mais de dez novas patentes por
dia. Para tentar garantir tais objetivos, surgiram as chamadas “Universidades Corporativas”, que, apesar dos resultados ainda inconclusivos, pretendem que o estudante
receba um preparo mais específico aos interesses da organização.
Porém, mesmo com esses propósitos produtivos e com
o Instituto de Pesquisa Industrial/DC/USA admitindo que
50% do PIB americano deve-se à inovação, o setor industrial não abandona o apoio à ciência básica (semente da
inovação), pois seu financiamento, no período 1994-2000,
passou de US$ 6 bilhões para mais de US$ 11 bilhões,
dos quais US$ 2,5 bilhões foram diretamente para as melhores Universidades. Esta ação estratégica, sem a qual a
tecnologia torna-se obsoleta, ganhou ênfase prioritária no
“Fundo de Pesquisa/Século 21”, proposto pelo Governo
ao Congresso Americano para, sob controle e avaliação
da Fundação Nacional de Pesquisas, executarem no ano
2000 o maior investimento da sua história na valorização
da ciência básica. No Brasil, a mesma prioridade está na
Constituição Federal, art. 218, parágrafo 1º, mas muito
distante da realidade orçamentária! A exceção é o Estado
de São Paulo que, sem cortar as fontes privadas, aportes
tuição prioriza o mérito e desconsidera o corporativismo interno.
Esta identidade do MIT conquistou o reconhecimento
social e a credibilidade tanto governamental como do setor privado, que lá investem, juntos e em quantias semelhantes, um total de quase meio bilhão de dólares em projetos de pesquisa. Dos investimentos privados que chegam
a 30% do orçamento total do MIT, nada menos do que
US$ 70 milhões são destinados a 2.100 bolsas de pesquisa usufruídas por 40% dos seus estudantes. Estes devem,
obrigatoriamente, participar como verdadeiros catalizadores dos projetos de pesquisa entre Universidade e empresa, pois sua alienação teria o risco de estas parcerias
desvirtuarem integralmente a missão universitária.
Esta cultura institucional pela qualidade e pela inovação é o melhor mecanismo de transferência de conhecimento para as empresas criadas pelos formados no MIT,
destacando-se o princípio de sempre respeitar o consumidor, ouvir empregados e fornecedores, fabricar produtos
de excelente desempenho e reinvestir, em pesquisa, significativa parcela dos lucros (10% a 18%). Este último
ponto reflete a visão inteligente de que pesquisa e desenvolvimento são condições indispensáveis para a conquista e manutenção do êxito empresarial. Essa ação estratégica em pesquisa e desenvolvimento é visualizada
concretamente nos EUA pelo aumento do investimento
industrial privado que, de US$ 97 bilhões em 1994, passou para US$ 166 bilhões em 1999, com uma estimativa
de US$ 184 bilhões para o ano 2000. É interessante frisar
que, nos EUA, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento não são exclusivamente de origem nacional. Há
bilhões de dólares de investimentos realizados por empresas estrangeiras, que até 1998 já estabeleceram 715 centros de pesquisa, sendo 505 deles oriundos principalmente de quatro países: Japão (251), Alemanha (107), Reino
Unido (103) e França (44). As razões principais para estes países criarem Centros de Pesquisa e Desenvolvimento nos EUA têm sido, principalmente, o acesso aos cientistas e à infra-estrutura universitária e dos centros de
inovação e a melhor cooperação interempresarial e a adequada comunicação com sua matriz sobre como adequarse ao mercado e ao meio de vida norte-americano. Ou seja,
a relação Indústria/Universidade é entendida como de vital importância para o êxito empresarial e com benefícios
mútuos via patentes compartilhadas, que cresceram de 8%
(até 1973) para 25% (até 1993), apesar de, com raríssimas
exceções, o rendimento médio de licenciamentos para a
Universidade (5%) ser ainda muito baixo. Entretanto, se-
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
dades de Pesquisa para cooperar, financiar e usufruir do
avanço do conhecimento que terão “conseqüências” produtivas a médio e longo prazos. Ou seja, a Universidade
ainda é o centro principal de produção do conhecimento
em todo o mundo, embora não detenha mais a sua exclusividade.
Além disso, este “entorno universitário” apresenta outras vantagens que favorecem o crescente investimento
empresarial: é fonte de pessoal talentoso e qualificado,
está próximo de áreas procuradas pelo mercado consumidor; fornece boa infra-estrutura escolar, hospitalar, cultural, de telecomunicação, lazer, transporte, áreas verdes,
etc., ou seja, constituiu-se em locais com diferenciais positivos para uma melhor qualidade de vida. Por isso tudo,
é sabido que este desenvolvimento regional, que não é instantâneo, não ocorreria se o Estado não continuasse investindo com convicção num forte sistema universitário,
no qual o MIT ocupa posição de inegável destaque. Ou
seja, uma boa Universidade é requisito essencial, mas não
totalmente suficiente para o desenvolvimento regional, pois
seu êxito também depende das condições complementares de infra-estrutura e da capacidade de o meio externo
absorver e utilizar o resultado de suas pesquisas.
Além destas citadas conseqüências internas para o Estado de Massachusetts e para os EUA, o MIT é também
responsável por impactos além fronteiras, que lhe conferem prestígio internacional. Numa época de globalização,
o êxito empresarial na conquista de mercados no exterior
é critério de excelência no desempenho pela superação
das dificuldades culturais, normativas e financeiras enfrentadas. Estes desafios estão sendo eficazmente vencidos,
pois já são 220 as empresas estabelecidas por seus ex-alunos no exterior, predominantemente na Europa, mas destacando-se 52 empreendimentos na América Latina, sendo que o Brasil é o país mais procurado, com a instalação
de 12 empresas.
Não é necessário argumentar laudatoriamente sobre a
importância dessa questão estratégica e de se realizar estudo semelhante ao do MIT para comprovar que o Brasil
também é dependente de suas boas Universidades. Não
estamos ainda na vanguarda desejada e nem mesmo colhendo todos os frutos possíveis diante dos nossos esforços já realizados.
Entretanto, avançamos muito em curto espaço de tempo, pois nas Universidades Públicas do Estado de São
Paulo, onde predomina a maior atividade científico-tecnológica brasileira (a pioneira USP só tem 66 anos), já
temos exemplos de vários e inquestionáveis sucessos.
federais ou recursos gerados por suas próprias instituições,
aplicará em 2001, em ciência e tecnologia, um percentual
do seu PIB compatível com o dos países mais desenvolvidos. Entretanto, uma iniciativa federal é a recente criação
do Fundo Universidade-Empresa para a Inovação, lançada
pela Lei nº 10.168, de 29/12/2000.
Voltando aos ex-alunos do MIT, é também preciso salientar que não há uma relação direta previsível entre o
curso que realizam e a natureza dos seus empreendimentos posteriores: por exemplo, no setor de biotecnologia,
40% das empresas foram criadas por engenheiros e apenas 18% por biomédicos. Contudo, o setor industrial moderno, nacional e estrangeiro, tem crescido nos EUA prioritariamente nas áreas da tecnologia eletrônica e na
biotecnologia, pois oito empresas destes dois setores estão entre as dez que mais investiram em pesquisa e desenvolvimento em 1998. Outro fator relevante é que o MIT,
antes formador majoritariamente de engenheiros, gradua
atualmente 43% dos seus alunos nas áreas de Ciências
Sociais e Administração. Estes profissionais foram responsáveis pela iniciação de 892 empresas, em setores como
Ciência Política (35), Urbanismo (89), Ciências Sociais
(44), Filosofia (3), além de estarem sendo demandados
cada vez mais para posições relevantes pelas empresas das
“Ciências Exatas e da Vida”. Isto quer dizer que uma boa
Universidade nunca deve comprometer sua missão e seus
valores e nem sujeitar seus esforços apenas com resultados de interesse mercantil e jamais deve ser julgada só
pelo lado econômico, como fábrica de diplomas ou forja
de produtos.
Consideração de relevância inquestionável sobre as
empresas criadas pelos ex-alunos é a sua localização preferencial no entorno geográfico do MIT ou, quando em
outras regiões, também próximas a Universidades qualificadas, demonstrando que a eficácia na inovação é tanto
maior quanto menor é a distância do centro inovador.
Basta dizer que oriundas do MIT e localizadas na região metropolitana de Boston (Rota 128) estão 1.065
empresas, com 353.000 empregos diretos e US$ 53 bilhões de faturamento (Digital, Gillette, etc.). Da mesma
forma, também provenientes do MIT, mas situadas no Vale
do Silício (Califórnia), estão outras 467 empresas, com
350.000 empregos e US$ 86 bilhões em vendas (HewlettPackard, Intel, etc.).
Portanto, por inúmeras e óbvias razões, empresas dependentes da pesquisa e desenvolvimento associadas à
inovação tecnológica não cometerão jamais a ingenuidade de interromper suas relações com excelentes Universi-
10
UNIVERSIDADE, INOVAÇÃO E IMPACTO SOCIOECONÔMICO
FAVA-DE-MORAES, F. “Universidade-Indústria. Há um catalizador?” Rev. USP,
n.25, 1995, p.16-19.
Todavia, o Brasil não deve se iludir com importantes conquistas eventualmente exploradas com personalismo e
ufania na mídia. O Brasil precisa conhecer o quadro real
para ousar com humildade e exigir que decisões de política científico-tecnológica sejam tomadas conjuntamente
pelas Universidades-Governo-Setor Privado (triângulo de
Sabato ou tríplice hélice). Atualmente, outros setores sociais também devem participar da tomada de decisões.
Finalmente, é fundamental que a Universidade concentre
responsavelmente sua atenção na motivação de magnetizar a juventude talentosa neste árduo e contínuo desafio a
vencer. Como mostrado neste caso do MIT, a Universidade é insubstituível não só na sua missão principal de
educar gente capacitada para a futura liderança científico-tecnológica, cultural, política, empresarial, jurídica,
diplomática, etc., como notadamente na formação dos cidadãos com riqueza de caráter que darão o grande diferencial na consolidação do sucesso almejado por nossa
sociedade.
__________ . “Parceria Governo-Empresa estimula o avanço da ciência e tecnologia”. Coleção CIEE, n.14, 1998, p.27-29.
__________ . “Ciência, tecnologia e governabilidade: visão do poder Executivo”. Cadernos de Gestão Tecnológica/Cyted, n.47, 2000, p.38-42.
__________ . “Educación superior e desarrollo. Visiones del futuro. In: LOPEZSEGRERA, F. e FILMUS, D. America Latina 2020: scenarios, alternativas, estrategias. Buenos Aires, Temas Grupo Ed., 2000, p.257-264.
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NOTA
PURYEAR, J.M. e BRUNNER, J.J. Education, equity and economic
competitiveness in the Americas. Interamer/OAS, 1994.
Este artigo será publicado também no jornal Gazeta Mercantil.
RHODES, R. Visions of technology. Nova York, Simon & Schuster Inc., 1999.
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manual. Nova York, Norton Co., 1990, p.225-236.
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11
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS
DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA
FERNANDO ANTÔNIO F. DE BARROS
Analista em Ciência e Tecnologia do CNPq. Autor de Confrontos e Contrastes Regionais da Ciência e Tecnologia no Brasil
Resumo: O problema central analisado neste artigo diz respeito às acentuadas diferenças regionais relativas à
base técnico-científica instalada no Brasil. Após uma rápida caracterização dessas desigualdades, busca-se
mostrar que essa concentração não é inexorável. Prova disso são as bem-sucedidas intervenções políticas do
Estado, no mundo mais desenvolvido, para combater seus efeitos nocivos. Examina-se, em seguida, como a
questão tem sido historicamente conduzida no Brasil e suas perspectivas atuais. Finalmente, salienta-se a importância de um aprimoramento contínuo das políticas e ações públicas, caso se queira realmente reverter o
atual quadro brasileiro de desequilíbrios regionais da produção técnico-científica.
Palavras-chave: desequilíbrios regionais; ciência e tecnologia; política regional.
U
m dos traços mais marcantes da sociedade brasileira diz respeito às grandes desigualdades
socioeconômicas que caracterizam seu território. Esses contrastes, embora estejam assustadoramente
disseminados no contexto dos grandes centros urbanos,
também se constituem em alvo de preocupação e de políticas públicas quando vistos do ponto de vista regional.
Convive-se, assim, há décadas, com informações que
revelam as grandes disparidades de desenvolvimento existentes entre as grandes macrorregiões brasileiras. Apesar
do crescimento econômico relativo verificado nos últimos
30 anos, os indicadores das condições sociais das regiões
tradicionalmente menos desenvolvidas (Nordeste, Norte
e Centro-Oeste) são ainda extremamente preocupantes.1
As diferenças na distribuição regional dos recursos científicos e tecnológicos são também muito acentuadas. Basta salientar, por exemplo, que 82% dos grupos atuantes
em pesquisa, no país, estão nas Regiões Sudeste e Sul.2 A
base técnico-científica instalada no Brasil tem, assim, sua
expressão mais potente nessas duas regiões, para onde é
canalizado a maior parte dos investimentos em ciência e
tecnologia realizados pelo Estado brasileiro.
Os efeitos negativos dessa concentração excessivamente
desproporcional, todavia, não têm sido ignorados. Ao contrário, desde a década de 70, o Estado brasileiro tem procurado intervir com ações regionais para transformar essa
realidade tão heterogênea. Entretanto, os resultados alcan-
çados são ainda inexpressivos, pois, além da debilidade
das intervenções, o problema tornou-se mais complexo
no contexto da economia globalizada.
De fato, se, por um lado, a relevância que a capacitação técnico-científica passou a ter como vetor básico de
competitividade e desenvolvimento no novo ciclo de desenvolvimento capitalista, acarretou tomada de consciência mais ampla sobre as conseqüências negativas dessas
diferenciações, determinando maior mobilização política
e iniciativas mais locais em torno da questão, por outro, o
próprio processo de produção do conhecimento, ao se
tornar mais competitivo, vem sofrendo significativas transformações na sua organização social que, conforme observa Gibbons (1994), podem contribuir para ampliar as
desigualdades existentes no contexto contemporâneo.
Diante dessa realidade tão complexa, na qual os Estados nacionais continuam a desempenhar um papel crucial
no encaminhamento da questão, as intervenções com maiores chances de atenuar ou mesmo reverter a problemática
dependem, entre tantos fatores, de um grande esforço de
planejamento que possa desencadear, além de ações coerentes com cada realidade específica, uma administração
de políticas públicas articuladas, de uma exploração criativa de potencialidades e naturalmente de investimentos
maçicos bem direcionados.
Exemplos de sucesso, como o recente caso de integração das duas Alemanhas, comprovam a possibilidade das
12
OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA
transformações desejadas e necessárias para um desenvolvimento mais equilibrado espacialmente. Tomando esse
estímulo como ponto de partida e tendo como premissas
que essas intervenções estão ancoradas em profunda compreensão das realidades que se busca transformar e que
cada situação apresenta-se com suas peculiaridades, foram reunidas, neste artigo, algumas informações básicas
sobre a questão regional de ciência e tecnologia no Brasil, acompanhadas de reflexões críticas que possam contribuir para ações mais vigorosas e coerentes com as necessidades, possibilidades e potencialidades brasileiras.
TABELA 1
Distribuição de Pesquisadores
Brasil – 1997
Região
Pesquisadores
Mestrado
33.980
21.427
5.941
4.198
1.824
590
9.539
5.191
2.050
1.532
572
194
Total
Sudeste
Sul
Nordeste
Centro-Oeste
Norte
Doutorado
N Absolutos
%
18.775
12.533
2.892
2.133
928
289
100,00
67,00
15,00
11,00
5,00
2,00
os
Fonte: Diretório de Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997.
DIFERENÇAS REGIONAIS DA
BASE TÉCNICO-CIENTÍFICA BRASILEIRA
Os indicadores científicos e tecnológicos existentes
revelam, sem dúvida, um grande desnível da base técnico-científica entre as grandes regiões que compõem o território brasileiro. Tomemos como exemplo básico um fator fundamental para o desenvolvimento científico e
tecnológico, ou seja, os recursos humanos qualificados
para a pesquisa (Tabela 1).
Como se pode verificar, as três regiões menos desenvolvidas (Nordeste, Centro-Oeste e Norte), juntas, agregam
apenas 18% dos pesquisadores existentes no Brasil de acordo com o levantamento feito pelo CNPq. Esse problema ganha dimensão ainda mais preocupante ao se considerarem
outras informações associadas à distribuição regional de recursos humanos qualificados para a pesquisa.
Segundo dados fornecidos pela Capes, por exemplo, a
titulação de mestres e doutores por região está ocorrendo
conforme mostra a Tabela 2.
Verifica-se, dessa maneira, que 70,79% dos mestres e
91% dos doutores que estão sendo titulados no Brasil são
da Região Sudeste. Além de concentrar o maior número
de mestres e doutores brasileiros, o Sudeste é também a
região que vem titulando a grande maioria dos novos
mestres e doutores no país. Pode-se concluir, portanto, que
a formação de pesquisadores em escala regional está seguindo o mesmo padrão das desigualdades existentes, revelando a tendência de continuidade de um problema
incompatível com as condições que favorecem o desenvolvimento técnico-científico.
Pode-se argumentar, no entanto, embora a titulação
ocorra com total predomínio nessa região, que grande parte
dos pós-graduandos pode ser proveniente de outras localidades. Mas outros dados confirmam que a composição
dos quadros docentes das universidades brasileiras conti-
TABELA 2
Alunos Titulados em Cursos de Mestrado e de Doutorado
Brasil – 1990-93
Região
1990
1991
1992
1993
Mestrado
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro-Oeste
Doutorado
Norte
Nordeste
Sudeste
Sul
Centro Oeste
5.536
43
547
3.946
843
157
1.255
4
6
1.210
33
2
6.848
86
620
4.966
946
230
1.516
4
24
1.430
51
7
7.393
86
673
5.342
1.049
243
1. 786
8
13
1.655
101
9
7.574
80
654
5.362
1.212
266
1.804
10
21
1.642
112
19
Fonte: MEC/Capes.
TABELA 3
Distribuição Regional dos Resultados Finais dos Editais do Pronex
Brasil – 1996/98
Instituição
Participante
Instituição-Sede
Região
Total
Sudeste
Sul
Nordeste
Norte
Centro-Oeste
Exterior
Nos
Absolutos
%
Valor
(R$ mil)
%
N os
Absolutos
%
208
153
36
12
2
5
-
100,00
73,60
17,30
5,70
1,00
2,40
-
189.144
137.409
35.626
10.767
1.500
3.840
-
100,00
72,60
18,80
5,70
0,80
2,00
-
516
289
79
53
20
29
46
100,00
56,00
15,00
10,30
3,90
5,06
8,9
Fonte: Coordenação do Pronex.
13
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
nua com uma expressiva maioria não só de doutores mas
também de mestres concentrada no Sudeste. Assim, conforme observam Guimarães e Caruso (1996), o sucesso
da pós-graduação verificado nos últimos dez anos no Brasil
não foi alcançado pelo conjunto das universidades brasileiras, ou seja, o programa ainda não conseguiu capacitar
os docentes de forma ampla, resumindo-se ainda a algumas áreas e regiões.
Os indicadores relativos aos fatores infra-estruturais
para o desenvolvimento da pesquisa revelam, por sua vez,
que a Região Sudeste abriga também grande parte dos
centros universitários com o mais alto nível de excelência
em inúmeras áreas do conhecimento e os institutos e empresas de pesquisa mais bem aparelhados do país.
Os resultados finais dos editais dos anos 1996, 1997 e
1998 do Programa Nacional de Apoio aos Grupos de Excelência/Pronex (Tabela 3) evidenciam de certa forma essa
realidade.
Mais de 90% dos projetos e dos recursos investidos
pelo Programa foram direcionados para as Regiões Sudeste
e Sul. E note-se também que apesar de estar se colocando
em prática um novo tipo de mecanismo de política de desenvolvimento regional por meio de cooperação e articulação institucionais, tanto a Região Norte quanto a CentroOeste, que poderiam vir a se beneficiar mais com a referida
estratégia programática, têm um percentual de participação menor que o de instituições localizadas no Exterior.
O fato é que grande parte dos investimentos públicos
federais destinados à ciência e tecnologia continua a ser
canalizada para as regiões mais desenvolvidas. Os dados
apresentados no Gráfico 1 dão uma noção dessa distribuição espacialmente tão desproporcional.
Mas existem os investimentos estaduais e municipais
que objetivam também o desenvolvimento técnico-científico.3 Todavia, se verificarmos os percentuais das despesas realizadas pelas unidades federativas e suas respectivas regiões (Tabela 4), veremos que existe uma reprodução
da concentração observada nos gastos realizados por fontes federais.
Como se vê, as Regiões Sudeste e Sul – apesar de serem internamente também heterogêneas – são responsáveis
por 81,98% do total investido pelos Estados brasileiros.
Embora não sejam tão recentes, esses são os últimos dados disponíveis sobre o assunto. Sabe-se, todavia, que as
proporções de participação regional de investimentos estaduais em C&T não sofreram grandes alterações, havendo apenas variações em grande parte dos Estados, como é
o caso do Rio de Janeiro.
GRÁFICO 1
Distribuição dos Investimentos Realizados em Bolsas e
Fomento à Pesquisa (1)
Brasil – 1999
Fonte: CNPq/SUP/Coav.
(1) Inclui o total dos investimentos relativos a algumas instituições multiestaduais ou
multirregionais como a Embrapa, por exemplo.
TABELA 4
Despesas Realizadas em C&T, segundo Regiões e Unidades Federativas
Brasil – 1994
Região/
Unidades Federativas
Despesas Realizadas
(R$)
% sobre
a Região
% sobre
o País
BRASIL
Norte
Acre
Amapá
Amazonas
Pará
Rondônia
Roraima
Tocantins
Nordeste
Alagoas
Bahia
Ceará
Maranhão
Paraíba
Pernambuco
Piauí (1)
Rio Grande do Norte
Sergipe
Sudeste
Espírito Santo
Minas Gerais
Rio de Janeiro
São Paulo
Sul
Paraná
Rio Grande do Sul
Santa Catarina (1)
Centro-Oeste
Distrito Federal
Goiás
Mato Grosso (1)
Mato Grosso do Sul
416.956.330
5.072.610
2.036.534
223.574
978.055
1.176.005
585.726
61.437
11.279
36.635.277
2.784.344
9.019.104
2.747.479
1.697.112
6.444.051
12.752.601
520.609
1.818
668.159
272.612.447
269.922
89.288.867
12.532.887
170.520.801
69.268.374
21.142.171
37.353.208
10.772.445
33.367.592
11.603.701
18.087.554
1.359.323
2.317.014
100,00
40,15
4,41
19,28
23,18
11,55
1,21
0,22
100,00
7,60
24,62
7,50
4,63
17,59
34,81
1,42
0,005
1,82
100,00
0,10
32,75
4,60
62,55
100,00
30,52
53,93
15,55
100,00
34,78
54,21
4,07
6,94
1,22
0,49
0,05
0,23
0,28
0,14
0,01
0,003
8,79
0,67
2,16
0,66
0,41
1,55
3,06
0,12
0,0004
0,16
65,38
0,06
21,41
3,01
40,90
16,60
5,07
8,95
2,58
8,01
2,78
4,34
0,33
0,56
Fonte: Balanços Gerais dos Estados – 1994 e COOE/SUP/CNPq.
(1) Valores estimados com base na dotação inicial 1994 (Lei Orçamentária).
14
OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA
acompanhando a acumulação do capital. Conforme observa Buarque (1988), a liderança econômica além de requerer uma base técnica mais desenvolvida, apta para ser
introduzida na atividade produtiva, necessita do conhecimento como fator de acumulação de capital. É a partir,
portanto, do centro de difusão do capital que se propaga a
base técnico-científica sobre outros espaços, ao mesmo
tempo em que se dinamiza e reforça a capacitação técnico-científica no centro.
Segundo Ben-David (1974), a tendência de concentração das atividades técnico-científicas em pólos econômicos mais dinâmicos – que ele denomina de centros – tem
sido uma constante na história do desenvolvimento científico e tecnológico. Mas, ele ressalta que, embora a mudança de hegemonia de um centro para o outro indique
uma ligação entre o crescimento econômico e o científico, ela não é direta nem exclusiva. Existem, segundo o
autor, fatores culturais e individuais, como o valor atribuído pela sociedade à ciência e o talento de determinados
cientistas, que são também importantes para a compreensão do processo de desenvolvimento científico.
Dessa forma, Ben-David não chega a afirmar que a tendência concentradora seja inexorável. Na sua visão, o apoio
dado à ciência e a adequação das organizações e dos sistemas de pesquisa são os fatores mais dinâmicos para o
desenvolvimento técnico-científico. Com isso, ele admite
que esse processo possa ser trabalhado politicamente,
podendo vir a ser menos concentrado.
Nesse sentido, sua contribuição aproxima-se da de
Salomon (1995), que acredita que a concentração das atividades científicas e tecnológicas em poucos países no
contexto contemporâneo possa ser atenuada desde que
os governos nacionais definam seus projetos de desenvolvimento adequados às condições de cada país e atrelem suas políticas de ciência e tecnologia a outras políticas estratégicas, a exemplo do que fazem os países
desenvolvidos.
Acrescente-se que, em geral, esses países, até mesmo
aqueles de menor extensão territorial como o Japão, têm
mantido uma política regional de distribuição mais proporcional de sua base técnico-científica em torno de potencialidades e necessidades locais. Essa constatação, de
certa forma, comprova a existência de uma consciência
mais amplamente difusa da correlação direta que há entre
produção e uso do conhecimento e desenvolvimento no
novo contexto globalizado.
Sabe-se, por exemplo, que até mesmo nos Estados
Unidos, onde a descentralização da política de C&T é um
Pode-se continuar a afirmar, por conseguinte, que as
regiões que estão investindo recursos mais substantivos
são as mesmas contempladas com maiores percentuais do
governo federal. É compreensível que isso esteja ocorrendo, pois as regiões mais capacitadas agregam condições
de atrair e absorver a maior parte dos recursos públicos
federais destinados à ciência e tecnologia.
É de se questionar, no entanto, uma vez que existe um
comprometimento político de se buscar meios para atenuar
essas desigualdades regionais que inviabilizam o atendimento
de necessidades e o desenvolvimento de potencialidades regionais, comprometendo assim toda a unidade federativa,
se as ações regionais desenvolvidas pelo Governo Federal, longe de estarem atenuando o quadro de desigualdades regionais, não estariam contribuindo para mantê-las?
Esse círculo vicioso não é conseqüência de uma estratégia política débil, inadequada às necessidades da realidade brasileira? Não existe premência de se rever as bases da política de descentralização que está sendo posta
em prática? É coerente que o Governo Federal, tradicionalmente o principal responsável pelo desenvolvimento
técnico-científico no Brasil, continue esperando maiores
investimentos dos Estados e do setor privado, quando ele
tem conhecimento do grande número de dificuldades a ser
enfrentado pelo menos a curto-prazo?
Existem condições de se romper com o mencionado
círculo vicioso? Isso é possível no contexto contemporâneo? A concentração espacial da produção técnico-científica é inexorável? Como tem se caracterizado a atuação
do Estado brasileiro na condução do processo de desenvolvimento científico e tecnológico perante os exemplos
do mundo em fase de alta modernidade? Todas essas perguntas deverão formar o eixo central da reflexão a ser desenvolvida nos próximos itens.
A QUESTÃO DA CONCENTRAÇÃO
E O TRATAMENTO POLÍTICO NO
CONTEXTO INTERNACIONAL
As grandes mudanças de ordem estrutural que vêm
ocorrendo no mundo contemporâneo, que têm causado,
inclusive, reestruturação do modo capitalista de produção,
não modificaram uma de suas características básicas, a
dinâmica concentradora. Como afirma Soja (1993), o capitalismo baseia-se nas desigualdades regionais ou espaciais como meio de sua sobrevivência contínua.
As atividades técnico-científicas seguem essa tendência, distribuindo-se de forma desigual sobre os espaços e
15
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
O ENCAMINHAMENTO DADO NO BRASIL
fato consolidado, com forte participação estadual e local,
existe ainda preocupação do Estado no âmbito federal para
garantir uma distribuição espacialmente mais equilibrada
da capacitação técnico-científica nacional. Exemplo disso são os programas especiais implementados pela
National Science Foundation, com recursos aprovados
pelo Congresso, em Estados que não atingem certos patamares de capacitação no complexo de C&T. Dessa maneira, mesmo havendo nos Estados Unidos uma base técnico-científica de ponta mais concentrada em poucos
Estados,4 tenta-se garantir nos demais o desenvolvimento
de atividades ligadas à educação, formação e treinamento, capacitação tecnológica, entre outras, de forma a permitir uma apropriação mais ampla dos avanços da ciência
e da tecnologia (Barros, 1999a).
Um outro exemplo que se destaca na prática constante
de políticas regionais, que tem resultado em realidades
nacionais menos heterogêneas, é o da França. Esse país,
que tinha um sistema tradicional de poder unitário e centralizado, conseguiu transformar-se em modelo de Estado
descentralizado, no qual a instância regional desempenha
papel estratégico para a organização e desenvolvimento
mais harmônico de todo o seu território. São 21 regiões,
com conselhos eleitos, poder de decisão e meios financeiros próprios atuando, desde 1982, de forma articulada
com o Estado central, que tem o papel de principal
formulador e coordenador das políticas regionais conduzidas em estreita associação com as regiões. Existe hoje,
na França, um entendimento – conforme expressa a nova
lei de organização e desenvolvimento do território de fevereiro de 1995 – sobre as políticas regionais serem de
interesse geral, pois concorrem para a “unidade e solidariedade nacionais” (Tavares, 1996).
Essa perspectiva de desenvolvimento regional acompanha naturalmente a política de C&T, que, além de
estar articulada aos projetos e aos programas de desenvolvimento, busca também descentralizar seu aparato
institucional. Esse processo pode ser constatado tanto
na expressiva distribuição espacial das unidades de
pesquisa dos grandes institutos franceses como o Centre
National de Recherche Scientifique – CNRS, quanto no
progresso obtido em regiões como Rhône-Alpes e
Provence-Alpes-Côte d’Azur, hoje destacadas como
fortes centros de pesquisa no contexto europeu (Barros, 1999b).
E no Brasil, como tem sido tratada essa questão regional? Qual a percepção atual que se tem da problemática?
Quais as perspectivas de uma intervenção mais eficaz?
A redução das diferenças regionais nunca chegou a ser
considerada propriamente prioridade nacional pelo Estado brasileiro. Pode-se dizer que houve sempre um descompasso entre o discurso e a política posta em prática. Para
que se tenha uma visualização mais completa e sucinta dessa
intervenção, ainda que correndo o risco de simplificar em
demasia, deve-se periodizá-la em duas grandes fases.
A primeira tem como marco mais significativo a criação da Sudene em 1959 e atinge seu apogeu na década de
70, quando o desenvolvimento regional foi considerado
estratégico para o crescimento nacional. O planejamento,
centralizado em instâncias federais, pretendia reverter o
quadro do grande desequilíbrio socioeconômico existente entre as grandes regiões brasileiras, promovendo uma
maior integração nacional.
Na prática, porém, essa política fluiu, como observado
por Jatobá (1980), basicamente para duas direções: ou a
exploração de potencialidades locais que beneficiava a
dinâmica de expansão econômica comandada pela indústria implantada principalmente em São Paulo, ou para
ações compensatórias, quase de caráter assistencialista, a
fim de abrandar as graves disparidades.
Nesse período, as ações regionais voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico estiveram formalmente acopladas a essa política mais geral de concepção
desenvolvimentista e de integração nacional. Entretanto,
como salienta Barros (1999b), a política regional de C&T,
expressa inicialmente nos Programas do Trópico Úmido
e do Semi-Árido Nordestino, não considerou devidamente os limites e necessidades locais; mais grave ainda, esteve pouquíssimo articulada aos programas de desenvolvimento regional – dos quais provinha a grande parte dos
recursos aplicados –, tendo assumido um teor mais científico que tecnológico.
Como conseqüência dessas distorções, os resultados da
intervenção regional do Estado brasileiro, nessa fase que
termina com a eclosão da crise econômica dos anos 80,
ficaram praticamente limitados a uma relativa integração
da economia nacional e a um pequeno abrandamento dos
problemas centrais.
Quanto à questão técnico-científica, especificamente,
não ocorreram também grandes transformações. No entanto, alguns Estados das Regiões Norte e Nordeste tiveram suas bases fortalecidas não só em termos de recursos
humanos e de infra-estrutura para pesquisa, mas na organização institucional das atividades técnico-científicas.
16
OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA
co-científicas ao se aglomerarem podem tornar-se mais
dinâmicas e produtivas. Exemplos disso são os casos das
regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo.
O problema diz mais respeito à intensidade com que se
apresenta a concentração espacial e institucional da produção técnico-científica no país.
Isto porque está claro também que a ausência ou quase
ausência de determinado nível de capacitação técnico-científica em um determinado espaço acarreta desvantagens
comparativas em termos de atração de investimentos produtivos. Dessa maneira, localidades que não contam com
uma base educacional mais forte, com uma infra-estrutura de apoio técnico (laboratórios, prestação de serviços,
etc.) e com uma infra-estrutura de comunicação correm o
risco de ficar estagnadas ou mesmo de ser excluídas do
processo de desenvolvimento em curso. Como ressalta
Barros (1999b), embora não exista uma correlação direta, automática entre C&T e desenvolvimento econômico
e social, não há como negar, no atual contexto, o círculo
virtuoso que se realimenta desses fatores.
Percebe-se também que a debilidade ou ausência de
competência técnico-científica pode resultar na impossibilidade de aproveitamento de potencialidades locais e de
respostas, sobretudo tecnológicas, para problemas específicos. Coloca-se, por exemplo, a situação da Região
Amazônica que, por não contar com uma densidade de
massa crítica, de núcleos de excelência locais, de institutos de pesquisa e desenvolvimento, deixa ainda de aproveitar as oportunidades abertas por um universo tão rico
para a pesquisa e a exploração produtiva.
De uma forma geral, visualiza-se que em um país da
dimensão do Brasil, com desigualdades regionais há muito sedimentadas, mas que procura manter uma certa unidade nacional, corre-se o perigo de se ter regiões estanques, desagregadas, com maiores dificuldades e cada vez
mais atrasadas. Daí muitos serem favoráveis a uma política de âmbito regional mais incisiva liderada pelo governo federal, pois ele tem sido a principal fonte indutora
das atividades científicas e tecnológicas no país. Por isso,
há quem acredite que, na falta de uma distribuição mais
eqüitativa, mais balanceada dos recursos federais, o problema da concentração se perpetuará indefinidamente.
Essa crença é, no entanto, rebatida por outros, que vêem
maior complexidade na questão. Para essa corrente, não
se trata apenas de garantir mais recursos; há aspectos culturais, políticos e da própria capacidade local em absorver e aplicar corretamente os recursos que precisam ser
levados em consideração.
A segunda fase, que se estende até hoje, está associada
às mudanças políticas e econômicas que se estabeleceram
a partir da expansão do processo de globalização da economia. O Estado, bastante fragilizado por uma série de
fatores, tenta redefinir seu papel e suas funções. As dificuldades político-administrativas vividas, então, foram
grandes. A economia brasileira atingiu índices inflacionários altíssimos que inviabilizavam qualquer tentativa de
se pensar e se planejar a médio ou longo prazos.
Nesse contexto, o planejamento e as ações de cunho
regional evidentemente declinaram. A questão ficou mais
complexa e as estratégias para o desenvolvimento mais
equilibrado entre as regiões tornaram-se mais difíceis. Os
investimentos em C&T passaram a declinar, o que levou
até mesmo os centros mais desenvolvidos a enfrentar situações calamitosas. Assim, a política científica e tecnológica nacional, bastante afetada pela crise, passa a se restringir basicamente ao incentivo de uma maior participação
tanto do setor produtivo quanto dos Estados federados nos
investimentos em C&T, colocando em prática, dessa forma, uma decisão de se descentralizar também as ações
voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico.
Essa política de descentralização, entretanto, ainda carece de bases mais consistentes e de instrumentos mais adequados a cada realidade específica. É preciso levar em conta, de acordo com Lavinas (1997a), que muitos Estados,
principalmente no Nordeste, dependem de significativas transferências do governo federal, não tendo, por conseguinte, fôlego para criar políticas sociais ou de desenvolvimento. Cabe
lembrar ainda que no caso da política científica e tecnológica existe mais um fator limitante que é a falta de tradição de
atuação desses Estados na área de ciência e tecnologia.
Com a retomada da estabilidade política e econômica
e amadurecidas as perplexidades das mudanças e das expectativas quanto ao processo de globalização, torna-se a
considerar com mais atenção os grandes contrastes socioeconômicos regionais que, conforme informa Lavinas
(1997b), recrudesceram nas últimas décadas. Verifiquemos aqui as mudanças e perspectivas que se colocam para
a dimensão científica e tecnológica da questão.
PERCEPÇÃO ATUAL DO PROBLEMA
REGIONAL, A AÇÃO EM DESENVOLVIMENTO
E SUAS PERSPECTIVAS
Existe hoje um entendimento mais amplo nas esferas
acadêmica, burocrática e política de que a concentração
em si não chega a ser problemática. As atividades técni-
17
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
seqüentes representam, sem dúvida, um fato significativo
na experiência de intervenção do Estado brasileiro. Esse
esforço de desenvolver ações mais articuladas com interesses e potencialidades locais, e a participação efetiva
de Estados e municípios poderão, aprimorando-se continuamente, trazer transformações significativas. Alguns
programas do CNPq, como o do Agronegócio, o de Apoio
às Tecnologias Apropriadas, os do Nordeste e CentroOeste de Pesquisa e Pós-Graduação já se alinham nessa
direção.
Louvável também é o trabalho de planejamento realizado pelo Programa Plurianual/PPA 2000-2003 que buscou retomar a articulação institucional, sobretudo federal,
para o desenvolvimento das ações de ciência e tecnologia,
além de referendar a determinação de se ampliar a competência tecnológica no país.
Outras ações políticas, tais como a definição de percentuais regionais para os recém-criados Fundos
Setoriais de Pesquisa, injetam uma perspectiva mais
promissora para o encaminhamento da questão regional pois, como se sabe, um fator complicador contribui
decisivamente para a manutenção do problema e diz
respeito aos recursos reduzidos para ciência e tecnologia existentes no Brasil. Esses, como vimos, estão sendo canalizados principalmente para a base técnico-científica mais desenvolvida que está localizada no Estado
de São Paulo. Tal fato, entretanto, não evidencia uma
necessidade de que o país venha a ter uma participação
mais efetiva na produção técnico-científica no contexto mundial?
Aí parece residir o aspecto perverso da questão. Sabemos das desvantagens de termos uma realidade tão heterogênea que, até por razões estratégicas para o desenvolvimento, precisa ser modificada. Por outro lado, sabemos
também da importância de se garantir uma participação
mais expressiva na produção técnico-científica no contexto
mundial, que está também cada vez mais concentrada. Se
não se quer nivelar por baixo, como superar esse impasse
sem contar com mais recursos?
A ampliação de recursos públicos para a área é, sem
dúvida, um fator importante. Eles poderão garantir, por
exemplo, os pré-investimentos necessários naquelas localidades que se encontram praticamente desprovidas de
recursos científicos e tecnológicos.
Por fim, é importante acentuar que o trabalho político desenvolvido pelo Estado, a fim de reverter as incômodas e negativas desigualdades regionais, não deveria
se limitar a garantir maiores investimentos públicos para
Esse embate tem contribuído possivelmente para uma nova
configuração do tratamento da questão regional, ainda que
de forma embrionária. A abordagem do problema em escala
de grandes regiões é considerada, por exemplo, inadequada
e superficial, pois além de tentar integrar realidades bastante
diferenciadas, é de difícil operacionalização, porque o regional, na organização político-administrativa do Estado brasileiro, não corresponde a uma instância de poder.
Assim, a abrangência do regional está sendo identificada como de âmbito estadual e novas linhas de atuação regional estão sendo testadas e formatadas nas instituições
federais, principalmente aquelas que estimulam o envolvimento e a participação dos Estados. Essa política de articulação com os Estados, todavia, ainda se processa de
forma lenta e sobretudo como iniciativa daquelas localidades que contam justamente com uma base mais consolidada. Isso ocorre, talvez, por não existirem canais institucionalizados mais definidos para esse fim na esfera federal.
Não há dúvida, porém, que essa estratégia é bastante promissora, podendo representar um grande avanço no encaminhamento da questão. Problemas associados ao planejamento – como o da escolha de prioridades e de entrosamento
com os programas de desenvolvimento local – ou ao envolvimento efetivo de atores locais envolvidos no processo, para
não mencionar os de ordem operacional, poderão encontrar
nessas parcerias soluções eficazes.
Ademais, apesar da instabilidade política da grande maioria dos sistemas estaduais de C&T,5 a atuação recente de alguns Estados, como o Ceará, Pernambuco, Rio Grande do
Sul, Bahia, entre outros, representa no cenário nacional o fato
novo mais promissor. Não só por estarem ampliando seus
investimentos em C&T, como também aprimorando sua organização institucional, suas articulações e atuações.
Todavia, as ações regionais desenvolvidas no âmbito
das agências de fomento federais não conseguiram imprimir ainda o impacto mais vigoroso que a situação requer.
Isso talvez porque ainda não haja uma definição clara de
política regional por parte do Ministério da Ciência e Tecnologia. Dessa forma, caminha-se em um sistema híbrido, no qual estão reunidos os programas nacionais que procuram considerar a dimensão regional, as ações regionais
de cunho mais tradicional e as novas experiências de parcerias com os Estados.
COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS
As novas formas de conceber ações regionais voltadas
para o desenvolvimento científico e tecnológico mais con-
18
OS DESEQUILÍBRIOS REGIONAIS DA PRODUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
o desenvolvimento técnico-científico. Ele precisa aprimorar continuamente sua intervenção: seja para aperfeiçoar seus instrumentos que induzam o setor privado a
um investimento mais significativo em inovação tecnológica nas diferentes regiões, seja para colocar mais em
uso sua experiência técnica acumulada, pondo em prática ações mais criativas de articulação com os Estados e
municípios, seja para reavaliar sua atual política de descentralização.
BARROS, F.A.F. de. “ Descentralização da C&T no Brasil”. Jornal da Ciência.
Rio de Janeiro, n.411, abr. 1999a.
__________ .Confrontos e contrastes regionais da ciência e tecnologia no Brasil. Brasília, Ed. Universidade de Brasília e Paralelo 15, 1999b.
BEN-DAVID, J. O papel do cientista na sociedade: um estudo comparativo. São
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BUARQUE, S. “Ciência, tecnologia e desenvolvimento regional”. In: Textos de
Referência Seminário Nordestino de Integração Universidade e Desenvolvimento Regional. João Pessoa, 1988.
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desequilíbrio econômico inter-regional brasileiro. Brasília, 3v., 1993.
GIBBONS, M. et alii. The new production of knowledge. Londres, Sage, 1994.
NOTAS
GUIMARÃES, R. e CARUSO, N. “Estudos sobre a questão regional: documento base”. São Paulo, 1996, mimeo.
1. A esse respeito, consultar Comissão Especial Mista do Congresso Nacional
(1993).
JATOBÁ, J. et alii. “ O papel do Estado e o desenvolvimento regional recente”. Pesquisa e Planejamento Econômico. Rio de Janeiro, v.10, n.1, 1980, p.273-318.
2. Segundo o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil versão 3.0, 1997.
LAVINAS, L. “Desigualdades Regionais: indicadores sócio-econômicos nos anos
90”. Rio de Janeiro, Ipea, n.460, 1997a (Texto para discussão).
3. A partir da Constituição de 1988, várias unidades da Federação definiram em
suas Cartas, a exemplo de São Paulo que já mantinha investimentos para o desenvolvimento da ciência e tecnologia desde 1962, normas de alocação de recursos
para a área.
__________ . “Abismo Regional” [Entrevista]. Veja, v.30, n.8, fev. 1997b, p.9-11.
SALOMON, J.-J. “The ‘uncertain quest’: mobilising science and technology for
development”. Science and Public Policy, v.22, n.1, fev. 1995, p.9-18.
4. Dados da National Science Foundation indicam que só cinco dos 51 estados
norte-americanos absorvem 46% do dispêndio nacional em ciência e tecnologia.
SOJA, E.W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro, Zahar, 1993.
5. O Estado de São Paulo é o único que vem mantendo a estabilidade necessária
na destinação de recursos substantivos para ciência e tecnologia.
TAVARES, H.M. “Planejamento regional e integração: um estudo comparativo”.
Encontro Nacional da Anpur, 6. Anais... Brasília, Anpur, 1996, p.40-50.
19
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES
EM TORNO DO DEBATE CIENTÍFICO
GUGA DOREA
Jornalista e Sociólogo
ROSEMARY SEGURADO
Socióloga, Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP
e Analista da Fundação Seade
Resumo: O presente artigo aborda as questões conceituais do debate científico e suas relações com os aspectos
sociais, políticos, econômicos e culturais, analisando as continuidades e descontinuidades verificadas ao longo da história. Pretende-se avaliar alguns dos desdobramentos do discurso científico considerados relevantes
para a configuração da chamada sociedade de controle.
Palavras-chave: ciência e controle; divulgação científica; história da ciência.
O
s debates sobre questões científicas costumam
apresentar continuidades e descontinuidades
conceituais no transcorrer da história. Descobertas ou invenções surgem carregadas de valores éticos, religiosos, bem como de aspectos econômicos, políticos e
de forças sociais. Em alguns períodos históricos, o homem
teria pensado que a terra era achatada, em outros, que era
o centro do universo. Ao longo do tempo, portanto, noções e conceitos estão a todo instante em pleno processo
de mutação e são constantemente reinterpretados e mesmo reinventados, além dessas compreensões terem marcado o pensamento de várias gerações.
Considerando-se o conjunto de interesses e a atuação
dos grupos envolvidos na processualidade de uma determinada descoberta, é possível direcionar as investigações
científicas para múltiplas possibilidades de percursos a
serem seguidos, e esse aspecto é decisivo tanto para o processo de pesquisa quanto para o objeto que está no foco
da atenção. A ciência, segundo François Jacob, é imprevisível. E essa imprevisibilidade, que para o autor sempre
busca o novo, não revela em sua origem qual será o percurso fixo da pesquisa e muito menos seu destino final. A
trajetória da pesquisa é múltipla e complexa. São as
desterritorializações que tornam a ciência e a própria história da humanidade tão instigantes.
A apropriação das descobertas científicas continua sendo uma questão premente de ser discutida nos dias de hoje.
O Projeto Genoma Humano, por exemplo, vem sendo alardeado por grande parte da mídia como o caminho para a
cura da maioria dos males que afetam a saúde da humanidade, subestimando-se a possibilidade do surgimento de
efeitos colaterais. Talvez seja interessante fazer algumas
ponderações necessárias para a ampliação desse debate,
e nada como voltar ao passado para perceber que “alguns
dos males que a ciência e suas aplicações provocam nascem do desejo de fazer o bem. Os primeiros radiologistas, por exemplo, não tinham idéia que os raios X poderiam provocar câncer. Nem os químicos que os adubos
destinados a melhorar as colheitas seriam a causa de temíveis poluições” (Jacob, 1998:110).
Trata-se, portanto, de buscar avaliar os possíveis efeitos
da ciência na humanidade, que são diversos e muitas vezes
imprevisíveis. O problema é, na maioria das vezes, esse debate se manter praticamente circunscrito à comunidade científica, que tende a se autoproclamar como foco de disseminação de verdades totalizantes sobre as pesquisas em
andamento. “Quem fala de ciências conhecendo-as em detalhe e de primeira mão? Os próprios cientistas. Também falam de ciência os professores, os jornalistas, o grande público, só que falam de longe, ou com a incontornável mediação
dos cientistas. ‘Para falar de ciência é preciso ser especialista’, declara-se, de modo a bloquear de antemão qualquer
pesquisa direta de campo. Esse estado de coisas seria muito
chocante em política ou economia. Imaginemos um político
20
CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES EM TORNO DO DEBATE CIENTÍFICO
berta de novos mundos, de outras culturas e paralelamente da idéia de “outro”. Surge então a ciência moderna descrita como uma ruptura da ciência antiga.
Essa noção de modernidade também é caracterizada
como a possibilidade do ser humano alcançar a perfectibilidade e um futuro cada vez mais promissor pelo avanço da ciência e da tecnologia, sempre centrado na figura
do indivíduo empreendedor e dono de si, capaz de domesticar a natureza humana, concebendo a humanidade como
um sistema orgânico e civilizado. “O século XIX viu nascer noções fundadoras de uma visão da comunicação como
fator de integração das sociedades humanas. Centrada de
início na questão das redes físicas, e projetada no núcleo
da ideologia do progresso, a noção de comunicação engloba no final do século XIX, a gestão das multidões humanas” (Mattelart e Michele, 1999:13).
Em meados do século XIX, Ortega Y. Gasset defende
a necessidade da ordem em relação à emergente multidão
que, no seu entender, promoveu uma súbita e talvez até
inesperada invasão no até então refúgio das elites: a cidade. Em contraposição a Marx, Gasset prefere falar em divisão entre os homens, restando à chamada massa amorfa
e sem escrúpulos navegar como bóias à deriva, sempre
em oposição à minoria especializada, que está acima da
mediocridade e da incapacidade de agir sobre si mesmo,
característica própria da maioria.
O indivíduo na multidão, segundo Gustave Le Bon, é
insaciável e age apenas com o instinto. Exige-se, portanto, a regulação e a normatização hierárquica dos sentimentos irracionais e cruéis, para que se erga da multidão o
que Le Bon chama de “unidade mental da multidão”. O
trabalho científico não está à margem de toda essa dinâmica. Em muitas ocasiões, a ciência tornou-se um instrumento fundamental para o desenvolvimento das sociedades ditas civilizadas, em contraposição ao mundo
considerado inculto e irracional, ainda não incorporado e
disciplinado sob a ótica do progresso.
Trata-se de uma visão de progresso que, associada ao
período de crescente desenvolvimento industrial na Europa do século XVIII, levou a um aprimoramento cada
vez mais crescente do processo produtivo emergente. “A
evolução da divisão social do trabalho implicou a constituição de conjuntos produtivos cada vez mais gigantescos. Mas esse agigantamento da produção provocou uma
molecularização cada vez mais acentuada dos elementos
humanos” (Guattari, 1987:181).
Podemos dizer que a expressão mais aprimorada dessa
molecularização das relações sociais está na idéia de so-
dizendo: ‘Só os políticos estão aptos a falar de política’, (...),
ou um jornalista: ‘Eu sou a corrente de transmissão dos políticos, aquela que explica ao público o que é preciso pensar’”
(Latour e Woolgar, 1997:25).
A essa hierarquização corresponde um modelo de ciência adotado sobretudo no século XVIII, no chamado século das luzes. O cientista, a partir de então, passa a ser
visto como o legítimo portador de verdades absolutas, da
eficiência, da neutralidade e da objetividade total sobre
os fenônemos naturais. Se durante a Idade Média a religiosidade era propagada com o propósito de disseminar a
idéia que somente as pessoas de fé poderiam obter uma
vida sadia, em um período posterior a saúde dos indivíduos busca obediência às leis dos homens, abandonando
a centralidade da divindade cristã.
Já em meados do século XVII, Francis Bacon pensava
a ciência como um instrumento fundamental para melhorar a vida da humanidade, capaz de garantir as condições
necessárias para o bem-estar dos indivíduos. Essa crença
na ciência provedora da plena saúde aos homens talvez
tenha começado a ser delineada a partir do século XVI.
Tal crença se tornou mais evidente no século XVIII com
as freqüentes experimentações públicas, nas quais os cientistas produziam exposições das pesquisas em desenvolvimento. Muitas dessas experimentações ocorriam em praças públicas e terminavam por reforçar e legitimar a
imagem do “homem de ciência”, dando força a um dos
aspectos que engendraram a ciência moderna: a sua
espetacularização.
Nesse período, o cientista era visto como capaz de desvendar os mistérios da natureza, possibilitando, entre outros aspectos, o aprimoramento da espécie humana. Tal
busca pela perfeição, não podemos deixar de ressaltar, não
é nova. No diálogo entre Sócrates e Diotima, descrito por
Platão no Banquete, a busca pela perfeição e pelo belo
coloca o homem na perspectiva de alcançar o status de
verdadeiro semideus. Platão é apriorístico ao colocar o
nascimento como o divisor de águas entre o modelo da
sociedade ideal e o simulacro.
A teoria platônica apresenta, portanto, uma hierarquização valorativa, na qual o simulacro é visto como uma cópia mal-feita que deveria ter como objetivo principal alcançar os pressupostos do modelo ideal de sociedade. Nesse
sentido, todo comportamento ou expressão da diferença
perderá suas características próprias ao ser incluído no que
Platão concebeu como a síntese da perfeição humana.
Sobretudo a partir do século XVI, no entanto, a intensificação das navegações pelos europeus levou à desco-
21
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
vido ao avanço dos estudos da anatomia, considerada como
uma espécie de “livro” que continha múltiplas possibilidades de leitura e aprendizado sobre a existência humana.
Até a era renascentista, as práticas médicas de tratamento das mais variadas doenças não aceitavam os métodos mais invasivos. O cirurgião, naquele momento, era
associado ao carrasco e durante muito tempo a prática da
cirurgia foi condenada por uma das mais importantes instituições de ensino da época, a Faculdade de Medicina
de Paris.
As práticas de dissecação de cadáveres eram realizadas por artistas, principalmente os escultores do período
renascentista, como Michelangelo. Essas dissecações tornavam mais compreensível a anatomia dos corpos e, conseqüentemente, mais fácil expressar a musculatura e seus
movimentos. Talvez seja um dos primeiros momentos da
história em que o corpo passou a ser considerado como
depositário de informação capaz de revelar seu funcionamento, bem como servir de base para múltiplas possibilidades de sua própria intervenção e transformação. Seguramente a anatomia pode ser considerada um marco de
intervenção mais profunda nos corpos.
Outro momento importante nesse processo de transformação da natureza humana foi sendo delineado a partir
dos estudos de genética. As experiências com ervilhas,
realizadas pelo monge austríaco, Gregor Mendel, não
descortinou apenas um campo de pesquisa novo dentro
da biologia, mas se constituiu em uma das mais importantes descobertas científicas da história da humanidade. Em
1865, Mendel apresentou seu trabalho à Sociedade de
Naturalistas de Brünn, mas apesar de ser considerada uma
pesquisa de notável precisão metodológica, não recebeu
naquele momento o devido destaque. Não foi sequer relacionado como um dos elementos mais importantes para a
teoria da evolução. Mesmo assim, tornou-se conhecido,
até os dias de hoje, como o pai da genética.
São vários os motivos que levaram os cientistas a não
aceitarem a teoria de Mendel. “Dentre as justificativas
aventadas pelos historiadores das ciências a mais convincente analisa o status dos hibridistas nos meios acadêmicos daquele tempo. Os hibridistas eram vistos com algumas reservas, não sendo considerados cientistas, mas, no
máximo, ‘cientistas menores’ ou ‘práticos’ da profissão
de botânico” (Oliveira, 1995:38).
Observa-se, portanto, que a genética já nasce num processo de hierarquização do pensamento científico e as
experiências com ervilhas utilizadas por Mendel não foram compreendidas em seu tempo como uma verdadeira
ciedade disciplinar desenvolvida por Michel Foucault que,
segundo o autor, começou a ser configurada na segunda
metade do século XVIII e atingiu seu grau de perfeição e
de implantação a partir das e nas instituições sociais durante o século XIX.
Ao pesquisar as formas de poder presentes na sociedade, Foucault abrirá outra perspectiva na abordagem do
poder para além das questões jurídicas. Desenvolveu a
análise do processo pelo qual o poder disciplinar capta os
indivíduos em sua esfera molecular, seu próprio corpo, a
fim de torná-los mais dóceis e úteis para a sociedade que
está sendo engendrada.
O registro das informações a respeito dos comportamentos das pessoas era considerado fundamental para
se conseguir uma espécie de visibilidade total dos corpos, cujo objetivo principal era poder desenvolver uma
série de dispositivos capazes de garantir a vigilância
desses comportamentos, desenvolvendo mecanismos
que possibilitassem a melhor forma de discipliná-los.
As técnicas disciplinares foram aprimoradas a partir de
sua ampla utilização pelo Estado Moderno, a fim de gerir
a vida dos indivíduos. O racismo, por exemplo, caracterizou-se como o processo de seleção dos corpos que seria
capaz de purificar a espécie. “Eu procuro analisar como,
no início das sociedades industriais, instaurou-se um aparelho punitivo, um dispositivo de seleção entre os normais
e anormais” (Foucault, 1979:150).
A estratégia de exploração contínua dos corpos tornouse um imperativo da sociedade disciplinar, constituindose num elemento-chave para as dinâmicas políticas, econômicas e sociais, definindo-se, a partir daí, padrões de
saúde e modelos de normalidade. “O projeto de criar uma
sociedade sadia e estabelecer uma economia social esteve sempre ligado ao projeto de transformação do desviante
– mendigo, louco, entre outros – em indivíduo normalizado” (Portocarrero, 1994:62).
A elaboração do conjunto de regras e normas para o
bom funcionamento da sociedade exige a vigilância permanente dos indivíduos que passam a ser classificados em
sua esfera cotidiana. Nesse sentido, incluir significa a
apropriação dos corpos para melhor extrair suas potencialidades, ou seja, tudo aquilo que estiver fora da possibilidade de utilização deve estar circunscrito e confinado
em instituições “adequadas”, em territórios fechados, como
a escola, o hospital, a fábrica, entre outras.
O corpo transformou-se em fonte de informações e de
pesquisas ainda na Idade Média. Entre os séculos XV e
XVI, ele passou a receber um destaque diferenciado de-
22
CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES EM TORNO DO DEBATE CIENTÍFICO
para a história da biologia celular. Mas foi em julho do
ano 2000 que a comunidade científica tornou pública a
informação mais esperada: o seqüenciamento do genoma
humano.
A divulgação nos meios de comunicação chegou a
comparar os resultados preliminares da pesquisa com a chegada do homem à lua e a invenção da bomba atômica. Transmitida em cadeia pela CNN, uma das mais influentes redes
de televisão do planeta, reuniu o cientista e empresário Craig
Venter, sócio da Celera Genomics Corporation, e Francis
Collins, diretor do chamado Hugo (Human Genome
Organization). Também participaram desse evento o presidente norte-americano, Bill Clinton, e o primeiro-ministro inglês, Tony Blair, demonstrando a importância que
os respectivos países vêm atribuindo a esse projeto.
Efetivamente, desvendar o funcionamento do genoma
humano deve ser considerado uma das mais importantes
descobertas da história da humanidade, sobretudo por sua
capacidade de abrir múltiplas possibilidades de intervir
na natureza humana. Por outro lado, a forma pela qual
grande parte da mídia, principalmente a televisão, está
tratando do assunto nos faz pensar no que o filósofo francês, Gilles Deleuze, chamou de sociedade de controle.
Talvez a ficção científica nos ajude – mais uma vez – a
compreender a noção desenvolvida por Deleuze. O personagem Ethan Hawke do filme Gattaca, de 1997, apresenta
a perspectiva da divisão dos indivíduos em duas espécies
genéticas: os “valids” e os “invalids”. Se pensarmos que
as sociedades já foram entendidas como classes sociais, a
partir da teoria marxista, apresentando de um lado a classe
dominante e de outro a classe trabalhadora, aqui a divisão
se dá de uma forma extremamente peculiar.
Em Gattaca, é no próprio momento do nascimento que
essa classificação é possível. O personagem central do
filme, assim que sai da barriga da mãe, rompendo sua primeira fronteira, é submetido a um exame no qual é extraída uma amostra de seu sangue para ser analisado. Após
poucos segundos, sai o resultado dessa análise, quando
ficamos sabendo todos os tipos de problemas de saúde que
Hawke poderá desenvolver no futuro. Nesse instante, começa a sua odisséia ao ser rotulado como “invalids” e,
portanto, considerado como incapaz de desempenhar as
funções mais valorizadas da sociedade. É nesse sentido
que o controle ocorre sem a necessidade de confinamento.
Se o princípio central da sociedade disciplinar estava
justamente no confinamento, Deleuze nos aponta uma nova
forma de controle, que passa a ser agora exercida molecularmente. “É certo que entramos em sociedades de ‘con-
bifurcação na história das ciências. A genética só veio a
se desenvolver de maneira efetiva durante o século XX.
Entre outros fatores, o que é importante ser destacado
ocorreu em 1952 quando Alfred Hershey e Marta Chase
demonstraram que o DNA continha e transmitia as informações-chaves para o processo de hereditariedade.
Em 1953, Watson e Crick apresentaram a forma espacial do DNA que é chamada até hoje de dupla hélice.
“Desvendar a dupla hélice da molécula de DNA tornou
viável um salto qualitativo nas ciências biológicas e a aceleração de novas descobertas em todas as áreas da biologia, em especial da molecular, nos setores da citogenética.
Descortinou-se um campo de pesquisas, cujas descobertas e inventos biotecnológicos têm repercussões ainda incalculáveis na história da humanidade e dos seres vivos
em geral” (Oliveira, 1995:55).
A partir das experiências de Mendel podem ser conhecidos os princípios básicos dos fenômenos da hereditariedade, o que propiciará um debate extremamente polêmico em torno dessa temática durante todo o século XX.
Obviamente, os avanços tecnológicos da era contemporânea introduzem uma aceleração a todas as investigações
científicas como nunca se pôde verificar. Essa corrida rumo
a novas descobertas como, por exemplo, o mapeamento e
seqüenciamento do genoma humano, demonstra o quanto
a informática tornou-se um diferencial fundamental no
processamento da informação genética.
Durante os anos 70, foram realizados diversos simpósios e conferências sobre os possíveis desmembramentos
em torno das pesquisas em andamento do que, na década
seguinte, seria chamado de Projeto Genoma Humano.
Esses debates tiveram como principal enfoque as questões éticas em relação aos riscos que envolviam tais descobertas e suas eventuais apropriações.
Entre os fatores que vêm se constituindo em um verdadeiro vetor de aceleração dessas transformações está a
informação como um dos aspectos mais valiosos de nossa
era. Nesse sentido, a informação, de qualquer natureza,
se torna o diferencial para qualquer processo vivido em
sociedade. “Tal compreensão provocou um ímpeto extraordinário na pesquisa biotecnológica e abriu um campo novo
para a exploração capitalista, na medida em que possibilitava a apropriação da própria vida no seu nível mais ínfimo, que é o da informação genética” (Santos, 2000:418).
É nesse contexto que poderíamos abordar o debate em
torno do mapeamento e seqüenciamento do chamado mapa
da vida. Essas pesquisas, iniciadas nos anos 80, apresentaram na década seguinte seus resultados mais relevantes
23
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
Autores como Deleuze e Guattari nos ajudam a compreender como o sistema gera mecanismos próprios para
capturar a subjetividade dos indivíduos e sobrepor suas
formas e expressões. Diante disso, o papel dos meios de
comunicação de massa passa a ser fundamental na sociedade contemporânea, denominado por diversos autores
como o Quarto Poder, sobretudo em função de sua capacidade de produzir modos de vida e dinâmicas sociais. A
mídia é um potente disparador de processos de subjetivação, porque ela investe como ninguém no cotidiano de
cada indivíduo, buscando adequar comportamentos e
maneiras de pensar de acordo com os interesses do capitalismo.
Trata-se de dizer que o capitalismo está sempre pronto
a criar novos desejos ou a se apropriar dos fluxos que não
estejam de acordo com a sua dinâmica de funcionamento.
Desse ponto de vista, quanto maior for a “inclusão diferencial”, mais eficaz será o controle e a passividade diante do estabelecido como hegemônico. Conforme nos disseram Deleuze e Guattari, “não existe exterior, não existem
as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser
como nós, e cujo crime é não o serem” (Deleuze e Guattari,
1996:45).
Entre as continuidades e descontinuidades dos debates
em torno do Projeto Genoma Humano, a decifração do
código genético pode estar apontando para a idéia de que
eventuais diferenças estão sendo dissipadas pela instrumentalização científica, sufocando qualquer possibilidade de resistência à subjetividade forjada permanentemente pelo capitalismo.
Nesse sentido, poderíamos nos indagar se apenas com
o desenvolvimento das informações genéticas e do prenúncio de um futuro mais sadio para a humanidade, estaríamos engendrando novos modos de existência? Ou então, o que fazer com os processos de resistência daqueles
que de alguma maneira não se ajustam ou não querem se
adequar às padronizações e serializações impostas pela
subjetividade capitalista?
Se pensarmos em Guattari (1987:165), “há muitas maneiras de abordar esse ‘avesso’ da racionalidade humana.
Pode-se negar o problema ou reduzi-lo ao domínio da lógica habitual, da normalidade e da boa adaptação social
(...). Dessa perspectiva, nada mais resta que tentar corrigir tais falhas, de modo a retornar às normas dominantes.
Inversamente, pode-se considerar que esses comportamentos dependem de uma lógica diferente, que deve ser estruturada como tal. Em vez de abandoná-los à sua
irracionalidade aparente, vamos então tratá-los como uma
trole’, que já não são exatamente disciplinares. Foucault
é com freqüência considerado como o pensador das sociedades de disciplina, e de sua técnica principal, o confinamento (não só o hospital e a prisão, mas a escola, a fábrica, a caserna). Porém, de fato, ele é um dos primeiros a
dizer que as sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando para trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam não mais
por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea” (Deleuze, 1992:215-216).
Quando se afirma que a sociedade de controle aboliu
os muros das instituições sociais (família, escola, fábrica,
prisão, entre outras), está-se dizendo que o controle nessa
nova forma de sociedade pode ser realizado até mesmo ao ar
livre. Portanto, se utilizarmos as idéias desenvolvidas por
Michel Hardt, a partir de Deleuze, veremos que a era em que
vivemos caracteriza-se como a do controle, pois o sistema
capitalista teria alcançado sua forma política ideal que é inclusiva e ondulatória, funcionando com a dinâmica das instituições sociais, mas prescindindo delas. “O controle é,
assim, uma intensificação e uma generalização da disciplina, em que as fronteiras das instituições foram ultrapassadas, tornadas permeáveis, de forma que não há mais
distinção entre fora e dentro” (Hardt, 2000:369).
À medida que o capitalismo busca o alargamento de seus
limites, encontramos em Hardt uma noção para ilustrar o
quanto esse sistema necessita, para sua própria perpetuação, de uma forma de “inclusão diferencial”. Trata-se de
um processo de desterritorializações e reterritorializações
constante e contínuo, no qual se parte da idéia “politicamente correta” de que não há mais diferenciações no processo de entrada na dinâmica produtiva do mercado capitalista. Em princípio, todos são igualmente capazes de se
inserir no processo competitivo. É o próprio mercado que
vai selecionar e hierarquizar.
Nesse sentido, a hierarquização se dará no próprio convívio social. Nem todos estarão aptos a alcançar o que é
visto como modelo ideal a ser vislumbrado na dinâmica
capitalista. Considerando que a produção e o consumo são
os pilares mais importantes do sistema vigente, todos os
indivíduos com necessidades especiais, como a Síndrome
de Down por exemplo, serão considerados aptos a alçar
vôos competitivos mais altos quando se revelarem capazes de se aproximar da chamada normalidade. Aqueles que
não conseguirem entrar nessa disputa inerente à lógica
capitalista, poderão ser inseridos no mesmo patamar dos
“invalids” do filme Gattaca, sendo essa portanto uma forma mais sofisticada de exclusão social.
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CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES EM TORNO DO DEBATE CIENTÍFICO
espécie de matéria-prima, como espécie de mineral de que
se podem extrair elementos essenciais à vida da humanidade, especialmente à sua vida de desejo e às suas potencialidades criativas”.
HARDT, M. “Sociedade mundial de controle”. In: ALLIEZ, É. (org.). Gilles
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s/d.
E-mail da autora: [email protected]
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA
EDGARD DE ASSIS CARVALHO
Professor do Departamento de Antropologia, Coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade da PUC-SP
Resumo: O princípio responsabilidade abre a possibilidade de uma ética planetária fundada no religamento,
na compreensão, na magnanimidade e na resistência. Mediante estas práticas, fundadas na inseparabilidade
da cultura científica e da cultura das humanidades, coloca-se a possibilidade da restauração sustentável de
Gaia, mesmo que cenários do futuro encontrem-se ainda atrelados ao desenvolvimento unidimensional da
biotecnologia, da robótica e da neurotecnologia.
Palavras-chave: ética e ciência; mudança tecnológica.
A
cional-lógico-dedutivos e mítico-imaginários se
retroalimentassem mutuamente.
A insistência de Snow de que era preciso agir rápido e
repensar a educação em moldes menos especializados e
fragmentados, e isso do ensino fundamental à universidade, não encontrou eco em planejadores e gestores, que se
incumbiram de implantar o divórcio entre tecnologia e
humanismo, entre razão e desrazão. É bem verdade que o
termo cultura tem múltiplas acepções, que vão desde refinamento e sofisticação, até soberba e erudição. Se o conceito tivesse deixado de lado essas acepções e passasse a
ser identificado simplesmente com a práxis cognitiva planetária gerada por grupos sociais múltiplos, a distinção
entre cultura científica e humanista certamente cairia por
terra. É claro que quando olhamos de frente para esse planeta globalizado, que inclui e exclui por uma dialética
perversa e fóbica, batemos de frente na velocidade
unidimensional e irreversível do progresso, instalada a
partir da revolução mercantil do século 16, consolidada
com a revolução industrial do século 18 e solidificada com
a revolução digital do 20.
Opondo definitivamente magia e ciência, a idéia de
progresso ganhou força, passando a reprimir qualquer tipo
de cognição que não fosse regida pela causalidade e pelo
determinismo e não aspirasse atingir verdades paradigmáticas consensuais. O chamado paradoxo neolítico chega a parecer inocente quando se depara com a voracidade
cisão entre a cultura científica e a das humanidades permanece intocada até os dias de hoje. Produto da visão cartesiana e newtoniana que se
constituiu em paradigma do mundo ocidental, essas duas
culturas não se intercomunicam, cada uma vivendo às
custas dos escombros da outra. Malgrado os esforços de
múltiplas áreas do conhecimento em rejuntar saberes e
repensar o objeto complexo, essas iniciativas são dissipações, brechas que não conseguem abalar o sólido edifício
das dualidades instaladas e consolidadas no universo da
política, da economia e da própria ciência. Em 1959,
Charles Snow soube melhor do que ninguém avaliar os
efeitos deletérios dessa incomunicabilidade, ao afirmar que
“quando esses dois sentidos se desenvolvem separados,
nenhuma sociedade é capaz de pensar com sabedoria”
(Snow, 1995:72).
A existência de uma terceira cultura formada pelas ciências da sociedade, que se incumbisse de manter boas relações tanto com cientistas quanto com literatos, deixouse contaminar pelo estigma da separação. Com isso, o
panteon do conhecimento redividiu-se de novo, constituído
agora pelas ciências da natureza, pelas ciências da cultura e pelo imaginário presente nas artes, na literatura e na
poesia. Incomunicáveis, essas três galáxias foram contaminadas pelo desenvolvimento fantástico da tecnociência,
que selou de vez as mais variadas formas de dominação
do homem sobre a natureza, impedindo que itinerários ra-
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TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA
Essas potencialidades pervertidas das tecnologias ganham expressão máxima no sistema desigual de trocas que
atravessa o planeta em sua totalidade. Ao analisá-las, René
Passet (1998:65) afirmou que “os fluxos transfronteiriços
de mercadorias representam, em sua maioria, trocas inter
ou intra-firmas transnacionais”. Com isso, os EstadosNações não conseguem mais controlar a massa das mercadorias e isso porque “os capitais circulam mais fácil e
rapidamente do que as mercadorias” (Passet, 1998:65),
como se estivessem submetidos a estrutura virtual
invariante, situada além e aquém dos homens.
Essa “nova ordem mundial” inundou de desigualdades todas as sociedades sem distinção de longitude ou
latitude, aumentando os sem-emprego, os sem-terra, os
sem-teto. Todas estas ausências sociais, por vezes circundadas por uma vitimização e infantilização excessivas,
repercutem a cada dia na pauperização do trabalho e da
vida. Se deixadas a seu bel-prazer, conterão três possibilidades: ou o sistema se autodestrói, ou se recompõe
por soluções paliativas, ou se nega por uma utópica revolta civil acionada pela legião dos estarrecidos do planeta. Na verdade, não há como identificar nesse espaço/
tempo geopolítico aonde se localizam os novos inimigos do mundo, pois eles se encontram disseminados,
como um monstro de múltiplas cabeças, entre os setores
constitutivos das classes dominantes que detêm o controle do poderio nuclear, do narcotráfico, do crime organizado, da desfaçatez midiática e dos cinismos da representação política.
A world culture, expressão crítica utilizada por
Ramonet (1998), que deslocalizou unidades de produção
e aglutinou unidades de consumo conspícuo, gerou um
espaço econômico transnacional e transpolítico capitaneado pelos EUA, Japão, União Européia, mesmo que terrorismos, neonazismos, corrupções e até traições conjugais
empanem o brilho que o bloco pretende exibir, nem sempre com sucesso. Para que a reprodução dessa máquina
mortífera se amplie sem traumatismos, a comunicação e o
mercado passaram a ser os dois paradigmas estruturantes
do pensamento, incumbidos de aplacar os dissidentes e
incensar os prosélitos.
Essa pacificação e passividade tramadas nos gabinetes
do poder instituído vêm esbarrando em alguns problemas,
e isso porque a ampliação da insignificância do mundo
começa a exigir reflexões éticas sobre a ciência e a técnica. Em primeiro lugar, cabe pensar um pouco sobre o significado dessa palavra. Quem se incumbiu dessa tarefa,
de modo irretocável, foi Cornelius Castoriadis (1996). Não
que o controle da natureza apresentou nos tempos modernos. Mesmo que se assuma cognitiva e politicamente com
Claude Lévi-Strauss (1962) a inexistência de diferença de
natureza e grau entre os pensamentos mágico e científico,
a hipermodernidade preferiu concentrar-se apenas no
prometeísmo da ciência e da razão.
A noção de progresso parece andar em crise e, como
apontou Paolo Rossi, temas como a escravidão do homem,
a erosão da subjetividade, as extinções de espécies vegetais e animais retornaram à cena político-cultural de modo
obsessivo, sinalizando a urgência de uma tomada de posição diante dessa geopolítica do caos. Ao que tudo indica, “o que é moderno não coincide mais com o que é
humano” (Rossi, 2000:97). Esse antagonismo entre
modernidade e humanidade fez com que a condição humana passasse a contar pouco diante da hegemonia da
regulação das instituições, do narcisismo da política e da
arrogância da ciência. Por isso, “olhar para o futuro assemelha-se a uma viagem oceânica em frágeis caravelas”
(Rossi, 2000:130).
No contexto dessa viagem sem destino, a devastação
das águas, ares e terras espelha, de modo substantivo, a
fragilidade dessas caravelas imaginárias, cujos condutores são aqueles que ainda acreditam nas forças de conjunção que solidarizam, fraternizam e universalizam. Mesmo diante de mares bravios e da pirataria escondida em
potentes submarinos, essa consciência telúrica ampliouse consideravelmente a partir dos anos 70, consubstanciando-se em inúmeros encontros transnacionais que,
sem diabolizarem a noção de desenvolvimento, passaram
a postular que ele deveria ser norteado pela sustentabilidade. “O desenvolvimento é durável se as gerações futuras herdam um meio ambiente cuja qualidade seja pelo
menos igual ao das gerações precedentes” (Ramonet,
1998:7).
O ponto de partida de qualquer iniciativa regida pela
sustentabilidade requer uma crítica contundente à civilização tecnológica, impelindo indivíduos e sociedades a
se mobilizarem contra a violentação da vida e a desolação da terra. O planeta sinaliza um certo cansaço diante
de vacas loucas, águas contaminadas, dejetos tóxicos, catástrofes nucleares, andróides gênicos, máquinas espirituais e próteses corpóreas siliconadas. Ao que tudo indica, a mutação contemporânea, regida por uma taxa
ampliada de acumulação material e imaterial que encanta
os “donos do poder”, vem gerando um desencantamento
recalcado, cujos sintomas são visíveis a olhares mais complexos e sensíveis.
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
vinculados a elas, à infra-estrutura tácita de conceitos e
idéias que produziram e às ressonâncias reais e imaginárias que operaram. Mas é sempre bom relembrar que toda
essa herança cultural “é para as massas e não apenas para
intelectuais de torre de marfim” (Brody e Brody, 1999:25).
Revoluções científicas foi o nome dado a esse conjunto de alterações prodigiosas, produto de mentes inquietas, dominadas pela pulsão da descoberta. Se seu resultado foi mais visível na ampliação da parafernália
instrumental e mais oculto na planilha dos conceitos, o
fato é que mudaram o estilo do entendimento do mundo,
introduziram certezas e semearam incertezas por todo lado.
Com o humor de sempre, Freeman Dyson (1998:45) referiu-se a dois estilos contrastantes que cercam a fabricação científica: “a organização e a disciplina rígidas representadas por Napoleão, o caos e liberdade criativos
representados por Tolstoi. No mundo dos computadores,
Napoleão é o pesado mainframe da IBM: Tolstoi é o humilde Macintosh. A revolução da informática representou uma saída das ambições napoleônicas de Von Neumann
em direção à anarquia tolstoiana da Internet”. Mesmo que
Dyson credite à genética e à neurofisiologia o pódio científico do século XXI, napoleônicos e tolstoianos terão que
se unir para derrubar as fronteiras e entender a vida de
modo menos linear e mais interdependente, de modo a
superar os efeitos que tecnologias civis e militares vêm
provocando no crescimento das desigualdades. “O mal
pode ser visto em muitas partes do mundo, especialmente
nas grandes cidades das Américas do Norte e do Sul”
(Dyson, 1998:80).
A tecnologia, enquanto modo de produção cercado por
dispositivos instrumentais e de controle postos em ação
por predadores inventivos obstinados, criou uma forma
inquisitorial que saqueou os tesouros do mundo natural,
atirando-os nos compartimentos do poder. Essa cultura
fáustica, decadente e trágica, foi responsável pela “montagem de um mundo em miniatura, criado por nós, que se
moveria, tal como o Universo, graças à sua energia própria e obedecendo apenas à mão do homem” (Spengler,
1993:102). O questionamento feito por Oswald Spengler,
em 1931, sobre essa megamáquina, que exibia uma potência de domínio sem precedentes e atraía a fina flor de
indivíduos mais dotados cognitivamente, resumia-se em
saber quanto tempo seria ainda necessário para que sua
devoração e corrosão se concretizassem.
A irreversibilidade do tempo incumbiu-se de mostrar
que a racionalidade e a racionalização padronizaram as
relações humanas com velocidade máxima, como se as
se trata, apenas, de uma insignificância na cultura ou na
política, mas também no pensamento e nos pensadores acometidos pelo conformismo e pela apatia, incapazes de
enxergarem para além dos contornos do infinitamente
pequeno, especialistas nos fragmentos do corpo, da alma,
da sociedade, da mente.
Para Castoriadis, torna-se prioritário desentranhar forças psíquicas capazes de bater de frente no progresso instrumental, nos cães de guarda do poder e em todos aqueles que, ao lado dos tiranos institucionais, impedem a
emergência de uma criação imaginária radical. Por isso,
em sua cosmovisão, os profissionais da política são massacrados sem clemência e seus desmandos, corrupções e
narcisismos denunciados implacavelmente. Algum paradoxo insolucionável não conseguiu harmonizar conquistas democráticas e maravilhas científicas com a humanização da cultura. Ao contrário disso, ampliaram-se a
resignação e a impotência diante da fatalidade da crise,
sendo que a reunificação de cidadãos em torno de aspirações coletivas planetárias não se processou como se esperava. Diante da ampliação dos horrores políticos, econômicos e culturais produzida pelo século XX, o sistema
planetário sepultou paixões e utopias, substituindo-as por
desesperanças e conformidades.
Mesmo assim, é preciso resistir e criar condições de
autonomia e liberdade para o pensamento e para a ação.
Para dizer a verdade ao poder e às cintilações dele emanadas, não é mais possível pensar apenas como especialista, mas como um “outsider vigilante”, que questiona a
desumanização cultural. Como reitera Edward Said
(1996:33), é preciso experienciar cotidianamente a condição de “intelectual exílico, que não responde à lógica
da convenção, mas à da audácia”, que transcende os contornos sitiados de sua zona de saber e opta pela condição
de amador, preferindo “o risco da incerteza no domínio
público – uma conferência, um livro, um artigo – ao espaço fechado e controlado pelos expertos e pelos profissionais” (Said, 1996:43).
O amadorismo a que se refere Said exige intelectuais
polivalentes, universalistas e éticos, que enfrentem com
vigor e determinação as contradições do cenário planetário contemporâneo. Para isso, ciência e técnica devem ser
entendidas num amplo circuito de ambivalências, mesmo
que as maiores descobertas da ciência, como a gravitação
universal, a estrutura do átomo, a relatividade, o big-bang,
a mecânica quântica e a decifração do genoma, representem momentos irreversíveis que a história humana produziu sobre ela mesma. Por isso, queiramos ou não, estamos
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TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA
dos, mas de propor uma política de civilização (Morin e
Naïr, 1997) que redefina a vida em comum, entenda o
sapiens como meio, fim, objeto e sujeito da política e propicie boas notícias para Gaia. Uma desaceleração nos níveis tecnológicos, acoplada a uma planilha de precauções
ético-políticas, não seria impensável para uma renovação
de valores experimentais universalistas, que investissem
na conservação, na frugalidade, na preservação e se recusassem a reconhecer em Gaia um laboratório de experimentações mefistofélicas de cunho produtivista e inumano.
Uma mudança de escala nesse laboratório sem supervisores nomeados, fundada numa ética valorizadora da
convivência entre os seis bilhões de humanos que hoje
habitam o planeta, e que amanhã, por volta de 2025, somarão entre 7,3 e 10,7 bilhões, segundo os últimos dados
divulgados pela ONU, poderia vir a restaurar o sentimento
da totalidade e da harmonia, assim como a unidade entre
mente e matéria, entre ciência e vida tão desprezada ultimamente. Foi esse o tom utilizado por Tseard Zoethout
(1999:38) que, ao considerar Spinoza um filósofo da totalidade, afirmou que “uma pessoa tem de olhar o mundo
a partir do ‘ponto da eternidade’”. Essa maneira de olhar
é verdadeiramente uma arte de conhecimento que requer,
acima de tudo, intuição intelectual. Somente assim será
possível voltar a reconhecer que a totalidade nunca será
capturada pela soma das partes, porque implica sempre a
interconexão contraditória e indeterminada de todos os
eventos, sejam eles coisas ou idéias, fatos ou representações, amores ou desamores.
Esse sentimento de totalidade requer uma revolução
noológica que se defronte contra qualquer forma de colonização. Se esse processo histórico soube invadir as
alteridades a partir de 1492, submetendo-as às imposições
do dominador, a segunda chegada de Colombo é agora
representada pela biopirataria de culturas, plantas, animais.
Com a determinação que lhe é peculiar, Vandana Shiva
(1997) exemplificou essa colonização interior, referindose ao patenteamento de células e genes realizado pelos
próprios homens de ciência. Entre os patenteamentos celulares e os territoriais, é estabelecida apenas uma diferença de natureza. Se os últimos classificavam as culturas
não ocidentais como inferiores, pré-lógicas e, portanto,
passíveis de apropriação indébita, os primeiros classificam os iguais como privados de vida e direitos, porque
sofredores e desesperançados. “Terras e florestas, rios e
oceanos, a atmosfera como um todo foram colonizados,
erodidos, poluídos. O capital agora tem que se lançar para
novas colônias, para invadi-las e explorá-las, a fim de
palavras e as coisas dessem as costas para a segunda lei
da termodinâmica. Desse modo, individualidade e propriedade passaram a ser entendidas como sinônimas, e isso
porque a diminuição do quantum de energia per capita despendido nos processos de trabalho não permitiu a ampliação da criatividade, da liberdade e da autonomia. Como
acuradamente percebeu Herbert Marcuse (1999:103), “tal
Utopia não seria um estado de felicidade perene. A individualidade natural do homem é também a fonte de sua
aflição natural”.
Se o homem traz consigo a marca da felicidade e da aflição, do contingente e do necessário, do prazer e da dor, da
dominação e da dependência, constata-se que essa dialética
de ambivalências não permitiu a supressão do ‘cativeiro da
humanidade’, mesmo diante dos horrores cotidianos que o
planeta vem presenciando. É interessante constatar que,
tanto Marcuse quanto Spengler, mesmo situados em campos epistêmicos distintos, produziram essas reflexões entre 1931 e 1941, como que prefigurando, cada um a seu
modo, as conseqüências deletérias que o nazifacismo e o
nacional-socialismo do terceiro Reich provocariam na alma
da civilização planetária. Generalizou-se o mal-estar, embora nesse final milenar corações e mentes “eugênicas” se
incumbam de direcionar o futuro da Terra para onde bem
pretenderem. O homo-sapiens 2000 se aparenta a um ventríloquo acometido pela experiência da repetição e vacinado contra a experiência da criatividade. É possível que venha a ser geneticamente correto e esterelizado, embora
eticamente incorreto, discriminador e relativista.
Reinventou-se a natureza, computou-se o DNA, processou-se a informação em níveis surpreendentes, mas as
concepções mecanicistas não foram superadas, malgrado
as estruturas dissipativas, os fluxos de dispersão e as tendências reorganizatórias que cercam a impermanência de
todos os sistemas vivos. “Com as novas tecnologias, os
seres humanos assumem o papel de artistas criativos (…)
mas esse novo tipo de arte (…) é uma arte da imitação,
cheia de técnicas de cálculo racional, produção em massa
e personalização” (Rifkin, 1999:234). Caso a revolução
biotecnológica seja mesmo capaz de produzir uma reviravolta no sentido da existência, como acredita Jeremy
Rifkin, aprimorando os nexos da vida democrática em
escala ampliada, os riscos de uma entropia e de uma desordem generalizadas poderão vir a ser minimizados, desde
que o mito do progresso e o antropocentrismo dele decorrente seja colocado em seu devido lugar.
Não se trata mais de restaurar a carcomida querela entre antigos e modernos, ou entre apocalípticos e integra-
29
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
nela, para que seja possível exercitar a parcimônia diante
de apetites vorazes e incontrolados.
Torna-se crucial que assumamos com Jonas a necessidade da temperança antes que seja tarde demais. “Nós
podemos até chegar a reduzir a extensão da voragem e
voltar a viver com menos, antes que um esgotamento catastrófico ou a poluição do planeta nos constranjam a algo
pior que a temperança” (Jonas, 1999:415). Esse algo pior
já pode ser constatado em diagnósticos que detectam e,
de certa forma, naturalizam a destruição planetária. A
Nasa, por exemplo, já admite que gerações futuras possam concentrar-se em “células de sobrevivência”, nas quais
chips e tamagochis substituirão plantas e animais e um
banco espermático acabe de vez com as ambigüidades da
repressão sexual. Nessas cidades futuras, talvez só reste
aos homens supor que a vida exista em outros planetas e,
a partir daí, produzir uma terceira colonização, dessa vez
extraterrestre, que se exerceria sobre os sólos áridos de
Marte, ou os mares obscuros de Vênus (Santos, 2000:30).
O próprio diretor da agência espacial americana declarou
que o objetivo das missões, como a Mars Global Surveyor
e a Mars Express, reside na ampliação da fronteira humana (Ball, 2000). Se as suspeitas da existência vierem a se
concretizar como insistem os tecnocientistas, a voracidade da exocolonização redefinirá o conceito de vida, como,
aliás, já vem sendo ensaiado em encontros recentes que
rediscutem as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. “A vida é um mecanismo capaz de auto-replicar-se
e que evolui de forma darwiniana” (Ball, 2000:20).
Considerações dessa natureza costumam ser ainda entendidas como ficções científicas e, por isso, rotuladas
como acrimônicas e anódinas, constituindo-se em prefigurações e projeções de um futuro inglório que ninguém,
em sã consciência, deseja. Todo esse estranhamento diante
do mundo vem provocando irritações visíveis em pensadores como Peter Sloterdijk (1998), quando referiu-se à
perda do olfato dos teóricos diante das tendências globais
do processo civilizatório ocidental. Drogados pela ansiedade do sucesso e intoxicados pela cultura da distração,
eles não conseguem mais estabelecer a interdependência
entre vida, mundo e realidade. A “scienza nuova” da cidadania do mundo funda-se eticamente na formação de
“coalizões de atenção”, que lutem por uma qualidade
evolutiva ampliada que perceba o planeta como “base única
para todas as hordas, povos, nações e círculos culturais”
(Sloterdijk, 1998:364).
Se, para isso, for preciso reconhecer explicitamente o
fracasso do ser humano, que isso seja feito de uma vez. “O
garantir sua acumulação futura. Essas novas colônias são
os espaços interiores dos corpos das mulheres [e também
dos homens], plantas e animais” (Shiva, 1997:13).
Esse deslocamento estratégico da colonização passou
a exigir que a ética da vida ocupe cientistas e técnicos de
modo inabalável e definitivo. Hans Jonas (1990) que, desde
1979, dedicou-se aos contornos cognitivos do Princípio
Responsabilidade, foi mais do que enfático, ao advertir
que a civilização técnica carrega consigo uma responsabilidade metafísica, pelo menos “desde que o homem tornou-se perigoso não apenas para ele mesmo, mas para toda
a biosfera” (Jonas, 1990:261). A restauração da simbiose
homem/natureza é o primeiro passo a ser dado diante da
arquitetura do mal perpetrada por intelectos teórico-práticos. A nova obrigação de sujeitos éticos nasce dessa
agonia planetária considerada descartável por muitos. Essa
ameaça exige, antes de mais nada, “uma ética da conservação (…) do impedimento e não uma ética do progresso
e do aperfeiçoamento” (Jonas, 1990:266).
Para Jonas, qualquer ampliação do potencial do Fundus
técnico de uma sociedade traz consigo um fardo ético que
implica sempre avaliar que o fazer, o saber e o poder nunca constituem apenas um para-si, mas um para-os-outros.
“Sacamos hipotecas sobre a vida futura por proveitos e
necessidades presentes e de curto prazo e, no que concerne
a isso, por necessidades na maioria das vezes autogeradas”
(Jonas, 1999:411). Se o preço a pagar pela hipoteca é alto
demais para ser resgatado pelas gerações futuras, nossas
decisões prático-mundanas trariam para o proscênio ético uma necessária solidariedade inter-humana e isso porque “as conclamações à responsabilidade crescem proporcionalmente aos feitos do poder” (Jonas, 1999:412).
Foi preciso que o planeta se apavorasse com a destruição da biosfera para que riscos técnicos começassem a
ser avaliados e criticados por organizações não-governamentais, como a Greenpeace e a Anistia Internacional,
dentre outras, que lutam, com a força persuasiva que possuem, contra a desmesura que tomou conta dos donos do
poder, esses prometeus modernos para quem as ampliações da técnica são sempre entendidas como irreversíveis.
Sabe-se que a irreversibilidade sempre foi um problema
para um antropocentrismo decadente, sempre ignorante das
lições de vida oferecidas pela dinâmica da natureza. Maravilhados porque desceram das árvores, perderam o rabo,
copulam de frente e, mais do que tudo, porque falam, os
homo-sapiens se perderam no horizonte crepuscular de
uma existência prosaica demais. Demasiadamente humanos, precisam reencontrar-se com a natureza, diluírem-se
30
TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA
táfora criada por Mary Shelley em 1818 (1985) fosse
teletransportada para 2000, poder-se-ia supor que felicidade e virtuosidade são invariantes da alma e que a
tecnociência, por mais pretensiosa que seja, não tem o
direito de impedir que elas floresçam nas criações humanas, sejam elas reais ou imaginárias.
ser humano poderia até mesmo ser definido como a criatura que fracassou em seu ser-animal (…) e em seu permanecer-animal (Sloterdijk, 2000:34). Acusado de professar um
determinismo genético e totalitário, por problematizar algumas das conseqüências advindas da evolução biotécnica,
as novas regras do parque humano terão que polemizar sobre o velho humanismo antropocêntrico e reler a longa história das relações entre animalidade e humanidade, assim
como experienciar a incerteza das fronteiras entre as histórias da natureza e da cultura. O que está colocado em xeque é o caráter derrisório da noção de humanidade. A
humanitas não implica apenas amizade e entendimento, mas
também reconhecimento do poder de homens sobre homens.
“A história real da clareira (…) consiste, portanto, de duas
narrativas maiores que convergem em um perspectiva comum, a saber, a explicação de como o animal sapiens se
tornou o homem sapiens” (Sloterdijk, 2000:33) e, simultaneamente, demens.
Essa perspectiva comum requer um outro modo de pensar e fazer, uma aceitação da responsabilidade social destinada a impedir que a política do pior floresça. Esse é o
papel reservado a intelectuais capazes de identificar, no
largo espectro das tensões sociais, uma utopia social viável, uma arquitetura, ou seja, um paradigma da coerência
construtiva que recombine tensões e integridades, razões
e desrazões. Trata-se, em resumo, de agir e participar sempre que possível, mesmo que a perdição seja grande e a
tentação do refúgio paranóico maior ainda. A imagem do
cientista ambicioso, isolado da natureza e dos afetos, criador de criaturas, deve ser superada, para dar lugar ao cientista amoroso, capaz de fazer dialogar o sensato e o insensato que sempre marcou a aventura humana.
Com isso, talvez seja possível aplacar os monstros da
razão e perceber que a vida é bela, apesar das desavenças
e domesticações que a historialidade imprimiu ao cientista, compelindo-o a optar entre um racionalismo redutor e
um idealismo apaixonado. “Faça-me feliz e eu serei de
novo virtuoso” foi o apelo desesperado que o monstro
dirigiu a Victor Frankenstein para que o deixasse viver,
malgrado os ódios e desprezos que todos lhe dirigiam. O
criador não se deu conta que o monstro, considerado com
um fragoroso erro experimental, era o duplo dele mesmo.
Deixando-o sucumbir, devorou-se a si próprio e mergulhou definitivamente na infelicidade da hubris. Se a me-
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31
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
LIMITES E RUPTURAS NA ESFERA
DA INFORMAÇÃO
LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
Resumo: Controlar os consumidores e principalmente monitorar as potencialidades de cada uma das dimensões de suas vidas tornam-se uma exigência do próprio processo do capitalismo contemporâneo, impondo a
coleta e o tratamento de informações. Ora, se lembrarmos que uma parcela cada vez maior da vida e das atividades do homem contemporâneo tende a passar pelas redes, quem melhor colocado para acessar os seus dados
senão os provedores de acesso ao ciberespaço?
Palavras-chave: controle digital; informação e consumo.
N
o dia 1o de julho último, o jornal Los Angeles
Daily News publicou um artigo de David Bloom
intitulado: “Internet oferece voyeurismo em tempo integral”. Nele o jornalista relata como a vida privada
pode hoje não ser simplesmente vivida, mas exposta e encenada para um público de telespectadores que não se contenta mais com os programas de realidade na televisão,
nem com o sexo ao vivo dos sites de pornografia, mas quer
agora poder assistir a vida em tempo real (Bloom, 2000).1
Aprendemos, então, que há vários sites de Lifecam, com
nomes sugestivos: AspiringActresses.com, Crushedplanet.com,
TheRealHouse.com, CoupleTV, FirstApartment.com.
Neles, jovens que querem sair do anonimato, exibicionistas,
gente em busca de uma experiência diferente, estudantes,
aceitam viver suas vidas para as câmeras da web e interagir
com os fãs, em troca de parte da renda paga por assinantes
mensalistas, dividida com os proprietários dos sites. Dá para
pagar algumas contas e não precisar “ter de ser garçonete
sete noites por semana” – declara Lisa Nowicki, cujo cotidiano é bisbilhotado diariamente por cerca de quatro mil espectadores de todo o mundo que, segundo o proprietário do
site, mantêm uma janela aberta em seus computadores para
monitorar o que está acontecendo na vida dela, enquanto
vivem as suas próprias.
À experiência de Lisa e de tantos outros exibicionistas
da rede, valeria a pena acrescentar a de June Houston, relatada pelo jornal Le Monde (em 18 de novembro de 1997)
e analisada por Paul Virilio em La bombe informatique.
Como conta o pensador das tecnologias, essa americana
de 25 anos instalou 14 câmeras em pontos estratégicos de
sua casa para lutar contra os fantasmas que parecem
assombrá-la. Tais câmeras estão ligadas e conectadas à
rede para captar e transmitir aos visitantes do site Fly
Vision as aparições que porventura vierem a se manifestar. Graças a uma janela interativa, os “espreitadores de
fantasmas” podem alertar por e-mail a presença de algum
“ectoplasma”. “É como se os internautas se tornassem
meus vizinhos, testemunhas do que acontece comigo”, diz
June Houston, acrescentando: “Não quero que as pessoas
venham fisicamente ao meu espaço. Não podia portanto
receber ajuda externa, até que compreendi o potencial da
Internet” (Virilio, 1998:70).
É evidente que, aqui, não se trata de transformar o lar
num palco para a encenação da vida privada; mas sim,
como bem percebeu Paul Virilio, de torná-lo objeto de
uma televigilância diferente daquela a que estamos habituados. Com efeito, diz o pensador da tecnologia, não se
trata mais de se precaver contra a intrusão de ladrões, mas
de compartilhar as angústias e os medos com toda uma
rede, graças à superexposição do local onde se vive. Na
verdade, segundo Virilio, estamos diante da emergência
de um novo tipo de TELE-VISÃO, cujo objetivo não é
mais informar ou divertir a massa de telespectadores, mas
expor e invadir o espaço doméstico com uma nova ilumi-
32
LIMITES E RUPTURAS NA ESFERA DA INFORMAÇÃO
tológica. Isso fazia dele (...) um pesquisador extremamente
competente. (...) O dado relevante (...) era o fato de ele
ser um pescador intuitivo de padrões de informação: do
tipo de assinatura que um indivíduo inadvertidamente cria
na rede na medida em que vai dando seguimento ao ofício
mundano e, no entanto, infinitamente multiplex, de viver
numa sociedade digital. O déficit de atenção de Laney,
pequeno demais para ser registrado em algumas escalas,
fazia dele um zapeador natural de canais, indo de programa a programa, de um banco de dados a outro, de plataforma a plataforma, de um modo bem... intuitivo” (Gibson,
1999:32).
Laney é, portanto, mais do que um navegador competente; ele conjuga seu conhecimento dos processos informacionais a um déficit de atenção que na verdade é um
ganho. Assim como o psicanalista, que ouve seu paciente
com a atenção flutuante e por isso mesmo capta intuitivamente na trama da fala a falha de seu discurso e a irrupção
do desejo, Laney, zapeando na esfera digital, focaliza no
cruzamento dos padrões e na teia dos dados uma peculiaridade informacional, a diferença qualitativa que confere
novo relevo ao conjunto e conduz o investigador a túneis
de informação “que poderiam ser seguidos até um outro
tipo de verdade, outro modo de saber, bem no fundo de
minas de informação”. Essas singularidades, o internauta
chama “pontos nodais”.
É importante sublinhar que Laney trabalha para um
programa na rede, um certo tipo de noticiário que faz e
desfaz celebridades para um público perpetuamente faminto da sua vida íntima; na verdade, uma versão hiper
high-tech dessa imprensa sensacionalista que está crescendo e proliferando no Brasil. Ali o internauta integra a
equipe que se dedica aos aspectos mais privados das vidas dos ricos e famosos; e no exercício de sua função, uma
coisa começa a ficar clara para Laney: a mulher que ele
televigia descobre que está sendo controlada. Escreve o
narrador: “Alison Shires sabia, de alguma forma, que ele
estava lá, observando. Como se ela pudesse senti-lo olhando para o mar de dados que eram um reflexo da sua vida:
sua superfície feita de todos os pedaços que formavam o
registro diário de sua vida à medida que ficava registrada
na tecitura digital do mundo. Laney viu um ponto nodal
começando a se formar a partir do reflexo de Alison Shires.
Ela ia cometer suicídio” (Gibson, 1999:46).
O trecho acima merece algumas considerações. Em
primeiro lugar, convém notar que Laney não vê diretamente nem a imagem nem a performance de Alison Shires,
mas sim o diagrama, isto é, as linhas de força e as tendên-
nação capaz de revolucionar a noção de vizinhança. “Graças a esta iluminação em “tempo real”, escreve Virilio, o
espaço-tempo do apartamento de cada um torna-se potencialmente comunicante com todos os outros, e o medo de
expor sua intimidade cotidiana dá lugar ao desejo de
superexpô-la aos olhares de todos, fazendo que a tão temida vinda dos “fantasmas” seja para June Houston apenas um pretexto para a invasão de seu domicílio pela “comunidade virtual” dos inspetores, dos investigadores
furtivos da Internet” (Virilio, 1998:70).
Virilio vê nessa espécie de luz indireta, que devassa
todos os cantos da vida cotidiana de June Houston e de
todos os exibicionistas da Internet, a expressão de um processo mais amplo, generalizado, de superexposição de todo
tipo de atividade, no mercado global. Como se tudo precisasse ser mostrado e propagandeado incessantemente,
como se tudo pudesse ser observado e comparado a todo
momento. “Hoje, comenta Virilio, o controle do ambiente suplanta (...) em larga medida o controle social do Estado de direito e, para tanto, deve instaurar um novo tipo
de transparência: a transparência das aparências instantaneamente transmitidas à distância...” (Virilio, 1998:72).
A nova televigilância e esse novo tipo de transparência, porém, não são exercidas unicamente por meio da
transmissão de imagens digitalizadas das pessoas e de seu
ambiente doméstico, controlados à distância. Há um modo
muito mais sutil e perverso da vigilância eletrônica violar
a privacidade, método que prescinde da instalação de
câmeras no espaço domiciliar e até mesmo do consentimento do vigiado que se encontra superexposto. Trata-se
do cruzamento e processamento dos dados que cada um
de nós gera ao entrar, sair e transitar nos diversos sistemas informatizados e nas diversas redes que compõem a
vida social contemporânea.
Diferentemente dos exemplos mencionados anteriormente, o que será invocado agora para explicitar esse controle à distância foi extraído de Idoru, o último livro de
ficção científica de William. A escolha desse exemplo fictício é propositada: o que interessa é perceber por um casolimite a lógica de um processo que se encontra em franca,
e aparentemente irrefreável, expansão.
Colin Laney, o personagem central de Idoru, é um
internauta que gosta de ver a si mesmo como pesquisador. Mas não é um voyeur. O narrador descreve-o da seguinte maneira: “Tinha uma aptidão peculiar com a arquitetura de compilação de dados e um déficit de atenção
documentado medicamente que ele conseguiu transformar,
sob certas condições, num estado de hiperfocalização pa-
33
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
cia do usuário do ciberespaço, e principalmente do usuário brasileiro, que freqüentemente nem sabe da existência
dos cookies, esses pequenos bits de software plantados
em seu computador para coletar parte de seus dados pessoais, só encontra paralelo na ignorância generalizada sobre a relação estreita que se estabelece entre o controle
do acesso à esfera digital e o controle do acesso às informações do usuário.
Todos sabem que o capitalismo passa por uma verdadeira mutação, em virtude da aceleração tecnocientífica e
econômica que tomou conta do planeta e se converteu em
estratégia de dominação, em escala global. Diversos termos tentam enunciar essa passagem e capturar os sinais
dos novos tempos: era da informação, sociedade pós-industrial, pós-modernidade, revolução eletrônica, sociedade
do espetáculo, globalização, etc. Por outro lado, todos
pressentem que a cultura contemporânea está sendo rapidamente desmaterializada, isto é, digitalizada e reelaborada na esfera da informação. Analisando o processo no
campo artístico, Mark Dery, por exemplo, considera que
a cibercultura está prestes a atingir a “velocidade de escape”, essa velocidade em que um corpo vence a atração
gravitacional de outro corpo, como por exemplo uma nave
espacial quando abandona a Terra; em outras palavras:
Dery pensa que a cibercultura está prestes a romper o limite que a prende ao mundo geográfico, mundo da matéria. Como se o mundo virtual se desprendesse do mundo
atual, ganhando dinâmica própria (Dery, 1998).
Entre as muitas propostas de leitura do que está ocorrendo, há uma, recentíssima, que busca compreender o
impacto da aceleração econômica e tecnocientífica na relação fundamental da sociedade capitalista moderna: a
relação de propriedade. Trata-se do livro de Jeremy Rifkin,
The age of access, que explora as tendências suscitadas
pelo processo de digitalização no que está sendo chamado de “nova economia” (Rifkin, 2000).
Rifkin descobre que o papel da propriedade está mudando radicalmente e considera que as implicações de tal
mudança para a sociedade são enormes e de longo alcance. No seu entender, “A propriedade é uma instituição lenta
demais para ajustar-se à velocidade quase aberrante da
cultura do nanosegundo. A propriedade se baseia na idéia
de que a posse de um bem físico ou de parte de uma possessão num extenso período de tempo tem valor. ‘Ter’,
‘manter’, e ‘acumular’ são conceitos cultivados. Agora, entretanto, a velocidade da aceleração tecnológica
e o ritmo vertiginoso da atividade econômica freqüentemente tornam a noção de propriedade problemática.
cias que se desenham a partir do processamento dos dados que ela vai gerando enquanto vive. Laney faz uma
leitura desse diagrama, que torna a vida de Shires transparente para o internauta. Escreve o narrador: “Ele nunca
a havia encontrado, ou falado com ela, mas acabara conhecendo-a, ele achava, melhor do que alguém já a conhecera ou conheceria. Maridos não conheciam suas esposas deste jeito, ou esposas a seus maridos. Espreitadores
podiam aspirar a conhecer os objetos de suas obsessões
desse modo, mas nunca conseguiam” (Gibson, 1999:5354). A vida de Shires tornara-se transparente, mas segundo esse novo tipo de transparência apontado por Virilio:
a transparência das aparências instantaneamente transmitidas à distância. Laney olha o mar de dados que refletem a vida de Shires, olha essas aparências que são instantaneamente transmitidas à distância, à medida que vão
sendo registradas na tecitura digital do mundo. Laney olha
e lê – e é a leitura que faz das aparências transparência, é
a leitura que torna cristalina a evolução de uma vida, é a
leitura que anuncia por um ponto nodal a inflexão dessa
vida rumo à morte.
Para entender melhor o que se quer dizer, talvez convenha reproduzir as palavras do narrador quando descreve como Laney trabalha: “O ponto nodal estava diferente,
embora ele não tivesse linguagem adequada para descrever a mudança. Peneirou os incontáveis fragmentos que
haviam se aglutinado ao redor de Alison Shires em sua
ausência, procurando a fonte de sua convicção anterior.
Baixou as músicas que Alison havia acessado enquanto
ele estivera no México, tocando cada música na ordem
em que ela as havia selecionado. Descobriu que as escolhas haviam ficado mais positivas; ela havia mudado para
um novo provedor, Upful Groupvine, cujo produto incansavelmente positivo era o equivalente musical do Good
News Channel. Cruzando as despesas dela com os registros de sua financeira e seus clientes varejistas, obteve uma
lista de tudo o que havia comprado na última semana”
(Gibson, 1999:53).
Combinando intuição e análise dos padrões informacionais gerados nas compras, no consumo de músicas ou
na mudança de provedor, Laney capta mínimas mudanças na
conduta e no estado de espírito da mulher que observa. É claro
que estamos diante de um caso-limite. Mas talvez não fosse
exagerado afirmar que esse é o horizonte almejado e pouco a
pouco construído pela crescente colonização das redes
e a acelerada integração dos bancos de dados.
Alison Shires intui que está sendo observada; e Laney
intui que ela intui. Mas quantos são como ela? A inocên-
34
LIMITES E RUPTURAS NA ESFERA DA INFORMAÇÃO
Don Peppers e Martha Rogers, não se trata mais de tentar
vender um único produto para o maior número possível
de consumidores, mas sim de tentar vender para um único
consumidor o maior número possível de produtos, durante um longo período de tempo. Em outras palavras, é preciso poder acessar o consumidor e torná-lo cativo (apud
Rifkin, 2000:98).
Tendo em vista a nova perspectiva que se abria, os economistas e marketeiros começaram a calcular a existência do consumidor, concebendo-a em termos de experiências de vida traduzíveis em potenciais experiências de
consumo. É o que denominam “valor do tempo de vida”,
uma medida teórica de quanto vale um ser humano se cada
momento de sua vida for transformado em mercadoria de
uma ou outra maneira. Visando calcular o valor do tempo
de vida de um consumidor, projeta-se então o valor presente de todas as futuras compras contra os custos de
marketing e de atendimento investidos para criar e manter uma relação duradoura. Assim, estima-se por exemplo
que a fidelidade de um consumidor médio de um supermercado norte-americano vale mais de US$ 3,600 por ano.
Otimizar o potencial valor do tempo de vida do consumidor passa então a ser a prioridade máxima. Ora, é aqui
que a informação torna-se uma arma fundamental. Pois
como escreve Rifkin, “as novas tecnologias de informação e de telecomunicações da economia de rede tornam
possível determinar o valor do tempo de vida de uma pessoa. O feedback eletrônico e o código de barras permitem
que as empresas recebam continuamente informação atualizada sobre as compras dos clientes, fornecendo perfis
detalhados dos estilos de vida dos consumidores – suas
preferências alimentícias, guarda-roupa, estado de saúde,
opções de lazer, padrão de suas viagens. Através de apropriadas técnicas de modelização computadorizada, é possível utilizar essa massa de dados brutos de cada indivíduo para antecipar futuros desejos e necessidades e mapear
campanhas direcionadas para engajar os consumidores em
relações comerciais de longo prazo” (Rifkin, 2000:99).
Controlar os consumidores e principalmente monitorar
as potencialidades de cada uma das dimensões de suas
vidas tornam-se uma exigência do próprio processo, impondo a coleta e o tratamento de informações. Ora, se lembrarmos que uma parcela cada vez maior da vida e das
atividades do homem contemporâneo tende a passar pelas redes, quem melhor colocado para acessar os seus dados senão os provedores de acesso ao ciberespaço? Como
observa Emilio Pucci, é preciso ter em mente que, se por
um lado as redes oferecem um enorme fluxo de informa-
Num mundo de produção flexível, de contínuas inovações
e upgrades, e de ciclos de vida da produção cada vez mais
curtos, tudo se torna quase imediatamente ultrapassado.
Faz cada vez menos sentido ter, manter e acumular numa
economia em que a mudança é a única constante” (Rifkin,
2000:6).
Na estratégia da aceleração, parece que não vale mais
a pena possuir. Com efeito, observando a performance das
empresas e a conduta dos consumidores, Rifkin percebeu
que tanto umas quanto os outros tendem cada vez mais a
substituir a propriedade pelo acesso, a substituir a relação de compra e venda pela relação de fornecimento e uso.
Isso não significa porém que a propriedade será questionada ou abolida na nova era que Rifkin anuncia, a Era do
Acesso: a propriedade continua existindo mas é muito
menos provável que seja trocada em mercados. Em vez
disso os fornecedores, ou provedores, como se diz na nova
economia, mantêm a propriedade e alugam, fazem leasing
ou cobram uma taxa de admissão, uma assinatura, uma
mensalidade para o seu uso no curto prazo. A transferência de propriedade entre vendedores e compradores dá
então lugar ao acesso a curto prazo entre provedores e
clientes operando numa relação de rede (Rifkin, 2000:4-5).
Rifkin define os novos tempos da seguinte maneira: “A
Era do Acesso é definida, acima de tudo, pela crescente
transformação de toda experiência humana em mercadoria. Redes comerciais de toda forma ou tipo tecem uma
teia em torno da totalidade da vida humana, reduzindo cada
momento da experiência vivida à condição de mercadoria. Na era do capitalismo proprietário, a ênfase recaía na
venda de bens e serviços. Na economia do ciberespaço, a
transformação de bens e serviços em mercadorias tornase secundária face à transformação das relações humanas
em mercadorias. Numa nova e acelerada economia de rede
em permanente mudança, prender a atenção dos clientes
e consumidores significa controlar o máximo possível do
seu tempo. Passando das unitárias transações de mercado, que são limitadas no tempo e no espaço, para a
mercantilização de relações que se estendem abertamente
no tempo, a nova esfera comercial garante que parcelas
cada vez maiores da vida diária fiquem presas no final da
linha” (Rifkin, 2000:97).
Com a Era do Acesso, dá-se portanto uma mudança de
perspectiva que traz para o centro da atividade econômica o controle do tempo do consumidor. O consumidor não
é mais um alvo do mercado, ele torna-se o próprio mercado, cujo potencial é preciso conhecer, prospectar e processar. Pois como argumentam os consultores de marketing
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
artigo 12: “Ninguém será sujeito a interferência na sua vida
privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo homem tem
direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.”
Finalmente, seu artigo 19 enuncia: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a
liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber ou transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”
A esses dispositivos legais, veio acrescentar-se, em
julho de 1996, uma lei que regulamenta o inciso XII do
artigo 5o da Constituição, mais especificamente a interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou
telemática. Mas tal lei, que visava principalmente a questão da escuta telefônica, nada diz sobre todas as ações e
práticas que são objeto de nossa atenção nesta conferência. Na verdade, como a proteção constitucional à privacidade antecedeu as possibilidades técnicas de acesso e
manipulação dos dados a partir das redes digitais, há um
evidente vazio legal que aparentemente deixa os internautas brasileiros indefesos. Desde 1996, porém, tramitaram
tanto no Senado quanto na Câmara Federal projetos de lei
visando regular a prestação de serviço por redes de computadores, assegurar a privacidade dos usuários, combater os delitos informáticos, e normatizar a veiculação da
pornografia. Sua leitura, entretanto, sugere muito mais uma
preocupação em proteger o Estado e as empresas contra
os hackers do que a inviolabilidade do cidadão comum.
Tanto assim que um deles, o Projeto de Lei no 84, de 1999,
do deputado Luiz Piauhylino, propõe, no art. 16: “Nos
crimes definidos nesta lei somente se procede mediante
representação do ofendido, salvo se cometidos contra o interesse da União, Estado, Distrito Federal, município, órgão
ou entidade de administração direta ou indireta, empresa
concessionária de serviços públicos, fundações instituídas ou
mantidas pelo poder público, serviços sociais autônomos,
instituições financeiras ou empresas que explorem ramo
de atividade controlada pelo poder público, casos em que
a ação é pública incondicionada.”2 Ora, pode-se imaginar
que o cidadão comum dificilmente terá até mesmo a possibilidade de descobrir que foi ofendido.
Suponhamos, por exemplo, que um grande banco privado brasileiro se associe a um provedor global de acesso
à Internet. A parceria será evidentemente anunciada como
um ganho para os clientes, que poderão contar com serviços mais ágeis, tecnologias mais avançadas, etc. Mas como
não pensar que os milhões de clientes do banco são um
ativo interessantíssimo para um provedor que acaba de
ções no sentido provedor-usuário, por outro, preciosíssimos fluxos partem deste último para o gestor do serviço,
compostos sobretudo de dados sobre os hábitos e a identidade dos utilizadores (Pucci, 1995:48). Por outro lado,
se acessar e processar as informações dos usuários é quase uma decorrência natural das atividades dos provedores, a
recíproca não é verdadeira: é muito difícil que o internauta
comum tenha meios de acessar as informações das empresas
que não estão destinadas à divulgação.
Desde que se explicitou a estreita relação entre acesso
ao ciberespaço e acesso aos dados do usuário, temos assistido a um duplo movimento. No plano econômico instaurou-se a corrida do capital global pelo controle e colonização das redes, estratégia que consistiu num primeiro
momento em promover a privatização das telecomunicações para, numa segunda fase, assegurar a privatização
de todo o campo eletromagnético, o que está em vias de
acontecer. Mas por outro lado, no plano jurídico-político, a possibilidade de extensa e intensa exploração das
informações sobre o usuário colocou em questão o impacto das novas tecnologias sobre a cidadania e a democracia, uma vez que ficavam abalados o direito à privacidade e a liberdade de informação.
A responsabilidade pelas discussões sobre a criptografia, o clipper chip e a assinatura eletrônica, segundo
alguns, é uma ameaça à cidadania e à democracia; outros
acreditam que a questão da segurança, do sigilo e da proteção dos dados no ciberespaço interessa principalmente
às empresas, porque transações confiáveis com o dinheiro eletrônico exigiriam um “sujeito virtual autêntico”
(Marchisio, 1996:143 e ss.).
Qual é a vulnerabilidade do cidadão brasileiro diante
do poder das grandes corporações e do Estado que podem acessar e manipular seus dados capturados nas redes
digitais?
O artigo 5o da Constituição protege a privacidade e a
liberdade de informação: o inciso X declara invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas; o XI, sua casa; o XII, o sigilo de sua correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas; o XIV assegura a todos o acesso à
informação e resguarda o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; o XXXIII garante a todos
o direito a receber dos órgãos públicos informações de
seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma em seu
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LIMITES E RUPTURAS NA ESFERA DA INFORMAÇÃO
de leucemia e foi se tratar no centro médico da Universidade da Califórnia; lá tiraram-lhe o baço e, sem seu consentimento, extraíram do material removido uma linhagem
de células que foi imortalizada, porque continha uma verdadeira mina de ouro para a pesquisa sobre determinadas
formas de câncer. Em 1984, as informações genéticas foram evidentemente patenteadas pela equipe médica e em
seguida comercializadas para o laboratório suíço Sandoz;
em 1990, seu valor chegava a algo perto de três bilhões
de dólares. Descobrindo o que ocorrera, Moore moveu um
processo reivindicando o direito às suas células; isto é:
reivindicando a “legítima propriedade” sobre seus “bens
corporais”.
Os advogados dos médicos argumentaram que o DNA
das células de Moore não era uma parte dele, sobre a qual
ele tivesse o poder extremo de dispor durante a sua vida.
Comentando o argumento, o jurista francês observa: “Isto
significa que do ponto de vista microbiológico, quer dizer do ponto de vista dos componentes do gene, não haveria mais indivíduo enquanto tal. Para dizer as coisas
cruamente, a pessoa humana não existiria nos segredos
de suas células. Vejamos o deslocamento: não se trata mais
de saber se uma pessoa tem ou não um direito sobre suas
células, mas de sustentar que ela não tem existência em
suas células. Assim, por um lado, nada se oporia a que
elas sejam postas à venda, e por outro, uma vez desprovidas de qualquer personalidade, “elas não teriam mais proprietário”. Na lógica do direito de propriedade, continua
Bernard Edelman, tal argumento pesava pouco. Com efeito, pouco importava que Moore existisse ou não em suas
células, já que era proprietário delas. O direito de propriedade não quer saber se o objeto sobre o qual ele se
aplica é o suporte da identidade do proprietário! Pensando bem, esse expediente até tendia mais no sentido do direito de propriedade: pois se no DNA não há nada de humano, é porque a célula é uma coisa e, conseqüentemente,
pode ser objeto de propriedade. Portanto, teria sido lógico que o tribunal descartasse esse argumento fazendo valer, precisamente, que o poder extremo de dispor é o direito do proprietário. E no entanto, muito curiosamente,
ele recuou diante dessa lógica” (Edelman, 1999:298-299).
O tribunal considerou que o homem possui o direito
imprescritível à sua identidade e pouco importa que esse
direito seja protegido pela noção de privacy (direito de
personalidade), de property (direito de propriedade) ou
de publicity (direito de tirar proveito dos “atributos” da
personalidade: voz, imagem, etc.) desde que a proteção
seja efetiva. No caso Moore o tribunal concluiu que “um
aportar no país? Como não pensar na potencial sinergia do
cruzamento de seus cadastros com o banco de dados do provedor? Como não imaginar que essa soma de 1 + 1 = 3, pela
proliferação de novos negócios que ela pode propiciar? E
como acreditar que tanto os clientes do banco quanto os usuários do provedor ficariam sabendo, caso seus dados pessoais fossem usados sem seu prévio consentimento?
Num país de capitalismo selvagem como o nosso, onde
a cidadania nem chegou a ser plena e já está em vias de
desmanche, é de se suspeitar que nossa vulnerabilidade
seja grande e será ainda maior. Basta evocar um exemplo, colhido sem esforço: o jornalista Josias de Souza
publicou recentemente, na Folha de S.Paulo, que no início deste ano era possível comprar em São Paulo, por
apenas R$ 4.000, o banco de dados da Receita Federal de
1996, contendo as informações sigilosas de 11,5 milhões
de brasileiros – 7,6 milhões de pessoas físicas e 3,9 milhões de empresas! Renda, faturamento, ocupação, ramo
de atividade, patrimônio, endereços, números de telefones, tudo vendido em CDs, para festa do marketing e da
mala-direta. O banco havia sido roubado no início de 1997
dentro da própria Serpro, e ao que tudo indica por funcionários graúdos da empresa (Souza, 2000: A-13). Quem acredita ser possível responsabilizar o Estado por essa gigantesca
violação, que em qualquer país sério teria no mínimo provocado uma crise política e o corte de algumas cabeças? Podem os contribuintes exigir um ressarcimento por danos que
eles não têm condições de comprovar e muito menos
contabilizar, mesmo quando desconfiarem que suas informações estão sendo criminosamente utilizadas?
O problema é muito mais complexo do que parece e
comporta muitas dimensões. Não é só o cidadão que, reduzido à condição de consumidor cativo, fica superexposto
e tem a sua privacidade violada. Na verdade, na nova economia, a própria existência do indivíduo é posta em questão. Aqueles que processam a sua vida descendo a níveis
microscópicos não o concebem mais como sujeito, mas
sim como gerador de padrões informacionais que é preciso manipular; aos olhos de quem opera com o valor do
tempo de vida, o indivíduo dissolve-se em fluxos de dados. Entretanto, não é só no plano da informação digital
que o indivíduo desaparece, – também no plano da genética assistimos à sua desintegração. Pois como observa Paul
Virilio, o individuum, literalmente o que é indivisível, deixa
de sê-lo no plano molecular.
Basta lembrar o caso Moore, estudado por Bernard
Edelman em La personne en danger. Como se sabe, em
1976, John Moore soube que era portador de um tipo raro
37
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
“interioridade” do indivíduo, como abertura dos grandes
meios de confinamento que haviam sido estudados por
Foucault, e a sua substituição por novas formas de controle aberto. “As sociedades disciplinares têm dois pólos,
escreve Deleuze: a assinatura que indica o indivíduo, e o
número de matrícula que indica sua posição numa massa.
É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre
os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e
individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles
sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada
membro do corpo (...). Nas sociedades de controle, ao
contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem um
número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que
as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de
ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da
resistência). A linguagem numérica do controle é feita de
cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição.
Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os
indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”.
(Deleuze, 1992:222).
Este artigo teve por título Limites e Rupturas na Esfera
da Informação. Mas agora, ao terminar de escrevê-lo, percebe-se que ele é impróprio. Diversas rupturas operadas
na esfera da informação foram aqui apontadas; entretanto,
não se pode dizer o mesmo dos limites. Muito ao contrário, creio que o poder de intervenção da tecnociência e da
economia sobre o corpo e a mente do indivíduo, e até mesmo sobre a própria natureza humana, parece ilimitado.
paciente deve ter o poder extremo de controlar o que vai
ser de seus tecidos. Admitir o contrário abriria a porta a
uma invasão maciça de sua privacy e de sua dignidade em
nome do progresso médico.”
Mas como bem observa Bernard Edelman tal conclusão, ao reconhecer o direito de personalidade, parece entrar em contradição com o direito de propriedade: “Na lógica da propriedade, escreve o jurista, as células são coisas,
“bens mobiliários corporais”. Não é de se espantar então que
se possa negociá-las, transferi-las, lucrar com elas. Mas na
lógica da privacy, as células exprimem a identidade da pessoa. Ora, o homem não pode se vender, sob pena de reduzirse ao estado do escravo, e as células deveriam ficar fora do
comércio jurídico. No entanto, o tribunal parece não ter
tido dificuldade alguma em combinar o direito de propriedade com o right of privacy. Como compreender essa
conciliação?” (Edelman, 1999:299-300).
Edelman demonstra que a possível contradição foi resolvida pelo direito de publicidade, que confere ao indivíduo a possibilidade de explorar sua imagem, seu personagem, e permite que seus atributos possam adquirir o
valor de um “bem”, como uma marca ou uma grife, por
exemplo. Em outras palavras: a imagem do indivíduo torna-se um produto relativamente independente da pessoa
que ela representa: de um lado, conserva algo de sua origem, de outro, leva sua vida comercial de modo independente. Assim, o tribunal tratou as informações genéticas
de Moore como a imagem – suas células são ao mesmo
tempo a pessoa enquanto privacy e a pessoa enquanto
publicity, isto é, enquanto pessoa que pode ser comercializada. Por isso Edelman concluirá que o tribunal resolve
a contradição denegando-a: “O direito de propriedade
sobre os produtos de seu corpo constitui o corpo como
escravo; em contrapartida, a pessoa não é senão o que
permite ao sujeito colocar-se em regime de exploração. O
right of publicity está prestes a absorver o right of privacy;
o mercado absorve a subjetividade” (Edelman, 1999:302).
Traduzido em informação digital e genética, o indivíduo torna-se divisível, ou para usar o termo empregado
por Gilles Deleuze, “dividual”. O sujeito não é mais modelado de uma vez por todas mas sim permanentemente
modulado, segundo uma nova lógica de dominação que
nos faz passar da sociedade disciplinar para a sociedade
de controle, segundo a expressão cunhada por William
Burroughs e emprestada por Deleuze.
É interessante observar como para o filósofo a passagem de uma sociedade a outra se expressa como crise dos
espaços fechados, inclusive o espaço doméstico e a
NOTAS
Conferência apresentada na 52a Reunião da SBPC, realizada na Universidade
Nacional de Brasília, dia 13 de julho de 2000.
1. Ver: The New York Times News Service em português, www.uol.com.br
Tradução de Déborah Weinberg.
2. Projeto de Lei no 84, de 1999. http://infojur.ccj.ufsc.br/arquivos/informaticajuridica/
normas/projetodelei84.htm
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GIBSON, W. Idoru. São Paulo, Conrad Livros, 1999 (Trad. de Leila de Souza
Mendes).
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LIMITES E RUPTURAS NA ESFERA DA INFORMAÇÃO
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Cibernauti – Tecnologia, comunicazione, democrazia. Roma, Castelvecchi,
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VIRILIO, P. La bombe informatique. Paris, Galilée, 1998.
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
BIOTECNOLOGIAS, CLONES E QUIMERAS
SOB CONTROLE SOCIAL
missão urgente para a divulgação científica
MARCELO LEITE
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo, jornal do qual foi também ombudsman, e autor do livro Folha Explica: Os alimentos transgênicos
Resumo: A polêmica no Brasil sobre a regulamentação dos alimentos transgênicos costuma ser interpretada à
luz da dicotomia de atitudes entre Estados Unidos e Europa. Pesquisas de opinião recentes revelam, no entanto, um quadro muito mais matizado, tornando essas categorias em grande medida irrelevantes para a compreensão da controvérsia brasileira. A divulgação científica pela imprensa pode contribuir para aumentar o
grau de objetividade desse debate, mas se encontra tolhida por deficiências diversas, do baixo grau de informação científica do público à sua própria incapacidade de problematizar a apresentação ideológica da
biotecnologia.
Palavras-chave: biotecnologia; alimentos transgênicos.
A
triz perturbadora de hábitos e convenções em vários domínios da vida social: economia, direito, saúde, ambiente, reprodução e alimentação. Mais que a capacidade de
manipular as letras do código hereditário de plantas, animais e homens, a engenharia genética se notabiliza pelo
poder de pôr em crise representações basilares sobre o que
seja humano e natural, impondo ao mundo seus clones e
quimeras (como pés de milho que produzem hormônio de
crescimento humano e cabras que secretam proteínas da
teia de aranha no próprio leite).
Não parece estranho, portanto, que surjam do público
as reações mais adversas diante da admirável nova biologia. A repulsa aos alimentos transgênicos parece ser apenas o topo visível de uma profunda desconfiança, alimentada pela percepção de que a fronteira entre natureza e
cultura – que, diga-se, sempre foi móvel e historicamente
determinada – está sendo retraçada não tanto sob os ditames de uma ciência pura e desinteressada, mas sim, predominantemente, sob interesses daquilo que se poderia
denominar “complexo industrial-biotecnológico”, a exemplo do complexo industrial-militar que movia economia e
pesquisa nos anos 60 e 70 (além de toda uma literatura de
crítica sociológica). Defensores das biotecnologias (entre eles autoridades reguladoras que deveriam manter
maior distanciamento), no entanto, tendem a atribuir a
resistência da opinião pública à ignorância, o que a tornaria vulnerável a argumentos ditos “emocionais” esgrimi-
engenharia genética e outras biotecnologias ocupam hoje o lugar central na representação social
da ciência, a ponto de se tornar corrente a opinião de que este século – ou talvez o próximo – ficará
conhecido como o Século da Biotecnologia. Ela aparece
para o público como o próprio paradigma da tecnociência,
o estágio atual da pesquisa que, diferentemente do século
19, faz da investigação científica o motor mesmo do avanço
técnico, deitando por terra o sistema de dicotomias que
dava solidez à sua representação tradicional: ciência vs.
técnica; natureza vs. sociedade; biologia vs. tecnologia.
Uma ciência que não se limita a explicar coisas, mas já o
faz para modificá-las e mobilizá-las no processo de produção.
O potencial que dissolve valores e representações encerrado na engenharia genética parece inesgotável. Para
a marcha lenta da esfera pública, os anos 80 e 90 estão
repletos de controvérsias públicas e jurídicas desencadeadas por movimentos bruscos e imprevisíveis, oriundos dos laboratórios de pesquisa e das “companhias de
ciências da vida”, das quais os laboratórios dependem em
escala crescente. Do patenteamento de seres vivos, inaugurado nos Estados Unidos em 1980 com a decisão da Suprema Corte em favor de Ananda Chakrabarty e da General Electric, à presente disputa jurídico-regulatória em
torno do cultivo de alimentos transgênicos no Brasil e na
Europa, a genética se revelou em duas décadas uma ma-
40
BIOTECNOLOGIAS, CLONES E QUIMERAS SOB CONTROLE SOCIAL: MISSÃO...
1995, sem qualquer imposição de rótulos ou segregação
de produtos.
No Brasil, desde junho de 1998 a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTNBio) examinava um pedido de licença da empresa Monsanto para comercializar
a soja geneticamente modificada Roundup Ready, uma
variedade resistente ao herbicida Roundup, da própria
Monsanto. Em 24 de setembro do mesmo ano, apesar de
uma liminar sustando o plantio, obtida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e pela organização ambientalista Greenpeace, a CTNBio reiterou sua
autorização, deliberando que nada haveria a temer do ponto
de vista da biossegurança e deixando outros aspectos de
licenciamento a critério do Ministério da Agricultura. Era
a primeira licença que a Comissão concedia para cultivo
em escala comercial, ainda que prevendo um monitoramento sob sua égide, e ela serviu de rastilho para uma
saraivada de recursos e liminares. Com o concurso da Justiça, que vem sistematicamente tomando decisões contrárias à CTNBio e à Monsanto, o Brasil ainda se recusa a
seguir o caminho da Argentina, país que aprovara a novidade da biotecnologia sem pestanejar e hoje conta com
aproximadamente 80% de sua safra geneticamente modificada, mais que os Estados Unidos (mais de 50%) e o
Canadá (cerca de 10%).
O contraste entre os paradigmas norte-americano e
europeu, sobre a intensidade regulatória e a aceitação pelo
público, tem sido empregado com freqüência para tentar
explicar – e influenciar – o panorama brasileiro. Tal
dicotomia padece, entretanto, de um defeito crucial: falta-lhe o elemento dinâmico, ou seja, ela pouco tem a dizer sobre a evolução dessas tendências de um e de outro
lado do Atlântico Norte. Aqueles que se comprazem em
anotar uma atitude mais favorável dos reguladores e do
público norte-americano aos alimentos transgênicos podem deixar escapar que esse comportamento parece estar
em transformação, em prejuízo das culturas geneticamente
modificadas. Por outro lado, engana-se provavelmente
quem concluir que europeus têm uma opinião contrária,
por princípio, às manipulações genéticas, ou que só eles
vêem com desconfiança o desempenho de seus representantes no Estado encarregados de zelar pela saúde humana e do ambiente na introdução de novos alimentos.
Um quadro muito mais matizado emerge, na realidade
de uma série de quatro artigos baseados em extensas sondagens de opinião pública que foi publicada recentemente pela revista especializada Nature Biotechnology
(2000:935-947).
dos por organizações ambientalistas e de consumidores,
supostamente mais interessadas em confundir do que explicar.
Sem negar o papel exercido pela falta generalizada de
conhecimentos científicos básicos, em particular num país
como o Brasil, este trabalho tem por objetivo colocar em
dúvida essa visão um tanto míope e indicá-la como uma
das importantes razões pelas quais a biotecnologia agrícola encontra tanta dificuldade para tornar-se aceitável
para o público, seja ele brasileiro, japonês, europeu ou
mesmo norte-americano. A divulgação científica tem papel relevante a cumprir na abertura de um terreno comum
de neutralidade e racionalidade entre os campos opostos
e extremados, mas não pode por si só gerar o consenso
necessário, pelas limitações institucionais da imprensa e
dos centros produtores de pesquisa (que não são órgãos
políticos de representação), ou porque a própria imprensa se encontra prisioneira de mecanismos de reprodução
do que caberia chamar de ideologia cientificista. Esses
temas serão discutidos com base na polêmica dos já mencionados alimentos transgênicos e no entusiasmo com o
Projeto Genoma Humano.
TRANSGÊNICOS: MAIS INFORMAÇÃO NÃO
GARANTE MAIS APOIO
A descoberta de que os alimentos transgênicos estavam perto de chegar ao mercado acordou a opinião pública brasileira no segundo semestre de 1998. A perspectiva
de passar a ingerir vegetais geneticamente modificados
despertou vagos fantasmas, semelhantes aos da energia
nuclear: uma tecnologia incompreensível, fora de controle público e capaz de pôr em circulação ameaças invisíveis contra a saúde humana e o ambiente. A polêmica chegava com certo atraso, embora mais rapidamente do que
aos Estados Unidos, onde só se tornou tema de debate este
ano. Enquanto isso, na Europa e na Ásia, os transgênicos
literalmente pegavam fogo, com militantes ambientalistas incendiando campos cultivados com variedades de
organismos geneticamente modificados (os famigerados
OGMs), plantas “engenheiradas” para se tornarem resistentes a insetos ou herbicidas. Diante da forte reação pública, a União Européia (que havia autorizado a importação e o processamento da soja transgênica em 1996) havia
decidido, já em maio de 1998, introduzir regras para rotular alguns produtos contendo soja ou milho geneticamente alterados. Nos Estados Unidos, em contraste, culturas transgênicas já estavam aprovadas e em plantio desde
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
apresentado por esses dados é o de um público algo dividido, nos Estados Unidos. Embora ao se olhar apenas para
números acumulados seja possível argumentar que os Estados Unidos permanecem positivos sobre a biotecnologia,
de uma maneira geral, também não é incomum a resistência. (...) o prognóstico de um debate público mais acalorado sobre essas questões, nos Estados Unidos, parece consistente com tais resultados” (Priest, 2000:942).
O artigo que relata a sondagem realizada no Canadá
chega a conclusões similares quanto ao mito de que uma
atitude negativa em relação à biotecnologia seja fruto,
necessariamente, de desinformação: “Há controvérsia sobre o papel da ‘informação científica’ (scientific literacy)
em julgamentos sobre ciência e tecnologia; alguns sustentam que ela leva a julgamentos positivos, enquanto outros
sugerem o contrário. Os resultados deste estudo sugerem
que a posse de conhecimento sobre genética nem mesmo
participa desse cálculo – um ponto importante a ter em
mente no contexto da crença comum de que elevar a informação vá render apoio”, diz a autora. E acrescenta: “Ao
fiar-se numa ‘avaliação de risco com base científica’ estreitamente definida, as instituições reguladoras existentes tendem a descartar peremptoriamente essas preocupações mais amplas do público e/ou a encontrar dificuldades
para enfrentá-las quando emergem” (Einsiedel, 2000:944).
Pesquisas de opinião coordenadas em 16 países da
União Européia, entre 1993 e 1999, revelam igualmente,
como seria de se esperar, uma queda continuada no otimismo quanto à biotecnologia em geral. De 53% otimistas em 1993, passou-se a 50%, em 1996, e a 46%, em 1999
(Gaskell et alii, 2000).
Os dados mais relevantes, contudo, provêm de uma
distinção antes insuspeitada entre biotecnologia aplicada
à agricultura e biotecnologia aplicada à alimentação (diferenciação de todo cabível, uma vez que plantas transgênicas podem ser criadas para produzir substâncias de
interesse, vale dizer, para que funcionem como biorreatores, secretando em suas células proteínas como
hormônios humanos, ou que sirvam para a produção de
plásticos, por exemplo). Convidados a julgar sete aplicações biotecnológicas (testes genéticos pré-natais, terapias
genéticas, biorremediação ambiental, clonagem de células humanas, clonagem de animais, culturas transgênicas
e alimentos transgênicos) sob quatro parâmetros (utilidade, risco, aceitabilidade e apoio), os entrevistados fizeram surgir um padrão inusitado, em que a biotecnologia
agrícola aparece sob uma luz bem mais favorável que os
alimentos transgênicos em si: enquanto estes são percebi-
No caso dos Estados Unidos (Priest, 2000), apesar de
haver ainda maioria de entrevistados (59%) favoráveis à
biotecnologia, observa-se uma contínua erosão desse
apoio. Segundo o levantamento do International Food
Information Council (IFIC) citado no artigo, ele era de
63% em outubro de 1999, de 75% seis meses antes e de
78% em 1997. Em seu próprio levantamento, a autora do
trabalho na Nature Biotechnology encontrou 52,8% com
uma visão positiva dos desenvolvimentos na biotecnologia,
mas chama a atenção para o contingente nada desprezível
(30,1%) daqueles que acreditam na possibilidade de que
ela “torne as coisas piores”. Somente a energia nuclear,
entre os campos tecnológicos submetidos à avaliação dos
entrevistados, obtém tal grau de desconfiança (Gráfico 1).
Também parece carecer de fundamento empírico, a
julgar pelo perfil de opiniões coletadas, a convicção de
que níveis maiores de informação científica ou de escolaridade, assim como a dos norte-americanos, têm alto grau
de confiança nas autoridades governamentais reguladoras (só 39,5% disseram que elas estavam fazendo um bom
trabalho em relação à biotecnologia, o índice mais reduzido entre as várias instituições mencionadas na pesquisa, menos até do que a imprensa, com 44,4%).
A conclusão é que, mesmo na pátria da biotecnologia,
ela ainda poderá enfrentar tempos difíceis: “O quadro
GRÁFICO 1
Opiniões sobre Tecnologia
Estados Unidos — 2000
Fonte: Nature Biotechnology (2000:939).
42
BIOTECNOLOGIAS, CLONES E QUIMERAS SOB CONTROLE SOCIAL: MISSÃO...
GRÁFICO 2
Opiniões sobre Biotecnologia
União Européia — novembro de 1999
Fonte: Nature Biotechnology (2000:936).
dos como pouco úteis, muito arriscados, pouco aceitáveis
e indignos de apoio, aquela tem sua utilidade concebida
como ligeiramente superior ao risco que engendra e algo
aceitável, ainda que não chegue a despertar apoio (Gráfico 2). Dissociação comparável ocorre entre a clonagem
de células embrionárias humanas (células-tronco) para fins
terapêuticos, tida como aceitável em razão de potenciais
benefícios (como a esperada síntese de órgãos para transplante em laboratório ou o tratamento de doenças
degenerativas), e a clonagem de animais inteiros, considerada inaceitável.
Para os autores do trabalho, esses dados indicam que a
imagem mais problemática da biotecnologia na Europa
parece não decorrer de uma objeção de princípio, apenas
e tão-somente moral, mas sim de uma ponderação de riscos e benefícios, em cada caso: “O apoio maior para
clonagem de células e tecidos humanos, em relação à
clonagem de animais, sugere que considerações morais se
referem especificamente a aplicações particulares e não
necessariamente às técnicas de biologia molecular subjacentes. Mais ainda, a maior oposição a alimentos transgênicos, em comparação com culturas transgênicas, sugere que, para o público, a segurança alimentar pesa mais
que preocupações ambientais” (Gaskell et alii, 2000:935).
Recapitulando: é mais que questionável a dicotomia que
opõe um consenso norte-americano em favor da biotecnologia a um consenso europeu contra ela, assim como
interpretações de fundo culturalista, segundo as quais, por
um lado, os Estados Unidos seriam mais pragmáticos,
tecnófilos e confiantes em suas autoridades reguladoras, e
a Europa, por outro, mais filosófica, tecnofóbica e desconfiada de seus representantes (por conta dos traumas como
nos casos de contaminação de alimentos por dioxinas e pela
chamada “doença da vaca louca”, ou BSE). Isso para não
falar do contra-senso evidente de imaginar que o público
europeu seja mais desinformado e manipulável por organizações não-governamentais ambientalistas do que o norteamericano, ou que tudo se resume a uma conspiração protecionista, um capítulo a mais na guerra tarifária movida
por um continente que não dispõe da tecnologia OGM.
Enquanto essas categorias forem aplicadas para tentar explicar ou resolver o amarrado debate brasileiro sobre a
biotecnologia agrícola, ora estacionado nas barras da Justiça, pouco se avançará. É tarefa do jornalismo científico,
além de fornecer as informações básicas para entender a
tecnologia, livrar-se ele mesmo dessas imagens simplificadoras e oferecer ao público um quadro mais matizado e próximo da complexidade social e política da questão.
O PROJETO GENOMA E SUA IDEOLOGIA
No centro de gravidade da biologização da tecnologia
mencionada no início deste artigo encontra-se o Projeto
Genoma Humano (PGH), lançado em 1986. O projeto tem
sido, na última década, a parte mais visível da pesquisa
genética para o grande público, pois se tornou notícia
obrigatória ao introduzir a biologia no domínio da Grande Ciência (Big Science), com projetos de pesquisa – como
Manhattan e Apollo – em que os cientistas mobilizados
se contam em milhares e os dólares despendidos, em bi-
43
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
Crick que suporta o código-fonte dos genes. Suas características fundamentais seriam a capacidade de auto-replicar-se e de comandar a síntese de todas as proteínas
que compõem um organismo. Tal é o cerne do Dogma
Central formulado por Crick em 1958: a unidirecionalidade
causal, sempre dos genes para as proteínas, explicação
padronizada encontrável em quase toda reportagem de
divulgação sobre genética. Há algum tempo, porém, essa
imagem simplificadora vem sendo substituída na prática
científica por outra, que não faz tábula rasa da embriologia
e da biologia do desenvolvimento.
Não é preciso sair do campo da biologia molecular para
se dar conta de que o Dogma Central é insuficiente. Antes
de mais nada, porque os genes não agem de moto próprio,
mas apenas quando ativados por proteínas. No caso da
reprodução sexuada, a maquinaria reguladora incorporada ao novo ser pelo óvulo (também portador dos genes
maternos) é fundamental para que o DNA comece a ser
“lido”, ou seja, passe da potência para o ato. Em seguida,
a síntese em cascata de proteínas, obviamente já sob a influência do ambiente que circunda o organismo em desenvolvimento, passa a regular quais genes serão expressados, em que tipos de tecidos e em que fase do
desenvolvimento, ou situação. Um sem-número de mecanismos de controle e interação são também inerentes ao
próprio genoma, como os fenômenos da recombinação,
splicing, imprinting e interação gênica.
O desenvolvimento da tecnologia genética se encarregou de explicitar as limitações desse “deeneaísmo”, como
se poderia batizar a moléstia infantil do reducionismo
genético. Esse processo foi reconstruído por Evelyn Fox
Keller em seu livro Refiguring Life: “A metáfora-guia do
discurso da ação gênica é a dos genes como agentes ativos, capazes não só de animar o organismo mas também
de pôr em prática sua construção (…). Essa imagem dupla do gene, em parte o átomo dos físicos, em parte alma
platônica, foi imensamente produtiva para geneticistas,
tanto técnica quanto politicamente. (…) Inevitavelmente,
claro, esse modo de falar sobre genes também teve seus
custos, e esses custos se fizeram sentir mais obviamente
pelos embriologistas. (…) Ele não deixava nem tempo nem
espaço nos quais o restante do organismo, a economia
excedente do soma, pudesse exercer seus efeitos” (Keller,
1995: xiv-xv).
Esse “imperialismo genético” parece exercer, entretanto, uma função social e simbólica de maior alcance que a
de um mero discurso portátil para lobistas em busca de
fundos de pesquisa. Não são poucos os autores – como a
lhões. Não faltam para a mística do Genoma nem mesmo
os temperos ideológicos da concorrência e da dicotomia:
estatismo vs. privatização, adicionados à polêmica em maio
de 1998 com a criação da Celera, uma empresa com capital de US$ 200 milhões resultante da associação entre a
Perkin-Elmer (fabricante de equipamentos para laboratórios) e Craig Venter, cientista que se notabilizou no início
dos anos 90, tanto pela invenção de técnicas para o
seqüenciamento automático de DNA quanto por multiplicar pedidos de patentes para genes humanos. No final de
junho de 2000, Venter protagonizou, com o presidente Bill
Clinton, o premiê Tony Blair e o chefe norte-americano
do PGH oficial, Francis Collins, o midiático anúncio do
seqüenciamento completo do código genético humano
(embora a esperada publicação conjunta do “mapa”
genômico só deva acontecer nos próximos meses).
Apesar do nome Projeto Genoma Humano, que parece
restringir a empreitada à espécie humana, estão nela incluídos também os seqüenciamentos de organismos de
outras espécies, até como etapas preparatórias para alcançar o que já se chamou de Santo Graal da biologia. Esses
esforços permitiram decifrar dois primeiros genomas de
animais multicelulares, o do verme C. elegans (dezembro
de 1998) e o da mosca Drosophila melanogaster (julho
de 1999). Até no Brasil há esforços genômicos em andamento, dois deles com a alça de mira voltada para dividendos da biotecnologia na citricultura: os das bactérias
causadoras das doenças do amarelinho da laranja (Xylella
fastidiosa) – notabilizado em julho pela publicação de um
artigo científico na prestigiada revista Nature, que o destacou em sua capa – e do cancro cítrico (Xanthomonas
citri).
O verdadeiro esteio do Projeto Genoma Humano junto
à opinião pública é uma ficção muitas vezes realimentada
pelo jornalismo de ciência: a idéia de que o seqüenciamento completo das bases nitrogenadas do genoma de
uma espécie dará acesso à sua “essência”. No caso do
homem, ao que significaria ser humano e, assim, à chave
de todas as doenças, até mesmo do comportamento e de
seus distúrbios. Sem esse gênero de operação simbólica,
o Projeto Genoma dificilmente amealharia as verbas milionárias de que necessita. A sobrevivência do programa
depende da sobrevivência da concepção reducionista e
determinista dos genes como átomos plenipotentes da
natureza, inclusive da humana.
O núcleo duro dessa ideologia genética é o ácido
desoxirribonucléico (DNA), molécula em forma de dupla
hélice modelada em 1953 por James Watson e Francis
44
BIOTECNOLOGIAS, CLONES E QUIMERAS SOB CONTROLE SOCIAL: MISSÃO...
segurança que a ignorância científica é ainda mais chocante. Basta mencionar que, segundo pesquisa de opinião
do instituto Datafolha realizada com paulistanos poucos
dias depois do anúncio da finalização do seqüenciamento
do genoma humano (um evento que foi manchete dos principais jornais brasileiros e do mundo), apenas 4% dos entrevistados souberam definir com alguma correção o que
é genoma. Aqui, também, o grau de instrução não melhora muito o quadro de desconhecimento: mesmo entre
paulistanos com nível superior de escolaridade, meros 17%
foram capazes de oferecer respostas aceitáveis.
É o caso de perguntar-se, diante desses dados desalentadores, que condições o público brasileiro teria de
participar de um debate público sobre a pesquisa genômica,
se fosse chamado a isso. Ou, pior ainda, se fosse relegado
a acompanhar a distância, impotente e atordoado, um debate tão confuso e fechado quanto tem sido o da regulamentação das culturas transgênicas, que só ultrapassou as
paredes acanhadas da CTNBio porque ONGs como o Idec
(Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) decidiram
furar o cerco e se dirigir diretamente à opinião pública
(sendo por isso tachadas, paradoxalmente, de obscurantistas).
Outro debate que para todos os efeitos não está ocorrendo, ao menos não sob a força detergente da luz do sol,
é o do patenteamento de genes humanos relacionados com
a gênese e o funcionamento de tumores, seqüências de
DNA com provável e alto valor comercial que já começam a ser decifradas por um dos projetos genômicos financiados pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo) com dinheiro público, o chamado Genoma do Câncer. A lei brasileira proíbe patentes para
seres vivos ou suas partes, e muitos pesquisadores são doutrinariamente contrários ao privilégio de invenção para
dados da natureza (que podem, assim, ser objetos de descoberta, mas não da invenção pressuposta na idéia de proteção patentária), mas o fato é que essas patentes já estão
sendo requeridas por brasileiros no exterior.
A resposta para a questão apresentada acima é óbvia: é
mínima a condição do público brasileiro participar, de
maneira informada e democrática, de um debate como o
dos alimentos transgênicos, ou das implicações da pesquisa genômica. Seria uma falácia, no entanto, concluir
que essa constatação diminui, por menos que seja, seu
direito de tomar parte nessa discussão. Seria antes o caso
de dizer que esse estado de coisas cria uma obrigação para
todos os atores do processo, a começar pelos jornalistas:
fornecer informação compreensível, qualificada e contextualizada sobre as biotecnologias, da engenharia gené-
própria Keller, ou Dorothy Nelkin, Jeremy Rifkin e Richard
Lewontin – que o vêem articulado numa constelação política mais ampla e fundamental, que poderia ser resumida na idéia de naturalização do comportamento e das relações sociais, retomando o projeto sociobiológico – agora
com a âncora maciça da biologia molecular – demolido
numa polêmica feroz dos anos 70.
Inflada como foi em seu potencial por pesquisadores e
jornalistas, a genética se presta a toda sorte de interpretação fundada no exagero. Se é descabido buscar nesse
determinismo atenuado as mesmas raízes totalitárias das
quais brotou o eugenismo negativo e de massa da primeira metade do século, que alcançou seu paroxismo com o
nazismo, não seria um despropósito encontrar nele as sementes de uma nova e mitigada eugenia, positiva e talhada mais para os indivíduos. Em lugar de políticas de Estado voltadas para a melhoria uniformizante de contingentes
inteiros de população no futuro, organiza-se o acesso via
mercado a um upgrade de saúde e normalidade para os
próprios descendentes numa base individual. Esfuma-se,
dessa maneira, a distinção tão cara para os pioneiros do
Projeto Genoma, como James Watson, entre a eugenia e a
genética, definida esta como a atividade científica neutra
usurpada, naquela, por “mãos erradas”.
Mais que uma possibilidade aberta pela genética, para
os militantes do Projeto Genoma a prática que se poderia
batizar como ortogenia representa um imperativo de ordem ética. Assim como os entusiastas dos alimentos
transgênicos argumentam que contrapor-se a eles é abortar a solução tecnológica para o problema da fome mundial, deixar de pesquisar os meios para desenvolver
geneterapias seria um crime de lesa-humanidade. O aspecto fundamental a reter, aqui, é a invasão de um domínio da vida social antes reservado à interação e à comunicação pelos critérios e procedimentos “objetivos” e
“racionais” da tecnociência. O círculo ideológico, se puder ser rompido, só o será por uma problematização do
Projeto Genoma na esfera pública, em que a divulgação
científica possa oferecer contribuição destacada – embora por enquanto, no Brasil, atue ainda muito timidamente
nessa direção.
Uma das raízes da deficiência desse trabalho se encontra
na realidade educacional brasileira. O jornalismo científico, por aqui, tem de partir de um patamar muito baixo.
Se nos Estados Unidos já é alto o grau de desinformação
sobre as bases da genética, a ponto de apenas 21% de seus
cidadãos serem capazes de dar uma definição de DNA
(Augustine, 1998:1.640), no Brasil se pode afirmar com
45
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
tica à transgenia, da genômica à eugenia. São três os níveis de desafio a serem enfrentados simultaneamente pela
divulgação científica, representados por três patamares de
ignorância pública acerca dessa força cada vez mais produtiva da realidade social:
- A ignorância de base – É preciso um esforço considerável para esclarecer mesmo os conceitos mais basilares
da biologia e da genética, principiando com células,
cromossomos, mitose e meiose, etc., pois eles são ignorados mesmo entre intelectuais.
extraviada numa algaravia fundamentalista, e cada vez
mais distante do controle social que sobre ela deveria ser
exercido.
- A ignorância sobre o que está acontecendo – A pesquisa genética é um dos campos mais produtivos da
tecnociência, hoje, com publicação copiosa de trabalhos.
É fundamental acompanhá-la e cobri-la, jornalisticamente,
o que equivale dizer: com critério, hierarquizando e noticiando com destaque somente o que de fato for importante, sem se render ao gene do dia ou da hora.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NOTAS
E-mail do autor: [email protected]
Coluna Ciência em Dia: http://www.uol.com.br/folha/pensata/leite.htm
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hobbles society”. Science. Washington, AAAS, v.279, mar. 1998, p.1.6401.641.
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GASKELL, G. et alii. “Biotechnology and the European public”. Nature
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HABERMAS, J. “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia’”. In: BENJAMIN, W.;
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.W.e HABERMAS, J. Textos escolhidos.
São Paulo, Abril Cultural, 1980 (Os Pensadores), p.313-343.
- A ignorância das implicações – Investigar e expor as
conseqüências éticas, jurídicas e sociais das biotecnologias, do monopólio da produção de sementes à patente de seres vivos, da nova eugenia à discriminação genética no emprego e por seguradoras. É talvez a mais
complexa de resolver, pois dela padecem até mesmo os
jornalistas que cobrem ciência.
KELLER, E.F. Refiguring life. Metaphors of twentieth-century biology. Nova
York, Columbia University Press, 1995.
LEITE, M. Os alimentos transgênicos. São Paulo, Publifolha, 2000 (Folha Explica).
__________ . “Os genes da discórdia – Alimentos transgênicos no Brasil”. Política Externa. São Paulo, Paz e Terra, v.8, n.2, set. 1999, p.3-14.
LEWONTIN, R.C. The doctrine of DNA. Biology as ideology. Londres, Penguin,
1993.
Esse desafio triplo está posto para a divulgação científica, mas não só para ela. Especial atenção deveriam ter
para com ele as autoridades reguladoras, encarregadas que
são de defender o interesse difuso, pois dos interesses particulares da indústria biotecnológica pode cuidar ela mesma. Sem uma intervenção esclarecida e decidida da imprensa e do Estado, a questão da biotecnologia continuará
NELKIN, D. Selling science. How the press covers science and technology. Nova
York, W.H. Freeman, 1995.
PRIEST, S.H. “US public opinion divided over biotechnology?” Nature
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RIFKIN, J. The biotech century. Harnessing the gene and remaking the world.
Nova York, Jeremy P. Tarcher/Putnam, 1998.
WILSON, E.O. Consilience. The unity of knowledge. Nova York, Alfred A.Knopf,
1998.
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PROJETO GENOMA HUMANO E ÉTICA
PROJETO GENOMA HUMANO E ÉTICA
MAYANA ZATZ
Professora de Genética Humana e Médica do Departamento de Biologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo,
Coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, Membro da Academia Brasileira de Ciências
Resumo: Os avanços na tecnologia da biologia molecular têm sido tão rápidos que o número de testes genéticos disponíveis, tanto para características normais como patológicas, estão aumentando dia a dia. Enquanto
questões éticas a ela relacionadas estão sendo debatidas no âmbito acadêmico, os laboratórios estão disputando a possibilidade de desenvolver e aplicar testes de DNA, pois do ponto de vista comercial os interesses são
enormes. Neste artigo, ilustramos com alguns exemplos reais a complexidade de algumas situações e a dificuldade de se tomar decisões em benefício dos envolvidos, evidenciando a importância de se discutir questões
éticas com toda a sociedade.
Palavras-chave: biologia molecular; ciência e ética; pesquisa e mercado.
O
projeto genoma humano (PGH) tem como objetivo identificar todos os genes responsáveis por
nossas características normais e patológicas. Os
resultados a longo prazo certamente irão revolucionar a medicina, principalmente na área de prevenção. Será possível
analisar milhares de genes ao mesmo tempo e as pessoas
poderão saber se têm predisposição aumentada para certas
doenças, como diabete, câncer, hipertensão ou doença de
Alzheimer, e tratar-se antes do aparecimento dos sintomas.
As vacinas de DNA poderão eliminar doenças como a tuberculose ou a Aids. Os remédios serão receitados de acordo
com o perfil genético de cada um, evitando-se assim os efeitos colaterais. Paralelamente a esses avanços, inúmeras questões éticas já estão sendo discutidas e outras irão surgir. Mas,
por enquanto, as implicações éticas, legais e sociais dos
conhecimentos gerados pelo PGH em relação às características normais e patológicas e sua integração na clínica
médica têm sido discutidas no ambiente acadêmico. Na prática, entretanto, já estão sendo desenvolvidos testes genéticos para a escolha do sexo de futuros bebês e bancos de
DNA da população. Um número crescente de laboratórios
oferece testes de DNA para doenças hereditárias ou para
determinar se uma pessoa tem maior risco de desenvolver
certas doenças como câncer ou doenças cardíacas. Será que
as pessoas que se submetem a esses testes sabem o que
exatamente está sendo testado? O que significa um teste
positivo? O que significa um teste negativo?
Nos exemplos a seguir, veremos que a resposta a essas
perguntas não é fácil e exige amplas discussões dos pontos de vista social, médico e principalmente ético.
BANCOS POPULACIONAIS DE DNA: UM
BENEFÍCIO OU UMA AMEAÇA?
Em um artigo recente, Dawkins (1998) discute os prós
e os contras de se ter um banco nacional com os dados de
DNA (“fingerprint” ou impressões genéticas) da população. Seria um benefício ou uma ameaça? Na Inglaterra,
onde já existe um banco de DNA com mais de 300 mil
amostras, seus defensores argumentam que ele é muito
importante para identificar criminosos ou infratores da lei.
Mas quais seriam as possíveis implicações do uso negativo dessas informações, como por exemplo, em testes de
paternidade? No livro O animal moral: psicologia
evolutiva e vida cotidiana, Robert Wright sustenta que a
infidelidade tem razões genéticas mais fortes que os padrões morais. De acordo com essa hipótese, seria uma vantagem evolutiva para garantir descendentes “geneticamente
melhores”, isto é, a manutenção e propagação de genes
“melhores”. Realmente, estudos populacionais estimam
que a taxa de falsa paternidade seja da ordem de 10% e,
conseqüentemente, um grande número de homens acredita erroneamente que é o pai biológico de seus filhos, a
maioria sem nenhum questionamento. Qual seria o impacto
47
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
ças psiquiátricas ou distúrbios de comportamento. Descobriu-se, por exemplo, um polimorfismo ligado ao gene
transportador da serotonina que causa uma recaptação
diminuída dessa substância na fenda sináptica (Heil et alii,
1996). Trabalhos recentes confirmados na nossa população mostraram que pacientes com doença de Alzheimer
(Oliveira et alii, 1998) e distúrbios psiquiátricos (depressão maior, distimia e doença bipolar) diferem quanto a esse polimorfismo em comparação com controles
normais. Em um estudo muito interessante realizado na
Noruega verificou-se que, entre os alcoólatras, aqueles
que se tornam agressivos sob o efeito do álcool também diferem dos não-agressivos em relação a esse polimorfismo.
Trabalhos recentes em modelos animais têm mostrado
que poderiam existir genes que levam ao alcoolismo ou à
dependência de drogas, pois enquanto alguns se tornam
dependentes outros têm aversão às mesmas substâncias
(Crabbe et alii, 1994; Palmour et alii, 1997). O mesmo
comportamento já havia sido observado em humanos,
uma vez que um estudo realizado em um grupo de voluntários verificou que a injeção de heroína, em teste cego,
provocava uma reação de prazer em alguns e de aversão
em outros.
Outros trabalhos muito polêmicos sugerem que o
homossexualismo masculino (Hu et alii, 1995), o “bomhumor” e o otimismo também teriam influências genéticas. Segundo os autores, os genes do “bom humor”, por
exemplo, atuariam no metabolismo das dopaminas ou
serotoninas (Hamer, 1996). Enquanto os marcadores genéticos responsáveis pelo comportamento humano continuam sendo pesquisados, a questão central é o seu o uso
para identificar traços de personalidade desejáveis ou não.
E novamente as perguntas: Os indivíduos com predisposição genética para o alcoolismo ou para a dependência
de drogas podem ser julgados culpados? O que são características indesejáveis? Agressividade? Preguiça? Homossexualismo? Mau humor? Os indivíduos portadores de
genes “de distúrbios de comportamento” serão mais tolerados ou discriminados? Por outro lado, se soubermos que
o mau humor tem uma explicação biológica teremos maior
compreensão com as pessoas birrentas e constantemente
mal-humoradas?
se, a partir de um banco de DNA da população, os “supostos
pais” e seus filhos soubessem a verdade ou tais informações
fossem utilizadas para chantagear as pessoas envolvidas?
Por outro lado, um número crescente de genes com
suscetibilidade para algumas formas de câncer, doenças
cardíacas ou doenças neurodegenerativas de início tardio
(como mal de Alzheimer) está sendo identificado. As novas tecnologias que vêm sendo introduzidas permitirão,
em pouco tempo, a identificação de centenas de genes “patológicos” em uma única reação. É inquestionável que as
companhias de seguro-saúde e seguro de vida teriam o
maior interesse em obter essas informações, isto é, saber
que doenças teremos risco de desenvolver e a data prevista da nossa morte. E os nossos empregadores também não
teriam interesse em obter tais informações sigilosas? A
questão é: seremos capazes de manter o caráter confidencial de nosso perfil genético? Poderemos não concordar
em nos submeter a um teste de DNA? Para aqueles que
acreditam que implementar um banco de DNA da nossa
população ainda é uma realidade distante, basta lembrar
que recentemente se propôs que todos os recém-nascidos
em São Paulo tivessem uma amostra de DNA coletada (a
partir de sangue do cordão umbilical) para se obter uma
impressão genética de cada um. Para encobrir os interesses comerciais (já que haveria um custo para cada exame), o motivo alegado foi evitar a troca de crianças em
maternidade. E se essa coleta fosse obrigatória?
GENES DE COMPORTAMENTO
A influência genética em doenças psiquiátricas, tais
como a doença do humor (ou psicose maníaco-depressiva),
a esquizofrenia ou o alcoolismo, já é amplamente aceita (Alper
e Natowicz, 1993; Mallet et alii, 1994). Em uma genealogia
extensa da Holanda (Brunner et alii, 1993) identificaram, em
indivíduos com comportamento agressivo e anti-social, uma
mutação recessiva em um gene do cromossomo X (e que
portanto só afeta indivíduos do sexo masculino). Essa mutação causa a deficiência de uma enzima, a momoamina
oxidase A ou MAOA (responsável pelo metabolismo da
dopamina, serotonina e noradrenalina). Felizmente, essa
deficiência parece ser rara. Entretanto, outros estudos realizados em gêmeos (LaBuda et alii, 1993) sugerem que a
delinqüência juvenil possa ter pouca influência genética,
mas a delinqüência que persiste na idade adulta teria um
componente genético importante.
Nos últimos anos, inúmeros pesquisadores vêm tentando identificar genes de suscetibilidade para doen-
ESCOLHA DE SEXO
Uma outra questão ética é a possibilidade de se escolher o sexo de um futuro bebê. Na Inglaterra, Statham et
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PROJETO GENOMA HUMANO E ÉTICA
Detecção de Portadores
Assintomáticos de Genes Deletérios
alii (1993) enviaram a um grupo de cerca de 2.300 grávidas um questionário com as seguintes perguntas: você prefere um menino, uma menina ou é indiferente? A análise
dos resultados mostrou que se a população da GrãBretanha pudesse escolher o sexo de seus futuros filhos
isto não causaria um desbalanceamento sexual. Já na China, onde a maioria dos casais só tem um descendente, o
aborto seletivo de fetos do sexo feminino já criou uma
desproporção sexual gigantesca em favor do sexo masculino. E no Brasil, o que aconteceria se os casais pudessem
optar pelo sexo de seus filhos?
Por outro lado, a possibilidade de se determinar o sexo
de embriões antes da sua implantação (diagnóstico préimplantação na fertilização “in vitro”) para casais com risco de doenças genéticas que só afetam o sexo masculino
(como a hemofilia ou a distrofia de Duchenne) evitaria o
diagnóstico pré-natal e o sofrimento de ter de interromper uma gestação no caso de fetos portadores. A seleção
sexual de embriões por essa técnica, no entanto, é ética
no caso de casais sem risco genético aumentado, que quiserem recorrer a essa prática somente para escolher o sexo
de um futuro bebê? Em algumas sociedades, a herança
material só passa de pai para filho se ele tiver descendentes do sexo masculino, isto é, não ter um filho varão pode
significar perder toda a herança da família e ficar reduzido à pobreza. Não é difícil imaginar que a procura de testes pré-implantação para determinar o sexo deva ser muito grande nesses casos. Seria ético negar essa possibilidade
em uma situação como essa?
Em relação a testes genéticos neste grupo, os exemplos
seguintes levantam outras questões, tais como: Até onde
vai o nosso direito de interferir? Devemos sempre dizer a
verdade? Podemos nos negar a fazer um teste genético?
Uma consulente vem procurar um serviço de Aconselhamento Genético para diagnóstico pré-natal. O levantamento
da genealogia mostrou que seu pai é hemofílico, o que
significa que ela é portadora assintomática deste gene e
portanto um feto, de sexo masculino, terá uma probabilidade de 50% de vir a ser afetado por hemofilia. Inesperadamente, o estudo de DNA da consulente e de seus pais
revela que “o suposto pai hemofílico” não é na realidade
o seu pai biológico. Isso significa que a consulente não é
portadora do gene da hemofilia e portanto não existe risco
para esta ou futuras gestações, o que dispensa a realização
de qualquer teste genético. É ético revelar à consulente que
“seu pai não é seu pai” e arriscar a desestruturação de uma
família aparentemente unida? Ou, por outro lado, é ético
submeter a paciente a um exame pré-natal desnecessário,
sabendo-se de antemão que não somente esta como futuras crianças dessa consulente não têm risco de hemofilia?
Em outro caso, a consulente tem um filho afetado por
distrofia de Duchenne (DMD), uma doença letal grave,
cujos afetados raramente ultrapassam a terceira década.
O exame de DNA revela que tanto a consulente como sua
mãe são portadoras do gene da DMD e, portanto, há um
risco de 50% de virem a ter descendentes de sexo masculino com DMD. Durante o Aconselhamento Genético (AG)
a consulente é informada sobre seu risco genético e que
suas tias, primas e sobrinhas, também em risco de serem
portadoras do gene da DMD, podem recorrer ao exame
de DNA para tentar prevenir o nascimento de novos afetados. A consulente, entretanto, nega-se terminantemente
a alertar seus familiares sobre esse risco.
Pergunta-se: É ético deixar que pessoas em risco ignorem essas informações que poderiam prevenir o nascimento
de uma criança afetada por uma doença genética grave?
Por outro lado, temos o direito de invadir a privacidade
dos outros? Ou quebrar o princípio da confidencialidade
deve ser uma norma no AG?
Um terceiro exemplo ilustra uma situação ainda mais
complicada. Uma consulente adolescente é encaminhada
para diagnóstico pré-natal pois tem dois irmãos afetados
por DMD. O estudo de DNA revela que ela é portadora
do gene da DMD e, portanto, existe 50% de risco de que
DOENÇAS GENÉTICAS
Já no caso de doenças genéticas, a identificação de
genes deletérios é fundamental para o diagnóstico diferencial de doenças clinicamente semelhantes, para a prevenção (pela identificação de portadores com risco de
virem a ter filhos afetados e por diagnóstico pré-natal) e
para futuros tratamentos.
Do ponto de vista ético, entretanto, a detecção de
portadores de genes deletérios pode ter conseqüências
totalmente diferentes, pois distinguem-se basicamente
dois grupos: os portadores assintomáticos, nos quais o
risco de uma doença genética só existe para a prole,
como no caso da herança autossômica recessiva ou
recessiva ligada ao X; e os portadores sintomáticos ou présintomáticos, nos quais o risco existe tanto para a prole e
para si mesmos, como o caso da herança autossômica
dominante.
49
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
venha a ter um filho afetado. Antes de realizarmos o estudo de DNA do feto, entretanto, somos informados de que
há uma suspeita de que o pai biológico da criança seria o
próprio pai da consulente. Somos consultados sobre a possibilidade de confirmar essa suspeita, pelo exame de DNA,
sem o conhecimento da consulente. Do ponto de vista genético, o risco de uma criança, fruto de uma relação incestuosa (pai-filha), ser afetada por uma doença genética
(retardo mental, doenças recessivas ou malformação congênita) é da ordem de 50%, independentemente do sexo.
Ou seja, é um risco tão grande quanto o da DMD, mas
neste caso sem possibilidades de um diagnóstico pré-natal. As grandes questões são: a) é ético realizar um exame
de DNA sem o prévio consentimento dos interessados?;
b) ou é mais ético não realizar esse exame, mesmo sabendo do alto risco para o feto e da possibilidade, neste caso,
de se interromper a gestação com amparo legal?
poderiam ser evitadas aquelas que requerem habilidade manual, pois é a primeira a ser comprometida no caso da DMS.
Por outro lado, vale a pena angustiar-se antecipadamente e
saber que se tem uma doença para a qual não existe cura?
A pesquisadora Nancy Wexler, cuja mãe morreu de CH
pergunta: você quer saber quando e como vai morrer?
Após inúmeras discussões éticas internacionais a respeito, o consenso foi não realizar testes pré-sintomáticos
em crianças, com risco para doenças genéticas de manifestação tardia, para as quais ainda não há tratamento.
O argumento mais forte é que ao testar crianças assintomáticas estaremos negando-lhes o direito de decidir, quando adultas, se querem ou não ser testadas. A nossa experiência pessoal mostra que essa conduta talvez seja a mais
adequada, pois recentemente vários jovens adultos “em
risco” foram informados de que já existia um teste de DNA
para confirmar se eram ou não portadores do gene. Nenhum deles, no entanto, quis se submeter ao teste, o que
mostrou que “viver na incerteza” talvez seja mais tolerável do que o risco de “ter certeza”.
Testes Moleculares em Doenças Dominantes
de Início Tardio. Doenças Ainda sem Tratamento:
o Exemplo dos Genes Dinâmicos
Genes de Risco para Doenças com Possível
Tratamento: o Exemplo dos Genes BRCA1 e BRCA2
de Suscetibilidade para Câncer de Mama
Hereditário
Em doenças como a Coreia de Huntington (CH) ou a
Distrofia Miotônica de Steinert (DMS), os portadores,
além de manifestar a patologia, têm um risco de 50% de
vir a transmitir o gene defeituoso para a sua descendência. Na CH [causada por uma expansão do número de repetições (CAG)n no gene huntingtina (Kremer et alii,
1994)] o quadro clínico geralmente tem início após a quarta
ou quinta década, e leva a uma demência progressiva e
irreversível.
Na DMS [causada por uma expansão de repetições
(CTG)n no gene da proteína-quinase da distrofia miotônica
(Brook et alii, 1992)] a situação é um pouco diferente,
pois o quadro clínico é muito variável. Indivíduos portadores do gene podem ter como único sinal clínico uma
calvície precoce ou catarata em idade avançada, enquanto no outro extremo existem aqueles que apresentam um
quadro grave, com início na infância, manifestado por:
retardo mental, desenvolvimento, fraqueza e degeneração
muscular e esterilidade no sexo masculino. A forma clássica, a mais comum, tem início em geral na idade adulta.
As questões éticas que se colocam são: quais seriam os
prós e os contras de se testar crianças assintomáticas, descendentes de afetados, e saber de antemão se elas são portadoras do gene da CH e DMS? Os defensores do teste présintomático argumentam que saber precocemente seria
importante na escolha da futura profissão. Por exemplo,
Mulheres portadoras de mutações nos genes BRCA1 e
BRCA2 têm um risco de cerca de 80% de desenvolver
câncer de mama e um risco aumentado para câncer de
ovário (Ponder, 1997). A identificação desses genes levou vários laboratórios a oferecer testes de DNA (a custos altíssimos) à população feminina, supostamente para
identificar as pessoas portadoras de mutações nesses genes
e poder oferecer um tratamento preventivo àquelas com
resultados positivos. Para as mulheres com história familiar de câncer de mama a detecção precoce pode ser muito importante para o tratamento preventivo. Entretanto, a
questão ética é se esses testes devem ser feitos na população feminina em geral. Isso porque o risco global (life time
risk) que uma mulher, sem história familiar, tem de desenvolver um câncer de mama ao longo da vida é da ordem de 10%, enquanto o câncer hereditário constitui apenas 1-2% dos casos. Assim, é dez vezes mais provável
que, se uma mulher vier a desenvolver um câncer de mama,
ele não esteja relacionado a mutações nos genes BRCA1
e BRCA2. A questão ética é: será que uma mulher cujo
teste não revelou mutações nos genes BRCA1 e BRCA2
sabe disso ou vai ficar tranqüila achando que está livre do
50
PROJETO GENOMA HUMANO E ÉTICA
genéticos disponíveis, tanto para características normais
como patológicas, estão aumentando dia a dia. Enquanto
as questões éticas estão sendo debatidas no âmbito acadêmico, os laboratórios estão disputando a possibilidade de
desenvolver e aplicar testes de DNA, pois do ponto de vista
comercial os interesses são enormes. Só para exemplificar,
estima-se que nos Estados Unidos (Nowak, 1994) haveria
cerca de 30 mil famílias em risco para a doença de
Huntington, 36 mil famílias para distrofia miotônica, de
três a cinco milhões de pessoas para doença de Alzheimer
e um milhão de mulheres portadoras de mutações nos genes
BRCA1 e BRCA2. As questões que precisam ser debatidas do ponto de vista médico, social e ético são:
- Qual é o benefício de testes pré-sintomáticos?
risco de ter câncer de mama? Além disso, como existem
centenas de mutações patológicas ao longo desses genes
(e é ainda inviável testar todas elas), os laboratórios testam apenas as mais comuns, o que levanta outra questão:
sabemos exatamente o que está sendo testado?
DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL E O PROBLEMA
ÉTICO DA INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO
Os problemas éticos relacionados com o diagnóstico
pré-natal e interrupção de gravidez de fetos portadores de
genes deletérios também têm sido amplamente discutidos.
No caso de doenças letais (na primeira ou segunda décadas) ou as incompatíveis com uma vida independente
(como aquelas que causam um retardo mental profundo),
a decisão para um casal em risco de interromper uma gestação é mais fácil. Por outro lado, para aquelas de início
tardio ou prognóstico indefinido, como a CH ou a DMS,
o questionamento é enorme. Alguns indivíduos alegam que
não querem transmitir esse gene para a sua descendência,
mas será que não existirá uma cura definitiva nas próximas décadas? Ou, podemos garantir que um filho nosso
terá uma vida saudável por muitas décadas?
É fundamental salientar que vários centros do mundo que realizam diagnóstico pré-natal mostraram que a
legislação a favor da interrupção da gestação no caso de
fetos certamente portadores de genes deletérios tem reduzido significativamente o número de abortos em famílias
com risco genético. Isso porque muitos casais decididos a
interromper uma gravidez no caso de um feto “em risco”
deixaram de abortar quando o diagnóstico pré-natal de
certeza comprovou um feto normal para aquela doença.
De fato, no nosso laboratório, onde já foram realizados
mais de 100 exames de diagnóstico pré-natal em casais
em risco (para diferentes formas de distrofias musculares, atrofia espinhal e fibrose cística), somente cerca de
10% foram diagnosticados como afetados. Portanto, o
diagnóstico pré-natal de certeza e a possibilidade do aborto
terapêutico têm salvado inúmeras vidas normais. Por isso
a importância fundamental de discussões éticas em torno
da legalização da interrupção da gestação no caso de doenças graves ou incuráveis, pois as nossas leis certamente
não têm acompanhado os avanços das pesquisas.
- As pessoas sabem para quê estão sendo testadas, o que
significa um teste positivo ou um resultado negativo?
- Quem irá regular a produção e o uso de testes genéticos, a sua qualidade e o acesso da população a eles?
- Quando oferecer testes?
- Empregadores e companhias de seguro-saúde terão acesso às informações?
- Quem vai controlar a confidencialidade?
- Poderemos nos negar a ser submetidos a um teste genético?
- Quem vai interpretar os resultados e ser responsável pelo
aconselhamento genético?
- Quem vai controlar os aspectos éticos?
- Estamos preparados para lidar com essa avalanche de
novos conhecimentos que serão gerados pelo Projeto
Genoma Humano?
NOTAS
E-mail da autora: [email protected]
Gostaria de agradecer a uma “superequipe de colaboradores” do Centro de Estudos do Genoma Humano e da ABDIM (Associação Brasileira de Distrofia Muscular) que muito tem contribuído para as discussões éticas aqui relatadas e à Fapesp,
CNPq e Pronex pelo apoio constante que têm dado à nossa pesquisa.
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CONCLUSÃO
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
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52
AS SEMENTES E O CONHECIMENTO QUE ELAS INCORPORAM
AS SEMENTES E O CONHECIMENTO QUE
ELAS INCORPORAM
HUGH LACEY
Professor de Filosofia no Swarthmore College (Pensilvânia, EUA) e no momento Professor visitante na USP.
Tem atuado como Professor visitante na USP, Unicamp e PUC-SP
Resumo: Freqüentemente recorre-se à ciência para legitimar a prioridade atribuída ao desenvolvimento de
sementes transgênicas na pesquisa agronômica, e a proteção privilegiada concedida aos direitos de propriedade intelectual sobre tais sementes. Alega-se que as sementes transgênicas incorporam conhecimento científico, mas não as sementes selecionadas na agricultura tradicional; e que o conhecimento científico sustenta não
haver, além da agricultura que faz uso substancial de sementes transgênicas, maneira alternativa nenhuma de
alimentar a humanidade. Ambas as alegações são questionadas por meio de um argumento que reconhece na
agroecologia uma séria alternativa (pelo menos parcialmente) à predominância da biotecnologia na agricultura, uma alternativa que não apenas encontra forte apoio na evidência empírica, mas também responde aos
valores da sustentabilidade ecológica e da justiça social.
Palavras-chave: desenvolvimento científico; transgênicos; agroecologia.
N
a consciência moderna avultam as conquistas e
promessas da ciência, assim como os ampliados
poderes humanos de exercer controle resultantes dos desenvolvimentos científicos. Embora a ciência e
as novas tecnologias provoquem medo e apreensão em
algumas pessoas, para a maioria no mundo contemporâneo seu valor foi profundamente internalizado. Assim, uma
ampla legitimidade foi atribuída à pesquisa e aos desenvolvimentos de novas possibilidades tecnológicas, e há
uma tendência a aceitar como pressuposto – não sem oposição – que o futuro será, e mesmo deverá ser, em grande
parte moldado em resposta a eles. As sementes transgênicas
(TG) e outros “avanços” biotecnológicos estão entre os
mais recentes e mais visíveis de tais desenvolvimentos.
Para seus defensores as sementes TG representam o
futuro da agricultura; elas são também testemunho do engenho e providência do empreendimento científico. Um
manual muito usado tem por título Tecnologia do DNA: a
espantosa habilidade (Alcamo, 1996), um bom resumo
da situação. Criticar a biotecnologia parece beirar a blasfêmia, uma oposição ao desdobrar do futuro e à própria
ciência. Busca-se com freqüência a legitimação do desenvolvimento e emprego de sementes TG na autoridade e
prestígio da ciência e com isto espera-se silenciar todos
os críticos. Contrariando essa postura, pode-se argumentar que a ciência não autoriza tal legitimação, e não coloca barreiras à exploração de formas alternativas de agri-
cultura que estejam mais em sintonia com a luta por justiça social.
As sementes TG contêm genes tirados de organismos
de diferentes espécies, inseridos diretamente em seus próprios materiais genéticos, com a finalidade de gerar plantas com as específicas qualidades “desejadas”, tais como
as capacidades de resistir a inseticidas. Para seus criadores, as sementes TG incorporam conhecimento científico
e trazem a marca da ciência. Elas também trazem a marca
da economia política da “globalização”, uma vez que seu
desenvolvimento tem sido visto tanto como um objetivo
da economia neoliberal global quanto como um meio de
fortalecer suas estruturas. Tais marcas gêmeas emprestam
uma aura de inevitabilidade à “revolução” agrícola prometida com o advento das sementes TG: a ciência definiu
a rota, a economia global fornece as estruturas para sua
efetiva implementação. Assim, não é surpresa que as plantações com sementes TG (milho, soja, e outras culturas)
tenham tido um crescimento explosivo nos últimos anos.
Não há outro caminho, os defensores insistem, nenhuma
outra maneira de fornecer o necessário para alimentar a
crescente população mundial nas próximas décadas.1 Devem os críticos silenciar?
Os críticos são de vários tipos. Alguns rejeitam cabalmente ou mostram-se apreensivos diante da “intrusão na
natureza” exemplificada pelas sementes TG (Príncipe de
Gales, 1998). Outros exigem medidas de precaução à luz
53
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
a ciência, com sua fé nela e na tecnologia avançada para
resolver todos os problemas? Ou, talvez, seja o código
para “esta é a maneira de proceder dentro das estruturas
da globalização”, cuja progressiva consolidação é considerada inevitável e não deixa nada de fora (Lacey, 1998,
cap. 8), e para um reconhecimento oculto de que estas estruturas, por meio de mecanismos como a concessão seletiva de direitos de propriedade intelectual (DPI), tendem
a solapar as alternativas (Lewontin, 1998)?
As sementes TG não podem ser produzidas sem a modificação de sementes selecionadas pelos agricultores (sementes SA), ou sementes derivadas originalmente de sementes SA, para uso na agricultura convencional. Sua
própria existência pressupõe o desenvolvimento anterior
destas últimas (Kloppenburg, 1988). E contudo as proteções dos DPI podem ser concedidas a sementes TG mas
não a sementes SA. Na falta de tais proteções, as sementes SA são consideradas parte do patrimônio comum da
humanidade e podem ser (sob os predominantes acordos
internacionais e leis em vigor) legalmente apropriadas à
vontade sem consulta ou compensação aos agricultores que
as selecionaram (Kloppenburg, 1987). Quando as sementes SA são apropriadas, os críticos falam de “biopirataria”
e detectam injustiça. Os que desenvolvem as sementes TG
apropriam-se livremente das sementes SA, mas o agricultor não tem livre acesso a sementes TG. Não apenas o
agribusiness (por seus pesquisadores), mas também gerações de agricultores contribuem para a produção de sementes TG mas, graças aos DPIs, quem lucra são principalmente o agribusiness e seus clientes. Quaisquer lucros
desse tipo pressupõem a livre apropriação das sementes
SA. Mais ainda, as condições em que acontecem tendem
a facilitar a substituição das sementes SA pelas TG.2 A
biopirataria envolve não apenas a exploração dos agricultores que produzem as sementes, sem as quais as sementes TG não poderiam existir, mas também, no final, a exclusão do próprio uso destas sementes (Shiva, 1997; 2000).
A biopirataria e o regime dos DPIs são profundamente interligados. O desenvolvimento e a utilização das sementes TG dependem de ambos.
Quais diferenças entre sementes TG e SA podem justificar a norma de que àquelas, mas não a estas, sejam concedidas as proteções dos DPIs? Uma das diferenças apontadas consiste em que as sementes TG mas não as SA
incorporam conhecimento científico. Em virtude disso elas
podem satisfazer os critérios padrão para conseguir uma
patente – novidade, inventividade, utilidade/aplicação
industrial, e fornecimento de instruções suficientes para
dos riscos ambientais e para a saúde, da inadequação dos
procedimentos de avaliação de riscos, de questões de escolha dos consumidores e rotulagem de produtos TG, de
ameaças à biodiversidade, perigos de controle do suprimento de alimentos pelas grandes empresas, e o solapamento potencial das condições necessárias para a agricultura orgânica (Risler e Mellon, 1996; Lappé e Bailey,
1998). Alguns criticam o uso corrente de sementes TG por
visar principalmente o lucro empresarial, embora apoiem
a pesquisa e desenvolvimento que tem por objetivo ajudar os povos dos países empobrecidos, por exemplo, produzindo arroz mais rico em vitamina (Nuffield Council
on Biothics, 1999; Serageldin, 1999). Alguns pensam que
os riscos envolvidos são motivo para que se abandone todo
o empreendimento. Ainda outros questionam o projeto de
globalização e estão envolvidos tanto na pesquisa quanto
na luta política para tornar viáveis métodos alternativos
de agricultura (Altieri e Rosset, 2000; Kloppenburg, 1991;
Shiva, 1993).
São poucas as concessões dos defensores. Eles reconhecem riscos, naturalmente, mas sustentam que os riscos reais podem ser administrados e regulamentados. Com
o apoio da US Food and Drug Administration, eles também alegam não haver evidência científica concreta de que
produtos TG atualmente no mercado causem riscos maiores que os produtos da agricultura convencional. Confiantes nos resultados e promessas da ciência, e encorajados
por seus sucessos anteriores, eles não se deixam abalar
por apelos para que se tenha especial cautela no uso de
produtos TG. Além disso, não concedem aos críticos a
posição de superioridade moral. Bem ao contrário, replicam que o uso de sementes TG permite alta produtividade combinada com uma atitude amigável em relação ao
meio ambiente, e, como já mencionado, insistem que é
necessário alimentar a humanidade (Specter, 2000). Dessa perspectiva quaisquer riscos ocasionados pelo uso de
sementes TG desaparecem na insignificância em comparação com as conseqüências de sua não-utilização; é aos
críticos que falta a devida preocupação moral
(McGloughlin, 2000).
Muita coisa depende da alegação de que “não há outra
maneira” de alimentar a humanidade. A legitimidade de
ir adiante rápida e imediatamente com o emprego de sementes TG, sem tomar medidas de precaução especiais,
pressupõe sua veracidade. Será que ela é realmente verdadeira? Se não, quais são as alternativas? É apoiada por
evidências científicas? Ou é apenas um reflexo de quem
está seguramente dominado pela atitude moderna perante
54
AS SEMENTES E O CONHECIMENTO QUE ELAS INCORPORAM
desnutrição apesar de haver produção suficiente para alimentar a todos.
Com certeza não há nada na maneira como a ciência
biotecnológica é conduzida hoje que possa refrear o ceticismo, pois ela se ocupa primordialmente com a estrutura
molecular dos genes, a química de suas expressões, e de
como elas podem ser modificadas para produzir traços “desejados” nas plantas, sem dar atenção ao impacto ecológico a longo prazo das culturas (Risler e Mellon, 1996) e
(na medida em que é custeada pelo agribusiness) praticamente nenhuma ao impacto social geral. Porém, sem uma
investigação sistemática e empírica sobre os impactos
ecológico e social a longo prazo, e sobre a possibilidade
de alternativas, como poderia a pesquisa científica apoiar
a tese de que o desenvolvimento de sementes TG é o único modo de proceder, ou mesmo que é um modo viável
de proceder? Naturalmente, essa questão teria pouca relevância se de fato não houvesse alternativas.
A fim de se ter claro o que está envolvido, devem ser
consideradas mais duas questões:
- maximização: como podemos maximizar a produção de
uma cultura em condições – uso de fertilizantes, controle
de pragas, emprego de água, maquinário, linhagens de sementes, etc. – que podem ser amplamente replicadas?
estar de acordo com a condição de “suficiência de revelação” – e assim tornar-se propriedade intelectual. Dessa
perspectiva é pura demagogia e sentimentalismo chamar
de biopirataria a livre apropriação e possível substituição
de sementes SA. O prestígio da ciência é dessa forma
mobilizado contra o uso de um termo moralmente tão carregado. Apenas a propriedade pode ser pirateada, e as
sementes SA não são propriedade intelectual. Além disso, de acordo com seus defensores, o desenvolvimento de
sementes TG beneficia a todos, pois “não há outro meio
de alimentar a humanidade.”
Será verdade que, primeiro, as sementes TG mas não
as SA incorporam conhecimento científico; e segundo, que
as sementes SA não podem formar a base (ou uma parte
importante) da produção necessária para alimentar a humanidade? Respostas afirmativas às duas questões constituiriam um grande avanço na direção de legitimar não
apenas a transformação da agricultura para acomodar as
sementes TG, mas também a “biopirataria” e a privilegiada proteção concedida às sementes TG pelos DPIs.
Ao tratar dessas questões, estará em jogo a pergunta
“em que consiste a ciência?” Considera-se que a ciência
inclui qualquer forma sistemática e empírica de investigação que procura entender os fenômenos do mundo, ou
seja, que almeja captar as causas e possibilidades das coisas e fenômenos (Lacey, 1998; 1999, cap. 5). Que formas
de investigação científica devem ser empreendidas se desejamos estudar sistemática e empiricamente as possibilidades de alimentar a humanidade no futuro, e testar a alegação de que culturas TG são necessárias e amplamente
suficientes, e culturas SA insuficientes (e nem mesmo
necessárias em certas localidades), para este fim (Lacey,
s/d)? Tenha-se em mente a persistência da fome hoje; e
que produzir alimento suficiente para alimentar a todos
não significa que todos serão alimentados. Sermos todos
alimentados depende não apenas da produção de alimento em quantidade suficiente, mas também que as pessoas
tenham acesso a ele; e, para pessoas não-participantes de
comunidades agrícolas produtivas, isso significa ter de
comprá-lo (Altieri e Rosset, 2000). Deve-se observar também que a manutenção de alta produtividade a longo prazo depende da preservação da biodiversidade, da saúde
humana e ambiental, e da ausência de conflitos sociais
violentos (Altieri, 1995). Lembrando tudo isso, pode-se
ficar cético quanto à idéia de que as culturas TG vão permitir que a humanidade seja alimentada. Afinal, elas estão inseridas na mesmas estruturas e representam os mesmos interesses que aceitaram a persistência da fome e da
- fortalecimento local: como podemos produzir culturas
de modo que todas as pessoas na região de produção tenham acesso a uma dieta bem equilibrada num contexto
que fortaleça a ação e o bem-estar locais, sustenha a
biodiversidade, preserve o ambiente e favoreça a justiça
social?
Ambas são questões científicas; ambas estão abertas à
investigação de maneiras empíricas e sistemáticas. São
questões diferentes, relacionadas a preocupações morais
e sociais diferentes. A primeira enfatiza as quantidades
de alimento produzidas, a segunda, quem de fato é alimentado e em que condições. Responder a uma delas, e
adotar os métodos necessários para respondê-la, não é
suficiente para responder à outra.
Os métodos biológicos utilizados para investigar o que
pode ser produzido com sementes TG são apropriados para
a maximização. Tais métodos tentam identificar possibilidades do ponto de vista da capacidade de serem geradas
as sementes a partir de estruturas moleculares subjacentes e processos bioquímicos regidos por leis. Eles abstraem
em grande parte a realização de tais possibilidades e suas
relações com arranjos sociais, vidas e experiências humanas, as condições sociais e materiais da pesquisa, e o impacto ecológico amplo e de longo prazo – e desta forma,
55
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
ciência praticada com métodos materialistas, ou do interesse dos agentes e projetos da economia global.
Os defensores das sementes TG não se deixarão abalar
por esse argumento. Como muitos outros que adotam a
postura moderna perante a ciência, eles tendem a identificála com o emprego praticamente exclusivo dos métodos materialistas. Num nível, trata-se apenas de uma questão
terminológica. A palavra “ciência” é, na verdade, amplamente utilizada para designar “pesquisa empírica sistemática praticada com métodos materialistas”, o tipo de investigação que leva à expansão de nossa capacidade de
exercer controle sobre os objetos naturais. Não tenho objeção alguma a esse nível. Tudo o que foi dito pode ser
reformulado sem perdas usando “pesquisa empírica sistemática” em vez de “ciência” (Lacey, 1999, cap. 5).
Num outro nível, entretanto, sustenta-se que a terminologia usual reflete o fato de o conhecimento adquirido
com métodos materialistas ser (em princípio) mais solidamente assentado em evidências empíricas e experimentais, e que ele tem credenciais epistêmicas superiores. Isso
se questiona. A pesquisa agroecológica parte de conhecimento adequadamente testado na prática em culturas tradicionais, por exemplo, o conhecimento incorporado em
sementes SA, que forneceu a “matéria-prima” para o desenvolvimento de sementes TG. O fato desse conhecimento
carecer da “universalidade” do conhecimento materialista e (com freqüência) de sua forma teórica precisamente
integrada não significa que ele seja empiricamente menos
bem-assentado, mas é um tipo de conhecimento bastante
específico quanto ao local, e capaz de fornecer respostas
a questões como a do fortalecimento local. Restringir o
uso de “ciência” na pesquisa praticada com métodos materialistas representa assim a concessão de um privilégio
para a pesquisa materialista – porém um privilégio não
conquistado em bases epistêmicas (Kloppenburg, 1991;
Shiva, 1991).
Conceder privilégio ao conhecimento científico adquirido com métodos materialistas desvia a atenção para longe
de formas alternativas de agricultura, informadas por conhecimento científico (sistemático e empírico), que em
princípio pode levar a respostas positivas e eficazes para
a questão do fortalecimento local em muitas localidades,
e pode até gerar produtividade local aumentada, consistente com a sustentabilidade ecológica e social, a partir
de melhoramentos nos métodos segundo os mais as sementes SA são coletadas (Lewontin e Berlan, 1990). Também insinua que temos apenas opinião, não conhecimento sólido, quando lidamos com a completa e temporalmente
de qualquer ligação com valores. São métodos “materialistas”, métodos que separam a biologia da sociologia, da
economia e da ecologia, de tal forma que o fortalecimento local não é considerado como pertencendo propriamente
ao mesmo domínio de pesquisa que a maximização. Quando não simplesmente ignorado, é discutido nas ciências
sociais, depois de terem sido respondidas questões como
a da maximização.
Existem, entretanto, outras abordagens para a investigação científica, cujos resultados podem informar práticas agrícolas alternativas, especificamente aquelas da
agroecologia. A pesquisa em agroecologia – embora recorrendo de inúmeras maneiras ao conhecimento das
estruturas subjacentes e da química das plantas, solos e
insumos da produção agrícola – situa a agricultura integralmente dentro de sua situação ecológica e social, e
coloca questões que não envolvem abstrações dela (Altieri,
1995). De acordo com Altieri, um de seus mais notáveis
proponentes,3 ela trata as coisas em relação ao agroecossistema (sistema agrícola/ecológico) inteiro de que são
partes constituintes, e preocupa-se simultaneamente com:
“[A] manutenção da capacidade produtiva do agroecossistema, a preservação da base de recursos naturais e da
biodiversidade, o fortalecimento da organização social e
diminuição da pobreza, [e] o fortalecimento [empowerment]
das comunidades locais, manutenção das tradições, e participação popular no processo de desenvolvimento”
(Altieri, 1998:56-7). Ela não separa a biologia da sociologia por qualquer razão de princípio. Seu foco primordial são as questões do tipo do fortalecimento local; e assim seus resultados variam com a localidade, recorre e
desenvolve (em muitos casos) o conhecimento tradicional que informa as práticas de uma cultura, e não restringe os papéis na geração do conhecimento a especialistas,
preservando papéis para os próprios agricultores (Lacey,
1998, cap. 6). As sementes SA incorporam variedades de
conhecimento agroecológico (Shiva, 1991).
Uma vez que o fortalecimento local situa-se fora da
perspectiva daqueles que restringem a investigação ao uso
de métodos materialistas, sua pesquisa não pode nos dizer que as alternativas agrícolas informadas por pesquisa
agroecológica são incapazes de fornecer uma parte importante da base necessária para alimentar a humanidade.
Dessa forma, quando eles alegam que “não há outra maneira”, não estão relatando um resultado de sua pesquisa
científica, ou mesmo uma hipótese que eles tenham os
meios para investigar seriamente. Aparentemente a alegação decorre ou da aceitação acrítica das promessas da
56
AS SEMENTES E O CONHECIMENTO QUE ELAS INCORPORAM
extensa série de variáveis ecológicas, humanas e sociais e
os efeitos das práticas agrícolas. Assim, ele solapa ilegitimamente a força da crítica baseada na investigação
agroecológica. Por outro lado, os métodos materialistas
são de maneira geral adequados para tratar da maximização, e realmente levam à identificação de possibilidades genuínas das culturas TG. Não podem, porém, identificar as possibilidades necessárias para tratar do
fortalecimento local, e é impossível responder à grande
questão da necessidade de desenvolvimento de sementes
TG se nos abstivermos de utilizar métodos que levem em
conta esse fortalecimento. A grande questão pode ser tratada cientificamente, por meio de investigação empírica
sistemática, mas apenas se permitirmos que a ciência inclua uma variedade de métodos, dos quais o materialista
é apenas um (embora muito importante). Métodos de investigação materialistas e agroecológicos estão em princípio no mesmo patamar. Outros autores, influenciados
pelo construcionismo social, tiraram conclusões semelhantes questionando a “objetividade” do conhecimento materialista bem-estabelecido; nossas conclusões apontam a
“objetividade” do conhecimento agroecológico.
Tanto as sementes SA quanto as TG podem ser informadas pelo conhecimento científico: umas pelo conhecimento agroecológico, outras pelo conhecimento materialista. Assim, a concessão de proteções dos DPIs às
sementes TG mas não às SA não pode se basear na alegação de que aquelas incorporam conhecimento com credenciais epistêmicas superiores. Mais plausível, em nossa opinião, é o inverso: o conhecimento materialista é
privilegiado (tido como detentor de maior valor social e
talvez, erroneamente, maior valor epistêmico), pois na
aplicação ele pode ser facilmente incorporado em produtos com valor de mercado, inclusive alguns para os quais
pode-se obter as proteções dos DPIs. O prestígio dos
métodos materialistas e o usual estreitamento do significado de “ciência” refletem não credenciais epistêmicas
superiores, mas o maior valor social de suas aplicações
entre aqueles que dão prioridade a relações de controle
sobre os objetos naturais e o valor econômico das coisas.4
A concessão das proteções dos DPIs às sementes TG e
a “pirataria” com as sementes SA são momentos diferentes do mesmo processo. Se a ciência não fornece uma justificativa para legitimar a atribuição de diferentes estatutos legais para os dois tipos de sementes, é possível que
se recorra a outra razão: sem as proteções dos DPIs, o
desenvolvimento e a utilização de sementes TG provavelmente encontraria obstáculos intransponíveis. Dentro da
lógica da economia neoliberal global tal alegação pode
ser muito convincente, especialmente porque a pesquisa
associada à maximização bem pode dar apoio à tese de
que (em estruturas neoliberais) apenas com os novos métodos é possível produzir alimentos adequadamente. Mas
para conseguir legitimação além dos limites dessa lógica,
é necessário apelar também para a pressuposição de que
“As sementes TG são necessárias para alimentar a humanidade”, para a qual, de novo, não há base científica até
agora.5
O tribunal da ciência permanece aberto às possibilidades de produzir alimento de modo que todos possam ser
alimentados nas próximas décadas. A questão pode ser
submetida à exploração científica mas apenas, como vimos, se reconhecermos que a ciência contém uma multiplicidade de diferentes tipos de métodos, incluindo os
agroecológicos tanto quanto os materialistas. Tal exploração ainda não foi tentada e, se for, pode tornar válida a
pressuposição dos defensores das sementes TG, mas também pode ser que isto não aconteça; e pode levar à conclusão de que há papéis importantes tanto para as sementes SA quando para as TG nas práticas agrícolas que não
apenas produzir em quantidade suficiente para alimentar
a todos, mas o fazer de modo a assegurar que todos sejam
adequadamente alimentados e que respondam à questão
do fortalecimento local de forma bem geral.6 Antes da exploração os críticos não fazem jus a maior certeza que os
defensores.
Ao mesmo tempo, os dados empíricos atuais apóiam a
afirmação que responder à maximização não é suficiente
para responder ao empoderamento local; e de que em
numerosas localidades em todo o terceiro mundo tentativas de tratar do fortalecimento local sistemática e resolutamente têm sido promissoras, recorrendo a métodos
agroecológicos com pequena contribuição de tentativas
de responder à maximização (Altieri, 1995). Uma investigação fidedigna da pressuposição de que “não há outra
maneira de alimentar a humanidade” deve levar isto em
conta. Ela vai requerer, portanto, que investigações com
métodos agroecológicos sejam desenvolvidas muito mais
completamente, e com provisão dos recursos necessários;
e esses métodos podem ser desenvolvidos apenas se práticas agroecológicas são intensificadas e ampliadas. O
fornecimento de tais recursos, entretanto, entra em conflito com as tendências da própria economia global, cuja
lógica favorece a transformação rápida e imediata dos
métodos agrícolas na direção do uso de sementes TG em
larga escala. Tal tendência serve para solapar as condi-
57
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
2. O caso extremo de biopirataria ocorre quando um órgão estrangeiro consegue
patentes para pequenas variantes de produtos disponíveis há séculos em países
“subdesenvolvidos” e que são bem compreendidos dentro de sistemas de conhecimento local – por exemplo, produtos da árvore neem na Índia (Shiva, 1997: 6972) e o arroz basmati (Shiva, 2000: 84-86). Uma decisão judicial recente revogou
a patente concedida ao Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e a W.
R. Grace Corporation para um produto de neem pela razão de que não estava
envolvido passo inventivo algum (The Times of India News Service, 12 de Maio
de 2000). Sobre o papel da biopirataria em certas áreas de pesquisa médica e a
indústria farmacêutica, ver Alier, 2000.
ções (a disponibilidade de agroecossistemas produtivos e
sustentáveis) necessárias para a investigação científica de
uma pressuposição daquilo que a legitima.
Qualquer autoridade que a ciência legalmente exerça
deriva dos resultados de investigação empírica sistemática. Tal autoridade não apóia nem as distinções legais entre as sementes TG e SA, nem que os métodos agrícolas
que usam as sementes SA não devam ter um papel integral na produção de alimento nas próximas décadas. Talvez o apelo à ciência feito pelos defensores das sementes
TG mascare a falta de um fundamento moralmente convincente para a globalização, ou um esforço para enervar
seus críticos, ou uma fé ilimitada nos poderes dos métodos materialistas. Em qualquer caso, os críticos que recorrem à agroecologia não se opõem à ciência estabelecida. Ao contrário, o fortalecimento da agroecologia é
necessário para que haja uma investigação científica das
possibilidades de alimentar a todos no futuro imediato e
no futuro previsível.
No conflito sobre as sementes, dois modos de vida fundamentalmente incompatíveis se contrapõem: um enfatizando os agroecossistemas sustentáveis, o outro, a
primazia do mercado. A ciência (pesquisa empírica sistemática), pela sua multiplicidade de métodos, pode informar a ambas porém não legitima nenhuma. A oposição ao
desenvolvimento e à utilização de sementes TG pode se
enraizar mais solidamente nas práticas da agroecologia.
É aí que as energias dos críticos devem ser postas – essa é
uma questão de solidariedade, prática agrícola, economia
política, estilo de vida, e aquisição de conhecimento.
3. Miguel Altieri é chileno, e atualmente professor no Departamento de
Environmental Science, Policy and Management da Universidade da Califórnia –
Berkeley; coordenador-geral do Development Programme’s Sustainable Agriculture
Networking and Extension Programme da ONU; e assessor técnico do Latin
American Consortium on Agroecology and Development.
4. Argumentou-se em outro lugar (Lacey, 1998, cap. 5; 1999, cap. 6) que há relações complexas mutuamente reforçadoras entre a pesquisa científica praticada
quase exclusivamente de acordo com métodos materialistas e a valorização do
controle sobre os objetos naturais.
5. Fora da lógica da economia neoliberal global, como sugerimos, não há base
para atribuir um status (epistêmico ou legal) diferente para as sementes SA e TG.
Existe, por outro lado, uma séria necessidade de os países do terceiro mundo protegerem suas reservas genéticas indígenas. Como fazer isso tem sido objeto de
considerável controvérsia (Brush e Stabinsky, 1996; Alier, 2000; Lacey, 1998,
cap. 6). Alguns autores sugeriram que os DPIs sejam estendidos para os recursos
genéticos indígenas, outros propuseram que não sejam concedidas patentes a qualquer material vivo, incluindo sementes TG, ou várias formas de compensação pelo
uso de recursos indígenas. Uma idéia promissora, que apenas recentemente começou a ser explorada, é desenvolver um enquadramento legal para “direitos intelectuais coletivos”, de acordo com os quais comunidades de agricultores (e povos
indígenas) possam proteger, aperfeiçoar e controlar o uso das reservas genéticas
situadas no âmbito de seu conhecimento local (Shiva, 1997:80; Garcia dos Santos, 1996).
6. Pode existir bastante espaço para um debate construtivo entre a agroecologia e
a pesquisa sobre sementes TG associada ao CGIAR (McGloughlin, 2000). Ambas
as abordagens se propõem a ser sensíveis às necessidades e problemas dos agricultores pobres. Em vez de empoderamento local, entretanto, a pesquisa ligada
ao CGIAR tende a se preocupar com uma questão ligeiramente diferente: como
podem os métodos da agrobiotecnologia ser desenvolvidos de tal modo que possam contribuir para satisfazer (por exemplo) as necessidades de produção de alimentos e lidar com desnutrição crônica em comunidades de agricultores pobres.
Ela pressupõe que abordagens materialistas na ciência constituem a maior parte
da solução dos problemas com os quais se defrontam as comunidades pobres mas,
embora reconhecendo a “realidade” do regime dos DPIs, rejeita tanto a dominância
da pesquisa em biotecnologia pelo agribusiness quanto o mercado enquanto único acesso a sementes disponível para os agricultores. Assim, o CGIAR conduz
pesquisas visando desenvolver sementes TG que, por exemplo, podem produzir
arroz com maior teor de vitamina, ou que podem ser cultivadas em solos salinos
ou secos, desta forma fornecendo soluções técnicas para importantes problemas
de agricultores pobres ou marginalizados. A agroecologia, em contraste, insiste
em que as soluções técnicas propostas não sejam abstraídas dos contextos ecológicos e sociais em suas implementações (Shiva, 1991).
NOTAS
Tradução de Marcos Barbosa de Oliveira.
O presente artigo é parte de um projeto maior, apoiado em parte pela US National
Science Foundation (SES-9905945), que trata de questões filosóficas, éticas e
científicas referentes à agrobiotecnologia e à agroecologia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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agricultura na direção de uma substancial dependência de culturas TG (ver as
observações de Shapiro em Specter, 2000). Outros, inclusive os associados das
organizações filiadas ao CGIAR (Consultive Group on International Agricultural
Research), alegam mais modestamente que a sementes TG têm um papel importante a desempenhar na agricultura do futuro (Serageldin, 1999; Persey e Lantin,
2000; Nuffield Council on Bioethics, 1999; McGloughlin, 2000). O CGIAR tende
a ser crítico de muitos desenvolvimentos de sementes TG realizados pelo
agribusiness, considerando-os impulsionados pelo lucro, em vez de pelas necessidades de comunidades agrícolas pobres; tendo por objetivo o aumento nas
vendas de pesticidas específicos ou a conquista de maior controle do mercado,
em vez de aumento na produtividade de culturas especialmente em solos inferiores
e alimentos saudáveis. Ironicamente, porta-vozes do agribusiness referem-se
com freqüência à pesquisa patrocinada pelo CGIAR, que tem pouco potencial
de lucro a curto prazo, para sustentar que o desenvolvimento de sementes TG
serve a fins humanitários.
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59
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
E BIOTECNOLOGIA
realidades e virtualidades
LUIZ HILDEBRANDO PEREIRA DA SILVA
Professor aposentado da Universidade de São Paulo. Professor honorário do Instituto Pasteur de Paris.
Membro da Academia Brasileira de Ciências
Resumo: Os enormes progressos das ciências biológicas ocorridos nas últimas décadas abrem grandes perspectivas benéficas para o homem no terreno das aplicações, em particular no domínio da agronomia e da
biomedicina. A sociedade brasileira deverá romper com essa situação, em que os progressos beneficiam apenas setores privilegiados, e promover a educação e divulgação científicas de qualidade a todos os níveis, concentrando sua aplicação em domínios essenciais para vencer atrasos e deformações da sociedade brasileira.
Se a ciência e a tecnologia não tiverem relação direta com a realidade do dia-a-dia, traduzindo-se em melhoria
da situação material e cultural do conjunto da sociedade, estarão se arriscando a evoluir para uma situação de
atividade apenas virtual.
Palavras-chave: biotecnologia; ciência e realidade; tecnologia e virtualidade.
O
progresso observado nas últimas décadas em
ciências biológicas, demonstrando a universalidade dos princípios básicos de estrutura e funcionamento dos seres vivos e decifrando o código genético, promoveu um avanço vertiginoso de conhecimentos e
uma convergência das disciplinas biológicas que, durante
o século XIX e início do século XX, tinham conhecido
uma lenta acumulação de informações e diversificação por
meio da multiplicação das disciplinas.
Essa evolução é bem recente: pode-se mesmo precisar
a data de seu início em 1953, quando James Watson e
Francis Crick publicaram seu famoso modelo de estrutura
do DNA (ácido desoxiribonucléico), já identificado por
numerosas pesquisas como sede química da informação
genética. O modelo abria caminho para as manipulações
experimentais que logo foram coroadas de êxito, com a
síntese enzimática in vitro do DNA por Kornberg em 1956,
a proposição do RNA mensageiro (ácido ribonucléico) e
do modelo de regulação da expressão dos genes em 1961
por Jacob e Monod, o desenvolvimento das técnicas de
seqüenciamento dos genes nos anos 70 por Gilbert e Sanger
e a descrição dos enzimas ditos de restrição por Arber, que
permitiram o nascimento da engenharia genética.
Essas conquistas e descobertas em ciência fundamental
tiveram repercussão imediata na esfera biotecnológica. Com
o desenvolvimento de equipamentos especializados e a
produção industrial de insumos e reagentes, “democrati-
zou-se” a pesquisa, o que permitiu que os estudos em biologia molecular, restritos anteriormente a um punhado de
especialistas e instituições privilegiadas, se generalizassem e a capacidade de investigação se estendesse a grande
número de laboratórios e equipes em nível mundial. Novas biotecnologias se desenvolveram também como aplicações de interesse geral, tais como produtos de diagnóstico, técnicas de vacinação e de preparação de insumos
químicos e biológicos, pela engenharia genética, técnicas
de seleção e melhoramento de espécies vegetais e animais
e a introdução da transgênese (transferência de informação genética de um organismo a outro, da mesma espécie
ou de espécie diferente). A biologia celular e molecular
teve grande desenvolvimento e, nos últimos anos, vem atravessando a fase denominada genômica, em que os pesquisadores se concentram na descrição do seqüenciamento do
repertório de genes de seres vivos (genomas), desde vírus
e bactérias até o homem, e na identificação de genes responsáveis por características fenotípicas normais ou patológicas, com a perspectiva de decifrar e definir, nos próximos anos, as informações completas dos repertórios de
genes típicos de cada espécie. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se um capítulo próprio da informática, a bioinformática, que introduziu metodologias de análise das
macromoléculas biológicas e de suas interações, permitindo a experimentação nas telas de computadores, com
enorme economia de tempo e de complexas operações de
60
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E BIOTECNOLOGIA: REALIDADES E VIRTUALIDADES
lificados, capazes não apenas de acompanhar os progressos científicos e técnicos internacionais, como também de
contribuir de forma original para esses progressos. O
exemplo recente do sucesso na clonagem do seqüenciamento completo do genoma da Xylella fastidiosa,
bactéria responsável pela doença dos cítricos conhecida
como amarelinho, é uma prova, entre outras, da existência de competências humanas e estruturas laboratoriais capazes de situar a pesquisa científica e o desempenho
tecnológico em âmbito mundial. Esse sucesso se desdobra
em projetos atualmente em andamento, como o do câncer
e o seqüenciamento da cana-de-açúcar e de outras variedades vegetais, assim como o de organismos patogênicos,
tais como o paracoccidioides, responsável por uma grave
micose profunda, todos financiados pela Fapesp.
Participante que sou da atmosfera de orgulho legítimo
de ver o país se colocar, com essas ações e iniciativas, na
esfera internacional de vanguarda das pesquisas na área
biológica e biotecnológica, não posso deixar de sentir,
entretanto, certo temor de que a situação atual possa nos
levar ao ufanismo, doença bem nacional, que a partir daí,
contribuirá para criar no país uma relação de virtualidade
com a ciência.
O ufanismo brasileiro, que nos acompanha talvez desde os tempos da colônia e da carta de Caminha, tem se
deslocado imperceptivelmente para o virtual. Se antes ele
se exprimia pelo orgulho de termos as mais belas praias
do mundo, os mais lindos coqueiros, bosques com mais
flores, o melhor café do mundo, o melhor futebol, nota-se
que esse orgulho vem se deslocando para o campo virtual. O que caracteriza o virtual? Evidentemente, é a
focalização de fatos, ações, situações e acontecimentos
dos quais não se participa senão virtualmente. A supremacia da Televisão e da Internet vem reforçando as atitudes de participação virtual. As telenovelas registram realidades virtuais. O cinema, principalmente o americano,
com suas aventuras espaciais e fantásticas, valoriza apenas a participação virtual. O virtual invade não só as atividades de lazer como o conjunto da atividade humana e
até o esporte. Ele penetra mesmo em nosso futebol, que
era o esporte nacional. Até um passado recente, grande
parte da população brasileira participava, é verdade, virtualmente pela televisão mas, por outro lado, tinha participação ativa, ao menos numa fase da vida, jogando suas
peladas ou praticando seriamente. Os esportes nacionais
estão se virtualizando, pois os mais prestigiados agora são
o tênis e as corridas de fórmula 1. No tênis, milhões de
brasileiros acompanham pela televisão os gestos frenéti-
bancada. A bioinformática introduziu igualmente metodologias capazes de analisar estruturas moleculares ou frações para definir os responsáveis pela especificidade funcional da molécula, seja como enzima, como antígeno,
como inibidor ou ativador, como receptor ou mediador,
enfim, uma diversidade de funções possíveis.
Num seguimento natural da fase atual, que é essencialmente de acumulação de informações, será possível observar, nas próximas décadas, o desenvolvimento da era
pós-genômica (que já se inicia nos centros de vanguarda).
Essa era abrirá um ciclo de ampliação dos conhecimentos
científicos e será centrada na análise funcional dos genes
seqüenciados, mas de função ignorada, e nos mecanismos
de interação e regulação entre eles, que levam à expressão
das capacidades funcionais de cada ser vivo. A compreensão desses mecanismos, aliada ao desenvolvimento das
biotecnologias, permitindo a intervenção sobre o genoma
primitivo, com integração de novas informações externas,
cria diversas possibilidades de ação e promove um estreitamento das fronteiras entre os conhecimentos básicos fundamentais em biologia e o desenvolvimento de aplicações
que atualmente se denominam de novas biotecnologias.
Exemplos diários são divulgados pela mídia com um certo
sensacionalismo sobre a clonagem de animais e plantas –
e a discutida clonagem humana – e a produção de organismos geneticamente modificados (OGM). As expectativas
favoráveis são grandes, por exemplo, no campo da medicina, com a prevenção de patologias hereditárias, e a correção de certos defeitos genéticos (terapia gênica); da agronomia, com a produção agropecuária e a melhoria funcional
ou a adaptação de espécies úteis de plantas e animais; das
indústrias químicas, alimentícias e farmacêuticas, com a produção de moléculas sintéticas capazes de agir como
fármacos, alimentos, agrotóxicos, inseticidas biológicos,
novos materiais e outros produtos de interesse.
OS PROGRESSOS DA CIÊNCIA
REDUNDAM AUTOMATICAMENTE
EM PROGRESSO SOCIAL?
Pode-se perguntar em que esses grandes progressos da
ciência e da biotecnologia podem ou devem ser considerados instrumentos para acelerar o desenvolvimento socioeconômico da sociedade brasileira, desenvolver o bemestar de sua população, resolver seus problemas crônicos
e colocar o país no caminho de um real progresso social.
Temos certamente em algumas de nossas universidades
e em alguns institutos de pesquisa cientistas e técnicos qua-
61
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
ve do que a atual, porque se limitava aos eruditos, os
que tinham capacidade de leitura. O perigo atual é transformar a ciência em conhecimento “televisesco” e
“internetesco”. Os livros eram e continuam a ser instrumentos indispensáveis para o aprendizado da ciência.
Televisão e Internet são novos meios, agora fundamentais, de acesso aos conhecimentos científicos. Se o processo e a relação com a ciência se reduzir ao livro, à televisão, ao vídeo ou à Internet, caímos objetivamente no
virtualismo. A ciência e a biotecnologia se tornam virtuais
também à medida que a sociedade não tenha um nível de
acesso aos benefícios que ela proporciona ou pode proporcionar, seja por falta de recursos, seja por não estar
preparada culturalmente e/ou socioeconomicamente para
incorporar as descobertas e as novas aplicações. Tomemos o exemplo das práticas médicas e biomédicas. Elas
vêm se beneficiando de progressos extraordinários nas
últimas décadas com a implantação de técnicas de exploração de imagens computadorizadas, novos reativos de
diagnóstico precoce, microintervenções por radiação a
laser robotizadas, terapêuticas antitumorais e antiinfecciosas, técnicas de intervenção, etc. Qual a fração da população que tem acesso a essas tecnologias? Uma porção
reduzida, apesar dos inegáveis esforços da administração
pública nacional para estender o acesso às pessoas mais
carentes, pelo desenvolvimento dos Programas de Agentes Comunitários (Pacs) e de Saúde da Família (PSF).
Apesar de certos programas federais de atendimento generalizado (o Brasil, por exemplo, é dos raros países onde
o tratamento da Aids por associação de medicamentos é
acessível a todos os afetados), é evidente que há um profundo contraste entre o acesso aos recursos de novas tecnologias médicas entre as classes médias e superiores urbanas do Sudeste e do Sul e as camadas mais pobres
urbanas e periféricas dessas mesmas regiões e as populações rurais do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste. Mais
do que isso, estas últimas encontram-se na verdade com
um atraso de quase um século, pois não têm acesso nem
mesmo às tecnologias já há tempos disponíveis às populações urbanas do Sudeste e do Sul, e mesmo à parte das
zonas rurais do Sul. Essas pessoas, quando contemplam
na televisão as maravilhas das novas biotecnologias, encaram-nas como realidades das quais elas estão automaticamente excluídas. O grande desafio nacional consiste,
portanto, em vencer essa exclusão e marginalização. Podese ou deve-se intervir nesse processo com uma política de
ciência e tecnologia? E em que isso teria repercussões no
processo de desenvolvimento e progresso social?
cos de enviar uma bolinha com uma raquete de um lado
para o outro de uma rede; nas corridas automobilísticas
das fórmulas 1, 2 e 3, outros milhões de brasileiros ficam
horas contemplando as arrancadas ruidosas de “petardos”
de alta tecnologia dirigidas por audazes aventureiros.
Quantos brasileiros praticam o tênis ou a corrida automobilística? Um número insignificante. Mas tanto um como
outro são considerados esportes de massa. Esportes virtuais. Mesmo o futebol está evoluindo para o virtual, porque o objetivo não é mais a prática em si, mas sim ser (ou
ver) um craque que será vendido por milhões para um clube
europeu. Quantos vão atingir esse tipo de realidade? Alguns poucos. Os outros, isto é, a maioria, participam apenas na contemplação. No virtual.
CIÊNCIA COMO REALIDADE VIRTUAL?
Não permitamos que a ciência também caminhe para o
virtual. Como seria isso possível? Muito simples. Se a
ciência, como conhecimento, não for algo acessível à sociedade – desde a escola primária até a universidade e,
fora da escola, pela permanente informação científica
correta, discreta e eficiente e pela prática em cada setor
de atividade –, ela se transformará em atividade real apenas para um pequeno núcleo de privilegiados e em virtual
para a maioria da população. A informação hoje é essencialmente sensacionalista. Nos últimos anos, a imprensa
(não apenas a nacional) tem se especializado em destacar
assuntos que alimentam a virtualidade da ciência, como,
na área biológica, a clonagem de seres humanos e as qualidades ou os perigos dos produtos vegetais ou animais
geneticamente modificados, os célebres OGM. Como
muitos leitores são pouco informados ou ignorantes das
bases científicas ou éticas de tais problemas, o que se
obtém com isso é um pânico latente e/ou o desenvolvimento de verdadeiro obscurantismo medieval na população. É mais grave ainda a divulgação escandalosa de sucessos (alguns reais, mas em geral fantasiosos) de certas
aplicações biotecnológicas que alimentam ilusões sobre
como vencer o câncer, a esterilidade ou a velhice, criando outras fontes de virtualidade.
Mas não é apenas pela ação de uma imprensa sensacionalista que se pode evoluir para uma virtualidade científica. É pela própria evolução da prática científica e de
suas aplicações na sociedade. Falava-se, no passado, em
conhecimento científico livresco, isto é, sem ligação com
a prática e restrito à leitura e à transmissão do que foi aprendido. Era uma forma antiga de virtualização. Menos gra-
62
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E BIOTECNOLOGIA: REALIDADES E VIRTUALIDADES
luminosos, os cinemas e teatros, os bares e restaurantes, a
circulação de veículos, etc. Observadores mais doutos, por
outro lado, assinalam, como inexorável, o desaparecimento
da agricultura de subsistência e da pequena e média propriedades, como decorrência obrigatória da evolução das
tecnologias agrícolas e pecuárias, ou dos “agronegócios”
como se costuma dizer, resultantes por sua vez dos progressos da ciência e da tecnologia. Consideram ao mesmo tempo essa “reserva de mão-de-obra”, representada
pelas populações marginais, como útil ao desenvolvimento
capitalista e à industrialização. É, portanto, de consenso
geral que esse problema está diretamente ligado ao desenvolvimento e à evolução da ciência e da tecnologia
agrárias ou, ao menos, do uso que delas se faz.
E quais são as razões mais freqüentemente invocadas
pelos migrantes rurais, quando a emigração se faz por iniciativa própria, para justificar o abandono da terra? São
razões de saúde, isto é, a falta de acesso a recursos técnicos e humanos, médicos e farmacêuticos, para tratamento
e prevenção das doenças, às vezes as mais banais a que
estão sujeitos.
Chegamos assim (após um longo desvio) a um dos pontos centrais que deveria ser tratado. A introdução irracional de ciência e tecnologia pode ser um fator de desequilíbrio e não de progresso social. No caso das ciências
biológicas e da biotecnologia os exemplos não faltam nas
suas duas áreas mais estratégicas, as ciências agrárias e
as ciências médicas e biomédicas.
CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA
RESOLVER QUAIS PROBLEMAS?
Entre os aspectos mais graves que caracterizam a sociedade brasileira nesta virada de século e que estão na
base da exclusão e marginalização social destacam-se as
desigualdades e os desequilíbrios entre populações rurais
e urbanas e, nestas últimas, entre populações de áreas realmente urbanizadas e as de periferias ou favelas. Tais problemas, que se originaram nos tempos de colônia, se intensificaram com o processo de industrialização e
modernização da agricultura, a partir dos anos 50, e provocaram a expulsão de populações agrícolas e migrações
descontroladas. Esses fenômenos não foram privilégio do
Brasil, e se manifestaram com intensidade variável em toda
a América Latina. Em nosso caso, a estrutura econômica
do país e as infra-estruturas urbanas são incapazes de absorver esse excedente de mão-de-obra, e assim crescem
as populações marginalizadas, base da formação de favelas e subúrbios superpovoados, com degradação social e
desenvolvimento da violência urbana. É o que se verifica
não apenas nas megalópolis como São Paulo e Rio de Janeiro, mas também em cidades médias como Recife, Vitória, Ribeirão Preto, Belo Horizonte, Campinas e Santos, entre outras.
Para um observador imparcial, causa estranheza a contradição flagrante desse processo migratório: de um lado,
iniciativas do governo federal, em atenção a justos clamores por uma reforma agrária, tentando instalar famílias
em áreas rurais e, de outro, o contínuo processo de migração do campo para a cidade.
Com efeito, a população rural está nitidamente diminuindo no Brasil. Se há 50 anos representava ainda 60%
do total, na avaliação do IBGE de 1996 representa apenas 20%, que entretanto, soma mais de 30 milhões de brasileiros residindo no campo (mais de três Bélgicas), aos
quais seria justo acrescentar várias dezenas de milhões
(uma Itália) de outros que residem nas periferias das cidades, à espera de uma hipotética integração social, onde
as condições de infra-estrutura estão mais próximas das
condições rurais, agravadas pela promiscuidade e desemprego, que das verdadeiras condições urbanas. Os fenômenos migratórios deviam assim ser considerados não
processos de urbanização, mas processos de ruralização
degradada das cidades.
Na procura de causas, um consenso superficial sobre a
questão assinala o chamado “atrativo das grandes cidades”, com as iluminações feéricas das ruas, os anúncios
POR UMA NOVA BIOTECNOLOGIA AGRÁRIA
Nas ciências agronômicas competências não faltam.
Pode-se contar com nomes como o de Joahana Dobereiner
e seus discípulos em trabalhos de vanguarda sobre a fixação do azoto, com grandes aplicações atualmente, como
por exemplo, na cultura de cana, com redução considerável das necessidades de adubos nitrogenados. Vale lembrar ainda das equipes paulistas participantes do projeto
do genoma da Xylella fastidiosa que nos colocou em posição de igualdade com o nível internacional de capacitação
técnica dos grandes centros europeus e americanos do norte. Ao mesmo tempo, o organismo nacional responsável
pelo desenvolvimento das biotecnologias na área agronômica, a Embrapa, é considerado internacionalmente como
de nível equivalente, em competência e qualificação, aos
grandes organismos de países avançados, como o Inra francês. A Embrapa tem se distinguido por grandes êxitos tecnológicos na seleção e melhoria de variedades de soja, cana-
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
Poucos países têm condições de suprir a curto ou médio
prazo essas necessidades, entre eles, naturalmente, o Brasil. Eis uma opção que nos seria portanto favorável.
Novo problema, entretanto, se coloca nesse caminho:
na opinião pública européia (gato escaldado tem medo de
água fria) desenvolvem-se preconceitos crescentes contra o
consumo de variedades vegetais modificadas geneticamente (os OMG) e a grande produção de soja americana (a brasileira segue a mesma tendência) é inteiramente de variedade transgênica. Esses preconceitos que ganham setores
crescentes da opinião levaram os ministros da agricultura
da Comunidade Européia a decidir por uma moratória, com
suspensão da introdução de novos produtos transgênicos
no Mercado Europeu por um período de dois anos.
É interessante observar que, a partir de preconceitos
justos ou injustos do consumidor e em contraposição aos
alimentos de uma agropecuária extensiva e industrializada, vêm-se beneficiando na opinião pública os setores
agroalimentares que se especializam nos chamados “produtos biológicos”, como frangos criados em pleno sol, com
direito a circulação e alimentados à base de produtos de
origem vegetal. O que se disse para as aves é válido para
os bovinos, ovinos e suínos. O que foi dito para a soja
transgênica se aplica ao milho, a frutos e legumes. O que é
válido para a opinião pública européia, penetra na opinião
americana e contamina inclusive a opinião tupuniquim. A
Austrália e o Canadá, por exemplo, promulgaram decretos proibindo a utilização, para transfusão, de sangue de
doadores que residiram na Grã-Bretanha ou na França nos
últimos anos. Os produtos alimentares de origem agroindustrial provocam inquietude. Os produtos “biológicos”
invadem as feiras livres e os supermercados.
O problema tem repercussão no plano econômico-social
e implica decisões políticas. Como se orientar nessa situação confusa em que se confrontam progressos da ciência e da tecnologia com hábitos e preconceitos alimentares, lobbies das grandes empresas internacionais na área
alimentar contra pequenos produtores, acidentes inevitáveis com ações criminosas, interesses das macroempresas
de adubos, de herbicidas e de inseticidas, conflitantes entre
elas e com os consumidores e pequenos produtores? Tudo
isso como expressão, muita ignorância e de explorações
demagógicas do tudo biotecnológico ou do tudo “natural”?
O cenário que se anuncia para o futuro é incerto. Mas um
retorno à produção agropecuária em pequenas e médias propriedades e empresas, que permita a diversificação e melhor
identificação dos produtos, é uma tendência que se reforça
intensamente e deverá progredir nos próximos decênios.
de-açúcar, milho, café, cítricos, entre outros, e no desenvolvimento de técnicas agrícolas, melhorias de solo, etc.
Seus cientistas e técnicos dominam as biotecnologias mais
sofisticadas e modernas nas áreas de pecuária, como as de
inseminação artificial in vitro, congelamento e implantação de embriões, clonagem de embriões, etc; na área vegetal, os cientistas dominam as técnicas mais avançadas da
biologia aplicadas a clonagem molecular, transgênese, seleções de marcadores, virologia e parasitologia, etc. Teríamos assim, teoricamente, os meios e as competências necessárias para que as ciências e tecnologias agrárias fossem
importantes instrumentos de enriquecimento e progresso
social: Mas elas são?
Sem negar o grande papel que têm desempenhado a modernização e o progresso tecnológico de nossas atividades
agrícolas e pecuárias (produtos agrícolas e carne representam itens fundamentais de nossas exportações), deve-se
entretanto assinalar que os esforços de introdução de novas tecnologias baseadas em progressos científicos se concentraram essencialmente em benefício da agricultura e
pecuária intensivas, favorecendo a produção para exportação. Isso se fortalece, de um lado, pelo esforço permanente das autoridades federais em estimular as exportações
com facilidades de financiamento e, de outro, pelas tradições brasileiras das grandes estruturas latifundiárias no
campo. Se essas políticas podem atender às necessidades a
curto prazo para manter equilíbrios comerciais, elas contêm
fatores de fragilidade que se acentuam progressivamente
e acentuam a marginalização da população rural.
Um primeiro fator de fragilidade dessa política é não
considerar a evolução de hábitos alimentares que se observa na esfera internacional a partir de acidentes trágicos. Um deles foi a disseminação na Europa da epidemia
de encefalite espongiforme (doença da vaca louca) que se
originou da reciclagem de carcaças e restos de matadouros, introduzidos na década de 70, e que se generalizou no
mundo, permitindo baratear consideravelmente o custo de
rações e, em conseqüência, o preço da carne bovina, porcina
e avícula. Essa tecnologia serviu de base para a elaboração do Programa Agrícola Comum (PAC) que previa, além
disso, a redução de espaços agrícolas reservados a oleaginosas. A epidemia de encefalite espongiforme, que se
manifestou inicialmente na Grã-Bretanha, mas se manifesta
esporadicamente em países do continente europeu, levou
a Comunidade Européia a decidir pelo abandono das farinhas animais nas rações. Isso torna a Europa dependente
da importação de substitutos vegetais, em particular da soja,
cujo custo é avaliado em 5 a 6 bilhões de dólares anuais.
64
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E BIOTECNOLOGIA: REALIDADES E VIRTUALIDADES
Dever-se-ia ainda acrescentar que, se realmente a preservação e exploração da biodiversidade, das quais tanto se
orgulha o Brasil, são estrategicamente essenciais para o
país, ela só será viável se houver reforço do setor de pequena e média empresas agropecuárias e limitação da implantação das grandes empresas madeireiras e de pecuária
intensiva dos chamados agronegócios, por essência responsável pela degradação do meio ambiente, desflorestamento e destruição da biodiversidade.
Um outro fator, em relação a países como o nosso, também favorável ao desenvolvimento da pequena e média
empresa, é a agropecuária intensiva ter sua rentabilidade
diminuída em função da concorrência internacional, incapaz, portanto, de transferir renda para promover
melhorias do nível de vida da população rural. Efetivamente, os principais produtos como a soja, o milho, o açúcar, o café, os sucos cítricos, o cacau, o algodão, entre
outros, são objetos de concorrência internacional selvagem; em certos casos, eles provêm de países de estrutura
econômica atrasada, com mão-de-obra tão ou mais barata
que o Brasil; em outros casos, provêm de países desenvolvidos que praticam formas abertas ou disfarçadas de
subvenção da produção que garanta o nível de vida elevado de seus agricultores. Por uma razão ou por outra, as
tendências observadas são de superprodução e os preços
internacionais são constantemente aviltados. Assim, se a
produção agropecuária extensiva permite ao grande proprietário uma remuneração adequada ou mesmo um enriquecimento, o valor acumulado da produção dificilmente
poderia favorecer, mesmo com legislação redistributiva
rigorosa, uma melhoria de renda efetiva dos trabalhadores envolvidos na produção.
Sem abandonar a agropecuária extensiva, não é possível, no Brasil, deixar de acompanhar a tendência que se
desenvolve no mundo por uma nova agricultura e pecuária, dita biológica e alternativa, que conquista, na Europa
e na América do Norte, setores crescentes do mercado
consumidor.
Essa vertente, que já penetra o mercado brasileiro, só
pode se desenvolver por meio da pequena e média empresas agrícolas e nelas os valores agregados são muito superiores aos da agricultura extensiva tradicional. Exemplos nesse sentido são numerosos. Os produtores de
morango, das pequenas e médias propriedades da província da Almeria na Espanha, transformaram a região mais
pobre na de maior renda per capita do país. No Brasil, os
produtores de frutas tropicais e de vinho do sertão baiano
e da Serra Gaúcha estão criando áreas de grande dinamismo econômico. O município de Envira, no Amazonas, com
seus 6 mil habitantes, é um exemplo de sucesso do programa III Ciclo de Interiorização do Desenvolvimento no
Estado, ao se tornar o município que mais exporta arroz,
feijão, farinha, café, produtos avícolas e outros. Certos
núcleos familiares no Estado do Amazonas estão extraindo essência do pau-rosa e comercializando produtos cosméticos, a partir das folhas, sem derrubar árvores como
os fornecedores do mercado internacional de perfumes.
O QUE SE ESPERA DAS UNIVERSIDADES
E INSTITUTOS DE PESQUISA
As Universidades brasileiras e a própria Embrapa não
têm representado o papel que deveriam para o desenvolvimento das biotecnologias apropriadas às pequenas e
médias empresas agrícolas, tanto na diversificação de produtos já comercializados e nos métodos de produção, como
na introdução de novos produtos. Nesse sentido, a Colômbia, com todos os seus graves problemas, ultrapassou o
Brasil, e não apenas no café, colocando, por exemplo, rosas
no mercado americano e bananas-maçã no mercado mundial. O caso das bananas merece destaque. A banana comum, nanica, é produzida e exportada pelas repúblicas
centro-americanas, das Antilhas e Caraibas, e por diversos países africanos. Seu preço mundial é aviltado e o
consumidor europeu paga por ela menos de 1 dólar por
quilo. A banana-maçã, que é muito mais saborosa, não era
exportada em virtude da fragilidade da casca fina e rápido apodrecimento. Técnicos colombianos adaptaram algumas técnicas para possibilitar a exportação e por meio
de uma pesquisa tecnológica encontraram a solução fácil
e barata, o empacotamento em sacos plásticos contendo
nitrogênio que inibe as enzimas de apodrecimento; a banana-maçã está sendo vendida na Europa a 10 dólares o quilo. Era uma simples questão de empacotamento. A diversificação de produtos como hortaliças, legumes e frutas,
para atender aos mercados de consumo nacional e internacional, não é objeto de grande atenção de nossos cientistas
e tecnólogos, nem de programas oficiais de estímulo à produção. Temos centenas de frutas originais na Amazônia e
no Nordeste, mas os supermercados dessas regiões oferecem ao consumidor apenas maçãs, peras, ameixas, kiwis e
uvas vindas do Sul. Apenas banana e mamão são locais.
Ora, as técnicas genéticas de melhoramento e seleção tornam-se, em princípio, cada vez mais acessíveis aos nãoespecialistas e já poderiam ser ensinadas e utilizadas em
escolas técnicas e mesmo em escolas não-especializadas.
65
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
Cruz e do Instituto Butantã, que além de utilizar tecnologias clássicas na produção de soros e vacinas, estão caminhando para a introdução de biotecnologias atualizadas,
como as vacinas de segunda e terceira gerações.
Entretanto, mesmo esse setor se ressente da ausência
de atividades de pesquisa nas universidades e instituições,
ou em pequenas e médias empresas capazes de desenvolver a produção de reativos e insumos biológicos e químicos para uso em diagnóstico etiológico de afecções humanas e animais, de vacinas animais e em particular de
fármacos. O país é dependente de importação de medicamentos, reativos, insumos e plásticos até para o diagnóstico de infecções virais mais comuns, como sarampo, rubéola, dengue, febre amarela, arboviroses. São raros os
esforços que nos capacitem a identificar e diagnosticar
viroses emergentes, principalmente as que ocorrem na
Amazônia e para as quais não existem, obviamente, produtos no mercado internacional.
As deficiências são particularmente evidentes no setor
de fármacos. Fomos incapazes até o momento, apesar das
competências científicas existentes nesse domínio, como a
do professor Sérgio Ferreira, de desenvolver atividades produtivas nesse setor, não obstante a decantada riqueza da
biodiversidade nacional, particularmente da biodiversidade amazônica, do consenso mundial sobre o potencial imenso
que representa a pesquisa de novos produtos ativos de origem vegetal, originais em sua estrutura. Uma recente tentativa nesse sentido, com a criação da Bioamazônica pelo
Ministério de Meio Ambiente, está evoluindo para o fracasso, pois a primeira iniciativa da sua diretoria foi propor
um convênio com a Novartis, um dos grandes consórcios
multinacionais do medicamento. O grande erro, nesse caso,
não foi se associar a uma empresa multinacional. No mundo globalizado, associações desse tipo são inevitáveis. O
erro foi o tipo de associação e as funções reservadas à
Bioamazônica nesse convênio: preparar extratos! Vender
extratos! Ora, o grande problema a ser vencido no progresso
tecnológico nessa área é colocar nosso potencial de pesquisas em novas tecnologias (e nós a temos), participando
das atividades mais complexas de purificação de produtos,
identificação de princípios ativos, caracterização dessas
atividades em laboratório e criação e desenvolvimento dos
necessários modelos biológicos experimentais. O valor agregado nessas operações é imensamente superior ao da preparação e venda de extratos. Mesmo que depois seja necessário se associar a firmas multinacionais para finalização e
comercialização de produtos. Se não for possível ultrapassar essas etapas, continuaremos a ser importadores de
A generalização desse conhecimento seria um meio seguro de estimular iniciativas de nossos técnicos agrícolas e
dos agricultores, criando efetivamente sistemas de produção em que o valor agregado do produto é muito superior.
Sabe-se que o metro cúbico de madeira do eucalipto vale
10 dólares, e o metro cúbico de madeiras de lei, como o
mogno, até 1.000 dólares. Mas se continua plantando apenas eucalipto, porque o retorno de renda é rápido. Uma nova
política se impõe, portanto, com uma nova visão a longo
prazo. É o que se chamou em artigo anterior (Gazeta Mercantil, 20/7/99) de retrobiotecnologia de vanguarda, cujo
desenvolvimento e generalização possibilitará, a médio e
longo prazos, promover aumento real de renda dos trabalhadores da área rural e com isso, seguramente, reverter a
migração rural.
O QUE SE ESPERA DAS
BIOTECNOLOGIAS PARA A SAÚDE
Em relação às ciências da saúde, em particular médicas e biomédicas e as tecnologias respectivas, os problemas são mais graves. Na verdade, as novas tecnologias de
uso em medicina, em grande parte, dependem de equipamentos de exploração de imagens ou manipulação física
com base em eletrônica, ótica, mecânicas finas e computação. Nesse domínio somos ainda quase inteiramente
dependentes de importação direta de equipamentos mais
que de importação de tecnologia e não me considero competente para discutir aqui políticas a serem seguidas para
o desenvolvimento do setor. Evidentemente, como já foi
salientado, impõe-se uma política de democratização do
acesso a essas tecnologias, mesmo que as populações carentes tenham pouco ou nenhum acesso a elas.
Entretanto, em relação a outros aspectos mais biológicos das ciências da saúde, humana ou animal, podem ser
definidas situações equivalentes às das ciências e tecnologias agrárias. Existem excelentes cientistas, com competência reconhecida internacionalmente, nas áreas de
biologia molecular, genética humana e animal, farmacologia, imunologia, parasitologia e microbiologia, mas suas
atividades de pesquisa, grande parte dirigida a aspectos
de ciência fundamental, têm pouca repercussão social,
muito mais uma atividade de consumo (consumo caro,
aliás, de produtos importados) que de produção ou de estímulo à produção. Há uma exceção a ser feita à produção
de vacinas humanas tradicionais. Um programa nacional
de auto-suficiência está nos fazendo avançar nesse campo, graças aos esforços em particular da Fundação Oswaldo
66
CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E BIOTECNOLOGIA: REALIDADES E VIRTUALIDADES
tes máquinas estrangeiras, que não trazem nenhum benefício para o conjunto da sociedade. E com a evolução nessa
direção, estariam se arriscando a serem considerados, algum dia, feiticeiros e extraterrestres, por uma opinião
pública dominada pela superstição e pelo irracionalismo.
Como na história contada ao autor deste artigo por
Leonidas Deane, grande sanitarista já desaparecido, do
tempo em que trabalhou na Vale do Rio Doce, durante a
Segunda Guerra Mundial. Após a entrada dos americanos
na guerra contra a Alemanha e o Eixo, em 1942, os americanos tinham muita necessidade do minério da Vale e
resolveram, num esforço de boa vizinhança, investir na
melhoria da situação social local, como em saúde pública, ao mesmo tempo que faziam campanha para atrair a
simpatia da população a seu favor, contra os alemães.
Deane visitava uma grande exposição realizada pelos
americanos para mostrar os avanços da sua aviação e de
todas as novas tecnologias de guerra de que dispunham.
Viu um caboclo local aproximar-se de uma série de fotografias em um dos quadros que mostrava o super bombardeiro B-26. O caboclo aproximou-se, olhou bem, e depois disse: “que bruto avião alemão!”.
fármacos patenteados, pagando preços exorbitantes e vendendo extratos brutos por preço de banana (nanica). Mais
uma vez, será apenas explorando esse tipo de atividade que
a pesquisa científica e técnica poderá participar do processo produtivo, promover agregação de valor e redistribuição
de renda na direção do setor produtivo, contribuindo, assim, para o enriquecimento social e mostrar para a sociedade o seu interesse pela ciência e tecnologia real e não
apenas da virtual.
CONCLUSÃO
Se não conseguirmos fazer da ciência e da tecnologia
algo que tenha relação direta com a realidade do dia-adia, que se traduza por melhorias da situação material e
cultural da sociedade, por um enriquecimento material e
espiritual extensivo às grandes massas da população, elas
se tornarão progressivamente atividades virtuais. Pode
haver cientistas famosos, de muito sucesso na mídia e nos
congressos internacionais, mas para a totalidade de seus
compatriotas, os cientistas, seriam considerados, na melhor das hipóteses, Sennas e Barrichelos dirigindo poten-
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
CULTURA GENÉTICA
vertigem ontológica e dissolução do
conceito de “natureza”
LUIZ FELIPE PONDÉ
Filósofo, Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC-SP
Resumo: O objetivo do artigo é discutir o processo psicossocial em curso no momento em que se instala a nova
tecnologia genômica, processo que cria uma ruptura ontológica na cultura ocidental – à semelhança de outras
rupturas, como a passagem do nomadismo caçador-coletor ao sedentarismo da agricultura –, identificada como
dissolução do conceito de natureza e o horror ontológico que este fato implica. Tal dissolução será concretizada pela banalização “feliz” do consumo em larga escala dos bens genômicos, um comportamento de consumo,
na realidade um desdobramento da aposta iluminista na emancipação humana que se artificializa definitivamente na matéria viva, normatizando-a dentro da categoria de insumo.
Palavras-chave: tecnologia genômica; natureza e cultura; ciência e religião.
“
O
rias pressupostas na condição nômade (agilidade, força,
velocidade, habilidade em se fazer invisível, enfim, formas superiores de movimento e deslocamento no espaço)
para superação da condição humana essencial, ou seja, o
constante terror da contingência manifestado no pavor
estrutural do ser humano diante da sua evidente fragilidade em oposição ao poder absoluto da Natureza ou do Cosmo. À intratável corrupção física humana, o cosmo revela
sua tranqüila e ativa permanência em si mesmo, opondo
desta forma seu ser ao nosso miserável não-ser. Com a
passagem à agricultura e ao sedentarismo, os seres humanos descobrem outras divindades, agora carregadas dos
valores necessários para a manutenção da vida na ausência de deslocamento espacial, isto é, divindades que representavam as necessidades “técnicas” para se agir sobre as recém-descobertas “leis da natureza” específicas,
percebidas pela observação dos modos naturais de reprodução da vida vegetal. O sol, a lua e seus ciclos, o fluxo
das águas e seus poderes sobre a terra cultivada, passaram a manifestar o domínio do Sagrado (o Absoluto agente)
e assim, apontavam para os modos de nos “defender”, talvez, de nossa estrutural miséria ontológica. O escritor e
explorador inglês Bruce Chatwin (1997), praticando o que
poderíamos chamar de uma antropologia social histórica
minimalista, também chamou a atenção para os desdobramentos (para ele, defensor do nomadismo, infelizes) decorrentes da mesma transformação radical de hábitos hu-
padrão social de controle da área a que nos
referimos como ‘eventos naturais’ é bastante
elevado nos países industrializados, e o mesmo se aplica ao autocontrole do pensamento e da observação neste campo. Nele, a insegurança das pessoas diminuiu expressivamente no decorrer dos últimos séculos,
tal como aconteceu com o componente de desejo e medo
na atividade mental nessa esfera. Mas em relação às vastas áreas do mundo humano, especialmente a suas tensões
e conflitos, tanto o padrão de controle social sobre os acontecimentos quanto os de autocontrole na reflexão sobre
eles são consideravelmente menores. As ameaças mútuas
das pessoas e, particularmente, das nações, bem como da
insegurança daí decorrente, ainda são muito grandes, e o
refreamento dos afetos na reflexão sobre essa área é reduzido, comparado ao que é normal em relação aos fenômenos naturais.” (Elias, 1994:87).
O historiador das religiões, o romeno Mircea Eliade
(1978), mostrou que a passagem da cultura de caçadorescoletores para a agricultura envolveu toda uma alteração
do campo religioso humano. Sendo as religiões, segundo
o mesmo Eliade, modos criptoontológicos de pensamento, transformações religiosas implicam necessariamente
abismos ontológicos desconhecidos. As divindades que
habitavam e moldavam o real do homem e da mulher nômades carregavam em si as formas que estes mesmos homens e mulheres imaginavam ser as qualidades necessá-
68
CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO...
atividade cognitiva, reflexiva e técnica do ser humano.1 E
mais, os textos técnicos sobre o tema pouco ajudam a compreensão das transformações envolvidas na futura e provável banalização dos produtos da genômica.2 As discussões éticas também pecam pela “ingenuidade cínica”3 pois
facilmente escamoteiam o caráter de emancipação que o
consumidor verá na genômica e que forçosamente levará
ao uso dos recursos biotecnológicos em escala semelhante aos usos da agricultura.
Assim, a tentativa de compreensão dos campos de possibilidades e de pavor que geram a genômica de consumo
fica limitada a discussões pouco proveitosas e “mistificadoras”, e acima de tudo de muito pouco valor para uma
ampliação da capacidade do “senso comum” pensante para
compreender e se comprometer com o profundo processo
de mutação antropológica em curso.
A produção filmográfica sobre o tema ficção científica (science fiction), apenas como introdução, pode nos
servir como indicador interessante da visão atual de como
poderão acontecer os desdobramentos do consumo sistematizado da genômica, que seguramente será introduzido
pelos interesses do capital associado à face contemporânea de Prometeu. Entre os filmes mais recentes e de maior
público, a produção Blade Runner de Ridley Scott (1981)
introduz a análise mais importante dos fundamentos do
“choque” genômico: a relativização das supostas diferenças que existiriam entre seres humanos naturais e artificiais. O que se esconde por trás da luta pela sobrevivência que leva a cabo os “replicantes” (os homens e mulheres
artificiais) diante de seu criador cientista é a dissolução –
tema fundamental que será novamente abordado – do conceito de natureza,4 transformação ontológica que causará
a decadência dos vocabulários naturalistas nos quais ainda estamos incluídos. Segundo o filósofo pragmático
Richard Rorty, assistimos nas últimas décadas à falência
dos vocabulários teológicos (Rorty, 1992), que causou a
perda de valor cognitivo – e com ele, qualquer possibilidade de significado, inclusive ético ou moral – de qualquer argumento racional baseado em fundamentos religiosos. Como exemplo da estranheza causada por esse
processo de falência de uma rede específica de vocabulários, podemos mencionar as “absurdas” discussões sobre
a humanidade (ou não) dos chamados índios concluídas
pelos intelectuais espanhóis e portugueses na seqüência
das grandes descobertas marítimas. O paradigma mental
e filosófico desses debatedores era christian-oriented e
portanto o choque da nudez dos índios associado a similaridade com os humanos justificava a controvérsia: como
manos básicos. O sedentarismo e seu necessário conservadorismo geográfico envolveu o abandono do movimento
contínuo e cíclico dos seres humanos, acarretando
decrepitudes física, psicológica e social desconhecidas
para os nômades. Os exemplos se multiplicariam: degeneração muscular e neuronal precoce devido à ausência
de estímulos constantes e novos aos neurotransmissores,
empobrecendo o arco-reflexo e a amplitude motora, obstruções vasculares cada vez mais rápidas pois o alimento,
sem movimento contínuo, se transforma necessariamente
em veneno, levando o sedentário à ridícula criação do
movimento muscular estéril do ponto de vista da função
motora, conhecido como “ginástica”, depressões e tédios
constantes em virtude da monotonia estética do espaço
residencial e da pobreza cognitiva associada, levando o
homem e a mulher a se entregarem à risível aventura da
invenção da distração e da decoração programadas, aos
exageros da atividade reprodutora como “resto” da prática física permitida, a patologia social de comparação e
acúmulo de bens materiais (agenciadores psicossociais da
inveja e ancestrais primeiros do capitalismo) impossível
ao nômade pelas necessidades naturais do movimento
contínuo, a produção crescente de lixo acumulado e geometricamente multiplicado pela mesma mania de acúmulo de bens (estes e o lixo seriam “primos” sociais e, portanto, teriam a mesma raiz funcional), enfim, à inflação
da dimensão estática daquilo que chamamos “hierarquia
social”. Assim sendo, com o sedentarismo, inaugura-se o
império da inércia patogênica e das grandes agonias sociais.
São vários os campos de estudo que se ocupam com os
infinitos desdobramentos associados aos modos de vida e
às atividades produtivas da espécie humana. Os poucos
exemplos acima ilustram a amplitude do campo de problemas que demandam uma reflexão detida. A variação desses modos e a verticalidade das transformações antropológicas causadas por tal variação se desdobram nas mais
diversas áreas: da religião à ontologia, da fisiologia aos
hábitos de comportamento, da sociedade à política. Como
caso específico dessa variação – aliás, foco de interesse
nesta rápida reflexão –, a prática generalizada da biotecnologia genética (os usos e recursos da genômica), a face
contemporânea de Prometeu, tenderá a assumir, deste
ponto de vista, a mesma amplitude que a revolução da agricultura e, portanto, nos encontramos às margens de um
abismo ontológico (psicológico e social) de dimensões gigantescas. Em meio ao ruído sempre histérico e quase
sempre efêmero da mídia, o que se esconde é o medo atávico do risco estrutural que acompanha as conquistas da
69
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
julga consistente sobre os efeitos da banalização da
genômica pelo mercado livre de seus recursos – é a recente polêmica entre os filósofos alemães Peter Sloterdijk
e Jürgen Habermas.6 Na seqüência da leitura e posterior
publicação de seu texto “Regras para um parque humano
– Uma resposta à carta de Heidegger sobre o Humanismo”
na Alemanha, em um evento dedicado ao filósofo alemão
Martin Heidegger, Sloterdijk foi violentamente acusado
– por Habermas e outros intelectuais – de retomar irresponsavelmente a “palavra eugenista” em solo alemão. Não
nos interessa aqui especificamente o curso da controvérsia e suas particularidades históricas alemãs, mas parece
razoável a idéia de que se alguém, não um alemão, introduzisse uma reflexão semelhante a Sloterdijk, o “halo” do
terror e da paranóia nazista seria seguramente menor.7
Evidentemente que o imaginário contemporâneo está
pleno de referências ao aparentemente enorme grau de parentesco ideológico entre a manipulação programada dos
seres humanos e o projeto nazista, e tal fato, aliás, como
reconhece o próprio Sloterdijk, é fundamental na atitude
cínica que a sociedade humanista assume diante da prática
genômica: reprime histericamente, por discursos éticos
rasos, a aceitação – em nome de uma emancipação que tem
medo de revelar seu próprio nome – da genômica, a fim de
concluir a revolução genética em silêncio e sem o barulho
indesejável da sociedade aterrorizada, que se trabalhado
poderia se transformar em um processo de conscientização
política da dimensão da revolução em curso. O cinismo aqui
é exatamente essa recusa pública de um tipo de reflexão
que produz o desconforto moral necessariamente presente
na forma bem-sucedida do projeto humanista ocidental, a
biotecnologia, via manifestos pretensamente “éticos” mas
que na verdade não enfrentam, na prática privada, o
irresistível desejo humano de combater sua miséria
ontológica estrutural – presente na evidente e terrível corrupção da matéria viva e muito ativo na luta de muitas
mulheres, por exemplo, contra o envelhecimento pelas “delícias” estéticas da prática alegre de automutilação
gerenciada pela moderna medicina plástica. Segundo
Sloterdijk, na sua cadeia de argumentos que parte de Platão
e sua “República” de sábios que “pastoreiam” o “resto
humano”, em meio à falência das engenharias sociais e
políticas entre os séculos XVIII e XX, surge a práxis genética como verdadeira descendente vitoriosa do projeto
ocidental de aperfeiçoamento ontológico da espécie.8
Diante disso, seguindo os passos da reflexão de
Sloterdijk, devemos passar urgentemente à legislação nãocínica de tal processo abissal. O remédio contra a refle-
descendentes de Adão e Eva podiam andar nus? Onde
estava neles a marca hereditária (no caso em particular, a
noção de privacidade vergonhosa do corpo) do pecado original? Para além da completa validade específica ou não
da argumentação rortiana, é evidente a decadência dos
modelos teológicos de pensamento – claramente fora dos
ambientes mais marcadamente religiosos – e portanto me
parece consistente a analogia: penso que um tal processo
se dará pelo valor cognitivo dos termos sobre o conceito
de natureza (ou nature-dependent). Outro tema introduzido pelo filme é a “dúvida cética de formato cartesiano”
(Descartes, 1983) no que diz respeito à certeza da própria
identidade: como ter certeza da própria identidade se a
memória, via manipulação de sua base (sua verdadeira
natureza) bioquímica, poderia ser na realidade fruto de
um “gênio maligno” – o engenheiro molecular – que aí
introduzia dados até então inexistentes? O drama da identidade natural aqui se impõe.
Outro filme que vale a pena mencionar, mais recente,
é Gattaca de Andrew Niccol (1997). Interessante observar as relações sociais e jurídicas nele esboçadas: a associação entre patrimônio (logo diremos “capital”) genético e os mercados de trabalho e amor (afetos) e a
preocupação do poder legislativo, ainda que de modo fatalmente cínico, de criminalizar o “genismo”, ou seja, a
prática social leviana da discriminação baseada nos diferentes patrimônios genéticos – o Estado (leia-se, o Mercado) teria, é claro, o monopólio da violência discriminatória genômica legítima. Ainda com relação a esse
filme, importante seria mencionar seu happy end, no qual
a integridade pessoal e seu poder é salva como possibilidade que ultrapassa o determinismo genético, figurada na
vitória do “filho do acaso” (miserável geneticamente) sobre seu irmão manipulado.5 Idealização vaga e infantil de
que algo maior que o patrimônio genético, associado a um
meio ambiente devorado e moldado pela sistematização
social e política dos recursos genômicos, existiria e permaneceria como fundamento último de um livre-arbítrio
(sobrenatural porque “sobregenético”) humano que agora, em vez de lutar contra os desígnios opacos de um Deus
absconditus, lançar-se-ia à luta contra os desmandos da
engenharia genética e sua lacaia, a sociedade genista. Típico manifesto cínico que falsamente ensaia a fuga (e recusa) do terror ontológico instituído pela sociedade baseada no consumo sistemático e legítimo de bens genômicos.
Outro marco fundamental e exemplificador das controvérsias filosóficas com relação à genética de consumo – e
que me servirá para introduzir o modo de reflexão que se
70
CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO...
conteúdo ontológico latente da equação eliadiana (devido ao pavor que experimentamos diante da nossa desgraçada estrutura ontológica).
Parece, portanto, que deveríamos dar mais atenção ao
eixo propriamente ontológico do problema e, neste sentido, uma rápida reflexão sobre o motto no início deste percurso seria de grande ajuda.
Segundo o que nos diz Elias, haveria uma redução acentuada nos pavores mentais sobre a prática das chamadas
ciências naturais e a reflexão produzida sobre tal prática
nas sociedades industrializadas,10 ao passo que, no campo
dos conflitos sociais e de sua necessária reflexão, esses
pavores mentais permaneceriam ativos em virtude da falta
de segurança (antes de tudo, epistemológica) existente aí,
em oposição à segurança com relação ao controle intelectual sobre o universo dos “objetos naturais”. A reflexão de
Elias aqui, evidentemente, se insere na sua preocupação
sobre a presença dos padrões “mistificadores” e da ingerência dos afetos (ansiedade, insegurança, etc.) no campo
da epistemologia aplicada às ciências sociais (ou às ciências em geral), o que desenharia o círculo vicioso do pavor
mental inviabilizando uma prática mais efetiva de objetividade no lidar com os “objetos sociais”. A reflexão de Elias
situa o problema de modo bastante esclarecedor, ainda que
evidentemente partindo de outra trama de conceitos e girando ao redor de outra gama de temas. A tentativa de descrição do processo de dissolução do conceito de natureza
não deixa de ser um percurso conceitual que muito se aproxima da batalha de Elias contra a força aglutinadora, porém infeliz, de um ponto de vista cognitivo e epistemológico
dos “fantasmas” dos produtos reificados do chamado intelecto – ele mesmo, uma reificação de uma função do sistema nervoso humano materializada no espaço social – sobre a atividade reflexiva humana ao longo da história da
filosofia e das ciências, história que se coloca como um ato
específico dentro do drama geral no Ocidente que chamaríamos, ainda seguindo Elias, de “o processo civilizador”.
A tensão entre cultura e natureza é exatamente um dos modos
pelos quais podemos descrever o devorar do natural pelo
cultural.
Por dissolução do conceito de natureza entende-se um
longo movimento da cultura ocidental que, com o advento
da biotecnologia, mais especificamente a genômica e sua
engenharia, terminará por produzir a decadência da tensão
citada, porque será normal a idéia segundo a qual aquilo
que se chamava natureza passa a ter apenas o estatuto de
matéria-prima bruta da atividade biotecnológica avançada
– não existe tensão ontológica alguma entre os carros e o
xão cínica seria exatamente a atitude intelectual que assume o mal-estar e encara o abismo ontológico no qual estamos prestes a mergulhar, fruto do próprio projeto de
emancipação que caracteriza as “melhores almas” no Ocidente. Genômica não é na sua raiz delírio nazista, ainda
que a ele tenha servido, mas o resultado do desejo do homem e da mulher ocidentais na sua luta interminável contra a natureza devoradora e seu Criador. Tal reconhecimento em absoluto pressupõe a institucionalização de um
novo e ingênuo “14 juillet” para celebrar a queda da última Bastilha, a natureza, esta senhora caprichosa, mas sim
a fundação de uma reflexão que parte da assunção do seu
“objeto de desejo” com nome próprio, ou seja, a liberação do ser humano de qualquer forma de limite imposto à
sua capacidade técnica e reflexiva de moldar seu próprio
destino, seguindo a trilha baconiana de controle e submissão da natureza com o objetivo de melhorar suas condições de vida.
A reflexão aqui, de certa forma, em muito se aproxima
da “defesa de Adão” mencionada por John Milton na sua
obra Paradise Lost: “transgredidos os limites impostos por
Deus, que legislemos livremente sobre nosso jardim da
des-graça” (Milton, s.d.). Poderia se dizer que este é o
primeiro “halo” que na realidade paira como éter sobre o
pensamento quando se trata de encarar o drama ontológico
causado pela genômica. Nesse sentido ela reedita os mitos adâmico e prometeico na sua forma mais violenta, e
retomando a equação proposta por Eliade, isto é, “religião é criptoontologia”, a relação entre a genômica e os
universos míticos ocidentais que narram a desmedida humana aponta para as profundas ressonâncias religiosas que
se impõem quando se trata de analisar detidamente a cultura e os hábitos de consumo que estão por surgir. Todavia, em uma primeira apreciação, não parece que a religiosidade oportunista de raiz instrumental e narcisista que
caracteriza a retomada espiritual no final do milênio apresente muita resistência ao consumo dos recursos da
genômica, pelo contrário, rapidamente deverá produzir alguma lenda periférica que justifique a libertação espiritual pelo aperfeiçoamento dos “genes imateriais”.9 As bravatas oficiais ou canônicas contrárias à genômica deverão
seguir o curso normal das proibições ao uso de preservativos. Não penso que os desdobramentos mais interessantes se darão neste terreno da religiosidade explícita. As
ressonâncias religiosas a que se fez referência anteriormente, ainda que certamente possam causar angústias legítimas de cunho religioso institucional em alguma parcela da população, apontam mais especificamente para o
71
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
mo, é usualmente compreendido como o rochedo contra
o qual se despedaçam todas as formas de universalismos
em virtude da falta de critérios últimos e insuperáveis: a
(duvidosa) escolha humana torna-se agente da definição
dos parâmetros de sentido na organização genista da matéria viva, e o sentimento de vertigem aproxima-se da
condição de um barco à deriva, sem cais. A matéria (o
Ser) é definitivamente submetida à ética, à economia e à
política. No caso da cultura baseada no mercado livre de
bens genômicos, os modelos platônicos pré-rearranjo técnico se revelam potencialmente inferiores, exatamente
porque são identificados como meros produtos do acaso
e não de uma ordem “perfeita” transcendente. Encurralase o absoluto desnudando-o de sua necessidade, iluminando, na realidade, sua miserável contingência. E contra os
efeitos nefastos das contingências, a civilização ocidental lança seu “maduro” projeto baconiano que se estabelece como oferta da programação técnica de organizações
superiores da matéria viva, mais apropriadas para as demandas do mercado da evolução humana. Aí repete-se a
transcendência assustadora. Aparentemente, a miséria
ontológica estrutural do ser humano parece contagiar a instância que até então era a portadora da dinâmica de perenidade, desmascarando sua condição de acaso. O “novo”
paraíso de Adão será mais “adaptado” pois não estará preso (ou pelo menos, estará em menor escala) aos ditames da
contingência (nova face da natureza criadora, mergulhada
na humilhante categoria de objeto da técnica adâmica), e
nessa medida, terá uma perfeição mais real e mais útil.
Mas diante de tamanha possibilidade de emancipação, por
que tamanho pavor, afinal? O abismo ontológico no plano
religioso profundo pode ser identificado com o desconforto
do ser humano em aceitar a proposta de Milton feita a Adão
(legislar livremente sobre o jardim da des-graça) e a responsabilidade metafísica que tal proposta acarreta,13 aliás, o mesmo peso que faz (em menor grau) toda uma cultura contemporânea baseada no projeto existencial da “adolescência
eterna, reativa ao vazio metafísico” recusar as agruras da idade
adulta em todos os planos, mergulhando a sociedade em delírios narcíseos (a atitude narcísea é essencialmente infantil). Outro argumento também relacionado mais diretamente
com explícitas dimensões ontológicas é a afirmação de que
a manipulação gênica seria contra a condição humana. Mas
afinal, o que vem a ser esta condição humana senão a de combater a natureza que nos devora?
O fato da natureza passar a sofrer das mesmas mazelas
humanas (isto é, sua intencionalidade duvidosa) pode ser
seguramente uma outra referência do medo, materializado
petróleo mas sim meramente procedimentos técnicoambientais e de produção. Tal processo envolverá a gradual perda de significado cognitivo (ainda que não-poético) dos vocabulários que têm seu eixo na idéia de natureza
– que revelará desse modo sua real condição de “objeto
reificado” desmontado pela genômica de consumo – e, como
desdobramento, esvaziará toda e qualquer articulação racional que tentar fazer uso desses vocabulários como fundamento de práticas social, lógica e psicológica baseadas
na tensão já referida. Todo esse processo recoloca o estranhamento e o desconforto na atividade reflexiva tal como
Elias fazia referência na citação anterior.
Esse processo se dá em um universo materialista que,
ao contrário do que se pensava, foi o verdadeiro agente da
mais radical experiência de transcendência produzida até
então: com a biotecnologia encontramos, e vamos alargar,
a brecha do Ser. Por que “transcendência”? Porque o Ser,
ou seja, a matéria (viva) passa a ser submetida aos procedimentos (meramente) humanos de produção e sofisticação. A civilização ocidental agora lança suas garras sobre
a matéria viva, organizando-a da melhor forma possível do
ponto de vista da cultura.11 Transcendência porque ultrapassa-se (ou pelo menos reduz-se radicalmente) os padrões
de sentido da matéria viva exclusivamente definida até então
como a tensão onde a natureza seria o pólo que resistiria
por definição à cultura. A natureza não é mais o outro da
cultura.
O que prepara o processo de “civilização da matéria
viva” é o relativismo12 que se instala em seu seio. Por meio
dele, a dimensão de ansiedade retorna ao trato com os
objetos naturais porque os revela enquanto objetos da
cultura e, assim sendo, volta a situá-los enquanto “objetos sociais” inseridos em um mar de intenções construídas social e psicologicamente, por exemplo, as diferenças (meramente) econômicas são redefinidas em termos
biotecnológicos e portanto se dissolvem no mar do
relativismo ontológico, revelando sua face mais violenta
enquanto intratável equivocidade moral – quem não tiver
acesso às técnicas de manipulação será entregue aos
desmandos da natureza precária e selvagem, o “divino”
acaso –, pois a espessura da miséria social será mais do
que nunca também de espessura biológica. A reflexão a
partir da biotecnologia genética é revisitada pelos pavores humanos, mas na sua modalidade lovecraft: o terror
do abismo ontológico e da ausência de referências universais extra-humanas (ou sobre-humanas) consistentes.
O corpo torna-se humano, demasiadamente humano. O
relativismo forte, produto da mente praticante do ceticis-
72
CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO...
tica como algo “opressor” por ser “antinatural”. Quem permanecer na recusa da revolução genética, em defesa de uma
natureza inexistente, será como um nômade diante da revolução da agricultura, vagando no vazio da nova hierarquia social do Ser (social e psicológico), como um pária
ontológico.
Ainda que, na maioria das vezes, toda essa questão seja
tratada dentro de um cenário “futurista” néon, na prática
provavelmente se dará de um modo muito mais banal. O
filme Gattaca, já citado, aqui também serve como indicação temática: as decisões deverão se dar muito mais no
plano privado dos afetos e arranjos familiares. Casais possuidores de bons planos de saúde irão aos seus laboratórios, em manhãs cheia de sol e de amor (e dos “melhores”
planos para a futura criança), aconselhados por um consciencioso profissional da área de pré-natal e lá completarão a seleção interna de seus patrimônios genéticos. Não
será muito diferente dos passos, em breve arcaicos, que
ocorrem hoje quando já somos munidos de formas precárias de terapias (preventivas) genéticas. Aliás, de certa
forma, a terapia genômica será apenas uma forma poderosa de medicina preventiva pré-natal. Mesmo os mais amantes dos “delírios” em favor do acaso, terão mais dificuldades – dúvidas existências14 – em correr riscos quando
contarem com formas seguras de evitar sofrimentos biológicos para sua prole. Evidentemente, toda essa sistematização produzirá um poderoso vetor de paranóia e discriminação, inclusive no já precário mercado do amor, levando
os consumidores de parceiros love hunters ao delírio maior
estilizado no filme Gattaca e seu genetic i.d. Em breve,
toda a identidade genética15 – sem paranóias muito estranhas – será assimilada ao cabedal cotidiano de “dados”
que um adulto consciente tem de levar em conta quando se
lança à pesquisa mercadológica dos afetos, principalmente quando envolve a “sagrada” idéia de compromisso por
amor. Pais conscienciosos, evidentemente, serão obrigados – movidos pelos “melhores sentimentos” produzidos
por uma educação elaborada, típica das elites conhecedoras do que “há de mais novo” em termos de sofisticação
dos modos de adaptação às necessidades do “mercado de
futuros”– a introduzir essa variável nos diálogos esclarecidos com seus jovens filhos e filhas (produtos da “carinhosa” programação genética, evidentemente), que como
sempre, tenderão a fazer escolhas pouco pensadas e por
isso mesmo, de grande risco (genético).
Todavia, uma outra variável (ainda mais aterrorizante
para os descendentes angustiados de Adão) tem de ser
introduzida nesta discussão acerca dos padrões de com-
em idéias simplistas como “exércitos nazistas indestrutíveis”. Aqui, o infantil enredo cyberpunk (o cenário é
muito mais próximo, na realidade, do livre e “democrático” mercado de bens de consumo, entregue às grandes companhias de seguros de saúde e às empresas como Celera
Genomics, legítimos agentes do mercado de serviços e
dessa arrasadora forma de medicina pré-natal) na realidade esconde a verdadeira face da trama política latente em
discussões como o problema das patentes e a definitiva normalização jurídica do poder do capital sobre os códigos
das (futuras) melhores formas genéticas de adaptação às
demandas da evolução das espécies. Por outro lado, a simples determinação de que tais códigos seriam patrimônio
público, ainda que representem um ganho, antes de tudo
simbólico em relação à proposta (provavelmente vitoriosa
em maior escala) da patente privada, não representa um
grande avanço uma vez que todas as relações políticas tendem a ser sustentadas em bases de custos econômicos, e a
humanidade, além de ser, como bem definiu o filósofo francês Alain Finkielkraut (1996), uma construção conceitual
já perdida, que apenas permanece enquanto resto do conceito, não detém o monopólio da violência econômica legítima. A tendência será a privatização dos instrumentos
de poder – assim como, por exemplo, privatizam-se os instrumentos de ação pública via a simples prática da corrupção ou de sua forma “sublime”, o lobismo – sobre a violência genômica legítima. Parece-me, portanto, que o
aparente grande combate entre os partidários da privatização explícita e os defensores da propriedade pública (privatização implícita) tende a se esvaziar quando se tratar
do acesso efetivo às técnicas genômicas, principalmente
em sociedades como a brasileira, em que o Estado e a sociedade são suicidas. Todavia, tal embate pode representar seguramente um maior acesso democrático às técnicas
genômicas uma vez que algumas sociedades, menos reféns
da miséria política que assola países como o Brasil, assimilarem esse modo radical de emancipação aos seus programas político-sociais, em vez de ficarem paralisadas diante do imaginário aterrorizado pelo abismo ontológico que
ela representa. Tal atitude é diretamente dependente de uma
ampla democratização da reflexão sobre a engenharia genética, uma prática reflexiva que seja livre da consciência
“pecadora” e que sofre de pesadelos noturnos por ter mais
uma vez apostado na serpente. O terror aqui assume sua
clara consistência política, portanto paralisa a capacidade
do senso comum para perceber a revolução em curso, e,
para isso, nada melhor que o investimento em imaginários
infantis apocalípticos que apresentam a engenharia gené-
73
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
portamento dos casais reprodutores, sejam eles de fato
binucleares ou mononucleares (usuários de bancos de
espermatozóides ou óvulos): a alteração do critério legítimo de filiação. Hoje em dia, e ainda enquanto a filiação
se der em bases “homogenéticas” (mesmo quando a programação interna ao patrimônio genético dos agentes for
assimilada pelo comportamento sistemático da reprodução geneticamente assistida), a filiação é um evento integrado ao que poderia definir como “campo biológico estrito” – salvo nos casos de adoção que representam uma
exceção à regra. Isso pode ser alterado desde que, genes
desejados e úteis (isto é, os recursos genômicos existentes em um dado momento no mercado) possam ser aceitos juridicamente como parte da procriação geneticamente assistida, passando a filiação a ser redefinida por
porcentagens homogenéticas ou de documentos representativos da “compra” legítima de patrimônios heterogenéticos que deverão garantir a melhor adaptação do
amado filho ou da querida filha. A sistematização desse
procedimento levará a sociedade a um rigoroso esforço
jurídico para legitimamente redefinir as bases da hereditariedade familiar. Por exemplo, em uma eventual separação, o parceiro que tiver comprovado a “compra” do
maior ou mais definitivo (inclusive em termos financeiros, talvez) componente heterogenético introduzido na
criança, terá provavelmente um argumento de peso para a
sua guarda.16 Vê-se aqui uma radical transformação da
noção social de filiação, na qual o privilégio, antes dado
à “continuidade” biológica, cede espaço aos processos
jurídicos e “estritamente sociais” (artificializantes) de
determinação das identidades e das legitimidades.
Biologiza-se a sociedade na mesma medida em que se
socializa a biologia: só que o biológico se torna commodity
enquanto o social se radicaliza como critério (artificializante). É exatamente esse o processo de relativização ao qual se fazia menção anteriormente: os critérios
são cada vez mais móveis e civilization-dependent. Dessa forma, seria possível se sugerir que todo o processo
“natural” de adaptação da espécie (de todas as espécies,
na realidade) torna-se função da sociedade civilizada e
tecno-instrumental, e a ecologia genética da espécie, provavelmente, irá se tornar uma obviedade, na linha das
decisões que definem as políticas (nos dois sentidos do
termo) de biodiversidade.17
A relação entre a violência genômica legítima e o mercado de trabalho é algo já bastante evidenciado. A tendência deverá ser a assimilação progressiva dessa forma sofisticada de violência adaptativa aos processos já em curso
de identificação de recursos humanos. Evidentemente que
legislações poderão buscar formas de atenuar tal assimilação. Todavia, são tentativas que devem ocorrer dentro de
um quadro já avançado de instalação das chamadas “formas de flexibilização” – legitimização definitiva da violência do capital sobre o trabalho – da alocação de recursos humanos. Assim sendo, o vetor aponta mais para uma
pura e simples assimilação pacífica que para a sua
inviabilização, reproduzindo nesse processo específico o
movimento geral de cada sociedade e seus mecanismos
(ativos ou não) de proteção dos indivíduos quanto à violência estabelecida por parte do capital contra o trabalho,
isto é, a violência propriamente econômica da genômica
tenderá a se ajustar aos quadros (ou vícios) já existentes
em cada sociedade, acirrando, todavia, um agravamento
das tensões preexistentes na estrutura. Por outro lado, os
integrantes do mercado de trabalho deverão se adaptar na
mesma linha de preocupações a ser apresentada pelos
reprodutores biológicos. Assim como se deve aprender línguas estrangeiras, o indivíduo em busca de um maior grau
de adaptação deverá investir no ajuste genômico de seus
descendentes assim como no próprio, neste caso por formas paliativas de redução de fenótipos indesejáveis. A
evolução de tal assimilação para atitudes discriminatórias
e modos de funcionamento na base de “castas gênicas” pode
ser um dos estágios no início do processo. Entretanto, com
o aumento gradativo do consumo, via ampliação do acesso aos recursos, o que de início pode parecer uma “casta”
voltará à “normalização” pela racionalidade do mercado:
ninguém pensa no enorme contingente de pessoas que
morrem de fome diariamente no mundo como uma “casta”
legítima de vítimas que têm o direito de reivindicar o que
lhes é negado pelo mercado, nem como vítimas de uma
discriminação “étnica”, mas simplesmente como uma condição normal do processo de adaptação das “coisas”. Brevemente teremos “autoridades genômicas” – semelhantes,
ainda que com maior consistência científica, às “autoridades monetárias”, esta falácia contemporânea – esclarecendo como os recursos genéticos são em si democráticos e
“apolíticos”, e como os indivíduos que deles não fazem
uso são vítimas da própria “culpa” ou atavismo comportamental. A usual metáfora “naturalista” lançada para neutralizar a conscientização política poderá ser bastante útil
e, a menos que percebamos que o principal sentido filosófico da genômica é a própria dissolução da natureza, permaneceremos presos a esses discursos que absurdamente
buscam o refúgio na pobre natureza para suas verdadeiras
raízes ideológicas, históricas e sociais.18 É exatamente em
74
CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO...
momentos como esses que a decadência ontológica da natureza gerada pela genômica no plano filosófico deve ser
trazida à luz e tornada compreensível para o senso comum:
o sentido verdadeiramente político de toda essa “história
da Natureza” saltará então aos olhos. E se existe uma “história” é porque algum processo de relativização de alguma forma se deu. Civilizar é um modo específico de declinar a ação histórica. Com a morte dessa natureza, tudo se
humaniza e se torna objeto social e político. Evidentemente
“escolher cansa” e uma resistência cega permanecerá ignorando cinicamente o processo em curso de dissolução.
É interessante perceber como, ao lado de tal revolução
genética, os discursos naturalizantes da história permanecem ativos. Será possível identificar aí um processo de alienação semelhante ao papel político-social muitas vezes
desempenhado pela religião: a pura e simples crença em
uma natureza que legislaria via o (suposto, mas irreal) acaso, passa a ser o poder incognoscível que, eternamente latente no velho lamento da orfandade metafísica moderna,
permanece como resíduo que legitima o pavor diante do
risco estrutural que caracteriza a aventura do conhecimento – o medo de Fausto e de seu “pai” Adão. A idéia corriqueira de que grandes “desgraças” acontecerão devido à
genômica é, em muito, fruto desse resquício teológico (e
teleológico) de que forças indomáveis (O Sagrado) permanecem retendo o sentido das coisas. Convivemos diariamente com desgraças geradas pelo modelo econômicosocial que abraçamos e jamais consideramos o próprio
modelo como a desgraça. Voltando ao diálogo com
Sloterdijk, parece que sem dúvida o nazismo prestou um
grande serviço ao imaginário “moral” do Ocidente ao dar
uma suposta definitiva localização ontológica e “moralgeográfica” do mal, poupando-nos o desconfortável trabalho intelectual e afetivo de perceber o quanto de normal, banal e racional19 teve a aventura nazista.
Na realidade, parece-me que o caráter mais marcadamente criminal da revolução genética acontecerá dentro
dos padrões definidos pelo sociólogo espanhol Manuel
Castels (1999) como “conexão perversa”. Grosso modo,
essa “conexão” se caracteriza pela perfeita harmonia entre o comportamento do capitalismo globalizado e estabelecido em redes e o modus operandi das redes internacionais de crime organizado, empresas que por sua selvagem
habilidade em operar com velocidade, flexibilidade e violência, estão na proa da atitude mais bem sucedidamente
adaptada a uma sociedade (des)regrada pelas ausências de
regras e submetida ao império dos desejos nas mais diversas escalas. Os recursos genômicos se enquadram total-
mente na linha de produtos que a “conexão perversa” comercializa, aliás, toda a rede de comércio ilegal de órgãos
humanos poderá servir já como uma pré-especialização para
a identificação de recursos humanos logísticos alocados
para lidar com a sofisticada mercadoria biológica. Um outro
fator que poderá agravar uma tendência à “conexão
genômica” é a demora da sociedade legítima para atuar sobre a revolução genética de modo não-cínico. Aqui também o horror ontológico pode fazer seu estrago, pois poderá abrir espaço para uma infeliz criminalização de alguns
recursos genômicos mais agressivos tecnologicamente, ao
potencializar o cinismo intelectual.
Outro terreno em qualquer reflexão que pretenda enfrentar intelectualmente a revolução genética são os campos da fisiologia e psicologia. Não se pretende abordar
aqui a longa e árdua discussão sobre o determinismo (ou
não) presente nos modelos antropológicos genomicsoriented. Isso não implica supor que tal objeto de reflexão seja inválido, mas simplesmente que ele é uma
superespecialização na reflexão geral sobre a revolução
genética e não é o primeiro na escala de preocupações de
uma reflexão que pretenda iluminar o “senso comum”
quanto ao horror ontológico paralisante. Evidentemente,
o palco da controvérsia entre deterministas e antideterministas será fundamental na reflexão sobre a revolução em curso.20 Todavia, não se pode pensar que a revolução genética dê a “vitória” tão evidente para qualquer
um dos “lados”, simplesmente porque se tenderá a assimilar os recursos genômicos da gama de insumos que lançamos mão no processo de adaptação, e nessa medida os
“genes” estarão fortemente submetidos às relações sociais
e aos atores, eles mesmos devorados pela bioquímica
genômica de consumo. Com isso, quer se apontar para a
circularidade latente nessa controvérsia acerca do
determinismo. Sem dúvida o patrimônio genético é um
exemplo do que poderíamos chamar de “contexto forte”,
entre outros inúmeros, na condição humana.21 Mas supor
uma autonomia forte do ser humano, à semelhança dos
iluministas utópicos pré-crítica romântica alemã, é pura
ingenuidade filosófica. Carregar (prioritariamente) na discussão sobre o determinismo – supondo ser esta a grande
issue no advento da genômica – é mais uma forma de escamotear a artificialização da natureza em curso na normalização da práxis genômica. Qualquer processo de observação empírica – assim como qualquer modelo
terapêutico associado ou decorrente dela – do comportamento e da trama de dramas humanos aprenderá a lidar
com o “contextualismo genômico”, da mesma maneira que
75
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
1. Ainda que no capítulo especialmente dedicado à biotecnologia se peque pelos
mesmos erros metodológicos e de conteúdo a que faremos referência na seqüência, o livro de Roger Shattuck (1998), é uma interessante exposição introdutória,
ao alcance do leitor brasileiro que (infelizmente) ainda não lê inglês, sobre o caráter estrutural de risco do conhecimento a que fazemos menção aqui.
tem aprendido a lidar com o “contextualismo farmacológico”, por exemplo. Assim sendo, a fisiologia e a psicologia tenderão, neste modo de ver, a lidar “pontualmente” com a dissolução da natureza, isto é, dentro de seus
campos específicos de observação e sem necessariamente tomar consciência de tal ruptura ontológica. Não parece que farão resistência significante ao processo em curso, e também insistirão em abordagens que iluminarão
“microscopicamente” o processo, e assim sendo não facilitarão a vida do consumidor na melhora de sua “acuidade
visual ontológica”. As alterações fisiológicas ou psicológicas – como, por exemplo, a elevação do “coeficiente
genômico” da população – deverão fazer parte – como já
o fazem – do próprio processo de normalização do paradigma genômico.
Desse modo, pode-se pensar que para uma abordagem
realmente esclarecedora da dimensão do que está em jogo
no tema da revolução genética, faz-se necessário antes de
tudo o enfrentamento deste tema em chave filosófica. É
muito provável que a passagem se dê diretamente das discussões chamadas de “éticas” (que usualmente perdem de
vista o problema ontológico do horror ao qual já se fez
referência) para os procedimentos técnico-jurídicos, sem
esclarecer suficientemente a ruptura ontológica fundamental que se processa diante de nossos olhos. Sofreremos os
efeitos de tal ruptura ontológica de qualquer modo. Para
além dos efeitos inevitáveis que uma ruptura dessa magnitude terá sobre a totalidade da sociedade, esse momento poderia se transformar em uma rara oportunidade para
perceber que estamos mais uma vez, assim como nossos
antepassados já estiveram, em profundo contato com movimentos viscerais do Ser. Lembrando pela última vez o
historiador Mircea Eliade, Ser implica indagação do sentido último (ou sua total ausência) das coisas. O fenômeno sobre o qual se tentou lançar alguma luz, a dissolução
da natureza pela genômica de consumo, é na realidade um
diálogo radical e absolutamente contemporâneo com o Ser.
Pelo diálogo, elabora-se o terror que tal vertigem envolve. Desde os primórdios sabe-se que nossa espécie elabora seu terror estrutural produzindo cultura. Faz parte necessariamente da ruptura atual tanto o terror que ela gera,
como o possível diálogo com este mesmo terror. Palavras
ditas a um coração angustiado podem evitar que ele seja
devorado pelo medo. Quem silenciar, ficará cego.
2. Infelizmente, é comum uma certa incompreensão por parte dos técnicos em
ciência laboratorial da amplitude dos desdobramentos de suas (pequenas) atividades diárias para a sociedade em geral, levando-os muitas vezes a simplesmente
desconhecerem tais desdobramentos ou pensarem que se tratam de produtos delirantes de ficção. Um pouco de cultura histórica aplicada às ciências naturais seria
interessante a fim de recuperar um pouco da perspectiva histórica a que fazem
referência autores como (entre outros) Thomas Kuhn (1987), ou mesmo um maior
trato com a clássica literatura de ficção científica como Júlio Verne e outros.
3. Este problema do cinismo será novamente abordado com a controvérsia
Slotyerdijk/Habermas sobre a revolução genética.
4. Por tal dissolução não se pretende evidentemente dizer que as leis naturais
deixam de existir mas simplesmente que a natureza, enquanto lugar ontologicamente
oposto à técnica ou cultura, perde sua consistência geográfica. Essa clássica oposição, grosso modo, herdada da Grécia, perde a validade porque a natureza pode
ser programada e organizada exatamente pelo conhecimento técnico que adquirimos sobre suas leis mais íntimas. Assim sendo, dissolve-se como agente absoluta
alheia a intenções e necessidades humanas e passa a ser devassada pelo poder
humano de transformação técnica.
5. Exemplo típico do “cinismo”: escamoteia-se a verticalidade e horizontalidade
do problema colocado pelo próprio enredo do filme via uma solução “Cinderela”.
6. Sobre tal controvérsia seria interessante ver o Caderno Mais! (Folha de S. Paulo, 12/10/1999).
7. Neste aspecto, foram de grande valia como defesa da posição de Sloterdijk os
textos publicados pelo intelectual francês e judeu, Bernard Henry-Levy: quem
mais do que um judeu, diante da paranóia paralisante do nazismo, teria capital
simbólico para reafirmar e esclarecer as “perigosas reflexões” do alemão
Sloterdijk?
8. Mais especificamente, o projeto humanista (emancipação humana via uso de
sua razão natural) veria esse aperfeiçoamento “assustador” como fruto da revolta
renascentista e radicalizada pelo Iluminismo baseada na idéia da plena assunção
do ser humano de sua condição de órfão de um Pai silencioso, inútil e injusto.
9. Sobre isto, já é possível ver as sínteses fantásticas que andam por aí a tratar de
algo que seria uma “cabala genética”.
10. Libertando-nos do pensamento mágico como cadeia de argumentos que dariam conta dos fenômenos naturais.
11. Daí os comentários típicos (e rasos) quando se fala em engenharia genética,
de que surgirão “modismos” nas cores dos olhos e coisas semelhantes. Para além
do excesso “ficção científica hollywoodiana”, que serve de horizonte em tais reflexões simplistas, existe a consciência latente por parte do senso comum das fronteiras em jogo no processo “civilizador da matéria”. Com a biotecnologia genética, a matéria viva inteligente se liberta do domínio exclusivo dos “cegos instintos
atômicos” e penetra as infinitas possibilidades dos arranjos técnicos, culturais e
imaginários dos seres humanos.
12. O Homem passa a ser, seguindo a fala de Protágoras, a medida também da
Natureza.
13. Trata-se do problema do medo diante da orfandade metafísica.
14. No início da sistematização do consumo legítimo, provavelmente a terapia
genômica se converterá em mais uma das infinitas causas de conflitos maritais.
15. O termo “identidade” aqui se refere, ambiguamente, tanto à identidade pessoal psicossocial (agora também definida em termos genéticos) quanto ao RG.
16. Evidentemente que tal fato integra-se às variações psicossociais que vêm acontecendo no comportamento dos pais quanto ao cuidado dos filhos, isto é, mais e
mais os papéis de “pai” e “mãe” se distanciam da relação direta com as figuras
biológicas de “pai” e “mãe”. A crescente revolução das mulheres para se libertarem da “obrigação solitária” de cuidar da cria pode vir a ser um agravante na
complexidade nas sentenças jurídicas que envolvam a decisão da guarda das crianças em um futuro próximo.
17. Insisto que nada disso implica um imaginário Admirável mundo novo.
18. Portanto culturais e não-naturais.
19. No sentido mais instrumental que possa ter este conceito.
NOTAS
20. Seria interessante lembrar aqui a importância, por muitos desconhecida, da
controvérsia do século XVII sobre a relação entre graça divina e natureza humana (agostinianos x jesuítas) quanto à economia moral do comportamento humano
E-mail do autor: [email protected]
76
CULTURA GENÉTICA: VERTIGEM ONTOLÓGICA E DISSOLUÇÃO...
em todo o processo de decadência da consistência racional dos vocabulários teológicos – como dito anteriormente ao citar Richard Rorty – no Ocidente. Um dos
principais produtos de tal controvérsia é exatamente a derrocada de Deus como
integrante consistente do diálogo ontológico (moral e científico) nas sociedades
filhas do Iluminismo francês.
ELIADE, M. A history of religious ideas. Chicago, The University of Chicago
Press, 1978.
ELIAS, N. El Proceso de la civilización. México, Fonde de Cultura, 1993.
__________ . A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994.
FAYE, E. Philosophie et perfection de l’homme, Paris, J. Vrin, 1998.
21. Aliás, reconhecer tal força é mais que esperado, se pensarmos que o materialismo é nosso “paradigma normal”.
FINKIELKRAUT, A. L’humanité perdue. Paris, Gallimard, 1996.
FOLHA DE S. PAULO. Caderno Mais, 12/10/1999.
GÖETHE, J.W. Fausto. São Paulo, Edusp, 1981.
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DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo, Ed. Abril, 1983 (Coleção
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WILSON, E. O conscilience. Nova York, Alfred A.A Knopf, 1998.
77
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
GEOTECNOLOGIA
tendências e desafios
OMAR YAZBEK BITAR
Geólogo, Pesquisador da Divisão de Geologia do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo
WILSON SHOJI IYOMASA
Geólogo, Pesquisador da Divisão de Geologia do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo
MARSIS CABRAL JR.
Geólogo, Pesquisador da Divisão de Geologia do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo
Resumo: Este artigo apresenta considerações sobre tendências e desafios no campo das aplicações do conhecimento das geociências, abordando aspectos relacionados ao uso da geotecnologia no monitoramento de processos geológicos naturais e induzidos, prevenção de riscos, recuperação de áreas degradadas, construção de
obras civis, aproveitamento de recursos hídricos e mineração. Discute-se, em especial, a partir de observações
gerais acerca do panorama mundial, as perspectivas da geotecnologia no contexto do Estado de São Paulo em
face do desafio do desenvolvimento sustentável.
Palavras-chave: geociências; processo geológico; recursos naturais.
O
panorama mundial de tendências no campo da
geotecnologia, compreendendo em especial as
múltiplas aplicações das geociências para a solução de problemas de engenharia e o aproveitamento de
recursos naturais, particularmente os recursos hídricos,
minerais e energéticos, encontra-se hoje fortemente
influenciado pelo debate globalmente difundido em torno
da crescente degradação ambiental do planeta e do desafio de alcançar um desenvolvimento verdadeiramente sustentável para a sociedade humana.
A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, realizada em junho de 1992 na cidade do Rio de Janeiro, tinha o objetivo de elaborar estratégias que pudessem interromper e reverter os efeitos da
degradação em curso, reduzindo as ameaças à sobrevivência da humanidade e, ainda, tornando viável o desenvolvimento e interrompendo o ciclo causal e cumulativo entre subdesenvolvimento, condições de pobreza e problemas
ambientais. A Agenda 21, principal produto da Conferência, avalia que a crescente demanda por recursos naturais
tem gerado competição e conflitos que resultam na degradação do solo, indicando que a solução desse problema
exige uma abordagem integrada do uso do solo, focalizando a tomada de decisões e a consideração simultânea
das questões ambientais, sociais e econômicas.
Surge, então, talvez até como esboço de um novo paradigma para a humanidade, a busca da qualidade de vida
como referência existencial, em um contexto no qual os
investimentos e as proposições de projetos de engenharia
e uso de recursos naturais começam a deixar de ser analisados apenas pelo seu caráter tradicionalmente desenvolvimentista, passando a ser concebidos e avaliados sob a
perspectiva de sua efetiva contribuição à sustentabilidade ambiental, social e econômica, tanto sob o ponto de
vista local quanto regional e global.
De fato, as geociências se adaptam a essa tendência
geral e começam a direcionar parte significativa de suas
pesquisas e aplicações para o desafio do desenvolvimento
sustentável, procurando dar respostas às demandas correlatas. A realização do 31o International Geological Congress,
evento quadrienal que reuniu cerca de 5 mil geocientistas
de 120 países em agosto de 2000 na cidade do Rio de Janeiro, reflete claramente essa tendência, porque teve como
foco principal o tema “Geologia e Desenvolvimento Sustentável: Desafios para o Terceiro Milênio”.
Cordani (1998), ao discutir o papel das geociências na
construção de um mundo sustentável, a partir de um panorama global, identifica importantes áreas de contribuição:
monitoramento contínuo dos processos que compõem o sistema Terra; pesquisa, gerenciamento e suprimento de recursos minerais; pesquisa, gerenciamento e suprimento de
recursos energéticos; conservação e gerenciamento de recursos hídricos; conservação e gerenciamento de recursos
dos solos agricultáveis; e redução de desastres naturais.
78
GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS
Outro aspecto relevante diz respeito aos diversos fenômenos de afundamento de terrenos em áreas ocupadas
sobretudo por habitações ou indústrias, relacionados com
a ocorrência de processos cársticos (abrangendo regiões
de domínio de rochas carbonáticas, como no setor noroeste
da Região Metropolitana de São Paulo e no alto vale do
rio Ribeira) ou com problemas de contração/expansão de
maciços terrosos e, ainda, decorrentes da presença de solos colapsíveis que provocam recalques diferenciados nas
fundações de obras.
Nesse contexto, as demandas em geotecnologia no
Estado de São Paulo, sejam públicas ou privadas, estão hoje associadas sobretudo às necessidades de caracterização, avaliação e solução de problemas decorrentes
da intensificação das relações continuadas entre intervenções humanas e o meio físico geológico, tanto na
construção de obras de engenharia como na utilização de
recursos hídricos e minerais, sob a perspectiva da sustentabilidade.
MONITORAMENTO DE PROCESSOS
E PREVENÇÃO DE RISCOS
Serra do Mar
O cenário da situação ambiental do território paulista
evidencia o modo inadequado e insustentável pelo qual o
meio físico tem sido historicamente ocupado e utilizado
no Estado. Problemas como erosão laminar na agricultura, que ocorre em amplas áreas do oeste paulista, erosão
linear (sulcos, ravinas e boçorocas) em diversas cidades
médias e grandes (como Bauru, Casa Branca e Franca),
assoreamento de cursos e corpos d’água (como demonstram os canais dos rios Tietê e Pinheiros na cidade de São
Paulo), enchentes e inundações (como em São Paulo,
Piracicaba e Presidente Prudente), subsidências e colapsos de terrenos (como em Cajamar e Apiaí), recalque de
fundações de edifícios (como em Santos), escorregamentos em encostas ocupadas por habitações (como nos municípios da Baixada Santista, Litoral Norte e Vale do
Paraíba), entre outros, são manifestações que notabilizam
um quadro de deseconomias e severas ameaças à qualidade de vida da população e, portanto, ao desenvolvimento
sustentável do Estado de São Paulo.
Diante disso, o perfil de perspectivas para atender a
essas demandas no Estado inclui a necessidade de desenvolvimentos tecnológicos dirigidos ao monitoramento
de processos geológicos, entre os quais, pelas características do meio físico e o histórico de ocupação territorial, destacam-se os processos erosivos e os escorregamentos induzidos por diferentes formas de uso do solo,
como obras civis e urbanização. Em obras civis, por
exemplo, é o caso de reservatórios hidrelétricos, cuja
formação tende a produzir efeitos que precisam ser
monitorados continuamente, como a dinâmica de erosão
e assoreamento, elevação e oscilação do lençol freático
e sismicidade induzida. Tais desenvolvimentos inclinamse em contemplar métodos e técnicas de avaliação e controle desses processos, bem como de análise e gerenciamento de áreas de risco.
Uma das porções do território paulista que tende a
merecer atenção especial é a Serra do Mar, que é hoje uma
região de importância estratégica para o desenvolvimento sustentável do Estado, pelo fato de abrigar as principais porções remanescentes da Mata Atlântica no Estado,
e pelo significado da infra-estrutura pública e privada
construída ao longo da história que comporta hoje em suas
encostas obras essenciais às economias estadual e nacional, como ferrovias, rodovias, dutovias (óleo, gás, água)
e linhas de transmissão de energia elétrica, além dos assentamentos humanos e das instalações industriais e portuárias adjacentes.
A recorrência histórica de fenômenos associados a escorregamentos nas encostas da Serra do Mar, muitas vezes ocasionando a perda de vidas humanas e expressivos
prejuízos à economia e à sociedade, expõe a vulnerabilidade da infra-estrutura instalada e ameaça sua sustentabilidade. Os acontecimentos relacionados às chuvas do final de 1999 e início de 2000, que afetaram severamente
diversos trechos nas encostas da Serra, como no km 42 da
Via Anchieta (Foto 1), ilustram de maneira dramática os
riscos de escorregamentos aos quais estão submetidas as
instalações existentes.
O caso do km 42 fornece uma dimensão das deseconomias envolvidas com a ocorrência de escorregamentos,
uma vez que exigiu despesas com obras corretivas
emergenciais da ordem de R$ 20 milhões, provocou a interrupção da rodovia por 55 dias (em dois períodos alternados: 40 e 15 dias), ocasionando perdas significativas à
economia paulista (incluindo lucros cessantes), o que se
depreende pela redução do fluxo mensal de veículos no
sistema Anchieta-Imigrantes em até 18% no período, com
evidentes efeitos negativos à atratividade turística do litoral e ao movimento de cargas de exportação no Porto
de Santos.
79
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
os quais se destaca o desenvolvimento de competências
para os seguintes objetivos: realizar continuamente avaliações de risco para planejamento e execução antecipada de obras e medidas mitigadoras; fornecer subsídios de curto prazo sobre a probabilidade ou iminência
de desastres associados a escorregamentos naturais e
induzidos; caracterizar rapidamente os efeitos de escorregamentos ocorridos; orientar a tomada de decisões em
situações emergenciais; e fornecer bases técnicas para
a execução de obras de ampliação ou reformulação da
infra-estrutura instalada e, ainda, para o planejamento
de novos empreendimentos.
FOTO 1
Evolução de Escorregamento na Pista Sul da Via Anchieta (km 42)
Estado de São Paulo – 1999
RECUPERAÇÃO DE ÁREAS DEGRADADAS
Ecovias
Ao mesmo tempo que, por um lado, evidencia-se a
tendência da necessidade de melhoria dos sistemas de
prevenção de impactos ambientais e de riscos associados a processos geológicos, de modo a mitigar problemas futuros, por outro, cresce a convicção de que é
igualmente essencial corrigir o que se encontra degradado ou, ao menos, interromper os processos atuais de
degradação.
Por isso, outro tema que requer dedicação especial no
campo da geotecnologia envolve a contribuição para a
flagrante necessidade de equacionar a questão das áreas
degradadas no Estado, particularmente das condições do
meio físico. Isso deve ocorrer tanto nos casos que provocaram a contaminação de solos e águas subterrâneas pela
disposição inadequada de resíduos industriais (como na
Região Metropolitana de São Paulo, Cubatão e municípios vizinhos e no Vale do Paraíba) e domiciliares (como
nas centenas de lixões existentes em grande parte dos
municípios paulistas), como naqueles em que se proporcionou a geração de áreas instáveis sob o ponto de vista
geológico-geotécnico a partir da construção de obras civis ou da urbanização. Também na agricultura, além da
erosão, as atividades de irrigação têm gerado alterações
na estrutura física dos solos e, portanto, requerem medidas de recuperação.
Nos casos de áreas contaminadas por substâncias químicas perigosas à saúde humana, a contribuição da
geotecnologia deve estar associada principalmente à avaliação detalhada das condições de degradação do meio
físico, para auxiliar a definição da melhor alternativa tecnológica de remediação. Aplicações prévias desse procedimento são fundamentais em sítios abandonados e suspeitos de contaminação, nos quais se pretende instalar
Fonte: IPT.
Nota: O escorregamento ocorreu entre os dias 11 e 12.12.1999 e atingiu, em 23.12.1999, a
pista sul interrompendo o tráfego de veículos.
Em decorrência disso, é urgente a necessidade de se
desenvolver um sistema de monitoramento que permita ao
Estado, concessionárias de serviços públicos e demais
usuários anteciparem-se eficazmente à ocorrência de escorregamentos naturais e induzidos e, uma vez ocorridos,
evitar a ampliação de seus efeitos negativos. O monitoramento contínuo das encostas e adjacências da Serra do
Mar, tendo como foco o problema dos escorregamentos e
demais tipos de movimentos de massa, deve ser desenvolvido de modo a apoiar as ações do Estado e da sociedade na prevenção de desastres associados a escorregamentos, reduzindo os riscos para instalações e ocupação
existentes e mantendo a comunidade permanentemente
informada sobre os riscos, bem como propiciar a geração
de bases técnicas para o ordenamento sustentável da ocupação e das obras de transposição da região.
O estabelecimento operacional de um sistema de monitoramento em toda a extensão da Serra do Mar contempla alguns desafios tecnológicos fundamentais, entre
80
GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS
cada de 70. As preocupações agora devem se voltar para
a questão da estabilidade e segurança das barragens instaladas, sobretudo as mais antigas, o que poderá exigir a
desativação de alguns empreendimentos. A tendência de
construção de novas obras aponta para as de pequeno a
médio porte, de acordo com necessidades regionais e de
conformidade com as características dos terrenos, às vezes exigindo soluções não-convencionais.
Comparativamente a países mais desenvolvidos, o Brasil carece ainda de obras de infra-estrutura, como o aprimoramento da malha viária, integrando linhas de transporte multimodais (rodovias, ferrovias e hidrovias), além
de usinas hidrelétricas reversíveis e termelétricas no setor energético. Para essa última, começam a ser direcionados grandes investimentos, especialmente a partir da
operação do Gasoduto Bolívia-Brasil, com incremento
considerável de gás natural, devendo o consumo nacional
passar dos atuais 1,5 milhão de m3/dia para cerca de 10
milhões de m3/dia em poucos anos.
alguma forma de uso do solo, como projetos de conjuntos
habitacionais ou áreas de lazer.
Na origem do problema da degradação causada pela
disposição inadequada de lixo está a dificuldade de localizar e estabelecer áreas adequadas, particularmente em
razão da carência de terrenos disponíveis para tal finalidade. Isso coloca à geotecnologia o desafio adicional de
tornar viáveis os locais comumente disponibilizados pelo
poder público, ainda que, idealmente, possam haver outras áreas mais favoráveis, mas que muitas vezes encontram impeditivos de ordem legal ou socioambiental.
A degradação decorrente de obras civis (barragens, linhas de transmissão e estradas), urbanização (especialmente na implementação de projetos de parcelamento do solo,
como loteamentos e condomínios) e extração mineral, pode
apresentar problemas mais restritos aos de natureza geológico-geotécnica, o mesmo ocorrendo na mineração,
porque no Estado os sistemas de lavra e beneficiamento
raramente envolvem processos químicos. Nas áreas
instabilizadas, as possibilidades de contribuição estão relacionadas com o entendimento da dinâmica dos processos geológicos que geraram a degradação e, com base nisto,
a indicação de soluções (obras, medidas) adequadas que
deve ser feita em conjunto com a engenharia.
A Demanda por Obras Urbanas
A despeito das grandes obras, assim como das duplicações de rodovias que se desenvolvem em virtude da
implementação do regime de concessões rodoviárias para
empresas privadas, nota-se expressivo crescimento na
demanda de obras de infra-estrutura em áreas urbanas,
como túneis viários e metroviários, estacionamentos subterrâneos, canalizações de córregos, redes de abastecimento de água e esgoto, disposição de resíduos, melhorias em
ferrovias urbanas, entre outras. Indícios recentes desse
crescimento são os projetos e as obras metroviárias das
cidades de Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro, São
Paulo, Brasília, entre outras, bem como os do rodoanel
metropolitano em torno da capital paulista.
Outra evidência da crescente demanda por obras urbanas é a grande quantidade de edificações de shopping
centers e condomínios verticais, bem como o desenvolvimento de megaempreendimentos imobiliários. Ilustram
isso iniciativas na cidade de São Paulo, como as dos projetos Panamby, com 715 mil m2 nas margens do rio Pinheiros, e Maharishi São Paulo Tower, edifício com 510m
de altura, 108 andares e 1,3 milhão de m2 de área construída e idealizado para remodelar a região do atual Parque Dom Pedro II, situado no centro da cidade de São
Paulo, que traz também a tendência do aumento de exigências da qualificação dos materiais naturais de construção empregados, como as rochas ornamentais.
REDUÇÃO DE IMPREVISTOS EM OBRAS CIVIS
A última década do século XX representou um período de estagnação para o segmento de construção de grandes obras civis no país, como as usinas hidrelétricas e os
reservatórios para abastecimento de água. Entre vários
fatores, destaca-se a redução de investimentos em obras
públicas de infra-estrutura, motivada em parte pelos débitos financeiros dos governos federal e estaduais, embora alguns Estados, como Minas Gerais, mantivessem investimentos em estudos geológico-geotécnicos para a
construção futura de obras, o que se verificou especialmente no setor energético com as usinas hidrelétricas.
A possibilidade de construir novas obras gigantescas
no país, como as hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí, tornase cada vez mais remota em face da dimensão dos custos
e dos impactos ambientais que obras desse porte podem
gerar. Além disso, os locais propícios para construção de
grandes barragens foram reduzidos, como no Estado de
São Paulo, onde se concluiu o último barramento de grande
porte, a usina hidrelétrica de Porto Primavera, consolidando a convicção de que “fecha-se o ciclo do gigantismo
das barragens” (Carvalho, 1996) no país, iniciado na dé-
81
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
- aplicação em mineração;
O crescimento de obras urbanas geralmente está associado ao aumento populacional das cidades. Conforme
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE, na segunda metade do século XX a população nas
cidades passou de 25% para 75%, sendo que no caso do
Estado de São Paulo esse último número chegava a 93%
na década de 90. Considerando-se ainda que, sob o ponto
de vista econômico, 82% do faturamento nacional ocorre
nas cidades (Paiva, 1991), reforça-se a tendência de aumento na demanda de obras de infra-estrutura em áreas
urbanizadas, parte das quais devem exigir parcelas significativas de investimentos financeiros governamentais.
A crescente necessidade de construção de obras de
infra-estrutura em áreas urbanizadas parece ser mundial,
conforme atestam as novas linhas executadas nos metrôs
de Lisboa e de Paris, entre outros. Em conseqüência, notase o crescimento de trabalhos técnico-científicos sobre esse
assunto apresentados em eventos internacionais, como se
verificou no 31st International Geological Congress realizado em 2000.
Um levantamento efetuado no planejamento da Fase III
do PADCT, promovido pela Associação Brasileira de
Geologia de Engenharia e Ambiental – ABGE (Zuquette,
1996), a fim de identificar as necessidades requeridas pelas obras civis, registra as tendências internacionais para o
início do século XXI das principais atividades de geologia aplicada à engenharia, a Geologia de Engenharia. O
estudo, efetuado com base em consultas a profissionais de
outros países, publicações de congressos internacionais e
em artigos referentes ao assunto publicados em 50 periódicos do mundo, mostra a seqüência dos assuntos abordados e destaca o posicionamento principal do tema de pequenas e médias obras urbanas em relação a outros, como:
- obras civis de pequeno a médio porte destinadas às
mais diferentes finalidades, principalmente nos centros
urbanos;
- caracterização, classificação e recuperação de áreas
degradadas; e
- remoção de obras antigas, como usinas hidrelétricas que
já ultrapassaram a vida útil.
Nas atividades listadas, destaca-se também a modificação ocorrida nas últimas décadas do século XX, qual
seja o direcionamento de atividades técnico-científicas em
Geologia de Engenharia para questões ambientais e de uso
do solo. No Brasil, a análise dessa transferência de atenções foi demonstrada por vários autores em congressos
nacionais da ABGE e inclui informações dos congressos
internacionais promovidos pela International Association
of Engineering Geology and the Environment – IAEG
(Tabela 1).
TABELA 1
Comparação Quantitativa de Artigos Publicados em Congressos Nacionais
(ABGE) e Internacionais (IAEG), segundo Áreas de Atuação
Brasil – 1969-1990
Congressos ABGE
(1969-1990)
Congressos IAEG
(1970-1990)
Áreas de Atuação
Número de
Artigos
%
Número de
Artigos
%
Total
594
100,0
1.349
100,0
Obras
340
57,0
639
47,0
Uso do Solo
107
18,0
385
29,0
125
21,0
168
13,0
15
3,0
63
5,0
Propriedades de Solos
e Rochas
Investigação
Sismicidade
3
0,5
46
3,0
Hidrogeotecnia
3
0,5
17
1,0
Ensino
1
-
31
2,0
Fonte: Vaz, 1996.
- estudos do meio físico voltados ao planejamento territorial e geoambiental;
Melhoria das Investigações Prévias
- intensificação da atuação junto a áreas de conhecimento em interface com a engenharia;
O crescimento das metrópoles vem exigindo, cada vez
mais, tanto da Geologia de Engenharia quanto da Engenharia Civil, o direcionamento de atividades para resolver problemas de interferências das obras com as construções pré-instaladas.
Na Geologia de Engenharia, a grande evolução tecnológica ocorreu a partir da segunda metade da década de
50, principalmente para atender às necessidades da indústria de construção de hidrelétricas e de túneis, que exigia
- métodos de investigação mais adequados, tanto em resultados como em custos;
- desenvolvimento e aplicação de softwares;
- disposição de resíduos e rejeitos;
- geologia de engenharia e processos geomorfológicos;
- impactos ambientais devidos à exploração e às atividades antrópicas;
82
GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS
sérios prejuízos financeiros ao país, podendo às vezes colocar vidas humanas em perigo. Nesse aspecto, o desafio
é auxiliar a elaboração de um plano de zoneamento do
espaço subterrâneo, a fim de que os aparelhos de infraestrutura sejam posicionados de acordo com as características geológicas presentes no subsolo.
O panorama dos desafios geotecnológicos associados
às aplicações em obras civis no país, particularmente em
áreas urbanas, revela os seguintes temas específicos:
- correlação de ensaios SPT manual e mecânico;
estudos para a quantificação de parâmetros geológicos para
a engenharia, o desenvolvimento de ensaios tecnológicos
em materiais de construção e a busca de soluções para
situações inéditas de geologia (Ruiz, 1998). Alguns aspectos dessas atividades ainda merecem atenção, porém
atualmente os principais desafios são diferentes daqueles
do passado. Exemplo disso é o caso de aterros sanitários,
que não podem ser construídos apenas com os tradicionais parâmetros geológicos e geotécnicos, sendo necessária a consideração simultânea de aspectos ambientais e
sociais.
O apoio fundamental que a geotecnologia pode oferecer às demandas urbanas é o levantamento geológico prévio e adequado do terreno (solo e subsolo), muitas vezes
efetuado de modo precário ou mesmo negligenciado em
importantes obras de engenharia, o que tem gerado diversos acidentes e colapsos durante as escavações (como
ocorreu na abertura do túnel Tribunal de Justiça na cidade de São Paulo e em túneis das rodovias Carvalho Pinto
no Vale do Paraíba e Fernão Dias na transposição da Serra da Cantareira). O subsolo não é homogêneo e nem as
camadas geológicas são perfeitamente horizontais. Por
isso, é necessário pesquisá-lo para conhecer as estruturas
presentes, de maneira que a ocupação subterrânea, para
instalação dos aparelhos de infra-estrutura, seja feita com
maior segurança e menor custo.
Convém salientar as dificuldades em mapear áreas densamente ocupadas, devido aos poucos e reduzidos locais
com afloramentos dos maciços rochosos ou terrosos que
compõem o subsolo a ser escavado. Trata-se de um dos
principais desafios geotecnológicos, que deve buscar o
entendimento do comportamento do terreno por meio de
testemunhos de sondagens mecânicas e ensaios indiretos
do tipo geofísico, muitas vezes realizados longe da área
de interesse.
A elaboração de um cadastro georreferenciado de informações e a montagem de um banco informatizado de
dados geológico-geotécnicos, extraídos de sondagens executadas para diversos fins, como o da cidade de Londres,
por exemplo, permitiria confeccionar a carta geotécnica
detalhada da cidade, auxiliar na elaboração de projetos
de obras urbanas e no zoneamento do subsolo.
A ocupação desordenada do espaço subterrâneo da
metrópole paulista, bem como de outras grandes cidades
do Estado, com a instalação de inúmeros cabos (telefônicos, de TV e de transmissão de energia elétrica), dutos de
gás, redes de água e esgotos, galerias de águas pluviais,
entre outros, tende a produzir danos materiais e causar
- ensaios in situ em furos de sondagens;
- ensaios geofísicos in situ: aprimoramento das técnicas
existentes e desenvolvimento de novos métodos com equipamentos de última geração;
- desenvolvimento de técnicas para detecção de obstáculos;
- caracterização geotécnica de perfis de alteração;
- comportamento geotécnico de rochas brandas;
- identificação de áreas para estocagem de GLP e resíduos radioativos;
- estado de tensão e mecânica e hidráulica de fraturas em
rochas;
- performance dos equipamentos de escavação;
- efeito de sismos sobre obras subterrâneas;
- desenvolvimento de técnicas para melhorar o desempenho de maciços;
- disposição de resíduos e rejeitos: projetos que envolvam todas as vertentes do problema;
- elaboração do zoneamento geológico e geotécnico do
subsolo urbano; e
- informática: desenvolvimento de bancos de dados
geotécnicos e de softwares.
O grande desafio, contudo, tanto para as obras distantes dos centros urbanos como no interior deles, é a redução dos “imprevistos geológicos”, aos quais têm sido imputados os altos custos construtivos, mas que na verdade
são provenientes de um planejamento da obra mal-efetuado
ou de inadequada investigação e conseqüente desconhecimento das características geológicas do terreno. Para
reduzir esses imprevistos, deve-se buscar o conhecimento do subsolo por meio de um plano adequado de investigação prévia, envolvendo desde os mapeamentos geológico-geotécnicos, passando pelas tradicionais sondagens
83
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
USO SUSTENTÁVEL DE RECURSOS MINERAIS
mecânicas até os novos métodos de prospecção com ensaios in situ em furos e ensaios geofísicos efetuados na
superfície do terreno.
Nesta transição de século, a mineração apresenta profundas alterações no cenário mundial, cujos principais
desdobramentos são a perda da importância estratégica das
chamadas commodities minerais metálicas na economia
global e a necessidade da incorporação dos princípios de
sustentabilidade ambiental no aproveitamento dos recursos minerais.
Uma das tendências marcantes no setor mineral é o
novo formato esboçado no mercado internacional, com
a mudança dos pólos mundiais de mineração, pela progressiva transferência de empreendimentos dos países
desenvolvidos para o Terceiro Mundo. Isso vem ocorrendo sobretudo em função das severas restrições
ambientais que a atividade de mineração vem sofrendo
naqueles países e do perfil de investimentos de suas
economias, canalizados hoje nas indústrias emergentes
de alta tecnologia.
Desdobramentos dessas mudanças estruturais da mineração no mundo afetaram o Brasil, sobretudo nos anos 90.
Importantes oportunidades de ampliação e diversificação
da produção mineral estão ocorrendo, em virtude do citado redirecionamento de capitais da mineração para países em desenvolvimento. Alia-se a esse fato, a acentuada
expansão do consumo doméstico de bens minerais, em
particular de substâncias não-metálicas, deflagrada, por
sua vez, pelo crescimento da indústria nacional, intensificação do processo de urbanização e construção de obras
de infra-estrutura.
Não menos importantes são os desafios de modernização tecnológica e gerencial colocados ao setor mineral brasileiro, diante da mudança de paradigma sobre a
forma de inserção da atividade na economia atual e em
particular quanto à necessidade de seu desenvolvimento em bases ambientalmente sustentáveis, o que pode
ser sumarizado nas seguintes perspectivas de temas de
desenvolvimento técnico-científico: otimização do aproveitamento dos minérios, da lavra à industrialização,
com a maximização do aproveitamento de reservas,
redução da geração de resíduos, melhoria na qualidade
dos produtos minerais e aprimoramento do controle e
recuperação ambiental dos empreendimentos; redução
de consumo pela reciclagem, uso de rejeitos industriais
e de mineração, e desenvolvimento de substitutos (naturais ou sintéticos) de melhor desempenho nos processos industriais; e aperfeiçoamento dos processos de
aplicação in natura e de transformação industrial para
CONSERVAÇÃO E PROTEÇÃO
DE RECURSOS HÍDRICOS
A situação dos recursos hídricos no território paulista,
exposta por casos críticos como o da Região Metropolitana de São Paulo, exibe um cenário extremamente preocupante sobre a quantidade e qualidade das águas no
Estado.
No que se refere aos mananciais superficiais, o controle da erosão dos solos, de modo que evite o assoreamento
de reservatórios e represas e a conseqüente perda da capacidade de armazenamento, mostra-se como a principal
tendência de contribuição geotecnológica. Há, no Estado, algumas situações críticas, como a do reservatório
Paiva Castro, no município de Mairiporã, que fornece água
para a cidade de São Paulo e tem perdido parte significativa do volume útil em razão da acumulação de sedimentos em seu fundo. Outro aspecto se relaciona com a qualidade da água, sobretudo em regiões industrializadas e
urbanizadas, pois os efluentes produzidos na sua bacia de
contribuição, ao atingir os reservatórios, carreiam
contaminantes que podem ser adsorvidos aos sedimentos
acumulados no fundo, tornando-os fonte permanente de
poluição. Esse problema pode ser avaliado com o apoio
de estudos geofísicos e geoquímicos.
Quanto às águas subterrâneas, sabe-se que o Estado
possui grande potencialidade, e os desafios maiores prendem-se ao aumento do conhecimento dos aqüíferos regionais e seu gerenciamento (incluindo as fontes de produção de águas minerais), o que pode ser obtido por meio
de caracterização hidrogeológica dos mananciais. O conhecimento dos aqüíferos é fundamental para o estabelecimento de estratégias de explotação e conservação, bem
como para a definição de zonas de proteção em face de
riscos de poluição provenientes do uso de agrotóxicos,
vazamentos de postos de abastecimento de combustíveis,
depósitos de lixo, além de inúmeras outras possíveis fontes de poluição intrinsecamente associadas às atividades
antrópicas.
Outro aspecto importante é a necessidade de redução
das perdas em redes de distribuição e abastecimento ocasionadas por vazamentos, cuja detecção em áreas urbanas
deve ser cada vez mais apoiada pelo desenvolvimento de
métodos geofísicos adaptados às condições locais.
84
GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS
melhoria de desempenho, redução de perdas e, conseqüentemente, diminuição do consumo de insumos minerais.
em bases ambientalmente sustentáveis e do aprimoramento
tecnológico e controle ambiental da mineração instalada.
A extração de bens minerais ocorre na maior parte dos
municípios paulistas, concentrando-se na produção de
matérias-primas de uso na construção civil (areia, argila,
brita, calcário para cimento e cal, e rochas para revestimento) e de insumos para agricultura (rochas calcárias e
fosfáticas), além de minerais industriais diversos, utilizados pelas indústrias de transformação (metalúrgica, de
alimentos, cerâmica, entre outras), e materiais de empréstimo (cascalho e saibro).
O volume da produção desses bens minerais no Estado
é tão expressivo que, ainda que São Paulo não seja considerado um Estado tradicionalmente minerador, insere-se
entre os grandes produtores de bens minerais do país, a
partir da extração, em território paulista, de cerca de 20
variedades de minerais industriais (Tabela 2 e Gráfico 1).
Perfil da Mineração Paulista
A mineração no Estado de São Paulo retrata claramente as tendências e desafios preconizados para o setor em
âmbito nacional: entrada de empreendedores multinacionais nas áreas extrativas e de transformação, abrangendo
indústrias de agregados – cimento, argamassa, areia industrial e vidro –, matérias-primas sintéticas e produtos
cerâmicos; expansão do consumo de bens minerais e do
mercado produtor paulista, envolvendo sobretudo os minerais industriais considerados de uso social, que incluem,
basicamente, as matérias-primas para construção civil e
agricultura, entre elas areia, brita, argilas e calcário; e necessidade do planejamento do desenvolvimento setorial
TABELA 2
Principais Substâncias Minerais Não-Metálicas Produzidas no Estado
Estado de São Paulo – 1996
Valor Anual
Substância Mineral
R$ x 10
Produção Total
Pedras Britadas
Areia e Cascalho
Calcário
Argilas Comuns e Plásticas
Água Mineral
Areia Industrial
Rocha Fosfática
Caulim
Dolomito
Filito
Granito
Argilas Refratárias
Talco
Quartzito
Bentonita e Argila Descorante
Turfa
Bauxita
Feldspato
Calcita
Outras Rochas Naturais
Ardósia
6
% Total
Quantidade
(t x 103)
1.259,00
427,5
337,5
154,7
124,1
81,7
43,0
25,1
19,2
100,0
33,9
26,8
12,3
9,8
6,5
3,4
2,0
1,5
(1) 33.313,8
(1) 48.305,8
15.350,7
12.755,1
(2) 3,35
3.438,4
3.713,2
233,4
16,0
11,6
6,8
3,6
2,7
1,8
1,6
1,0
0,7
0,3
0,05
0,01
0,006
1,3
0,9
0,5
0,2
0,2
0,1
0,1
< 0,1
< 0,1
< 0,1
< 0,1
< 0,1
< 0,1
536,1
867,3
(1) 11,8
167,1
58,5
265,9
23,2
22,7
15,8
39,2
4,1
(1) 0,5
0,7
Setor Industrial de Consumo
Construção civil
Construção civil
Cimento, Cal, Corretivo Agrícola, Siderurgia, Vidro e Cerâmica
Cerâmica e Cimento
Bebidas
Fundição, Vidro, Cerâmica e Tintas e Vernizes
Fertilizantes e Ácido Fosfórico
Cerâmica, Papel e Celulose, Tintas e Vernizes, Produtos Farmacêuticos e
Veterinários, Fertilizantes, Vidro, e Borracha
Corretivos Agrícolas, Siderurgia, Tintas e Vernizes, e Vidro
Cerâmica, Construção Civil, e Defensivos Agrícolas
Construção Civil
Cerâmica
Cerâmica, Defensivos Agrícolas, Borracha, e Tintas e Vernizes
Siderurgia, Tintas e Vernizes, Abrasivos, Perfumes, Sabões e Velas, e Cerâmica
Fundição, Descoramento/Recuperação de Óleos, e Fertilizantes
Agricultura
Cerâmica e Sulfato de Alumínio
Cerâmica, Vidro, e Tintas e Vernizes
Tintas e Vernizes, Plásticos, Tapetes e Carpetes, Vidro, Borracha, e Cerâmica
Construção Civil
Construção Civil, Cerâmica, e Produtos Asfálticos
Fonte: Brasil, 1997; Sintoni e Tanno, 1997; Cabral e Almeida, 1999.
(1) Unidade expressa em metros cúbicos.
(2) Unidade expressa em bilhões de litros.
85
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
GRÁFICO 1
Principais Substâncias Minerais Não-Metálicas Produzidas no Estado
Estado de São Paulo – 1996
Fonte: Brasil, 1997.
de extração, qualidade dos produtos, índices de produtividade, grau de mecanização, bem como ao atendimento
às exigências da legislação mineral e ambiental e, conseqüentemente, quanto ao controle ambiental dos empreendimentos.
Nesse cenário, a falta de ações de planejamento por
parte dos poderes públicos e a carência de adoção de procedimentos técnicos adequados de pesquisa geológica e
lavra têm gerado conflitos da atividade com outras formas de uso do solo, em muitos casos com desconforto e
riscos às comunidades circunvizinhas. Aliado a isso, a falta
de controle e a não-recuperação ambiental satisfatória das
áreas mineradas têm causado uma série de outros impactos indesejáveis ao meio ambiente, como alteração da
paisagem, desmatamentos, deflagração de processos de
erosão e assoreamento, emissões de ruídos e vibrações, e
poluição do ar e da água.
Por outro lado, sendo a mineração uma atividade econômica fundamental que compõe a base de importantes
cadeias produtivas do Estado, caso dos setores de construção civil, indústria cerâmica, cimenteira e vidreira e da
agricultura, a dificuldade no controle da disponibilidade
futura de insumos minerais coloca em risco a manutenção
equilibrada dessas importantes atividades econômicas.
Sendo assim, estabelece-se um binômio complexo e
polêmico nas relações do desenvolvimento da mineração
Assim, dados oficiais registram que são alcançados valores de produção da ordem de R$ 1,35 bilhão/ano, o que
corresponde a 9,5% do montante da produção mineral brasileira, ocupando o terceiro lugar entre os estados produtores, apenas suplantado pelo Rio de Janeiro (que inclui o
petróleo) e Minas Gerais. Nesse âmbito, segundo o Anuário
Mineral Brasileiro (Brasil, 1997), os não-metálicos perfazem mais de 93% da produção mineral paulista, o que
corresponde a cifras anuais superiores a R$ 1,26 bilhão.
O restante refere-se à pequena produção de hidrocarbonetos na Bacia de Santos.
Considerando a inconsistência e defasagem dos dados
estatísticos oficiais e, ainda, a presença de uma parcela
considerável de lavras em situação legal irregular, admite-se que o volume efetivamente produzido no Estado
supere em 1,5 a 2 vezes o valor oficialmente registrado.
A aptidão geológica de determinadas áreas, bem como
a combinação, em certas regiões, de condicionantes geológicos para ocorrência de jazidas de minerais industriais,
principalmente os de baixo valor agregado, com crescimento urbano e industrial, têm propiciado a nucleação da
atividade de mineração em zonas específicas no Estado,
promovendo a formação de pólos produtores regionais
(Cabral Jr. e Almeida, 1999) Mapas 1 e 2.
Essa produção é proveniente de cerca de 3 mil frentes
de lavra, com características distintas quanto aos volumes
86
GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS
MAPA 1
Pólos Produtores de Bens Minerais de Uso na Construção Civil
Estado de São Paulo – 2000
Areia
aaaaaaaaaaaaaa
a a a a
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaa a
a a a aa a aaaaaaaaaaa a a
aaaaaaaaaaaaaaaa a aa a a a
a a a aaaaaa a a
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aa a a a
aaaaaaa
a a a a
a a a a a
a a a a a
aaaaaaaaaa
aaaaaaaaaa
Brita
aaaaaaaa a
aaaaaaaa
aaaaaaaa
aaaaaaaaa aaaa
aaaaa
a a a
aaaaaaaaaa
aaaaaaaaaa
aaaaaaaaaa
a a a a a
Fonte: Modificado de Mello et alii,1997 e Almeida et alii, 2000.
87
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
MAPA 2
Pólos Produtores de Bens Minerais de Uso na Construção Civil
Estado de São Paulo – 2000
Argila (cerâmica vermelha)
aaaaa
aaaaa
aaaaa
aaaaa
aaaaa
aaaaa
aaa
aaaaa
aaa
aaa
aaa
aaa
aaa
aaaaaa
aaaaaaaaa
aaaaaa
aaaaaa
aaaaaa
aaaaaa
aaaaaa
aaaaaa
aaaaaa
aaaaaaa
aaaaaaa
aaaaaaa
Calcário (cimento e cal)
Fonte: Modificado de Tanno et alii, 1994 e Mello et alii, 1997.
88
GEOTECNOLOGIA: TENDÊNCIAS E DESAFIOS
recursos minerais, com o desenvolvimento de técnicas e
modelos exploratórios e de pesquisa mineral aplicáveis
às condições do território paulista, bem como a melhoria
da qualidade dos produtos minerais ofertados ao mercado, via aprimoramento de tecnologia de lavra e beneficiamento e por meio do desenvolvimento de substitutos de
melhor performance na aplicação industrial (economia de
consumo).
Ainda como linhas prioritárias de pesquisa e desenvolvimento para otimização do uso de recursos minerais e
redução de impactos e passivos ambientais, destacam-se:
o aproveitamento de resíduos industriais e rejeitos de mineração, ressaltando-se, no caso de São Paulo, a reciclagem
de entulho da construção civil e a aplicação industrial de
finos de portos de areia, pedreiras e serrarias de rocha;
desenvolvimento de tecnologias de controle e recuperação ambiental de áreas mineradas, em conformidade com
as condições socioeconômicas, culturais e ambientais da
circunvizinhança; e estabelecimento de indicadores
geoambientais para controle de impactos e reabilitação das
áreas degradadas.
Ressalta-se que a promoção do desenvolvimento sustentável da mineração requer uma ação tripartite, envolvendo
o setor produtivo, agentes do governo (instâncias de gestão e planejamento, órgãos de fomento e de crédito) e centros de pesquisa. Nesse contexto, a organização de um suporte tecnológico mais efetivo às indústrias extrativa e de
transformação agregada pode se dar pela articulação de uma
organização institucional, congregando os principais centros de pesquisa e universidades na área de geociências,
engenharia e economia mineral. Suas ações abrangeriam a
coordenação do desenvolvimento das pesquisas dirigidas
ao setor, as atividades de treinamento e disseminação, particularmente para a pequena e a média mineração, e a assessoria técnica diretamente nas minas e “chãos de fábricas” (segmentos industriais agregados, como centrais
moageiras, olarias, cerâmicas, entre outras).
paulista em face do desafio de sua própria sustentabilidade: assegurar o suprimento futuro de matérias-primas minerais e garantir a qualidade das condições ambientais. A
solução dessa equação passa necessariamente pela promoção de ações e projetos setoriais dirigidos ao planejamento, ordenamento e aprimoramento tecnológico da atividade de mineração no Estado.
Desenvolvimentos Tecnológicos
A perspectiva de contínua expansão da mineração de
São Paulo, cuja parcela significativa do setor produtivo apresenta defasagens tecnológicas e tratamento
inadequado da questão ambiental, associada à necessidade de políticas governamentais voltadas ao seu desenvolvimento em bases sustentáveis, requer diretrizes
gerenciais e programas tecnológicos específicos, dirigidos ao aproveitamento racional dos recursos minerais no Estado.
Os desenvolvimentos exigem, inicialmente, a promoção continuada da caracterização da estrutura do setor
mineral do Estado, seus mercados produtor e consumidor,
por meio da realização de levantamentos geológicos e
estudos de economia e engenharia mineral, fundamentais
à elaboração de políticas dirigidas ao aprimoramento
tecnológico das cadeias produtivas das indústrias extrativas
e de transformação, em especial das micro e pequena
empresas, na garantia da otimização do aproveitamento
dos bens minerais, diminuição dos impactos ambientais e
na conservação estratégica dos ecossistemas primitivos
intactos do território paulista.
A formulação e implementação de planos diretores de
mineração no contexto de planos regionais/municipais de
desenvolvimento, como principal instrumento de planejamento e gestão da atividade pelos poderes públicos, também estão entre os desenvolvimentos de base necessários,
assim como a montagem e implantação de sistema
informatizado de registro, acompanhamento e fiscalização da indústria mineral de São Paulo, em convênio com
o Governo Federal (Departamento Nacional da Produção
Mineral – DNPM/Ministério das Minas e Energia – MME).
Esse sistema deve compor uma base de dados digitais para
monitoramento da mineração, como instrumento de suporte
às ações de planejamento do Estado, e constituir uma plataforma de informações ao setor produtivo (Sintoni e
Obata, 1999).
Incluem-se como importantes desafios técnico-gerenciais, a ampliação e diversificação da disponibilidade de
CONCLUSÕES
Cabe, enfim, sintetizar os objetivos gerais que se apresentam à geotecnologia, ante as demandas e perspectivas
colocadas pelo desafio do desenvolvimento sustentável no
Estado de São Paulo:
- proporcionar aos órgãos governamentais a aquisição de
informações geológico-geotécnicas efetivamente úteis ao
planejamento e gestão do uso do solo urbano e do rural
por parte dos órgãos competentes, com ênfase naquelas
89
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
que se prestam objetivamente a identificação, avaliação e
monitoramento de processos geológicos induzidos, sobretudo os erosivos e de escorregamentos;
- avaliar áreas de riscos geológicos e prever a ocorrência
de acidentes, de maneira que os órgãos governamentais e
de defesa civil disponham dos meios técnicos necessários
para o gerenciamento desses riscos e para a implementação de medidas preventivas e corretivas;
- caracterizar a qualidade dos solos e das águas subterrâneas em áreas degradadas, especialmente no contexto de
disposição de resíduos industriais e domiciliares, fornecendo aos promotores das obras e medidas corretivas as
informações sobre as condições existentes e as alternativas tecnológicas para recuperação;
- aprimorar a qualidade das investigações geológicogeotécnicas em obras de engenharia para reduzir a ocorrência dos chamados “imprevistos geológicos”, sobretudo em escavações subterrâneas e em áreas urbanas;
ALMEIDA, A.S.; SARAGIOTTO, J.A.R. e CABRAL Jr., M. “Mercado de brita
na Região Metropolitana de São Paulo: situação atual e perspectivas”. Areia
e Brita. São Paulo, Anepac, n.9, jan.-mar. 2000, p.26-30.
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CABRAL Jr., M. e ALMEIDA, E.B. “Geologia e principais aplicações dos
minerais industriais no Estado de São Paulo”. In: Encontro de Mineradores
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CARVALHO, E.T. de. “Linhas de pesquisa em Geologia de Engenharia”. Relatório final sobre o diagnóstico da sub-área de Geologia de Engenharia.
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PAIVA, G. de. “Importância do mapeamento geológico urbano do Brasil”. Revista Escola de Minas. Ouro Preto, v.44, n.3 e 4, 1991, p.121-122.
RUIZ, M.D. “Evolução tecnológica da Geologia de Engenharia no período 19561970”. ABGE 30 Anos. São Paulo, ABGE, 1998, p.11-19.
- avaliar a disponibilidade e qualidade dos recursos
hídricos subterrâneos e propiciar aos órgãos governamentais, produtores, usuários e consumidores as informações
e orientações técnicas necessárias para aumentar a oferta
de água e promover a proteção dos mananciais;
SINTONI, A. e OBATA, O.R. “Sistema estadual de registro, acompanhamento e
fiscalização das atividades de mineração”. VI Simpósio de Geologia do Sudeste. Boletim de Resumos. São Pedro, SBG. 1999, p.148.
SINTONI, A. e TANNO, L.C. “Minerais industriais e de uso social: panorama
do mercado consumidor no Brasil”. Brasil Mineral. São Paulo, n.147, 1997,
p.34-39.
- avaliar e propiciar o aprimoramento da disponibilidade
de recursos minerais, fornecendo aos órgãos governamentais, produtores e consumidores as informações e orientações técnicas necessárias à garantia de suprimento regular desses recursos e à redução do consumo de insumos
por meio de reciclagem, uso de rejeitos e desenvolvimento de substitutos.
TANNO, L.C.; MOTTA, J.F.M. e CABRAL Jr., M. “Pólos de cerâmica vermelha no Estado de São Paulo: aspectos geológicos e econômicos”. Congresso
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VAZ, L.F. “Perspectivas da Geologia de Engenharia para o ano 2000”. Relatório
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ZUQUETTE, L.V. “Relatório final sobre o diagnóstico da sub-área de Geologia de
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90
PESQUISA E DESENVOLVIMENTO NA ÁREA DE ENERGIA
PESQUISA E DESENVOLVIMENTO
NA ÁREA DE ENERGIA
JOSÉ GOLDEMBERG
Professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo
Resumo: É feita uma análise do perfil de consumo de energia no Brasil e as suas perspectivas para as próximas
décadas. Com essa abordagem, verifica-se que energias renováveis representam 58% do consumo, sendo que
o restante provém de combustíveis fósseis, com riscos de exaustão nos próximos 20 anos. Decorre daí a necessidade de acelerar os trabalhos de pesquisa e desenvolvimento para enfrentar esta situação atuando em três
frentes: eficiência energética; aumento da participação de fontes renováveis de energia; e novas tecnologias.
Palavras-chave: fontes renováveis; eficiência energética; novas tecnologias; perfil de consumo de energia.
E
nergia é um ingrediente essencial para o desenvolvimento. Basta comparar o consumo per capita nos países industrializados da OCDE de 5,5 TEP
per capita por ano com o consumo brasileiro de 1,39 TEP
per capita por ano em 1998 para se dar conta do longo
caminho que o país tem a percorrer. O perfil de consumo
de energia da OCDE e o do Brasil são, contudo, substancialmente diferentes. Enquanto na OCDE combustíveis
fósseis representam 81% do consumo, no Brasil, significam apenas 42% (Gráfico 1).
O consumo de energia no mundo cresce cerca de 2%
ao ano e deverá dobrar em 30 anos se prosseguirem as
tendências atuais. O crescimento não é uniforme: nos países industrializados é de apenas cerca de 1% ao ano, mas
chega a 4% ao ano nos países em desenvolvimento que
estão crescendo rapidamente e que vão dominar o cenário
mundial no que se refere ao consumo de energia dentro
de 15 anos. Cerca de 400 bilhões de dólares são investidos, por ano, neste setor.
As principais conseqüências desta evolução são o aumento do consumo de combustíveis fósseis e a resultante
poluição ambiental em todos os níveis – local regional e
global. Cerca de 85% do enxofre lançado na atmosfera
(principal responsável pela poluição urbana e pela chuva
ácida) origina-se na queima de carvão e petróleo, bem
como 75% das emissões de carbono (responsável pelo
“efeito estufa”).
O consumo per capita de energia no Brasil tem crescido a uma taxa anual de 2,2% nos últimos anos, mas o país
não precisa repetir a trajetória de desenvolvimento seguida pelos países que são hoje industrializados, nos quais o
elevado consumo de energia de origem fóssil resultou em
sérios problemas ambientais.
No Brasil, 78,5% da energia consumida é produzida internamente e o restante é importado, principalmente petróleo e gás natural. A importação de petróleo e derivados representa 16,3% da oferta interna total de energia.
A evolução do consumo de energia elétrica entre 1970
e 1998 mostra que o consumo de petróleo e o de lenha
vêm se reduzindo em termos percentuais. Em contrapartida, estão crescendo o consumo de cana-de-açúcar e o de
energia hidroelétrica (Gráfico 2). A importação de petróleo, que representava cerca de 50% no passado, tem caído lentamente e se encontra hoje no patamar de 30%.
Fontes renováveis de energia significam cerca de
58% do consumo, em 1998, e sua percentagem tem se
mantido aproximadamente constante desde 1970. Porém, a situação das reservas brasileiras de combustíveis fósseis não é encorajante (Tabela 1). Para o petróleo e gás, estas reservas não são superiores a 20 anos,
mesmo considerando os recursos medidos e reservas
estimadas.
O Brasil encontra-se numa situação em que, por um
lado, o consumo de energia está crescendo, o que levará
91
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
GRÁFICO 1
GRÁFICO 2
Perfil do Consumo de Energia
OECD e Brasil – 1998
Consumo de Energia, segundo Fontes
Brasil – 1970-1998
OECD
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
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aaaaaaaa
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aaaaaaaa
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aaaaaaaa
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aaaaaaaa
aaaaaaaaa
aaaaaaaa
aaaaaaaaa
aaaaaaaaa
aaaaaaaaa
aaaaaaaaa
aaaaaaaaa
aaaaaaaaa
População: 1,0 bilhão
Consumo Total: 5.503.00 x 103 TEP
Consumo per capita: 5,5 TEP
Brasil
aaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaa
aaaa
aaaa
aaaa
aaaa
aaaa
aaaa
aaaa
aaaa
aaaa
Fonte: Ministério de Minas e Energia, 1999.
certamente à exaustão rápida das reservas de combustíveis fósseis, e, por outro, o aumento do consumo agrava
os problemas ambientais. A pergunta a se fazer é: existem
soluções técnicas para este dilema?
A resposta é afirmativa e as soluções são basicamente
as seguintes:
- melhorar a eficiência com que os combustíveis fósseis
são usados, o que reduziria o seu uso e, conseqüentemente, prolongaria a vida das reservas. Com isso, seriam reduzidas as emissões anuais de poluentes. Isto já está ocorrendo porque inúmeros progressos tecnológicos estão
sendo feitos o tempo todo, mas estes progressos não têm
bastado para diminuir suficientemente a taxa de crescimento com que os combustíveis fósseis são usados;
- aumentar a participação de fontes renováveis de energia, sobretudo as modernas, como a energia dos ventos,
células fotovoltáicas e combustíveis obtidos da biomassa,
como etanol no Brasil. Hoje, estas fontes representam
apenas 2% do consumo mundial;
População: 160 milhões
Consumo Total: 250.088 x 103 TEP
Consumo per capita: 1,39 TEP
Fonte: UNDP/DESA/WEC, 2000; Ministério de Minas e Energia, 1999.
TABELA 1
Produção e Recursos de Energia
Brasil – 1998
Produção e Recursos de Energia
Produção de Energia Primária (x103 TEP)
Recursos Medidos (RM)
RM/Produção (em anos)
Reservas Estimadas (RE)
RE/Produção (em anos)
Recursos Totais (1) (RT)
RT/Produção (2) (em anos)
Petróleo
49.571
513.880
10,4
499.124
10,1
1.017.030
20,5
Gás Natural
Carvão
10.443
120.400
11,6
980.200
9,4
218.671
21,0
2.030
80.175
39,5
175.910
86,6
256.137
126,1
- acelerar o desenvolvimento e a adoção de novas tecnologias, como células de combustíveis baseadas no uso de hidrogênio, o uso “limpo” de carvão e, eventualmente, energia nuclear em formas que evitem os problemas criados no presente.
Fonte: Ministério de Minas e Energia, 1999.
(1) RT = recursos medidos + reservas estimadas.
(2) Assumindo que o consumo e as reservas medidas se mantenham constantes.
92
PESQUISA E DESENVOLVIMENTO NA ÁREA DE ENERGIA
Setor Industrial
Em todas estas opções, Pesquisa e Desenvolvimento
tem um papel relevante.
Há diversas “tecnologias horizontais” de conservação
de energia que são empregadas em muitas indústrias, podendo ser de dois tipos: componentes básicos dos equipamentos em todas as áreas da indústria; e tecnologias para
aplicações individuais.
Na categoria de componentes básicos estão incluídos:
- motores/engrenagens – desenvolvimento de controladores de motor mais rápidos e mais inteligentes (com
novos sistemas eletrônicos de potência);
O USO EFICIENTE DE ENERGIA
A maioria dos equipamentos e processos utilizados nos
dias de hoje nos setores de transporte, industrial e
residencial foi desenvolvida numa época de energia abundante e barata e quando as preocupações ambientais ou
não existiam ou eram pouco compreendidas. Estes são os
motivos pelos quais haja tantas oportunidades para
melhorias na economia de energia, seja para aumentar a
competitividade das empresas, seja para melhorar a imagem pública de indústrias que deixaram de ser poluentes.
Nos países em desenvolvimento, a indústria foi estabelecida tardiamente: nas antigas colônias, a maior parte
dos produtos industrializados era importada da Europa ou
dos EUA, com exceção de alguns bens produzidos localmente, sobretudo por métodos artesanais. Ao longo dos
anos, à medida que os mercados locais cresciam, máquinas ou fábricas inteiras foram transferidas para os países
em desenvolvimento e serviram como a base para o desenvolvimento local. Geralmente, o equipamento era usado ou obsoleto, mas ainda assim servia à finalidade de
produzir bens de consumo de baixa qualidade. Na maioria dos casos, o equipamento era ineficiente e apenas recentemente as melhorias feitas nos países industrializados começaram a chegar aos países em desenvolvimento.
A integração de muitos deles na economia internacional e
o aumento no comércio e nas exportações estão levando a
uma modernização do desenvolvimento industrial de muitos desses países.
Atualmente a eficiência global de conversão de energia primária em energia útil é de aproximadamente um
terço (33%). Em outras palavras, dois terços da energia
primária são dissipados no processo de conversão, principalmente sob a forma de calor a baixas temperaturas.
Nos próximos 20 anos, a quantidade de energia primária poderá ser reduzida de 25% a 35% nos países industrializados com ganhos econômicos significativos. Reduções
de mais de 40% poderão ser obtidas na economia em transição da Europa Oriental e ex-União Soviética. Nos países
em desenvolvimento, que se caracterizam por um alto índice de crescimento econômico e também por uma grande
presença de equipamentos obsoletos, os potenciais de
melhora são ainda maiores, entre 30% e 45%.
A seguir, apresentam-se os principais ganhos que poderão ser obtidos em diversas áreas.
- caldeiras para a produção de vapor ou de água quente
(usando queimadores de pequena emissão);
- compressores com superisolamento contra barulho para
uso direto nos lugares de trabalho;
- sistemas de manejo energético para processos industriais
e construções.
Na categoria de tecnologias com aplicações individuais, podem ser incluídos:
- controle de processo (novos sensores, microeletrônica);
- separação de substâncias a baixas temperaturas (por
meio de membranas);
- processamento a laser (têmpera, corte e perfuração de
buracos no aço);
- aquecimento infravermelho, secagem;
- aquecimento solar para a indústria (especialmente nos
climas mais quentes).
Setor Residencial
Aproximadamente 20% de toda a energia usada nos países da União Européia é consumida em casas e apartamentos, sendo que a situação não é muito diferente no resto
do mundo. Nos países industrializados, onde o problema
de moradia da população já foi em boa parte resolvido, a
tarefa é, principalmente, readaptar as construções existentes, o que poderá significar considerável economia de
energia. Nos países em desenvolvimento, cujo problema
é diferente porque há um enorme “déficit” de moradias,
grandes economias podem ser obtidas melhorando o projeto e a construção de novos prédios. Essa é uma área muito
promissora, pois a experiência mostra que para construir
um prédio mais eficiente custa apenas um pequeno percentual a mais do que um convencional. No aspecto
regulatório, ações importantes podem ser tomadas, tais
como:
93
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
- códigos de construção para os prédios existentes;
- sistemas avançados de controle de luz mais próxima.
- códigos de construção para novos prédios (bem rigorosos, pois seria mais caro retardar sua introdução e depois
adicionar melhorias comparáveis em prédios existentes);
Aquecimento ambiental e água quente são freqüentemente produzidos em conjunto. Assim, as técnicas para
melhorar a eficiência podem ser aplicadas simultaneamente
a ambos. Exemplos são os seguintes:
- aquecedores de água com condensadores;
- certificados energéticos para os prédios;
- incentivos financeiros (redução de impostos, financiamento) para prédios energeticamente eficientes.
- aquecedores solares de água;
- aquecimento distrital;
Na Suíça, por exemplo, os prédios comerciais construídos atualmente consomem, por metro quadrado,
apenas metade da energia consumida 20 anos atrás, o
que foi obtido graças a códigos de construção mais rigorosos.
No que concerne a tecnologias específicas, há três áreas
principais de ação: aparelhos domésticos, iluminação e
aquecimento ambiental.
Os aparelhos domésticos, especialmente os elétricos,
estão sendo cada vez mais utilizados. Há, portanto, amplas oportunidades para melhorias técnicas em cada uma
das seguintes áreas:
- refrigeração (incorporando isolamento livre de CFC que
é mais eficiente, usando aerogel, e painéis cheios de gás e
placas de vácuo);
- bombas térmicas avançadas com custo competitivo para
fornecer aquecimento e refrigeração;
- reaproveitamento do calor desperdiçado por condicionadores-de-ar, sistemas de refrigeração, etc., para aquecimento local de água.
Transporte
O setor de transporte representa 22% do consumo total de energia dos países industrializados, principalmente pelos automóveis. Embora este seja o setor de crescimento mais rápido, a taxa de aumento na demanda por
energia no transporte rodoviário tem diminuído na maioria destes países desde o final da década de 60. Isso reflete tanto uma melhoria na eficiência dos veículos quanto
uma redução no número de automóveis por moradia.
Contrastando com isso, o número de moradias com dois
ou mais automóveis cresceu sistematicamente nas últimas décadas.
Nos países em desenvolvimento, o transporte representa
14% do consumo total de energia, mas o número de automóveis é de aproximadamente 20 por 1.000 pessoas, comparado com 600/1.000 pessoas nos países industrializados. Se a utilização dos automóveis, em todo o mundo,
alcançasse os níveis dos países da OECD, os problemas ambientais tornar-se-iam insolúveis. O congestionamento e o uso de terra para as estradas imporiam tensões adicionais em diversos países como, por exemplo,
na China.
As soluções técnicas para melhorar a eficiência e reduzir as emissões do setor de transporte são:
- melhoria na eficiência do motor, aumentando o desempenho com o qual a energia no combustível é convertida
em trabalho útil para mover o automóvel. A eficiência do
motor é o produto de dois fatores: eficiência térmica, que
reflete quanta energia de combustível é convertida em trabalho para mover o motor e o veículo; e a eficiência mecânica, que representa a fração deste trabalho que é transmitido pelo motor ao veículo;
- novos tipos de aparelhos para cozinhar (microondas
avançados, indução eletromagnética) e isolamento do forno
melhorado;
- aquecedores de madeira eficientes;
- máquinas de lavar modernas (exigindo menos água para
aquecer, temperaturas de lavagem menores e secagem
mecânica a velocidades de rotação maiores, que reduzem
as necessidades térmicas);
- aparelhos de televisão e computadores de baixo consumo de energia;
- equipamentos de escritório (aparelhos de fax com perdas reduzidas em standy-by).
A iluminação é uma área na qual o potencial para se
economizar energia pela readaptação de velhos sistemas
é da ordem de 60%. São possíveis até economias maiores
com a incorporação de “arquitetura solar passiva” no projeto de novos prédios.
As áreas específicas são:
- lâmpadas e refletores de alta eficiência;
- controle automático da iluminação artificial como uma
função da luz do dia;
- sensores que controlam a iluminação de um ambiente
de acordo com a sua ocupação;
94
PESQUISA E DESENVOLVIMENTO NA ÁREA DE ENERGIA
- uso de combustíveis alternativos à gasolina e ao óleo
diesel.
TABELA 2
Características Mundiais das Tecnologias de Energia Renovável
1994
A eficiência térmica pode ser melhorada, em princípio,
aumentando a taxa de compressão dos motores a gasolina,
passando dos atuais nove para cerca de 15, o que resultaria
numa melhora da eficiência térmica nominal de aproximadamente 15%. Na prática, os ganhos são menores não apenas porque o atrito aumenta com a taxa de compressão, mas
também porque crescem os efeitos de parede (esfriamento e
combustível não queimado associado com a superfície).
O aproveitamento da energia do gás de escape pode
também ser significativo. Os gases de escape contêm aproximadamente 40% da energia do combustível usado pelo
veículo, embora a qualidade dessa energia seja baixa por
causa da temperatura reduzida.
Uma melhora na eficiência mecânica pode ser alcançada
diminuindo a potência exigida do motor ao reduzir a resistência do ar e de rotação, o peso, o atrito do sistema de
transmissão de potência e as cargas acessórias do veículo. Ao contrário da eficiência térmica, para a qual não se
pode esperar eficiências maiores de 50% devido às limitações dos ciclos termodinâmicos, é possível aumentar a
eficiência mecânica média dos 40% atuais para aproximadamente 65%.
A eficiência mecânica dos automóveis norte-americanos típicos é de aproximadamente 35%, quando se faz a
média por todo o ciclo de transporte urbano, e de cerca de
50% nas estradas. A eficiência mecânica global tem uma
média de 40%, sendo menor para os automóveis de alta
potência e maior para aqueles de baixa potência.
Turbinas a gás têm sido propostas para veículos devido a seu baixo peso, pequeno ruído e redução de emissões de escape (exceto NOx) e alta eficiência. Abaixo de
100 kW, contudo, elas atualmente são muito caras e
ineficientes, tornando-as, assim, inconvenientes para uso
na maioria dos automóveis.
Tecnologias
Biomassa
Rejeitos Agrícolas
“Fazendas” Energéticas
Lixo Urbano
Biogás
Álcool
Geotérmica
Hidrotérmica
Geopressurizada
Rochas Secas Quentes
Magma
Hidroelétrica
Pequena Escala
Grande Escala
Oceânica
Marés
Corrente de Maré
Ondas Costeiras
Ondas no Mar
Térmica Oceânica (Otec)
Gradiente de Salinidade
Solar
Termoelétrica Solar
Térmica Solar
Arquitetura Solar
Fotovoltaica
Termoquímica
Fotoquímica
Vento
Em Terra Firme
No Mar
Bombas de Ar
“Status”
Técnico (1)
“Status”
Comercial Atual (2)
P-D
P-D
P-D
D
M
A
A
A
A
E
M
D
P-D
P
E
NE
NE
NE
M
M
A
A
M
P
P-D
P
P-D
P
A?
NE
A?
NE
A?
NE
P-D
M
M-D
M-D
M-P
P
NE
E
E
A
A?
NE
M-D
D
M
A
A?
A
Fonte: “Energy and Environment Techonology to Respond to Global Climate Concerns”, Scoping
Study 1994, IAE/OECD. Paris, 1994.
(1) P = Pesquisa; D = Demonstrado; M = Maduro.
(2) A = Econômico em certas áreas ou nichos de mercado; E = Econômico; NE = Não-Econômico.
Produção de Álcool
FONTES RENOVÁVEIS DE ENERGIA
O desenvolvimento tecnológico das usinas de açúcar e
álcool foi inicialmente dificultado pelo baixo nível técnico. Com o aumento na produção, avanços tecnológicos
foram introduzidos nas fases agrícola e industrial:
- uso de variedades selecionadas de cana-de-açúcar;
As principais fontes renováveis disponíveis são apresentadas na Tabela 2, bem como o estágio que já atingiram tanto do ponto de vista técnico como comercial. Dentre
elas, a mais relevante para o Brasil é a energia de biomassa,
que representa uma importante contribuição ao consumo
de energia no Brasil.
Os avanços tecnológicos ocorreram sobretudo em duas
áreas: produção de álcool e co-geração de eletricidade a
partir de cana-de-açúcar.
- redução do consumo de combustível na maquinaria e
mecanização da colheita;
- acoplamento de vários “contêineres” a um veículo para
a transferência da cana-de-açúcar;
95
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
TABELA 3
GRÁFICO 3
Potencial de Redução do Custo de Produção de Etanol
Estado de São Paulo – 1989
Em porcentagem
Setor
Total
Curva de Aprendizado para o Custo do Etanol
Brasil – 1985-1999
Redução de Custo (1)
23,1
Produção de Cana (agricultura)
Seleção de Variedades e Manuseio
Aplicação de Calcáreo
Fertilizantes Líquidos
Uso da Vinhaça
Remoção de Ervas Daninhas
Transporte
Planejamento Operacional
9,8
1,6
0,7
1,0
2,1
0,5
3,4
Produção de Etanol (indústria)
Moagem
Fermentação
Destilação
Energia
1,3
3,3
0,3
1,5
Fonte: Copersucar.
(1) Corresponde à razão entre os ganhos no benefício líquido menos os custos associados,
incluindo custos de processamento e o custo total de produção e armazenagem do etanol.
Fonte: Datagro (várias edições). Elaboração do autor.
O custo do álcool produzido caiu rapidamente como
resultado destes avanços. Geralmente o preço de qualquer
produto manufaturado declina à medida que as vendas
aumentam de acordo com a “curva de aprendizado”, que
reflete ganhos devido ao progresso tecnológico, às economias de escala e ao aprendizado organizacional. A experiência mostra que tal redução é exponencial à medida
que a produção cresce. Um indicador chamado razão de
progresso (PR) é, em geral, usado para descrever este fenômeno.
- manejo dos resíduos agrícolas – como a utilização do
vinhoto para fertilizantes e a limpeza da cana sem a necessidade de lavagem, que leva a perdas de 1% a 2% do
açúcar;
- extração do suco – 45% superior ao de 1975, com redução da energia utilizada por tonelada de cana;
- tratamento do suco e fermentação – graças à fermentação contínua e o controle biológico;
- destilação – devido a melhorias nos equipamentos e
mudanças no conteúdo do álcool da mistura.
Outras reduções de custo de aproximadamente 23% poderiam ser obtidas nos próximos anos simplesmente adotando tecnologias disponíveis, algumas das quais já em
uso (Tabela 3). É provável, portanto, que a taxa média de
redução de custo (aproximadamente 4% ao ano na última
década) possa ser mantida por vários anos.
Como resultado de tais avanços tecnológicos, a produção de etanol passou de 2.633 litros por hectare, em 1977,
para 3.811 litros, em 1985 (uma média de aumento anual
de 4,3%). Durante o mesmo período, a produtividade
agrícola cresceu 16% (medida em toneladas de cana por
hectare) e a produtividade industrial aumentou 23% (medida em litros de etanol por tonelada de cana). Em 1989,
a média de produtividade no Estado de São Paulo era de
4.700 litros de etanol por hectare, aumentando para 5.100
litros em 1996.
A CO-GERAÇÃO DE ELETRICIDADE
A PARTIR DA CANA-DE-AÇÚCAR
A co-geração de energia, uma prática corrente da produção industrial do etanol no Brasil, reduz os danos ao meio
ambiente e poderia ser aumentada significantemente se o
desenvolvimento tecnológico acarretasse o uso dos resíduos
da cana-de-açúcar, além do bagaço, para a geração de energia. A quantidade de resíduos estimada é de quase 40 x106
toneladas de matéria seca, sendo que uma porção significativa poderia ser usada. Em média, 280 kg de bagaço
(que contém 50% de mistura) são produzidos por toneladas de cana, o que equivale a 2.1 gigajoules de energia
por tonelada; 90% do bagaço é queimado para produzir
vapor (450 a 500 kg de vapor podem ser gerados de 1 tonelada de cana) que, por sua vez, pode ser utilizado para co-
96
PESQUISA E DESENVOLVIMENTO NA ÁREA DE ENERGIA
gerar eletricidade e potência mecânica para os motores da
usina.
Na maioria das unidades de produção de álcool do Brasil, as caldeiras que produzem vapor para o estágio de destilação operam em pressões de 20 bar quando gerando pequena quantidade de eletricidade (15-20 kWh/t de cana),
suficiente para as necessidades da unidade. Isto significa
que o potencial para co-geração é praticamente inexplorado.
A melhoria mais simples para a geração de eletricidade é
usar turbinas de vapor do tipo condensação-extração (Cest)
e pressões de até 8 megapascal e reduzir o uso de vapor de
processo a 350 kg vapor por tonelada de cana. A eficiência
para a produção de eletricidade em unidades que operam
dessa forma pode atingir 10% a 20%, que é superior à
eficiência das unidades em operação atualmente. Unidades tipo Cest são usadas rotineiramente em outras partes
do mundo e são capazes de gerar um excesso de eletricidade de 80-100 kWh/t de cana que pode ser vendida à rede
elétrica.
Um sistema Cest é viável para a venda de eletricidade
a 50 US$/MWh. Se o preço da eletricidade vendida for
maior, a conseqüência é uma redução no custo do álcool.
Isto está ocorrendo com a indústria do açúcar do Havaí e
Ilhas Maurício, mas não é o caso do Brasil, onde a
hidroeletricidade em bloco é vendida a um valor inferior
a US$ 40/MWh. Este é um sério obstáculo à co-geração
que exigirá uma melhor avaliação do custo marginal real
da eletricidade em bloco no Brasil.
A moderna tecnologia de gaseificadores de biomassa
integrados com turbinas a gás (BIG/GT), ainda em desenvolvimento, deverá ser capaz de produzir um excesso de
eletricidade de 600 kWh/t de cana.
Um projeto está em desenvolvimento no Brasil para uma
usina completa de demonstração de 25 MW, apoiada financeiramente pela Global Environment Facility (GEF).
O potencial de co-geração de eletricidade foi estimado
por vários grupos e poderia atingir vários milhões de
kilowatts apenas no Estado de São Paulo.
Várias outras oportunidades do uso de biomassa para
fins energéticos têm sido exploradas no Brasil, mas ainda
não atingiram um volume significativo (pequenas centrais
termoelétricas utilizando lenha e resíduos vegetais, óleos
vegetais como substituto de óleo diesel, briquetes de madeira, carvão vegetal e produção de metano em lixões).
Novas Tecnologias
Existe uma enorme gama de atividades em novas tecnologias que estão sendo exploradas para encontrar outros caminhos para enfrentar a necessidade crescente de
energia e, ao mesmo tempo, reduzir os impactos ambientais
do uso de combustíveis fósseis. Uma enumeração simples
de algumas delas é a seguinte:
- células de combustível para transporte;
- células de combustível acopladas com turbinas a gás (ou
vapor) para a produção de eletricidade ou co-geração de
calor e eletricidade;
- produção de hidrogênio a partir da redução de combustíveis fósseis (principalmente carvão) e seqüestro de CO2.
Este seqüestro pode se dar por reinjeção em poços de petróleo, no mar a grandes profundidades ou em lençóis de
água em terra firme;
- uso de células fotovoltaicas e energia dos ventos que
são intermitentes por natureza acopladas a geração
hidroelétrica em armazenagem de ar comprimido.
Os trabalhos de pesquisa e desenvolvimento nessas
áreas, no Brasil, são modestos e se destinam, de modo geral, a um acompanhamento do que se fez no exterior.
Dignos de menção, contudo, são os trabalhos referentes ao “efeito estufa”, vinculados a emissões em reservatórios de barragens para geração de eletricidade. Existem,
também, os diversos esforços para entender melhor o que
ocorre na Amazônia, onde o desmatamento é uma das principais fontes de emissões de CO2, mas onde há também
evidências para a “fertilização” da floresta e a resultante
reabsorção do CO2 na atmosfera.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COPERSUCAR. “Pro-Álcool”. Fundamentos e perspectiva Copersucar. São
Paulo, 1989.
DATAGRO. Boletim informativo sobre a indústria sucro-alcooleira. Várias edições.
GOLDEMBERG, J. Energia, meio ambiente e desenvolvimento. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Balanço Energético Nacional, 1999.
MOREIRA, J.R. e GOLDEMBERG, J. “The Alcohol Program”. Energy Policy,
27, 1999, p.229-245.
UNDP/DESA/WEC – United Nations Development Programme/United Nations.
Department of Economic and Social Affairs/World Energy Council. World energy
assessment. Energy and the challenge of sustainability. Nova York, 2000.
97
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO
TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE
SUELY MUNIZ
Economista, Pesquisadora do Instituto de Pesquisas Tecnológicas
Resumo: A intensificação da concorrência internacional e a difusão de setores econômicos ligados ao complexo
microeletrônico têm demandado uma ampliação dos esforços institucionais, tecnológicos e organizacionais por
parte de empresas e nações. Tais esforços são cumulativos e ancoram-se em processos de aprendizagens contínuos que são decisivos para a elevação da capacidade competitiva das empresas e nações e, portanto, para o
crescimento econômico. No Brasil, entretanto, os investimentos ainda dirigem-se sobretudo para o “saber produzir”, enquanto aqueles destinados à formação de ativos complementares, como a elevação da capacitação
tecnológica para projetar e desenvolver produtos e processos, são absolutamente insuficientes. Os desafios contemporâneos tornam imperiosas não apenas políticas industriais e tecnológicas, mas também, e sobretudo, uma
nova inserção ativa e soberana da economia brasileira na nova dinâmica econômica internacional.
Palavras-chave: inovação tecnológica; investimento e produção industrial.
A
competitividade de um país baseia-se não somente na competitividade das suas empresas,
mas também na eficiência do conjunto da sua
estrutura produtiva, na qualidade da sua infra-estrutura
tecnológica e nas inter-relações entre as partes do sistema de produção. As “externalidades tecnológicas” favorecem os esforços próprios das empresas, elevando a qualidade de suas escolhas. Competitividades em âmbito
macro e microeconômico são, portanto, complementares. Neste sentido, a tecnologia é capaz de alterar as vantagens comparativas das nações (e das suas empresas) e
as suas possibilidades de inserção na economia mundial,
particularmente nos momentos em que se difundem novas tecnologias de base. Essas vantagens não são dadas
e estáticas, mas evoluem e requerem, portanto, um esforço de aprendizado tecnológico e organizacional contínuo.
O desenvolvimento tecnológico apresenta hoje, ainda
mais do que em épocas anteriores, imenso desafio para os
países de industrialização tardia. Se no padrão anterior a
tecnologia era basicamente incorporada nas máquinas e
equipamentos e os países em desenvolvimento podiam
acessá-la através das importações e dos contratos de
licenciamento de tecnologia, atualmente esse acesso tornou-se muito mais complexo e especializado. Portanto, diferentemente do que se acreditou por muito tempo no Brasil, para a difusão das novas tecnologias não basta elevar
a taxa de investimento em capital fixo e adquirir capacitação para operá-lo eficientemente.
Na verdade, a difusão tecnológica ocorre através de um
processo incremental e contínuo de mudança tecnológica, que promove a adaptação da inovação original a um
sem-número de situações e o aperfeiçoamento contínuo
das suas características e desempenho. A rigor, as inovações continuariam ocorrendo durante o processo de difusão e estes não deveriam, portanto, ser vistos como processos independentes (Dosi, 1988; Nelson, 1992).
Dessa maneira, empresas e nações têm conduzido árduo
esforço para elevar sua capacitação para produzir com
elevada eficiência e, também, sua capacitação para inovar, entendida esta como o conjunto de atividades voltadas
para o desenvolvimento e absorção das novas tecnologias.
Esta última não ocorreria automaticamente com a elevação
da primeira. Ao contrário, a capacitação para inovar terse-ia tornado uma atividade que, pelo elevado conteúdo de
conhecimento especializado, demanda ações, investimentos, habilidades, experiências, equipes e inter-relações voltadas especialmente para a geração e a gestão da mudança
tecnológica. Isto não quer dizer, entretanto, que essa atividade ocorre de modo estanque, em paralelo à atividade da
produção. As sinergias, quer sejam com as equipes de produção, quer entre as equipes especializadas em produtos
ou linhas de produtos, são altamente benéficas para a geração de melhorias contínuas de produtos e processos.
98
INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE
Nesse sentido, a distinção feita por Bell e Pavitt (1993)
entre os conceitos de mudança tecnológica e acumulação tecnológica (ou aprendizado tecnológico) é particularmente relevante para a compreensão da dinâmica industrial dos países em desenvolvimento. Enquanto a
primeira diz respeito aos processos de incorporação de
novas tecnologias à produção, a segunda trata dos recursos voltados especificamente para o fortalecimento da
capacitação tecnológica e organizacional. Tal distinção
importa na medida em que permite compreender que o
investimento físico deve ser complementado por investimentos intangíveis, caso pretenda-se a sustentação da capacidade de produção eficiente ao longo do tempo. As empresas líderes, nas indústrias mais dinâmicas dos países
industrializados, estariam realizando dispêndio com “intangíveis” superior ao investimento em bens tangíveis
(Nelson, 1992; Bell e Pavitt, 1993). Entre os intangíveis
destacam-se: investimento em tecnologia (aquisição e
desenvolvimento de conhecimentos próprios e competências necessárias para introdução de novos produtos e processos ou sua melhoria, compreendendo P&D e engenharia
não rotineira); investimento em qualificação (treinamento, organização e estrutura de informações); e softwares.
Muitos autores têm verificado que a capacitação tecnológica evolui de forma diferenciada entre os países, ao
contrário do esperado pelos ideólogos da liberalização,
segundo os quais os países tenderiam a convergir não só
na acumulação tecnológica (a “tecnoglobalização”), mas
também na performance econômica. Com efeito, em estudo recente, Patel e Pavitt (1998) constataram a existência
de padrões de acumulação tecnológica desiguais e divergentes mesmo entre os principais países da OCDE.
Desta forma, a indústria brasileira entra na década de
90 – quando se acelera a implantação dos setores criados
pelo novo paradigma nas economias industrializadas e nos
países asiáticos de industrialização recente – com o mesmo perfil herdado dos anos 70, quando completou a estrutura típica da segunda revolução industrial, através da
diversificação da indústria de bens intermediários – celulose e papel e química – de bens de consumo duráveis e
de bens de capital.
Nos anos 90, conduziu-se um acentuado processo de
abertura comercial e financeira da economia brasileira. A
redução acelerada da proteção tarifária e, a partir de 1994,
a sobrevalorização cambial induziram à elevação do investimento, apesar das altas taxas de juros. A concorrência dos produtos importados e o acesso a máquinas e equipamentos atualizados tecnologicamente com juros
significativamente inferiores aos nacionais constituíram
fortes motivadores destes investimentos. Adicionalmente, a elevação do consumo de bens duráveis e de não-duráveis decorrente da estabilização da moeda atraiu investimentos nestas categorias de bens.
Assim, nos últimos anos da década de 90, muitas intenções de investimento foram declaradas, entre as quais
uma expressiva participação do capital estrangeiro que
retornou ao país com maior expressão após 1994. Somente
no Estado de São Paulo ocorreriam mais de 1.330 projetos de investimentos, totalizando aproximadamente US$
70 bilhões, segundo dados de cadastro que abrangeu o
período de 1996 a 1998, organizado pela Secretaria de
Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico.
Teriam tais investimentos a natureza e o volume necessários para sustentar um novo ciclo de crescimento
econômico?
EVOLUÇÃO RECENTE DO
INVESTIMENTO NO BRASIL
CARACTERÍSTICAS DOS
INVESTIMENTOS RECENTES
Durante a “década perdida”, o investimento privado e
público foram muito baixos, em relação tanto ao ocorrido na
década anterior quanto ao montante que seria necessário para
a implantação dos “novos setores industriais” resultantes da
difusão da microeletrônica.1 Ao longo dos anos 80, a capacidade de financiamento dos investimentos foi drasticamente reduzida em função da brutal transferência de recursos para
o exterior, para o pagamento dos serviços da dívida.2
O componente estrangeiro do financiamento do investimento, seja sob a forma de empréstimos bancários,
seja de investimento direto, reduziu-se, nos anos 80, a
quase zero.
Uma das principais características do investimento realizado na segunda metade dos anos 90 é a perda de capacidade de atração da indústria de transformação. Com efeito, esta indústria teria tido uma participação de 4,5% no
período de 1971 a 1980 na FBKF (formação bruta de capital fixo) total, caindo para 2% no período de 1990 a 1994,
para recuperar-se apenas parcialmente em 1995-97, com
3,3% (Bielschowsky, 1998).
A análise do fluxo de capitais estrangeiros revela, com
efeito, que o investimento nos anos 90 tem se dirigido em
larga medida para o setor serviços e para as fusões e aqui-
99
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
TABELA 1
Fluxo de Capitais Líquidos Privados
Brasil – 1990-98
Em bilhões de dólares
Capitais
Fluxo Total de Capitais Privados
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
8
3
14
12
10
33
35
20
17
Investimento Estrangeiro
0
0
2
1
2
3
10
15
25
Investimento em Portafólio
0
4
14
12
51
12
21
10
17
Outros Investimentos
7
-1
-2
-1
-43
19
4
-5
-25
Fonte: IMF (1999); UNCTAD (1998).
sições de empresas. A partir de 1992, a entrada de capitais voltou a ter expressão, em particular o seu componente a curto prazo – o também chamado capital volátil –,
que simplesmente saltou de níveis próximos a zero, em
1990, para US$ 51 bilhões, quando adveio a estabilização da moeda, em 1994 (Tabela 1). A crise mexicana certamente influenciou a queda para US$ 12 bilhões, assim
como a crise asiática terá interferido sobre o montante que
permaneceu neste patamar, em 1997, para recuperar-se
apenas ligeiramente em 1998.
A parcela de capital internacional que ingressou no país
em forma de investimento direto estrangeiro (IDE) somente
veio a tornar-se expressiva a partir de 1996, quando foram iniciadas as privatizações das empresas de energia
elétrica e, depois, as de telecomunicações e petróleo. Em
1997, o IDE foi de US$ 15 bilhões e, em 1998, chegou a
US$ 25 bilhões. Em 1999, o IDE teria atingido o recorde
da década, alcançando US$ 30 bilhões, registrando em
2000 valores tão elevados quanto este último.
Entretanto, o fluxo de investimento estrangeiro dirigido à indústria3 apresentou inexpressiva elevação no período 1990-96, tendo significado algo entre 13% e 25%
do IDE. Por outro lado, os serviços absorveram a maior
parte dos recursos, representando em torno de 74% a 84%
do IDE no período mencionado (Laplane e Sarti, 1999).
As declarações feitas recentemente pelo presidente da
Sobeet – Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas
Transnacionais e da Globalização Econômica, de que 80%
dos investimentos estrangeiros estão no setor serviços,
indicam que este quadro não foi alterado (Folha de S.Paulo,
29/08/2000).
Nos últimos três anos, apenas 25% do IDE destinou-se
à expansão da capacidade, enquanto 75% dirigiram-se à
compra de empresas privadas ou privatizadas, conforme
dados da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento – UNCTAD (1999). Em 1997,
teriam ocorrido 372 casos de fusão, aquisição ou joint
venture, dos quais 204 eram de capital estrangeiro e 168
de capital doméstico. Este número total caiu para 350, em
1998, e para 142, em 1999, dos quais 200 e 100 de capital
estrangeiro, nestes anos, respectivamente (Lacerda, 1999).
As aquisições de empresas públicas privatizadas teriam
absorvido 26% do IDE líquido, em 1996, e 30%, em 1997.
Ainda segundo dados da UNCTAD (1999), em 1998 as
privatizações teriam mantido o patamar, absorvendo 25%
do IDE. Em 1999 este percentual teria sido de 31%, segundo porta-voz do Banco Central (Folha de S.Paulo,
1999).
Assim, verifica-se que a extraordinária expansão do IDE
não se refletiu com a mesma intensidade nas taxas de investimento (17% do PIB, a preços de 1980, em 1998)
porque parcelas expressivas do IDE nortearam-se pelo
processo de compra ou fusão de empresas, principalmente aquelas públicas privatizadas, mas também empresas
privadas, reduzidas em seu valor pela concorrência desigual que enfrentaram ao longo de quase duas décadas de
crise e pela desvalorização cambial ocorrida em janeiro
de 1999. O impacto do IDE sobre a indústria de transformação foi reduzido pelo fato de ter-se dirigido principalmente ao setor serviços. Conformou-se, desta maneira,
intensa desnacionalização de empresas e de setores econômicos, sem implicar necessariamente ampliação da capacidade produtiva instalada ou implantação de “novos”
setores industriais.
A Tabela 2 apresenta indicadores da indústria brasileira que constituem evidências das dificuldades que passaram a envolvê-la após a abertura comercial e financeira e
que os investimentos recentes não parecem ter sido capazes de neutralizar.
O aumento da produtividade na indústria brasileira, na
década de 90, foi reduzido – média anual de 4,1% no período 1991 a 1998 – quando medido pelo valor adicionado
por trabalhador.4 Observe-se que as taxas da segunda metade da década foram menores, comparativamente às dos
100
INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE
marketing, por exemplo) no interior da empresa, o fluxo
de informações e a lógica da gestão da produção. São alteradas ainda a forma como se relacionam e como se
estruturam as várias unidades dos grandes grupos econômicos e a forma como as empresas relacionam-se com
outras empresas, grandes ou pequenas, com seus fornecedores, com seus clientes e com o sistema de ciência e tecnologia. Essas mudanças ocorrem acelerada e simultaneamente, porém de forma profundamente heterogênea entre
as nações e, no interior das nações, entre setores e, nesses, entre as empresas.
A absorção das tecnologias de informação e de telecomunicações e as novas filosofias de organização da produção e do trabalho contribuem para o sucesso de empresas e nações, porque as qualificam para as novas normas
da concorrência que hoje não se baseiam apenas em preço, mas também em qualidade, flexibilidade, prazos, inovação e serviços pós-venda.
Portanto, nos países onde o paradigma microeletrônico
difunde-se mais intensamente, dois fenômenos ocorrem:
o primeiro é a expansão e consolidação dos “novos setores” e o segundo “é que as inovações nestes poucos setores industriais vão gradual mas sistematicamente difundindo-se através de toda a atividade econômica, inclusive
para indústrias que continuamos a tratar como tradicionais ou de baixa tecnologia” (Rosenberg, 1992:74).
Um tecido industrial que incorpora setores com maior
grau de complexidade tecnológica (indústrias baseadas
em ciência, como as que integram o complexo eletrônico, a fabricação de aviões e alguns segmentos da indústria química como fármacos, biotecnologia, novos materiais) apresenta dinâmica tecnológica e econômica
superior, dadas as maiores oportunidades. São indústrias
que podem organizar-se através de sistema de produção
flexível para alcançar a eficiência operacional (economias de escala e de escopo) e que requerem: organização
de seus próprios departamentos de P&D&E; coordenação das interfaces entre as diversas atividades (P&D&E,
produção, marketing, compras, etc.); estabelecimento de
vínculos com outras instituições públicas e/ou privadas
para acesso à pesquisa básica e aplicada em áreas de
conhecimento específicas; e estímulo à inter-relação entre as equipes de P&D&E, no caso das empresas com
mais de uma unidade, para a realização das inovações
incrementais “contínuas”.
O foco da atividade tecnológica dessas indústrias “complexas”, portanto, não é prioritariamente custo, mas sim o
aperfeiçoamento do produto (design, desempenho, etc.),
TABELA 2
Produtividade da Indústria, Saldo da Balança Comercial e Variação do PIB
Brasil – 1990-98
Anos
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
Produtividade
na Indústria (1)
(%)
2,0
12,5
13,3
1,0
-3,5
0,1
5,5
0,6
-
Saldo da
Balança Comercial
(US$ milhões)
Variação do PIB (%)
Total
Indústria
10.753
10.579
15.308
12.938
10.440
-3.158
-5.554
-8.357
-6.484
-1.198
-4,33
1,03
-0,54
4,92
5,85
4,22
2,66
3,60
-0,12
0,82
-8,73
0,26
-4,21
7,01
6,73
1,91
3,28
5,76
-1,34
-1,66
Fonte: Manzano (2000).
(1) Produtividade medida pelo valor adicionado por trabalhador (elaboração: Fiesp/Ciesp/
Decompi). Inclui indústria da construção civil e serviços industriais de utilidade pública.
primeiros anos. A balança comercial passou a apresentar
saldos negativos difíceis de serem revertidos, mesmo após
a desvalorização cambial. O produto interno bruto (PIB)
apresentou taxa média de crescimento anual de apenas 2,2%
no período 1990-99, sustentado pela atividade agrícola, pois
o PIB industrial cresceu no período somente 1,7%.
É forçoso concluir, portanto, que a economia brasileira estaria abrindo um novo século sem conseguir reconfigurar sua estrutura produtiva industrial para os padrões do paradigma microeletrônico, o que implica graves
conseqüências em termos de taxas de crescimento da economia, desequilíbrio na balança com o exterior,5 vulnerabilidade externa do país, crescimento do emprego e do
sistema de ciência e tecnologia que tende, neste contexto,
a ter sua importância reduzida.
OS DESAFIOS ÀS EMPRESAS INDUSTRIAIS
Os desafios postos às empresas de produção industrial,
nestas últimas décadas, são imensos e têm como pano de
fundo, de um lado, o lento crescimento da economia mundial e, de outro, o sistema financeiro, impondo-lhes, na prática, taxas de rentabilidade referenciais.6 Internamente, essas empresas vivem o desafio de uma inovação complexa e
sistêmica. São transformações tecnológicas de vulto,
conduzidas pela tecnologia de informações e de comunicações, vale dizer, outro paradigma, outra cultura.
Em paralelo, alteram-se, às vezes radicalmente, as formas de organização do trabalho, de realização de P&D,
de relacionamento das funções (P&D&E, produção e
101
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
tos. Esta característica é determinante para a reduzida
geração de empregos observada: o saldo líquido entre
empresas que informaram redução e aquelas cujo investimento resultaria em acréscimo do emprego é inexpressivo,
de apenas 3%.
que implica desenvolvimento de capacitações próprias e
específicas às características da empresa para a realização de inovações incrementais contínuas. Além disso,
como estas indústrias apresentam oportunidades tecnológicas elevadas, requerem ainda as chamadas capacitações
dinâmicas, que permitem às empresas a constituição de
“antenas tecnológicas” destinadas a captar eventuais novas rotas tecnológicas. Em face destes desafios, verificamse entre esse conjunto de indústrias, as mais elevadas necessidades de contratação de engenheiros e cientistas
experientes e de constituição de relações com instituições
públicas e privadas de pesquisa básica e aplicada (Bell e
Pavitt, 1993).
Já os desafios enfrentados pelas indústrias com complexidade tecnológica menor que a desse primeiro conjunto são elevados, porém, evidentemente, menores. As
indústrias intensivas em escala, por exemplo, como a automobilística, eletrodoméstica e siderúrgica, demandam
elevada capacidade de interação entre as áreas de engenharia da produção, projeto e fornecedores, que constituiriam as fontes principais de desenvolvimento tecnológico desse grupo. A capacidade organizacional para
coordenar interações complexas tem, portanto, importância particular para esse conjunto de indústrias.
Para as indústrias tradicionais (têxtil, bebida, mobiliário e alimentar), as principais fontes de aprendizado/acumulação tecnológica seriam: fornecedores de máquinas e,
eventualmente, de matérias-primas; learning by doing; e
serviços de consultoria. Portanto, seria menos comum a
organização formal de departamentos de P&D nessas indústrias. Exceto para as empresas que se voltam para os
nichos de produtos diferenciados, com elevado valor agregado, a ênfase na organização da produção seria a redução de custos através do aperfeiçoamento das tecnologias
de processo e a principal forma de absorção de novas tecnologias seria a aquisição de máquinas e equipamentos
de última geração e a competência para operá-los.
TABELA 3
Empresas e Valor do Investimento, segundo Tipos de Investimento
Estado de São Paulo – 1996-98
Tipos de
Investimento
No de Empresas
Valor do Investimento (1) Valor Médio
Nos Abs.
%
US$ milhões
%
100,0
32,0
8.041
2.053
100,0
26,0
174
136
59,0
9,0
2.828
3.160
35,0
39,0
105
790
Total
46
Planta Nova
15
Expansão e Reestruturação da Produção
e Novos Produtos
27
Não Declarado
4
(US$ milhões)
Fonte: Pesquisa IPT (1999).
(1) Refere-se ao valor total do investimento independente do seu estágio de realização.
A maior parcela dos investimentos realizados no período 1996-98 (77% do valor) teve a finalidade de permitir à empresa a produção de novos produtos, enquanto 62%
(55% do valor) objetivaram a reestruturação da produção.
O investimento na expansão da produção foi menor, mas,
ainda assim, expressivo.
O investimento mostrou-se extremamente concentrado
setorialmente. O setor automobilístico recebeu 41% dos
recursos, os produtos químicos (commodities) ficaram com
24% e o setor siderúrgico captou 11%.
Enquanto categoria de uso, o grupo de setores produtores de bens duráveis ocupou a primeira posição em valor do investimento (47%), mas não em número de empresas (25%), e é liderado pela indústria automobilística.
O presente ciclo de modernização da indústria de veículos teria, necessariamente, que ser acompanhado por investimentos na indústria de autopeças, de forma a permitir-lhe acompanhar os requisitos técnicos e de custos da
primeira. Incapaz – financeira e tecnologicamente – de
realizar essa tarefa, em ambiente de importações favorecidas, elevados juros e de desvalorização cambial, esse
setor viveu, no final da década, possivelmente o mais profundo processo de desnacionalização patrimonial da indústria brasileira.
O processo de desnacionalização tende a continuar,
também por decorrência da atual dinâmica tecnológica que
requer a aproximação de fornecedores e clientes para o
trabalho conjunto desde a fase do projeto de novos pro-
PERFIL TECNOLÓGICO E ORGANIZACIONAL7
A análise desenvolvida a seguir procura apreender as
características tecnológicas e organizacionais das empresas que investiram nos últimos anos da década de 90, a
partir de dados e informações coletadas através de questionários, entrevistas e visitas às instalações fabris.8
A Tabela 3 evidencia que 32% das empresas investiram em novas plantas, enquanto 59% o fizeram na expansão e/ou reestruturação da produção e em novos produ-
102
INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE
equipamentos, partes e peças com elevado conteúdo
tecnológico. Não menos grave é a dificuldade em investir
que encontram as pequenas e médias empresas neste cenário, uma vez que não possuem recursos financeiros, tampouco outras facilidades para a importação. Desta forma,
a indústria não funciona como um sistema construído sobre relações densas e difusoras das novas tecnologias e,
nesse sentido, alimentadoras de aprendizados e competências, tal como se observa nas economias industrializadas. Ao contrário, na medida em que não responde às demandas imediatas e em que não há restrições à demanda
ao exterior, lamentavelmente, o sistema industrial brasileiro vai se esfacelando. Apresentam bom desempenho somente os setores que podem operar com elevada escala,
beneficiando-se, desse modo, o tamanho do mercado interno, mas que não têm a característica de elevada sinergia
com os demais setores industriais.9
A dificuldade em encontrar parceiros dos quais se possa
esperar o cumprimento de prazos, qualidade, etc. mantém
elevada a verticalização, mesmo após todo o processo de
terceirização que marcou os anos 90. Neste cenário fica
difícil a constituição de redes – forma de relação entre
empresas que se difunde juntamente com o paradigma
microeletrônico. Em resumo, se, por um lado, os investimentos dos últimos anos da década de 90 traduziram um
grande esforço e, efetivamente, tornaram algumas empresas bastante competitivas, sobretudo no mercado interno,
por outro, pouco contribuíram para a reconfiguração da
estrutura produtiva industrial, a criação de “externalidades
tecnológicas” e, em decorrência, para a geração de elevados e sustentáveis ganhos de produtividade.
Quando consultadas sobre a sua estratégia de concorrência (Tabela 4), as empresas revelaram a grande ênfase
que estão atribuindo à concorrência baseada na qualidade, seguida pela concorrência em custos: 57% das empresas definiram que sua concorrência baseia-se em qualidade e 43% em custos/preços. O que é notável – mas não
surpreendente – é o número bastante reduzido de empresas (8%) declarando a inovação como principal estratégia de concorrência, bem como o número ainda menor
(5%) concorrendo em prazos e em flexibilidade (3%).
Por que a conduta das empresas brasileiras é tão diferente, em relação à inovação de produtos e processos, das
empresas dos países industrializados e asiáticos de industrialização recente? Seguramente não é por desinformação
ou incapacidade empresarial, mas sim conseqüência da
presença na economia brasileira de um conjunto de fatores que agem como barreiras às atividades inovadoras.10
dutos e processos. Tendo em vista que as empresas brasileiras não se tornaram grandes o suficiente para participar ativamente no mercado internacional, não são
interlocutoras nos momentos iniciais de projeto de novos
modelos dos oligopólios internacionais, que ocorrem, em
geral, nos países de origem destes grandes grupos. O exemplo da cadeia automobilística traduz uma lógica implacável: dado que os fornecedores de partes e componentes
são definidos ainda na fase de projeto, ser apenas nacional pode significar a exclusão do mercado nessa cadeia
produtiva.
Nesse grupo de bens duráveis, o fato novo vincula-se
ao investimento em material eletrônico, aparelhos e equipamentos de comunicações, que veio na esteira da privatização das telecomunicações. Seu valor, entretanto, foi
inferior a 4% do total investido pelo conjunto de empresas da amostra. As empresas produzem equipamentos para
infra-estrutura em telecomunicações, mas, à exceção de
uma delas, estes respondem por reduzida fatia do seu
faturamento, que depende fundamentalmente dos aparelhos para telefonia.
A tendência à desnacionalização dos fornecedores de
componentes repete-se neste setor, que se caracteriza por
elevado grau de complexidade tecnológica, e pela exigência do modelo simultâneo de desenvolvimento de produtos e processos.
Os setores produtores de bens intermediários também
tiveram participação expressiva no investimento do período 1996-98 (46% das empresas e 41% do montante
investido). Já o segmento de não-duráveis se fez representar pela indústria de alimentos e bebidas e indústria
têxtil, mas não registrou a presença da indústria de couro
e calçados ou de vestuário e o seu investimento médio é
reduzido, em especial o da indústria têxtil.
Finalmente, o segmento de bens de capital esteve totalmente ausente da amostra. Nenhuma empresa produtora de máquinas, de máquinas e equipamentos, aparelhos e
materiais elétricos ou de fabricação de equipamentos para
automação industrial anunciou investimentos e/ou se dispôs a informar sobre eles. Ao que tudo indica, a tendência é a elevação da defasagem tecnológica entre o setor
produtor de bens de capital nacional e o do exterior, quando
não da extinção, como parece ser o caso do segmento de
produtores de equipamentos para automação industrial.
Essa tendência é profundamente grave para a dinâmica industrial brasileira, pois gera a perda dos efeitos positivos do investimento que são, em grande medida, transferidos para fora, via importação de máquinas e
103
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
Dessa forma, o baixo investimento privado em capacitação tecnológica, lamentavelmente, tornou-se tradição
empresarial brasileira. Poucas seriam as empresas brasileiras que teriam passado do estágio de aprender a produzir com eficiência produtos licenciados por empresas estrangeiras, evoluindo para o detalhamento do projeto
básico do produto e um número ainda menor teria evoluído para a capacitação no desenvolvimento local do projeto básico do produto.
De fato, ainda hoje, o principal item do investimento é
o de aquisição de máquinas e equipamentos, um fenômeno generalizado nas empresas da amostra desta pesquisa
(Tabela 5). Quase 77% das empresas afirmaram que esse
foi o item mais importante no investimento realizado (ou
em realização). Quando são consideradas também aquelas que indicaram máquinas e equipamentos como o segundo item mais importante, o percentual amplia-se para
95% das empresas. Esse resultado indica mudança de
postura em relação à primeira metade dos anos 90, quando os investimentos foram classificados de “defensivos”.
Porém, por outro lado, mostra quão incipientes são os investimentos em intangíveis.
TABELA 4
Número de Empresas, segundo Estratégias de Concorrência
Estado de São Paulo – 1999
Estratégias (1)
No de Empresas que
Atribuem Grau 1
No de Empresas que
Atribuem Graus 1 e 2
% do Item % das Empresas % do Item
Total
Qualidade
Custo
Inovação
Prazo
Flexibilidade
100,00
48,84
37,21
6,98
4,65
2,33
56,76
43,24
8,11
5,41
2,70
100,00
46,84
35,44
8,86
6,33
2,53
% das Empresas
100,00
76,68
18,92
13,51
5,41
Fonte: Pesquisa IPT (1999).
(1) Algumas empresas classificaram mais de um item na mesma ordem.
Inegavelmente, o sistema social de produção brasileiro não
favorece a que as empresas se lancem a assumir os elevados riscos das atividades inovadoras.
A razão central para o reduzido percentual de empresas inovadoras no Brasil relaciona-se, em larga medida,
com a incapacidade da política econômica brasileira para
fazer avançar a estrutura produtiva industrial, isto é, para
gerar as condições macroeconômicas necessárias à implantação daqueles setores industriais típicos do paradigma
microeletrônico, que apresentam as mais elevadas taxas
de crescimento, expressão econômica do seu dinamismo
tecnológico que produz contínuas inovações de produtos,
abrindo novos mercados e ampliando os já existentes. O
ritmo de inovações nos “setores antigos” é obviamente
menor e refere-se sobretudo aos processos e menos aos
produtos.
Também são desfavoráveis às inovações os fatores mais
diretamente relacionados à ciência e tecnologia, como o
baixo investimento público e privado em pesquisa básica
e aplicada, particularmente nas áreas de ponta, em treinamento nas várias engenharias, necessários para a promoção da sinergia e para a redução do risco na área privada.
Estas características têm sido apontadas como decorrência da ocupação dos setores com maiores desafios tecnológicos pelas empresas multinacionais, cujas atividades
de desenvolvimento tecnológico ainda permanecem, em
sua maioria, localizadas em seus países de origem.11 O
desenvolvimento tecnológico feito no Brasil (bem como
em outros “mercados emergentes”) por multinacionais
refere-se quase sempre a adaptações dos produtos às condições locais, sejam estas técnicas (clima, matérias-primas, etc.) ou econômicas (celular ou geladeiras com controle digital com funções menos sofisticadas – e mais
baratos – que nos países de origem, por exemplo).
TABELA 5
Investimentos Realizados pelas Empresas,
por Ordem de Importância, segundo Tipos
Estado de São Paulo – 1996-98
Em porcentagem
Tipos de Investimento
Ordem de Importância (1)
1o
2o
Máquinas e Equipamentos
77
18
3
Instalações e Construção Civil
13
51
10
Treinam. e Qualificação de Mão-de-Obra
13
3
33
0
13
18
Softwares
3
10
15
Estudos Técnico-Econômicos
0
3
5
Outros
3
-
10
Serviços Científicos e Tecnológicos
3o
Fonte: Pesquisa IPT (1999).
(1) Algumas empresas classificaram mais de um item na mesma ordem.
O segundo item de investimento mais importante foi o
de instalações e construção civil, apontado por 13% das
empresas e indicando que a introdução de novos produtos implicou a necessidade de ampliação do chão de fábrica. Treinamento e qualificação de mão-de-obra foram
indicados por igual número de empresas (13%) como os
mais importantes investimentos, refletindo a necessidade
de adaptação da mão-de-obra à tecnologia microeletrônica incorporada às máquinas e equipamentos.
104
INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE
sas, com maior incidência nas faixas de menores investimentos. 12
O que é importante salientar desses dados é que, apesar do elevado percentual de empresas buscando a realização de inovações13 – mesmo quando sua estratégia não
é concorrer via inovações –, seu dispêndio é reduzido e a
inovação é, em sua maior parte, de natureza puramente
adaptativa.
Apenas 19% das empresas acreditam que após os investimentos estão em mesmo nível tecnológico que seus
concorrentes do exterior, enquanto 78% consideram-se
superiores tecnologicamente aos concorrentes no mercado interno. Aquelas que se situam no primeiro caso (iguais
tecnologicamente) são produtoras de commodities, tradicionais exportadoras ou produtora de bem de elevado valor agregado, o caso mais bem-sucedido da indústria brasileira no presente. Estes resultados são compatíveis com
as informações obtidas nas entrevistas, de que os empreendimentos das empresas, inclusive as de capital externo,
objetivam sobretudo o mercado interno brasileiro e de
forma quase marginal o mercado supra-regional (Mercosul), não confirmando, portanto, a propalada contribuição do investimento estrangeiro para o equilíbrio da balança comercial com o exterior.
Serviços científicos e tecnológicos, softwares e estudos
técnico-econômicos tiveram inexpressiva participação no
investimento do período 1996-98. Há que se considerar,
entretanto, o problema de medição do investimento em
softwares, cujo valor teria sido muitas vezes incorporado
àquele relativo a máquinas e equipamentos, em conseqüência da dificuldade de discriminá-lo, por se tratar de máquinas com elevado grau de automação e integração. Este é o
caso típico da indústria de aparelhos eletrônicos.
Entre as empresas que investiram em aquisição de
máquinas e equipamentos, cerca de 80% realizaram parte
das aquisições no exterior, das quais 56% destinaram mais
de 50% do investimento em máquinas adquiridas no mercado externo. Segundo foi possível apreender, máquinaschaves no processo ou que apresentam elevada automação microeletrônica são importadas principalmente da
Alemanha ou Suíça, bem como de fabricantes japoneses,
como no caso das telecomunicações, enquanto máquinas
secundárias ou pouco dotadas em mecanismos microeletrônicos são adquiridas no mercado interno. Essa pesquisa confirma, dessa maneira, o elevado montante do
componente importado do investimento em máquinas já
diagnosticado em inúmeros estudos.
Quase 80% das empresas informaram ter realizado, em
1998, investimentos em P&D&E, enquanto 66% declararam investimento em aquisição de tecnologia (licenciamento) e igual percentual informou investimento em
informatização e em treinamento de pessoal. Estes valores revelam, sem dúvida, que a preocupação com a mudança tecnológica está presente entre este seleto grupo de
empresas. O item informação tecnológica não constituiu
objeto de inversão por parte de elevado número de empresas (62%), mas aquelas que o fizeram apresentam o
mais elevado investimento médio.
Entretanto, o detalhamento da atividade de P&D&E
revela que o maior esforço é em desenvolvimento, com
97% das empresas fazendo algum tipo de atividade sob
esse título. Cerca de 55% das empresas afirmaram realizar pesquisa aplicada, mas o investimento nesse item concentra-se nas menores faixas, com 51% das empresas dedicando-lhe menos de 50% dos recursos em P&D&E. O
item engenharia não rotineira é praticado por metade das
empresas que realizam desenvolvimento de produtos ou
processos. O valor do investimento nesse item situa-se
nos menores estratos e pode ser tomado como o indicador do reduzido esforço próprio na definição dos métodos de gestão da produção e do trabalho. As atividades
de pesquisa básica são realizadas por 24% das empre-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A adoção de tecnologias baseadas na microeletrônica
volta-se à solução de situações complexas na produção –
como o rigor no controle de qualidade, a produção
diversificada com possibilidade de regulação do tamanho
dos lotes, etc. – à aceleração de lead time e à possibilidade
de comunicação sem papel com fornecedores e clientes.
É evidente, portanto, que a incorporação do progresso
técnico, ou a modernização da empresa, e a busca da eficiência passam hoje por um tipo de ação profundamente
mais complexa que a simples incorporação de um equipamento. Trata-se da gestão do saber, que ganha foros de atividade permanente, requerendo o aprendizado tecnológico
e organizacional contínuo, uma vez que as situações de
mercado e o saber evoluem em permanência.
A literatura que investiga as razões do sucesso das grandes empresas14 sugere, assim, que a sobrevivência e o crescimento da empresa no presente requerem uma capacitação dinâmica (Teece e Pisano, 1998), uma atitude de
aprendizado dessas novas tecnologias e modos de organização, um aprendizado que não é apenas individual, mas,
sobretudo, coletivo, que é cumulativo e, neste sentido,
105
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
conduz a um processo de desnacionalização de alguns
segmentos da indústria ou à sua desestruturação;
condicionado pelos investimentos anteriores das empresas e determinante das suas possibilidades futuras. Um
aprendizado que é local, isto é, vivenciado sobretudo por
aqueles que concebem e operam o processo produtivo e
que, dadas as várias áreas e interfaces, deve ser coordenado, o que significa a exigência de elevada qualificação
de quadros diretivos.
As novas tecnologias e os novos modos de organização conferem às empresas não só elevada capacidade de
adaptação às oscilações da demanda, mas, também, eficiência dinâmica que lhes permite modificar, ao menos
parcialmente, o ambiente em que atuam, em benefício
próprio. Ao promover a aceleração de melhorias (inovações) em seus produtos, a elevação da qualidade e a
personalização e ao aumentar a variedade e o nível dos
serviços prestados, a empresa estará elevando as suas chances de conquistar maiores parcelas do mercado.
Este é o processo pelo qual passam os grupos econômicos internacionais que se reestruturam em escala internacional, realizando não só o investimento na produção,
mas também em distribuição, marketing, etc., obedecendo, via de regra, uma lógica de mercados regionais. Entretanto, não existem indícios de que as empresas brasileiras estejam caminhando firmemente nesta direção. Nem
mesmo o conjunto das empresas que investiram nos últimos anos da década de 90 permite compor um quadro otimista. As evidências são inúmeras:
- os problemas de financiamento dos investimentos industriais permanecem graves, dadas as elevadas taxas de juros, a reduzida parcela de IDE dirigida para novas plantas e a ausência de vínculos entre o capital financeiro
nacional – que preferiu associar-se aos seus parceiros internacionais – e o capital industrial;
- em ambiente caracterizado por elevada instabilidade e
quase sempre desfavorável às atividades inovativas, a grande maioria dos empresários brasileiros adotou tradicionalmente a estratégia de adquirir tecnologia no mercado,
em especial no mercado externo. Para a modernização da
gestão da produção, está se repetindo a mesma prática,
isto é, “método de gestão” adquire-se no mercado, via
compra de softwares padrões. Essa pode ser uma má aposta, pois a capacitação tecnológica e organizacional é firma-específica e de difícil transferência. Ao não buscá-la,
através de esforços próprios, as empresas perdem oportunidade para elevar a sua eficiência, produtividade e a competitividade da economia brasileira.
O padrão tecnológico do parque industrial brasileiro,
assim, aproxima-se daquele identificado (Pavitt, 1984; Bell
e Pavitt, 1993) para as indústrias tradicionais, que têm os
fornecedores de máquinas e equipamentos e de matériasprimas como principais fontes de desenvolvimento
tecnológico. Os casos de empresas que refletem a complexidade tecnológica das indústrias baseadas em ciência
não passam de algumas dezenas, sem fôlego, portanto, para
impregnar o tecido industrial.
Diferentemente do ocorrido até os anos 80, o atual padrão tecnológico e organizacional das empresas e da economia brasileira não parece ter força para enfrentar os
desafios impostos pelas políticas de desregulamentação e
de abertura comercial e financeira implementadas na década de 90. As empresas brasileiras enfrentam agora concorrentes poderosos que acumulam há anos, décadas e,
em alguns casos, há mais de século, a capacitação tecnológica e organizacional que lhes permite produção com
elevada eficiência ao longo do tempo e, não menos importante, lhes permite fundirem-se a outras e migrarem para
os setores mais dinâmicos, em determinadas situações,
abandonando aqueles de menores taxas de crescimento e
lucros. Essas são, efetivamente, empresas competitivas.
As nossas empresas, mesmo as consideradas competitivas, não encontram condições de oferecer resistência,
porque não têm recursos – financeiros, tecnológicos e
gerenciais – para garantir a eficiência ao longo do tempo.
Se pressionadas por atores do oligopólio internacional, a
capitulação é quase imediata. Como estes ex-empresários
têm a possibilidade de continuar acumulando riquezas
através das aplicações financeiras, não resistem à forma
da inserção econômica nacional e à atual política econô-
- as empresas nacionais estão entre aquelas tipicamente
inovadoras, pois poucas integram o complexo microeletrônico ou as demais indústrias dinâmicas, nascidas do
novo paradigma;
- o número extremamente reduzido de empresas inovadoras dificulta a ampliação de externalidades tecnológicas
que têm forte impacto sobre a produtividade do conjunto
da economia: desverticalização da produção e ampliação
de redes de empresas; intensificação do vínculo universidades/institutos de pesquisa e empresa; e aprofundamento das atividades de ciência e tecnologia;
- as empresas brasileiras não constituíram grandes grupos
privados capazes de tornarem-se players nesta economia
internacional desregulamentada, característica esta que
106
INVESTIMENTO RECENTE, CAPACITAÇÃO TECNOLÓGICA E COMPETITIVIDADE
11. A respeito da internacionalização das atividades de desenvolvimento
tecnológico das grandes empresas, ver Patel e Pavitt (1998) e Patel e Vega (1998).
mica. Os grandes grupos que permaneceram na atividade
industrial tampouco resistem, pois parte de seus rendimentos são não-operacionais, obtidos junto ao mercado financeiro.
Lamentavelmente, os investimentos industriais recentes não parecem ter sido capazes de implantar uma nova
estrutura industrial dinâmica que assegurasse uma inserção competitiva da indústria brasileira na economia internacional. Apesar do elevado esforço para a sua realização, por parte de algumas dezenas de empresas, esses
investimentos, em termos agregados, foram insuficientes
para configurar um padrão tecnológico e organizacional
superior, pouco favoreceram a estruturação de relações
de novo tipo entre as empresas e entre as empresas e o
sistema de ciência e tecnologia, pouco contribuíram para
a geração de empregos e, finalmente, pouco colaboraram
para o equilíbrio da balança comercial.
12. Uma das empresas afirmou ter destinado 100% dos recursos em P&D&E para
este fim, o que sugere uma falha no preenchimento do questionário ou um problema de interpretação conceitual.
13. Mesmo quando se amplia o escopo de empresas, esta constatação permanece
válida. A Paep apurou, junto à totalidade das empresas industriais paulistas com
mais de 50 empregados, que a quantidade de empresas inovadoras é compatível
com a encontrada em outras economias, segundo Quadros et alii (1999).
14. Ver Muniz (2000), capítulo 2.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Corporate Change, v.2, n.2, 1993, p.157-210.
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e do real: o mini-ciclo de modernizações, 1995-97 (www.cepal.org), 1998.
DOSI, G. “The nature of the innovative process”. In: DOSI, G. et alii (eds.). Technical
change and economic theory. Londres, Pinter Pub., 1988, p.221-238.
FOLHA DE S.PAULO. Caderno Dinheiro, 17/12/99, p.8.
__________ . Caderno Dinheiro, 29/08/00, p.B14.
NOTAS
INSTITUTO DE PESQUISAS TECNOLÓGICAS – IPT. A dinâmica do investimento industrial em São Paulo e a capacitação tecnológica. São Paulo, 1999
(Relatório Final IPT/DEES n.40.425).
Versão modificada de artigo enviado ao XXI Simpósio de Gestão da Inovação
Tecnológica. São Paulo, nov. 2000.
LACERDA, A.C. “Economia brasileira: reestruturação produtiva e vulnerabilidade externa”. 13o Congresso Brasileiro de Economistas. Rio de Janeiro, 1999.
1. A taxa de investimento (% do PIB a preços de 1980) caiu de quase 23%, em
1980, para pouco mais de 15%, em 1990. Em 1992 cairia abaixo de 14%.
LAPLANE, M. e SARTI, F. Investimento direto estrangeiro e o impacto na balança comercial nos anos 90. Brasília, Ipea, n.629, 1999 (Texto para Discussão).
2. O endividamento contraído por empresas privadas e pelo setor público, durante os anos 70, avolumou-se desmesuradamente com a elevação das taxas de juros
norte-americanas a partir de 1979.
MANZANO, M.P.F. Liberalização econômica e produtividade no Brasil dos anos
90: impactos sobre o emprego. Tese de Doutorado. Campinas, Instituto de
Economia, Universidade Estadual de Campinas, 2000.
3. Compreende indústria extrativa.
MUNIZ, S. Sambando em gelo fino: investimento industrial, capacitação tecnológica e organizacional e competitividade brasileira nos anos 90. Tese de
Doutorado. São Paulo, Escola Politécnica, Departamento de Engenharia de
Produção, Universidade de São Paulo, 2000.
4. Esta metodologia que utiliza o valor adicionado e não a produção tem a vantagem
de levar em conta o efeito da elevação das importações de insumos industriais no
cálculo da produtividade para a indústria brasileira. O debate sobre as várias metodologias de cálculo da produtividade pode ser visto em Manzano (2000), capítulo 3.
NELSON, R. “Recent writings on competitiveness: boxing the compass”.
California Management Review, v.34, n.2, 1992, p.127-37.
5. Na medida em que a produção de bens do complexo eletrônico, química fina,
etc. é internalizada de forma muito incipiente mas que empresas e consumidores
finais desejam acesso a esses produtos, onerando as importações de bens com
elevado valor agregado.
PATEL, P. e PAVITT, K. National systems of innovation under strain: the
internationalisation of corporate R&D. Sussex, SPRU, 1998 (Electronic
Working Papers Series, 22).
6. Uma breve análise do domínio da lógica financeira sobre a atividade industrial
é feita em Muniz (2000), capítulo 1.
PATEL, P. e VEGA, M. Patterns of internationalisation of corporate technology:
location versus home country advantages. Sussex, SPRU, 1998 (Electronic
Working Papers Series, 08).
7. Esta seção analisa os resultados de uma pesquisa de campo conduzida por equipe do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas, em 1999, com 55 empresas, predominantemente de grande porte, que realizaram investimentos na indústria de transformação paulista, no período 1996-98. Essa amostra de empresas não é estatisticamente representativa do universo industrial brasileiro e por esta razão os resultados quantitativos da pesquisa não devem ser generalizados. Contudo, apresenta informações qualitativas extremamente ricas para a compreensão do presente momento.
PAVITT, K. “Sectoral patterns of technical change: towards a taxonomy and a
theory”. Research Policy, v.13, 1984, p.343-373.
QUADROS, R. et alii. “Padrões de inovação tecnológica na indústria paulista”.
São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.13, n.1-2, 1999,
p.53-66.
8. Os questionários foram respondidos por 46 empresas. Destas, 9 foram também
entrevistadas, além das entrevistas com outras 9 empresas. Os detalhes da pesquisa podem ser vistos em Muniz (2000), capítulo 4.
ROSENBERG, N. “Science and technology in the twentieth century”. In: DOSI,
G. et alii. Technology and enterprise in a historical perspective. Nova York,
Oxford University Press, 1992, p.63-96.
9. Evidentemente esta afirmativa não deve ser entendida de forma absoluta. A
indústria automobilística, ao se modernizar, requer a modernização da indústria
de vidros, siderúrgica, etc., com as quais tem forte sinergia. O que se quer enfatizar é que o caráter invasivo das indústrias de automação microeletrônica, informática, etc. e o seu efeito sobre a produtividade de todo o sistema são muito superiores.
TEECE, D.J. e PISANO, G. “The dynamic capabilities of firms: an introduction”.
In: DOSI, G. et alii. (orgs.). Technology, organization and competitiveness.
Nova York, Oxford University Press, 1998, p.193-212.
UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT –
UNCTAD. World investment report 1999: foreign direct investment and
the challenge of development. Genebra, United Nations, 1999.
10. Freqüentemente a explicação oferecida é de que se trata de um problema cultural do empresário brasileiro. Ao tratar a questão como sendo de responsabilidades individuais, isenta a responsabilidade maior da política econômica dos sucessivos governos brasileiros.
UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT –
UNCTAD. World investment report 1998: trends and determinants. Genebra, United Nations, 1998.
107
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
INOVAÇÃO INSTITUCIONAL E ESTÍMULO
AO INVESTIMENTO PRIVADO
EDUARDO DA MOTTA E ALBUQUERQUE
Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais
JOÃO SICSÚ
Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense
Resumo: Este artigo sugere a criação de uma Agência Especial de Seguros como forma de estimular o envolvimento do sistema bancário privado no financiamento do investimento inovativo e identifica duas dimensões
da realidade tecnológica do Brasil: a imaturidade do sistema de inovação brasileiro, indicando a combinação
entre escassez (de gastos em P&D) e desperdício (de oportunidades geradas a partir da infra-estrutura científica); e a incapacidade do sistema bancário em financiar o investimento inovativo.
A proposta dessa agência busca introduzir um rearranjo no sistema de inovação brasileiro, para ampliar os
recursos investidos em atividades inovativas sem ter de desviar recursos públicos para financiar o setor privado e sem deslocar recursos comprometidos com a infra-estrutura pública de ciência para a iniciativa privada.
Palavras-chave: investimento e ciência; sistema financeiro; pesquisa e desenvolvimento.
E
ste artigo sugere a construção de uma Agência Especial de Seguros (AES) como uma inovação institucional que contribui para a superação da incapacidade do sistema bancário brasileiro de financiar o investimento inovador.1
A imaturidade do sistema de inovação brasileiro pode
ser identificada tanto pelo percentual relativamente baixo
de gastos com Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) no país,
como pelo desperdício de oportunidades oferecidas pela
infra-estrutura científica ao setor produtivo. Para esse
quadro de escassez e desperdício contribui de forma sensível a incapacidade do sistema bancário de financiar investimentos de longa duração e, em especial, investimentos inovadores.
Este artigo se apóia em trabalho anterior (Sicsú e
Albuquerque, 1998), que apresentou proposta teórica de
uma Agência Especial para segurar operações de financiamento de investimentos inovadores, e discute especificamente o caso brasileiro, investigando a adequação dessa inovação institucional.
Coutinho e Ferraz (1994), Schwartzman (1993) e Coutinho
e Suzigan (1990), que apresentaram uma avaliação detalhada da estrutura industrial, do sistema de ciência e tecnologia e da infra-estrutura educacional do país. Uma
compilação desses ricos estudos pode sustentar a avaliação do caráter imaturo do sistema de inovação brasileiro
(Albuquerque, 1999). O dado mais revelador e sintético
é a porcentagem do PIB brasileiro destinado a atividades
de P&D: 0,8%, enquanto a média dos países do G-7 é de
2,4%. Outra diferença importante em relação aos países
mais avançados, é a participação maior do setor público
nas atividades de P&D existentes no Brasil (aproximadamente 70% do total no caso brasileiro, contra 45% no caso
americano e 20% no caso japonês, segundo dados de
Nelson, 1993).
O sistema de inovação brasileiro encontra-se em uma
situação intermediária no cenário internacional. Embora
não faça parte do conjunto de países com sistemas de inovação inexistentes, possui características comuns a sistemas também incompletos e, por outro lado, outras identificadas com países de sistemas maduros.
A partir de estatísticas de patentes (Albuquerque, 2000),
foi possível identificar características comuns a países mais
avançados: firmas nacionais (privadas e estatais) como líderes na obtenção de patentes; indícios de firmas
multitecnológicas; distribuição do número de patentes em
A IMATURIDADE DO SISTEMA
NACIONAL DE INOVAÇÃO
Uma avaliação geral do sistema de inovação do Brasil
pode ser compilada a partir dos estudos abrangentes de
108
INOVAÇÃO INSTITUCIONAL E ESTÍMULO AO INVESTIMENTO PRIVADO
vação, é que firmas, universidades e centros de pesquisa
devam ter um grau razoável de interação. Caso haja um
fosso grande entre essas instituições constitutivas do sistema de inovação, isto deve se refletir em um baixo nível
de interconectividade do sistema. Esse indicador pode contribuir para oferecer pistas sobre a qualidade dessas conexões.
Para o tema deste artigo, o ponto importante na avaliação do indicador de aproveitamento de oportunidades é a
posição do subconjunto, no interior do qual está localizado o caso brasileiro. O Brasil possui um IAO igual a 0,15.
Encontra-se, portanto, entre os países de IAO mais baixo,
inferiores a 0,26, ao lado de México, Argentina e Índia,
todos países com sistemas imaturos. Os países mais desenvolvidos têm IAO maior, sendo que os países que fizeram processos de catching up no século XX (Japão e
Coréia do Sul) possuem os IAOs mais elevados. No caso
dos Estados Unidos, há um razoável equilíbrio entre as
produções científicas e tecnológicas (IAO = 1,5). O Reino Unido possui o menor IAO entre os países desenvolvidos (IAO = 0,40).
Nos sistemas imaturos, a participação do setor científico é razoavelmente superior à produção do setor industrialtecnológico, determinando o IAO baixo. Daí deriva-se o
diagnóstico da existência de desperdício de oportunidades. Em termos agregados, o conjunto da infra-estrutura
científica parece estar gerando informações e conhecimento não utilizados de forma apropriada pelo setor industrial e tecnológico.
Dessa avaliação sumária do estágio de construção do sistema de inovação no país, duas questões particulares cobram
da interface com o sistema financeiro respostas originais.
Em primeiro lugar, há a necessidade de ampliação dos gastos nacionais com P&D, com destaque para um envolvimento maior e mais sistemático das firmas privadas nessas atividades. Em segundo lugar, o potencial existente nas atividades
da infra-estrutura científica do país sugere a necessidade de
instrumentos que possam reduzir o desperdício de oportunidades diagnosticado anteriormente.
forma de “U”, de acordo com o tamanho da firma; elasticidade intersetorial P&D-patentes, compatível com os valores encontrados na literatura.
Características comuns a outros sistemas imaturos foram encontradas:
- participação elevada das patentes de indivíduos;
- baixo envolvimento das firmas em atividades inovadoras;
- falta de continuidade das atividades de patenteamento;
- baixa sofisticação da divisão de trabalho inter-firmas;
- papel declinante do setor produtor de bens de máquinas e equipamentos;
- caráter predominantemente adaptativo das atividades
tecnológicas das firmas estrangeiras;
- diferenças entre a patenteação no INPI e no USPTO
(United States Patent and Trademark Office), indicando
que alguns setores que são líderes no patenteamento interno praticamente desaparecem nas estatísticas do escritório americano de patentes.
Um aspecto particular da imaturidade do sistema de
inovação brasileiro, característica comum a outros sistemas também imaturos, como o da Índia e do México
(Albuquerque, 1999), é de especial interesse aqui: o desperdício de oportunidades criadas pela infra-estrutura
pública de pesquisa. Para uma avaliação geral da relação
entre a atividade científica e a atividade tecnológica, é
possível utilizar um Indicador de Aproveitamento de Oportunidades (IAO) (Albuquerque, 1997). Esse indicador é
construído a partir de duas proxies. A primeira é a participação relativa do país no total mundial de artigos científicos publicados: uma proxy das atividades científicas
do país. A segunda é a participação relativa no total de
patentes concedidas pelo USPTO: uma proxy das atividades tecnológicas executadas pelo país em questão. Ambas
as proxies têm problemas (Velho, 1987; Griliches, 1990),
mas contêm valiosas informações.
O Indicador de Aproveitamento de Oportunidades é
calculado dividindo-se a participação relativa no total de
patentes concedidas pelo USPTO pela participação relativa no total mundial de artigos científicos. Qual o significado do IAO? Dada a complexidade da relação entre
ciência e tecnologia, a comparação entre as duas participações relativas deve apresentar indícios da qualidade da
interação entre elas. A avaliação da interação entre a ciência e a tecnologia é um aspecto importante da avaliação
dos sistemas de inovação. A suposição básica, derivada
da fundamentação teórica dos sistemas nacionais de ino-
DEBILIDADES DO SISTEMA
FINANCEIRO BRASILEIRO
Um elemento importante da imaturidade do sistema de
inovação brasileiro é a baixa articulação com o sistema
financeiro, que aliás, possui uma incapacidade estrutural
em conceder financiamentos de longa duração. Esta seção avalia essa incapacidade estrutural e discute se as
109
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
fornecidos pela Anpei não revelem, sabe-se que as fontes
externas são fundamentalmente fundos fiscais e créditos
oficiais e, certamente, a participação dos bancos privados deve ser quase nula no financiamento do investimento inovativo.
Isso ocorre no Brasil porque o mercado de capitais e,
especificamente, o mercado de ações é bastante débil,
assim como não existe uma vocação do sistema financeiro brasileiro para se transformar em um sistema de crédito, em qualquer das versões destacadas na classificação
de Zysman (1983). Cabe ressaltar, portanto, que até mesmo o investimento não-inovativo é fortemente autofinanciado na economia brasileira. Segundo Lees, Bott e Cysne
(1990), durante os anos 80, a parcela dos gastos autofinanciada nas empresas privadas nacionais era de aproximadamente 77%, enquanto as empresas privadas estrangeiras utilizavam quase 88% de recursos próprios para
financiar os seus gastos.
A causa da debilidade do mercado de ações é basicamente o reduzido volume de poupança com perfil de longo termo que poderia dar densidade a esses mercados. Os
fundos de investimento, por exemplo, administrados pelos bancos, são compostos pelo FIF (Fundo de Investimento Financeiro), por fundo de ações e outros – fundos
que, desde sua criação, no início dos anos 90, são compostos em grande parte por títulos federais e uma reduzida parcela de ações. Nos primeiros meses do ano 2000,
segundo dados do Boletim do Banco Central, mais de 70%
do volume de recursos dos fundos de investimento estava
direcionado para a aquisição de títulos federais e aproximadamente 8% para a aquisição de ações.
Outro indicador da debilidade do sistema financeiro
brasileiro é a sua concentração em atividades de curto termo. Pode-se identificar uma acentuada tendência de elevação da participação percentual do volume de crédito
concedido aos setores que caracteristicamente tomam recursos para operações de curto termo (pessoas físicas e
comércio). Enquanto em junho de 1988 essas operações
representavam pouco menos de 10% do total do crédito
ofertado pelo sistema financeiro, em outubro de 1999
passam a representar quase 30% desse total.
De forma oposta, a participação percentual do volume
de recursos emprestado pelo sistema financeiro aos setores que particularmente tomam crédito de longo termo (indústria e habitação) apresenta uma ligeira tendência de
queda no mesmo período.
Nem mesmo o Plano Real, instituído em julho de 1994,
alterou essas tendências, embora tenha criado um clima
mudanças que o sistema financeiro tende a sofrer no país
representarão a superação dessa incapacidade estrutural.
O investimento em P&D envolve algumas especificidades técnicas e econômicas que têm determinado a forma de
seu financiamento, como o seu longo período de maturação
e a necessidade de um volume elevado de recursos. Tais
características geram uma aguda incerteza devido aos riscos técnicos e de mercado envolvidos. O elevado volume
de recursos necessários deveria induzir as firmas inovadoras a solicitar recursos de terceiros. Contudo, os elevados
riscos tendem a inibir as firmas inovadoras a recorrer a essas fontes. A opção de grande parte delas, mundo afora,
tem sido o autofinanciamento já que, além dos fatores que
inibem a demanda, a oferta de recursos para o financiamento
externo é reduzida ou, até mesmo, inexistente, em decorrência das incertezas envolvidas.
Segundo Zysman (1983), há três sistemas de financiamento do investimento em geral, e conseqüentemente, do
investimento inovativo: os sistemas de mercado de capitais, os sistemas de crédito privado e os sistemas de crédito público. O primeiro modelo pode ser exemplificado
especialmente pela forma de financiamento do investimento nos Estados Unidos e na Inglaterra. Nesses países, é
privilegiado o canal do financiamento direto via emissão
de papéis (ações, debêntures, etc.) pela firma investidora
que busca captar os recursos do público poupador. No
segundo sistema, os bancos proveêm as firmas de crédito
de longo termo, caso da Alemanha. No terceiro sistema,
semelhante ao segundo, o governo garante a oferta de crédito de longo termo. Instituições públicas, tais como bancos de desenvolvimento e agências de fomento, realizam
essa oferta, como é o caso da França. Alternativamente, o
governo pode, em vez de participar diretamente do sistema de financiamento, impor uma série de regras para dirigir o sistema de crédito privado para o financiamento
de longo termo, caso do Japão.
O sistema brasileiro de financiamento de recursos para
o investimento em P&D, basicamente de autofinanciamento, não encontra lugar na taxonomia de Zysman
(1983). Em relação aos gastos com P&D, de 1993 a 1998,
os recursos investidos foram basicamente autofinanciados
e somente uma reduzida parcela foi financiada por fontes
externas que são as agências públicas (BNDES, Finep,
etc.), as agências internacionais, o Sebrae, os bancos privados e outras fontes que subsidiam ou praticamente doam
recursos para esse fim. Dados da Anpei mostram que nesse período, 1993-98, a parcela autofinanciada dos recursos investidos nunca foi inferior a 90%. Embora os dados
110
INOVAÇÃO INSTITUCIONAL E ESTÍMULO AO INVESTIMENTO PRIVADO
Nada indica que esse quadro deva mudar. Pelo contrário, a tendência do sistema financeiro internacional que
será seguida no Brasil, em virtude da entrada de um grande número de bancos estrangeiros no País a partir de 1995,
deverá manter ou agravar a situação de precariedade do
financiamento externo ao investimento em P&D. A tendência do sistema financeiro internacional é o aprofundamento do processo de desintermediação financeira e o
alargamento dos mercados de dívidas securitizadas.
Desintermediação é o termo utilizado para designar o processo que os bancos estão há algum tempo desenvolvendo, principalmente nos Estados Unidos, onde reduzem suas
operações de concessão de crédito e, simultaneamente,
ampliam o volume de operações menos arriscadas de realização de negócios diretos entre poupadores e investidores, chamadas de securitização.
A emissão de papéis por firmas investidoras para a aquisição direta por parte de instituições poupadoras com perfil
longo-termista é uma tendência crescente do sistema financeiro internacional e, além disso, uma tendência alternativa aos sistemas de crédito privado e público em que
as instituições carregam o risco inerente das operações de
concessão de empréstimos e os seus custos mais elevados, devido às restrições regulatórias (reservas mínimas)
e às formas específicas desses negócios (por exemplo, o
estudo de cadastro). Essas operações não são recentes, pois
as grandes corporações e instituições poupadoras longotermistas já participam dos mercados de dívidas há muitos anos. As empresas menores ou que realizam investimentos com maiores riscos não têm tido acesso a essa fonte
porque não possuem a tecnologia dos negócios desse
mercado, ou porque representam um elevado risco para o
poupador (emprestador).
Sendo assim, quando o processo de desintermediação
ocorrer no Brasil, tal transformação muito provavelmente não mudará a situação de escassez do investimento em
P&D. As empresas investidoras em P&D, aos olhos dos
poupadores, continuarão a emitir papéis com possibilidades bastante arriscadas de negócios recompensadores e,
certamente, a tomada de recursos para este fim, mesmo
em uma operação direta com o poupador, representará uma
possibilidade de financiamento em que o risco do
emprestador tende a ser maior do que para projetos nãoinovativos. Ainda que exista demanda por financiamento
para o investimento inovativo e haja oferta de fundos para
a concessão de empréstimos, a taxa de juros de tal operação seria bastante elevada pelo risco de inadimplência, o
que tenderá a tornar inviáveis os empréstimos.
muito mais favorável às atividades reais de longo termo,
como a construção de moradias e infra-estrutura e o investimento de ampliação ou de constituição de novas plantas.
Se são reduzidas as poupanças com perfil longo
termista, os sistemas de crédito (privado e público, na sua
versão japonesa) também não podem ser uma alternativa,
porque as instituições financiadoras (para conceder crédito de longo termo) não podem carregar passivos curtos.
A participação percentual dos depósitos a prazo no total
do passivo dos bancos comerciais era muito baixa no final dos anos 80 para sustentar a concessão de crédito de
longo termo. Contudo, cabe ressaltar que os bancos comerciais não possuem horizontes longo-termistas. Os bancos múltiplos, estes sim, que possuem um estrutura de ativos e passivos mais diversificada, poderiam atuar com
horizontes maiores. Entretanto, o percentual de participação dos depósitos a prazo nos seus passivos, no final
dos anos 80, era inferior ao percentual alcançado pelos
bancos comerciais.
O crescimento acentuado dos depósitos a prazo no passivo dos bancos múltiplos e comerciais, que ocorreu até
1994, não foi devido ao aumento da propensão a poupar
em ativos de longo termo, mas simplesmente porque esses eram ativos que protegiam os recursos monetários de
seus possuidores em um contexto de inflação alta e crônica; além disso, seu prazo de resgate era bastante reduzido, e por vezes, dependendo do volume de recursos e de
outras condições impostas pelos bancos, podiam ser resgatados em apenas um dia. O que pode ser observado, após
a estabilização, a partir de julho de 1994, é que o percentual de depósitos a prazo, em relação ao total do passivo
dos bancos múltiplos e comerciais, volta a declinar atingindo patamares semelhantes àqueles do final dos anos
80. A única diferença, recentemente, é os bancos múltiplos estarem captando depósitos a prazo em proporção
maior (relativamente ao total de seus passivos) do que os
bancos comerciais.
A ausência de poupadores longo-termistas também
se deve a fatores associados ao sistema financeiro. Por
exemplo, a inexistência de instituições captadoras de
grande porte e com tradição que desfrutem da confiança do público potencialmente poupador de recursos a
longo termo e, paralelamente, a inexistência de mecanismos reconhecidamente eficazes de proteção das poupanças (isto é, mecanismos de controle de riscos das
operações das instituições captadoras) podem ser considerados como fatores inibidores da realização de poupanças longo-termistas.
111
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
Dadas as condições de incerteza inerentes às atividades de P&D que geram reduzidos financiamentos para estas
atividades e o conseqüente subinvestimento neste segmento
da economia, sugere-se a intervenção do setor público. O
objetivo dessa intervenção seria diminuir tais condições
desfavoráveis, uma vez que o mercado é incapaz de
minorá-las. Propõe-se a criação de uma Agência Especial
de Seguros que realize algum tipo de seguro não-tradicional dos financiamentos dos investimentos privados em
P&D. A Agência pagaria uma indenização ao banco
emprestador, que recuperaria uma parcela dos recursos
comprometidos caso o projeto fracassasse por razões estritamente tecnológicas. O objetivo seria pagar uma indenização que satisfizesse parte da demanda por segurança
desejada pelo investidor potencial em P&D e por seu
financiador. O pagamento de uma indenização muito abaixo das necessidades do potencial-inovador e de seu
financiador inibiria a decisão de investir, por outro lado,
uma indenização muito elevada desestimularia os esforços necessários ao sucesso do projeto implementado, assim como incentivaria análises bancárias pouco rigorosas
sobre o projeto de P&D. Uma indenização estratégica, isto
é, intermediária (entre aquele valor que inibe a atividade
e outro que desestimula e/ou reduz o rigor de análise) seria o ideal.
A AES seria constituída inicialmente por um aporte de
recursos públicos, inaugurando um fundo que seria por
ela administrado. A partir de sua constituição, tal fundo
seria alimentado por recursos privados, decorrentes dos
pagamentos que empresários inovadores devem fazer à
AES para garantir o direito de seguro de suas operações
financeiras relacionadas às suas atividades inovadoras.
Espera-se que a proporção de recursos privados cresça ao
longo do tempo. O aporte inicial e constitutivo de recursos públicos tem um papel-chave para a construção da
credibilidade da AES. Caso a parcela de recursos de origem pública do fundo venha a ser utilizada, isso indicaria
a existência de graves problemas no funcionamento geral
do sistema de inovação e de seu financiamento – porque a
AES não estaria atraindo recursos privados. A AES, nesse caso, não conseguiria resolver os problemas que motivaram a sua criação. É importante lembrar que as atividades da AES estão entre as atividades cujo resultado
negativo (o sinistro) apenas pode ocorrer depois de um
certo período de tempo, o que fornece à AES uma importante margem de manobra inicial.
A entidade proposta para compor o sistema financeiro é uma Agência por ser uma instituição semi-au-
O que se pode concluir é que a única mudança que se
vislumbra no sistema financeiro brasileiro, a desintermediação e a implementação da securitização, não poderá
alterar de forma substancial o quadro atual de escassez de
demanda e oferta de fundos para o financiamento do investimento inovativo.
AGÊNCIA ESPECIAL DE SEGUROS
A discussão das duas seções anteriores identificou a
imaturidade do sistema de inovação brasileiro, indicando
a singular combinação entre escassez (de gastos em P&D)
e desperdício (de oportunidades geradas a partir da infraestrutura científica) e a incapacidade do sistema financeiro em custear o investimento inovativo. A questão agora
é investigar como ampliar os recursos investidos em atividades inovativas sem ter de desviar recursos públicos
para financiar o setor privado e sem deslocar recursos comprometidos com a infra-estrutura pública de ciência para
a iniciativa privada.
É importante salientar que existem um conjunto de instituições, programas e projetos que tentam suprir essas
debilidades. A avaliação geral apresentada neste artigo
sobre a imaturidade do sistema de inovação no Brasil é
um diagnóstico da incapacidade dessas importantes tentativas em superar os problemas apontados na seção II. A
proposta da AES, por isso, justifica-se.
Certamente o sistema de inovação brasileiro tem muito a ganhar com mais recursos públicos investidos diretamente em suas instituições. O que se defende neste texto
contribui para essa possibilidade, ao explicitamente buscar evitar que recursos públicos sejam destinados para
apoiar o setor privado. Em suma, trata-se de investigar
uma instituição que contribua para ampliar os recursos que
o setor privado investe em atividades inovativas. Para tanto, o objetivo deve ser o de criar mecanismos que estimulem o envolvimento do setor financeiro com as atividades
inovativas – e não recursos públicos.
Deixado à própria sorte, o sistema financeiro brasileiro
não desenvolverá as características necessárias para o financiamento do investimento inovativo. A proposta de uma AES
foi apresentada como sugestão para superar um problema
identificado a partir da avaliação das características do investimento inovativo. Trata-se agora de justificar porque essa
Agência é necessária e adequada para o caso brasileiro.
Sicsú e Albuquerque (1998:687-689) sintetizaram a
proposta da AES. Os argumentos principais, extraídos
daquele texto, são os que se seguem.
112
INOVAÇÃO INSTITUCIONAL E ESTÍMULO AO INVESTIMENTO PRIVADO
firma estabelecida (ou seja, esse tipo de operação envolve uma parcela de risco semelhante à do investimento inovativo). O efeito da criação da AES, portanto, será também o de facilitar esse tipo de operação.
A criação de uma AES rearranja o sistema de inovação
brasileiro em quatro dimensões. Em primeiro lugar, a AES
constrói uma ponte entre o sistema financeiro e o sistema
de inovação, criando condições para que o setor privado
canalize recursos para atividades inovativas e para a criação de novas firmas de base tecnológica.
Em segundo lugar, a entrada dos bancos e poupadores
privados no processo de financiamento de atividades inovativas deve ser considerada um importante passo em direção ao amadurecimento do sistema de inovação. O desenvolvimento da capacidade de avaliação, monitoramento
e fiscalização de empréstimos para atividades de enorme
impacto econômico certamente representa uma importante mudança estrutural de um sistema financeiro incapaz
de sair de um limitado horizonte de curto termo.
Em terceiro lugar, o setor público tem papel-chave no
financiamento e no aprimoramento da infra-estrutura científica do país. A criação da AES retira de entidades voltadas
para o fomento da atividade científica a responsabilidade
de injetar recursos para a viabilização do aproveitamento
comercial de novos conhecimentos.
Em quarto lugar, as agências que hoje aprovam projetos
e destinam recursos para novas firmas e atividades inovativas (Finep, BNDES, Sebrae, Fapesp, etc.) têm uma contribuição importante para a constituição da AES: o know-how
acumulado na avaliação de projetos e de sua viabilidade
será útil para a preparação da capacidade técnica que a AES
precisa ter. Nesse sentido, mesmo os bancos privados podem se beneficiar dessa capacitação já acumulada. Há um
remanejamento de tarefas no interior dessas instituições.
Bancos de fomento, uma vez liberados da função de destinar recursos para o setor privado, poderiam concentrar suas
tarefas na execução de políticas industriais visando o amadurecimento do sistema de inovação brasileiro e o fortalecimento do sistema de bem-estar social.
Enfim, a criação da AES reorganiza o sistema de inovação brasileiro, ampliando o número de agentes que atuam
no sistema de inovação e definindo uma divisão de trabalho inter-institucional mais precisa.
tônoma no interior do Estado que administrará recursos privados de acordo com objetivos públicos (não terá
como meta a obtenção de lucros). A entidade proposta
é Especial porque não é uma seguradora que aposta
contra eventos cuja distribuição de probabilidades existe
e é conhecida. É uma Seguradora porque, embora não o
seja no sentido estrito do termo, a AES acabará por ser
vista por banqueiros e empresários como uma instituição seguradora tradicional que paga indenizações em
caso de fracasso.
Por último, a proposição da AES decorre da concepção
que não considera apropriadas políticas que sugerem a transferência direta de recursos governamentais para firmas privadas (Nelson e Romer, 1996). Tal política poderia resultar em uma indevida redução da participação do setor
público na necessária sustentação da infra-estrutura científica, que possui um papel crucial na divisão de trabalho
interinstitucional existente nos sistemas de inovação, ao
garantir um pólo da complexa interação entre ciência e tecnologia. Portanto, a discussão teórica realizada sobre o
caráter do financiamento do investimento em P&D foi combinada com uma preocupação adicional: como ampliar os
gastos globais em P&D sem comprometer o financiamento
do lado inescapavelmente público do sistema de inovação.
A AES deve contribuir para que o sistema financeiro
construa uma ponte com o sistema de inovação. A discussão do caso brasileiro, porém, sugere que a AES deva ser
organizada de forma a dar conta das duas questões indicadas anteriormente: ampliar os gastos com P&D pelo setor
privado e fortalecer as possibilidades de transformação
do conhecimento gerado/absorvido pela infra-estrutura
científica em atividades industriais e tecnológicas (o que
significa apoio ao desenvolvimento de novas firmas de
base tecnológica).
Por isso, a proposta feita anteriormente deve ser ligeiramente adaptada para as tarefas específicas de um sistema imaturo. As tarefas apontadas, nesse caso, devem ser
combinadas com tarefas como as desempenhadas pelo
esquema britânico das loan guarantee scheme (LGS)
(Goodcare e Tonks, 1996; National Economic Research
Associates, 1990; Levitsky e Prasad, 1987). Esse esquema foi mencionado em Sicsú e Albuquerque (1998:689690) para apoiar a argumentação da AES. As especificidades do caso brasileiro justificam a inclusão das
atividades do LGS entre as funções da AES. Assim, a discussão teórica realizada na seção III pode perfeitamente
englobar os empréstimos para a abertura de novas firmas
como portando mais risco do que empréstimos para uma
CONCLUSÃO
A proposta de uma inovação institucional caracterizada pela criação de uma AES parte de uma avaliação do
113
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
__________ . “National systems of innovation and non-OECD countries: notes
about a tentative typology”. Revista de Economia Política, v.19, n.4, 1999,
p.35-42.
estágio de construção do sistema de inovação brasileiro e
do grau de funcionalidade do sistema financeiro. É importante destacar que o caráter imaturo do sistema brasileiro de inovação enfatiza a existência de elementos que
devem ser utilizados para o seu amadurecimento, em especial a infra-estrutura científica constituída, um importante ponto de partida. A presença de firmas (e não indivíduos) como líderes na patenteação é um outro ponto de
partida importante.
O sistema financeiro brasileiro, por outro lado, em que
pesem as limitações discutidas no texto, é expressivo. Existem instituições poderosas que possuem condições de cumprir um papel crucial de apoio a um processo de desenvolvimento.
A proposta da AES, portanto, é adequada ao estágio
atual de construção tanto do sistema de inovação como
do sistema financeiro, pois basicamente busca o estabelecimento de uma ponte entre ambos. Construída essa ponte, um enorme passo em direção ao amadurecimento do
sistema de inovação brasileiro poderá ser dado.
__________ . “Domestic patents and developing countries: arguments for their
study and data from Brazil (1980-1995)”. Research Policy, 2000 (no prelo).
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NOTAS
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E-mail dos autores: [email protected] e [email protected]
1. Este artigo sintetiza os principais argumentos de trabalho em desenvolvimento
(Sicsú e Albuquerque, 2000).
__________ . O envolvimento do sistema financeiro com as atividades de P&D:
o papel de uma Agência Especial de Seguros no Brasil. Belo Horizonte/Rio
de Janeiro, 2000, mimeo.
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114
TECNOLOGIA E EMPREGO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA
TECNOLOGIA E EMPREGO
uma relação conflituosa
JORGE MATTOSO
Professor do Instituto de Economia da Unicamp e Secretário Municipal de Relações Internacionais de São Paulo
Resumo: A relação entre tecnologia e emprego foi seguidamente reduzida à sua expressão mais simples. Este
artigo rediscute essa relação, considerando sua complexidade e conflito, sempre imersa em relações
macroeconômicas e sociais mais amplas. Nesse sentido, observa-se que hoje essa relação se constrói em meio
a um processo de globalização financeira, de desregulação dos mercados e de redução da capacidade regulatória
e de gasto do Estado. Esse processo, por sua vez, teria gerado um novo regime de crescimento, no qual as
principais variáveis relacionadas ao emprego (produto, produtividade, tempo de trabalho, demanda e investimento) apresentariam um desempenho medíocre, se comparadas às de outros períodos.
Palavras-chave: inovação tecnológica; mudanças e emprego; trabalho.
D
- do caráter cada vez mais concentrado dos capitais e
desregulado da concorrência e dos mercados;
esde a primeira revolução industrial até os dias
de hoje têm sido acirrados os debates sobre a
relação entre inovação tecnológica e emprego.
Esses debates, no entanto, ocorreram por ondas, como
que favorecidas pelo ciclo econômico. Nesse sentido, em
períodos de forte crescimento as teses dominantes tenderam a valorizar os efeitos positivos do progresso técnico.
Em contrapartida, em períodos de crise e de introdução
mais intensa de novas máquinas, equipamentos e formas
de produção, proliferaram as análises que viam o progresso
técnico como o grande e único responsável pela redução
de empregos.
Com o desenrolar da crise iniciada nos anos 70 do
século XX, essa discussão voltou à cena, ampliada pela
desordem do trabalho que se abateu sobre muitos países.
Nesta passagem de século, os processos de globalização financeira, desregulação dos mercados e intensas
transformações tecnológicas geraram novas ou ampliaram velhas tensões, em meio à dificuldade em situá-las
historicamente e à carência de alternativas coletivas transformadoras. Ampliaram-se, por isso, as tensões das sociedades capitalistas modernas neste final de século, resultantes:
- da globalização financeira e de seu impacto sobre a instabilidade e o dinamismo do investimento e da acumulação produtiva;
- da tendência do capital eliminar trabalho vivo no processo de produção (até para ver-se livre de uma força de
trabalho sempre imprevisível, mas, sobretudo, para ampliar os seus ganhos de produtividade vis-à-vis seus concorrentes) e da necessidade de uma demanda final suficientemente dinâmica para realizar a produção no
mercado;
- do caráter cada vez mais internacionalizado do capital
e nacional da gestão da força de trabalho (o direito, as
relações de trabalho, a regulação do Estado, etc.).
Nesse quadro, tendeu-se a menosprezar essas tensões
do presente, assim como a necessidade de transformá-las.
Um descaso com o presente que, muitas vezes, privilegiou uma volta ao passado ou um salto ao futuro e considerou que o direito ao trabalho e o pleno emprego seriam
questões obsoletas. Dessa forma, terminou-se por admitir
como fatalidade o baixo crescimento do produto e como
inevitável, o desemprego e a “precarização” das condições e relações de trabalho, propondo-se apenas a buscar
a elevação da capacidade de geração de empregos, que
apresentou crescimento medíocre.
Esse descaso com o presente favorece o menosprezo
das relações macroeconômicas, sociais e institucionais
mais amplas em que está imersa a inovação tecnológica,
115
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
A relação entre inovação e emprego sempre foi complexa, quando não conflituosa. Mas nesse quadro econômico internacional, essa relação parece assumir uma forma ainda mais complexa e conflituosa e, talvez por isso
mesmo, sujeita a simplificações.
Não é de hoje a introdução da inovação tecnológica no
processo produtivo e é resultado da concorrência entre os
capitais. Seu objetivo maior é elevar a produtividade e
reduzir o trabalho vivo diretamente envolvido nesse processo. Se “a máquina é inocente das misérias que ela causa” (Marx, 1975), o desemprego é, contraditoriamente,
conseqüência do desenvolvimento do progresso técnico,
nas condições próprias ao funcionamento sem controle do
modo de produção capitalista. Em outras palavras, embora o móvel da inovação tecnológica seja a dinâmica da
acumulação na busca incessante da maior valorização
possível do capital, ela move-se contra os trabalhadores e
a sociedade como resultado da sua apropriação privada,
de sua utilização unilateral e sem regulação social.
A inovação tecnológica assumiria uma dupla dimensão: por um lado, poderia favorecer o emprego em períodos de expansão do ciclo econômico e, por outro, poderia
ser fator de agravamento durante as depressões, quando
emergiria o desemprego tecnológico, como parte do desemprego cíclico (Schumpeter, 1968). A expansão das atividades produtivas apareceria, então, como um processo
de destruição criadora, em que um ciclo contínuo mais
ou menos intenso de desestruturações e reestruturações
criaria e destruiria empresas, atividades, empregos.
Quando observadas situações históricas específicas,
vêem-se diferentes movimentos e intensidades desse processo de destruição criadora. Também ocorrem distintos
saldos desse processo de reestruturação e desestruturação,
de criação e destruição, assim como diferentes condições
macroeconômicas, sociais e institucionais em que se baseia esse processo. Dessa forma, alguns países podem
apresentar pujança e dinâmica de crescimento, enquanto
outros, estagnação ou decadência. Mas, não menos importante, um determinado país pode apresentar um saldo
positivo dessa destruição criadora em um determinado
período de intenso crescimento econômico, dominância
dos aspectos reestruturantes da produção e da geração de
empregos, e um saldo negativo em outro período, com
relativamente baixo crescimento e dominância dos aspectos desestruturantes da produção e do emprego.
O progresso técnico pode ser ao mesmo tempo fonte
de crescimento e, portanto, de empregos, e origem da elevação da produtividade, que permitiria a supressão de
fazendo sua relação com o emprego assumir uma forma
simplificada, senão caricatural.
GLOBALIZAÇÃO, INOVAÇÃO E EMPREGO
É verdade que o processo de globalização financeira e
de desregulação dos mercados coloca novos e verdadeiros problemas nos planos nacional e internacional. Por um
lado, as políticas nacionais são mais suscetíveis aos choques que sacodem o sistema econômico internacional. Mas
ao contrário do canto de sereia da convergência entre as
nações, esse processo criou uma estrutura profundamente
hierarquizada e desigual, em cujo epicentro encontra-se
os EUA, com sua reconquistada hegemonia e extraordinário poder financeiro. Os Estados Nacionais, no entanto, conservam variadas formas de liberdade de ação e a
situação econômica e social continua dependendo das políticas estabelecidas nos países – no campo macroeconômico, social e do mercado de trabalho – e de sua capacidade de constituir ou preservar uma estratégia nacional
de desenvolvimento e de cooperação regional, em meio à
inserção ativa e soberana na (des)ordem econômica internacional reinante.
Essa mesma globalização financeira e desregulação dos
mercados tem afetado sobremaneira a dinâmica econômica internacional, fazendo que vários analistas considerem
a emergência de um novo padrão de acumulação de capital
dominado pela esfera financeira (Chesnais, 1996; Guttmann,
1996; Kregel, 1996) e cujos níveis de crescimento seriam
mais baixos que os do passado. Na década de 90, a expansão do produto mundial foi ainda menor que a dos anos 80
(3,2% e 2,5%, respectivamente, segundo World Bank 2000
e OCDE 2000a), e as duas grandes exceções, que compreendem mais de 2,2 bilhões de habitantes, foram a China e a
Índia. Esses dois países tiveram nos anos 90 taxas de crescimento médias anuais de 11,2% e de 6,1%, respectivamente. Pouco se fala sobre justamente esses dois países haverem preservado políticas defensivas de sua produção e
emprego e um projeto estratégico nacional.
Por outro lado, a exacerbação da concorrência nos
mercados mundiais e a mobilidade desregulada dos capitais favoreceram que as empresas ficassem crescentemente
presas à lógica e à rentabilidade financeira e que emergisse uma verdadeira desordem do trabalho (Mattoso, 1995
e 1997), debilitando a posição dos trabalhadores, colocando em xeque as normas do trabalho e dificultando a
capacidade dos Estados aplicarem políticas sociais e de
emprego.
116
TECNOLOGIA E EMPREGO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA
postos de trabalho. Mas a inovação tecnológica e a elevação da produtividade, ao mesmo tempo que destruiriam
produtos, empresas, atividades econômicas e empregos,
também poderiam criar novos produtos, novas empresas,
novos setores e atividades econômicas e, portanto, novos
empregos.
Não tenhamos dúvidas de que, do ponto de vista do
emprego, o progresso técnico (e seu ritmo) favorece a
aceleração das transformações qualitativas do trabalho
(mudança da divisão técnica do trabalho, da organização
do trabalho, das qualificações), assim como da distribuição setorial do emprego (nascimento, expansão e declínio das atividades econômicas). Portanto, o conjunto de
inovações surgidas nos anos 60 e 70, e que vem sendo
difundido nas últimas décadas, mudou a qualidade do trabalho e acelerou a destruição de velhos produtos, atividades econômicas ou formas de organização do trabalho. É
evidente também que o progresso técnico – sobretudo
quando observado em uma empresa, setor ou região – pode
se refletir em supressão de empregos.
No entanto, a inovação tecnológica – embora possa
modificar a determinação da qualidade e da quantidade
do emprego, principalmente quando observamos uma
empresa ou setor – não determina a priori seu resultado
em nível nacional. Somente em uma versão estática e em
um universo ceteris paribus pode-se supor que um maior
crescimento da produtividade seja automaticamente equivalente a um menor crescimento do emprego e, conseqüentemente, maior desemprego no plano nacional.
Esse resultado não precisa necessariamente ser mais
desemprego. Pode ser mais emprego, consumo, tempo livre ou desemprego e essa é uma escolha social, historicamente determinada pelas formas de regulação do sistema
produtivo e de distribuição dos ganhos de produtividade.1
A economia seria então vista de forma bem mais
indeterminada e a tecnologia faria parte de um processo
histórico e cumulativo. Essa visão dinâmica da inovação
tecnológica reconhece o papel central que desempenham
os fatores de heterogeneidade e as assimetrias de comportamento ou de situação. Por outro lado, irão criticar as
inconsistências teóricas de determinados mecanismos de
compensação e considerar que será a intensa geração de
novos produtos, surgida após um período em que os novos produtos são testados, que permitirá superar o desemprego (Freeman et alii, 1982; Romer, 1990).
A procura sistemática de inovações estabeleceria um elemento dinâmico do desenvolvimento capitalista e seria
impulsionada pela concorrência intercapitalista, permanente
no regime capitalista de produção. Um novo paradigma
tecnológico surgiria das sendas abertas pelo desenvolvimento científico no marco das dificuldades e contradições (de
mercado, institucionais e sociopolíticas) levantadas ao longo
de uma trajetória tecnológica (Dosi, 1982).
No entanto, vale precaver-se contra um possível
determinismo econômico e tecnológico, muitas vezes presente na literatura neo-schumpeteriana, e se considerar o
sistema econômico imerso em relações econômicas, tecnológicas, sociais e institucionais que favoreceriam ou não
o seu funcionamento. Uma boa articulação ou regulação
dessas relações favoreceria o crescimento econômico. Em
contrapartida, a sua desarticulação favoreceria a ocorrência de crises e até mesmo a superação dos modos de regulação (regime de acumulação, relação monetária, relação
salarial, tipo de concorrência, regime internacional e as
formas de intervenção do Estado), de formas institucionais e parâmetros para o crescimento e o progresso técnico (Boyer, 1988; Boyer e Petit, 1990; Petit, 1995).
A tecnologia, portanto, pode e vem sendo reconhecida
como fator-chave da definição de vantagens sustentadas
da concorrência entre as empresas e as nações e como
motor de alterações tanto da composição qualitativa da
força de trabalho (divisão técnica, organização e qualificação do trabalho), quanto de sua composição quantitativa ou setorial (emergência, desenvolvimento e declínio
das atividades). A tecnologia crescentemente associa-se
ao conhecimento (Lundvall e Johnson, 1992) e a novas
formas organizacionais e, portanto, é também formada por
elementos intangíveis.
Ao mesmo tempo, mantém uma relação complexa com
o emprego, sem automatismos, em que se mesclam efeitos poupadores de força de trabalho, forças compensadoras
e distintas formas de progresso técnico, em condições
econômicas, sociais e institucionais determinadas pela
reemergência de uma nova forma de laissez-faire sob
dominância financeira.
PRODUTIVIDADE E EMPREGO
Mas se não há um automatismo na relação entre tecnologia e emprego, qual foi o resultado deste processo? Como
têm se comportado os ganhos de produtividade resultantes da introdução das várias formas – técnicas, mas também organizacionais, comerciais e financeiras – da inovação2 no processo produtivo?
Observemos, inicialmente, o ocorrido com algumas das
principais variáveis de produtividade e emprego em três
117
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
bém foi alterada a dinâmica de expansão do produto (mais
intensamente na Europa que nos EUA), do tempo de trabalho (as reduções do tempo de trabalho tornaram-se
menos expressivas na Europa, enquanto nos EUA os trabalhadores passaram a trabalhar mais horas) e a expansão
do emprego público sofreu uma redução significativa (mais
na Europa sob os efeitos restritivos do acordo de
Maastricht que nos EUA).
A redução no crescimento da produtividade ocorrida
nas últimas décadas vai favorecer o surgimento de uma
importante questão econômica contemporânea. Trata-se
do rompimento do ritmo de crescimento da produtividade ao mesmo tempo em que a introdução de novas tecnologias parece portadora de importantes ganhos de produtividade e de não menos importantes transformações no
emprego. Mas se as novas tecnologias são portadoras de
tal potencial de “revolução” das atividades produtivas e
do emprego, por que é que não se verificou o crescimento
da produtividade?
Denominado “paradoxo de Solow”, a partir de um artigo onde o economista norte-americano e prêmio Nobel
questionava essa nova realidade (Solow, 1987), este verdadeiro enigma tem recebido várias análises tentando
decifrá-lo.
Um primeiro eixo de análise buscou dar conta de tal
paradoxo considerando, sobretudo, os planos metodológico e estatístico. Por um lado, buscou-se explicar a queda da produtividade como um efeito estrutural, levando-
subperíodos distintos: um primeiro identificado com os
anos de ouro do pós-guerra (iniciado em 1960 e terminado após o primeiro choque do petróleo em 1973); um segundo identificado com a crise dos anos 70 (tomando-se
o seu início após o primeiro choque dos preços do petróleo e o fim após a intensa recessão do início dos 80); e a
terceira fase identificada com o período atual de globalização, desregulação e financeirização.
Inicialmente, observa-se que, no primeiro período, elevados níveis de produtividade foram acompanhados de baixas taxas de desemprego, quando não do pleno emprego.
Isso foi possível graças às relações dinâmicas ocorridas
entre os processos geradores de ganhos de produtividade
e os vários componentes da demanda, especialmente a
intensa expansão do produto, a redução do tempo de trabalho e a elevação do emprego público. Também foram
importantes para a obtenção do pleno emprego, sobretudo no caso europeu, as políticas destinadas a reduzir a
pressão sobre o mercado de trabalho, tais como: apoio à
pequena propriedade, urbana e rural, elevação da escolaridade e adiamento do ingresso dos jovens, adiantamento
da aposentadoria e da saída dos mais velhos do mercado
de trabalho, etc.
No atual período, em contrapartida, os ganhos de produtividade do trabalho são surpreendentemente menores
que no período anterior, e, no entanto, as taxas de desemprego e/ou os níveis de precariedade das condições de trabalho elevaram-se entre 1984 e 1999. Na verdade, tam-
TABELA 1
Taxas Médias Anuais de Variação das Principais Variáveis de Produtividade e Emprego
EUA e União Européia – 1960-1999
Em porcentagem
Taxa de Variação Média Anual
Anos
Emprego Total
EUA
1960-1973
1974-1983
1984-1999
1,94
1,67
1,74
União Européia
1960-1973
1974-1983
1984-1999 (3)
0,29
-0,03
0,54
(4)
Emprego Público
(1)
Produto
Produtividade Horária Tempo de Trabalho
Desemprego
3,92
1,46
1,49
4,31
2,06
2,94
2,63
0,61
0,93
-0,30
-0,23
0,26
4,94
7,48
6,07
3,52
2,32
0,71
5,08
2,05
2,38
5,65
3,11
2,07
-0,83
-1,00
(5) -0,02
(2) 2,43
5,70
10,82
Fonte: Elaboração própria com base em OCDE 1999, 2000 e 2000a.
(1) Dados de 1969-73.
(2) Dados de 1970-73.
(3) Exclusive 1991. Os dados de 1999 são previsões da OCDE.
(4) Dados de 1984-97.
(5) Dados de 1984-98.
118
TECNOLOGIA E EMPREGO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA
de e o desenvolvimento tecnológico, portanto, iria requerer o longo prazo, quando então poderia amadurecer uma
determinada inovação, tal como ocorreu na expansão da
tecnologia vinculada ao automóvel.
Esses estudos, no entanto, mantêm-se em um quadro
analítico demasiado restrito às variáveis tecnológicas. Na
verdade, diferentes “paradigmas tecnológicos” se caracterizam por diferentes conjuntos de novos produtos cujo
efeito sobre o emprego pode variar segundo a época, o
quadro institucional e as condições mais gerais da concorrência, do investimento e do crescimento econômico.
Estudos, tendo por base as “novas teorias de crescimento”, buscaram em suas variáveis básicas a causa da
queda dos ganhos de produtividade, mas, tendo acesso a
uma série de modelos econométricos, têm sido cuidadosos e apresentado claras reservas quanto aos resultados,
relacionando essas variáveis à queda da produtividade
(educação, pesquisa e desenvolvimento, investimento em
capital físico, infra-estrutura, etc.) (Englander e Gurney,
1994; OCDE, 1996).
Outros trabalhos valorizaram o fim de um efeito “recuperação do atraso”. Durante os anos de ouro, o progresso técnico teria sido excepcionalmente rápido porque
os países europeus e o Japão puderam imitar ou adaptar
as técnicas de origem norte-americana (Baumol, Nelson e
Wolf, 1994). Embora atualmente as taxas incrementais da
produtividade européia também sejam relativamente mais
baixas que no passado, continuam mais elevadas que as
norte-americanas, tendo inclusive em alguns países, como
a França e a Alemanha, ultrapassado nos últimos anos os
níveis absolutos da produtividade norte-americana. Essa
tese tampouco permite explicar porque também os EUA
sofreram uma redução dos ganhos de produtividade desde pelo menos os anos 70, até muito recentemente.4
Um terceiro eixo de análise do paradoxo da produtividade tem suas bases analíticas nas transformações estruturais por que vem passando a ordem capitalista e em
determinantes sociais e institucionais. 5 Nesse sentido,
busca-se romper tanto com os limites dos determinantes
invariáveis e universais da “nova teoria de crescimento”,
quanto com a problemática da compensação baseada na
substituição capital/trabalho, que faz da rigidez dos mercados de trabalho e do custo do trabalho os determinantes
do conteúdo em emprego do crescimento.
Adota-se, assim, uma determinação mais complexa da
produtividade do trabalho, que seria determinada não apenas pela relação capital/trabalho, mas também pela taxa
de crescimento da demanda e da acumulação. Em outras
se em conta uma das características dos serviços: ter taxas relativamente inferiores de produtividade. Dessa forma, uma mudança da indústria para os serviços teria um
efeito estrutural capaz de reduzir o crescimento médio da
produtividade. Essa explicação, entretanto, não poderia
dar conta da complexidade do fenômeno, mesmo porque
a queda nos níveis de produtividade teria ocorrido também, senão até mais intensamente, no setor industrial
manufatureiro (Petit, 1995; Husson, 1996).
Por outro lado, buscou-se discutir a possível crescente
perda de significado do conceito e da medida de produtividade. Em outras palavras, tratou-se de avaliar as dificuldades de medida da produtividade e seus efeitos sobre
o cálculo da produtividade média. Múltiplos foram os trabalhos desenvolvidos por especialistas, inclusive no interior da OCDE (Englander e Gurney, 1994; OCDE, 1991,
1995 e 1996).
É indiscutível, por um lado, que os atuais progressos
da tecnologia da informação e da comunicação afetam a
qualidade e a variedade, o que os torna mais difíceis de
apreender do que os aumentos de quantidade. Essa situação seria ainda mais delicada nos serviços, porque as definições mais clássicas de produtividade apresentariam um
viés “industrialista”. As diferentes formas de externalização e terceirização da produção adotadas pelas grandes empresas industriais, no entanto, também ampliam as
dificuldades de medição, sobretudo entre os setores.
Mesmo que se reconheça o enorme campo ainda aberto para o desenvolvimento da definição do volume de atividade nos distintos setores econômicos, sobretudo nos
serviços, como também as evidentes dificuldades existentes para sua medição, as conclusões consideraram que o
arrefecimento dos ganhos de produtividade não se reduzem a um problema metodológico.3 E há que se levar em
conta também, do ponto de vista do emprego, que uma
eventual subestimação dos ganhos de produtividade pode
ser neutra, pois afetaria do mesmo modo a produção. Efetivamente, para a determinação do nível do emprego, é
mais importante a diferença entre o crescimento da produção e o crescimento da produtividade.
Um segundo eixo de análise observou que a redução
dos ganhos de produtividade ocorrida desde os anos 70
seria conseqüência de razões tecnológicas.
Os trabalhos evolucionistas consideraram que um
cluster de inovações de grande amplitude levaria tempo
antes de formar um novo sistema técnico coerente. Assim
sendo, no curto prazo, um forte movimento de incorporação do progresso técnico se tornaria fator de instabilida-
119
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
palavras, a evolução dos mercados condicionaria a evolução dos ganhos de produtividade e, em contrapartida, a
utilização destes ganhos condicionaria a dinâmica da demanda, logo, dos mercados.
A globalização financeira e a desregulação dos mercados, tendo como principal característica a relação negativa
daquelas variáveis, determinariam a passagem do pleno emprego ao desemprego e/ou escassez das condições de trabalho nas principais economias avançadas. E essa passagem
não seria devida à rigidez do mercado de trabalho ou a erros
de políticas econômicas, mas ao próprio processo de desenvolvimento e ao freio produzido pela demanda. Isso teria
ocorrido, para vários bens de produção de massa, devido à
diminuição da elasticidade da demanda relativa aos preços,
enfraquecendo o círculo virtuoso que ligava o crescimento
da produtividade ao crescimento da renda e demanda.
O menor crescimento da produtividade seria determinado pela modificação do regime de demanda (pela maior
importância dos mercados internacionais, a intensificação
da concorrência, a especialização produtiva e a redistribuição dos mercados) que induziria, por sua vez, uma baixa
dos ganhos e regime de produtividade (dada a intensificação da inovação).
Nem o regime da demanda, nem o do progresso técnico, no entanto, se estabilizariam, seja pela crescente abertura das economias, pela desregulamentação financeira e
alteração dos procedimentos de formação dos salários
(pelo lado da demanda), ou porque o novo sistema técnico estabelecido em torno das tecnologias de informação e
comunicação exigiria uma aprendizagem e maior prazo
de maturação (pelo lado da produtividade), sugerindo a
existência de um progresso técnico autônomo latente e
ganhos de produtividade virtuais.
Na verdade, a redução dos ganhos de produtividade
poderia ser compreendida como parte de um amplo e complexo movimento de passagem a um outro regime de crescimento, sob dominância financeira.
Efetivamente, considerando-se o conjunto dos países
membros da OCDE, observaram-se no primeiro período
níveis elevados do produto, produtividade, demanda e investimento. Em contrapartida, nos anos recentes verificaram-se menor crescimento do PIB, menor produtividade,
menor demanda e menor acumulação. Esse desempenho
recente caracterizaria um “novo” regime de crescimento,
sob o domínio dos mercados e das finanças em uma economia governada pelas incertezas, que favoreceria a busca pela
liquidez, inibição dos investimentos e insuficiência de demanda, como já observado nos anos 30 por Keynes (1983).
TABELA 2
Taxas Médias Anuais de Crescimento do PIB, Produtividade,
Demanda e Investimento
Países Membros da OCDE – 1960-1999
Anos
PIB
Produtividade
Demanda
1960-73
1984-99 (1)
5,5
2,9
4,0
1,7
5,6
3,0
Investimento
(FBKF)
6,2
(2) 3,9
Fonte: Elaboração própria tendo por base OCDE 1999.
(1) Exclusive 1991. Os dados de 1999 são previsões da OCDE.
(2) Dados de 1984-97.
Torna-se, assim, indispensável uma compreensão mais
ampla e complexa das inovações e da produtividade, imersas
nessa nova dinâmica de crescimento. Dessa maneira, os
ganhos de produtividade não necessitariam somente de inovações tecnológicas, em suas várias formas, mas de bens
que as incorporem e de uma demanda crescente que assegure sua realização. A produtividade do trabalho é, por
definição, uma relação entre produção e emprego, e o desempenho do emprego, portanto, mantidas estáveis as outras condições (tempo de trabalho, gasto público, etc.) depende da relação entre produção e produtividade.
Essa identidade indica que, no âmbito micro ou
macroeconômico, um aumento da produtividade depende
do desempenho da quantidade produzida.6 Em outras palavras, se o acréscimo da produtividade permite produzir
mais com a mesma quantidade de trabalho, a maior ou
menor geração de emprego dependerá dos níveis alcançados pela produção e da capacidade da demanda assegurar a ampliação dos mercados.7
O paradoxo da produtividade seria então uma das formas que indicariam a ocorrência de um regime de menores ganhos de produtividade, de menor crescimento econômico e menor demanda, em meio a uma intensa
globalização financeira e desregulação dos mercados.
Quando a acumulação financeira passa a ocorrer em escala mundial e a determinar as regras de comportamento
das empresas e as políticas econômicas de boa parte dos
países, ela consiste, sem sombra de dúvida, em uma esfera que disputa a atração dos capitais, em detrimento da
produção, dos salários e do emprego, gerando uma crescente imprevisibilidade quanto ao futuro.
CRESCIMENTO E EMPREGO
Da mesma forma que observamos o menor crescimento da produtividade, da demanda e da acumulação, tam-
120
TECNOLOGIA E EMPREGO: UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA
bém o menor crescimento econômico e o menor crescimento do emprego ocorridos nestas últimas décadas são
inquestionáveis. Mas, embora evidentes, pode-se dizer
também que se debilitou a relação entre crescimento e
emprego?
Não foram poucos os que pretenderam que a intensidade e natureza adotadas pelo atual agrupamento de inovações tecnológicas tivessem reduzido acentuadamente a
elasticidade do emprego e do crescimento do produto.
Essa suposta capacidade menor de geração de emprego por unidade de crescimento econômico foi amplamente divulgada pela mídia como um “crescimento sem empregos” e como o enterro definitivo do pleno emprego.
No entanto, ao contrário do senso comum e das
extrapolações automáticas do campo micro ao macroeconômico, diversos estudos, por meio de métodos estatísticos simples ou de cálculos econométricos, têm apontado
não apenas para a preservação da elasticidade emprego do
crescimento econômico, mas até mesmo para sua elevação
no período atual (Boltho e Glyn, 1995; Singh, 1995;
Padalino e Vivarelli, 1997; OIT, 1996), ainda que mantidas
as diferenças de longo prazo entre os distintos países.
No setor industrial as mudanças ocorridas nas últimas
décadas traduziram-se em menor crescimento da produção relativa ao passado,8 e este crescimento ocorreu sem
geração de empregos e com elasticidade-emprego do crescimento negativas, exceção feita ao Japão. No entanto,
nada disso ocorre se tomadas as economias em sua totalidade. De fato, em cinco dos países do G7 no período contemporâneo, para o conjunto da economia, a sensibilidade do emprego ao crescimento aumentou (Padalino e
Vivarelli, 1997:223-226).
As economias dos países avançados, ainda que com
taxas de crescimento mais medíocres, ampliaram a intensidade de geração de empregos e reduziram os níveis de
crescimento necessários para que a economia comece a
criar empregos. Segundo a OIT, os EUA, por exemplo,
no período 1960-73, precisavam de um mínimo de 2,3%
de crescimento econômico para começar a criar empregos. No período 1974-95, bastou 0,7% de elevação do PIB
para o emprego começar a crescer. Na União Européia,
se entre 1960 e 1973 foi necessário 4,5% de crescimento
econômico para iniciar a criação de empregos, mais recentemente (1974-95) bastou 1,9% de expansão da produção para que isso ocorresse9 (OIT, 1997:20).
Em parte, isso foi possibilitado pela maior participação do emprego nos serviços. Esse setor, dadas as menores taxas de produtividade, apresentam uma maior elas-
ticidade emprego do crescimento comparada à da indústria.
A indústria passa nestas últimas décadas por um processo de desenvolvimento semelhante ao anteriormente
passado pela agricultura: um crescimento da demanda e
da produção relativamente menor ao crescimento da produtividade. Seria um erro supor, no entanto, que a demanda
por produtos industriais estivesse esgotada, embora haja
uma redução no crescimento da demanda e da produção
industrial nos países avançados, relativa a outros períodos (Rowthorn, 1997). Esse crescimento menor da produção industrial, no entanto, continua sendo superior ao
dos outros setores e ao PIB10 e tem gerado empregos indiretos e exteriores à indústria, seja pelas relações já existentes com os serviços, seja pelo seu realce por diferentes
processos de externalização de atividades produtivas.
O crescimento do emprego nos serviços vinculados às
empresas depende também de outros serviços (financeiros e administração pública, por exemplo) que também
externalizam atividades e serviços. Os sub-setores de serviços, entretanto, que mais geraram postos de trabalho nas
últimas décadas foram os serviços sociais e pessoais, justamente aqueles setores de menores taxas de produtividade. Em um novo estudo sobre o emprego nos serviços,
constatou-se que no período 1984-98 os empregos nos subsetores de serviços à produção, sociais e pessoais foram
os que mais cresceram, e, na média dos países membros
da OCDE, um terço do emprego nos serviços concentrouse nos serviços de distribuição, e outro terço nos serviços
sociais. O restante foi distribuído em partes equivalentes
entre os serviços pessoais e a produção (OCDE, 2000:86).
Embora seja evidente a transformação ocorrida nos
serviços, assim como o maior crescimento do emprego
neste setor, uma redefinição conceitual dos serviços permitiu considerar que “as economias da OCDE permanecem basicamente voltadas à produção, distribuição e
alocação de bens materiais” (Rowthorn, 1997:73-75).
CONCLUSÃO
A introdução da inovação tecnológica no processo produtivo continua cumprindo seu papel histórico na sociedade capitalista, ou seja, reduzir o trabalho vivo diretamente envolvido na produção, favorecendo a empresa
inovadora com maiores ganhos de produtividade e maior
competitividade vis-à-vis seus concorrentes. Nesse sentido, quando se observa uma empresa ou setor, é considerável o papel da inovação tecnológica (e em especial das
121
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
ropeus (Alemanha 2,5%, França 1,8%, Itália 2,0% e Inglaterra 1,9% (OCDE,
2000a:Tabela 2).
atuais inovações da informação e comunicação) nas alterações qualitativas e quantitativas do emprego.
A inovação tecnológica, no entanto, ao mesmo tempo
que destrói produtos, empresas, atividades econômicas e
empregos, também pode criar novos produtos, novas empresas, novos setores e atividades econômicas e, portanto, novos empregos. Em outras palavras, a inovação tecnológica, embora possa modificar a qualidade e a
quantidade do emprego, não determina a priori seu resultado, sobretudo quando observada a economia nacional.
O resultado das mudanças quantitativas do emprego não
precisa necessariamente transformar-se em mais desemprego. Pode ser mais emprego, consumo, tempo livre ou
desemprego e essa é uma escolha social, historicamente
determinada pelas formas de regulação do sistema produtivo e de distribuição dos ganhos de produtividade.
No quadro atual da economia mundial – sob domínio
dos credores, da estabilidade a qualquer custo e do capital sem fronteiras e regulações –, os efeitos das tecnologias da info-comunicação sobre a desordem do mundo do
trabalho podem parecer maiores do que efetivamente são,
sobretudo quando ignoradas as atuais relações macroeconômicas, sociais e institucionais mais amplas. Nos dias
que correm, a redução da capacidade de gasto e regulação do Estado, a concentração dos ganhos de produtividade nas mãos do capital financeirizado, a estagnação e
até elevação do tempo de trabalho e, não menos importante, o relativamente menor crescimento do produto, da
demanda e do investimento são elementos determinantes
no entendimento do desemprego e da precariedade das
condições e relações de trabalho.
5. Refere-se a um conjunto de autores de bases teóricas distintas, tais como Husson
(1996), Appelbaum e Schettkat (1995), Bowles e Gintis (1995), Duménil e Lévy
(1996), Eatwell (1996), Boyer e Petit (1990 e 1991) e Rowthorn (1997).
6. A recente recuperação da produtividade nos EUA é representativa desta dependência vis-à-vis os avanços da produção. Efetivamente, esse país, aproveitando-se das vantagens advindas do seu papel dominante na hierarquia da globalização financeira, tem podido crescer (ainda que a taxas menores que no passado)
de 1984 até os dias atuais (à exceção dos anos 90-91). Esse longo ciclo de crescimento reflete-se hoje na expansão da produtividade.
7. Um estudo coletivo de A. B. Atkinson, O. J. Blanchard, J.-P. Fitoussi, J. S.
Flemming, E. Malinvaud, E. S. Phelps e R. M. Solow também mostra que não
existiria relação entre o ritmo de crescimento da produtividade e as taxas de desemprego, exceção feita aos anos 30. A esse respeito, ver OFCE, 1994.
8. No entanto, ao contrário do senso comum, na maioria dos países a indústria
vem crescendo mais intensamente que os outros setores (agricultura e serviços) e
que o crescimento do PIB total. Nos anos 90, a indústria mundial cresceu 3,3%
ao ano, contra uma expansão do PIB de 2,5%, de 1,7% da agricultura e de 2,3%
dos serviços (World Bank, 2000).
9. A recente recuperação européia tem surpreendido os observadores pela intensidade da geração de empregos, o que tem permitido à OCDE prever, mantidas as
condições atuais, taxas de desemprego semelhantes para os EUA e a União Européia entre 2004 e 2005.
10. Como observado na nota 9.
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E-mail do autor: [email protected]
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Revue Internationale du Travail. Genebra, OIT, v.134, n.4-5, 1995.
Também é articulista de Carta Maior (http://www.agenciacartamaior.com.br).
1. Os ganhos de produtividade podem ser distribuídos entre trabalhadores (via
elevação do poder de compra ou redução do tempo de trabalho), empresários (via
elevação da margem unitária ou total de lucro), consumidores (via redução dos
preços) ou Estado (via elevação da carga tributária).
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__________ . La mondialisation du capital. Paris, Syros, 1997 (nova edição
aumentada).
2. Grosso modo distinguem-se seis formas de inovação na origem dos ganhos de
produtividade: a fabricação de novos produtos, a introdução de um novo processo de produção, a abertura de um novo mercado, a descoberta de nova fonte de
matérias-primas, uma nova organização da produção e a mudança da intensidade
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3. A OCDE, depois de vários seminários e estudos, concluiu em um de seus trabalhos dedicado à tecnologia, produtividade e criação de empregos: “the extend
of the mismeasurement has, however, been too small to explain more than a minor
part of the TFP (total factor productiviy) slowdown” (OCDE, 1991 e 1996:47).
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4. Apesar da aceleração da taxa de crescimento da produtividade norte-americana na década de 90 (sobretudo nos últimos anos dessa década), as suas taxas de
produtividade médias no período 1980-98, medidas pelo PIB por horas trabalhadas, (1,5%) continuam inferiores às do Japão (2,4%) e dos principais países eu-
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123
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
FORÇA E FRAGILIDADE DO
SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA
RUY QUADROS
Professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, Consultor da Fundação Seade
SANDRA BRISOLLA
Professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, Consultora da Fundação Seade
ANDRÉ FURTADO
Professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, Consultor da Fundação Seade
ROBERTO BERNARDES
Sociólogo, Analista da Fundação Seade
Resumo: Este artigo tem como objetivo fazer um exercício de reflexão sobre o “sistema de inovação paulista”
à luz da análise das informações sobre o sistema público de C&T no Estado de São Paulo e abordar os principais problemas das universidades e dos institutos públicos de pesquisa, estaduais e federais. São discutidos os
obstáculos de integração entre empresas e o setor público de C&T, mapeando os fatores que determinam a
baixa demanda do sistema produtivo paulista em relação ao sistema público de C&T.
Palavras-chave: sistema de inovação; sistema de ciência e tecnologia paulista; política científica e tecnológica.
O
de dos ambientes e das instituições, e os sistemas e redes
(networks) de conhecimentos locais, regionais ou transterritoriais adquirem efeitos sinergéticos e sistêmicos
mutuamente reforçantes ou excludentes em relação às
oportunidades tecnológicas e à inserção dos espaços locais diante do processo de globalização econômica
(Campolina, 2000).
Johnson e Lundvall (2000:3), entretanto, advertem que
uma economia baseada em conhecimento e aprendizado
não é exclusivamente uma “high-tech economy”, pois o
aprendizado experimentado nas várias dimensões da economia, e a sua contribuição mesmo aqueles setores denominados “low-tech” ou tradicionais (vestuário, têxteis, calçados, etc.), revelam-se fatores críticos para o desenvolvimento econômico e tecnológico. Nessa visão, os mecanismos institucionais de aprendizado e interação (learning
by interacting) são a chave do processo de mudança para
a acumulação do conhecimento, da inovação, para a destruição e recriação das competências-chave direcionadas
para o crescimento. As empresas encontram-se no
epicentro das transformações tecnológicas dessa nova economia. Paradoxalmente, as decisões empresariais de investimentos em tecnologia e produção são comandadas
cada vez mais por uma forte racionalidade de valorização
dos ativos pelos circuitos dos mercados e instituições financeiras globais, impondo ao regime de acumulação um
domínio financeiro da economia (Chesnais, 2000).
conhecimento científico e o tecnológico, impulsionados pelos fluxos de investimentos em indústrias high-tech, em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) e capital humano, vêm lapidando um novo
significado ao conceito contemporâneo de produtividade,
implicando em um padrão mais sistêmico e integrado, consolidando o conhecimento e a informação como dínamos
motrizes do ciclo de desenvolvimento econômico e na
formação de poder e da riqueza das empresas, regiões e
nações. Essa nova perspectiva teórica tenta traduzir o significado da produção, distribuição e do uso do conhecimento e da informação – acelerados pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) – como
elementos nucleares para a mudança social, progresso
tecnológico e o desenvolvimento econômico das nações
avançadas (OECD, 1996a).
A formulação de expressões como “economias baseadas em conhecimento” (Foray e Lundvall, 1996; Dosi,
1998), “sociedade da informação” (Bell, 1976; Castells,
1997), “economia do aprendizado” (Storper, 1996), “capitalismo de alianças, relacional e coletivo” (Dunning,
1997), tenta retratar, grosso modo, a transição de um
modelo linear de inovação e C&T (Ciência e Tecnologia)
para um modelo de ligações em cadeia (chain linked
model) (Kline e Rosenberg, 1986), e posteriormente, alterando-se para um padrão sistêmico (Archibugi e Sirilli,
2000), no qual a idiossincrasia, diversidade e seletivida-
124
FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA
- transferência do conhecimento – disseminando o conhecimento e identificando inputs para demandas sociais e empresariais futuras. Vale salientar que os esforços de pesquisa básica e invenção são de atribuição
das universidades e centros de pesquisa, já o processo
de inovação passa a ter como locus privilegiado para a
acumulação tecnológica os espaços produtivos das empresas.
Nesse quadro, a nova matriz teórica sobre as políticas de inovação e os sistemas de C&T passa a ser fundamentada no advento de novos arranjos institucionais
mais complexos e multilaterais direcionados para a inovação e o aprendizado tecnológico, revitalizando as
relações entre universidade-indústria-governo e, por
fim, na promoção de sistemas sustentáveis que criem
competências dinâmicas para o surgimento da inovação (Leydesdorff e Etzkowitz, 1998; Johnson e
Lundvall, 2000). Essas novas institucionalidades nas
dinâmicas inovativas são interdependentes das trajetórias nacionais, da formação de mecanismos formais e
informais que promovam a confiança e cooperação entre os agentes (Edquist, 1997), permitindo a transmissão do conhecimento tácito e codificado, na arquitetura de redes cooperativas transversais de conhecimento,
e uma “atmosfera industrial inovativa” que estimule as
rotinas de aprendizagem coletiva, do tipo produtor/usuário, fornecedor/produtor, reduzindo as incertezas, os
riscos de investimentos e os custos de transação com o
incremento da “eficiência coletiva dinâmica” ao longo
das cadeias produtivas locais e globais (Humphrey e
Schmitz, 1996; Gereffi e Korzeniewicz, 1995).
Os sistemas de ciência e tecnologia, constituem-se
em uma parte dos sistemas de inovação, exercendo uma
função vital nas economias baseadas em conhecimento, particularmente pela construção de elos virtuosos
de cooperação entre as empresas, governo e universidades, adquirindo uma relevância crescente nas demandas sociais das mais diversas áreas como saúde,
biotecnologia, educação, meio ambiente, meteorologia,
agricultura, aeroespaciais e comunicação. Com efeito,
os laboratórios de pesquisa pública e instituições de
ensino educacional são o coração desse sistema, que
inclui a infra-estrutura governamental, os conselhos de
pesquisas, agências de fomento e as políticas públicas,
potencializadas pela construção de núcleos de inovações endógenas nessas economias, amparados em robustos sistemas de inovação locais/subnacionais/nacionais (Freeman, 1998; Nelson, 1993; Lundvall 1992;
Cassiolato e Lastres, 1999). O sistema de C&T, por
exemplo, pode contribuir nas seguintes dimensões
(OECD, 1996a):
- produção do conhecimento – desenvolvendo o conhecimento básico;
Não obstante o Brasil apresente um padrão de desenvolvimento caracterizado por alguns entraves estruturais
históricos, herdados do seu processo de industrialização,
como uma estrutura produtiva marcada por profunda heterogeneidade, frágeis processos de aprendizado e uma
capacidade limitada de inovação tecnológica (Coutinho e
Ferraz, 1994; Quadros Carvalho, 1993), construiu em sua
trajetória um sistema de C&T importante, posicionandose em uma situação intermediária entre os países de industrialização recente, mas ainda prosseguindo bastante
distante da condição de delinear trajetórias de catching
up em relação às nações líderes (Villaschi, 1993; Albuquerque, 1996; Viotti, 1997).
Nesse quadro, o Estado de São Paulo destaca-se regionalmente respondendo por uma parcela expressiva dessa base tecnológica nacional constituída, seja pelo critério de dispêndios (32,0%) ou de resultados (50,0%). No
entanto, uma das características mais frágeis dos sistemas de C&T brasileiro e paulista é identificada na fraca
integração entre o sistema público de C&T e o sistema
produtivo, que se reflete no contraste entre o crescimento da produção científica e a estagnação da produção tecnológica empresarial. Essa questão é o foco deste artigo
e orientou sua organização em quatro seções, além desta
introdução. Na primeira seção, é descrito e analisado o
sistema público de C&T no Estado de São Paulo; são
abordados os principais problemas sobre as universidades e os institutos públicos de pesquisa, estaduais e federais, como de recursos humanos e orçamentários; a
situação relativa no cenário brasileiro; e a crise de financiamento dos institutos de pesquisa. Na segunda seção, os problemas da integração entre empresas e o setor público de C&T são tratados em maior profundidade
e são discutidos os fatores determinantes da baixa demanda do sistema produtivo paulista em relação ao sistema público de C&T. Além disso, são repassadas as principais iniciativas governamentais para promover a
integração empresa/pesquisa pública. Na terceira seção,
são analisadas a performance e a natureza da inovação e
das atividades de P&D nas empresas paulistas. Finalmen-
- transmissão do conhecimento – educando e formando
recursos humanos; e,
125
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
Isso decorre da histórica importância econômica do Estado, que resultou em sua maior autonomia financeira. A
primeira universidade estabelecida no país foi a Universidade de São Paulo, mantida com recursos do Tesouro
estadual. O Estado de São Paulo mantém um sistema de
pesquisa cujos principais componentes são os docentes das
três universidades públicas. Esse sistema destaca-se dentro do cenário nacional de universidades públicas e privadas, conforme se observa na Tabela 1. É notável a diferença de titulação, visível pelo percentual de doutores nas
universidades em São Paulo (de 59,0% a 66,0%), em relação à média de participação de doutores nas universidades públicas do país (22,0%). As universidades privadas,
além de ter pouco pessoal titulado, empregam boa parte
de seu pessoal em meio período.
Somando cerca de 11 mil pesquisadores, esses docentes desempenham, no sistema de educação superior no país
e no sistema de pesquisa nacional, um papel muito superior à sua representação percentual no total de docentes
das instituições públicas de ensino superior brasileiras, uma
vez que o Estado de São Paulo é responsável por metade
da produção científica brasileira. Esses docentes representam quase três quartos dos pesquisadores no Estado.
O sistema universitário público paulista é financiado
preponderantemente por recursos orçamentários. Essas
despesas, em 1997, somaram R$ 1,7 bilhão, representando 7,4% da arrecadação de ICMS, ou 6,62% das receitas
tributárias, ou ainda 5,27% das receitas correntes do Estado. É esse compromisso com a educação, a ciência e a
tecnologia – uma aposta no futuro – que tem mantido o
Estado na vanguarda da produção econômica, social e
cultural. Não apenas para a pesquisa e a docência voltamse as atividades das universidades públicas paulistas. Elas
desempenham uma função social básica entre a população – principalmente mas não unicamente de renda mais
baixa –, ao manter o pessoal e as instalações de vários
te, a última seção resume os pontos principais do trabalho e aponta as principais conclusões.
O SISTEMA PÚBLICO DE C&T:
AVALIAÇÃO E EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS
O Sistema Público de C&T do Estado de São Paulo é o
mais diversificado e desenvolvido dentre os sistemas estaduais do país. Resultado de investimentos estaduais e
federais sistemáticos, ao longo de três décadas, esse Sistema revela sua excelência no fato de ser responsável por
metade da produção científica brasileira. Além disso, contribui para o desenvolvimento científico e tecnológico de
outros Estados, seja pela formação de cerca de dois terços de todos os doutores brasileiros, ou por de uma intensa cooperação em pesquisa com universidades, empresas
e institutos desses Estados. A Secretaria de Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Econômico (SCTDE) é o órgão coordenador das instituições estaduais de pesquisa e
das ações de apoio e promoção ao desenvolvimento
tecnológico empresarial, tendo o Conselho Estadual de
Ciência e Tecnologia (Concite) a missão institucional de
formular a política tecnológica do Estado de São Paulo.
Nesta seção, são caracterizados e discutidos, à luz dos
principais indicadores brasileiros, os principais componentes do Sistema Público de C&T paulista – as universidades públicas, os institutos de pesquisa e as agências de
fomento –, bem como alguns de seus problemas atuais,
especialmente aqueles referentes ao seu financiamento, que
ameaçam a continuidade dos resultados acumulados.
A Presença das Universidades
Estaduais e Federais
São Paulo é o único Estado do Brasil onde as universidades mais importantes não são federais, e sim estaduais.
TABELA 1
Docentes das Universidades Públicas, por Nível de Titulação
Estado de São Paulo e Brasil – 1995
Tipos de Universidade
Graduação/Especialização
Mestrado
Doutorado
Total
Universidades do Estado de São Paulo
304
3.731
5.826
9.861
Universidades Federais em São Paulo
76
348
827
1.251
66,0
Instituições Públicas de Ensino Superior no Brasil (1)
37.005
21.268
16.850
75.123
22,0
Instituições Privadas de Ensino Superior no Brasil (1)
49.350
12.263
4.476
66.089
7,0
Fonte: SEEC/MEC e Fapesp.
(1) Inclui as universidades paulistas.
126
Doutorado/Total (%)
59,0
FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA
tadas para a pesquisa aplicada e o desenvolvimento
tecnológico, que atendem a demandas mais orientadas da
sociedade e do sistema produtivo. Boa parte desses institutos tem uma nítida vocação setorial e possui objetivos
claramente direcionados para o desenvolvimento de tecnologias. Sua clientela é formada pelas empresas e por
certas demandas específicas da sociedade (saúde, alimentação, infra-estrutura, telecomunicações, meteorologia).
Eles podem ser considerados, na maioria dos casos, um
elo entre a pesquisa acadêmica, que está localizada principalmente nas universidades, e o sistema socioprodutivo.
O Estado de São Paulo conta com uma importante rede
de institutos de pesquisa. Dentro do setor público, eles
ocupam um lugar de destaque logo após as universidades.
Os institutos de pesquisa costumam ser financiados por
recursos orçamentários, embora estes recursos estejam
perdendo espaço progressivamente em benefício de outras fontes do setor público e do setor privado. A origem
dos recursos orçamentários define duas modalidades principais de institutos públicos de pesquisa no Estado: os institutos federais e os institutos estaduais. Contrariamente à
situação das universidades, os institutos federais são mais
importantes do que os institutos estaduais em termos de
recursos gastos, embora estes últimos utilizem um maior
contingente de pesquisadores (Tabela 2).
Os institutos públicos federais ocupam um lugar de
destaque no cenário paulista e formam uma das principais
áreas de alocação de recursos federais aplicados em C&T
no Estado de São Paulo. Com efeito, segundo o levantamento feito pela Fapesp para o ano de 1995, os institutos
federais são responsáveis por 51,63% dos recursos da
União destinados à C&T no Estado de São Paulo. Esse
número revela a importância desses institutos no contexto estadual e também nacional. Os institutos federais localizados no Estado de São Paulo respondem por 32% do
gasto da União com essa modalidade de institutos no país.
hospitais-escola, onde o atendimento é de padrão internacional, ainda que insuficiente para atender a uma demanda intensa. Assim mesmo, deve-se reconhecer o papel
social que esses hospitais desempenham no sistema de
saúde do país. A qualidade dos hospitais vinculados às
universidades públicas paulistas é reconhecida e, em algumas áreas, a pesquisa médica situa-se na fronteira do
conhecimento. Esse é sem dúvida o caso da pesquisa realizada no Instituto do Coração (Incor) e também na Faculdade de Medicina da USP, da Santa Casa e da Unicamp,
para citar as mais importantes. O Brasil lidera incontestavelmente a formação de doutores na área de ciências médicas na América Latina.
Depois de duas décadas de estagnação econômica, é
evidência de resistência e determinação que o sistema
público de pesquisa e pós-graduação, cuidadosamente
construído nas universidades públicas paulistas, sobreviva com boa capacidade produtiva, apesar de já dar demonstração de problemas estruturais que podem comprometer o estágio alcançado. Dependente de recursos
públicos para a manutenção de suas atividades, o que também ocorre com o sistema universitário de boa qualidade
– público ou privado – nos Estados Unidos e na Europa,
as universidades paulistas enfrentam os problemas comuns
às instituições que vivem de recursos do Estado brasileiro na atualidade: dificuldades crescentes de acesso a financiamento e falta de condições (infra-estrutura) adequadas de trabalho. Particularmente sério é o estrangulamento
de recursos orçamentários decorrente do pagamento de
aposentadorias nas universidades, em virtude do crescimento rápido do número de docentes aposentados, num
quadro financeiro em que os recursos orçamentários das
universidades têm de financiar compulsoriamente os benefícios previdenciários. Se persistirem os motivos que
causam essa crescente dificuldade, há risco de colapso para
o excelente sistema de pesquisa e pós-graduação construído a duras penas pelo consórcio efetivo que se realizou
entre o governo federal (pela ação da Capes e do CNPq) e
o governo estadual (pela manutenção da verba orçamentária das universidades e da Fundação de Amparo à Pesquisa – Fapesp), durante os últimos 30 anos (USP, 2000).
TABELA 2
Gastos e Recursos Humanos de Nível Superior
Alocados a Institutos Públicos de Pesquisa
Estado de São Paulo – 1995
Institutos Públicos
de Pesquisa
Institutos Públicos de Pesquisa:
elo crítico entre o sistema produtivo e a sociedade
Os institutos de pesquisa têm uma função muito importante no sistema científico e tecnológico que está sob
a responsabilidade do setor público. São instituições orien-
Gastos
Engenheiros e
(Em US$ milhões de 1995)
Cientistas
Total
537,42
3.605
Institutos Federais (1)
338,40
1.262
Institutos Estaduais
199,02
2.343
Fonte: Fapesp.
(1) Exclui o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento – CPqD.
127
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
Embrapa no Estado. Tal comparação é ainda mais significativa no campo da saúde, onde não há instituto federal de pesquisa.
Os institutos da Secretaria da Saúde são responsáveis
por mais da metade dos gastos dos institutos estaduais em
ciência e tecnologia. A rede de institutos estaduais em
saúde conta com instituições de muito prestígio nacional
e internacional, como o Instituto Butantã, o Instituto
Adolfo Lutz, o Instituto Emílio Ribas e o Instituto Dante
Pazzanese de Cardiologia, entre os mais importantes. Essa
rede tem uma dimensão superior à da Fundação Oswaldo
Cruz, que é a maior instituição de pesquisa em saúde do
país e pertence ao governo federal.
Em segundo lugar, com 20% do gasto de C&T estadual em institutos de pesquisa, se posicionam os institutos ligados à Secretaria de Agricultura. Nesse segmento,
conta-se também com instituições de renome como o Instituto Agronômico de Campinas, a mais antiga instituição
de pesquisa agrícola do país, o Instituto Biológico e o
Instituto de Tecnologia de Alimentos, entre os mais importantes. As Secretarias do Meio Ambiente e de Ciência
e Tecnologia se posicionam em terceiro lugar, com aproximadamente 13% dos gastos estaduais. O meio ambiente é uma área com vocação social na qual é muito importante a atuação do governo estadual por meio de seus
institutos de pesquisa. A Secretaria de Ciência e Tecnologia abriga fundamentalmente o Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), uma instituição um pouco diferente das
anteriores por atender à indústria e possuir uma vocação
multissetorial. No IPT funcionam 12 divisões direcionadas
a diversos setores da indústria.
Essa rede de instituições federais e estaduais de pesquisa atravessa um importante processo de redefinição de
funções e de mudança de relacionamento com o poder
público. As instituições com vocação setorial, voltadas
principalmente para a indústria, estão sofrendo importantes cortes ou têm perspectivas de cortes orçamentários.
Os Governos Estadual e Federal estão claramente sinalizando para a necessidade de buscar fundos em recursos
públicos concorrenciais (verbas de agências de fomento e
fundos) ou privados. Como exemplo dessa transformação,
podemos oferecer o exemplo do CPqD (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento), cujos recursos garantidos deverão provir, num futuro breve, de uma parcela do Fundo
de Desenvolvimento Tecnológico de Telecomunicações
e, em maior medida, do mesmo fundo, só que de forma
concorrencial, ou então de contratos com empresas privadas e/ou com a Anatel. O mesmo pode ser dito do IPT
A maior parte dos institutos de pesquisa federais localizados no Estado de São Paulo se destina às áreas estratégicas. São eles, principalmente, o Centro Tecnológico da
Aeronáutica (CTA), o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe)
e o Instituto de Pesquisas Nucleares (Ipen), muito sensíveis às prioridades das políticas governamentais e aos imperativos das políticas macroeconômicas. O setor aeroespacial ocupa um lugar de destaque entre essas áreas
estratégicas e tem sido impulsionado pelo Programa Espacial Brasileiro, sob a condução da Agência Espacial Brasileira, que ultimamente sofreu importantes cortes de recursos. Dentro do PNAE – Programa Nacional de Atividades
Espaciais, destacam-se o projeto binacional CBERS – China-Brazil Earth Resources Satellites, para o qual foram
destinados cerca de R$ 33 milhões entre 1998/99; e a Missão Espacial Completa Brasileira – MECB, que contém três
vertentes: o desenvolvimento e o lançamento de cinco satélites; o desenvolvimento do VLS – Veículo Lançador de
Satélites; e a participação brasileira no projeto da Estação
Espacial Internacional (ISS), em que estão previstos investimentos da ordem de US$ 150 milhões para o fornecimento de suprimentos pela subcontratação de empresas nacionais intermediada pelo Inpe, a maior parte delas sediada
em São José dos Campos.
Os demais institutos federais têm uma vocação setorial. Eles estão ligados à Embrapa e ao Ministério de
Ciência e Tecnologia, no qual destaca-se o Centro de Tecnologia de Informática. Esse instituto sofreu cortes profundos no seu orçamento de 1997 para 1998, uma queda
de 14,1 para 5,8 milhões de reais. Os institutos federais
setoriais, em São Paulo, têm dimensão muito menor que
os das áreas estratégicas. Na segunda metade da década
de 90, o contingente de institutos federais se ampliou com
a instalação do Laboratório de Luz Sincroton (LNLS) e
a transformação do CPqD numa fundação de direito privado após a privatização do sistema Telebrás. O LNLS
se destaca no cenário paulista como um instituto federal
fundamentalmente voltado para a pesquisa básica. Os institutos estaduais têm um perfil bastante diferenciado em
relação aos institutos federais. Eles têm uma vocação para
áreas sociais ou para setores econômicos com forte dimensão social, como a agricultura. Nessas funções predomina o gasto estadual sobre o gasto federal, o que está
longe de se repetir nos demais Estados da Federação. Com
efeito, segundo os dados da Fapesp, o gasto da Secretaria da Agricultura com seus institutos de pesquisa (US$
33 milhões, em 1995) é mais de três vezes superior ao
gasto do Ministério da Agricultura com os institutos da
128
FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA
que lhe garante por força de lei uma parcela fixa da arrecadação tributária, a Fapesp desfruta de uma situação privilegiada entre as demais fundações estaduais nacionais.
Essa situação foi ainda incrementada a partir da metade
da década de 90, quando o governo estadual passou a cumprir a nova Constituição Estadual que determina que a
parcela destinada à Fundação passe para 1% da arrecadação do ICMS.
Ainda assim, os recursos das agências federais continuam
sendo mais importantes no âmbito estadual. Segundo os
dados elaborados pela Fapesp, as agências federais eram
responsáveis por 66% do total dos recursos destinados ao
fomento de pesquisa no Estado de São Paulo. Por outro lado,
os recursos alocados no Estado representavam, em 1995,
31% do total dos recursos aplicados pelas agências federais de fomento. Esses recursos se repartem basicamente
entre CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas) e Capes
(Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino
Superior), cabendo apenas uma pequena parcela à Finep
(Financiadora de Estudos e Projetos), responsável primordialmente pelo financiamento de caráter tecnológico. Os
recursos do CNPq e da Capes se destinam basicamente ao
pagamento de bolsas para estudantes de pós-graduação e
pesquisadores. Pela sua importância dentro do sistema C&T
estadual, as universidades públicas estaduais paulistas são
responsáveis pela captação de 80% dos recursos das agências de fomento federais destinados ao Estado de São Paulo. O restante se divide entre as universidades federais,
12,7%, e as demais instituições públicas de pesquisa.
O perfil de atuação da Fapesp é bastante distinto das
agências federais e, de certa forma, complementar. Com
efeito, os recursos da Fapesp se destinam em grande medida ao apoio à pesquisa e à infra-estrutura (equipamentos, instrumentos, livros e software) dessas instituições.
Os recursos oriundos da Fapesp são hoje responsáveis por
praticamente 85,8% dos recursos destinados à pesquisa e
à infra-estrutura das universidades e institutos de pesquisa paulistas. Note-se que os financiamentos da Fapesp
também beneficiam os institutos federais localizados em
São Paulo (Tabela 3).
A Fapesp tem tido um papel decisivo na manutenção e
ampliação dos laboratórios e das atividades de pesquisa
das universidades e, em menor medida, dos institutos de
pesquisa do Estado de São Paulo durante a década de 90.
Esse apoio se mostrou ainda mais decisivo porque as agências federais foram incapazes de desenvolver recursos significativos para sustentar o custeio e a compra de equipamentos de pesquisa. Sem o apoio da Fapesp, é muito
que está em acelerado processo de transformação e para
o qual as fontes extraorçamentárias já são responsáveis
por aproximadamente 50% dos recursos. Essa transformação dos institutos de pesquisa industrial em direção ao
mercado, se bem pode aumentar a interação de certos setores desses institutos com a economia e a sociedade, também apresenta a ameaça de comprometer a manutenção
de determinadas competências científicas e tecnológicas
acumuladas ao longo de décadas, voltadas para a pesquisa de mais longo prazo, e que por essa razão não costumam ser rentáveis. Mais grave ainda será quando a atividade de pesquisa – principal missão desses institutos –
vier a ser substituída pela prestação remunerada de serviços que não acarretam acúmulo de conhecimento (SalesFilho, 2000).
Agências Federais e Estaduais de Fomento como
Instrumentos para Desenvolver a Pesquisa
As agências de fomento têm um papel muito importante no financiamento da pesquisa científica. Elas canalizam recursos financeiros, grande parte a fundo perdido, para as atividades de pesquisa de universidades e
institutos de pesquisa localizados no Estado. Ultimamente, essas agências de fomento vêm destinando uma parcela crescente dos seus recursos, embora ainda pequena, para as empresas que fazem pesquisa tecnológica
sozinhas ou em parcerias com instituições públicas de
pesquisa. O caráter concorrencial é uma característica
central do financiamento dessas agências, estimulando
as instituições que executam a pesquisa (universidades,
institutos e empresas) a competir entre si na busca de
maior excelência e produtividade acadêmica e científica. Para orientar a alocação de seus recursos, essas agências se apóiam em sistemas de avaliação que, na maior
parte, funcionam entre os pares, reconhecidamente os
mais eficientes de acordo com a experiência internacional. O sistema concorrencial responde, também, adequadamente a políticas de orientação de recursos e de definição de prioridades.
O sistema de fomento, no plano nacional, está quase
todo concentrado nas agências federais. Somente muito
recentemente vem se consolidando uma rede de agências
de fomento estaduais. Entretanto, o Estado de São Paulo
é pioneiro no estabelecimento de uma agência de fomento à P&D, com a criação da Fapesp em 1962. Dada a riqueza desse Estado, que é responsável por 36% do PIB
brasileiro, e uma legislação respeitada pelas autoridades
129
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
TABELA 3
Repartição das Verbas de Fomento à Pesquisa, segundo Tipo de Auxílio
Estado de São Paulo – 1995
Tipo de Auxílio
Fapesp
Agências Federais (1)
Total
Em US$ milhões de1995
%
Em US$ milhões de 1995
%
Em US$ milhões de 1995
%
135,7
111,9
23,8
33,8
85,8
8,8
265,4
18,5
246,9
66,2
14,2
91,2
401,2
130,5
270,7
100,0
100,0
100,0
Total
Auxílios e Infra-Estrutura
Bolsas de Estudo
Fonte: Fapesp.
(1) Inclui CNPq, Capes e Finep.
TABELA 4
Gastos e Recursos Humanos de Nível Superior no Sistema Público de C&T
Estado de São Paulo – 1995
Sistema Público de C&T
Dispêndios
Em US$ milhões de 1995
Total
Universidades Estaduais
Universidades Federais
Institutos de Pesquisa Estaduais
Institutos de Pesquisa Federais
Agências de Fomento Federais
Fapesp
2.515
1.316
261
199
338
265
136
Docentes, Engenheiros e Pesquisadores
%
Números Absolutos
%
100
52
10
8
13
11
6
14.717
9.861
1.251
2.342
1.262
-
100
67
9
16
8
-
Fonte: Fapesp, Capes, CNPq, MEC, USP, Unicamp, Unesp.
provável que uma parcela substancial da capacitação científica do Estado de São Paulo ficaria comprometida.
Em função do declínio dos recursos provenientes da esfera federal, que se acentua a partir de 1997, esse frágil equilíbrio está sendo colocado em questão. As verbas federais
para as bolsas estão se reduzindo em valores reais e números
absolutos. Os gastos do Ministério de Ciência e Tecnologia
com C&T caíram de 1,475 bilhão em 1997 para 708 milhões
de reais em 1998, ou seja, menos da metade. O CNPq, que
era ainda em 1995 a principal fonte de verbas de fomento
federais para o Estado de São Paulo, viu seu orçamento reduzir-se de 770 milhões de reais em 1994 para 450 milhões
em 1998, levando a comunidade acadêmica a exercer uma
pressão crescente sobre a Fapesp para atender às necessidades de bolsas dos cursos de pós-graduação, o que a Fundação vem conseguindo suprir parcialmente, sob o risco de
reduzir seu papel na renovação da infra-estrutura.
Além de suas formas tradicionais de atuação, a Fapesp
tem inovado, diversificando consideravelmente suas modalidades de apoio. Nos últimos anos surgiram novas linhas de incentivo destinadas aos laboratórios públicos de
pesquisa, não mais por meio do chamado “balcão”, mas de
programas especiais de pesquisa direcionados a problemas
de grande relevância socioeconômica para o Estado, como
o Genoma-Fapesp, o Biota-Fapesp e o programa de Pesquisas em Políticas Públicas. O programa Genoma-Fapesp
se subdivide hoje em diversos projetos destinados a mapear o código genético de bactérias que afetam a cultura de
frutas cítricas no Estado de São Paulo e da cana-de-açúcar.
O projeto da Xylella fastidiosa, destinado a mapear o código genético do amarelinho, praga que ataca a laranja e já
provocou grandes prejuízos, recebeu recursos da ordem de
US$ 15 milhões e contou com a colaboração de universidades e institutos públicos de pesquisa paulistas. A Fapesp
em conjunto com o Instituto Ludwig de pesquisas sobre o
câncer, investiu cerca de US$ 20 milhões no programa
Genoma do Câncer visando o seqüenciamento dos genes
ativos dos tumores do câncer. Com base nesses esforços o
Brasil é hoje o segundo país produtor de seqüências derivadas do câncer e o terceiro maior do mundo em termos de
ESTs humanas (Expressed Sequence Tags).
Anatomia do Sistema Público de C&T Paulistas
Podemos fazer, neste ponto, um balanço que consolide os principais aspectos do Sistema Público de C&T
130
FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA
mento se deu com um expressivo número de bolsas concedidas pela Fapesp. Esse programa não apenas permite a titulação de docentes de todo o Brasil, mas é um mecanismo
fundamental para a difusão de centros emergentes de pesquisa pelo país. A formação de docentes e pesquisadores
de alto nível em São Paulo tem reflexos que se expandem
para muito além da fronteira do Estado. O gasto com ciência e tecnologia em São Paulo representa 32,0% do dispêndio federal; os recursos humanos para pesquisa no setor
público no Estado (docentes em tempo integral das universidades e pesquisadores dos institutos de pesquisa estaduais
e federais localizados em São Paulo) equivalem a 22,8%
dos recursos nacionais. Quando se incluem os pesquisadores titulados nas empresas industriais, o percentual de São
Paulo sobre o total nacional é de 22% (Tabela 6).
A produção científica paulista por 100 mil habitantes, é
maior que o dobro da média nacional. Com base em publicações internacionais indexadas, a produção científica paulista representa quase 60% da média nacional, sendo de
aproximadamente 75% na área médica (Tabela 7).
Além da produção científica, o Estado de São Paulo assume clara liderança na formação em nível de pós-graduação em suas universidades. Assim, das 11.925 dissertações
de mestrado defendidas em 1997 em todo o Brasil, 3.846,
quase um terço (32,2%) delas, foram produzidas nas universidades públicas no Estado de São Paulo. Na produção
de teses de doutorado a expressão das universidades públicas localizadas no Estado de São Paulo se destaca mais ainda
no cenário nacional: em 1997, do total de 3.604 teses defendidas no país, 2.322 foram defendidas nas universidades paulistas, representando 64,4% do total nacional.
paulistas. Como se observa na Tabela 4, esse sistema
despendeu US$ 2,5 bilhões, em 1995, na execução de atividades de C&T. Esse montante correspondia a 1,11% do
PIB paulista e a cerca de 46% do valor do dispêndio interno bruto em C&T financiado pelo setor público no Brasil, valor superestimado, uma vez que a totalidade dos
recursos orçamentários das universidades foram apropriados como gastos em C&T. Um exercício que seguisse
o procedimento de vários países e aplicasse um redutor
de 50% aos dispêndios em educação superior reduziria o
total dos gastos do Sistema Público de C&T paulista para
US$ 1,72 bilhão – 0,76% do PIB paulista (muito próximo
da relação gasto público em C&T/PIB nacional) e 32%
do dispêndio em C&T financiado pelo setor público.
Esses números evidenciam a importância do sistema de
C&T paulista no cenário nacional dos insumos aplicados à
C&T. Para que se tenha uma idéia da importância de São
Paulo no esforço de pesquisa nacional, basta mencionar que,
enquanto o número de pesquisadores em São Paulo (14.717)
representa pouco mais de um quinto (23%) do total nacional
(65 mil), em 1995, a C&T executada em território paulista
envolve recursos equivalentes a pelo menos um terço dos
recursos para pesquisa executados pelo governo federal.
CRESCIMENTO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
O conjunto das universidades estaduais paulistas responde por boa parte da produção científica brasileira. Em
1995, São Paulo respondia por cerca da metade das publicações científicas nacionais (49%, segundo dados da
Capes) e por dois terços delas na área de ciências da saúde, em que o Estado se especializa (Tabela 5).
A formação de recursos humanos para pesquisa no país
teve como plataforma impulsora o Programa Nacional de
Bolsas para a Pós-Graduação, que envolveu a ação conjunta da Capes e do CNPq, mas em São Paulo o fortaleci-
Integração entre Empresas e Setor Público de C&T
As seções anteriores evidenciaram alguns traços,
contrastantes, do sistema estadual de inovação paulista.
TABELA 5
Produção Científica Total e em Ciências da Saúde
Brasil – 1995
Ciências da Saúde
Regiões
Brasil
Sudeste
São Paulo
São Paulo/Brasil (%)
Publicações
no País
9.939
8.121
6.629
66,70
Total
Publicações
no Exterior
Publicações
no País
Publicações
no Exterior
2.529
1.965
1.627
64,33
31.442
22.522
15.666
49,83
14.197
10.317
6.708
47,25
Fonte: Capes.
131
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
TABELA 6
Insumos e Produtos da Atividade Científica e Tecnológica
Estado de São Paulo e Brasil – 1995
Indicadores
Indicadores de Insumo de C&T
Dispêndio em C&T (US$ milhões)
Recursos Humanos para Pesquisa – Setor Público
RH para Pesquisa – Setor Público e Privado
Agências – Bolsas e Auxílios – Fed. Est. (US$ milhões)
Indicadores de Produto ou de Impacto de C&T
Produção Científica (Capes)
Produção Científica – Ciências da Saúde
Patentes Solicitadas por Residentes no Brasil
Patentes Concedidas a Residentes no Brasil
Teses de Doutorado Defendidas em 1997
Dissertações de Mestrado Defendidas em 1997
(1)
São Paulo
Brasil
São Paulo/Brasil (%)
1.720,2
14.717
16.057
401,21
5.357,00
65.007
72.926
867,58
32,0
22,6
22,0
46,2
22.374
8.256
3.701
952
2.322
3.846
45.639
12.468
7.309
1.462
3.604
11.925
49,0
66,2
50,6
65,1
64,4
32,2
Fonte: Capes; CNPq e Fapesp.
(1) Referem-se a US$ 265,44 milhões em bolsas e auxílios da Capes e CNPq e US$ 135,77 milhões da Fapesp.
TABELA 7
Artigos Científicos, segundo Áreas de Conhecimento
Brasil – 1981/1993
Áreas de Conhecimento
Brasil
Total
Ciências Biológicas
Ciências Biomédicas
Medicina
Medicina Social
Química
Física
Matemática
Engenharia
Ciências da Terra
Meio Ambiente
Humanas e Artes
Sem Especificação
47.184
8.338
12.130
5.639
1.206
3.976
8.568
1.066
3.069
990
848
1.354
10 Centros
24.711
2.449
7.043
2.680
574
2.819
5.385
624
1.184
357
225
645
726
Centros SP
Fora SP
SP/10 Centros (%)
14.253
1.151
4.042
1.994
435
1.929
2.906
316
549
171
99
299
362
10.458
1.298
3.001
686
139
890
2.479
308
635
186
126
346
364
57,68
47,00
57,39
74,40
75,78
68,43
53,96
50,64
46,37
47,90
44,00
46,36
49,86
Fonte: Meiss e Leta (1996), com base nas informações do Science Citation Index, ISI.
Foram ressaltadas a relativa grandeza e o amadurecimento do sistema público de C&T paulista, que se expressa
pelo desenvolvimento das universidades mais importantes do país e uma rede de institutos de pesquisa de porte
considerável, além do peso da produção científica paulista na atividade científica nacional.
Em países de industrialização recente, como o Brasil,
a maior parte das atividades ligadas à inovação refere-se
à difusão, adaptação e melhoria de tecnologias de produtos e processos já existentes, mais que à geração de novas
tecnologias. Freqüentemente essas atividades são realizadas por funções de rotina como o controle de qualidade, a
engenharia de manutenção e a engenharia de manufatura,
ou ainda no âmbito de pequenos grupos de engenharia de
produto e processo, em vez de laboratórios de P&D for-
malmente organizados. No entanto, nos países de industrialização recente que deram prioridade ao alcance de
maior autonomia tecnológica – isto é, a geração endógena
de tecnologias novas a partir da absorção completa de tecnologias importadas –, a função de Pesquisa e Desenvolvimento empresarial cresceu progressivamente, até atingir proporção elevada no total realizado pelo país. Esse é,
por exemplo, o caso da Coréia do Sul, em que a participação empresarial no dispêndio total em Pesquisa e Desenvolvimento do país superou 75% em 1995 – nível superior ao de países mais industrializados, como o Japão
(67%), os EUA (62%) e a Alemanha (59%).
Em contraste, nos países latino-americanos mais industrializados, como o Brasil, o México e a Argentina, as taxas históricas de participação das empresas nos dispên-
132
FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA
Desempenho Inovador
dios nacionais em P&D mantiveram-se em torno de 20%,
em média. Mesmo o recente crescimento dos gastos em
P&D das empresas brasileiras, identificado pelos indicadores do MCT, não levou a participação do P&D privado
a mais de 31% do dispêndio total com P&D no Brasil (dados de 1995). Isso se deve a um conjunto de características da estrutura industrial do país, que será discutido adiante, e determina não apenas níveis de gastos mais modestos
na P&D industrial, como a concentração radical da P&D
das empresas em atividades de desenvolvimento, com
baixa participação da pesquisa. Essa última característica
não favorece a cooperação empresas/sistema público de
pesquisa.
Nesse contexto, as relações de cooperação entre o setor privado e o sistema público de C&T são bastante
incipientes, mas com alguns exemplos pontuais notáveis.
Essa é possivelmente a maior vulnerabilidade do sistema
de C&T paulista, pois significa que o potencial de conhecimento científico e tecnológico acumulado pelo investimento público em C&T não se traduz em capacitação tecnológica e de inovação no setor produtivo, ou seja, não se
converte em benefícios econômicos.
As empresas industriais no Estado de São Paulo apresentaram um desempenho significativo na introdução de
inovações tecnológicas, em termos relativos, 25% das
empresas introduziram produtos tecnologicamente modificados (inteiramente novos ou aperfeiçoados) e/ou processos tecnologicamente aperfeiçoados ou novos, no período de 1994-1996. Comparativamente com outros países,
a taxa de inovação da indústria regional não se distancia
tão significativamente das taxas calculadas com base em
pesquisas de inovação instituídas em países que adotaram
os mesmos procedimentos metodológicos de mensuração
e apresentam uma estrutura produtiva com características
tecnológicas e de diversificação semelhantes ou próximas
às do Estado de São Paulo, como o caso da Espanha e da
Austrália.
A pesquisa de inovação espanhola (INE apud SanzMenédez e Garcia, 1998), por exemplo, cujo período de
referência é 1992-94, feita a partir de uma amostra de 20
e mais empregados, captou uma taxa de inovação da ordem de 29,5%. O survey de inovação realizado na Austrália, para o quadriênio 1994-1997 revelou que a proporção de empresas inovadoras correspondia a uma taxa de
inovação de 26%. Relativamente próximas, portanto, à taxa
de inovação das empresas paulistas. Entretanto, quando
confrontada a taxa de inovação da Paep com a de outros
países de industrialização madura e mais avançada, como
Itália, França e Alemanha, evidencia-se uma distância
substancial entre os níveis de performance dessas taxas.
O survey aplicado na Itália (Archibugi, Evangelista e
Simonetti, 1995), abrangendo o período 1990-92, em empresas com mais de 20 empregados, calcula uma taxa de
inovação em torno de 33%. Na França, a pesquisa de inovação Sessi (François e Favre, 2000), baseada em uma
amostra com empresas de mais de 20 empregados, captou
uma taxa de 41% de empresas industriais que introduziram algum tipo de inovação, no período de 1991-92. E,
por fim, a pesquisa alemã (Licht, Schnell e Stahl, 1995)
feita a partir de um universo amostral composto por empresas de mais de cinco empregados, com periodicidade
anual, identificou um percentual de 53% de empresas que
introduziram inovações tecnológicas.
A propensão a inovar tem relação direta com o tamanho da empresa. Entre as pequenas empresas (5 a 99 empregados), a parcela de empresas inovadoras é de 22%,
subindo para 52% e 59% nas médias (100 a 499 empregados), e alcançando a taxa de 70% entre as grandes empre-
Inovação Tecnológica nas Empresas Industriais1
As empresas produtoras de bens e serviços são parte
crucial do sistema de inovação tecnológica nos países industrializados. São pelas atividades de inovação das empresas que os conhecimentos científico e tecnológico se
transformam em inovações de produtos e processos, que
dão sustentação real à competitividade das empresas nos
mercados em que atuam. Sendo o Estado de São Paulo
responsável por cerca de 50% do produto industrial brasileiro, e onde se concentram os núcleos da maior parte
dos setores mais dinâmicos, a questão das atividades tecnológicas das empresas e das suas relações com o sistema
público de C&T é de importância decisiva para seu futuro. Essa avaliação pôde ser realizada devido à disponibilidade de informações sobre inovação tecnológica da indústria paulista produzidas pela Paep/Seade – Pesquisa
da Atividade Econômica Paulista, que coletou informações sobre atividades de inovação tecnológica referentes
ao triênio 1994/1996, em mais de 10 mil empresas industriais, de todos os portes (acima de cinco empregados),
baseando-se nas diretrizes metodológicas recomendadas
pelo Manual de Oslo da OECD, o que possibilitou a comparação com as práticas de outros países. A seguir sintetizamos as principais conclusões da pesquisa.
133
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
Atividades de P&D
sas industriais (500 empregados e mais). Portanto, devido a sua maior disponibilidade de recursos financeiros,
tecnológicos, humanos e gerenciais, as grandes empresas
têm demonstrado maior capacidade para inovar, isto é,
lançar novos produtos e adotar novos processos, colocando-se em melhor posição para proteger ou incrementar sua
competitividade. Essa conclusão reforça, agora pelo lado
das capacitações para inovar, o diagnóstico da fragilidade das pequenas empresas. Outro aspecto crucial a ser
analisado na economia paulista é a origem do capital das
empresas inovadoras, porque fazem parte de uma economia nacional com grande participação do capital estrangeiro nos setores industriais de maior peso econômico. As
empresas controladas integral ou parcialmente por capitais estrangeiros apresentam maior propensão para inovar que as empresas controladas integralmente por capital nacional. Entre as grandes empresas (500 e mais
empregados), 81% daquelas controladas por capital estrangeiro são inovadoras, ao passo que 65% das controladas por capital nacional são inovadoras.2
No Brasil, as multinacionais incorporam essas inovações adaptando-as às características do mercado brasileiro ou a limitações técnicas determinadas pelo fornecimento
de matérias-primas e componentes locais. Não obstante,
a atividade de adaptação de produtos e processos realizada por empresas com participação estrangeira é responsável pelo emprego da maior parcela de engenheiros e
outros profissionais de nível superior que atuam em pesquisa e desenvolvimento na indústria paulista.
Segundo informações da Paep/Seade, em 1996 havia
8.865 profissionais de nível superior trabalhando em atividades de P&D, em 3.422 empresas industriais paulistas, com 100 e mais empregados, que executavam essas
atividades. Portanto, a média de profissionais de nível superior nessas empresas era de 2,5. Nota-se que o esforço
em P&D é pequeno quando comparado com os esforços
das indústrias de países mais desenvolvidos. A comparação aqui é feita entre o Estado de São Paulo e outros países devido a não haver informação equivalente, baseada
em pesquisa amostral representativa, que permita conhecer o volume de recursos humanos empregados na P&D
industrial brasileira. Em termos absolutos, o volume de
pessoal de nível superior (em sua maior parte engenheiros) empregado em P&D em São Paulo é superior ao da
Austrália e Espanha. No entanto, quando se analisa o emprego industrial total, percebe-se que o indicador de intensidade de P&D australiano (0,763) é o dobro do brasileiro. Brasil e Espanha, por sua vez, encontram-se muito
distantes dos países europeus com maior densidade (França
e Alemanha) e mais ainda dos países líderes (Japão e Estados Unidos). Não obstante, a posição do Estado de São
Paulo (e brasileira) é de liderança na América Latina (Tabela 8), uma vez que a posição mexicana é próxima da
argentina.
Em resumo, pode-se dizer que o esforço em P&D industrial feito pela economia paulista, embora apresente
um volume que o coloca em primeiro lugar na América
Latina, está muito aquém daquele feito pelos países industrializados, inclusive países de industrialização recente
como Coréia do Sul e Taiwan.3 Em outros termos, o bom
desempenho da indústria quanto à taxa de inovação não
dependeu primordialmente do esforço interno em P&D.
O entendimento desse fenômeno requer uma avaliação
mais detalhada das características estruturais do processo
de inovação na economia paulista (e brasileira).
A recente ampliação da internacionalização da economia brasileira (desnacionalização) aprofundou uma característica do processo de inovação industrial que já era
dominante em períodos anteriores. Empresas localizadas
no Brasil estão propensas a realizar gastos na importação
de tecnologias e no P&D interno necessário para adaptálas às condições brasileiras (condições de mercado ou
matérias-primas). Isto se verifica no significativo crescimento recente das importações de tecnologia no Brasil,
que serão examinadas adiante. No entanto, as empresas
ESFORÇO DE INOVAÇÃO
A avaliação dos esforços (investimentos) realizados
pelas empresas paulistas para alcançar as taxas de inovação, discutidas anteriormente, revela a relativa fragilidade do processo de capacitação tecnológica desenvolvido
no Estado (como, de resto, no Brasil). Em primeiro lugar,
observa-se que, apesar do notável desempenho inovador
de novos produtos e processos no período 1994/1996, as
indústrias do Estado de São Paulo não realizaram esforço
de P&D compatível com tal performance. Em segundo
lugar, esse fenômeno está associado ao fato de a estratégia tecnológica das empresas privilegiar o incremento dos
fluxos de importação de tecnologia, sem acompanhar tal
esforço com investimentos significativos em processos de
absorção dessas tecnologias. Essa estratégia contribui para
explicar a baixa interação entre as empresas paulistas e o
sistema público de C&T.
134
FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA
TABELA 8
Pessoal de Nível Superior Empregado em Atividades de P&D na Indústria de Transformação
Países Selecionados – 1993-1996
Países
Anos
Empregados de Nível
Superior em P&D (1)
Brasil (Estado de São Paulo) (2)
México
Espanha
Austrália
Canadá
Itália
Alemanha
França
Hungria
Japão
Estados Unidos
1996
1995
1993
1995
1994
1994
1993
1994
1995
1995
1994
8.865
1.339
8.084
8.541
22.662
24.136
121.705
55.857
2.069
368.960
540.700
Empregados de Nível Superior em P&D/
Pessoal Ocupado na Indústria X 100
0,382
0,026
0,337
0,763
1,163
0,531
1,196
1,342
0,056
2,534
2,682
Fonte: Fundação Seade. Pesquisa da Atividade Econômica Paulista – Paep; OECD, Basic Science and Technology Statistics, 1997; Yearbook of labour statistics, 1996.
(1) Para o Estado de São Paulo, compreende o total de pessoas de nível superior e para os demais países, o número de cientistas e engenheiros alocados nessa atividade.
(2) Corresponde a empresas com mais de 99 empregados, somente com sede no Estado de São Paulo.
desenvolvimento que pouco demandam do sistema público estadual de C&T. Um grupo minoritário de empresas
que atuam em áreas de média e alta intensidade tecnológica, entretanto, tem estabelecido laços com universidades e institutos de pesquisa. Esse tem sido o caso das indústrias aeronáutica e aeroespacial, química, siderúrgica
e de segmentos da indústria eletrônica, nos quais o desenvolvimento de empresas médias de base tecnológica tem
se beneficiado da proximidade dos principais centros de
pesquisa paulistas.4
estão menos propensas a investir na absorção completa
das tecnologias importadas, o que lhes permitiria deter
conhecimento para desenvolver internamente produtos/
processos significativamente modificados.
No que diz respeito às empresas transnacionais de controle externo, essa estratégia obedece a uma lógica de
ampliação de escalas e redução de custos de P&D. Ao
concentrar as atividades de P&D mais ligadas à pesquisa
(pesquisa básica e aplicada) em poucos laboratórios de
países mais industrializados, essas empresas ganham escala de pesquisa e acesso aos sistemas públicos de C&T
mais avançados do mundo, de onde importam para os
mercados emergentes as inovações tecnológicas mais significativas. Não obstante, o desenvolvimento de produtos
para mercados locais requer volume considerável de atividades de adaptação/aperfeiçoamento/desenvolvimento
– que em geral são concentradas em sedes regionais. Isso
explicaria a concentração no Brasil, em particular em São
Paulo, das atividades de desenvolvimento de empresas
transnacionais, que servem ao conjunto de mercados da
América do Sul.
Já as grandes empresas nacionais, embora não disponham da mesma alternativa, seguem comportamento semelhante, confiando fundamentalmente na importação
renovada de tecnologia para se manterem competitivas, e
concentrando o P&D local na sustentação das capacidades necessárias para tornar viável este processo de dependência de fluxos externos de conhecimento. O resultado
agregado dessas estratégias tem sido o crescente déficit
no balanço de pagamentos tecnológicos (tema do próximo item) e a concentração da P&D local em atividades de
Importação de Tecnologia pelas Indústrias
A década de 90 tem sua política econômica caracterizada pela abertura comercial, provocando profundas mudanças nos marcos institucionais que regulam o comércio
TABELA 9
Importação de Tecnologia
Brasil e Estado de São Paulo – 1980-1996
Brasil
Anos
1980
1985
1990
1996
Total Acumulado
até 1996 (1)
Em US$ mil
de dez./96
Estado de São Paulo
%
Em US$ mil
de dez./96
593.729
181.770
180.839
801.672
100,0
100,0
100,0
100,0
131.064
38.357
62.603
372.819
22,1
21,1
34,6
46,5
13.311.165
100,0
4.823.899
42,5
Fonte: Firce/Conap (Ufteco 86).
(1) Refere-se ao total das importações de cada Estado até 1996, inclusive.
Nota: Valores convertidos pelo IPC dos EUA.
135
%
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
TABELA 10
Patentes Concedidas, por Local de Residência do Solicitante
Brasil – 1990-96
Anos
Estado de São Paulo
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
967
728
532
648
858
952
623
Outros Estados
600
47
327
389
530
510
315
Brasil
Exterior
1.567
1.145
859
1.037
1.388
1.462
938
3.120
2.234
1.656
2.502
2.289
2.606
1.662
Total
4.687
3.379
2.515
3.539
3.677
4.068
2.600
ESP/Brasil (%)
61,7
63,6
61,9
62,5
61,8
65,1
66,4
Fonte: Inpi.
são de patentes. Os países com liderança tecnológica são
os que apresentam os mais elevados indicadores de patentes, ainda que nem sempre suas especializações setoriais
encontrem na propriedade industrial a melhor maneira de
garantir o segredo do negócio. Em linha com o exposto
nas seções anteriores, é importante registrar que, embora
o grande investimento realizado pelo governo brasileiro
(e paulista) nas últimas décadas tenha resultado em drástica elevação dos índices de produção científica nacional,
esse crescimento não teve reflexo substancial no crescimento do número de patentes concedidas ou mesmo no
nível de relacionamento entre universidades e empresas
brasileiras.
As patentes concedidas no Brasil são em número muito reduzido e destinam-se, na maioria das vezes, a legalizar a exploração de tecnologias de propriedade de empresas estrangeiras instaladas no mercado (as patentes
concedidas a não-residentes superam aquelas concedidas
a residentes) (Tabela 10).
Outra maneira de se medir a produção tecnológica seria pelo coeficiente de inventividade, que representa a
razão entre o número de solicitações de patentes por residentes no país e a população desse país. Aqui também o
desempenho brasileiro tem sido limitado: o coeficiente
nacional, na década de 90, tem mantido uma média pouco
superior a quatro pedidos por 100 mil habitantes, em contraste com países como Taiwan (139/100 mil), Canadá (10/
100 mil), Itália (14/100 mil), Estados Unidos (47/100 mil)
e Suíça (563/100 mil).
Ainda que essa lógica não possa ser atribuída inteiramente a uma falha na política científica e tecnológica (C&T)
do país, pois, como se viu, deriva mais de condições estruturais agravadas pelo processo de globalização, a consciência dessa situação tem levado os responsáveis pela formulação e execução da política C&T a iniciativas visando criar
de tecnologia. Em dezembro de 1991, a promulgação da
Lei no 8.383 libera a contratação de tecnologia entre subsidiárias locais e suas matrizes no exterior. Em 1996, é
aprovada a nova Lei de Propriedade Industrial, que entra
em vigor um ano depois, em maio de 1997. Em relação
aos contratos de transferência de tecnologia, essa lei suprime a atividade regulatória do Instituto Nacional de
Propriedade Industrial (Inpi) – e portanto do Estado – sobre os fluxos tecnológicos.
A partir de 1994, tornam-se marcantes os reflexos das
transformações ocorridas tanto na legislação sobre a transferência de tecnologia, quanto nas políticas econômica e
de comércio exterior adotadas no período. Conforme se nota
na Tabela 9, há um crescimento muito significativo das
importações de tecnologia, que saltam do patamar de US$
180 milhões, em 1990, para mais de US$ 800 milhões, em
1996. A indústria que assume a liderança na importação de
tecnologia nos anos 90 é a do setor eletroeletrônico, responsável por 13% do total no período, nos dispêndios com
contratos de transferência de tecnologia. O comportamento dos gastos com importação de tecnologia (contratos de
assistência técnica, royalties, marcas e patentes, serviços
tecnológicos, etc.) no Estado de São Paulo apresenta um
crescimento significativo a partir de 90, alcançando 46,5%
das despesas nacionais em 1996. Essa ampliação da participação paulista nas importações de tecnologia possibilitou ao Estado superar o Rio de Janeiro, que até então era o
maior importador de tecnologia.
Descompasso entre o Crescimento da Produção
Científica e a Estagnação da Geração de Tecnologias
Uma das maneiras – ainda que imperfeita – para se
avaliar a capacidade de geração de tecnologias de uma
economia seria por seus indicadores de pedidos e conces-
136
FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA
tente dessa relação de encadeamento é o da formação de
um complexo de empresas em torno do CTA e do Inpe
voltadas para o setor aeroespacial, cujo caso de maior
sucesso e impacto é o da Embraer (Bernardes, 2000a).
De maneira geral, quando elas existem, as relações entre
empresa e universidades costumam orientar-se para a necessidade de formação de recursos humanos de alto nível, que muitas vezes compõe os quadros das equipes de
engenharia e dos laboratórios de pesquisa dessas empresas. A relação direta com as universidades visando a atividade de inovação é menos freqüente. Já os institutos de
pesquisa, por estarem mais voltados para pesquisa tecnológica, exercem um papel mais importante enquanto fonte de informação no processo de inovação.
Mesmo assim, as instituições públicas de pesquisa têm
ainda um papel de pouca importância na introdução de
inovações, estando posicionadas em oitavo e décimo primeiro lugar, nos casos respectivamente dos institutos públicos de pesquisa e das universidades. Isso evidencia que,
no agregado, as relações empresas/sistema público de C&T
são limitadas e frágeis, mesmo no Estado de São Paulo.
Nas últimas décadas as universidades em associação
com os poderes locais têm se empenhado em reforçar os
elos com as empresas pela implantação de incubadoras
de empresas e de pólos tecnológicos. O caso de maior
sucesso é o da cidade de São Carlos, onde uma universidade federal e outra estadual desenvolveram uma experiência bem-sucedida de formação de pólo tecnológico. Contudo, por mais bem-sucedida que seja a experiência de
incubação, freqüentemente as empresas de base tecnológica enfrentam o problema do mercado de produtos de alta
tecnologia que é sempre limitado e depende do gasto público. Com a recente abertura da economia nacional e a
maior facilidade para as empresas e a administração pública de importar esses produtos, as empresas incubadas
estão tendo de encarar problemas crescentes de sobrevivência. E embora oriundas do meio acadêmico, têm demonstrado uma baixa propensão para manter esses vínculos no momento em que conseguem se afirmar no mercado,
revelando que mesmo nesses casos ainda subsiste uma
grande dificuldade de relacionamento entre a academia e
as empresas de base tecnológica.
mecanismos de vinculação (a chamada política vinculacionista) entre o sistema público de pesquisa e as empresas, sem que haja ainda evidências fortes de seu sucesso. A
precária conformação das redes de pesquisa no Brasil, sua
situação de país em via de desenvolvimento e as próprias
limitações do processo de interação universidade/empresa
nos países centrais são os principais fatores da relativa limitação dessas iniciativas que, em alguns casos, sequer tiveram tempo de maturação para serem avaliadas. Esses
pontos são discutidos nos próximos itens.
Sistema Público de C&T e as Empresas:
a baixa demanda de tecnologia nacional
As empresas de países em desenvolvimento como o
Brasil, que adotaram um modelo de industrialização com
baixa absorção de conhecimentos tecnológicos, se caracterizam por ter um baixo nível de demanda por insumos
provenientes do sistema público de C&T. As políticas
adotadas no passado para reforçar esses elos não foram
muito efetivas. Como se viu anteriormente, tanto as filiais
de empresas multinacionais como as empresas privadas
de capital nacional, costumam estabelecer elos preferenciais com os países desenvolvidos. Mesmo as empresas
estatais tinham uma orientação similar, pois preferiam
importar a tecnologia já dominada dos países desenvolvidos a assumir o risco de desenvolvê-la localmente. Apenas algumas empresas estatais se destacam no cenário
nacional por haverem iniciado políticas visando, de um
lado, reforçar as capacitações científicas e tecnológicas
existentes nas universidades e, por outro, desenvolver programas voltados para a pesquisa e o desenvolvimento
tecnológico.
Essas carências, que são bem conhecidas, logicamente
estão presentes, embora atenuadas, no Estado de São Paulo, por ser este o maior Estado industrial e o que reúne o
mais amplo acervo de instituições de pesquisa do país. Nesse Estado, existe um grupo – ainda que minoritário – de
grandes e médias empresas com forte vocação tecnológica que costumam estabelecer laços com a rede de universidades e institutos estaduais e federais de pesquisa. Além
da solidez e da consistência dessas instituições públicas
de pesquisa terem sido um pólo de atração para empresas
sediadas em outras regiões do país, como é o caso da
Petrobras. O Estado de São Paulo reúne também um importante acervo de experiências no qual institutos públicos de pesquisa tiveram um papel decisivo na formação
de empresas de base tecnológica. O exemplo mais consis-
Políticas Públicas e Cooperação Universidade/
Institutos com Empresas
Existe em todos os níveis da Federação uma vontade
cada vez mais firme de reforçar os elos entre o sistema
137
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
utilização são a baixa atratividade da alíquota de renúncia
fiscal e a dificuldade de acesso das empresas de base tecnológica e as pequenas e médias empresas à Lei no 8.661/91.
Na prática, as micro, pequenas e médias empresas são pouco beneficiadas pela legislação atual, pois recolhem um valor
muito reduzido de Imposto de Renda, que é o principal atrativo da Lei.
A política definida pelo governo também atua em sentido inverso, exigindo que as empresas, quando contempladas por incentivos fiscais, recorram às instituições de
pesquisa para a realização de parte do esforço de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. O exemplo mais importante dessa política, de maior impacto no Estado de
São Paulo, é o da Lei no 8.248/91, de informática, que
possibilita às empresas desse setor e do setor de equipamentos de telecomunicações, que gastam pelo menos 5%
do seu faturamento anual em P&D, descontarem esses
recursos do Imposto de Renda. A lei determina que no
mínimo 2% do faturamento seja aplicado em convênios
com institutos de pesquisas e entidades brasileiras de ensino. Em 1994, pela Portaria no 200, definiu-se como programas prioritários a Rede Nacional de Pesquisa – RNP,
o programa Temático Multiinstitucional em Ciência da
Computação – ProteM-CC e o Programa Nacional de
Software para Exportação – Softex 2000. Todos estes programas são coordenados e operacionalizados pelo CNPq.
Em relação à introdução do Softex, a avaliação de um modo
geral é positiva. Ele tem duas vertentes de atuação: uma
de mercado e outra tecnológica. O programa permitiu o
desenvolvimento de novos softwares, gerando emprego
em várias micro, pequenas e médias empresas no Brasil.
O acesso e a oferta das linhas de financiamento são considerados relativamente eficientes pelos seus usuários para
o desenvolvimento de novos produtos. Na vertente de
mercado, o programa montou quatro escritórios internacionais para subsidiar as vendas externas, 20 núcleos regionais sediados em universidades de diferentes cidades
brasileiras, descentralizando suas ações. Quatro deles situam-se nas Regiões Metropolitanas de São Paulo, Campinas, São José dos Campos e São Carlos. Graças a essa
lei as empresas beneficiárias no Estado de São Paulo efetivaram aplicações em torno de R$ 600 milhões em projetos internos de P&D, representando 67% das empresas
usuárias desses incentivos no país, e efetuaram também
gastos em P&D da ordem de R$ 300 milhões em convênio com instituições de ensino e pesquisa paulistas, 62%
do total dos gastos nacionais (Ministério da Ciência e Tecnologia, 1998) .
público de C&T e as empresas. Essas políticas derivam
da constatação de que o sistema público de C&T já alcançou um estágio de maturidade suficiente que o habilita para
ser um importante interlocutor no esforço de inovação das
empresas. O governo federal tem se sensibilizado crescentemente com a necessidade de reforçar os elos entre
as empresas e as instituições públicas de pesquisa. Alguns
programas destinados a apoiar o desenvolvimento
tecnológico, e que eram tradicionalmente voltados ao meio
acadêmico, passaram a usar como critério a concessão e a
associação entre universidades/institutos com empresas.
O caso mais importante é o do PADCT (Programa de
Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que
em sua última versão passou a incorporar esse tipo de critério para a concessão de auxílios. O programa, nestes
últimos dois anos, sofreu uma severa redução orçamentária passando de um volume de R$ 40 milhões, em 1998
para R$ 25 milhões, em 1999.
A Lei no 8.661/91 dispõe sobre os incentivos fiscais para
capacitação tecnológica da indústria e da agropecuária, com
base na execução de Programas de Desenvolvimento
Tecnológico Industrial (PDTI) e Programas de Desenvolvimento Tecnológico Agropecuário (PDTA). São programas de investimento das empresas nas atividades de pesquisa e desenvolvimento científico, mediante a criação e
manutenção de estrutura de gestão tecnológica permanente
ou o estabelecimento de associações entre empresas. Os
incentivos fiscais perderam um importante fator de
atratividade em virtude da redução de 8% para 4% do limite de dedução do Imposto de Renda devido, de valor equivalente à aplicação de alíquota cabível do imposto à soma
dos dispêndios em atividades de pesquisa e desenvolvimento
tecnológico, industrial e agropecuário. Com o estímulo desse
instrumento, durante o ano de 1999, foram aprovados 105
programas, sendo 43 programas localizados em São Paulo,
42% do total, com a previsão de investimentos, entre o período 1994-2000, da ordem de R$ 3,85 bilhões com uma
renúncia fiscal de R$ 1,1 bilhão para o Brasil (Ministério
da Ciência e Tecnologia, 1999). Desse total, as empresas
localizadas no Estado de São Paulo foram responsáveis por
49% dos investimentos em capacitação tecnológica, equivalendo a R$ 1,9 bilhão, e por 39% dos incentivos fiscais
federais recebidos, ou R$ 418 milhões.5 Uma pesquisa realizada pela Fiesp, no universo das empresas industriais paulistas, sobre a percepção do setor sobre os incentivos fiscais,
revelou que 77,0% dessas empresas tinham conhecimento
da Lei no 8.661/91, mas somente 10,0% delas já a haviam
utilizado. Os principais motivos considerados para a baixa
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FORÇA E FRAGILIDADE DO SISTEMA DE INOVAÇÃO PAULISTA
versidades públicas do Estado em centros de organização
e irradiação da formação de mestres e doutores para
reciclagem do pessoal docente de nível superior em todo
o país; formação de pesquisadores para os institutos e
centros de pesquisa públicos e privados do país; e para
fornecer pessoal para os departamentos de pesquisa e desenvolvimento e engenharia nas empresas industriais. O
produto desse esforço pode ser avaliado pelos seguintes
pontos:
- a produção científica realizada dentro do Estado de São
Paulo equivale a aproximadamente a metade da produção
nacional, dois terços desse total no caso das ciências da
saúde;
A Fapesp tem inovado também lançando programas
orientados para as empresas. O Pite (Parceria para a Inovação Tecnológica) é um programa de parceria entre empresas e instituições de pesquisa paulistas com o intuito
de gerar inovações tecnológicas que já havia aprovado até
o primeiro semestre de 2000, cerca de 46 projetos envolvendo a participação de 44 empresas, além de universidades e institutos de pesquisa. O montante de recursos destinados a esses projetos é de 21,6 milhões de reais, 47%
de responsabilidade da Fapesp e o restante das empresas.
O Pipe (Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas
Empresas) serve para financiar, sem nenhuma contrapartida projetos de pesquisa em empresas com no máximo 100 empregados. Até o momento, 122 projetos foram
aprovados envolvendo recursos da ordem de 10,6 milhões
de reais. Para aproximar os esforços da ciência com a sociedade, a Fapesp lançou o programa Cepid (Programa
de Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão), que propõe
uma nova abordagem da pesquisa científica, em que se
privilegia uma visão integrada da atividade científica incentivando a transferência de conhecimento para os setores público e privado e a educação. Esses novos centros
contaram com recursos de R$ 15 milhões anuais para o
desenvolvimento de pesquisas multidisciplinares que situam-se na fronteira do conhecimento. Em conjunto com
o governo estadual, a Fapesp estabeleceu o programa Parceria para Inovação em Ciência e Tecnologia Aeroespacial
(Picta) para apoiar projetos desenvolvidos por universidades e instituições de pesquisas em conjunto com empresas do setor aeroespacial, destinando-lhes recursos de
R$ 18 milhões.
- as cinco universidades públicas existentes no Estado,
três estaduais (USP, Unesp e Unicamp) e duas federais
(Unifesp e Federal de São Carlos), são responsáveis por
50% dos doutores no país;
- o número de patentes solicitadas por residentes em São
Paulo é a metade do número de patentes solicitadas por
residentes no Brasil, e as patentes concedidas a residentes em São Paulo correspondem a 66% do total concedido para residentes no país em 1996.
A nova agenda governamental de desenvolvimento
tecnológico instituída nos anos 90 redefiniu o enfoque de
uma política baseada na oferta da tecnologia para uma
política focada na demanda do mercado e a empresa como
principal agente do processo de inovação tecnológica. A
nova política sinalizou, para os agentes econômicos, o
caminho da acumulação e do desenvolvimento tecnológico
pela conquista de novos critérios de qualidade e produtividade e pelo esforço tecnológico empresarial. Entretanto, a implementação de uma política tecnológica e de investimentos mais ampla e articulada com o setor produtivo,
revigorando a rede de institutos de pesquisa com a construção de instâncias institucionais de coordenação entre
os atores e a formação de visões de longo prazo, prossegue sendo elemento de constrangimento em relação ao
futuro desenvolvimento tecnológico sustentado.
O Estado de São Paulo, diferencia-se do quadro nacional, devido ao importante papel que o seu sistema institucional de C&T ocupa, tendo como eixo estruturante as ações
virtuosas empreendidas pela Fapesp no apoio às pesquisas
científicas acadêmicas e empresariais. Embora o padrão de
relacionamento institucional entre institutos e centros de
pesquisas universitários seja considerado incipiente, vem
se presenciando nas universidades uma interação importante
com as empresas industriais inovadoras.
CONCLUSÕES
O sistema científico do Estado de São Paulo foi resultado de uma ação conjugada bem-sucedida entre os esforços do governo federal na preparação de recursos humanos de alto nível em ciência e tecnologia; a determinação
do governo estadual de assegurar um fluxo permanente
de recursos para a manutenção de suas universidades –
reconhecidos centros de excelência acadêmica –; e da
pesquisa científica e tecnológica pela Fapesp, responsável pelo financiamento dessas atividades em todas as instituições de pesquisa, públicas e privadas, estaduais ou
federais, localizadas no Estado, de acordo com o mérito
dos projetos.
O resultado de mais de três décadas de apoio sustentado à pesquisa e à pós-graduação foi transformar as uni-
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
é estigmatizado por um elevado grau de incerteza, tendo
em vista que o processo de globalização está intensificando a concorrência e tornando cada vez mais difícil a
sua sobrevivência. Por outro lado, as empresas associadas ao capital estrangeiro ou filiais de empresas multinacionais tornaram-se crescentemente clientes desses
programas, podendo inaugurar um novo padrão de relacionamento entre políticas governamentais, empresas e
instituições de pesquisa. Os elos entre o sistema público
de C&T e as empresas irão depender cada vez mais da
atratividade de nossas competências técnico-científicas
perante as estratégias globais de empresas multinacionais, o que reforça a importância dos investimentos públicos na manutenção/aperfeiçoamento do sistema de
C&T, na restauração das instituições, modernização da
legislação fiscal e das políticas públicas para inovação
tecnológica, a fim de promover a inserção competitiva e
progressiva das empresas nacionais nas redes de conhecimento globais.
Uma das principais conclusões deste artigo consiste na
identificação de um desequilíbrio no “sistema de inovação paulista”, expresso no que denominamos de descompasso entre a expressiva produção científica efetuada nas
universidades, baixa participação de cientistas e engenheiros (C&E) alocados à atividade de P&D e limitada capacitação tecnológica e de atividades de P&D nas empresas
paulistas (bastante centralizada na função de desenvolvimento). Além disso, o déficit no balanço das importações
e exportações de serviços tecnológicos e o tímido desempenho do Estado (e do país) no patenteamento de inovações tecnológicas sugerem a proposta síntese deste artigo, em relação ao padrão de inovação da indústria paulista:
muita inovação e pouco conhecimento. O maior peso atribuído à importação de tecnologia, sem correspondente
esforço de absorção, sugere a continuidade da fragili dade tecnológica das empresas, possivelmente a maior vulnerabilidade do sistema de C&T paulista, pois significa
que o potencial de conhecimento científico e tecnológico
acumulado pelo investimento público em C&T não tem
se traduzido em capacitação tecnológica e de inovação no
setor produtivo, ou seja, em resultados econômicos expressivos.
No momento em que a interação universidade/empresa começa a ocupar um espaço crescente na agenda das
empresas, das universidades e do próprio governo, pelo
crescente conteúdo de conhecimento na formação de valor dos bens e serviços, os países em desenvolvimento
como o Brasil ou regiões e setores dinâmicos como a indústria e os serviços do Estado de São Paulo devem incluir em sua agenda de desenvolvimento a preocupação
em manter atualizada a base de conhecimentos científicos em âmbito internacional, ao mesmo tempo que deve
mobilizar esforços na arquitetura de mecanismos que permitam transformar a prática da produção científica em prol
de um programa de desenvolvimento econômico e social.
Todavia, criticamos a visão simplista da interação universidade-empresa como panacéia para a resolução das necessidades de financiamento das universidades e das demandas de tecnologias das empresas, considerando que
cada uma dessas instituições tem missões e culturas próprias, cabendo à política pública uma função estratégica
na busca pelo equilíbrio entre demanda e oferta tecnológica nessa interação institucional.
A efetividade dessas políticas de C&T e da inovação
não depende apenas dos incentivos governamentais para
que se possa realizar a pesquisa de forma associada e
cooperativa. O futuro das empresas inovadoras nacionais
NOTAS
1. Essa questão é discutida com maior profundidade em um estudo feito por Quadros et alii (1999).
2. Esse resultado pode ser explicado por vários fatores: menor custo do capital
das empresas estrangeiras; acesso mais fácil às modalidades de transferência de
tecnologia e conhecimento, o que contribui para acelerar a introdução de novos
produtos e processos; esses produtos e processos modificados tecnologicamente
são originados em países industrializados, nos quais as empresas transnacionais
concentram seus principais centros de inovação tecnológica e P&D.
3. Em 1995, havia mais de 100 mil pessoas ocupadas em P&D, nas empresas
industriais e de serviços da Coréia do Sul, e mais de 60 mil em Taiwan.
4. Da mesma forma, algumas transnacionais (casos como o da Siemens, da Fiat,
da Mercedes-Benz e da Rhodia são bem conhecidos) têm ultrapassado os limites
de seus próprios muros e transbordado sua atividade de P&D a fim de envolver
alguma forma de cooperação com universidades e institutos, mostrando assim que
há espaço para se construir políticas ativas para promover tal integração.
5. Deve-se ressaltar que do montante dos investimentos em P&D pela Lei no 8.661/91
aprovados em 1999 no Estado de São Paulo, somente a Embraer foi responsável
por um programa no valor de R$ 737 milhões, o maior volume de recursos registrado dentre os programas aprovados no país para esse período (Bernardes, 2000b).
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