Leer texto completo
Transcrição
Leer texto completo
A 40 anos da vitória do povo do Vietname A Via Ho Chi Minh: epopeia e metáfora da luta revolucionária A Via Ho Chi Minh: epopeia e metáfora da luta revolucionária Em cada grande confronto da história pode haver aspectos específicos que, com o passar dos anos, tendam a ser esquecidos ou diluída a sua importância 1. É nesse sentido que se aborda aqui a épica história da Cordilheira Truong Son ou, como ficou conhecida, da Via Ho Chi Minh - designação que o próprio imperialismo lhe atribuiu a partir de meados dos anos 60 do séc. XX. Não apenas como excepcional epopeia histórica em si mas também, de algum modo, como notável metáfora daquilo que qualquer combate revolucionário requer: teoria revolucionária, imaginação, organização, inteligência, disciplina, iniciativa, persistência, mobilização do povo, confiança na vitória. Povo, topografia e história: a cordilheira Truong Son A configuração geográfica do Vietname é a de um território muito extenso, alargado nos extremos Norte e Sul e estreito na zona central: mais de dois mil quilómetros de extensão no sentido Norte/Sul e, na parte mais estreita, cerca de cinquenta quilómetros no sentido Este/Oeste. A Cordilheira Truong Son percorre o Vietname em praticamente toda a extensão e acompanha as fronteiras com o Laos e o Camboja. Historicamente, toda a ocupação estrangeira de território vietnamita procurou sempre dividir o país em dois, para mais facilmente ocupar o Norte e o Sul. É essa uma das razões fundamentais da decisiva importância estratégica da Cordilheira Truong Son: foi ela que permitiu manter uma ligação quando o ocupante estava em condições de bloquear a planície litoral e a via marítima. A reocupação francesa após a 2ª Guerra Mundial Assim sucedeu quando, logo após o final da 2ª Guerra a França, com o apoio da Grã-Bretanha e dos EUA, se lança à reocupação colonial. Na Conferência de Potsdam (Julho/Agosto de 1945) fora acordada a separação temporária do território designado como Indochina no paralelo 16, de modo a que os ocupantes japoneses se rendessem à Grã-Bretanha no Sul e à China no Norte. Em Setembro desse ano Ho Chi Minh (que em 1941 impulsionara a criação do movimento revolucionário de libertação nacional Viet Minh, abreviatura de Việt Nam Ðộc Lập Ðồng Minh Hội, "Liga pela Independência do Vietname") proclama a República Democrática do Vietname (RPV). No mesmo mês desembarcam em Saigão tropas inglesas seguidas, em Outubro, por 35 mil tropas francesas. Em 1946 a França, que recusara reconhecer a RPV, proclama a República da Cochinchina, cujo território corresponde ao sul do Vietname. No mesmo ano lança-se à ocupação de todo o território: bombardeia Haiphong, ocupa Hanói. Em 1949 instala no sul o “imperador” Bao Dai, o mesmo fantoche que servira os ocupantes japoneses. Desencadeia operações militares contra o Viet Minh. Este responde tanto com acções convencionais como com acções de guerrilha. E, desde o início, o exército popular funde-se com o povo. A historiografia burguesa designa o período 1946-1954 “a 1ª guerra da Indochina”, distinguindo-a da “2ª guerra”, em que os EUA intervêm directamente. Mas a realidade é a da intervenção do imperialismo norte-americano desde o início da década de 1950, ano em que inicia também a agressão contra a Coreia. Apoia, financia e abastece as tropas francesas. E estas, como Ho Chi Minh observa em 1952, “pagam um preço muito elevado por essa ajuda. Nas áreas controladas pelo inimigo, o capitalismo francês é varrido pelo capitalismo norteamericano. Interesses norte-americanos como os da Petrol Oil Corporation, da Caltex Oil Corporation, da Bethlehem Steel Corporation, da Florid Phosphate Corporation, e outras, monopolizam a borracha, os minérios e outros recursos naturais do nosso país. Mercadorias norte-americanas inundam o mercado. A imprensa reaccionária francesa, em particular o Le Monde, é melancolicamente obrigada a reconhecer que o capitalismo francês está a ceder o lugar ao capitalismo norte-americano”. A “2ª guerra da Indochina” serve interesses que já estão no terreno durante a “1ª”2. É nestes anos da ocupação francesa que a Cordilheira Truong Son começa a constituir-se como eixo estratégico fundamental da resistência do povo vietnamita. Grupos armados do sul empreendem o trajecto para norte para aí receberem directivas do governo clandestino (durante oito anos obrigado a esconder-se na floresta) e transportarem para sul armas, munições, protótipos de armamento e de minas para posterior fabrico, explosivos, medicamentos. Os trilhos que seguem são em alguns casos seculares, vias primitivas de comércio na região. O percurso é árduo: a cordilheira, que na vertente ocidental tem um declive suave, tem encostas abruptas na vertente oriental. Cerca de duzentos rios e ribeiros sulcam profundamente as encostas e, durante a estação das chuvas, as cheias são de grande violência e caudal. Acima dos 800 metros existe uma densa floresta, cujas árvores de diferentes espécies geram uma tripla cobertura de folhagem. Estas adversas condições naturais irão revelar-se, todavia, aspectos que tornarão inexpugnável a Via Ho Chi Minh. A derrota do colonialismo francês A derrota dos franceses na batalha de Dien Bien Phu (Março/Maio de 1954) findou o ciclo da colonização francesa. Constituiu (Martin Windrow) “a primeira situação em que um movimento de independência nacional não-europeu evolui de grupos de guerrilha para um exército organizado e equipado convencionalmente, capaz de derrotar um ocupante ocidental numa batalha territorial”. As tropas coloniais francesas, que tinham travado batalhas convencionais em 1950 e 1951 em que se gabavam de ter saído vitoriosas, subestimaram e não compreenderam o engenho e a força do adversário na logística e no combate. Foram derrotadas na batalha em que julgavam ir atingir duramente o exército das forças populares vietnamitas. A capacidade estratégica das forças Viet Minh colhe de surpresa o ocupante. O mesmo sucederá posteriormente na luta contra os EUA. O papel da Cordilheira Truong San consolida-se no período seguinte. A Conferência de Genebra (1954), que se inicia no dia seguinte à vitória de Dien Bien Phu, constitui um reconhecimento de facto da República Popular do Vietnam, mas mantém a divisão (agora pelo paralelo 17) em duas zonas. Essa divisão, formulada como temporária, era aceite pela RPV, uma vez que era previsto um processo de reunificação aprovado por via eleitoral no prazo de dois anos. Tanto os EUA como o regime fantoche instalado pelos franceses no Sul rejeitam essa perspectiva, além do mais por terem consciência de que também no Sul é esmagador o apoio ao Viet Minh. Em vez dessa eleição o primeiro-ministro entretanto instalado no sul pelos EUA, Ngo Din Diem, promove em Outubro de 1955 um “referendo”, cujo resultado é tão fraudulento que por exemplo em Saigão tem mais 150 mil votos do que o número de eleitores recenseados. Segue-se uma repressão selvagem (assessorada pela CIA) contra o Viet Minh, com milhares de vítimas e prisioneiros. A partir de 1959 começa a estruturar-se a resistência armada das forças patrióticas no sul. A luta de libertação nacional entra numa nova fase. “Os combatentes caminham silenciosamente ao longo da encosta oriental do Truong San. A cada etapa, uma pequena unidade separa-se do destacamento para enveredar por um caminho transversal em plena floresta. A coluna é assim repartida em diversas etapas distantes umas das outras um dia de marcha. Em cada etapa são construídos abrigos, discretamente encostados à base das árvores que os escondem da observação aérea. São de facto cabanas sobre estacas, em número nunca superior a três. À noite, quatro ou cinco combatentes dormem no pavimento, dois ou três mais balançam em redes por cima deles. E por baixo do pavimento há ainda redes suspensas das estacas. Dia após dia, as unidades de carregadores avançam etapa a etapa, transportando às costas caixas de munições, espingardas cuidadosamente embrulhadas. Uns cinquenta quilos cada um. Alguns chegam a oitenta e mesmo aos cem. Com tudo o que têm de percorrer de desfiladeiros e regatos! Para guardar segredo, e apesar dos seus pesados fardos, caminham o mais levemente possível, evitam desalinhar a erva, e o que caminha atrás procura colocar os pés onde pisou o que o precede, para não deixar um rasto visível. À saída de um regato o que caminha à frente coloca os pés sobre um pedaço de nylon que colocou na margem, que será recolhido pelo que fecha a marcha. Dessa forma, e apesar das múltiplas passagens, nenhum traço fica marcado. Depois se verificará que o inimigo não deu conta de nada. […] Este trilho invisível tinha um ponto perigoso. Era na altura de passar a Estrada nº 9 de Khe Sanh ao Baixo Laos, via estratégica fortemente guardada e constantemente percorrida por patrulhas inimigas. As nossas colunas de transporte passavam-na habitualmente ao cair da noite, por volta da meia-noite ou antes do alvorecer. Homens colocados à beira da estrada relatavam por via telefónica a situação ao chefe da coluna que, na altura mais favorável, dava a indicação de avançar. O ponto de passagem situava-se entre dois postos inimigos, por vezes tão próximo deles que os nossos combatentes podiam ouvir as vozes dos homens que lá se encontravam. Para não deixar marcas de pegadas na estrada asfaltada os nossos carregadores caminhavam por um aqueduto que tinham descoberto por baixo da estrada. Saindo do outro lado deparavam com a nascente do rio Tach Han. Uma minúscula piroga, oculta entre os juncos, ajudava-os a atravessar o pequeno curso de água com as suas preciosas cargas. Feita a entrega das mercadorias regressavam à base, deixando aos seus camaradas do Sul o cuidado de encaminhar o material até à frente de combate.”3 O trajecto pela cordilheira é nessa altura tão demorado que uma coluna que o percorra em toda a extensão sofrerá necessariamente os efeitos da estação seca e da estação das chuvas. Em 1959, no início da chamada “etapa dos transportes rudimentares” (1959-1964), a viagem demora seis meses. É aqui necessário precisar que a “Via Ho Chi Minh” não é um trilho único mas, sobretudo nesta fase, uma rede de vias e percursos que tira partido de todas as condições naturais existentes, incluindo os cursos de água, que tanto são utilizados como via de transporte fluvial como os seus leitos são mais tarde utilizados como vias de tráfego de viaturas. Os meios de transporte e de tracção ancestrais continuam a ser utilizados, incluindo elefantes, búfalos, cavalos e burros (oriundos da Mongólia). Mas este é o período em que entram em actividade meios mecânicos, as bicicletas de transporte. “Os trilhos vão sendo alargados, e vemos surgir as bicicletas modificadas para o transporte de carga. As famosas bicicletas-transportadoras que tinham assegurado o reabastecimento das nossas tropas quando da batalha de Dien Bien Phu são recolocadas ao serviço para apoiar a nova resistência. O rendimento dos transportes é desse modo triplicado ou quadruplicado, cada bicicleta podendo transportar de 100 a 150 quilos, e deslocando-se uma vez e meia mais rapidamente do que um homem a pé. Na época de Dien Bien Phu, Mai Van Thang tinha transportado até 330 quilos de munições na sua bicicleta reforçada. Este record vai ser batido por vários carregadores da Truong Son, dos quais o mais célebre, Nguyen Diên, conseguiu em 1964 – ou seja dez anos depois de Dien Bien Phu - transportar 420 quilos. Com estas bicicletas tão frágeis, os combatentes da Cordilheira fizeram prodígios. A bicicleta Favorit nº 20.220, oferta do povo checoslovaco, encaminhou para a frente de combate, em dois anos, 100 toneladas de material.”4 O imperialismo norte-americano instala-se militarmente Os EUA, que desde o início da década de 1950 apoiavam as tropas colonialistas francesas e que tinham já tido intervenção militar directa, nomeadamente com bombardeiros B52 na batalha de Dien Bien Phu, intervêm cada vez mais no Sul como potência ocupante. Primeiro com “ajuda militar”, com “conselheiros militares” para treinar o exército de mercenários de Ngo Din Diem5 e com a presença de unidades da marinha. A partir de 1961 com tropas instaladas e com intervenção activa. E ainda com agentes da CIA infiltrados no Norte e no Laos. Conscientes do grande apoio popular ao Viet Minh e do total isolamento do corrupto governo fantoche que sustentavam, prepararam uma guerra de larga escala que não só consolidasse a sua presença no Sul mas conduzisse à destruição da RPV. Tal como os colonialistas franceses, julgaram que uma superioridade esmagadora em armamento e efectivos seria suficiente para vencer essa guerra em poucos meses. Primeiro com a “guerra-especial”, com tropas vietnamitas e armas norte-americanas, nomeadamente milhares de aviões e helicópteros. Depois com a mobilização directa de centenas de milhares de tropas norte-americanas (mas não só: também da Austrália, Nova Zelândia, Filipinas, Tailândia, Taiwan, Coreia do Sul), com o recurso a bárbaros meios de destruição física e química. Recurso que se intensificou à medida que o imperialismo constatava não só a impossibilidade da vitória rápida que inicialmente julgara possível mas também a perspectiva da derrota. A Frente de Libertação Nacional (FLN), constituída em Dezembro de 1960, assume a direcção político-militar da resistência no sul. A Cordilheira Truong Son ganha um novo papel estratégico, acentuado pela situação de bloqueio naval e pela instalação, com o apoio dos EUA, de um poder hostil no Laos. Já em 1959 fora constituída uma unidade – o Grupo de Transportes 559 – para a manutenção e reforço do sistema de transportes. As funções dessa via eram agora muito mais exigentes e complexas: apoio logístico, transporte e depósito em reserva de alimentos, armamento e munições, rede de comunicações, hospitais de campanha e transporte de doentes e feridos para Norte. E também apoio às tarefas de melhoria das condições económicas e culturais das populações que sempre acompanharam a organização e acção militar, nomeadamente as campanhas de alfabetização. Bombardeada a partir de 1964, a pista teve de ser reforçada com uma rede de baterias antiaéreas, elas próprias requerendo, portanto, uma logística própria. “Se no decurso do período 1959-1964 a via Truong Son não era mais do que um sistema de trilhos que o combatente a pé percorria com a sua carga às costas ou empurrando a bicicleta de carga, a partir de 1965 ela tornou-se uma via recorrível crivada de crateras de bomba sobre a qual circulam veículos de transporte cuidadosamente camuflados. Os primeiros veículos a franquear o célebre desfiladeiro “Porta do Céu” para enveredarem pela via do Truong Son eram vetustos GAZ que tinham prestado serviço, dez anos antes, na batalha de Dien Bien Phu. Vieram depois os poderosos ZIL soviéticos de seis toneladas e diversos outros pesos-pesados oriundos de outros países socialistas. Os aviões dos EUA encarniçavam-se sobre as colunas. O menor traço de pneus dava lugar a chuvas de bombas que por vezes destruíam uma floresta inteira. E o mesmo sucedia se a mais pequena luz fosse vislumbrada através da folhagem. Os pontos nevrálgicos eram sistematicamente bombardeados. Um exemplo era Xeng Phan. É um desfiladeiro em estreitos lacetes, onde a estrada balança sobre profundas ravinas. Os sapadores verificaram que, entre 1965 e 1972, os 2.000 metros que constituem a parte principal do desfiladeiro recebiam em alguns meses mais de 21 mil bombas de grande calibre das quais 4 mil de espoleta magnética, ou seja uma média diária de 700 bombas (uma a cada dois minutos) sem contar os rockets, os obuses de 20mm, as minais armadilhadas…”6 A “Via Ho chi Minh” São os estrategas imperialistas que, em 1966, cunham a designação “Via Ho Chi Minh”. Tinham compreendido a sua importância. Dos oito milhões de toneladas de bombas que lançaram em toda a guerra (quatro vezes o total lançado no decurso da 2ª guerra mundial), três milhões foram lançados ao longo da Truong Son entre 1965 e 1972. É sobre as suas florestas que é lançada boa parte dos desfolhantes químicos7 com que a Dow Chemical e a Monsanto contribuíram para o criminoso esforço de guerra imperialista. Num relatório de 19678 o general Vo Nguyen Giap escreve: «Graças a termos activamente protegido e desenvolvido comunicações e transportes conseguimos dar resposta satisfatória às solicitações da frente de combate, e também às solicitações da construção económica, do desenvolvimento cultural e da vida do povo. Os nossos povos superaram todas as dificuldades e privações e não se pouparam a sacrifícios para assegurar a continuidade das comunicações e dos transportes com o objectivo de transportar uma ampla quantidade de recursos à frente de combate e apoiar a frente de combate de forma eficaz e pontual. Isto constitui uma façanha de importante significado estratégico. Esta façanha derrotou a pérfida intenção dos imperialistas dos EUA de criarem obstáculos às nossas comunicações, esperando dessa forma impedir o apoio da grande retaguarda à grande frente de combate”9. Ainda que, compreensivelmente, não a nomeie, é óbvio que Giap se refere, antes de tudo, à Truong Son. É significativo que aponte objectivos militares, económicos, culturais e de bem-estar do povo a essa via estratégica. A guerra de libertação em nenhum momento se travou exclusivamente no plano militar. E reside aí a razão fundamental da sua vitória. Os serviços de informações imperialistas estimavam, em 1966, que existiriam na Truong Son 1.000 km de via transitável por veículos pesados. No ano seguinte, estimavam o triplo. É possível que, também aqui, subestimassem o adversário. Em 1971 havia 10.000 quilómetros de vias, entre os trajectos principais e os secundários, dispostos em “espinha de peixe” ao longo da cordilheira. O engenho dos construtores multiplicava as soluções: a corrente das ribeiras era utilizada para deslocar bidons de combustível e mantimentos, ao mesmo tempo que o leito dos cursos de água proporcionava, na estação seca, percursos transitáveis. O trajecto, que demorava 6 meses em 1959, demorava 6 semanas em 1968. Em 1970 existiam não apenas vias pavimentadas e seguras mesmo no período das chuvas, como também um sólido de sistema de defesa (terrestre e antiaérea) e um oleoduto em toda a sua extensão. “No final de 1972, as tropas da cordilheira dominavam as vias tanto de dia como de noite. As colunas já não se deslocavam por estafeta, mas faziam um só percurso desde as retaguardas no norte até às diferentes frentes. […] O volume dos reabastecimentos aumentava de forma notável, inclinando a balança da correlação de forças para o lado dos patriotas vietnamitas.”10 Em 1973 a via tinha duas faixas pavimentadas a gravilha, em 1974 tinha quatro. Solidamente apoiada na Truong Son, a vitória aproximava-se. Um feito único em todos os aspectos A Truong Son é um feito único em todos os aspectos, desde os político-militares até à sua engenharia e manutenção, capaz de resistir a incessantes e devastadores bombardeamentos. E em todos esses aspectos se combina o rigor e esclarecimento da orientação geral com a permanente iniciativa criativa e acção diária dos milhares de quadros nela envolvidos. Muitos historiadores burgueses reconhecem que uma das fraquezas das forças ocupantes residiu na incapacidade para compreender o povo vietnamita. Mas essa fraqueza, mais do que cultural, é ideológica. Giap identifica-a: “a teoria militar do marxismo-leninismo indica que o poder de uma força revolucionária não deve ser medido apenas pelo número dos seus efectivos. A quantidade é necessária mas, na base de uma certa quantidade, a qualidade desempenha um papel decisivo. O problema da melhoria da qualidade constitui uma preciosa tradição e uma grande experiência das nossas forças armadas populares. […] As orientações no sentido da formação das tropas para alcançar vitórias, da formação de oficiais e da melhoria dos soldados, e no sentido da reeducação política e militar ajudaram de forma muito relevante as Forças Armadas Populares em todas as tarefas de combate no decurso da resistência antifrancesa. […] A lição fundamental do povo e do exército do Sul, que estão a colocar em acção uma força de alta qualidade para derrotar um inimigo que é numericamente superior e que está equipado com armas mais poderosas, encoraja-nos a lutar incessantemente e a melhorar a qualidade das Forças Armadas Populares. […] “Na actual resistência nacional contra os EUA, não dispomos de tantos efectivos nem de armas modernas como as que os imperialistas e os seus lacaios possuem; e ainda assim temo-los derrotado”. […] “A estratégia e a táctica do nosso povo desorientou radicalmente o ponto de vista da doutrina militar burguesa no que diz respeito ao equilíbrio de forças entre ambos os lados, e fez com que a concepção imperialista se orientasse no sentido de se apoiar sobre o armamento a uma escala de total falhanço: A estratégia e a táctica do nosso povo empurraram o inimigo para uma situação em que as suas forças se revelam insuficientes embora sejam numerosas. Em que é lento, embora possua uma elevada mobilidade. Em que não consegue acumular força, seja na ofensiva seja na defensiva, embora disponha de grandes quantidades de aviões, peças de artilharia e veículos pesados11.” Um significado que ultrapassa a teoria militar As palavras de Vo Nguyen Giap têm um alcance que supera a teoria militar. Em muitos aspectos, apontam lições que toda a luta revolucionária deve tomar em conta: “Pode um pequeno país, que se apoia essencialmente sobre as próprias forças, derrotar a guerra de agressão por parte dos imperialistas dos EUA, os arqui-imperialistas que possuem tão grande poder económico e militar? É essa a questão candente do nosso tempo. O povo vietnamita vem respondendo a essa questão com as suas gloriosas vitórias. Estas vitórias são o grande contributo que o povo vietnamita dá aos povos de todo o mundo 12”, escreve Giap em 1967, antes ainda da decisiva ofensiva do Tet em 1968, e a sete anos da tomada de Saigão. E sublinha: “A revolução é a tarefa das massas. Ninguém pode substituir-se ao nosso povo na tarefa de levar a cabo a resistência que recuperará a independência e a liberdade para a pátria vietnamita. Apenas o nosso povo pode decidir do seu destino13.” Nos 40 anos desde a grande vitória do povo vietnamita muito mudou na situação mundial. Pode parecer hoje ainda mais desigual a relação de forças na luta dos povos pela independência, a liberdade e o progresso. Podem parecer ainda mais árduas as condições do combate. Mas a vitória de um pequeno povo contra a maior potência imperialista permanece como uma confirmação de que é nos povos, e não no poder do imperialismo, que reside a força que move a história. A via Ho chi Minh brilha como fulgurante metáfora do combate a travar. Na persistência revolucionária contra todos os obstáculos. Na organização, na criatividade e na iniciativa combativa das massas. No papel do Partido Comunista e da sua teoria, o marxismoleninismo. Na soma fraterna de indivíduos verdadeiramente humanos numa grande causa colectivamente construída. 1 O esquecimento não é o único percalço possível. A banalização também o é. Nos dias de hoje, percorrer a “Via Ho Chi Minh” em bicicleta motorizada é uma das ofertas turísticas do Vietname, apresentada em alguns casos como “desporto radical”. E nos arredores de Houston, no Texas, existe num parque natural público (“Memorial Park”) um percurso chamado “Ho Chi Minh Trail” destinado a praticantes de bicicleta de montanha. 2 Ho Chi Minh, “Os agressores imperialistas nunca escravizarão o povo vietnamita” (Abril 1952), Obras Escolhidas, vol. 3 3 Autores diversos, “Sur la Piste Ho Chi Minh”, Editions en Langues Étrangéres, Hanoi, 1982, pp. 9-11 4 Id. Ibid. pp. 13-14 5 Ngo Din Diem, o primeiro-ministro fantoche cuja escolha para o lugar obedecia, segundo um diplomata norteamericano, aos critérios de “ser um anticomunista fanático e falar inglês”, teve o destino dos personagens que deixam de ser úteis e se tornam incómodos. Por decisão de Kennedy foi alvo de um golpe de Estado. Na organização do golpe desempenhou um papel decisivo Henry Cabot Lodge, então embaixador dos EUA em Saigão. Diem foi preso e assassinado em 3 de Novembro de 1963. Estavam criadas as condições para a intervenção militar massiva dos EUA. 6 Autores diversos, “Sur la Piste Ho Chi Minh”, Editions en Langues Étrangéres, Hanoi, 1982, p. 16. 7 Estas duas multinacionais, que hoje controlam o não menos devastador mercado dos OGM, são responsáveis pela produção do chamado “agente laranja”, um solvente orgânico altamente tóxico e cancerígeno. Foram lançados 45 milhões de litros de herbicidas, atingindo 24.000km2 do Sul do Vietname, 13% da sua terra arável. No decurso da guerra e até aos dias de hoje estima-se em 4 milhões o número de mortes provocado no Vietname pela dioxina que é o elemento predominante do “agente laranja”. Em algumas áreas a sua concentração no solo é ainda 100 vezes superior ao nível internacionalmente aceite. 8 Vo Nguyen Giap, “A grande vitória; a enorme tarefa”, 16 Out 1967. Inclui o texto difundido pela Rádio Hanói em 19 Set 1967. 9 Id. Ibid. 10 Autores diversos, “Sur la Piste Ho Chi Minh”, Editions en Langues Étrangéres, Hanoi, 1982, p. 19. 11 Id. Ibid. 12 Id. Ibid 13 Id. Ibid Outras fontes: https://en.wikipedia.org/wiki/Ho_Chi_Minh_trail https://en.wikipedia.org/wiki/Vietnam_War http://www.historyplace.com/unitedstates/vietnam/ https://www.marxists.org/reference/archive/ho-chi-minh/works/1952/01/x01.htm https://www.marxists.org/archive/giap/1969-00001.pdf Publicado pela Edição de 2015 da Revista VERMELHO.