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 Latusa Digital Ano 9 – N. 48 – Março de 2012.
Laurent, Éric. “O que nos ensinam os autistas”. Em: Murta, A.; Calmon, A.; Rosa, M. (Org.)
Autismo(S) e atualidade: uma leitura lacaniana. Belo Horizonte: EBP - Scriptum, 2012, p.1743.
Por Carla Sá Freire
A fim de delimitar a clínica psicanalítica — diferenciando-a de outras práticas
atuais que se ocupam da psicopatologia infantil com novas classificações que incluem um
número cada vez maior de crianças — Éric Laurent enfatiza que a psicanálise se ocupa do
sujeito e dos modos de tratamento possíveis para seu gozo. Nesse sentido, quanto ao
tratamento possível dos autismos, destaca o objeto a em sua relação com o acontecimento
de corpo, na conferência apresentada no Rio de Janeiro, no ano de 2011, como parte das
atividades preparatórias para o V ENAPOL.
A discussão desenvolvida na obra em questão demonstra que a desconexão do
corpo no autismo difere das questões relacionadas ao corpo no campo das psicoses.
Mesmo que não se saiba exatamente o que o termo autismo nomeia, e ainda que a
classificação se revele instável, é interessante destacar a distinção em relação às psicoses.
Essa diferenciação é demonstrada pela relação do sujeito com o corpo e com a língua
através das noções de objeto e de gozo. Não calar diante do que não sabemos, não
reduzindo o sujeito à fenomenologia e às classificações disponíveis, é a direção do trabalho
do analista.
A clínica com autistas e diversos testemunhos de autistas foram relacionados
para evidenciar esta particularidade: o acontecimento de corpo como fenômeno de borda
nesses sujeitos. O acontecimento de corpo é um modo específico de lidar com um corpo
invadido por um gozo pleno. Os testemunhos também mostram “certo uso da instância da
letra em sua relação com o campo da palavra que é particular a esses sujeitos” (p.21).
Apresentam criações singulares para lidar com a língua de modo que nada escape, como a
invenção de “uma máquina para tratar o insuportável” (p.21) vivido. Esses testemunhos
apresentam as regras da linguagem separadas da relação com o corpo, “sem nenhuma
opacidade” (p.22). É um modo de silenciar o ruído da língua, que equivoca sem parar.
Tratar o autista como sujeito implica, portanto, marcar o que lhe é próprio,
embora alguns fenômenos observados na clínica estejam também presentes no campo das
psicoses. Neste, o delírio implica algo do imaginário do corpo, e o gozo aparece como efeito
Laurent, Éric. “O que nos ensinam os autistas” - Carla Sá Freire
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da língua sobre o corpo. Já no campo dos autismos, os sujeitos testemunham a dificuldade
para conseguir estabilizar sua relação com o corpo através da invenção de um objeto.
Temple Grandin, por exemplo, inventou um objeto, o cattle trap, na tentativa de enformar o
objeto a. Invenção de um objeto e também tentativa de capturar um corpo. Laurent afirma
que, nos autismos, podemos localizar a aparição do objeto enformado, como no cattle trap,
ou sem forma. No caso de Gradin, vemos como o sujeito tenta enformar o objeto, e, no
exemplo da tentativa de extração das fezes, mesmo incluindo a dor que essa prática possa
provocar, é do objeto de gozo sem forma que se trata. Esse objeto “se impõe ao corpo, [e]
se inclui de maneira tão paradoxal no corpo que é preciso extraí-lo a qualquer custo” (p.25).
A distinção entre autismo e psicose também é relevante com relação às
alucinações. Há alucinação no autismo, e não, como sustentam alguns teóricos, aumento da
sensibilidade auditiva. Essas alucinações revelam a anulação da distância entre o campo
escópico e as vozes. “O sujeito tem seus objetos ao lado, seja qual for a distância que o
separa deles” (p.25). O objeto, ao entrar no mundo do sujeito, mesmo que não possa ser
nomeado, “desperta o rumor da língua” e evidencia que “há algo intratável nos equívocos da
língua” (p.25). Diante da impossibilidade de nomear o que há no mundo, a criança “tapa
seus ouvidos porque a língua lhe está gritando todos os equívocos possíveis” (p.25).
Os fenômenos de borda, afirma Laurent, são um caso de acontecimento de
corpo particular no autismo. São um modo de retorno de gozo especificamente em uma
borda do corpo e não no corpo, como na psicose esquizofrênica, ou no Outro, como na
psicose paranoica. A fim de sustentar teoricamente a ideia dos fenômenos de borda,
Laurent retoma o Um de gozo no ensino de Lacan. Os fenômenos na psicose acontecem
como um transtorno da cadeia entre dois significantes, S1 e S2; como consequência, há a
ruptura da mensagem entre um e outro na patologia alucinatória. No autismo, não há essa
interrupção e sim “a repetição de um Um separado de um outro, que não reenvia a um
outro, e que, ao mesmo tempo, produz um efeito de gozo” (p.27).
A fim de exemplificar essa questão, o testemunho de um autista atesta, através
da manipulação de letras em uma lista, que desse modo ele constituía o Um e nomeava
uma estação de rádio precisamente através da iteração de letras. Na iteração de letras, não
há a constituição de um significante que reenvia a outro. Essa lista sem reenvio, repetição
chamada de “uma iteração pura”, produzia alívio e estabilizava a angústia, de acordo com o
testemunho.
O Um de gozo, marca do acontecimento de corpo, não pode ser apagado no
campo dos espectros do autismo, por isso há essa iteração. ”É isso o acontecimento de
Laurent, Éric. “O que nos ensinam os autistas” - Carla Sá Freire
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corpo: uma palavra é pronunciada e uma criança fica submetida a um horror particular”
(p.28).
O não apagamento do Um marca um corpo que goza de si mesmo. Essa zona
de gozo remete ao para-além do Principio de Prazer. Os sujeitos autistas, através de suas
práticas com o corpo, tentam estabilizar sua relação com o acontecimento de corpo. Tentam
extrair algo do corpo que é invadido por um pleno de gozo.
As crianças autistas ensinam o que é o real, pois têm acesso a essa “dimensão
em que não falta nada, não há buracos e, portanto, não é possível extrair algo para colocar
no buraco. É isso que provoca os transtornos terríveis, a intensa angústia dessas crianças
autistas” (p.28-29). A fim de acalmar o gozo do acontecimento de corpo que invade o
sujeito, é preciso produzir um buraco para extrair algo do corpo e colocá-lo aí. Nesse
sentido, há uma dimensão de foraclusão do buraco, trauma do buraco (troumathisme).
O debate proposto sustenta que o sujeito autista pode encontrar um modo de
laço social, de estar no mundo, à diferença das propostas adaptativas comportamentalistas.
Assim, a direção do tratamento analítico com esses sujeitos visa, através do interesse pelas
contingências do acontecimento de corpo, que fixou um ponto de gozo, a favorecer um
afrouxamento desse ponto de fixação para ajudar no reposicionamento do gozo do sujeito,
ampliando seu mundo.
Laurent, Éric. “O que nos ensinam os autistas” - Carla Sá Freire

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