a salto - Museu da Emigração
Transcrição
a salto - Museu da Emigração
Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 “QUANDO OS PORTUGUESES PARTIAM A SALTO PARA FRANCA” A emigração para França vista por escritores portugueses M-Isabelle Vieira « L’art est fait pour troubler, la science rassure » Georges Braque A ideia desta comunicação surgiu depois de ter visto o filme do italiano Emanuele Crialese Golden Door (2006)[1], os documentários de José Vieira (Gente do Salto[2], 2005) e de ter ouvido o meu pai contar “a viagem” dele que ocorreu no ano de 1955. A passagem, a viagem clandestina, “o salto” [3] representa um momento importante da trajectória de um emigrante. É um período de transição entre un “cá” (conhecido) e um “lá” (desconhecido) que inspirou vários escritos. Se a passagem de fronteiras não figura na literatura francesa apesar da chegada maciça de clandestinos a França, ela está presente na literatura portuguesa. Em França, a viagem como tema verifica-se no cinema (O salto de Christian de Chalonge, 1966[4]), nos documentários ou em vários artigos de imprensa dos anos 60. Relativamente às ciências humanas e sociais também não nos pareceu haver análises de fundo quer seja em Portugal quer seja em França. Longe de representar uma temática obsoleta, remota e ultrapassada, hoje basta referir os passageiros clandestinos em barcos sobrelotados à porta do espaço Schengen para lembrar toda a actualidade do fenómeno. A imprensa portuguesa nos anos 60 apenas descrevia as condições terríveis da viagem clandestina, sempre criticando as autoridades francesas culpada do incentivo à saída de Portugal de um grande número de homens porque regularizavam os portugueses que chegavam sem documentos legais, ocultando as razões do fenómeno da emigração clandestina. A grande preocupação dos políticos era erradicar a hemorragia da saída de homens [5]. Por seu lado, a imprensa francesa dos anos 60 descreve “a chegada clandestina, o papel das redes, o tráfico de homens” mas raros são os artigos que “tratam do problema da migração dos trabalhadores ao nível europeu” [6]. Sabendo que em Portugal a censura[7] controlava a imprensa e que não eram bem-vindos temas como “emigração”, críticas ao sistema político, social ou 1 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 económico do país, todos os artigos publicados ou livros que saíram nos anos 60 (auge da emigração clandestina) retiveram toda a nossa atenção aguçando a nossa curiosidade. A censura prévia amordaçava os jornais mas também os livros, inclusivamente, após estarem em exposição e à venda nas livrarias, desencadeando situações perversas, ambíguas, arbitrárias, incompreensíveis, ou mesmo surpreendentes, obrigando os escritores e jornalistas à autocensura. José Cardoso Pires denunciando a censura afirmou que ela “fez-nos viver num país alienado”, Maria Teresa Horta ficou “marcada para sempre” e Luiz Francisco Rebello foi “civilmente assassinado”. Para mais, Manuel Ramos, redactor do Jornal de Notícias responde à pergunta “A emigração também era tabú para Salazar ?” salientando que : Nos anos 60 houve muita emigração. As pessoas não tinham condições de vida e emigravam. Em 27 de Agosto de 64 (veio a ordem) : “Prisão na Afurada de 40 indivíduos que pretendiam emigrar clandestinamente e apreensão de um barco – CORTAR”. Não se pode dar esta notícia. Quer dizer, os 40 indivíduos da Afurada arranjam um barquito, meteram-se no barquito que era para ir por aí fora, sabe-se lá até onde, não sei que orientações é que eles teriam para governar o barco. O que queriam era sair daqui para trabalhar. Isto da emigração, portanto nada[8]. Como escrever num país onde todo o livro publicado que versasse a realidade nacional do ponto de vista social ou político, fora dos moldes impostos pela ditadura, era proibido ou submetido a cortes ? Como escrever sobre a clandestinidade, “o salto”, a viagem clandestina se a própria temática era interdita ? Os escritores expondo-se a sanções, apreensões de livros e prisão, a literatura sobre “o salto” ou mais geralmente sobre a emigração foi escassa antes do 25 de Abril, apenas foi autorizado um romance de Nita Clímaco : A Salto (1967) enquanto outros textos como Histórias dramáticas da emigração de Waldemar Monteiro ou Emigração fatalidade irremediável foram proibidos. A autorização do livro de Nita Clímaco questiona as condições de publicação de livros e as motivações dos censores. Só depois da Revolução é que foram publicados romances com a temática da viagem clandestina além Pirenéus, a obra Eis uma história de Olga Gonçalves constituindo um exemplo entre outros, o texto Os dramas da emigração clandestina ficou na gaveta (escrito em 1963 só saindo em 1975) e a novela Cinco dias, cinco noites foi redigida 2 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 antes da Revolução e publicada em 1975. Vamos então tentar descobrir o que revelam as obras sobre a sociedade portuguesa mas também sobre os laços que a História mantem com a Literatura. A Clandestinidade : uma especificidade portuguesa ? Ser clandestino não foi um fenómeno que só ocorreu nos anos 60. Já se falava de passageiros clandestinos nos barcos de ida para o Brasil. O livro Emigração da colecção educativa, série H, N°2, publicado em 1956 no âmbito da Campanha Nacional de Educação de Adultos, tenta explicar o que é a emigração, através da história do Chico Valente que vai conversando com o Senhor Ferreira que tem a experiência da emigração, para saber o que significa emigrar legalmente, a diferença entre um invasor e um nómada, entre o colono e o emigrante, e conhecer as condições do embarque (nessa altura é quase sempre viagens de barco para países da América), o que acontece aos clandestinos (insistindo no registo criminal) concluindo : “Se queres sair de Portugal Continental, vai para Portugal Ultramarino. Se queres conhecer novas terras, vai para África. Se queres construir, cultivar, vencer na vida, vai para África[9].” E um manual de como ser “um bom português” e “um bom emigrante”. O discurso salazarista é claro : ser um bom emigrante é ser um colono. O Sr Ferreira até dá um exemplo de um italiano escondido no porão com destino ao Brasil porque não conseguiu documentos, sendo forçosamente “pessoa a contas com a justiça”, um criminoso. Mas a clandestinidade com dimensões de uma avalanche humana foi a característica da emigração portuguesa dos anos 60 para França. Jacques Hauser, chefe de redacção da revista Hommes et Migrations, escrevia num número especial sobre a imigração portuguesa : La plus importante communauté étrangère de ce pays est une clandestine. Entrée en France, avec sa valise en carton, après avoir fait le saut de deux frontières gardées par les policiers de deux dictatures, la voici aujourd’hui forte d’un million d’hommes, de femmes et d’enfants[10]… O historiador Yves Lequin em Histoire des étrangers et de l’immigration en France[11] no capítulo tratando dos Portugueses utiliza a palavra « raz-de- 3 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 marée portugais » (maremoto português) para descrever a emigração portuguesa. Em Portugal, Joel Serrão, na sua sondagem histórica intitulada A emigração portuguesa escreve : Ora, quando num fenómeno da importância nacional da emigração, acontece que, pelo menos 50 % dela se verificam no mais claro desrespeito da lei, de duas uma : ou a lei é inoperante, e necessita, portanto de ser alterada de acordo com a realidades, ou se quis (ou se foi obrigado a) dizer Não a um estado de coisas insuportável. Na verdade, torna-se preciso entender que largas centenas de milhares de emigrantes clandestinos (380 000 só no período de 1969 a 1973) quiseram (ou foram obrigados a) uma opção que é, em sentido lato, também de natureza política [12]. Yves Lequin chega à mesma conclusão: “Les Portugais, les hommes jeunes surtout, “votent avec leurs pieds” en choisissant de partir vers une France qui n’a pas comblé son déficit de main-d’œuvre[13]». Sair do país representava conscientemente ou inconscientemente um acto político que o regime quis ocultar cortando as notícias nos jornais. O salto : palavra exportada Eduardo Mayone Dias apontando as diferenças entre a emigração para Europa e para América sublinha que as “situações de clandestinidade são bastante mais comuns na Europa do que na América. Nos primeiros anos da emigração para França calculava-se que 80 % dos portugueses tinham chegado lá “a salto” ou com “passaporte de coelho”, como se dizia então.” [14] O que caracterizou a partida para a França, foi a passagem de fronteiras (duas) na grande maioria clandestinamente por via terrestre : é o salto [15]. É interessante notar que esta palavra portuguesa exportou-se : Christian de Chalonge, cineasta francês, deu este nome ao seu filme (O Salto, 1966). O Cartaz do filme explica : “O salto” c’est passer la frontière... clandestinement” (escrito em vermelho). Recentemente, em 2006, Yves Lequin, escreveu uma parte dedicada ao salto e intitulada “O salto” empregando a palavra portuguesa : O Salto Le départ vers la France est un moment difficile pour ces Portugais qui sont aussi des fugitifs, parce qu’il entraîne le franchissement de 4 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 deux frontières, dont l’une n’est pas limitrophe. « O salto » (« le saut »), c’est le moment du passage, toujours difficile, au point qu’on y risque sa vie. Pris en charge par des « passeurs », le long de filières plus ou moins sûres, les immigrants marchent tel un troupeau qui ignore où on le conduit, à travers les Pyrénées, à pied, en hiver. Il arrive qu’ils se cachent dans des cabanes pendant des jours, à moins que « le saut » se fasse à l’arrière d’un camion frigorifique, où ils peuvent se retrouver à plusieurs dizaines[16]. Yvan Gastaut também define « o salto » : “le saut au-dessus des Pyrénées” était le nom symbolique donné par les Portugais à leur voyage clandestin vers la France[17]. Quando uma língua estrangeira incorpora uma palavra que pertence a outro idioma esta detém uma força expressiva que não tem um equivalente suficientemente forte, sugestivo nem tradução que baste na língua que a adopta. “O salto”, como “a saudade” ou “o fado”, torna-se uma espeficidade portuguesa. Mas o que é realmente « O salto » ? A descrição nas obras de ciências humanas que citamos é reduzida a um ou dois parágrafos. Eleutério Gervásio em : A emigração acusa : Portugal à deriva, respondendo à pergunta : Como partiram ? indica : “Através dos Pirinéus a pé, de barco para alcançar a Espanha, em camiões frigoríficos, carros funerários, escondidos em fundos falsos de camionetas, ou pelos seus próprios meios. [18]” Os testemunhos e a literatura, não querendo substituir-se às ciências humanas e sociais, mas acompanhar os estudos históricos, sociológicos habitualmente reservados à temática migratória, vão permitir uma exploração do ser humano em deslocação com outros pontos de vista, utilizando muitas vezes dados da imprensa ou mesmo livros eruditos de sociologia ou história como documentação, enriquecendo a abordagem, passando do geral ao particular : o leitor identifica-se e partilha os sentimentos de personagens de carne e osso. Os testemunhos Antes do 25 de Abril, existem poucas obras sobre “O salto”. Nuno Rocha, publicou em 1963 no Diário Popular diversos artigos que reuniu em livro em 1965 com actualizações, intitulado: França : a emigração dolorosa. O jornalista disfarça-se de emigrante integrando a viagem de outros emigrantes (apercebe-se que alguns são ilegais misturados com legais) numa camioneta que sai de Portugal para chegar a Paris, com mudanças e várias peripécias. Ele 5 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 denuncia as condições de transportes, as injustiças, a exploração dos emigrantes. No prefácio, informa : “Foi no mês de Junho desse ano que vivi a emocionante e trágica gesta dos emigrantes – quando a saída em massa para França estava no auge sem que o país se apercebesse. Foi realmente a partir da publicação das minhas reportagens no Diário Popular que estalou o verniz dourado que encobria esse fenómeno tão significativo da vida portuguesa”, concluindo : “Este livro não é, pois, o romance que consagra o novo emigrante da França. E, acima de tudo, a obra que explica a emigração, é o documento histórico de um dado momento da vida nacional[19]”. A denúncia é tal que a publicação dos artigos e a seguir do livro sem ameaças de proibição da parte dos Serviços de Censura pode tornar suspeitos os elementos narrados. Qual foi a intenção ? Será que a censura se calou porque era inevitável que se soubesse ? Como é que o Nuno Rocha escapou à Censura, enquanto outros, como F. Ramos da Costa (Emigração: fatalidade irremediável[20], Lisboa, 1973, Cadernos República de 46 páginas), ou Waldemar Monteiro com As histórias dramáticas da emigração[21] (1969) e prefácio de Maria Lamas (traduzido para francês em 1974 com o título : Les emigrés portugais parlent, Casterman) foram proibidos ? A primavera caetanista não pareceu ter os efeitos esperados, a arbitrariedade parecendo a melhor arma para continuar a manter o povo sob controle. O segundo testemunho : Os Dramas da emigração clandestina de Florêncio Neto, escrito em 1963, mas só vindo ao público depois do 25 de Avril de 1975, esclarece as dificuldades em publicar livros com a temática da emigração e o autor com uma visão paternalista (“os nossos pobres emigrantes”) descortina as razões : “Está escrito [...] há uma dúzia de anos ; aguardei a oportunidade porque, com outros ventos, apesar de não alterar a verdade, havia um inferno chamado Caxias. [...] Passei por lá duas vezes”.[22] Neto relata “seguindo as declarações de Carlos, a quem deve os tópicos para o trabalho, porque casualmente se colocou perto da casa do autor” [23], adverte que não poderia enfiar a “carapuça de literato”, mas que é o “fotógrafo leal e fiel” [24], apostrofando muitas vezes o leitor (seu cúmplice) : “As 22 H 30, dessa noite [...] ia desenrolar-se um drama real e comovente, cujo drama nas mãos de um 6 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 Balzac, de um Victor Hugo, ou do nosso ilustre Eça de Queiroz, aos quais me vergo, daria motivo para um romance...”[25] Porque não é um romance mas um relato baseando-se nos testemunhos de Carlos (que fez várias tentativas de “salto” sendo as duas primeiras abortadas porque foi encarcerado pelos guardas espanhóis), de João e outros que conseguiram chegar a Paris, e na vivência do autor que lidou com portugueses recém-chegados, o livro informa sobre as trajectórias de cada um : “todos os personagens aqui referidos vivem. Apenas troquei seus nomes, bem como todas as localidades, onde se passaram os casos mais importantes aqui narrados”[26]. As boas intenções do autor e o humor e alegria que percorrem as páginas fazem da travessia uma aventura rocambolesca misturando “romance sentimental” com um happy end : “foram felizes e tiveram muitos filhos”, a “realidade ultrapassando a ficção”. Evocamos obras que foram publicadas, mas a grande maioria sofreu do lápis azul e muitas vezes nem sequer se iniciavam pesquisas sabendo que seria difícil publicar-se, toda uma parte dos estudos sociais ficaram mutilados ou inexistentes por não serem divulgados. Assim, Emigração e crise no nordeste transmontano de Modesto Navarro não pôde circular, enquanto “Emigração, problema multinacional” foi autorizado “porque não se diz nada de novo, nem se politiza a matéria” e Emigração e despovoamento de Teresa Abrantes e outros não pareceu uma leitura perigosa porque “é mais um estudo do que uma crítica” segundo o parecer do Censor. Porque as ciências sociais eram perseguidas pelo regime salazarista que as considerava uma forma velada do marxismo, só foi depois do 25 de Abril que os sociólogos se exprimiram. Vejamos agora a literatura igualmente submetida à Censura. A literatura A não ser Emigrantes de Ferreira de Castro ou a Selva versando a emigração para o Brasil, os escritores antes do 25 de Avril que tomaram por tema a emigração de massa dos anos 60 foram também pouco numerosos. Existem todavia alguns contos[27], o romance de Assis Esperança “Fronteiras” (1973) destacado “romance da emigração clandestina” e o livro de Nita Clímaco : A Salto (1967) que nos interessa devido ao título. A obra é um exemplo de 7 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 autorização pelos Serviços de Censura em 1/9/1967 (o relatório N° 8138 infelizmente não se encontra na Torre do Tombo), no entanto era interessante saber a motivação do Censor, já que todos os livros dela foram proibidos : Falsos preconceitos por imoralidade em 1964, Pigalle e O adolescente foram impedidos de circular no país em 1965 e 1966. Não há dúvida que o livro não foi censurado porque evoca um percurso negativo, a personagem principal (Toino) que emigrou a salto sofre um fracasso (não foi uma emigração de êxito) e reconhece no final do romance que “não pensa voltar, porque em Portugal está-se melhor” e que “quando um tipo se empenha para ir para França, convencido que parte para desenrascar a vida, depressa se convence que aquilo não é nenhum paraíso”[28]. A mensagem da história não tem ambiguidade : não vale a pena sair de Portugal, porque lá fora o que nos espera é uma vida muito mais difícil. O livro representou uma “pérola” para os censores porque não constituía um aliciante para ida das famílias junto dos emigrantes ou um incentivo para sair de Portugal, seguia o discurso salazarista de impedimento de saída de homens válidos úteis para ir à guerra colonial que estalou em 1961, evento que modificou a componente da emigração com desertores vindo engrossar a emigração económica. No romance, existem várias referências a artigos de France Soir, l’Aurore, le Monde, l’Express, Diario Popular o que reforça a veracidade dos acontecimentos que o Toino atravessa. O próprio episódio do salto ocupa só dois capítulos do livro (capítulos 5 e 6). Após a Revolução, criase um corpus bastante mais numeroso de literatura focando a emigração sem chegar à torrente que a promessa da liberdade fazia esperar, mas voltemos “ao salto” e às obras que o tomaram como propósito principal. O Salto na literatura portuguesa Salvo erro, só existem três textos literários que narram de maneira pormenorizada “o salto” que são do tamanho de novelas e que mostram um painel de diversas situações de passagem clandestina: 5 dias, 5 noites[29] descreve um percurso em tandem (passador/clandestino) de corpo a corpo com a natureza, assim como as relações que o par tece durante 5 dias, com sentimentos de desconfiança, de dúvida e de manipulação, a passagem 8 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 realizando-se de camioneta, a pé, e de barco; Eis uma história evoca “o salto” de massa com clandestinos apertados numa camioneta (logo uns 20 portugueses são envolvidos na passagem e finalmente, a peça de teatro de Alves Redol: Fronteira fechada[30] apresenta uma passagem insólita de 5 mulheres, o que se torna um facto original na medida em que as imagens da emigração são essencialmente masculinas e virís, a travessia efectuando-se a pé. Na primeira novela, trata-se de uma passagem individual por motivos políticos, nas últimas, a viagem é colectiva e envolve muitos clandestinos. Para a nossa análise, escolhemos o romance Eis uma história[31] por ter sido escrito e publicado depois do 25 de Abril em período de liberdade. Olga Gonçalves é conhecida por ter uma produção ficcional sobre a emigração [32], escreveu A floresta em Bremerhaven[33] onde evoca o regresso de uma família de emigrantes que residiram na Alemanha e Este Verão o emigrante là-bas[34], onde a autora vai ao encontro dos emigrantes de França, em Paris ou na região parisiense. Eis uma história relata a viagem clandestina de 20 homens numa camioneta em 1965. A escritora, fascinada pelo cinema, alterna sequências de diálogos e sequências cinematográficas com descrições e movimentos de câmara (travelling e flash-back), estabelecendo um diálogo entre cinema e literatura. Houve sempre uma atracção dos escritores pelo cinema e dos cineastas pela escrita. Logo de início, ela afirma a sua concepção da literatura tecendo laços entre a pequena história ( “h” minúscula ) e a grande História (“H” maiúscula) e a sua obsessão pela verdade : “Escrever sobre a verdade sempre me fez sentir livre”[35]. A acção decorre de noite, numa camioneta, focando ora a cabine do veículo onde se instalaram os dois passadores, ora a parte traseira fechada transportando 20 homens que desenrolam, durante toda a noite até ao amanhecer, os medos, as esperanças, o passado, as mulheres e os filhos que deixaram. O que une as personagens é o “desejo do salto”, os motivos da partida sendo essencialmente a necessidade : “a precisão que nos aperta”, “Ninguém está bem quando a miséria reina”, “ a barriga vazia”. O tempo no espaço restrito passa-se contando histórias, anedotas, lendas e factos históricos até que o nervosismo e a impaciência se apoderem dos homens 9 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 devido à promiscuidade e às condições da viagem atingindo o ponto máximo numa zaragata. Ao nascer do dia, os passadores chegando ao destino indicam aos clandestinos para atravessarem uma ponte, que “para além” já é a França. Este fait divers onde os passadores abandonam e enganam os clandestinos porque do lado da ponte não é a França mais uma aldeia do Concelho de Bragança com o mesmo nome, levando a detenções, regressos à terra ou continuação da viagem a monte, revela com intensidade uma travessia que terminou mal mas que passou à posteridade por ser matéria de romance. As últimas frases de Eis uma história são : E muitos se foram para longe, foram à vida. Olhe que não foi nem um nem dois, foram aos miles. Por todo o Portugal foram aos miles. A História vai receber estas páginas. É longínquo o resplendor dos Santos. E a tempestade das almas juntar-lhes-á uma rosa branca para que nasçam mais sentimentos de amor[36]. Olga Gonçalves contribui com este texto ao diálogo entre História e Literatura, fazendo suas as palavras de Paul Veyne quando define a História : “un roman vrai”. A Emigração dos anos 60 não teve muita expressão na literatura, sendo proibida pela Censura e um tema tabú na sociedade porque cristalizava a humilhação portuguesa (contraste entre um país com um império colonial mas que não pode sustentar o povo obrigado a procurar meios de sobrevivência para além das fronteiras portuguesas). Em período de liberdade, alguns escritores tentaram dar voz e a palavra ao emigrante, outros quiseram testemunhar e redigiram autobiografias. Sãos relatos importantes que juntando-se às ciências humanas e sociais, à fotografia, à pintura, ao cinema (por exemplo Ganhar a vida de João Canijo) dão um leque completo e aberto a incorporar na memória da história da emigração. A literatura e a arte em geral são pedras necessárias à construção do edifício da memória e da história da emigração, outras vias de apreensão da realidade, outros meios de contar, de transmitir, a ficção constituindo também uma via real para descobrir, revelar e conhecer o homem e a humanidade. 10 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 [1] O filme foi premiado com o Leão de prata da revelação em Veneza (63° Mostra – 2006). Relata a emigração italiana para os Estados Unidos com personagens camponesas que deixam a terra na esperança de melhorarem a vida. A viagem de barco ocupa uma parte essencial do filme que acaba com a chegada dos emigrantes a Illis Island, derradeira paragem onde sofrem uma última selecção (escolha de corpos e espíritos sãos) antes de galgarem o solo americano. [2] Vieira, José : Gens du salto/Gente do salto, Mémoires de Portugais qui ont fui vers la France dans les années 60 / Memórias de Portugueses que fugiram para França nos anos 60, La Huit Production, 2 DVD, Paris, 2005. [3] “O salto” : passagem da fronteira clandestinamente, palavra ausente dos dicionários com este significado, “dar o salto” existe no entanto no Dicionário de expressões correntes de Orlando Neves (Editorial Notícias, 2° edição, Lisboa, 2000) significa “fugir”. [4] O filme obteve o prémio Jean Vigo em 1967 e o Prémio do Ofício Internacional do Cinema Católico em Veneza em 1967. [5] Hommes et Migrations dedicado a «L’immigration portugaise », n°105, Paris, s/d, p. 201. [6] Ibidem, p. 201. [7] Para aprofundar o funcionamento da censura, ver os estudos de Alberto Arons de Carvalho : A censura e as leis de imprensa, Colecção Que País ? Seara Nova, 1973 ; de César Príncipe : Os segredos da censura, 3° edição, Editorial Caminho, 1994 ; de Cândido de Azevedo : A Censura de Salazar e Marcelo Caetano – Imprensa, Teatro, Cinema, Televisão, Radiodifusão, Livro, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, e Mutiladas e proibidas – Para a História da Censura Literária em Portugal nos Tempos do Estado Novo, Editorial Caminho, Lisboa, 1997. [8] Isabel Forte : A Censura de Salazar no Jornal de Notícias, Colecção Comunicação, Minerva Coimbra, 2000, p. 131. [9] Assumpção, João Carlos Beckert d’ : Emigração, Colecção educativa, Série H, Número 2, Plano de Educação popular, Campanha Nacional de Educação de Adultos, Coimbra, 1956, p. 169. [10] Hommes et Migrations : L’immigration portugaise en France, N° 1123, Juin-Juillet 1989, p.5. [11] Lequin, Yves (sous la direction de) : Histoire des étrangers et de l’immigration en France, Larousse, Bibliothèque historique, 2006, p. 394. [12] Serrão, Joel : A emigração portuguesa, Livros Horizonte, Colecção Horizonte n°12, 4a edição, 1982, p. 65. [13] Op.cit. p. 394. http://www.portugal-linha.pt/opinião/MDias/md3.html (01/08/2007), “América e Europa : duas maneiras de estar na emigração”. Existe uma “formato papel” menos desenvolvida deste artigo em Dias, Eduardo Mayone : Miscelânia Lusalandesa, Edições Cosmos, Lisboa, 1997, p.5. [15] Como me foi assinalado após a minha comunicação em Fafe por Maria Beatriz RochaTrindade, Manuel Dias e Marie-Christine Volovitch-Tavares, a palavra “salto” já era empregada nos Açores e Eduardo Mayone Dias no artigo infra citado, na nota 10, indica que “a expressão “a salto” parece ter raiz açoriana. De facto, nos primeiros anos deste século muitos ilhéus emigraram clandestinamente, saltando de uma rocha para o mar e nadando, com uma trouxa à cabeça, para navios estrangeiros que os esperavam a certa distânca da costa”. [16] Op. cit. p. 394. [17] Gastaut Yvan : L’immigration et l’opinion en France sous la Vème République, Paris, Seuil, [14] 2000, p. 95. [18] Gervásio, Eleutério : A emigração acusa : Portugal à deriva, Lisboa, s/d, p.35. Rocha, Nuno : França, a emigração dolorosa, Editora Ulisseia, Colecção Vária n°4, 1965, p.11. [20] O relatório de proibição emanando dos Serviços da Direcção-Geral da Informação é o seguinte : « Este livro analisa o fenómeno da emigração, explicando esta pela política de opressão do governo (Págs. 15, 21, 28 e 29). Nas págs 22 e 23 ataca fortemente a guerra que o País trava no Ultramar. Parece, assim, integrada a prática dos crimes punidos nos art°s. 141° e 184° do Código Penal, pelo que a circulação do livro em referência é proibido pelo art° 63°, n°3, do Decreto-Lei ° 150/72. Parece reunidos os requisitos exigidos no art° 121°, n°2, do mesmo diploma. CONCLUINDO : Sou do parecer que se determine a apreensão provisória do livro em referência, solicitando-se à Direcção-Geral de Segurança a instauração do [19] 11 Museu da Emigração e das Comunidades (FAFE) - Seminário Internacional - Memórias e Migrações - 5 a 8 de Julho de 2007 procedimento criminal adequado. Lisboa, 3 de Outubro de 1973”, o despacho datando do 2511-1973. (Torre do Tombo, SNI cx 630). [21] Um primeiro relátorio n° 8772 data de 25 de Abril de 1970 e desenvolve-se em 7 pontos: « 1. O livro em causa é constituido por uma série de contos todos eles versando o problema da emigração portuguesa em França. 2. O seu autor refere que todos tem um fundo de verdade. 3. Os contos parecem – do ponto de vista literário seguir a linha moderna, explorando com a miséria do emigrante português legal ou clandestino. 4. Duma maneira geral os contos apresentados não têm inconveniente de maior e, até, se a difusão for grande alucidará muita gente sobre o “ELDORADO ESTRANGEIRO”, porventura servindo de travão à emigração e à exploração do emigrante. 5. Tem todavia um conto – o segundo – “VIAGEM DO SILÊNCIO” – que é uma propaganda à CGT, “o sindicato comunista de França”, o qual poderia ainda aceitarse no âmbito do livro. Mas o que mais choca são as considerações que o autor faz no conto “QUEM TIVER UMA BOA ESTRELA” a pág. 185 e 186 onde apresenta o emigrante como um negócio do Governo... “A entrada de divisas em Portugal permite a continuação das guerras colonias e de outras aventuras...” ... “que o emigrante era uma consequência de sociedades erradamente dirigidas, de uma ordem económica e social que não visava o bem comum...” O penúltimo conto – O MEDO – insinua perseguições da Polícia Portuguesa a certos emigrantes em França. 6. Ponderadas as possíveis vantagens indicadas em 4. com os reais inconvenientes apontados em 5. julga-se de proibir este livro por inconveniência política. 7. Submete-se o assunto à consideração superior.” (Torre do Tombo, SNI cx 526). A editora Prelo pediu uma revisão e apesar do parecer favorável do novo leitor concluindo ao levantamento da proibição de circulação no país, em 18 de Setembro 1972, o livro manter-se-á proibido por despacho do 22/2/73, a decisão “podendo ser alterada se os passos que a provocaram não subsistirem na obra”. [22] Neto, Florêncio : Os dramas da emigração clandestina, 1963, Atlântida Editora, Coimbra, 1975, p. 10. [23] Ibidem, p. 30. [24] Ibidem, p. 40. [25] Ibidem, p. 49. [26] Ibidem, p. 150. [27] A obra de Maria do Pilar Figueiredo e de Urbano Tavares Rodrigues dos anos 50-60. [28] Clímaco, Nita : A salto, Edição da autora, Lisboa, Paris, 1967, p. 181. [29] Tiago, Manuel : 5 dias, 5 noites, Edições Avante, Colecção Resistência, Lisboa, 1975 [30] Redol, Alves : Fronteira fechada, Teatro III, 1972. [31] Gonçalves, Olga : Eis uma história, Caminho, O campo da Palavra,Lisboa, 1992. Maria Lúcia Lepecki interpreta em “propriedade colectiva” o romance Eis uma história, artigo seguindo o texto p. 69, focando as personagens, o léxico, o cinema versus literatura. [32] Ver Besse, Maria Graciete : Os limites da alteridade na ficção de Olga Gonçalves, Campos das letras, Porto, 2000, (capítulos “O espaço da emigração” p. 17 e “O espaço do cinema” p. 77) ; o artigo de Maria Graciete Besse : “Olga Gonçalves e a intimidade da emigração” in Latitudes, N°5, Avril/mai 1999, interpretando também Eis uma história. [33] Gonçalves, Olga : A floresta em Bremerhaven, Livraria Bertrand, Lisboa., 2ª edição 1980, (1ª edição 1975). O romance obteve o prémio Ricardo Malheiros em 1976 da Academia das Ciências de Lisboa. [34] Gonçalves, Olga : Este verão o emigrante là-bas, Moraes Editores, Lisboa, 1978. [35] Gonçalves, Olga : Eis uma história, Caminho, O campo da Palavra, Lisboa, 1992, p. 9. [36] Ibidem, p. 65-66. 12