Revista Zona de Impacto - Início

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Revista Zona de Impacto - Início
Revista Zona de Impacto
ISSN 1982-9108. ANO 16 Volume 2 - Julho/Dezembro, 2014.
Biblioteca de Holland House, em Londres, Inglaterra, em grande parte destruída pela blitz
alemã, em setembro de 1940.
Corpo Editorial
Editores
Alberto Lins Caldas
Prof. Dr. Departamento de História - UFAL
Eliaquim Timóteo da Cunha
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
PPGAS/UFAM (estudante)
Conselho Editorial
Caesar Sobreira – Antropologia – UFRPE
Jean-Pierre Angenot - Letras - UFRO
Jacinta Castelo Branco Correia - Comunicação - UFRO
José Carlos Sebe Bom Meihy – História – USP
Michel Zaidan Filho - História – UFP
Miguel Nenevé – Letras – UFRO
Nilson Santos – Educação – UFRO
Conselho Consultivo
Adailton da Silva – Antropologia – INC/UFAM
Alberto Vivar Flores – História – UFAL
Ana Monica Lopes – História – UFAL
Ana Paula Palamartchuk – História - UFAL
Antonio Filipe Pereira Caetano – História - UFAL
Clara Suassuna – História – UFAL
Emmanuel de Almeida Farias Júnior – Antropologia – PNCSA
Inara do Nascimento Tavares - Antropologia – INSIKIRAN/UFRR
João Jackson Bezerra Vianna - Antropologia
Lilian Maria Moser – História – UFRO
Sérgio Nunes de Jesus – Letras – IFRO
Xênia Castro Barbosa – História – IFRO
Magno Silvestri - Geografia – UFMT
Marta Valéria de Lima – História – UFRO
Pedro Rapozo – Sociologia - UEA
Raiana Ferrugem – Sociologia - IFAM
Rafael Ademir Oliveira de Andrade - Sociologia da Educação - Faculdade São Lucas
Sheila Castro dos Santos - Geografia - GEPCULTURA/UFRO
revistazonadeimpacto.unir.br
https://www.facebook.com/pages/Revista-Zona-de-Impacto/161448780689967?ref=hl
Sumário
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 7
Eliaquim Timóteo da Cunha..................................................................................................... 7
ARTIGOS ............................................................................................................................... 10
O PENSAMENTO AUTORITÁRIO DE PLÍNIO SALGADO COMO EXEMPLO DA
“INTELLIGENTSIA” BRASILEIRA DA DÉCADA DE 1930 ......................................... 11
Paula Stolerman ...................................................................................................................... 11
SERTANEJO CAIPIRA OU CAIPIRA SERTANEJO: AS DEFINIÇÕES DA MÚSICA
RURAL BRASILEIRA NA COLEÇÃO ‘NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR
BRASILEIRA’ ........................................................................................................................ 19
Alessandro Henrique Cavichia Dias ...................................................................................... 19
GÊNEROS MUSICAIS: EM BUSCA DE UMA CONSTRUÇÃO SÓCIO SONORA ... 34
Diego da Rocha Viana Muniz ................................................................................................. 34
A RECONFIGURAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA NORTE-AMERICANA PARA O
ORIENTE MÉDIO (1967 – 1979) ......................................................................................... 44
Thiago Henrique Sampaio ...................................................................................................... 44
MONOGRAFIA ..................................................................................................................... 63
COMO AS INSTITUIÇÕES DE MICROCRÉDITO PROMOVEM A AUTONOMIA
DAS MULHERES EM MOÇAMBIQUE. ESTUDO DE CASO DA TCHUMA,
COOPERATIVA DE CRÉDITO E POUPANÇA (PARTE I) ........................................... 64
Catarina Casimiro Trindade ................................................................................................... 64
JERÔNIMO DE ALBUQUERQUE, O ADÃO PERNAMBUCANO: TRATADO
SOBRE A ORIGEM MULTIÉTNICA DO HOMEM NORDESTINO ............................ 88
Caesar Malta Sobreira ............................................................................................................ 88
SESSÃO ESPECIAL.............................................................................................................. 92
Homenagem a John Manuel Monteiro (1956-2013). ........................................................... 92
TAVARES, GONÇALO M. 2010. UMA VIAGEM À ÍNDIA. EDITORA LEYA, SÃO
PAULO. PREFÁCIO DE EDUARDO LOURENÇO. 452 P. ............................................. 95
Vítor Queiroz ........................................................................................................................... 95
SIDNEY W. MINTZ. 2010. THREE ANCIENT COLONIES: CARIBBEAN THEMES
AND VARIATIONS. W.E.B. DU BOIS LECTURE SERIES. CAMBRIDGE:
HARVARD UNIVERSITY PRESS. 257 P. ....................................................................... 101
Ana Elisa Bersani.................................................................................................................. 101
CASTELO, CLAÚDIA; THOMAZ, OMAR RIBEIRO; NASCIMENTO, SEBASTIÃO
(ORGS). 2012. OS OUTROS DA COLONIZAÇÃO: ENSAIOS SOBRE O
COLONIALISMO TARDIO EM MOÇAMBIQUE. LISBOA: INSTITUTO DE
CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA. 361 PP. ............................... 106
Luciano Cardenes Santos ..................................................................................................... 106
GARFIELD, SETH. A LUTA INDÍGENA NO CORAÇÃO DO BRASIL. POLÍTICA
INDIGENISTA, A MARCHA PARA O OESTE E OS ÍNDIOS XAVANTE (1937-1988).
TRADUÇÃO DE CLAUDIA SANT’ANA MARTINS, UNESP, 2001, 392 P.).
[APRESENTAÇÃO PROF. JOHN MANOEL MONTEIRO]. ....................................... 110
Francisca Navantino P. de Angelo ....................................................................................... 110
PAIVA, ADRIANO TOLEDO. OS INDÍGENAS E OS PROCESSOS DE CONQUISTA
DOS SERTÕES DE MINAS GERAIS (1767-1813). BELO HORIZONTE:
ARGVMENTVM, 2010. 1 MAPA. 208 P. (HISTÓRIA; 13) [APRESENTAÇÃO DE
ADALGISA ARANTES CAMPOS; PREFÁCIO DE ADRIANA ROMEIRO.] ........... 115
Marina M. de Freitas ............................................................................................................ 115
ENSAIO FOTOGRÁFICO ................................................................................................. 119
SOB OS CÉUS DE LAGUNA BLANCA: ARQUEOLOGIA E ETNICIDADE NA PUNA
ARGENTINA ....................................................................................................................... 120
Brena Caroline B. de S. Miranda – ...................................................................................... 120
Graduanda em Arqueologia, Universidade Federal de Rondônia (UNIR). ....................... 120
Laureline Cattelain................................................................................................................ 120
Graduada em Arqueologia e História da Arte e mestre em Ciência Política, Université Libre
de Bruxelles (ULB). ............................................................................................................... 120
Yves Dal Canton. ................................................................................................................... 120
Graduado em Arqueologia e História da Arte e mestre em Arqueologia, Université de Liège
(ULg). ..................................................................................................................................... 120
SOBRE OS AUTORES ........................................................................................................ 131
7
Apresentação
Eliaquim Timóteo da Cunha
No seu décimo sexto ano a Revista Zona de Impacto traz um temário bastantes
variado. Temos algumas nuvens dos Céus Argentino. As diferenças entre “música caipira” e
música sertaneja”. Passamos pelo pensamento autoritário de Plínio Salgado. Temos alguns
apontamentos sobre a construção do “Oriente Médio”. Resenha sobre Jerônimo de
Albuquerque. Vamos a alguns aspectos sobre as vidas das mulheres em Moçambique com
suas participações no mercado financeiro. Damos um sobrevoo com resenhas que abordam os
estudos pós-coloniais sobre o Mundo Lusófono Colonial.
Outra novidade da Revista Zona de Impacto é a construção do Espaço Caderno de
Criação. Este periódico foi mantido entre 1994 a 2002. O corpo editorial fazia parte do
Centro do Imaginário Social da Universidade Federal de Rondônia (UFRO), com ISSN 01049389. Nesse espaço os exemplares serão disponibilizados em Portable Document Format
(PDF). Confira: revistazonadeimpacto.unir.br
Nos Artigos, encontramos: “O Pensamento Autoritário de Plínio Salgado como
exemplo da “Intelligentsia” brasileira da década de 1930” assinado por Paula Stolerman. O
texto seguinte é “Sertanejo caipira ou caipira sertanejo: As definições da música rural
brasileira na coleção ‘nova história da música popular brasileira’” assinado por Alessandro
Henrique Cavichia Dias. O terceiro artigo é “Gêneros Musicais: Em busca de uma construção
sócio sonora” assinado por Diego da Rocha Viana Muniz e o último artigo é “A
reconfiguração da política externa norte-americana para o Oriente Médio (1967 – 1979)”
assinado por Tiago Sampaio
O Texto de Stolerman, procura ressaltar, como escreve a autora: “a importância de não
rejeitarmos estudos referentes ao pensamento autoritário brasileiro, visto que ele também é
um reflexo do fenômeno social daquele momento histórico e da produção intelectual daquele
momento” na década de 1930. Temos aí um destaque aos pensamentos de Plínio Salgado;
além da coincidência desta publicação sair na semana em que faleceu o político citado.
O segundo e terceiro artigo tratam de questões sociais a partir da música Alessandro
Henrique Cavichia Dias, no texto “Sertanejo caipira ou caipira sertanejo: As definições da
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música rural brasileira na coleção ‘nova história da música popular brasileira’” destaca que
as diferenças e as construções históricas nas classificações “música sertaneja” e “música
caipira”. O autor diz que “música sertaneja” “é uma denominação tipicamente paulista, usada
para denominar o caboclo (e sua produção cultural), que não residia nos centros urbanos.
"Kaai 'pira" na língua indígena significa, o que vive afastado. Por outro lado, o termo música
sertaneja era utilizado no Rio de Janeiro no final do século XIX até a década de 1930 como
referência para todas as músicas que não pertencesse ao ambiente cultural da capital da
república.
O outro texto que trata de música é “Gêneros Musicais: Em busca de uma construção
sócio sonora” escrito por Diego da Rocha Viana Muniz, nesta oportunidade o autor quis
sublinhar a ideia de “sócio sonoridade”, segundo Muniz esta, “aponta para um conjunto
complexo de regras e esquemas sociais e musicais que se acomodam na consciência, de
forma a indicar a classificação num dado gênero musical”.
No texto “A reconfiguração da política externa norte-americana para o Oriente
Médio (1967 – 1979)” assinado por Tiago Sampaio, encontramos uma série de apontamentos
para discutir sobre a construção do “Oriente Médio” analisa eventos entre 1967 a 1970.
Destaca a presença dos Estados Unidos da América seja nos âmbitos políticos e econômicos,
tendo em vista que em diversos contextos são simultâneos e difícil separá-los.
Na sessão monografia damos continuidade ao projeto “publique seu TCC”. Neste
volume trazemos a primeira parte de “As origens do microcrédito: Do Grameen Bank às
instituições micro financeiras em Moçambique” pesquisa realizada por Catarina Casimiro
Trindade. A autora dedicou-se a estudar uma agencia de microcrédito na cidade de Maputo,
Tchuma, em Moçambique. A partir do estudo sobre a Cooperativa de Crédito e Poupança
veremos vários aspectos de qual lugar é ocupado pelas mulheres na economia de
Moçambique. O trabalho foi defendido na Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra, no Curso de licenciatura em Sociologia.
No tópico resenha, trazemos: “Jerônimo de Albuquerque, o Adão Pernambucano:
Tratado sobre a origem multiétnica do Homem Nordestino” escrito por Caesar Malta
Sobreira.
Neste segundo volume do ano de 2014 temos uma Sessão Especial. “Perspectivas póscoloniais sobre o mundo lusófono colonial. Homenagem a John Manuel Monteiro (19562013).” Nesta sessão reunimos cinco resenhas dos estudantes que cursaram a última disciplina
ministrado por John Manuel Monteiro, no segundo semestre de 2012. O título do curso
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“Tópicos Especiais em Antropologia Social: Perspectivas Pós-coloniais sobre o Mundo
Lusófono Colonial”, ministrado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Agradecemos a Luciano Cardenes Santos por ter reunido a turma para realizar esta sessão.
As resenhas que compõe esta parte do volume são:
Tavares, Gonçalo M. 2010. Uma Viagem à Índia. Editora Leya, São Paulo. Prefácio de
Eduardo Lourenço. 452 p.
Vítor Queiroz.
Sidney W. Mintz. 2010. Three Ancient Colonies: Caribbean Themes and Variations. W.E.B.
Du Bois lecture series. Cambridge: Harvard University Press. 257 p.
Ana Elisa Bersani
Castelo, Claúdia; THOMAZ, Omar Ribeiro; NASCIMENTO, Sebastião (Orgs). 2012. Os
outros da colonização: ensaios sobre o colonialismo tardio em Moçambique. Lisboa: Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. 361 pp.
Luciano Cardenes Santos
Paiva, Adriano Toledo. 2010. Os indígenas e os processos de conquista dos sertões de Minas
Gerais (1767-1813). Belo Horizonte: Argvmentvm. 1 mapa. 208 p. (História; 13)
[Apresentação de Adalgisa Arantes Campos; Prefácio de Adriana Romeiro.]
Marina M. de Freitas
Garfield, Seth. 2001. A luta indígena no coração do Brasil. Política indigenista, a marcha
para o oeste e os índios xavante (1937-1988). Tradução de Claudia Sant’Ana Martins,
UNESP, 392 p.). [Apresentação Prof. John Manoel Monteiro]
Francisca Navantino P. de Angelo
Fechando esta publicação temo um ensaio fotográfico. “Sob os Céus de Laguna
Blanca: Arqueologia e Etnicidade na Puna Argentina” fotografias feitas por Brena Caroline
B. de S. Miranda, Laureline Cattelain e Yves Dal Canton. O Ensaio trata-se de uma parte do
registro do trabalho arqueológico realizado em dezembro de 2012. Estas escavações foram
realizadas na Reserva de Biosfera Laguna Blanca, na província Catamarca no noroeste da
Argentina.
É bastante convidativo olharmos para os Céus De Laguna Blanca a partir de uma
experiência arqueológica.
Boa leitura!
10
ARTIGOS
11
O Pensamento Autoritário de Plínio Salgado como exemplo da
“Intelligentsia” brasileira da década de 1930.
Paula Stolerman
RESUMO:
Pretendemos com este artigo, melhor compreender as manifestações do pensamento autoritário brasileiro na
década de 30, nos reportando a seu líder, Plínio Salgado, evidenciando as características do campo do
pensamento social brasileiro, em formação, assim como evidenciar as características da “intelligentsia” nacional
daquele momento, que buscava entender os fenômenos sociais brasileiros através do resgate histórico da
formação da nação e simultaneamente contribuir para a consolidação e constituição de uma “identidade
nacional”.
PALAVRAS-CHAVE: pensamento autoritário, integralismo, Intelligentsia, campo social.
1. Introdução:
Em busca de compreender a contribuição do pensamento/ideologia autoritários
nacional, como o de Plínio Salgado, nos anos 30, à formação do campo sociológico brasileiro,
entendemos ser necessário primariamente reportarmo-nos a teorias de Karl Mannheim e
Pierre Bourdieu.
Para Mannheim, a divisão do trabalho nas sociedades exige especializações dos grupos
sociais. Estas especializações geram a consciência de classe em cada um destes grupos,
autorreflexões a respeito de sua condição. No momento em que escreve, Mannheim afirma
que a sociedade vive o momento de reflexão sociológica, após os estágios em que se “auto
explicou” de maneira religiosa, iluminista e histórica. O autor afirma que “o proletariado foi o
primeiro grupo a propor-se uma auto avaliação sociológica consistente e a adquirir uma
consciência de classe sistemática” (MANNHEIM, 2004).
O termo “intelligentsia” é cunhado por Mannheim para descrever uma espécie de
“supraclasse”, a dos intelectuais, que dentro de uma sociedade organizada na forma de
classes, não estaria vinculada nem aos grupos dominantes e tampouco aos dominados
dominadas.
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Os intelectuais estariam libertos dos radicalismos de classe, podendo circular
livremente entre estas camadas e dedicar-se à geração de consciências. O autor expõe da
seguinte forma:
O surgimento da intelligentsia marca a última fase do
crescimento da consciência social. A intelligentsia foi o
último grupo a adotar o ponto de vista sociológico, pois
sua posição na divisão social do trabalho não lhe propicia
acesso direto a nenhum segmento vital e ativo da
sociedade. O gabinete recluso e a dependência livresca só
permitem uma visão derivada do processo social
(MANNHEIM, 2004, p. 27).
No caso de pensarmos a respeito de uma sociologia brasileira em formação, é válido
utilizarmos o pensamento de Mannheim, pois os intelectuais nacionais, em nosso estudo, os
especificamente atrelados ao pensamento autoritário da década de 30, não podem ser
classificados como sendo exclusivamente movidos por interesses de classe. O conhecimento
produzido pelos intelectuais nacionais não pode necessariamente ser avaliado pela origem de
classe do intelectual.
A construção da Sociologia brasileira não pode desprender-se da constituição de uma
Intelligentsia nacional. O termo de Karl Mannheim é apropriado na medida em que buscamos
uma maior elucidação dos processos que levaram ao estabelecimento do campo
(BOURDIEU, 1983) da Sociologia no Brasil.
Quanto à teoria dos campos, de Pierre Bourdieu, está se torna útil ao nosso estudo na
medida em que observamos que a formação do pensamento sociológico brasileiro está
atrelada a própria constituição de seu campo. Para Bourdieu, não há possibilidade de
utilizarmos o conceito de totalidade para a explicação da sociedade, o que existe são inúmeros
campos sociais.
Os campos sociais são constituídos à medida que a sociedade vai se tornando mais
complexa, com a expansão da divisão do trabalho. Quanto maior a especialização de uma
sociedade, maior a quantidade de campos sociais dentro dela. O funcionamento de um
determinado campo depende de regras, “leis de funcionamento invariantes” (BOURDIEU,
1983) que são compartilhados pelos membros do campo em questão. Este conjunto de
normas, ditando o comportamento dos que participarão do campo compõe o habitus do
campo.
O habitus é transmitido dentro do campo social de maneira inconsciente. Os
indivíduos pertencentes a determinado campo não estão a todo tempo refletindo sobre o
13
motivo que os leva a ter determinada crença ou a agir de uma forma específica. Estas atitudes
e orientações já foram “incorporadas” no momento da educação dentro daquele campo social.
O que constitui o habitus de um campo são as regras inconscientes incorporadas pelos
indivíduos deste mesmo campo e que fazem sentido para estes que estão imersos nesta
realidade.
Um exemplo pertinente capaz de elucidar esta questão referente ao significado do
habitus e ao campo de Bourdieu são as produções do pensamento social brasileiro no início
do século XX. Primeiramente não há um campo da sociologia brasileira com seu entorno
solidamente definido. O pensamento da intelligentsia nacional, as reflexões iniciais sobre
nossa sociedade e como teria acontecido a formação da nossa sociedade manifestavam-se
através de ensaios, romances e crônicas jornalísticas.
A procura por respostas a questões referentes à formação da sociedade brasileira
perpassava por intelectuais que respondiam tanto à produção de literatura como a de artigos
jornalísticos (O caso de Plínio Salgado, líder do movimento Integralista, por exemplo). Outros
intelectuais exerciam funções burocráticas como servidores do Estado em diversos setores
(esta informação reitera a conexão das teorias de Mannheim e Bourdieu no caso da formação
do pensamento social brasileiro).
Desta forma, é pertinente atentar para a situação brasileira na década de 1930 à luz
destas duas teorias. Neste momento, não se apresentava no país um campo da sociologia
totalmente estabelecido e a intelligentsia nacional exercia as mais diversas funções e se
originava tanto na burguesia como no proletariado.
Com o decorrer da complexificação da sociedade brasileira, consequência do processo
de industrialização do país, há uma espécie de “mutação” (TRINDADE, 1985, p. 15) do
pensamento social brasileiro, desvinculando-o com o passar das décadas da produção literária
(como na obra de Euclides da Cunha) para a sociologia científica (podemos exemplificar com
a obra de Florestan Fernandes), marcada pela técnica estabelecida nas Universidades do Rio
de Janeiro e São Paulo, onde a partir da década de 1930, inicia-se a experiência de
institucionalização das Ciências Sociais, encerrando o campo do pensamento social brasileiro
dentro dos moldes da sociologia científica.
Com a clivagem entre a produção literária e a sociológica, são estabelecidos os
campos e habitus diferenciados tanto de autores da literatura quanto de cientistas sociais. O
habitus de um cientista social, por exemplo, deve conter práticas de pesquisa empírica que
corroborem suas teorias de forma a serem reconhecidas dentro do campo das Ciências Sociais
e sejam reconhecidas pelos membros deste campo. Como afirma Bourdieu: “Ser filósofo é
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dominar o que deve ser dominado na história da filosofia para saber agir como filósofo num
campo filosófico” (BOURDIEU, 1983, p. 6).
2. O Pensamento autoritário brasileiro.
A Ação Integralista Brasileira foi o primeiro partido brasileiro a estabelecer-se
nacionalmente, abarcando em torno de meio milhão de adeptos. Desta maneira, é evidente a
importância de estudos que envolvam a formação e consolidação deste movimento ideológico
nacional na década de 1930, “o primeiro movimento de massa no Brasil” (TRINDADE,
1985).
Hélgio Trindade comenta a conjuntura brasileira no momento da expressão do
pensamento Integralista da seguinte forma:
O ano-chave do período é 1922. Nele eclodem quatro
acontecimentos simbólicos que contém, em embrião, a
mutação da sociedade brasileira entre as duas guerras
mundiais. A Semana da Arte Moderna, em fevereiro,
desencadeia a revolução estética; uma nova etapa da
organização política da classe operária se delineia, em
março, com a fundação do Partido Comunista Brasileiro; a
criação do Centro D. Vital, ligado à revista A Ordem, de
orientação católica, prenuncia a renovação espiritual; e,
finalmente, a primeira etapa da revolução política
tenentista irrompe, em julho, com a rebelião na Fortaleza
de Copacabana (TRINDADE, 1985, p. 15).
A ideologia e o pensamento autoritários no Brasil podem ser observados enquanto
exemplos da interseção entre diversos campos da sociedade brasileira. Os autores do
Integralismo se dedicaram a uma produção que respondesse a questões pertinentes às
preocupações da intelectualidade do país nesta época, tais como a necessidade de
estabelecimento de uma arte tipicamente brasileira, como a criação de heróis nacionais, ou “a
utilização de um enfoque sociológico, em moda na época” (TRINDADE, 1985, p. 27).
Citando o chefe Integralista: “Salgado não concebe projeto político sem uma dimensão
artística e vice-versa” (SANTOS, 2007, p. 2).
É importante lembrarmos que uma das preocupações dos intelectuais brasileiros, da
qual fazem parte também os intelectuais que se afinaram ao pensamento autoritário, era
explicar as razões e de alguma forma trazerem respostas quanto aos motivos que faziam o
Brasil permanecer como uma nação não industrializada, com um atraso em termos capitalistas
15
em relação às nações centrais. Essa era uma das grandes questões da intelectualidade
nacional.
Outro tema que não deve ser deixado de lado quando decidimos abordar a questão do
pensamento autoritário brasileiro é o impacto da Semana de Arte Moderna. Durante a semana
de 1922, esteve um grupo de artistas mais conservadores, o Grupo Anta. Tanto na literatura
quanto nas outras artes, não devemos esquecer que o tema fundamental era a “construção da
nação”. A busca de uma arte que representasse genuinamente o Brasil era carregada de
nacionalismo. Desta forma, é válido assinalar que um nacionalismo ao extremo torna-se
autoritarismo.
Mesmo que não dentro de um campo específico da sociologia enquanto ciência, o
Integralismo se propunha a explicar o Brasil e responder à problemática política, econômica e
social. O pensamento social brasileiro, naquele momento ainda era marcado por formas
híbridas, pelas quais se manifestava de forma diferenciada da que veio posteriormente, a qual
intensificou a “diferenciação” do campo das Ciências Sociais, com seus métodos, técnicas e
teorias específicas. As práticas do pensamento social no Integralismo, como híbridas, eram
próximas da Literatura. Não é coincidência Plínio Salgado, líder do movimento, escreveu
diversos romances.
Assim como outras manifestações da intelligentsia nacional, o Integralismo também
objetivava explicar o passado brasileiro e de que maneira este passado repercute nas
orientações do país. Para os integralistas uma grande lástima para nosso país foi a instalação
da República. Para o pensamento autoritário, o país ainda não tinha condições de assumir as
consequências de um regime republicano de forma “saudável”. O povo ainda não possuía as
características necessárias para o regime republicano.
O movimento Integralista estar solidamente ligado à classe média católica, com suas
recomendações acerca da defesa da família e “bons costumes”, basta lembrarmos a máxima
integralista: Deus, Pátria e Família.
3. A “doutrina Integralista”
Como já exposto na parte anterior deste artigo, inúmeros conflitos ideológicos,
ebulições sociais e mudanças econômicas e culturais marcam a emergência do movimento
integralista. Tratemos de agora assinalar os objetivos deste movimento que segundo as
palavras de seu líder, Plínio Salgado:
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[...] considera o universo, o homem, a sociedade e as
nações, de um ponto de vista total, isto é, somando todas
as suas expressões, todas as suas tendências, fundindo o
sentido materialista do falo ao sentido interior da ideia,
subordinando ambos ao ritmo supremo espiritualista e
apreendendo o fenômeno social segundo as leis de seus
movimentos (SALGADO, 1969, p. 25).
Santos (2007), escrevendo sobre a produção literária de Plínio Salgado, expõe uma
característica que marca a produção desse autor e permeia o pensamento Integralista: o
desânimo e negativismo quanto a condição humana. Essa visão de humanidade degradada
pode ser entendida então como uma alavanca para a “reconstrução” nacional dentro do molde
Integral e a posterior Humanidade Integral. Na obra “O que é Integralismo” Salgado anuncia
“as fórmulas definitivas de salvação nacional e humana” (SALGADO, 1969, p. 37).
O pensamento Integral, como exemplo de parte da intelligentsia nacional do período,
visava explicar o Brasil dentro de uma concepção própria e elaborar soluções para as questões
nacionais. Pelo viés integralista a resolução era libertar o homem daquilo que o amarrava a
uma concepção individualista e material do mundo. Fazê-lo exercer sua plenitude. Para
Salgado, tanto as ideias, marxistas ou liberais, geravam um homem incompleto, distante de
sua verdadeira missão enquanto ser na Terra.
Ambas as correntes ideológicas, tanto a liberal quanto a marxista eram enxergadas
como materialistas, uma sob o prisma do individualismo, a outra sob o prisma do coletivismo.
O liberalismo, conforme o Integralismo é materialista, “porque permite que se processe a
evolução das forças materiais da sociedade sem nenhuma orientação diretiva do Estado,
tornando este um mero mantenedor da ordem pública” (SALGADO, 1969, p. 29). O
marxismo, por sua vez, relegava o poder de todas as ações da humanidade ao plano de
produção material, negando a natureza da vontade independente de cada ser humano.
Como detrator do pensamento liberal, uma das características desta orientação
política/ideológica a ser atacada na obra “O que é Integralismo”, é o voto. De acordo com o
pensamento exposto por Salgado, o voto é uma “artimanha” dos capitalistas, da elite liberal,
ludibriando o povo com a ideia democrática. O voto obriga a população a eleger como
representante um indivíduo que não abarca as aspirações reais daquela população, pois não se
encerram nele as características de um Estado forte, o Estado funciona apenas como aparato
da administração burocrática para a livre atividade econômica.
O marxismo, por sua vez não atende às necessidades nacionais e humanas de uma
forma geral por encapsular o homem na esfera econômica reduzindo a complexidade da
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sociedade numa “luta de morte” onde se enfrentam Capital e Trabalho. Além disso, um
agravante, para o pensamento integralista em relação à ideologia comunista era a concepção
marxista para a religião e família, onde estas duas instituições estavam a serviço da
reprodução e manutenção das forças produtivas.
No caso da explicação histórica para o “atraso” nacional, característica de nossa
intelligentsia neste momento, Salgado atribui à nossa origem colonial, e posteriormente uma
república ineficaz, de cabresto, dependente da Inglaterra, a formação de uma nação
desorganizada, ansiando por um líder que a trouxesse novamente para sua essência ordeira.
Uma questão a ser pontuada são as figuras do Estado para o pensamento integralista e
a importância de seu líder. A “sociologia Integral” considerava o povo brasileiro inapto ao
estabelecimento da democracia liberal já que estava organicamente conectado a uma figura
patriarcal, que o guiasse. Salgado bem reitera em seu texto: “... o nosso povo é sedento de
ordem e disciplina, subordinando-se espontaneamente à autoridade” (SALGADO, 1969. p.
58).
Leonardo Neves comenta em seu artigo “O lugar da democracia no pensamento
autoritário de Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos”, o paradoxo presente
nas ideias integralistas envolvendo a perene disputa entre o individualismo (contido na
ideologia liberal) e o coletivismo (“espírito” que deve ser alcançado pelo Estado Integralista
para promover o desenvolvimento da nação).
Este paradoxo reside justamente em ser o representante desse Estado máximo, capaz
de responder às necessidades de todos os cidadãos da nação brasileira de forma homogênea,
um único indivíduo. Plínio Salgado defende, em sua produção intelectual, a sua aptidão para
tamanha responsabilidade.
O pensamento autoritário brasileiro, desta forma, molda-se em torno da defesa de um
Estado centralizado, orgânico, em oposição ao inorgânico. Este último tendo como base o
individualismo inerente ao homem de Rousseau, que necessita do contrato social para existir
em sociedade. Sintetizando o pensamento integralista com palavras do próprio Plínio Salgado:
[...] qual o destino do homem e da sociedade?... É justo
que tenha conforto material, que se alimente, que se vista,
que se reproduza; é razoável que se dedique à ciência, à
arte, ao pensamento; é natural que nutra aspirações
transcendentais. Tudo isso, harmonizado, de acordo com
as tendências de cada um e debaixo de um critério superior
de espiritualidade e de interesse nacional, social e humano,
realiza o Homem Integral (SALGADO, 1969, p.47).
18
3. Considerações finais.
Em nosso breve estudo a respeito do pensamento autoritário no Brasil, identificamos
características presentes nesta ideologia que evidenciam o caráter da intelligentsia brasileira
nas décadas de 1920 e 1930, apesar das críticas erigidas por Salgado aos intelectuais liberais e
marxistas.
O grande líder integralista, Plínio Salgado, atuava como jornalista, publicava
romances e produzia material de cunho sociológico buscando os motivos que propiciam o
“atraso” no “desenvolvimento” brasileiro para responder à isso com suas teorias.
O “hibridismo” do intelectual da época manifesta-se em suas obras, que chamavam
para si um cientificismo que ainda não era plenamente estabelecido, visto que o campo das
Ciências Sociais ainda não havia acumulado capital simbólico para se estabelecer plenamente,
coisa que aconteceu depois, com a institucionalização dos cursos universitários.
Afirmamos então, mais uma vez, a importância de não rejeitarmos estudos referentes
ao pensamento autoritário brasileiro, visto que ele também é um reflexo do fenômeno social
daquele momento histórico e da produção intelectual daquele momento. No entanto, é
necessário não ignorarmos os problemas de uma ideologia autoritária, que credita a apenas
um indivíduo toda a capacidade de formular a gestão do país todo e que, portanto retira o
crédito da nação de optar pelas direções que melhor lhe convir, mesmo que isto não passe de
utopia.
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
MANNHEIM, Karl. Sociologia da Cultura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
NEVES, Leonardo. O Lugar da Democracia no Pensamento Autoritário de Oliveira
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TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o Fascismo Brasileiro na Década de 30. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1974.
19
Sertanejo caipira ou caipira sertanejo: As definições da música rural
brasileira na coleção ‘nova história da música popular brasileira’
Alessandro Henrique Cavichia Dias
Mestrando em História pela Unesp/ Campus Franca
RESUMO:
Este ensaio pretende apresentar a formação de dois gêneros musicais, conhecidos como
música sertaneja e música caipira. Para tanto, analisa-se as tensões e, principalmente, as
diferenças estéticas entre ambos os gêneros e, dessa forma, visa-se problematizar tais
categorias e como elas contribuem para a solidificação de uma tradição. Junto a essas análises
da cisão desses campos musicais, caberá também ressaltar o papel da Indústria Fonografia na
consolidação desses gêneros, a partir de dois discos da coleção Nova História da Música
Popular Brasileira, intitulados Música Caipira de 1978 e Música Sertaneja de 1983, sendo
estes os primeiros a fazerem parte de uma mesma coleção e rotular, distintamente, a música
rural do interior do Brasil. Tais discos alcançaram um alto nível de popularidade e
contribuíram fortemente para a formação de uma memória musical e a solidificação de um
cânone em torno da música popular brasileira.
Palavras Chave: Música Sertaneja; Música Caipira; Indústria Cultural; Memória Musical
ABSTRACT:
This essay intends to present the formation of two musical genres, that are known as country
music and rustic music. To do this, it analyzes the tensions and, mainly, the differences
between both genres and, thus, it will render problematic these categories and how they
contribute to the solidification of a tradition. Besides, these analyzes the divergence of these
musical field, this essay will also introduce the role of Phonograph Industry in the
consolidation of these genres, from two disc of collection of the New History of Brazilian
Popular Music, entitled, in 1978, Rustic Music, and, in 1983 Country Music. These are the
first of the same collection and they labeled, distinctly, the rural music of the interior of
Brazil. These discs have reached a high level of popularity and they have contributed to the
formation of a musical memory. Add to that, they have solidified a canon around Brazilian
popular music.
Key-words: Country Music; Rustic Music; Cultural Industry; Musical Memory
20
Introdução
Os álbuns em análise neste trabalho fazem parte da coleção intitulada Nova História
da Música Popular Brasileira, lançada no início da década de 1970 pela editora Abril Cultural,
a partir do qual teremos como referência o disco de música caipira de 1978 e o de música
sertaneja de 1983. Nessa direção, cabe salientar tanto os papéis desenvolvidos por esses dois
discos que se referem à música rural, como também toda a coleção produzida pela editora na
formação de uma memória musical e na solidificação de um cânone, como afirma o
pesquisador Dr. Silvano Fernandes Baia (2010, p.199):
Os discos traziam gravações selecionadas de compositores considerados relevantes
para história da música popular e vinham acompanhados de textos sobre a vida e a
obra do autor retratado. Os fascículos semanais da coleção eram vendidos em bancas
de jornal a um preço acessível. Fez um grande sucesso vendendo mais de 7 milhões
de exemplares em três edições. A série contribuía fortemente, pela sua popularidade,
na construção de uma memória da música popular no Brasil. A coleção já instituía
um cânone de quais grandes compositores dignos de figurar numa História da
música popular no Brasil na própria organização da seleção.
A partir desta perspectiva podemos afirmar que a construção do gênero sertanejo passa
pelas investidas da Indústria Cultural, como será discutido adiante. No entanto, ao diferenciar
esses dois gêneros cabe ressaltar a origem e a importância do conceito criado em torno do
termo “música sertaneja”, pois como afirma KOSELLECK R. (2006, p.98): "sem conceitos
comuns não pode haver uma sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade política”, ou
seja, a criação de um conceito, que tenha a mesma significação dentre uma comunidade
lingüística, permite a fundação de sistemas políticos e sociais que abranja todos os níveis da
estrutura social. Algo que se torna de fundamental importância para que a Indústria Cultural
possa exercer seu leque de influência.
Sendo assim, o termo música sertaneja é diferente do termo caipira (de ‘música
caipira’), que é uma denominação tipicamente paulista, usada para denominar o caboclo (e
sua produção cultural), que não residia nos centros urbanos. "Kaai 'pira" na língua indígena
significa, o que vive afastado1. Por outro lado, o termo música sertaneja era utilizado no Rio
de Janeiro no final do século XIX até a década de 1930 como referência para todas as músicas
que não pertencesse ao ambiente cultural da capital da república, ou seja, tal termo definia
tanto as canções da região nordeste como as do centro-sul, mas com uma referência maior ao
sertanejo nordestino, que nesse momento era uma figura cativa do ambiente cultural carioca,
gêneros esses que seduziram grandes nomes do samba carioca, como Noel Rosa que fez parte
1
Para maiores informações acessar: <http://www.violatropeira.com.br/origem.htm>
21
do Grupo dos Tangarás. Outro grupo de grande sucesso que teve como seus integrantes
grandes nomes do Samba foi Grupo de Caxangá que tinha na sua composição Pixinguinha,
Donga, Raul Palmieri e João Pernambuco que futuramente iriam integrar o grupo Oito
Batutas, todos esses, grandes interpretes do samba, iniciaram sua carreira artística na música
sertaneja em especial Noel Rosa como afirma o pesquisador Allan de Oliveira (2009, p.236):
Um exemplo disto é Noel Rosa, cujas primeiras composições, feitas ainda enquanto
era membro do Bando dos Tangarás, foram uma “toada do Norte” e uma
“embolada”. O próprio repertório do Bando dos Tangarás revela esta mistura dos
diferentes gêneros nas décadas de 10 e 20, pois assim como os Oito Batutas, os
Tangarás também tocavam sambas e cateretês, maxixes e desafios, foxtrotes e
emboladas. No entanto, por volta de 1931, Noel Rosa, (...) “opta” pelo samba,
passando a compor somente canções que se adequassem a este gênero e a um outro
relacionado ao carnaval, a marchinha. (...)
Como apresentamos acima, até a década de 1930 do século XX a música sertaneja no
Rio de Janeiro se constituía basicamente dos ritmos nordestinos e de uma influência ainda
muito modesta do ritmo caipira do centro-sul do Brasil. A música caipira passa construir
espaço na capital da república a partir de 1929, com a gravação dos primeiros discos deste
gênero, todos idealizados e financiados por Cornélio Pires, pois as gravadoras do período não
acreditavam que havia mercado consumidor para tal gênero, o primeiro disco era um de 78
rotações com rótulo vermelho, que levava o selo Columbia. Nesse disco, de um lado figurava
a música, “Jorginho do Sertão” e do outro, “Moda de Pião”, ambas de autoria do próprio
Cornélio Pires. De início, o disco vendeu cinco mil cópias em menos de 20 dias, ou seja,
todas as cópias que o próprio Cornélio tinha financiado, superando tanto as suas expectativas
e as das gravadoras, que passaram a investir consideravelmente neste novo filão. Com isso, a
música sertaneja passou a ser colonizada pela estética do centro-sul do Brasil, com afirma
Oliveira (2009, p.44):
Até 1929, a “música sertaneja” era simbolizada pelos diversos gêneros nordestinos
populares no Rio de Janeiro e em São Paulo nos anos 10 e 20, tais como emboladas
e desafios. Com as primeiras gravações de duplas formadas por “autênticos caipiras
do interior paulista” – nos termos das próprias gravações – a música sertaneja
começou a ser “colonizada” pela estética do interior do centro-sul, a estética caipira.
E nesse processo, a dupla cantando em terças tornou-se a formação central do
gênero. Apesar de todas as mudanças sofridas pela música sertaneja nos últimos 80
anos, a dupla foi o elemento que se manteve. Se antes havia Alvarenga e Ranchinho
(anos 30), hoje há Zezé di Camargo e Luciano.
Com isso, o termo sertanejo passa a se referir a um novo conceito de estética musical
que não possui vínculo nenhum com a tradição nordestina e que, por outro lado, será negado
pelas duplas caipiras tradicionais. Contudo, tal conceito só se cristaliza a partir de meados da
década de 1980 em diante, com os novos interpretes da música rural do centro-sul, que
22
também são renegados por serem acusados, pelos músicos considerados tradicionais do meio
caipira, de estarem modernizando e corrompendo os valores morais da legítima música
caipira. Essa negação destes novos interpretes ocorre devido a influência de outros ritmos
estrangeiros em suas performances, em especial o Country Estadunidense que se torna
presença confirmada nas interpretações de Sérgio Reis, Leandro e Leonardo Chitãozinho e
Chororó, Milionário e José Rico entre outros que, dessa forma, romperam com a estética da
música caipira. Sendo assim, o conceito música sertaneja passa a representar e definir um
novo grupo social distinto do caipira e também do sertanejo, no sentido que o termo era
empregado originalmente, o que nos permite mapear as tensões e representações criadas em
torno desses dois gêneros, pois como afirma Roger Chatier (1988, p.17):
As representações do mundo social assim constituídas, embora aspirem a
universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinados pelo
interesse de grupo que as forjam. Daí para cada caso, o necessário relacionamento
dos discursos proferidos com a posição de quem utiliza
As primeiras definições acadêmicas de música caipira e música sertaneja
No que diz respeito às diferenças acadêmicas entre a música caipira e música
sertaneja, tem se como referência o artigo de José de Souza Martins (1975) intitulado “Música
Sertaneja: a dissimulação na linguagem dos humilhados”, o qual também se destaca como
uma das primeiras pesquisas voltadas para análise da história e música. No decorrer deste
artigo José de Souza Martins (1975, p.103) norteia sua pesquisa sobre a música “abrangendo
a letra que nela suporta, o universo que verbaliza cantando e o universo que se utiliza como
ponto de apoio em determinadas relações sociais”. Dessa maneira, ao longo de seu artigo ele
estabelece uma relação entre o texto literário e o texto musical e, partindo dessas reflexões,
apresenta diversos pontos em comum, assim como distinções entre a música caipira e a
música sertaneja.
Segundo o autor, a música caipira estaria sempre ligada às sociabilidades do mundo
rural, assim como aos ritos religiosos, trabalhistas e de lazer. Enquanto a música sertaneja
seria dotada de um fundamento de classe sociais, as quais podem ser observadas, ao longo das
letras, na identificação realizada pelo autor dos elementos que exemplifiquem as condições
concretas da existência das classes subalternas, assim como nas tensões, contradições e
oposições entre elas e outras classes. Nessa direção, segundo José de Souza Martins a toada
23
“Chico Mineiro” da dupla Tonico e Tinoco, exemplificaria com clareza sua hipótese, como
pode-se ver abaixo:
Cada vez que me "alembro" / Do amigo Chico Mineiro,/ Das viage que nois fazia
/Era ele meu companheiro. / Sinto uma tristeza, / Uma vontade de chorar, /
Alembrando daqueles tempos / Que não hai mais de voltar. / Apesar de ser patrão, /
Eu tinha no coração / O amigo Chico Mineiro, / Caboclo bom decidido, / Na viola
era delorido e era o peão dos boiadeiro. / Hoje porém com tristeza / Recordando das
proeza / Da nossa viage motin, / Viajemo mais de dez anos, / Vendendo boiada e
comprando, / Por esse rincão sem-fim / Caboco de nada temia. / Mas porém, chegou
o dia / Que Chico apartou-se de mim. / Fizemos a última viagem / Foi lá pro sertão
de Goiás / Fui eu e o Chico Mineiro / Também foi o capataz / Viajamos muitos dias
pra chegar em Ouro Fino / Aonde passamos a noite numa festa do Divino / A festa
estava tão boa, mas antes não tivesse ido / O Chico foi baleado por um homem
desconhecido / Larguei de comprar boiada / Mataram meu companheiro / Acabou-se
o som da viola / Acabou-se o Chico Mineiro / Depois daquela tragédia / Fiquei mais
aborrecido / Não sabia da nossa amizade / Porque nos dois era unido / Quando vi seu
documento / Me cortou o coração / Vi saber que o Chico Mineiro /Era meu legítimo
irmão2
Com essa música José de Souza Martins elucida a luta de classe na música sertaneja,
afirmando que as relações de trabalho entre patrão e empregado não permitia que ambos se
reconhecessem como irmãos.
Seguindo a mesma linha apresentada por José de Souza Martins, Waldenyr Caldas
publica sua obra em 1979, intitulada “Acorde na aurora: música sertaneja e indústria cultural”,
a qual tem seu trabalho caracterizado pela mesma linha marxista que domina o trabalho de
José de Souza Martins.
No entanto, Waldenyr Caldas distingue a música caipira da sertaneja da seguinte
forma, a música caipira estaria ligada ao folclore rural, ou seja, seria fruto da socialização
entre as comunidades interioranas, ocupando, desse modo, uma função social dentre desse
grupo que vai além da mera diversão. Por outro lado, a música sertaneja se enquadraria como
um produto da urbanização, deste modo, estaria totalmente desprovido de seu caráter
folclórico e não possuiria nenhuma outra função a não ser o entretenimento, contudo, ela seria
apenas mais um produto alienante da Indústria Cultural (CALDAS, 1979).
No entanto, outros pesquisadores apresentam uma ótica distinta da apresentada por
José de Souza Martins e Waldenyr Caldas, como é o caso da dissertação de mestrado de
Lucas Antônio Araújo, a qual apresenta a música rural brasileira dividida em “música
sertaneja tradicional”, que seria o gênero que sempre teve como referência as estruturas das
músicas rurais, bem como instrumentos e temáticas semelhantes, e “música sertaneja”.
Contudo, Araújo apresenta como música sertaneja as novas duplas que surgiram em meados
dos anos 1970 e, especialmente, a partir da década de 1980, tais como Leandro e Leonardo,
2
As barras são utilizadas para separar os versos.
24
Zezé di Camargo e Luciano, Chitãozinho e Xororó entre outras, que tinham suas
performances apoiadas em estrondosas bandas, com guitarristas, baixistas, tecladistas e
bateristas.
É importante ressaltar os atritos gerados entre a música sertaneja tradicional e a
música sertaneja, como bem aponta Araújo (2007, p.15):
É importante frisar que a partir da desvinculação em relação à temática, estética e
forma em geral da “nova vertente” do gênero em relação à música sertaneja
tradicional, as duplas de ambos os estilos, que poderiam ser definidas já como
gêneros distintos, têm atualmente uma relação relativamente amistosa. No boom dos
anos 1980, houve tendência marcante dos jovens astros em buscar cada vez mais se
desvencilhar da “velharia” e assumir, de forma empolgada, à modernização e à
estética “jovem”. Atualmente, as restrições, quando ocorrem, vêm do outro lado, das
duplas de violeiros tradicionais, que classificam a “nova música sertaneja” de forma
pejorativa como “sertanojo” ou “música de motel” em referência à temática
praticamente única do estilo: as desventuras amorosas. Em relação aos astros desta
“nova música sertaneja” assumem postura bem diferente daquela dos anos 1980, em
que as duplas tradicionais eram encaradas pelas jovens duplas da nova música
sertaneja de modo depreciativo, representando um verdadeiro “conflito de
gerações”. Atualmente dizem respeitar muito as duplas antigas a quem se referem
como verdadeiros mestres e, vez por outra, fazem questão de inserir um “clássico
sertanejo” na gravação de seus discos, quando não gravam um inteiro composto
somente de “músicas de raiz”.
Outra obra também muito importante, que auxilia a compreender a cisão entre esses
dois campos musicais é “A moda é viola: ensaio do cantar caipira”, de Romildo Sant’Anna
(2009). Esse trabalho é de suma importância, visto que traça uma linha do tempo ao longo de
sua explanação, sendo que, posteriormente, divide o estudo em duas partes. Primeiramente,
apresenta as configurações do cantar caipira, realizando a articulação entre o caipira e seu
meio, e como esse ambiente se expressa em suas canções, além de ressaltar sua cultura
material e imaterial, assim como seu papel socializador e lúdico. Por fim, traz a discussão
para a atualidade, analisando a situação da música caipira no cenário artístico atual, e como o
sertão hoje se representa no espaço citadino por meio da música caipira/sertaneja. Portanto,
estas considerações serão imprescindíveis para a compreensão do cenário em que atua a
música sertaneja em seus desdobramentos.
Um importante aspecto da música rural brasileira que é apontado por Romildo
Sant’Anna é a construção da dicção do cantar do caipira, conforme apresenta-se abaixo:
A Moda Caipira é cantada no acasalamento do dueto em terça, de mi e dó,
em falso bordão de dicção anasalada. O anasalamento conserva resquícios
de línguas e dialetos ameríndios; o cantar “entoando vozes” mantém a tradição
ritualística da missa, devocionada na igreja (SANT’ANNA , 2009, p.93).
Ao avaliar-se os discos da Coleção Nova História da Música Popular Brasileira em
relação a estes dois gêneros musicais discutidos acima. Pode-se notar que no primeiro disco,
25
destinado a música caipira de 1978, figura-se em suas faixas as seguintes canções do lado A
“Bonde Camarão” (Cornélio Pires) Mariano e Caçula, “Calango” (Capitão Furtado,
Alvarenga e Ranchinho) Alvarenga e Ranchinho, “Moda da Mula Preta” (Raul Torres) Torres
e Florêncio, “Velho Candeeiro” ( José Rico e Duduca) Milionário e José Rico. Do lado B
destaca-se “O Menino da Porteira ( Teddy Vieira e Luizinho) luisinho e Limeira, “13 de
Maio” (Teddy Vieira, Riaçhão e Riachinho) Moreno e Moreninho, “Rio de Lágrimas” (Tião
Carreiro, Piraci e Lourival dos Santos) Tião Carreiro e Pardinho, e por fim “Em vez de me
Agradecer” (Capitão Furtado, J Martins e Aymoré) Tonico e Tinoco. 3 Conforme pode-se
notar na capa do álbum abaixo:
(Coletânea Nova História da Música Popular Brasileira. Música Caipira, Abril Cultural
1978)
3
Ao longo da descrição o nome da música se encontra entre aspas, em seguida o nome do compositor e, por fim,
o interprete
26
No segundo disco, destinado a Música de Sertaneja de 1983, encontra-se do lado A
“Moda do Peão” (Cornélio Pires) Cornélio Pires, “Fogo no Canaviar” (Alvarenga e
Ranchinho) Alvarenga e Ranchinho, “Moda da Pinga” (Laureano) Inezita Barroso, “Boi
Amarelinho” (Raul Torres) Torres e Florêncio, “Sertão do Laranjinha (Tonico e Tinoco,
Capitão Furtado) Tonico e Tinoco, “O Menino da Porteira (Luizinho e Teddy Vieira) Tião
Carreiro e Pardinho. Em seguida, no lado B segue as seguintes canções: “Beijinho Doce (
Nhô Pai) Irmãs Castro, “Magoa de Boiadeiro” ( Nhô Basílio e Índio Vago) Ouro e Pinguinha,
“Quatro Coisas” (Vieira e Vieirinha) Vieira e Vieirinha, Tristeza do Jeca ( Angelino de
Oliveira) Tonico e Tinoco, Três Nascentes (João Pacifico) João Pacifico, e como última faixa,
Jorginho do Sertão (Cornélio Pires) Itaporanga e Itararé.4 Como nota-se na capa no álbum a
seguir:
(Coletânea Nova História da Música Popular Brasileira. Música Sertaneja, São Paulo Abril
Cultural 1983)
4
Ao longo da descrição o nome da música se encontra entre aspas, em seguida o nome do compositor e, por fim,
o interprete.
27
Como pode-se observar nas temáticas das músicas supracitadas, todas possuem como
referência o cenário rural, religioso ou se fundamentam em uma crítica a modernidade como
no caso da música Bonde Camarão e Tristeza do Jeca. E, quanto aos interpretes, nota-se que
quase todos apresentam a típica indumentária característica do caipira, com um figurino
composto por camisas xadrez, chapéu, calças e botas, como aparece nas capas e contracapas
dos discos, exceto a dupla Milionário e José Rico que aparecem na capa do primeiro disco
voltado a música caipira, na qual ambos pousam de terno xadrez, gravata e óculos escuros. No
encarte deste mesmo disco, a dupla aparece em três fotos com um figurino que destoa ainda
mais dos parâmetros propostos pelo tradicionalismo da cultura caipira, sendo que na primeira
ela mantém o padrão apresentado na capa, e nas outras duas fotos Milionário e José Rico
aparecem de cabelos cumpridos, sendo que na primeira, destas duas últimas, apresentam uma
releitura da indumentária do cowboy norte-americano e na segunda pousam com um visual
moderno característico da jovem guarda.
Seguindo a análise da dupla Milionário e José Rico, cabe ressaltar suas composições e
interpretações, como na música “Velho Candeeiro” que ocupa a quarta faixa do lado “A” do
disco Música Caipira. É possível constatar, a partir de uma audição atenta da música, que a
dupla abole a viola da harmonia da canção, instrumento esse que figura como símbolo da
música caipira, sendo que nenhuma das outras duplas que compõe os dois discos faz tal
opção. Além da abolição da viola nas músicas de Milionário e José Rico, estes ainda
compõem suas Harmonias musicais com guitarras, contra baixo, baterias, teclados e backing
vocals. Com isso, a dupla rompe com as tradições instrumentais das duplas da música caipira
que seriam a viola e o violão, e seus respectivos músicos cantando em terça. Dessa forma,
eles apresentam uma modernização da música caipira que se encaixaria nos padrões da
“Música Sertaneja” como foi citado acima, pois, tal performance se cristaliza em duplas
posteriores a Milionário e José Rico, como Zezé di Camargo e Luciano, Chitãozinho e
Chororó, Leandro e Leonardo e Bruno e Marroney entre outras, ambas duplas que abolem a
viola de suas performances.
Isso demonstra que a Editora Abril, na seleção das canções que iriam compor os
discos da coleção “Nova História da Música Popular Brasileira”, não possuía intuito algum
em definir quem seriam os intérpretes caipiras e sertanejos, e quais representavam a
tradicional música rural. O que se tinha em vista era a popularidade alcançada por cada um,
visto que no disco destinado à música caipira, álbum “Ilusão Perdida”, de 1975, a quarta faixa
é dedicada a uma dupla que detinha o recorde do número de vendas de um mesmo disco de
música sertaneja, com mais de 200 mil cópias vendidas. Já no segundo disco, de 1983,
28
intitulado “Música Sertaneja”, não há sequer um intérprete da música sertaneja, pois todas as
faixas são ocupadas por clássicos da música caipira.
Com isso, observa-se que a cisão entre música sertaneja e caipira muitas vezes foge do
julgo da Indústria Cultural, ou seja, a cisão surge a partir dos próprios intérpretes, e do
público, que passa a recepcionar negativamente um gênero ou outro. Com isso, cabe apontar
que a gravadora Abril Cultural não possuía intenção alguma em demarcar o que era caipira e
o que era sertanejo, ela apenas atualiza o termo na capa do disco, pois, entre 1978 e 1983, a
música sertaneja consegue ampliar o seu público consumidor frente à música caipira.
Por conseguinte, pode-se demarcar a fronteira entre música caipira e música sertaneja
através da harmonia utilizada na construção das melodias dos dois gêneros, pois, como é
supracitado, a viola mantém a característica da música caipira em relação à música sertaneja,
diferentemente da temática apresentada por Waldenyr Caldas e José de Souza Martins, uma
vez que também se encontra na música sertaneja das duplas modernas canções com temáticas
voltadas para o religioso, ou que cantam a saudade do ambiente rural ou até mesmo uma certa
crítica a modernidade. Assim sendo, não se pode apenas utilizar tais parâmetros para realizar
a distinção entre os gêneros. Todavia, quando nos referimos ao uso da viola na composição de
suas harmonias musicais, torna-se evidente essa diferenciação, pois na música caipira a viola
figura como protagonista da canção e já na música sertaneja ela passa ser mera coadjuvante,
sendo utilizada em brevíssimos momentos, apenas para que as duplas se justifiquem dentro de
uma tradição musical (ZAN, 2004).
Junto a essas considerações elencadas acima, cabe analisar o papel da Indústria
Cultural, na segmentação desses dois gêneros, pois quando a editora Abril Cultural divulga
esses dois discos, indiretamente ela contribui para a consolidação de dois gêneros musicais
distintos, influenciando, dessa forma, na formação de um gosto musical. No entanto, isso não
significa que todos são reféns dos desejos da Indústria Cultural, e que bastaria apenas analisar
as condições de mercado para que se possa obter com clareza a fronteira entre a música
caipira e a música sertaneja, ou seja, tais analises de mercado seria insuficientes para
determinar tal problemática, por que em muitos desses casos a influência manipuladora da
Indústria Cultural não se concretiza, demonstrando, assim, que a própria Indústria fonográfica
atua, mais como mediadora dos interesses da sociedade do que propriamente como
manipuladora, como podemos observar na citação do pesquisador Gustavo Alonso (2011):
A partir da consolidação dos gêneros “caipira” e “sertanejo” pôde se estabelecer
distinções claras, assim como tornar vendáveis estes produtos, catapultando as
vendas e a participação das gravadoras no processo. A delimitação cultural e
nomeação dos campos foi essencial para que a indústria cultural pudesse
incrementar os lucros, mas foi também um processo que se deu para além da
29
intervenção e dos desejos mais diretos e manipuladores desta mesma indústria.
Embora não se possa ignorar o papel da indústria cultural na construção de qualquer
gênero musical no sistema capitalista, é importante constatar que as intenções
manipuladoras dos programadores e produtores culturais não são sempre cumpridas
e que os movimentos culturais fogem a sua alçada com tanta frequência que torna
difícil compreender as variações da música sertaneja apenas pela ótica industrial.
Nesse sentido a indústria cultural parece mais efeito de uma série de batalhas
culturais anteriores a sua própria gana por lucro do que simplesmente formatadora
deste novo campo cultural.
Desse modo, observa-se que a Indústria cultural, apesar da influência que exerce sob a
sociedade, a qual nunca deve ser descartada em uma análise, ela também se torna refém dos
desejos desta mesma sociedade que ela tenta ferozmente manipular, ou seja, por mais que ela
concentre seus esforços em criar uma uniformidade musical, isso por vezes lhe foge ao
controle.
Considerações Finais
Com esse breve ensaio não pretende-se criar uma tradição delimitando o que seria
música caipira e o que seria música sertaneja, mas sim apenas mapear os campos que se
desenvolvem essas duas expressões culturais e as tensões criadas entre ambos, principalmente
em relação à música caipira, que preocupava-se em manter o que era “genuinamente
nacional” em um momento de grandes interações e hibridismos culturais, principalmente pela
influência da música Country Estadunidense e a Rancheira mexicana, ritmos que
conquistaram a música sertaneja. No entanto, ao examinar a participação da Indústria Cultural
nos discos da Coleção Nova História da Música Popular Brasileira, nota-se sua falta de
critério ao definir tais gêneros musicais, pois no disco destinado a música caipira a quarta
faixa é dedicada a uma dupla que se reconhecem como sertaneja, alegando serem herdeiros da
tradição caipira. Apenas, no segundo disco de 1983, intitulado música sertaneja, não há um
interprete da música sertaneja, pois todas as faixas são ocupadas por clássicos da música
caipira como se nota na descrição citada acima no texto, com isso, observa-se que a cisão
entre música sertaneja e caipira, foge do julgo da Indústria Cultural, ou seja, a cisão surge a
partir dos próprios interpretes que não se reconhecem e do público que passa a recepcionar
negativamente um gênero ou outro. Sendo assim, pode-se concluir que mesmo que alguns
pesquisadores descartem a importância da diferenciação desses campos musicais para a
pesquisa de História e Música, faz necessária tal reflexão, pois sabe-se que tanto a música
caipira como a música sertaneja não são ritmicamente idênticas e menos ainda pertencem ao
mesmo circuito e não são recepcionadas pelo mesmo público.
30
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34
Gêneros Musicais: Em busca de uma construção sócio sonora
Diego da Rocha Viana Muniz
Resumo
O texto busca valorizar dinâmicas internas da classificação dos gêneros musicais da indústria
massiva, tendo em vista certa complexidade no jogo que interliga criatividade musical e sua
construção cultural. Para isso, valorizou-se a noção de sócio sonoridade e as bases sob as
quais se edifica a praticidade do rótulo comercial, levando em consideração a noção
identitária que ele suscita.
Palavras-Chave: Gênero musical, Etnomusicologia, Identidade de gênero musical, Música e
Mercado.
Abstract
The text seeks to valorize the intern variable of the classification of the musical genres of the
massive industry, and aims certain complexity in the relation of musical creativity and its
cultural construction. For this, valorized the idea of “sociosonority” and the bases of the
practical commercial classification, considering its identity idea.
Keywords: Musical genre, Ethnomusicology, Musical Genre Identity, Music and Market.
Gêneros Musicais: Em busca de uma construção sócio sonora
Um gênero musical é formado por regras socialmente definidas, com a possibilidade
de criação de subgêneros como desdobramento das variáveis artísticas. Enquanto a música
popular se caracteriza pela ideia simbólica de proximidade entre as condições de produção e
consumo, representada por gêneros como o samba, a salsa, o sertanejo, o jazz, músicas
regionais etc., os gêneros da música pop se caracterizam pela mediação ou mescla de regras
da música popular, no contexto da máxima produção e consumo. Baseiam-se em formulações
obtidas a partir de outras obras, onde a produção e reconhecimento modelam a criação e
recepção de códigos gerados, voltados ao mercado, sobre certo contexto.
No que diz respeito à união de obras musicais dentro de um sistema complexo de
classificação, é quase impossível englobar os diferentes ângulos de visão de um mesmo
gênero, sendo um ponto básico e crucial, a diferenciação quanto ao compartilhamento da
identidade de gênero que divide “nós” e “eles”, e enxerga “o outro” a partir do próprio
35
sistema sociocultural e sócio sonoro. Diante das complexas aproximações, confusões,
semelhanças e detalhes diferenciais, torna-se ainda mais pertinente um debate sobre a
identidade de gênero musical.
Tal visão evita não considerar um gênero o que é considerado como tal, por artistas
que se veem semelhantes; pela mídia; milhões de consumidores; críticos e assim por diante.
Exclui-se logicamente quem desvaloriza a classificação comercial dos gêneros musicais,
como um importante compartilhamento da identidade social dos grupos através da música.
Se a classificação é em si um complexo, a não classificação é paradoxalmente um
problema ainda maior, uma vez que a invenção de tais gêneros faz parte de um patrimônio
cultural da humanidade, que sem uma nomeação flexível de contorno direcional, tende a se
perder. Há a necessidade de demarcar a identidade, em um território onde exista a exploração
de um leque de variáveis possíveis na expressão musical, limitado por fronteiras. Universo
que interliga a publicidade da criatividade e do gênio artístico, mediado pela herança da
formação dos gêneros que atua como um legado memorial existente que o referência e
estrutura.
Ao relacionar as mobilidades da criatividade artística e da identidade, nenhuma
demarcação de gênero musical estará inabalável e protegida. Em adição a isso, complexa e
contraditoriamente, uma classificação, rótulo ou gênero musical pode incluir o conjunto de
outros ritmos e em muitos casos, outros gêneros. Fato acentuado por questões cruciais imersas
na pós-modernidade. O samba, por exemplo, comumente visto como a “representação
autêntica” do gênero nacional, pode conter em seu repertório a marchinha, o maxixe e a
moda.
É necessário que um grupo de pessoas baseado em tais parâmetros aceite sua
existência, negando-a toda vez que fugir aos seus principais critérios de identificação.
Fazendo dele não apenas um evento, mas uma programação contínua de natureza
multifuncional, que pode internamente incluir contradições que se expandem ao se
singularizar.
A escolha do repertório artístico nos remete a uma ideia eletiva de músicas que
recordem eventos, fatos e expectativas, num imaginário parte da memória social em sua
relação simbólica e representativa com o presente. Não se ouve comumente um bolero, à
meia-noite, na Avenida Sete de Setembro num sábado de Carnaval em Salvador. Busca-se
36
uma coerência adaptativa do repertório musical com o ambiente onde se está, em seu espírito
envolvido.
É comum haver divergências com relação à exposição de pensamentos de
compositores, críticos especializados, público, músicos, produtores etc. O que além de não
excluir a questão, ressalta a importância das ciências sociais, onde os profissionais estão
adaptados a questionar a familiaridade cultural, dialogando a visão “de perto e de dentro” com
um distanciamento necessário a uma visão melhor e mais ampla. O que aumenta a
necessidade de entender e perguntar às fontes com maior profundidade e rigor, principalmente
diante da natureza dinâmica da cultura, que faz com que um gênero se desenvolva com o
passar do tempo com funções que se reafirmam a cada fenômeno. Tal trabalho necessita de
técnicas que possam ir além das pessoas imersas em seu próprio conjunto universo.
As convenções musicais também se estruturam em torno de práticas performáticas que
se posicionam como sentidos de ser e estar no mundo Se criam histórias, afinidades culturais,
com associações, repelentes etc.: longe de se restringirem a respostas imediatas, se localizam
perto do processo histórico. As experiências performáticas incluem a produção de uma
identidade, sobre continuação, rejeição ou criação de novos códigos.
Sendo assim, a noção de sócio sonoridade aponta para um conjunto complexo de
regras e esquemas sociais e musicais que se acomodam na consciência, de forma a indicar a
classificação num dado gênero musical. Dessa maneira se associam aspectos musicais e
sociais, não se desmerece o potencial criativo de uma cultura, e tampouco se subestima novas
formas emergentes de identidade de gênero, dando maior atenção à adaptação e atualização
das variáveis históricas e dos parâmetros, em prol do entendimento da alteridade.
Ao chegar a uma loja, um cidadão comum tem mais certeza do que quer comprar do
que muitos estudiosos. O gênero costuma ser uma das primeiras formas de reconhecimento e
experimentação musical. Por se tratar de algo familiar, dificilmente se pensa no que foi
construído ao longo do tempo sob ideologias cultivadas como identidades. Gêneros diferentes
têm memórias diferentes, cuja visão se torna mais clara quando comparadas.
Individualmente, os músicos também têm suas memórias, regras e culturas, dentro de
diferentes variáveis subjetivas. Esse universo inclui ritmo, harmonia, melodia, além de outras
sonoridades possíveis, que recaem nas mãos de músicos, musicólogos e demais cientista. O
foco na performance individual atenta para questões pessoais que enriquecem a criatividade,
uma vez que admitem a existência de elementos externos que não necessariamente são
37
compartilhados com frequência dentro do gênero. Um compositor já pressupõe que sua obra
seja aberta, e será executada e modificada dentro do contexto dos envolvidos nas etapas
posteriores de produção. Esse evento se torna um importante fator relacionado à flexibilidade,
parte de uma liberdade que diminui a pressão social. Memórias de tempos históricos
diferentes, demandam pressões sociais diferentes.
Dessa forma, os gêneros pós-modernos são postos incisivamente à prova, uma vez que
a criatividade tem a liberdade de permear os atores imprevisivelmente, no processo de
produção e divulgação, desafiando por conseguinte, as possibilidades e limites prescritos em
uma comunidade musical em seus elementos norteadores.
As ideologias de gênero podem levar a uma disputa (mesmo que subjetiva) que
comumente dificulta os estudos, uma vez que pressupõe preferências, hierarquias de valores,
imposições sociais a partir de um referencial cultural distinto etc.
A noção que engloba os diversos atores na produção e consumo artístico é uma
importante face da etnomusicologia. Uma das formas de analisar, é fazer a escuta particular
da performance de cada artista e instrumento em questão, vendo como as diferenças
particulares se harmonizam no conjunto. O indivíduo tem liberdade de aprender e expressar
coisas que fogem à avaliação generalizada.
Identidade de gênero musical
O gênero está dentro de um contexto histórico estruturado, onde um modelo bem
sucedido serve de referência à continuação das regras. Novos gêneros e subgêneros surgem da
transgressão de tais regras negociadas com pesos diferentes, fazendo com que sua não
obediência não signifique necessariamente sua inexistência. A manutenção dos modelos de
sucesso aparece como um decreto identitário que pode ser considerado velho ou arcaico pelas
gerações seguintes que almejam novos códigos, numa dinâmica típica da história.
Busca-se uma unidade parte da motivação cultural em prol de certas identidades, que
atuam com caráter diferencial a outras. Essas diferenças são códigos possíveis de serem
analisados, que se articulam de maneira complexa e criativa com os gêneros musicais,
38
interligando performance vocal, instrumental, de comunicação corporal (dança) e outros
elementos. Elas fazem com que a classificação crie uma série de expectativas dentro de um
repertório cognitivo, que não podem ser facilmente negadas.
A familiaridade identitária na indústria da música massiva, tende frequentemente à
simplificação dos códigos de linguagem sócio sonoros a fim de torná-los domáveis,
inteligíveis e compartilhados mais amplamente, o que depois de certo tempo tende a
empobrecer e a diminuir o interesse, justamente pela falta do estímulo natural das adaptações
às dificuldades. Outro fator importante, é que a contínua previsão diante da similaridade tende
a aumentar o impacto da surpresa diante da mudança. Dessa maneira, após certo grau de
maturidade, quanto mais adaptadas à diferença e à complexidade forem as regras, mais
criativas serão.
A competência varia internamente em relação às composições, performances dos
músicos, críticas e bandas. Artistas do mesmo gênero se unem na diferença, sendo que os
códigos convencionais incorporados ideologicamente, fazem com que tal naturalidade
dificilmente seja vista com clareza por quem está dentro.
Um gênero pode ser considerado por uns como a variação de outro ou como uma
mudança que justifica a criação de um novo gênero, causando não só ambiguidades, como
uma relação tensa e transgressora com as regras pré-estabelecidas.
Gêneros mais essencialistas, comumente influenciados por políticas identitárias,
tendem a assumir sonoridades mais exclusivistas. Nessa concepção de pensamento, a música
afro-americana é “naturalmente” apreciada e produzida pelos afro-americanos; aspectos
globalizantes minam a musicalidade local, sendo parte da “destruição” do patrimônio artístico
de certos grupos etc. Na mesma levada, se caracterizam composições tipicamente femininas,
masculinas entre outros aspectos de semelhanças. As diversas defesas se reafirmam como
formas que se mantêm resistentes às variações no tempo e no espaço.
O preenchimento do próprio espaço aparece como marcação de identidade. De um
território. A identidade aparece como um ideal. A resposta para “o que gostaríamos de ser”
(não o que somos) também se apresenta na musicalidade, com caráter dinâmico e dialógico.
São fatores variáveis no tempo, embutidos na música num imaginário e em performances que
remetem a se reconhecer e ser reconhecido.
39
Gêneros diferentes têm identidades diferentes, e demarcam grupos sociais distintos,
com maneiras alternativas de interação social. Eles configuram experiências que te localizam
imaginariamente numa narrativa cultural.
As particularidades também surgem nas singularidades dos principais instrumentos
que simbolizam tais gêneros; na dança; no perfil do público; na escolha dos principais
sentimentos envolvidos; nas críticas internas e externas etc.
Em caráter cultural frequentemente oposto, os instrumentos da música clássica e
política normalmente levam orquestras de sopro, violino e piano, que os gêneros populares
frequentemente dispensam, ou ao menos não são tipicamente representados por eles. Esses
por sua vez têm suas exigências e representações próprias, como por exemplo, a percussão na
Axé Music, o violão no bolero e a guitarra no rock.
O trio bateria, contrabaixo e a guitarra nos lembram o rock and roll. O tantan,
pandeiro e o cavaquinho, o samba. Violão, zabumba, triângulo e sanfona, o forró pé-de-serra.
Esses exemplos fazem parte de identificações sociais em torno das exigências instrumentais
típicas, para a constituição dos gêneros musicais.
A sonoridade diz respeito a uma combinação dialógica da performance instrumental e
vocal (muitas vezes simultânea). A formação e identificação social de esquemas inteligíveis e
regras, constitui uma classificação.
A associação de dada sonoridade com a classificação do gênero musical, sentimentos,
experiências, imaginários e ações, diz respeito à identidade e ao que ele, no conjunto dos
artistas representantes, oferece ao mundo. Diante de inovações, cabe observar, por exemplo,
como o repertório do artista foi recebido pelos seus semelhantes. Se será incluído,
incorporado, particularizado, se causará desconforto ou será excluído da classificação.
As regras de gênero se estruturam quanto à função social, formas internas, divisão de
classes, grupos, gerações etc. onde a própria preferência gera critérios mais importantes que
outros, inclusive do que é básico e principal e o que é coadjuvante ou figurante.
O dominante varia, podendo ser o foco na dança, em letras intelectuais, emotivo, nos
ritmos envolvidos etc. e por mais que um gênero se veja como mais original e autêntico que
outros, a história mostra que quase sempre ocorre uma mistura de influências. É o caso do
jazz, por exemplo, que como classificação generalizada para uma nova música dançante,
40
influenciou substancialmente certa subdivisão do rock nos anos posteriores5. Há uma flexível
criatividade dentro de um gênero artístico que o capacita a ter características internas de
outros gêneros e ritmos.
Sem certos rituais característicos, dadas expressões musicais perdem a autoridade
social construída, que aponta seu lugar nas relações entre os grupos. A música se postula
como uma excelente forma de entrecruzar culturas, fronteiras regionais, territórios globais,
sonoridades, classes sociais, etnias etc. em sua dinâmica interna.
A classificação é parte importante da mediação. Ela além de identificar socialmente a
produção musical e sua criatividade intrínseca, tem um público-alvo como destino e permite a
vivência do consumidor diante de diversos produtos da cultura relacionados aos gostos,
estilos de vida, sociabilidades, ideologias, fidelidades às tradições e visões de mundo.
A noção de música pop se refere ao encontro domado, da cultura popular com a mídia.
Diferentemente de outros seguimentos, a natureza midiática pede grandes investimentos e
lucros, devido à expansão às massas. Esse circuito inclui o pagamento de uma série de
pessoas, desde a criação, produção, execução e divulgação da obra, até o transporte, figurino,
tecnologia nos shows entre outros fatores.
A canção pop também tem seu direcionamento identitário. Se caracteriza pela
transformação dos códigos culturais em letra, ritmo, harmonia e melodia. Tem uma
regularidade rítmica e melódica que privilegia os refrãos, com vocabulário acessível e temas
recorrentes. O refrão é bem entendido como um modelo melódico de fácil assimilação, com
objetivo principal de memorização e participação por parte do ouvinte que canta junto,
durante a audição. Ele se repete ao longo da canção, servindo de base para os outros
elementos da música, valorizando o ritmo, a rima e os aspectos semânticos da letra.
Diante do hibridismo, da flexibilidade, mobilidade da criação artística, bem como das
diferentes faces assumidas de um mesmo gênero em um curto intervalo de tempo, como
pressuposto para sua manutenção no mercado da música pop, parece se não impossível,
retrógrado, falar em gênero musical. A classificação, porém, continua importante para orientar
consumidores, empresas envolvidas e os próprios artistas. Ela está presente nas lojas
especializadas (físicas ou virtuais) e na crítica musical que necessita da referência e divisão,
como uma síntese e um filtro prático, frente ao excesso de informação. São rótulos com
5
GUMES, Nadja Vladi Cardoso apud Hobsbawn A música faz o seu gênero: uma reflexão sobre a importância
das rotulações para a compreensão do indie rock. 2011, p.18.
41
códigos complexos que caracterizam como é produzido, consumido e reconhecido por um
grupo.
Netinho e Ivete Sangalo são classificados como cantores de Axé Music, por mais que
diversifiquem seus repertórios se aproximando do pop rock e da MPB, por exemplo. O excantor da banda de reggae, Cidade Negra, Tony Garrido, tentou migrar para o pop rock,
fazendo carreira solo depois de sair da banda. Mesmo sendo individualmente um ícone que se
destaca e se desvincula da banda, (fazendo apresentações como ator de cinema e apresentador
de programas de TV), não obteve a boa recepção que esperava pelo público dos outros
gêneros6. ²
Ritmos, gêneros e produções musicais são baseados em decisões complexas do ideal a
ser fazer, por produtores, músicos e outros profissionais do circuito mercadológico.
Esse direcionamento tem base no compartilhamento da própria cultura e história referenciais,
construídas pelos alcances dos diferentes grupos.
Assim, a classificação aparece como um manual cujo conteúdo permite compartilhar
um leque de possibilidades e um denominador comum de conhecimento musical, experiências
emotivas e de sociabilidade, formas diversas de interpretação e particularidades das
características musicais. Essas formas são variáveis conforme o diálogo da identidade, da
performance individual, das bandas e grupos em sua comunicação com o público.
Considerações Finais
A fim de evitar parcialidades e/ou julgamentos inadequados, o texto valorizou a noção
de sócio sonoridade na classificação de um gênero musical, levando em consideração sua
complexidade, ao interligar construções vinculadas às performances musicais e socioculturais.
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http://www.tonigarrido.com.br/. Acesso em 11/05/2011
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programas
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A reconfiguração da política externa norte-americana para o Oriente
Médio (1967 – 1979)
Thiago Henrique Sampaio
Graduando em História pela Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Assis.
Resumo
Nos dias atuais percebemos o constante interesse norte-americano na região do Oriente
Médio, principalmente pela questão energética e do fundamentalismo religioso que começou
a ganhar força nas últimas décadas. Mas, a pergunta que fica: a partir de quando os Estados
Unidos começaram a reconhecer o Oriente Médio como região de importância na sua política
externa? O presente trabalho tem como objetivo analisar o período de 1967 – 1970
evidenciando que nesta época até os dias de hoje o Oriente Médio passa a ser uma das regiões
mais estratégicas na política externa norte-americana, devido a importância de seus recursos
energéticos e a preocupação de conter o fundamentalismo religioso que começava a ganhar
força no período. A partir disso, podemos considerar que estes anos foram fundamentais para
o Oriente Médio se consolidar como preocupação para a diplomacia norte-americana.
Palavras-chaves: Estados Unidos, Oriente Médio, Política Externa, Guerra Fria
Abstract
Nowadays we realize the constant American interest in the Middle East region, especially the
energy issue and the religious fundamentalism that started to gain momentum in recent
decades. But the question remains: from when the United States began to recognize the
Middle East as a region of importance in its foreign policy? This study aims to analyze the
period of 1967 - 1970 showing that at this time until the present day Middle East becomes one
of the most strategic regions in U.S. foreign policy, because the importance of energy
resources and concern contain religious fundamentalism that began to gain momentum in the
period. From this, we can consider that these years have been fundamental to the Middle East
to consolidate as concern for American diplomacy.
Keys-words: United States, the Middle East, Foreign Policy, Cold War
Introdução
Desde o século XIX, a política externa norte-americana se voltou a América e a
Europa. Os interesses dos Estados Unidos no continente americano se tornaram evidente a
partir da Doutrina Monroe (1823) e da Diplomacia do Big Stick; e no caso da Europa os
interesses econômicos e políticos ficaram evidentes após a II Guerra Mundial, com o avanço
da União Soviética sobre os países da Europa Oriental formando um bloco de países que
adotaram o comunismo como sistema econômico-social.
45
A política externa adotada para a Europa nos pós-Guerra se encontram dentro da
Doutrina Truman, que designou um conjunto de medidas do governo norte-americano para a
contenção do comunismo a países que estavam com suas economias fragilizadas ao final do
conflito bélico.
E como se desenvolveu as relações internacionais dos Estados Unidos com as demais
partes do globo, especificamente, o Oriente Médio?
A região compreendida como Oriente Médio esteve ao longo do século XIX até
meados do século XX sobre interesse das potências européias (principalmente França e
Inglaterra). Até 1923, está região era subjugada pelo Império Otomano, após seu
desmoronamento com o término da Primeira Guerra Mundial e a divisão de seus territórios
através do Tratado de Sèvres, Inglaterra e França puderam exercer influência e administrar
esta localidade. Só partes da península Arábica permaneceram livres de domínio europeu.
O Iêmen, assim que acabou a ocupação otomana tornou-se um Estado independente
sob o imã dos zayditas, Yahya. No Hedjaz, o xerife Husayn proclamou-se rei e governou por
alguns anos, mas na década de 1920 seu governo, ineficaz e privado de apoio britânico, foi
neutralizado por uma expansão de poder do governante saudita, Abd al-Aziz (1902 – 1953),
da Arábia Central; tornou-se parte do novo Reino da Arábia Saudita, que se estendia do Golfo
Pérsico ao mar Vermelho. O protetorado britânico sobre pequenos estados no Golfo Pérsico
continuou a existir; uma área de proteção britânica foi ampliada para leste, a partir de Áden; e
no sudoeste da península, com apoio britânico, o poder do sultão de Omã em Mascate foi
estendido ao interior, a custa do imã Ibadita (HOURANI, 2005, p. 321 – 322)7.
Colocadas em suas posições de potência, a Inglaterra e a França puderam, entre 19181939, expandir seu controle sobre o comércio e a produção da região. O Oriente Médio era
importante para a Europa como fonte de matérias-primas, e uma grande proporção de
investimento britânico e francês era dedicada a criar condições para extraí-las e exportá-las
(HOURANI, Albert. Op. cit, p. 323). Os países árabes tinham grande dependência da Europa
para a maioria dos produtos manufaturados (combustíveis, metais, maquinaria), a importação
e a exportação eram feitas por navios britânicos e franceses (HOURANI, Albert. Op. cit, p.
324).
No Iraque, o controle do mandato britânico tinha, desde o princípio, sido exercido por
intermédio do rei Faysal e seu governo; o âmbito de ação do governo foi estendido em 1930
por um Tratado Anglo-Iraquiano, pelo qual o Iraque recebia independência formal em troca
7
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 321 – 322.
46
de um acordo para coordenar sua política externa com a da Inglaterra. Após o tratado, o
Iraque foi aceito como membro da Liga das Nações, um símbolo de igualdade e admissão na
comunidade internacional (HOURANI, Albert. Op. cit, p. 333).
No Egito, a existência de um partido nacionalista bem organizado tendo por trás a
classe de proprietários rurais e uma burguesia em expansão ansiosa por uma mudança
política, e por temores britânicos quanto às ambições italianas (devido a recente invasão da
Itália na Etiópia), tornou possível um Tratado Anglo-Egípcio de 1936. A ocupação militar do
Egito foi declarada encerrada, mas a Inglaterra ainda poderia manter forças armadas numa
zona em torno do Canal de Suez; logo depois, o Egito adentrou a Liga das Nações
(HOURANI, Albert. Op. cit, p. 333). Neste período, começou a emergir no Egito duas
poderosas forças, uma política e outra religiosa, que rapidamente se espalhou por diversos
países da região: o Partido Comunista e a Irmandade Muçulmana (HOURANI, Albert. Op.
cit, p. 350).
A Segunda Guerra Mundial aconteceu em um mundo árabe que parecia firmemente
seguro dentro dos sistemas colonial francês e britânico. Os nacionalistas podiam esperar uma
posição mais favorável dentro deles, mas o poder militar, econômico e cultural de Inglaterra e
França parecia inabalável. Nem os Estados Unidos, muito menos a União Soviética, tinham
um limitado interesse no Oriente Médio e na região do Magreb (Líbia, Tunísia, Argélia e
Marrocos). A guerra foi um catalisador, trazendo rápidas mudanças no poder e na vida social,
principalmente nas localidades periféricas do mundo (HOURANI, Albert. Op. cit, p. 357).
Durante os anos iniciais a guerra foi essencialmente europeia. Mas, a situação começou a
mudar a partir de 1940 quando a França foi derrotada e retirou-se da guerra e a Itália entrou.
A partir de 1942, todos os países que tinham estado anteriormente sob domínio
britânico assim continuaram, e havia tropas britânicas também na Líbia, Síria e Líbano. O
domínio francês ainda permanecia formalmente na Síria, no Líbano e no Magreb, onde o
exército francês estava sendo refeito para tomar parte ativa nos últimos estágios da guerra na
Europa (HOURANI, Albert. Op. cit, p. 358).
As bases do poder britânico e francês tinham sido abalados na região do Oriente
Médio. O colapso da França em 1940 enfraquecera sua posição aos olhos daqueles que ela
dominava; embora tivesse emergido do lado dos vencedores, e com o status formal de grande
potência, os problemas da recriação de uma vida nacional estável e restauração de uma
economia danificada lhe tornou mais difícil apegar-se a um império colonial8. Na Inglaterra,
8
Esta posição de Albert Hourani sofre uma contestação ao se ler a obra Colonialismo e Neocolonialismo, uma
coletânea de ensaio do filósofo francês Jean Paul Sartre publicado ao longo de 1954 a 1962 na revista Temps
47
os esforços da guerra haviam levado a uma crise econômica que só podia ser superada aos
poucos, com a ajuda dos Estados Unidos; o cansaço e a consciência da dependência
fortaleceram a dúvida sobre se era possível dominar um império tão grande do mesmo jeito
que antes (HOURANI, Albert. Op. cit, p. 358).
Após o término da Segunda Guerra Mundial, ofuscando os poderes ingleses e
franceses, os Estados Unidos e a União Soviética tinham maiores recursos econômicos e força
humana que qualquer outro país, e no curso da guerra haviam estabelecido uma presença em
muitas partes do mundo. A partir disso, estariam em posição de exigir que seus interesses
fossem levados em conta em toda a parte, e a dependência econômica da Europa da ajuda
americana dava aos EUA um poderoso meio de pressão sobre seus aliados europeus a
permitirem o processo de descolonização (HOURANI, Albert. Op. cit, p. 359.)
O início da aproximação dos Estados Unidos e Oriente Médio
Depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA emergiram como a primeira hegemonia
de cunho liberal e democrático, iniciando seu ciclo de dominação e expansão econômica,
transformando drasticamente o caráter de sua diplomacia internacional para promover seus
interesses regionais em oposição à União Soviética9.
A descolonização levou o declínio das potências europeias, a derrocada de seus
adversários e sua ascensão econômica beneficiaram drasticamente os Estados Unidos em sua
política externa (PECEQUILO, 2005, p. 126 – 127)10.
A expansão do comunismo trazia a necessidade de construir redes de proteção contra
os soviéticos, regional e globalmente, contendo a disseminação de suas ideologias. Esta nova
política visava construir uma ordem internacional estável e duradoura que prevenisse a
consolidação e o aumento do poder rival (PECEQUILO, Cristina Soreanu. Op. cit. p. 130.).
A partir de 1946, ocorreu um avanço da União Soviética sobre os países do Oriente
Médio. No Irã, os soviéticos tentaram controlar a exploração de petróleo, enquanto na Turquia
Modernes que fez duras críticas ao colonialismo francês na Argélia e a construção da mentalidade de Argélia
Francesa, tanto na população francesa quanto nos argelinos. Vale ressaltar que os processos de descolonização
ocorridos no Antigo Império Colonial Francês foi mais penoso do que no caso Inglês, visto que houveram longas
guerras: Guerra de Independência da Argélia (1954 – 1962) e as Guerras na Indochina, esta última que irá
ocasionar a conhecida Guerra do Vietnã (1955 – 1975) onde ocorreu intervenção americana.
9
PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos: fundamentos e perspectivas. Cena
Internacional. Brasília: ano 2, n. 1, jun/2000, p. 161.
10
PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos: Continuidade ou Mudança? Porto
Alegre: Editora UFRGS, 2005, p. 126 – 127.
48
visavam o controle do estreito de Dardanelos (PECEQUILO, Cristina Soreanu. Op. cit. p.
138.).
Os Estados Unidos identificavam o grande risco na dominação da Eurásia pelos
soviéticos, era a obtenção por parte da União Soviética de condições materiais e territoriais
para superar o poder norte-americano. Era necessário impedir que uma só potência dominasse
a Eurásia (ou os blocos regionais), tornando-se uma preocupação duradoura da política
externa americana (PECEQUILO, Cristina Soreanu. Op. cit. p. 157).
Esta política de ação e reação de ambos os lados tornou-se uma marca característica da
Guerra Fria. Em resumo, a Guerra Fria, era uma luta entre dois modos de vida, entre dois
sistemas opostos, que tinham em comum o objetivo de estender-se, trabalhando efetivamente
para a decadência e o desaparecimento do outro (PECEQUILO, Cristina Soreanu. Op. cit. p.
149).
As Américas perderam a importância e a centralidade que haviam tido para os Estados
Unidos e não foram um alvo estratégico na Guerra Fria (PECEQUILO, Cristina Soreanu. Op.
cit. p. 161). Era na Ásia que se desenvolveram alguns dos problemas mais característicos do
período (PECEQUILO, Cristina Soreanu. Op. cit. p. 172).
A partir de 1948, ocorreu a política de porta aberta para o Oriente Médio, que consistia
em tratados (principalmente com Irã e Israel) que continham cláusulas sobre garantias de
investimentos do capital americano de entrar livremente em negócios e negava discriminações
contra investidores dos EUA. Estes contratos previam a não-interferência na propriedade e
nas operações de credores norte-americanos, bem como instituir outras medidas de proteção
nestes países11.
Em depoimento na Câmara dos Deputados, ocorrida em 1967, Robert McNamara
demonstrou qual era os reais interesses dos Estados Unidos para a região do Oriente Médio e
deixou subentendido como seria a política norte-americana para esta região:
O Oriente Próximo e o Oriente Médio continuam tendo importância
estratégica para os Estados Unidos, pois a região é uma encruzilhada
política, militar e econômica. O fluxo de petróleo do Oriente Médio é
vital para o Ocidente. Nós temos, portanto, muita coisa em jogo,
quanto a estabilidade e ao contínuo desenvolvimento dessa área.
Temos também um profundo interesse em manter nossas relações de
aliança com a Grécia, Turquia e Irã, pois estes países situam-se entre a
11
MAGDOFF, Harry. A era do Imperialismo: a economia da política externa dos Estados Unidos. São Paulo:
Hucitec, 1978, p. 139.
49
União Soviética, as bases navais e os recursos petrolíferos do Oriente
Médio12.
A ideia de que os EUA tinham algum tipo de “direito” sobre o petróleo do Oriente
Médio já estava presente, de modo discreto, nas décadas de 40 e 50. Eisenhower afirmou em
1957, após a Crise do Canal de Suez, que os EUA usariam a força “na eventualidade de uma
crise que ameace cortar o acesso do mundo ocidental ao petróleo do Oriente Médio”. No ano
seguinte, o presidente pediu ao Congresso autorização para o envio de tropas para o Oriente
Médio, justificando que a atitude era necessária para mostrar a “todos, inclusive os soviéticos,
que estamos plenamente dispostos a sustentar os direitos ocidentais na região”
13
. Ficando
implícito nessas falas que um desses “direitos” era o acesso ao petróleo.
A respeito da Crise do Canal de Suez, os Estados Unidos afastaram tanto de seus
antigos aliados europeus, França e Inglaterra, a quem impediram de retomar o controle do
Canal nacionalizado por Nasser, como do Egito, com o qual haviam se comprometido a
construir a represa de Asuan, depois assumida pela União Soviética.
Segundo Pecequilo, a literatura que trata da Crise de Suez é praticamente unânime em
afirmar que os Estados Unidos tiveram uma política extremamente confusa, que permitiu o
avanço da União Soviética no Oriente Médio. Apresentada por Kruschev como uma vitória
soviética, prova da mudança do equilíbrio de poder em favor do bloco comunista, os
acontecimentos no Egito foram conseqüência dos erros americanos, que já percebiam que o
Oriente Médio, como uma área vital de seu interesse, tanto do ponto de visto político, quanto
econômico devido as suas reservas petrolíferas (PECEQUILO, Cristina Soreanu. Op. cit. p.
177).
Na década de 1950, percebe-se que a Guerra Fria começou a caminhar pela periferia
do mundo, a Europa deixava de ser o palco principal deste conflito ideológico (PECEQUILO,
Cristina Soreanu. Op. cit. p. 179). Nesta época, os soviéticos tinham uma política para o
Oriente Médio, que ficou evidente a partir desta década. Demandavam a solução dos
desentendimentos pelas negociações pacíficas, a não-interferência nas questões internas dos
países, nenhum compromisso militar contra as grandes potências, liquidação das bases
12
Depoimento do secretário da Defesa Robert McNamara, no Comitê de Negócios Estrangeiros, na Câmara dos
Deputados. Hearings on the Foreign Assistance. Act of 1967. Washington, D.C: 1967, p. 114.
13
FUSER, Igor. O petróleo e a política dos EUA no Golfo Pérsico: a atualidade da Doutrina Carter. Lutas
Sociais, p. 25. Disponível em: www.pucsp.br/neils/downloads/v17_18_igor.pdf
50
estrangeiras, embargo à corrida armamentista e assistência econômica sem qualquer condição
política, militar ou outra14.
Um desafio a política externa norte-americana surgiu nesta época: o nacionalismo nos
países produtores de petróleo. Essa tendência começou com as pressões para mudar as regras
de divisão dos lucros em países como o Irã e a Arábia Saudita, cujos governos passaram a
reivindicar condições cada vez melhores15.
Em 1951, subiu no Irã como primeiro-ministro Mohammed Mossadegh, que liderou
um forte movimento nacionalista no país que defendia o controle de suas riquezas
petrolíferas. Foi favorável a nacionalização da Anglo-Iranian Oil Company, companhia que
operava no Irã desde 1909 e seus maiores acionistas eram ingleses. O Parlamento iraniano
aprovou a nacionalização do petróleo e Mossadegh era visto como um símbolo da luta
antiimperialista em seu país. Os ingleses juntamente com os americanos propuseram um
boicote ao petróleo iraniano com o objetivo de sufocar a economia fragilizada do país, isso
acarretou em uma aproximação do governo de Mossadegh com a URSS.
Segundo Newton Carlos, Mossadegh exagerou na estratégia de chantagem sobre os
Estados Unidos, declarando que se não obtivesse mais auxílio americano teria que procurar
com a União Soviética, insinuando que estaria disposto a assinar com esse país um acordo
econômico e de defesa mútua, esta aproximação realizaria os objetivos principais da política
externa russa desde os tempos dos czares, o acesso ao Golfo Pérsico, linha de vital
importância do Ocidente para o Extremo Oriente16.
O boicote gerou uma crise de poder entre Mossadegh e o xá Reza Pahlavi. Os
britânicos junto com os EUA pensaram em um plano para afastar Mossadegh do poder,
agitando a população iraniana contra o primeiro-ministro. Motivado pelas movimentações
populares, Reza Pahlavi demitiu seu primeiro-ministro, o que provocou manifestações
favoráveis a Mossadegh que obrigaram o xá a abandonar o Irã. Mas, Mossadegh não
conseguiu manter o poder por muito tempo, sofreu um Golpe de Estado que instalou o general
Fazlollah Zahedi como primeiro-ministro e o xá regressou ao país com poderes absolutos,
favoráveis a política norte-americana e britânica17.
Quando o preço do petróleo foi unilateralmente reduzido pelas concessionárias, em
1959 e, novamente, em 1960, infligiu perdas aos Estados produtores, com isso decidiram criar
O’CONNOR, Harvey. O Petróleo em crise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1962, p. 302.
FUSER, Igor. Op. cit. p. 24. Disponível em: www.pucsp.br/neils/downloads/v17_18_igor.pdf
16
CARLOS, Newton. Irã: a força de um povo e sua religião. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1979, p. 48.
17
FUSER, Igor. Op. cit. p. 24. Disponível em: www.pucsp.br/neils/downloads/v17_18_igor.pdf
14
15
51
um poder que seria o contraponto à exploração das multinacionais petrolíferas 18. Em 1960,
surgiu a OPEP, Organização dos Países Exportadores de Petróleo, criada pela Arábia Saudita,
Iraque, Irã, Kuwait e Venezuela com o objetivo de fazer uma frente comum nas negociações
com as multinacionais petrolíferas. A OPEP surge com duas cláusulas principais em seu
acordo de criação:
1. Unificação das políticas petrolíferas e;
2. Os países exportadores não podendo permanecer indiferentes à
atitude das companhias realizando modificações de preços exigirão
deles a manutenção de preços estáveis, restauração dos preços
reduzidos e no futuro, só modificá-los com a autorização dos países
produtores. Será planejado um sistema de estabilizar os preços pelo
controle da produção, e os países formarão uma frente única,
rejeitando as ofertas de tratamento preferencial pelas companhias a
um membro em troca da ação unilateral19.
Desde finais da década de 1940, a Venezuela clamava os Estados produtores de
petróleo a unirem-se contra as multinacionais, mas seriam apenas em finais da década de 1950
que o ministro do petróleo saudita, Abdullah Tarik, aceitaria tais ideais20. Ao longo da década
de 1950, ficou evidente este discurso nacionalista sobre o petróleo, como podemos analisar
abaixo:
O petróleo árabe é nosso. È nossa riqueza nacional, que não se
enquadra apenas essencialmente, mas sim totalmente, dentro de nossa
jurisdição. Não admitimos qualquer discussão dele em qualquer foro
internacional. Os países produtores de petróleo, e aqueles pelos quais
o petróleo transita, podem discutir entre si o que devem discutir, e
quando devem discutir. O petróleo, o nosso petróleo, não é uma
mercadoria política de uma empresa internacional, e estamos
decididos a mantê-lo fora da área da política21.
Outro elemento importante que começou a se destacar no período como unidade
importante para a política externa norte-americana foi à criação do Estado de Israel (1948) e
seu posicionamento do conflito árabe-israelense.
18
FERABOLLI, Silvia. A (dês) construção da Grande Nação Árabe: Condicionantes sistêmicos, regionais e
estatais para a ausência de integração política no Mundo Árabe. Dissertação de Mestrado em Relações
Internacionais. Universidade Federal do Rio Grande do Sul: 2005, p. 54.
19
O’CONNOR, Harvey. Op. cit., p. 410.
20
FERABOLLI, Silvia. Op. cit., p. 54.
21
Discurso do delegado saudita na ONU, Ahmad Sukairi, em Agosto de 1958. IN: O’CONNOR, Harvey. Op.
cit., p. 365.
52
União Soviética e Estados Unidos rapidamente reconheceram a criação do Estado de
Israel em 1948. No caso americano, Gaddis afirma que o reconhecimento do EUA para este
país deveu-se basicamente por três fatores: compaixão humanitária decorrente do Holocausto;
conveniência para a política interna, especificamente a reeleição de Truman e “teimosia
pessoal” do presidente americano22. Inicialmente, ocorreu uma aproximação entre Israel e
União Soviética, mas isso rapidamente irá mudar decorrente da política externa soviética para
o Oriente Médio e a Guerra do Canal de Suez (1956)23.
A partir de 1958, começou a ficar evidente o papel estratégico de Israel na política
externa norte-americana devido à deposição do governo pró-ocidental do Iraque, tendo o novo
governo se alinhado a URSS, as crises no Líbano e na Jordânia. Israel mostrou-se como o
único regime pró-Ocidente estável da região, cuja sua aproximação com os EUA poderia ser
estratégica24.
Nos governos Kennedy e Johnson definiram a relação entre EUA e Israel como
especial e também ocorreu o fornecimento de armas defensivas para os israelenses. Segundo
Karsh, a ampliação do fornecimento de armas para Israel deveu-se a necessidade de
Washington em prevenir inicialmente o desenvolvimento e uso de armas nucleares por parte
de Israel25.
Em 1967, ocorreu a Guerra dos Seis Dias devido a atritos entre Israel e os países
árabes vizinhos, em especial Egito e Síria. Durante o conflito, a diplomacia israelense tentou
conquistar garantias norte-americanas de que um ataque aos israelenses constituiria um ataque
aos EUA, o que não ocorreu. Os americanos temiam serem envolvidos em um novo conflito
bélico, já que estava em andamento a Guerra do Vietnã (1955 – 1975) que trazia enormes
gastos econômicos e militares. Fora que, um conflito que envolvesse a Síria e o Egito poderia
atrair a URSS, aumento as dimensões bélicas. O posicionamento americano ao longo do
conflito esteve restrito em caráter apenas diplomático26.
Em decorrência da guerra, houve diversas transformações para a política do Oriente
Médio. Safran destaca a importância da vitória israelense para a política americana na
localidade, caso Israel tivesse sido derrotado a posição norte-americana na região seria
22
GADDIS, John Lewis. We now know: rethinking cold war history. Oxford: Oxford University Press, 1997, p.
164.
23
KARSH, Efrain. “Israel” In. SHLAIM, Avi; SAYIGH, Yezig. The Cold War and the Middle East. Oxford:
Clarendon Press, 1997, p. 161.
24
BORTOLUCI, José Henrique. Política Externa Norte-Americana e o Conflito Árabe-Israelense (1967 –
1982): Dinâmica e Fatores Determinantes. Monografia de Bacharelado em Relações Internacionais. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2005, p. 13.
25
KARSH, Efrain. Op. cit., p. 162.
26
BORTOLUCI, José Henrique. Op. cit, p. 15.
53
profundamente enfraquecida27. Para Karsh, o conflito conquistou intensamente as grandes
potências nos assuntos do Oriente Médio, intensificando a competição entre essas e
transformou suas relações com os países locais. Ele ainda completa que a guerra produziu
imagens que perdurariam até os dias atuais na mente da população dos países beligerantes e
trouxeram empecilhos às tentativas de paz na região28.
Reconfiguração da política externa norte-americana para o Oriente Médio (1967 – 1979)
Na década de 1970, a atual configuração da política externa norte-americana para o
Oriente Médio se estabeleceu e se manteve até os dias de hoje. Entre os fatores que podemos
abordar que foram fundamentais para isso se encontra: a Guerra do Yom Kippur29 (1973),
Crise do Petróleo (1973), Acordo de Camp David (1978), a Revolução Islâmica no Irã (1979)
e a Invasão Soviética no Afeganistão (1979).
De 1969 a 1974, os Estados Unidos foram governado por Richard Nixon, período que
o país se encontra plenamente envolvido com questões do Oriente Médio. Houve uma
reorientação da política externa norte-americana que visava confiar a segurança de certas
regiões do planeta a seus aliados, fornecendo ajuda militar e econômica30. No caso do Oriente
Médio, Irã, Arábia Saudita e Israel foram os principais pilares de sustentação dos EUA 31, está
nova doutrina ficou conhecida como Doutrina Nixon.
A Guerra de Yom Kippur (1973) representou uma das maiores crises que a
administração norte-americana se envolveu no Oriente Médio. A guerra foi um evento
totalmente inesperado tanto para os Estados Unidos quanto para Israel, isso se deve a
dependência norte-americana da inteligência israelense na região32 e a descrença que os
árabes iniciariam uma guerra estando em posição de inferioridade militar.
O avanço das tropas síria e egípcias nos primeiros dias do conflito foram
surpreendente para Israel e Estados Unidos, levando uma pesada perda de soldados e material
27
SAFRAN, Nadav. Israel: The embattles ally. Cambridge: Belknap Press, 1978, p. 418.
KARSH, Efrain. Op. cit., p. 163-164.
29
Ocorreu de 06 de Outubro a 26 de Outubro de 1973, começou com um contra-ataque da Síria e do Egito,
coincidindo com o dia do feriado judaico de Yom Kippur. Os dois países lideraram uma coalizão de países
árabes que cruzaram as linhas de cessar-fogo na península de Sinai e nas Colinas de Golã, que desde 1967
pertenciam a Israel, devido a Guerra dos Seis Dias.
30
LESCH, David W. 1979: the year that shaped modern Middle East. Boulder? Westview Press, 2001, p. 38.
31
LITTLE, Douglas. American Orientalism: the United States and the Middle East since 1945. Chapel Hill: The
University of North Carolina Press, 2004, p. 119.
32
BORTOLUCI, José Henrique. Op. cit, p. 24.
28
54
de guerra. Isto levou o país a requisitar uma ajuda americana que garantisse sua vitória contra
os árabes, que eram armados pela tecnologia militar soviética.
Com a ajuda americana, Israel, nas últimas fases da guerra, havia recuperado os
territórios perdidos inicialmente, além de conseguir avanços nas regiões que já tinha
conquistado na Guerra dos Seis Dias (1967). O cessar-fogo foi aprovado pelo Conselho de
Segurança da ONU, mas desrespeitado por ambas as partes envolvidas. Isso ocasionou uma
crise diplomática entre a União Soviética e Estados Unidos, na qual os soviéticos propunhas
que as duas superpotências despachassem conjuntamente ao Egito contingentes militar com a
missão de implementar o cessar-fogo, além de ameaçar com uma ação unilateral soviética em
caso da não concordância dos Estados Unidos33.
O apoio americano a Israel com o fornecimento de armamentos causou revolta dos
países árabes que são maioria na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP),
que diminuíram a oferta de petróleo no mercado mundial, causando aumento dos preços e
afetando diretamente as econômicas ocidentais34. A crise iniciada em outubro de 1973,
fizeram o preço do petróleo subir 800% em apenas quatro meses, provocando uma problema
de alcance mundial. Nesta ocasião, pela primeira vez, os Estados Unidos ameaçaram com uso
das armas garantirem seu acesso ao petróleo do Oriente Médio35.
Segundo Pecequilo, devido à retração econômica americana foi no campo externo que
se observou uma resposta mais bem acabada e inédita nas visões e objetivos que envolvia a
política de liderança norte-americana. Substituindo a política de contenção que era usado
contra a União Soviética pela estratégia da detente36.
Dentro desta nova política, os Estados Unidos passaram a dedicar maior atenção ao
Oriente Médio em sua política externa, especialmente o Egito. Um dos objetivos centrais da
política norte-americana pelos próximos anos seria o distanciamento do Egito dos soviéticos e
atraí-lo como aliado na região.
Nos anos seguintes ao conflito, os Estados Unidos enviaram negociadores para tentar
resolver acordos fronteiriços entre os árabes e israelenses. Neste processo, os Estados Unidos
buscavam ganhar confiança dos países árabes e causar um distanciamento da União Soviética
na região.
33
BORTOLUCI, José Henrique. Op. cit, p. 26.
PEROSA JUNIOR, Edson José. A política externa estadunidense no Oriente Médio e a formulação da
Doutrina Carter (1977 – 1981). Revista Urutágua. Maringá: n. 28, maio / outubro de 2013, p. 100.
35
FUSER, Igor. Op. cit. p. 24. Disponível em: www.pucsp.br/neils/downloads/v17_18_igor.pdf
36
PECEQUILO, Cristina Soreanu. Op. cit., p. 191.
34
55
Os Estados Unidos organizaram uma Conferência em Genebra para iniciar diálogo
entre as partes com o objetivo de negociar as medidas mais urgentes de segurança, esta
reunião foi presidida pelo Secretário Geral da ONU e contou com a participação de Estados
Unidos, União Soviética, Jordânia, Israel e Egito – a Síria se recusou a participar da
conferência. Ocorreram avanços das negociações entre Israel e Egito, permitindo o “Primeiro
Acordo de Desengajamento do Sinai” (1974) que definiu os limites das forças egípcias e
israelenses no leste do canal. Segundo Bortoluci, o resultado desse acordo foi um aumento
momentâneo do prestígio dos Estados Unidos no mundo árabe, assim como o primeiro passo
de aproximação com o Egito37.
Durante os anos de 1977 a 1981, assumiu a presidência americana Jimmy Carter. No
início de seu governo a orientação da política externa foi ganhando contornos com princípio
mais humanitário que no decorrer do mandato foi perdendo forças38.
Nesse contexto, a política Carter se envolverá no Acordo de Camp David (1978) entre
Israel e o Egito, que resultará em 1979 no Acordo de Paz Israelo-Egípcio.
O objetivo principal dos Estados Unidos no Acordo de Camp David era firmar sua
postura como parte do processo de negociação e não apenas como mediador entre Israel e
Egito, visto que os Estados Unidos tinham objetivos no Oriente Médio e não apenas a paz na
região.
Segundo Perosa, Carter acreditava que não havia possibilidade de sucesso em uma
negociação entre ambos os países sem participação norte-americana e deveria expressar suas
posições firmemente para que seus objetivos políticos fossem alcançados39. Os principais
pontos de discussão defendidos ao longo do acordo eram: a normalização das relações entre
Israel e Egito, o futuro da Cisjordânia e da Faixa de Gaze, a desmilitarização do Sinai e seu
retorno como parte do Egito e o direito de autodeterminação dos palestinos.
O Acordo de Paz Israelo-Egípcio (1979) era semelhante aos negociados em Camp
David, com exceção às alterações necessárias em decorrência da resistência da Jordânia e dos
Palestinos em participarem das negociações. Este foi uma das principais crises que
envolveram a relação Estados Unidos e Jordânia40 no período.
Os países árabes rejeitaram o acordo, o que levou a expulsão do Egito da Liga Árabe e
a transferência de sua sede de Cairo para Túnis, na Tunísia. Além disso, ocorreu o fim do
auxílio econômico ao país pelos árabes, nos quais afirmaram que o tratado legitimava a
37
BORTOLUCI, José Henrique. Op. cit, p. 27.
PEROSA JUNIOR, Edson José. Op. cit., p. 99.
39
PEROSA JUNIOR, Edson José. Op. cit., p. 101.
40
BORTOLUCI, José Henrique. Op. cit, p. 36.
38
56
ocupação israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e, anos depois, que a perda da ameaça
egípcia sobre Israel favoreceu que este país invadisse o Líbano em 198241. O Egito, depois do
seu isolamento pelos países árabes, voltou-se aos Estados Unidos para obter auxílio para a
recuperação de sua economia e para seu rearmamento, isso tornou o país um dos novos
aliados americano na região do Oriente Médio.
Em sequência ao acordo firmado por Israel e Egito, os Estados Unidos tentaram
desenvolver negociações sobre a autonomia do povo palestino. As discussões se deram com
lideranças regionais palestinas, que rejeitaram a proposta de emancipação e se posicionaram
ao lado da OLP (Organização para Libertação da Palestina), que até então era excluída das
negociações por israelenses e norte-americanos. Começasse a perceber que o poder de
barganha dos palestinos começaria a crescer, já que os países europeus começaram, em sua
maioria, a simpatizar com a causa de autodeterminação do povo palestino e desejavam
envolver-se nos acordos42. Em decorrência a isso, houve uma aproximação dos Estados
Unidos com a OLP que influenciou na política interna dos americanos no período, a
comunidade judaica voltou-se contra a simpatia do presidente Carter a causa palestina43.
Outro grande aliado44 dos Estados Unidos no Oriente Médio, o Irã, vinha passando por
convulsões sociais desde a década de 1960 que não tinham sido interrompidas. O Irã
monárquico do Xá Reza Pahlavi, até 1979, representava uma zona de equilíbrio norteamericano na região45.
Em 1973, os americanos aconselharam o Xá a promover reformas sociais e políticas
limitadas que ficaram conhecidas como Revolução Branca, que visavam acalmar a revolta da
população46. Na época, os Estados Unidos forneceram US$ 20 milhões47 em assistência
militar para conter eventuais rebeliões. Estas reformas visavam à modernização e
ocidentalização do Irã, mesma política seguida por Kermal Ataturk na Turquia nas décadas de
1920 e 193048.
Segundo Newton Carlos, a integração do regime do Xá com os interesses políticos e
estratégico dos Estados Unidos no Oriente Médio, sua aliança com Israel e a crescente
41
BORTOLUCI, José Henrique. Op. cit, p. 37.
BORTOLUCI, José Henrique. Op. cit, p. 36.
43
PEROSA JUNIOR, Edson José. Op. cit., p. 102.
44
PEROSA JUNIOR, Edson José. Op. cit., p. 101.
45
CARLOS, Newton. Op. cit., p. 78.
46
ARANTES, Maria Inez F. Os EUA e a guerra como instituição: o caso do Irã. Dissertação de Mestrado.
Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2004, p. 94.
47
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano: da Guerra contra a Espanha à Guerra
do Iraque. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 383.
48
PEROSA JUNIOR, Edson José. Op. cit., p. 104.
42
57
implantação da comunidade estrangeira a contrastar com a miséria e revolta generalizada
resultou numa situação revolucionária, que acabou derrubando a monarquia e seus sonhos de
ocidentalização do país. O programa da revolução do monarca acabou se transformando no
efeito contrário e desencadeou a crise final do regime monárquico no país49.
Esse processo de ocidentalização do Irã, não satisfez a população que continuou com
suas reclamações e sua procura por líderes contra o governo do Xá. O aiatolá Khomeini, líder
xiita, impôs seus seguidores que ignorassem a celebração do ano novo pré-islâmico, tal
comemoração era de interesse para o Xá, que buscava simbolizar a reconquista da grandeza
persa. Como punição o seminário que o líder religioso dirigia foi atacado por agentes do
monarca. Khomeini protestou, a monarquia organizou uma campanha pública condenando o
clero que provocou ainda maiores protestos da população. Após este incidente, o aiatolá se
exilou no Iraque e permaneceu neste país até 1978.
No Iraque, Khomeini e radicais islâmicos começaram a planejar uma revolução 50 para
depor a monarquia e expulsar a influência ocidental do Irã, suas declarações contra o regime e
a população estrangeira no país começou a perturbar a política do Xá.
Desde 1977 já estava claro que o regime do Xá Reza Pahlavi estava se
desestabilizando: boa parte da população e de lideranças religiosas desacreditavam no
governo do Xá Pahlavi e o acusavam de ser marionete dos EUA. Além disso, a repressão feita
por órgãos como a SAVAK51 tornou o público hostil às políticas do monarca52. Como
principal ferramenta do regime ocorreu uma intensificação cada vez maior da repressão53.
Aos poucos, o regime do Xá perdeu suas bases de sustentação. A presença cada vez
maior de estrangeiro54 no Irã fez parecer que o país continuava a sofrer uma política de
ocidentalização cada vez maior imposta pela monarquia. O regime e a fonte de seu poder, os
Estados Unidos, haviam perdido o apoio da população e sendo substituídos pela pessoa de
Khomeini. Em uma entrevista, o Xá garantiu que os protestos não ameaçavam seu governo,
declarando que os insurgentes deveriam removê-lo do poder se quisessem o término da
modernização do Irã55.
49
CARLOS, Newton. Op. cit., p. 97.
COGGIOLA, Osvaldo. A Revolução Iraniana. São Paulo, Editora Unesp, 2008.
51
Era o serviço de segurança interno e de inteligência criado pelo xá Mohammad Reza com a ajuda CIA em
1957. Foi desfeita em 1979, após a derrubada da dinastia Pahlavi do governo do Irã.
52
HODGE, Carl C.; NOLAN, Cathal J. (Org.). U.S. Presidents and Foreign Policy: from 1789 to the present.
Santa Barbara: ABC Cio, 2007, p. 334.
53
Washington Post, 22/11/1978, p. A14.
54
ARANTES, Maria Inez F. op. cit, p. 102.
55
The New York Times, 12/09/1978, p. 97.
50
58
Em dezembro de 1978, durante uma mobilização pró-Khomeini a polícia atirou contra
a população, sem conseguir interromper a manifestação. Os protestos começaram a exigir o
fim da monarquia iraniana. Khomeini anunciou a formação do Conselho da Revolução
Islâmica para a formação de um novo governo56. Nesta ocasião, o Xá reconheceu a perda do
controle sobre o país57 e iniciou seu exílio. Em janeiro de 1979, Khomeini retorna do seu
exílio e assume a liderança da nação iraniana.
Com a perda de um dos seus principais aliados, os Estados Unidos começaram a
investir pesadamente na economia da Turquia e da Arábia Saudita. A primeira foi considerada
pelos dirigentes do programa de ajuda militar do EUA, como um sustentáculo para conter a
radicalização de movimentos islâmicos na região58. No caso da Arábia Saudita, os norteamericanos negociaram a criação de um comando de “intervenção rápida” voltada para o
Golfo Pérsico, logo foi considerada como herdeira do Irã no papel de “polícia” do Golfo
Pérsico e tratada como o “baluarte anticomunista” no mundo árabe59.
O Xá Pahlavi exilou-se nos Estados Unidos após a Revolução o que ocasionou o corte
das relações diplomática com o novo governo iraniano, fazendo com que milhares de
iranianos se manifestassem em frente a embaixada americana em Teerã que foi logo tomada
por estudantes e militantes islâmicos, deixando membros diplomático norte-americanos reféns
da ocupação.
Na época, o governo americano autorizou uma missão militar de resgate dos reféns
que culminou com oito soltados americanos mortos e aumentando mais o sentimento de
humilhação pública americana60. A crise dos reféns e a Revolução Islâmica no Irã
contribuíram em 1980 para a derrota eleitoral de Carter para se reeleger61.
Newton Carlos assinala que o pano de fundo da política externa norte-americana deixa
de ser apenas o petróleo e começa a ser o medo da expansão do fundamentalismo islâmico no
Oriente Médio, através de governos xiitas. Os xiitas são um ramo do islamismo que sempre
colocaram em questão o poder temporal, tratando como algo impuro. Eles ajudaram os
militares a tomar o poder no Iraque (1968), logo depois de passarem a fazer oposição
juntando-se aos comunistas iraquianos (Partido Baath) com apoio da União Soviética. Ele
completa ainda que os americanos não viram como pura coincidência o fato de que os xiitas
56
The New York Times, 15/01/1979, p. 1.
ARANTES, Maria Inez F. op. cit, p. 103.
58
CARLOS, Newton. Op. cit., p. 87.
59
CARLOS, Newton. Op. cit., p. 82-83.
60
HAHN, Peter L. Historical Dictionary of United States – Middle East Relations. Lanham: The Scarecrow
Press, 2007, p. 71.
61
PEROSA JUNIOR, Edson José. Op. cit., p. 105; PECEQUILO, Cristina Soreanu. Op. cit., p. 201.
57
59
eram majoritários nos dois países muçulmanos, o Iraque e o Irã, com partidos comunistas
importantes62.
Ainda em 1979, outro fator influenciou a política externa para a região: a invasão
soviética no Afeganistão. Visando apoiar um governo e seu aliado na região, a União
Soviética tentou sustentar um regime pró-Moscou que estava começando a se aproximar dos
Estados Unidos.
A partir da ocupação soviética, os Estados Unidos tomaram alguns posicionamentos
para o fato: advertiu a União Soviética contra qualquer expansão para além Afeganistão,
prometendo repelir qualquer movimento especialmente na direção do Golfo Pérsico; lançou
uma campanha diplomática para impedir apoio internacional a invasão; renovou uma aliança
com o Paquistão visando armar os rebeldes contra os soviéticos e apoiou os islâmicos através
de uma premissa ideológica de resistência, tendo como objetivo travar uma jihad (guerra
santa) contra a invasão soviética63.
Na época, o presidente norte-americano Jimmy Carter manifestou que a invasão
representava uma grave intimidação tanto para a produção e comercialização de petróleo do
Golfo Pérsico quanto para a paz regional. Aproveitando-se do temor e preocupação da
comunidade árabe, os Estados Unidos incentivaram o povo muçulmano de todas as partes a
unirem forças contra a União Soviética64, armando massivamente os rebeldes e causando
graves prejuízos anuais para os soviéticos em decorrência dos gastos militares para manter a
ocupação.
Segundo Samuel Huntington, a ocupação soviética e o armamento americano para os
rebeldes deixou uma herança de combatentes especializados e experientes, campos de
treinamento, instalações logísticas, considerável quantidade de equipamento militar e um
intenso desejo de seguirem adiante65. Em outras palavras, a ajuda militar que os norteamericanos forneceram aos afegãos trarão problemas aos Estados Unidos na região
futuramente, isso se confirmou posteriormente com a invasão americana no Afeganistão
(2001) que se pendura até os dias de hoje.
62
CARLOS, Newton. Op. cit., p. 85.
RIEGER, Fernando; TEIXEIRA, Yves. A URSS: confronto de ideologias no pós-guerra e a invasão ao
Afeganistão. Seminário Brasileiro de Estudo Estratégicos Internacionais (SEBREEI): Integração Regional e
Cooperação Sul-Sul no Século XXI. Porto Alegre/RS:2012, p. 151.
64
RIEGER, Fernando; TEIXEIRA, Yves. Op. cit. p, 153.
65
HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações: a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro:
Objetivo, 1997, p. 314.
63
60
Considerações Finais
No período de 1967 - 1970, percebemos que o interesse da política externa norteamericana para o Oriente Médio se consolida e se manterá até os dias de hoje66 com discursos
de diversos presidentes posteriores para a região.
A Guerra dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973) foram de extrema importância
para os Estados Unidos perceberem que não era viável manter apenas Israel como aliado
regional, a importância dos países árabes para a política externa americana começaria ser
imprescindível para deter o expansionismo soviético na região e para suprimir sua demanda
energética.
O papel de mediador no conflito árabe-israelense e na participação ativa sobre a
criação de um Estado Palestino independente se pendura até os dias de hoje. Mas, os Estados
Unidos buscou sempre privilegiar seu principal aliado regional nestas questões, no caso Israel.
Com a Revolução Islâmica no Irã (1979) começou a se perceber que seu principal
inimigo na região não seria a ideologia comunista que correria o risco de se espalhar, mas o
fundamentalismo religioso acabou se tornando uma das principais ameaças a política externa
desde então. A partir disso, percebeu-se que estava ocorrendo um choque entre a
ocidentalização que os Estados Unidos exportava para seus aliados regionais e as crenças
tradicionais no islamismo.
Na Invasão Soviética ao Afeganistão (1979), os Estados Unidos acreditavam que
armando os rebeldes conseguiriam consolidar um novo aliado regional, mas acabaram
errando. Ao ajudar militarmente os rebeldes os norte-americanos acabaram criando um
problema que irá acontecer décadas posteriores e trouxeram sérios problemas, que é a
formação de redes terroristas fundamentalistas que buscavam consolidar-se na região do
Oriente Médio e acabar com a influência de potências ocidentais na região.
A partir deste recorte temporal (1967 – 1979) fica nítido que as principais
preocupações americanas em sua política externa deixaram de ser a América Latina e a
66
OBAMA VAI ABORDAR IRÁ, SÍRIA E ORIENTE MÉDIO EM DISCURSO NA ONUA, 24 de setembro
de 2013. Disponível em: http://br.reuters.com/article/worldNews/idBRSPE98N03520130924 ; OBAMA DIZ
QUE EUA PODEM INTERVIR NO ORIENTE MÉDIO POR ‘COMBUSTÍVEIS’ E CONTRA
TERRORISTAS, 24 de setembro de 2013. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimasnoticias/2013/09/24/obama-diz-que-eua-podem-intervir-no-oriente-medio-por-combustiveis-e-contraterroristas.htm; BUSH IRÁ DISCUTIR DARFUR E ORIENTE MÉDIO EM REUNIÃO DA ONU, 24 de
setembro
de
2007.
Disponível
em:
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL109288-5602,00BUSH+IRA+DISCUTIR+DARFUR+E+ORIENTE+MEDIO+EM+REUNIAO+DA+ONU.html; Acessado em:
08 de novembro de 2013.
61
Europa, passando a lugares que até então era considerados secundário, como no caso, o
Oriente Médio.
Fontes
Depoimento do secretário da Defesa Robert McNamara, no Comitê de Negócios Estrangeiros,
na Câmara dos Deputados. Hearings on the Foreign Assistance. Act of 1967.
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p. 365.
The New York Times, 12/09/1978, p. 97.
The New York Times, 15/01/1979, p. 1
Washington Post, 22/11/1978, p. A14
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maio / outubro de 2013, p. 97 – 109.
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SAFRAN, Nadav. Israel: The embattles ally. Cambridge: Belknap Press, 1978.
SYRETT, Harold C. Documentos históricos dos Estados Unidos. São Paulo: Cultrix, 1980.
63
MONOGRAFIA
64
Como as instituições de microcrédito promovem a autonomia das mulheres
em Moçambique. Estudo de caso da Tchuma, cooperativa de crédito e
poupança (parte I)
Catarina Casimiro Trindade
Mestranda em Antropologia Social - IFCH – UNICAMP
Resumo: Como se organizam mulheres que possuem pequenos negócios nos mercados da
cidade de Maputo e que recorrem a instituições de microcrédito? Os seus negócios e família
beneficiam do empréstimo que as mulheres recebem das instituições micro financeiras?
Poderão estas promover a autonomia financeira das mulheres? Partindo da constatação de que
são as mulheres as que mais procuram instituições micro financeiras e as que têm maior taxa
de sucesso, a pesquisa partiu do estudo de caso de uma instituição de microcrédito existente
na cidade de Maputo, Tchuma, Cooperativa de Crédito e Poupança, e das suas clientes
comerciantes, para procurar dar resposta às questões levantadas. Orientadora: Profa. Dra.
Virgínia Ferreira. Instituição de ensino: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Curso: licenciatura em Sociologia.
Palavras-Chave: microcrédito; autonomia; mulheres; economia informal;
65
Introdução
“…o dinheiro que entra para as famílias, por intermédio das mulheres traz muito mais benefício para
as famílias, ao contrário de quando é por meio do homem. Isto era tão óbvio que não precisávamos de pesquisa
para mostrar. A mulher tem uma visão maior para o trabalho, enquanto o homem é mais impaciente. A mulher é
muito mais consciente de seus projectos de negócio. O homem também é sério, mas menos do que a mulher.”
– Muhammad Yunnus, criador do Grameen Bank
Durante a escolha do tema para a minha tese, tinha somente duas exigências: que fosse
sobre mulheres e sobre Moçambique. Depois de muitas sugestões compartilhadas com a
minha orientadora, pôs-se a do microcrédito. Confesso que nunca tinha ouvido falar no
conceito, mas fui para casa e comecei a pesquisar. Logo me dei conta de que se tratava de um
tema bastante importante, que havia imensos estudos à volta do mesmo em toda a parte do
mundo e, o que mais me chamou a atenção, que a maior parte das pessoas que têm acesso ao
microcrédito são mulheres. Aí surgiu a minha primeira dúvida: porque é que tal acontece? O
meu primeiro pensamento foi este: tendo em conta que o mercado informal67 em Moçambique
é, na sua maioria (59%), controlado por mulheres, nada mais natural que sejam elas as
principais clientes das instituições de microcrédito. Mas, à medida que fui avançando nas
leituras, que fui vendo na televisão as diversas entrevistas sobre o microcrédito e, mais tarde,
que fui realizando o trabalho de campo, cheguei à conclusão que a razão não era só aquela. As
instituições de microcrédito têm mais clientes mulheres e preferem tê-las a elas como clientes,
não só porque as taxas de sucesso são maiores, mas também porque, quando uma mulher
recebe um empréstimo, não é só ela e o seu negócio que beneficiam, mas toda a sua família. A
preocupação da mulher está virada para o sucesso do seu negócio, sim, mas também, e
principalmente, para a educação dos filhos, fazendo de tudo para que estes não saiam da
escola, para a saúde e bem-estar destes, bem como para a melhoria da habitação e a compra de
67
A maior parte das mulheres que recorrem às instituições de microcrédito na cidade de Maputo são vendedoras
de produtos no mercado informal.
66
bens. Ou seja, não é só um negócio que se salva, mas também uma família inteira que é tirada
da pobreza.
A delimitação do tema desta dissertação teve a ver com tudo isto e também com a
minha preocupação em perceber como trabalham as mulheres com o empréstimo que lhes é
dado e se as suas vidas melhoram ou não.
Para isso, procurei uma instituição de microcrédito em Maputo com a qual pudesse
trabalhar, conhecer a sua história, como surgiu, o seu funcionamento, os financiamentos, os
seus objectivos, as características dos seus clientes, os serviços que presta, as áreas de
intervenção, o seu desempenho, entre muitos outros aspectos. Mais importante ainda era
conhecer as suas clientes, as histórias de vida, os seus negócios, como investiram o
empréstimo que receberam, ou seja, a sua vida antes e após o empréstimo, saber se
melhoraram de vida ou não e o que para elas mudou.
Assim, o trabalho está dividido em seis partes. No capítulo I será apresentada a
formulação da problemática, com a sua identificação (a origem do microcrédito e as suas
características), contextualização (o microcrédito em Moçambique e o sector informal) e a sua
problematização (o papel das mulheres e o conceito de autonomia).
A metodologia de trabalho utilizada durante a pesquisa de campo, juntamente com as
hipóteses de trabalho e a experiência de campo será desenvolvida no capítulo II.
O capítulo III trará a caracterização da Tchuma, com a sua origem, características e
funcionamento.
O trabalho baseado nas entrevistas começa no capítulo IV, onde falarei sobre o acesso
ao crédito por parte das mulheres.
O capítulo V aborda a questão da gestão do microcrédito, assim como o
acompanhamento que é dado às clientes e a relação destas com a instituição.
O impacto que o microcrédito tem na vida das mulheres, tanto ao nível económico,
como sócio-familiar será desenvolvido no capítulo VI.
Os próximos volumes da Revista Zona de Impacto publicará os demais capítulos desse
trabalho.
67
Capítulo I
Fundamentação teórica, Quadro teórico-analítico
1. A origem do microcrédito68
Muhammad Yunus e a criação do Grameen Bank
Existiram e existem ainda diversas experiências de microcrédito no mundo, mas a
mais conhecida e replicada por muitos é a de Muhammad Yunus.
O Grameen Bank, primeiro banco do mundo especializado em microcrédito, foi criado
por Muhammad Yunus na década de 70 no Bangladesh, onde havia um grande contingente de
pessoas que sobreviviam com actividades informais. A ideia surgiu de maneira singela,
quando Yunus emprestou cerca de 27 dólares, tirados do seu próprio bolso, a cerca de 40
mulheres, para assim poderem adquirir matéria-prima que utilizaram no seu negócio,
livrando-as de agiotas que as mantinham num regime quase de trabalho escravo. Yunus
surpreendeu-se ao verificar que todos os empréstimos lhe foram restituídos pontualmente e
pensou que esse processo talvez pudesse ser multiplicado indefinidamente.
Diz Yunus que toda a figura humana é um empreendedor em potencial. Se assim é, o
cenário actual pode ser bastante alterado. Para isso é preciso então criar instituições para
assistir as pessoas. Foi nesse sentido que começou a expandir a sua ideia a outras aldeias do
país.
Grameen Bank – principais características e objectivos
68
Informação retirada do site http://www.grameen-info.org/bank/index.html, consultado a 3 de Fevereiro de
2006
68
Ao criar o sistema de microcrédito e o Grameen Bank, Yunnus pretendia que o acesso
ao crédito fizesse parte da lista dos direitos humanos. Surgiu assim a ideia de que os serviços
financeiros podiam ser levados aos pobres, possibilitando o desenvolvimento pessoal, a
sustentabilidade individual e a protecção contra agiotas informais e exploradores, tendo-se
tornado, no decurso de 30 anos, numa indústria multimilionária.
O Grameen Bank inverteu a prática convencional dos bancos, ao remover a
necessidade de garantias e ao criar um sistema bancário baseado na confiança mútua,
responsabilidade, participação e criatividade. Assegura o crédito aos mais pobres dos pobres,
sem qualquer garantia.
Aqui, o crédito funciona como uma arma contra a pobreza e um meio para o
desenvolvimento das condições socioeconômicas dos pobres que têm sido mantidos fora do
sistema bancário, com a desculpa de que são pobres e, desta maneira, incapazes.
Os principais objectivos do Grameen Bank são prover serviços bancários aos pobres,
homens e mulheres, que sejam realmente empreendedores, eliminar a exploração dos pobres,
tradicionalmente feita pelos agiotas, criar novas oportunidades de auto emprego para a vasta
população desempregada no Bangladesh rural, trazer a população carente, em especial as
mulheres mais pobres, para o seio de um sistema orgânico que elas possam compreender e
organizar sozinhas e reverter o antigo círculo vicioso de “baixa renda, baixa poupança e baixo
investimento”, introduzindo crédito para torná-lo um círculo virtuoso de “investimento, maior
renda, maior poupança”.
Yunus argumenta que, ao falar de microcrédito, está a referir-se única e exclusivamente ao
crédito Grameen e que, por isso, é importante deixar claro a que se refere. As características
principais do sistema são:
 Promover o crédito como um direito humano
 Ajudar as famílias pobres a vencer elas próprias a pobreza
 Dirige-se aos mais desfavorecidos, principalmente as mulheres
 Baseia-se na confiança e não em sistemas e procedimentos legais e garantias, entre
outros.

69
2. Microcrédito69
Características, formas e objectivos
O termo microcrédito não existia até à década de 70. Hoje em dia, existem diversas
definições do termo, este é designado para caracterizar uma imensidão de formas de crédito, o
que tem vindo a criar alguma confusão. Irei explicitar algumas, as que considero mais
relevantes para este trabalho.
No geral, designa uma variedade de empréstimos cujas características comuns são o
facto de serem de pequeno valor, serem direccionados a um público restrito (desempregados,
pequenos empresários e outras pessoas que vivem na pobreza), definido pela sua baixa renda
ou pelo seu ramo de negócios, que geralmente não têm acesso às formas convencionais de
crédito. Este conceito proporcionou, com enorme sucesso, o desenvolvimento de projectos de
pequenas empresas e o auto emprego, facultando às pessoas que tiveram acesso ao crédito a
possibilidade de gerar renda e, em muitos casos, melhorar a sua condição de vida e sair da
pobreza. Assim, caracteriza-se como uma política de combate à pobreza e não tanto como
uma política de financiamento.
Formas de Microcrédito
Yunus sugere uma classificação do microcrédito mais alargada, para que, quando
falemos em microcrédito, saibamos a qual destas formas nos estamos a referir. São elas:
 Microcrédito informal tradicional – empréstimos feitos a amigos e familiares, entre
outros;
 Microcrédito baseado em grupos tradicionais informais – o chamado xitique70,
utilizado em Moçambique, é um deles;
69
Informação retirada do site http://www.grameen-info.org/bank/WhatisMicrocredit.htm, consultado a 3 de
Fevereiro de 2006
70
 Actividades-base
de
microcrédito
através
de
bancos
convencionais
ou
especializados – crédito agrícola, de animais ou pesca, entre outros;
 Crédito rural através de bancos especializados;
 Microcrédito cooperativo – Crédito cooperativo, uniões de crédito, associações de
poupança e empréstimo, bancos de poupança;
 Microcrédito de consumo;
 Microcrédito baseado na parceria entre bancos e ONG’s;
 O crédito Grameen;
 Outros tipos de microcrédito de ONG’s;
 Outros tipos de microcrédito que não de ONG’s.
É importante clarificar que esta classificação é meramente exemplificativa.
Com o microcrédito, ensina-se algo de fundamental às pessoas, ou seja, a confiar mais
no seu esforço, criatividade e trabalho do que nos auxílios e doações. Uma pessoa que consiga
dar os primeiros passos com um empréstimo deste tipo terá criado uma actividade económica
sustentável, uma micro-empresa que será um activo a mais na sociedade em que vive, pois
gerou desta maneira o seu próprio emprego. E se assim se possibilitar a sua integração no
sistema financeiro tradicional, poderemos também dizer que se estimulou a poupança
(Jacques, Mick, 1999).
Mas não esqueçamos que o crédito é um meio e não um fim em si mesmo. Uma
eficiente provisão de serviços financeiros dirigidos aos pobres não resolverá constrangimentos
originados por uma falta de ou acesso aos mercados. O crédito e poupança irão somente
ajudar os clientes servidos, dando-lhes uma maior variedade de escolhas para sobreviver no
sector informal, escolhas essas baseadas nas suas capacidades e trabalho árduo (Jackelen,
Henry e Rhyne, Elisabeth, 1991).
70
Palavra Tsonga que significa poupança. De acordo com Teresa Cruz e Silva, uma das formas mais comuns para
a realização de poupanças nos mercados informais. Baseado em formas muito simples, o processo inicia-se
normalmente a partir de um grupo de amigos que se juntam, fixam o montante da contribuição de cada membro
e a periodicidade dos encontros para prestação de contas e distribuição rotativa da poupança, por cada um deles.
A forma de pagamento não tem que ser necessariamente monetária, havendo casos em que essa contribuição se
traduz em bens materiais. Os fundos circulam entre os seus membros e a sua colecta e distribuição funcionam,
regra geral, na base da confiança e empatia, ao mesmo tempo que obriga cada membro do grupo a fazer a
poupança de um montante predeterminado e dentro da periodicidade previamente definida para o pagamento da
sua quota. A distribuição da poupança entre os membros do grupo é feita periódica e rotativamente.
71
Segundo Kofi Annan, ex-Secretário Geral da ONU, o acesso sustentável ao microfinanciamento ajuda a amenizar a pobreza mediante a geração de renda e a criação de
empregos, permitindo que as crianças frequentem a escola, que as famílias obtenham
assistência sanitária e fortalecendo as pessoas para que tomem decisões que se adaptem
melhor às suas necessidades.
Uma das características principais dos programas de microcrédito é a de tratarem os
pobres como clientes comerciais e não como beneficiários. Estes são capazes de poupar e
pagar empréstimos, sendo assim possível desenvolver instituições especializadas, capazes de
alcançar milhares de clientes nos países em vias de desenvolvimento (Jackelen, Henry e
Rhyne, Elisabeth, 1991).
Segundo o Grupo Consultivo de Ajuda à População mais Pobre do Banco Mundial
(CGAP), as instituições micro-financeiras deveriam reunir quatro condições:
 Permanência – Prestar serviços financeiros a longo prazo
 Dimensão – Abranger um número suficiente de clientes
 Focalização – Chegar à população pobre
 Sustentabilidade financeira.
Promover serviços de microcrédito e poupança tem algumas vantagens, as quais estão
na origem de um grande optimismo por parte de quem com eles trabalha. Os meios para gerir
estes programas e instituições estão disponíveis em todos os países em vias de
desenvolvimento; em termos de pessoal, são abundantes, na maior parte destes países,
indivíduos com capacidades básicas que podem ser formados a fim de executar as complexas
tarefas exigidas; a revolução nas tecnologias de informação permitiu que os computadores se
tornassem disponíveis na maior parte destes países, minimizando a quantidade de formação e
especialização exigidos para a utilização desta tecnologia. (Jackelen, Henry e Rhyne,
Elisabeth, 1991)
72
Objectivos das instituições de microcrédito
As instituições de microcrédito têm como prioridade o combate à extrema pobreza.
Assim, a aplicação de empréstimos de baixo valor, sem burocracias e com juros baixos,
permite a manutenção do auto emprego ou a geração de novos postos de trabalho,
preferencialmente para mulheres chefes de família.
Se uma pessoa ou grupo se encontra excluído do sistema financeiro tradicional por
falta de garantias, é provável que sofra também uma grande exclusão social. Se com o
microcrédito se puder evitar a exclusão financeira e apoiar o impulso empreendedor, estar-seá a contribuir para o progresso social.
Dentro
da
instituição
é
importante
que
haja
um
acompanhamento
dos
microempresários e se estabeleça uma relação de confiança entre ela e alguém que esteja
disposto a assumir o risco inerente a um negócio, por mais pequeno que ele seja. É preciso
conhecer as pessoas, autonomizar os custos no apoio à melhoria de cada plano de negócios,
reduzir os riscos do crédito concedido e acompanhar a evolução do negócio e os pagamentos
do empréstimo. Assim, aumentam-se as hipóteses de sucesso deste tipo de iniciativas
económicas sem se tornar incomportável o custo do crédito.
3. O microcrédito em Moçambique
A sua origem
A ligação mais antiga às micro finanças em Moçambique remonta à criação, em 1989,
do Urban Enterprise Credit Fund, estabelecido como um dos componentes do Programa de
Reabilitação Urbana (PRU) do Banco Mundial e executado pelo Gabinete de Promoção de
Emprego (GPE) no Ministério do Trabalho. Este programa fornecia pequenos empréstimos a
uma grande variedade de actividades urbanas, incluindo restaurantes, bares, salões de beleza,
carpintarias, peixarias, etc. Esta foi a primeira tentativa de estabelecer um fundo não-bancário,
73
apesar de os empréstimos serem desembolsados pelo Banco Popular de Desenvolvimento
(BPD) e serem cobradas taxas de juro comerciais (de Vletter, 2006:3).
Desenvolvimento
Em 1992, com a unificação da Alemanha, cerca de 18000 moçambicanos que
trabalhavam na antiga RDA (República Democrática Alemã), ao abrigo de um acordo
intergovernamental foram repatriados. O governo alemão, através da sua agência de
assistência técnica Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (GTZ), estabeleceu um
programa de formação e crédito com o GPE para assistir os “madgermanes”71. Este projecto
cedo dividiu as actividades de crédito e formação. O programa de crédito abriu,
subsequentemente, as suas portas a todas as microempresas existentes em Maputo e na Beira,
estabelecendo as sementes do que mais tarde se veio a tornar o banco comercial SOCREMO.
Este viria a ser, em 1998, o primeiro programa de micro finanças a tornar-se uma instituição
financeira registada, com o Governo de Moçambique a deter 94% do capital (de Vletter,
2006:3).
Em 1993, o World Relief anunciou alguns planos de estabelecer “village banks”,
dirigidos às mulheres pobres que trabalhavam nos mercados na área do Chokwé e na
província de Gaza. Esta iniciativa foi considerada, por várias razões, a primeira iniciativa de
micro finanças no país. Foram alcançados impressionantes resultados, incluindo taxas de
retorno de quase 100%. Estes resultados foram imprescindíveis para que o governo
começasse a apoiar de forma positiva o sector financeiro (de Vletter, 2006:3).
Durante esses primeiros anos, as micro finanças foram dominadas pela presença de
pequenas (na sua maioria rurais) iniciativas de ONG’s internacionais, que as introduziram
como um dos vários componentes dos seus programas integrados (de Vletter, 2006:4).
Em 1995/96, o Banco Internacional de Moçambique (BIM) e o Fundo de
Desenvolvimento Comunitário (FDC) iniciaram um projecto-piloto com fundos da Suiça, que
viria a ser o percursor da primeira cooperativa exclusivamente dedicada às micro-finanças,
chamada Tchuma.
71
Assim chamados os trabalhadores moçambicanos que voltaram da Alemanha.
74
O primeiro estudo sobre o sistema micro-financeiro em Moçambique, feito em 1997,
demonstrou a existência de 25 operações/iniciativas de micro-finanças. Estas serviam um total
de 6000 clientes. Grande parte foi implementada por projectos e ONG’s nacionais e
internacionais, servindo clientes urbanos e peri-urbanos na cidade de Maputo.
O segundo estudo, em 2002, indicou importantes desenvolvimentos neste sector,
nomeadamente o aparecimento de entidades legais locais e a criação de instituições
independentes, uma maior dispersão geográfica, maior consciência em relação às “boas
práticas” das micro finanças por parte dos doadores e operadores, altos níveis de alcance, o
aparecimento de algumas intervenções nas áreas rurais e a publicação de um decreto para
regular as actividades de microcrédito.
Em 1998 o Banco de Moçambique (BM) adoptou uma resolução regulando as
actividades de microcrédito. Segundo os termos desta, todas as instituições e indivíduos que
ofereçam crédito, registados sob qualquer forma legal, devem requerer uma licença para o
exercício da actividade ao BM.
Em 2000, o crédito era praticamente o único produto financeiro oferecido pelos
operadores. Juntamente com este, que era dirigido essencialmente para financiar
microempresários, as poupanças e os seguros eram oferecidos numa escala muito limitada.
O sector de micro finanças foi acompanhado por três programas complementares
exclusivamente dedicados ao sector. Foram eles:
 Microstart Mozambique (2000-2003) – deveria permitir um acompanhamento da
indústria emergente
 Mozambique Microfinance Facility (MMF) (2001-2006) – os objectivos do
programa integram as componentes de assistência técnica às IMF, de monitoria da
criação dum quadro legislativo favorável, de criação duma associação das
instituições de micro finanças ou ainda duma Central de Risco.
 Opstream Project (2002-2005) – permitiu sensibilizar e formar os decisores
políticos e económicos em questões ligadas às especificidades das micro-finanças.
Actualidade
75
Apesar do serviços de micro finanças serem oferecidos por uma variedade de
instituições – bancos comerciais, ONG’s, cooperativas de crédito e poupança e associações
locais – o sector é ainda pouco desenvolvido quando comparado com outros países africanos.
Não obstante o número de clientes activos ter crescido, continua ainda a ser pouco para um
país com a população que Moçambique tem.
Hoje em dia há uma maior presença de entidades legais locais, algumas das quais
estando a tornar-se instituições independentes.
O mais notável tem sido o aumento no número de clientes activos de micro finanças,
tendo ultrapassado os objectivos do governo para 2005, alcançando um total de
aproximadamente 103.471 clientes em meados desse ano.
A maior procura de crédito destina-se a actividades não-agrícolas, geradoras de
rendimentos complementares, em particular o comércio e também algumas actividades de
produção artesanal e de transformação.
A maior parte dos programas encontra-se ainda muito dependente de gestões
exteriores ou de assistência técnica estrangeira mas, em alguns casos, estão já a criar
condições para gerar capacidades locais.
Características do sector micro financeiro em Moçambique
Apesar do grande sucesso, as disparidades de género continuam a existir em
programas que servem o norte e o sul do país. No sul, as clientes mulheres ultrapassam os
homens, num factor de dois em um, tendo uma participação de cerca de 73,5%. No norte, a
participação feminina não chega aos 15%, apesar dos enormes esforços feitos. A razão desta
desigualdade tem sido atribuída a diferenças socioeconômicas, culturais e religiosas (de
Vleter, 2006:24).
No geral, as mulheres representam 57% dos clientes de microcrédito, estando
basicamente ligadas ao comércio informal (40%), agricultura (25%), pequenas indústrias
(25%) ou serviços (10%).
76
A maior procura de crédito destina-se a actividades não-agrícolas, geradoras de
rendimentos complementares, em particular o comércio e também algumas actividades de
produção artesanal e de transformação.
Uma das mais surpreendentes descobertas diz respeito à idade dos clientes. Apesar da
juventude do mercado informal, a idade média de um cliente há mais de dois anos é superior a
40 anos. Não há uma explicação óbvia para a escassez de clientes jovens, no entanto, a falta
de garantias (agravada pelo facto de a maior parte dos jovens viver ainda com os pais, devido
ao custo de uma habitação) e a instabilidade residencial foram indicadas como possíveis
factores (de Vletter, 2006).
Verifica-se também que são sem dúvida as mulheres as principais clientes do
microcrédito, não só pelo papel que desempenham nas actividades económicas, como pela
responsabilidade que emprestam ao cumprimento das obrigações contratuais. Sobretudo as
pequenas vendedoras dos mercados urbanos que comercializam alguns produtos agrícolas,
bebidas tradicionais, doces caseiros, capulanas72, peixe, e outras mercadorias são as maiores
beneficiárias dos fundos de crédito. Os homens conseguem trabalho mais facilmente no sector
formal e as mulheres tendem a virar-se para o sector informal de vendas como a sua principal
fonte de rendimentos.
Principais instituições de microcrédito em Moçambique
Existem, ao longo de todo o país, diversas instituições, bancos e cooperativas de
microcrédito.
Falarei apenas das três mais importantes da cidade de Maputo, pois creio serem
suficientemente elucidativas do tipo e características de todas elas.
A Tchuma (Cooperativa de Crédito e Poupança), a SOCREMO (Banco de MicroFinanças) e o NovoBanco (Instituição Micro-Fonanceira) concentram 76% da carteira activa
de clientes. O NovoBanco possui uma larga e equilibrada cobertura de mercado, tanto em
termos de número de clientes como de carteira; a SOCREMO possui uma larga cobertura, mas
parcialmente desequilibrada, tendo as suas actividades uma orientação comercial; a Tchuma
possui uma cobertura média e equilibrada, com um segmento económico médio de clientes,
tanto rurais como urbanos.
72
pano colorido com que as mulheres, tradicionalmente, cobrem o corpo
77
A crescente competição entre estas três instituições, todas tendo como alvo o mesmo
tipo de beneficiários, resultou em três consequências: o notável desenvolvimento na qualidade
dos produtos de empréstimo oferecidos, em especial a rápida aprovação e renovação de
empréstimos; serviços mais eficientes e agências modernas e, finalmente, a introdução de
novos produtos financeiros, como os empréstimos para a habitação, para salários-base e
pequenos e médios empréstimos para negócios.
A Economia Informal
Considerando que grande parte das mulheres com acesso ao microcrédito se encontra
ligadas ao sector informal, tendo como actividade principal a venda de produtos nos
mercados, torna-se urgente uma caracterização deste tipo de economia, que tem vindo a
crescer fortemente, nos últimos anos, não só nos países em vias de desenvolvimento, como
em todo o mundo.
Muitas vezes definida em termos do que não é (actividades económicas e empresas
sem registo, sem regulação e que não pagam impostos), a economia informal tem como base
as actividades caracterizadas por um baixo nível organizacional, com limitada ou inexistente
divisão entre o trabalho e o capital e onde as relações de trabalho são sempre baseadas em
colaborações ocasionais, as ligações familiares, entre outras. Inclui pequenas empresas sem
qualquer tipo de registo e trabalho remunerado sem contratos, seguros, benefícios ou
protecção legal. Engloba, ainda, as situações seguintes:
 Auto-emprego em empresas informais
 Empregadores
 Trabalhadores por conta própria
 Familiares que trabalham sem qualquer remuneração
 Empregados de empresas informais, entre outros.
O sector informal em Moçambique
A situação conjuntural do país demonstra que o sector informal continua a ser a única
alternativa para a sobrevivência de muitas famílias.
78
Sempre que a questão do informal é debatida publicamente, a reacção mais comum é a
negativa, pois a prática informal é vista como ilegal ou criminosa. Associa-se o informal ao
ilegal de forma prejurativa e até ofensiva (Paulo e Francisco, 2006:11).
A informalidade resulta do grande êxodo rural (7....)73 e da rápida urbanização que
vem acontecendo nas últimas quatro décadas. Esta foi reforçada pelas transformações
políticas e económicas que influenciaram o ritmo do crescimento económico, em geral, e da
economia informal, em particular (Paulo e Francisco, 2006:27).
No período pós-independência, com a situação urbanística e económica precária a
agravar-se e o mercado formal e privado a tornar-se cada vez mais inviável, tanto do ponto de
vista económico, como social e financeiro, a informalidade converteu-se na única solução
disponível para a maioria da população (Paulo e Francisco, 2006:27-28).
Com uma população de cerca de 19 milhões, 80% dos moçambicanos pertence ao
meio rural e 77% não possui outros rendimentos a não ser os agrícolas. Num país em que 11%
da população tem um emprego formal, que se traduz numa percentagem pouco importante no
conjunto da população activa, é um indicador significativo da degradação das condições de
vida da população o facto dos salários reais terem diminuído para cerca de metade desde o
início do PRE (Programa de Recuperação Económica) em 1987. A taxa de desemprego é de
cerca de 40%. A liberalização económica permitiu o crescimento progressivo da chamada
“economia informal” ou “economia popular”, que representava já em 2000 cerca de 44% da
produção total comercializada. O sector informal representa cerca de 85% da população
activa, sendo que a maioria dos trabalhadores deste sector são mulheres (59%) (8....) 74.
A informalidade é um fenómeno tanto rural como urbano. No meio urbano, o sector
informal abrange 68%, contra cerca de 32% no sector formal. No meio rural, o sector
informal tem um peso muito maior, cerca de 95% do total dos trabalhadores, contra 5% no
sector formal (Paulo e Francisco, 2006:45).
Um aspecto importante a observar no sector informal é o próprio facto de a maior
parte dos agentes informais serem mulheres. Estas fazem parte dos primeiros grupos que
dinamizaram a criação e o desenvolvimento do sector informal e continuam a representar a
maior população de indivíduos que operam neste sector. Isto significa também que se trata de
73
74
O êxodo rural e a fixação das pessoas nas áreas urbanas não foi acompanhado por um ordenamento adequado.
Informação recolhida no site do Instituto Nacional de Estatística de Moçambique, http://www.ine.gov.mz/.
79
uma actividade que até muito recentemente era considerada pouco convencional para
indivíduos do sexo feminino (Cruz e Silva, 2005:2-3, 16).
Tendo iniciado as suas actividades de comércio informal para suprir a grande crise
alimentar que afectou o país e particularmente a cidade de Maputo na década de 80, os efeitos
das reformas económicas (em 1987 iniciou o Programa de Reabilitação Económica, PRE,
quando Moçambique ainda se encontrava em guerra) de meados da mesma década levaram
um número cada vez maior de mulheres a engrossar este sector (Cruz e Silva, 2005:16).
Hoje a mulher não está apenas ligada a actividades do pequeno comércio retalhista de
bens alimentares e vestuário, mas abarca outras áreas mais diversificadas, nomeadamente o
comércio interprovincial e transfronteiriço. As mulheres são as que mais exercem actividades
informais, em todas as classes de idade (de Vletter, 2006:33).
Em especial na cidade de Maputo, o sector informal é a maior fonte de emprego,
principalmente de auto-emprego, para as mulheres (de Vletter, 2006:31-32).
Um aspecto importante deste sector é o facto de a maioria dos vendedores procurarem
o que pode ser considerado como actividades de sobrevivência, devido à falta de alternativas
económicas. Tais actividades requerem pouco mais do que o fundamental para vender e, por
não haver muitas ambições empresariais, estas não mudam ou aumentam muito pouco (de
Vletter, 2006:33).
Sistemas informais de micro finanças
Mais pessoas são servidas pelos sistemas informais de microfinanças do que pelas
instituições microfinanceiras. A maior parte das pessoas que recorre ao microcrédito e que
recebe empréstimos pequenos e médios está envolvida com práticas financeiras informais.
“A incapacidade do Estado para a produção de serviços sociais básicos
levou ao crescimento de formas alternativas de gestão social,
transferidas para a sociedade civil, que passou a exercer muitas das
funções ligadas à produção do bem-estar económico e social, através de
ONG’s, Associações e diferentes redes de solidariedade (parentesco,
vizinhança, grupos profissionais, étnicos, de amizade, etc).” (Cruz e
Silva, 2005:1)
80
Existem iniciativas locais e saberes populares que são parte das estratégias de
sobrevivência económica e se constituem como alternativas para fazer face à exclusão social.
Elas assumem por vezes características extra-económicas que envolvem a preservação
da dignidade humana, mesmo em condições de extrema pobreza. As redes de solidariedade e
os grupos de poupança, grupos de entre-ajuda ou outras formas de solidariedade, são meios de
auto-organização e constituem iniciativas de base comunitária na origem da resolução de
problemas.
Especificamente em Maputo, dois sistemas destacam-se, ambos forçando os membros
a poupar. A associação de crédito e poupança rotativo (ROSCAS), popular em várias partes
do mundo, é comum em Moçambique (particularmente nas zonas urbanas) e chama-se
xitique. O segundo é um sistema de poupança diário, depositado nas mãos de operadores que
trabalham nos mercados e chama-se xitique geral. Este centra-se somente na área de MaputoMatola.
Enquanto que estes sistemas informais usam o “saving-up”, que requer depósitos
graduais até alcançar um certo montante, os depósitos nas instituições de microfinanças usam
o “saving-down”, que permite que os clientes recebam fundos que foram sendo depositados
durante algum tempo.
“As práticas tradicionais de ajuda mútua tendem a ser mais frequentes (depois de
1986) comparativamente ao período anterior, devido ao aumento das dificuldades de vida e
sobrevivência para as pessoas mais pobres (os que mais participam), levando naturalmente à
recuperação das práticas existentes no passado. As mulheres são as mais conservadoras nestas
práticas tradicionais, e em algumas actividades como Matsoni/Xivunga e Xitique, são por elas
dominadas. Perante isto, conclui-se que as mulheres detêm um papel importante na provisão
de meios de subsistência para os seus agregados familiares” (Paulo e Francisco, 2006:86).
4. Sobre a situação da mulher
Hoje em dia, falar de microcrédito é também falar de igualdade de oportunidades de
género. Não é por acaso que mais de 90% das pessoas que beneficiam deste tipo de
81
empréstimos em todo o mundo são mulheres. Isto porque, em determinados sectores sociais, a
mulher continua a ser a principal e mais directa responsável pela unidade familiar. Além
disso, existe um outro factor relacionado: as mulheres ainda encontram muitos obstáculos
para entrar no mercado de trabalho (Mick, 1999).
Desde a primeira Conferência Mundial de Mulheres, em 1975, tem havido alterações
significativas, algumas delas positivas, no estatuto social e económico da mulher. As
mulheres constituem uma porção desigual dos pobres no mundo inteiro devido ao seu fraco
acesso ao capital e às terras, ao seu baixo estatuto no mercado de trabalho e à
desproporcionada responsabilidade que lhes é atribuída pelo trabalho doméstico não
remunerado. De uma maneira mais geral, a natureza ambivalente das conquistas das mulheres
é, talvez, ilustrada através da “feminização” da força de trabalho. Nas últimas duas décadas o
acesso, por parte das mulheres, ao trabalho remunerado cresceu na maior parte dos países,
mas ao mesmo tempo verificou-se uma deterioração nos termos e condições das ofertas de
trabalho. O crescimento do trabalho informal pelo mundo, juntamente com a informalização
do sector formal de emprego, tem permitido aos trabalhadores baixar os custos de trabalho.
No entanto, para a generalidade das mulheres e homens o resultado foi o aumento da
precariedade dos empregos e maior insegurança nas estratégias de sobrevivência (UNRISD,
2005:1-7). Existem mais mulheres hoje na economia formal do que havia antes mas, ao
mesmo tempo, com a reestruturação da economia, estas foram as primeiras a serem
despedidas por serem menos especializadas. São as que mais dificuldades encontram quando
procuram um emprego por serem menos alfabelitazas e daí aceitarem qualquer oferta de
trabalho sem as mínimas condições. Tudo isto parece muito contraditório, mas não é, pois
ainda hoje existe muita discriminação e desigualdade.
Assim, o trabalho informal tem vindo a aumentar e a tornar-se uma grande fonte de
rendimento para mulheres em quase todas as regiões em desenvolvimento. A insegurança
instaurou-se, mesmo para os trabalhadores dos sectores mais protegidos e as mulheres com
baixo rendimento tornaram-se incrivelmente visíveis75, tanto na parte da agricultura como na
economia formal urbana e também na migração do campo para a cidade e além fronteiras.
Programas de combate à pobreza, seja na forma de microcrédito ou transferências de
dinheiro para famílias pobres têm como alvo principal as mulheres, tendo como base o facto
75
A principal actividade das mulheres em África sempre foi a agricultura. Antes de se tornarem visíveis, estas
estavam na agricultura familiar. Familiar e não de sobrevivência pois os camponeses sempre participaram no
mercado, trocando ou vendendo os seus produtos.
82
de que estas usarão os recursos de que dispõem de maneira a aumentar o bem-estar da família
e das crianças. As ONG’s são responsáveis, em quase 70% dos casos, de fazer a ligação entre
as mulheres e as fontes de crédito.
Ganhar dinheiro, qualquer que seja a quantia, pela primeira vez, pode não alterar
certas características de subordinação, tal como a da mulher no que toca à protecção do
homem. Mas pode reduzir a sua dependência em relação a este e aumentar a sua segurança
económica e tomada de decisões no espaço doméstico.
O papel da mulher em África
No geral, as mulheres gozam, como grupo, de menos direitos e trabalham mais que os
homens. Realizam dois terços de todo o trabalho no mundo, recebem 10% do rendimento
anual, são dois terços dos analfabetos (funcionais) do planeta, possuem menos de 1% da
propriedade mundial, são mais de metade da população, vivem mais e em piores condições
que os homens e têm um poder desigual no que diz respeito ao acesso e controle dos recursos
e poder. Durante muitos anos as mulheres foram votadas ao silêncio e à invisibilidade por
parte da ciência e da sociedade. No entanto, desde os tempos mais recuados da história que a
sua contribuição foi fundamental na domesticação das plantas e no surgimento da agricultura,
bem como na domesticação dos animais (Projecto SEGUI, 1999:30).
Na África ao Sul do Sahara, as mulheres dedicam mais de metade do seu tempo e
energia à sociedade sem retribuição e sendo subestimadas. São as agricultoras invisíveis e, no
geral, não têm direitos legais sobre a terra, uma vez fora dos sistemas de parentesco existentes
(Projecto SEGUI, 1999:30).
Homens e mulheres têm múltiplos papéis e responsabilidades. No entanto, enquanto
que os homens são geralmente capazes de se focar num só papel produtivo e representam os
seus múltiplos papéis numa sequência, as mulheres, ao contrário, representam os seus papéis
simultaneamente, tendo em conta o tempo limitado que têm para cada um deles (World Bank
Working Paper nº73, 2006:1-2).
Os diferentes papéis de homens e mulheres apresentam diferenças importantes, que
constituem um grande obstáculo para a redução da pobreza e para o desenvolvimento da
África ao Sul do Sahara. Os papéis significantes, mas subestimados, das mulheres na
83
produção económica (agricultura e sector informal, predominantemente) e a sua posição na
gestão do agregado familiar e no bem-estar (preparação da comida, saúde e higiene, apoio às
crianças e educação) são centrais para o desenvolvimento económico e para a sobrevivência
social (World Bank Working Paper nº73, 2006:27)
Uma significativa porção da actividade produtiva que não é bem captada pelas
estatísticas oficiais encontra-se no interior do agregado familiar. Esta revela a co-existência de
uma economia de mercado e familiar e como estas são interdependentes. Revela não só o
verdadeiro tamanho e significado da economia familiar (medida em termos do tempo que se
dispende nas tarefas domésticas), mas também o peso desproporcional que recai sobre as
mulheres para a realização destas tarefas (World Bank Working Paper nº73, 2006: 26)
Em Moçambique, embora as mulheres sejam as principais produtoras agrícolas em
meio rural e obrigadas a inventar as mais diversas estratégias de sobrevivência em meio
urbano, não têm um estatuto conforme o trabalho que realizam (Projecto SEGUI, 1999:28).
Até aos anos 80, a posição da mulher em Moçambique não foi objecto de estudo na
investigação social, tendo permanecido invisível. Os estudos sobre a mulher não aparecem
individualizados, sendo esta integrada no contexto da família, do sistema de parentesco,
através da descrição de rituais, dos usos e costumes dos diferentes grupos populacionais do
país e no âmbito da divisão sexual do trabalho. A esfera privada aparece sempre reservada à
mulher e considerada natural e desvalorizada, sendo a pública da responsabilidade dos
homens, mais visível e valorizada (Projecto SEGUI, 1999:31).
No entanto, apesar da perda de representação política e das diversas transformações de
ordem política, a participação das mulheres em diversos assuntos não cessou. A sua
participação e poder de decisão são diversos de acordo com o seu estatuto e com a sua posição
social. Mulheres que não pertencem às elites, tanto em meio rural como urbano, organizam
comunidades de ajuda mútua, para poupança de dinheiro, para apoiar nas tarefas da
machamba, nas associações comerciais, sociedades de crédito, no sentido de promover os
seus interesses mais imediatos. Ou seja, em actividades geradoras de rendimentos, jardins
infantis, educação dos filhos, nutrição e saúde, terra, procurando, dos mais diversos modos,
adaptar-se e modificar a situação existente (Projecto SEGUI, 1999:34).
84
O emprego de mulheres nas empresas de pequena escala é geralmente mais alto do que
nas grandes empresas. As mulheres têm que usualmente cobrir as tarefas domésticas (tomar
conta das crianças, cozinhar, tomar conta dos idosos, etc.), para além das suas actividades
externas tais como a produção para o mercado e as ligadas à gestão comunitária.
O envolvimento das mulheres em micro-negócios pode ser explicado, em certa
medida, pelas vantagens do sector empresarial de pequena escala, em termos da sua
proximidade com o local de trabalho e com o de residência, com uma melhor flexibilidade em
termos de horas de trabalho e pelo seu envolvimento a tempo parcial. No entanto, o baixo
nível de entrada nas empresas de pequena escala pode ser explicado pelo facto de as mulheres
terem um menor nível educacional, enfrentarem barreiras culturais, terem que lutar contra leis
e regulamentos discriminatórios e por terem raramente acesso a linhas normais de crédito.
Mesmo quando as mulheres têm a mesma educação que os homens e igual
experiência, o fardo das tarefas domésticas reduz a sua disponibilidade para participar na vida
económica. Assim, a contribuição do seu trabalho “visível” (pago) e a contribuição do seu
trabalho “invisível” (não pago) resulta na sobrecarga do trabalho da mulher.
Mulheres e Autonomia
Considerada uma categoria básica de análise e acção política do movimento das
mulheres, a autonomia define, por isso, um caminho próprio e não imposto, que reconheça e
respeite os direitos das mulheres no seu processo de procura de melhores condições de vida
para si, para as suas famílias, para a comunidade e a sociedade (Casimiro, 2000:6).
Equaciona a possibilidade ou não que as mulheres têm de tomada de decisões,
enquanto mulheres, com direitos e deveres na família, na comunidade ou sociedade.
A questão da autonomia é fundamental, em África, porque entra, a maior parte das
vezes, em choque com o que é considerado o aspecto central da “cultura africana”, ou seja, a
mulher como uma grande mãe, sempre pronta a dar e a nunca receber, a trabalhar e sem
tempo para descansar (Casimiro, 2000:6).
85
Falar de autonomia é também abordar a questão do poder, poder de decisão, de aceder
e controlar recursos. Reconhece-se que há diversos factores que intervêm na capacidade das
mulheres poderem tomar vários tipos de decisão, que digam respeito à sua vida, à vida dos
seus filhos, à vida das famílias. Estes factores estão relacionados com a vida em meio rural ou
urbano, grupo étnico, crença religiosa professada pelo grupo familiar, estatuto, posição social,
sexo, ciclo de vida, tipo de casamento, relações com a família e possibilidades de obter apoio
de membros diversos da família, entre outros (Projecto SEGUI, 1999:27).
Tem múltiplas dimensões, cada uma fundamental pra se alcançar o controle sobre as
vidas e corpos dos seres humanos, neste caso concreto, das mulheres:

Autonomia física – diz respeito à autodefinição da reprodução e da sexualidade

Autonomia política – está relacionada com o direito de opinião, organização e
participação

Autonomia económica – em relação ao acesso e controle dos meios de
produção

Autonomia sociocultural – relativamente a aspectos de identidade e autoestima. (Cruzeiro do Sul, 1999:28)
Os processos de individualização, identidade e “emponderamento” podem conduzir,
numa primeira fase de descoberta de si, a uma prática de isolamento. No entanto, esta
autonomia, relacionada com os limites que a sociedade, a família e os homens impõem às
mulheres, dará lugar a uma autonomia mais dialogante que, reconhecendo as relações de força
e de poder em que se geram as relações de género, pretende modificá-las através da acção e
da decisão, pessoal e colectiva, dos sujeitos sociais específicos (Projecto SEGUI, 1999:29).
Tendo em conta tudo o que foi dito até agora, apresento, de seguida, a pergunta com a
qual parti para o trabalho de campo:
“Em que medida as organizações de microcrédito contribuem (ou não) para a
autonomia das mulheres?”
86
BIBLIOGRAFIA
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Casimiro, Isabel (2000), Relações de Género na Família e na Comunidade em Nampula:
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Nampula (Projecto SEGUI), Relatório Ano 1 (referente a 1998), Nampula e Maputo, Janeiro
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Jackelen, Henry R. e Rhyne, Elisabeth (1991), Toward a More Market-Oriented Approach to
Credit and Savings for the Poor (UNCDF), Tokyo Fórum on LDCs. pp10
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Contexto da Globalização. Brasília: ESAF
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do Sul, Instituto de Investigação para o Desenvolvimento José Negrão, Maputo
www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/assotsi.pdf
Yunus, Muhammad (1997) O Banqueiro do Povo. Difel
87
RESENHA
88
Jerônimo de Albuquerque, o Adão Pernambucano: Tratado sobre a origem
multiétnica do Homem Nordestino
Caesar Malta Sobreira
Professor do departamento de Ciências Sociais - UFRPE
Saudação proferida por ocasião do lançamento do livro Albuquerque: a herança de
Jerônimo, o Torto, na Fundação Gilberto Freyre, em 25 de julho de 2013.
Este é um dia de júbilo. Estamos reunidos na casa de Gilberto Freyre, o gênio de
Apipucos, para o lançamento de uma obra como que escrita no bronze, com letras de ouro e
iluminada pela joia preciosa que é a história de Pernambuco, nossa pátria imortal.
Albuquerque: a herança de Jerônimo, o Torto, é um livro magnífico que já nasce
clássico, fruto das pesquisas de Cândido Pinheiro Koren de Lima. Deu-nos, o autor, a mais
importante obra genealógico-histórica sobre o homem nordestino. Estamos diante do mais
denso tratado cujo objetivo é “resgatar a verdadeira origem do homem nordestino”,
abrangendo todo o período colonial e reverberando até os nossos dias.
O livro trata da descendência de Jerônimo de Albuquerque, o Adão Pernambucano, o
Patriarca Nordestino, o Venerando Cisne Branco que – praticando a sábia doutrina de Afonso
de Albuquerque – semeou uma herança genética do qual era portador: uma síntese
transcultural contendo sangue de cristão-novo judaico, misturado com as etnias que
professavam o islamismo: os khamitas norte-africanos e os árabes, estes também semitas
como os judeus. Além, é claro, da matriz caucasiana, branca, europeia, que remete à mescla
de celtíberos, visigodos, alanos e suevos, entre outros. Aqui, este dotação genética recebeu o
acréscimo do sangue indígena autóctone.
Partindo da obra-referência, a Nobiliarquia Pernambucana, de Borges da Fonseca, a
qual considera o único documento apto a fundamentar seu estudo, Cândito Pinheiro Koren de
Lima tem como objetivo elucidar a composição do homem nordestino colonial. Destaca-se a
persistência dos troncos raciais ou étnicos e religiosos relacionados às religiões monoteístas
(judaísmo, cristianismo e islamismo), que, por caminhos misteriosos, compõem o mosaico
etnocultural característico do homem nordestino.
89
O ambicioso projeto de Cândido é, através da Coleção Borges da Fonseca, agrupar
em dez volumes o conteúdo da Nobiliarquia Pernambucana. Deste trabalho descomunal este é
o primeiro volume, que é dedicado aos Albuquerque e aos diversos troncos muçulmanos
khamitas, muçulmanos semitas, nativos indígenas e judeus que a dotação genética desta
família alberga.
Na presente obra, que é imortal e que imortaliza seu autor, consta a afirmação
segundo a qual “grande parte de Portugal atual e praticamente todo o Nordeste tem inserção
desse sangue semita-judeu” que Jerônimo de Albuquerque herdou de Ruy Capão.
O autor afirma que os judeus estavam presentes na Ibéria desde a época das
primeiras expedições fenícias, aumentando tal presença por ocasião das destruições do
primeiro e do segundo templo de Jerusalém, e multiplicando-a durante o período muçulmano
omíada da Espanha. Esta presença era relevante: a Ibéria possuía a maior concentração de
judeus do mundo, transformando Espanha no país mais rico da época.
Além do caráter genealógico e histórico, o autor reivindica a dimensão sociológica,
evocando o pioneirismo de Gilberto Freyre no que diz respeito à interpretação da contribuição
das diversas matrizes étnicas, religiosas e culturais.
Assim, o autor estabeleceu uma proporção da nossa composição multiétnica: além do
sangue ibérico quinhentista (por si só já bastante miscigenado), 80% da população nordestina
colonial documentada por Borges da Fonseca – bem como a atual – possui sangue judaico,
indígena e muçulmano-khamítico (magrebino) e muçulmano-semítico (árabe). Apenas 2% da
população documentada também possui sangue negro subsaariano.
Com tal herança multiétnica, Jerônimo de Albuquerque foi pródigo em espalhar sua
dotação genética: “A partir de seus 36 filhos conhecidos, seu sangue permeou nossas veias, de
modo que praticamente inexiste nordestino, com raízes aqui, que não seja dele descendente.
Inclusive o autor deste tratado que ora vem a lume, e também deste que vos fala, herdeiro por
via matrilinear das famílias Carvalho Brandão das Alagoas, aparentados com os Cavalcanti –
dos quais o notório Tenório era primo em primeiro grau da minha avó Ernestina Malta
Brandão; e também por parte da família Alves Feitosa, dos Inhamuns, por via patrilinear,
presente neste livro ora apresentado.
Brites de Albuquerque, a esposa de Duarte Coelho, e seu irmão Jerônimo de
Albuquerque eram terceiro ou quarto netos de Pedro Coelho, descendente do Rei Ramiro II,
de León, com Artiga Alboazar, uma mulher khamita muçulmana, bisneta de Aboali,
comandante berbere que acompanhou Tarik na conquista da Espanha em 711.
90
Ambos os irmãos eram representantes genéticos dos muçulmanos semitas (árabes),
pois tinham como ascendente um membro da elite governante de Toledo durante o final de
seu período islâmico. A cidade foi conquistada em 1085, pelo rei Afonso VI de Castela. Na
ocasião, o rei o aprisionou e, depois, conseguiu sua conversão ao cristianismo, batizando-o
com o nome de Fernando Afonso de Toledo.
Mas Brites e Jerônimo também possuíam ascendência judaica através de Ruy Capão,
que fora físico e almoxarife da princesa Blanca (Urraca), filha de Afonso VII de Castela
(1155 – 1214). Quando se casou com Afonso II de Portugal (1185-1223), Ruy Capão
acompanhou a futura rainha dos portugueses. Realizadas as bodas, o rei Afonso II convenceu
Ruy Capão a se converter, após o que foi pródigo em favorecê-lo inclusive concedendo-lhe o
título de cavaleiro. Deste modo o sangue judeu se mesclou ao sangue cristão-velho nas veias
do venerando Cisne Branco, o Noé Nordestino, disseminando o sêmen semissemítico por todo
o Nordeste brasileiro.
Gostaria de destacar um fato evocado por Cândido Koren, que havia sido consignado
por frei Vicente Salvador na sua História do Brasil. Conta que o cristão-novo Vasco
Fernandes de Lucena, origem de todos deste sobrenome no Nordeste e que se tornou alcaidemor de Olinda, “era dotado de poderes mágicos”. Em certa ocasião, estando sitiado pelos
índios ferozes, saiu da fortificação, desarmado, e caminhou em direção aos indígenas.
Conta nosso tratadista que: “No local onde hoje é a Sé de Olinda, defrontou com os
da terra. Tomou então seu cajado, e traçou no chão um risco. Avisa que os que passassem
deste marco cairiam sem vida. Sete ou oito [índios] apressam-se em ultrapassar o limite
traçado e em atacar o Lucena. Imediatamente, ultrapassando o risco no chão, caíram sem vida.
O fato, segundo o autor da nossa primeira história aqui escrita, fez com que os indígenas
abandonassem o cerco, e partissem em louca correria.”
Ora, tratando-se de um cristão-novo é possível aventar a hipótes e que ele dominava
os segredos da Cabala, cujos poderes eram utilizados pelos judeus, incluindo círculos mágicos
de proteção. Tais técnicas eram de conhecimento da Inquisição, que as considerava atos de
feitiçaria e punia seus praticantes com o fogo crepitante das fogueiras.
Fechando este parêntesis, retornemos ao Venerando Cisne Branco, tataravô de todos
nós. Jerônimo de Albuquerque “deixou uma descendência imensa, praticamente todo o
Nordeste”, acrescentando sangue indígena e negro ao que já tinha misturado em si. Tal é a
composição racial básica do nosso povo, sendo o Nordeste a síntese pluriétnica de tantas
gentes e genes.
91
Quanto ao sangue indígena, o autor proclama que ele está presente em todas as
famílias e homens do Nordeste. Assim, “toda a elite documentada nordestina”, graças a
Jerônimo de Albuquerque, possui sangue judeu por via de Ruy Capão; é tributário do sangue
muçulmano-semita (árabe), através de Fernando Afonso de Toledo; e também tem sangue
khamita muçulmano (berbere), graças a Artiga Aboazar.
Por outro lado, a “doutrina Afonso de Albuquerque” propiciou a “criação de um tipo
original de civilização de características indo-portuguesa”. Tal civilização luso-tropical foi o
resultado da prática de “política social de assimilação pelo casamento”, afirma Cândido
Pinheiro.
A doutrina de Afonso de Albuquerque se baseava na fixação do homem ibérico à
terra e, sobretudo, na união sexual com nativas. Jerônimo seguiu à risca tal doutrina: praticou
abertamente a poligamia, sem preconceito étnico. Teve descendências com mulheres das três
matrizes genéticas: brancas, negras e índias. Com elas teve 36 filhos e filhas que são os
antepassados da maioria do povo nordestino. Assim, o velho Jerônimo era um grande
“femeeiro” – como Gilberto Freyre designava o lusitano típico em terras tropicais.
Portanto, este livro sobre Jerônimo de Albuquerque ajuda a esclarecer o enigma da
nossa policromia cultural. Antecipando a teoria da dádiva, preconizada por Marcel Mauss, e a
teoria do tríplice intercâmbio (de palavras, mercadorias e mulheres) formulado por LéviStrauss, o Patriarca de Pernambuco e do Nordeste realizou a miscigenação que deu origem à
metarraça do Homem Nordestino, cuja valorização foi realçada por Gilberto Freyre.
Este livro tem importância semelhante à coletânea Homo Brasilis, organizada pelo
geneticista Sérgio Pena. Entretanto, a pesquisa de Cândido Pinheiro é mais específica:
descreve o Homem Nordestino em sua dimensão genealógico-histórica, assim como Gilberto
Freyre – sobretudo em Casa-Grande & Senzala – interpretou este mesmo homem através de
uma perspectiva sociológico-antropológica.
Antes de terminar esta reflexão, quero dizer que senti um imenso prazer na leitura
deste livro, ainda que por motivo quiçá egofílico e, por isso mesmo, muito especial. É que
esta obra brônzea comprova a exatidão das teorias expostas no meu livro Nordeste Semita,
agraciado com o prêmio nacional que leva o nome do mestre de Apipucos.
Enfim, encerro esta apresentação parabenizando Cândido Pinheiro Koren de Lima,
autor de tão magnífica obra-prima, por sua imensa e inestimável contribuição ao povo e à
cultura pernambucana; e louvando Sonia Freyre, presidente da Fundação Gilberto Freyre, pela
ousadia de publicar este livro definitivo sobre o homem do Nordeste brasileiro.
92
SESSÃO ESPECIAL
Perspectivas pós-coloniais sobre o mundo lusófono colonial.
Homenagem a John Manuel Monteiro (1956-2013).
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Perspectivas pós-coloniais sobre o mundo lusófono colonial.
Homenagem a John Manuel Monteiro (1956-2013).
Ana Elisa Bersani,
Francisca Navantino P. de Angelo,
Luciano Cardenes Santos,
Marina M. de Freitas,
Vítor Queiroz
John Monteiro era graduado em História pelo Colorado College (1978) e conquistou
os títulos de mestre e doutor na Chicago University (1980; 1985). Foi professor nas
universidades de Harvard, Michigan, North Carolina-Chapel Hill e na École des Hautes
Études em Sciences Sociales. Em 2001, recebeu o título de Livre-docente pela Unicamp,
instituição onde lecionou e orientou diversas pesquisas até a sua inesperada passagem em
Março de 2013.
John era especialista em história indígena e desenvolvia pesquisas documentais no
Brasil e em outros pontos do antigo Império Português, com o destaque para Goa, na Índia.
Professor do Departamento de Antropologia Social da UNICAMP desde 1994, sempre
trabalhou na interface entre a História, a sua primeira formação, e a Antropologia.
Adicionava-se à seus múltiplos interesses e à sua abordagem interdisciplinar o viés político de
suas atividades acadêmicas.
As resenhas aqui apresentadas celebram a memória de John Manuel Monteiro (19562013) em seu último curso intitulado “Perspectivas pós-coloniais sobre o mundo lusófono
colonial”, ministrado no segundo semestre de 2012 ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas.
O programa da disciplina estimulou-nos a uma viagem pelo mundo lusófono, através
do circuito do Atlântico e do Índico, com o objetivo de estudar os processos coloniais que
envolveram sociedades e culturas não ocidentais, problematizando os processos sociais de
conversão religiosa, os estratagemas linguísticos, o hibridismo e a mestiçagem e as mudanças
identitárias multifacetadas.
Ao longo do curso, não apenas a qualidade das discussões nos motivavam, mas
também o olhar ponderado, coerente e engajado do professor a cerca das diversas histórias do
colonialismo e dos impactos culturais provocados pela dinâmica do sistema escravocrata na
conformação das sociedades que conhecemos hoje, por exemplo, temas essenciais aos quais
somos chamados a nos posicionar tanto dentro como fora da academia.
94
Durante o curso, cada um dos alunos ficou responsável por duas tarefas: conduzir o
debate de pelo menos dois dos textos ao longo do semestre letivo e elaborar uma resenha de
um livro recente, apta para publicação. Cada um de nós cumpriu de bom grado essas duas
tarefas. Conduzimos os debates sobre os textos lidos e discutidos ao longo do semestre;
escolhemos, de comum acordo com o professor, o livro que iríamos resenhar e entregamos ao
professor as primeiras versões de nossas resenhas.
Na última aula do semestre, em um Workshop de Resenhas, ele nos devolveu essas
primeiras versões do nosso trabalho, fez críticas e sugestões para que melhorássemos os
nossos textos e marcou uma data para que enviássemos a segunda versão, “apta para
publicação”. Naquele final de semestre, mesmo em nossos momentos mais pessimistas, não
podíamos imaginar que faltaria ao nosso mestre tempo para encaminhar nossas resenhas para
publicação; tampouco que éramos a sua última turma.
John, dono de um sorriso gentil e de uma generosidade intelectual cada vez mais rara
nas academias, nos deixou aos 56 anos, vítima de um acidente de transito. Sua preocupação
com as histórias não contadas fica como herança que levaremos adiante com as reflexões
iniciadas no espaço inaugurado pela disciplina com suas férteis discussões.
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Tavares, Gonçalo M. 2010. Uma Viagem à Índia. Editora Leya, São Paulo.
Prefácio de Eduardo Lourenço. 452 p.
Vítor Queiroz
Doutorando do PPGAS (Programa de Pós Graduação em Antropologia Social) do IFCHUNICAMP.
“Uma Viagem à Índia”, poema épico de Gonçalo M. Tavares, é também a narrativa de
uma viagem enigmática que o seu protagonista, John Bloom, empreende em todos os sentidos
e direções. Nas suas 452 páginas o herói vai de Lisboa até o subcontinente indiano e da
ignorância mística à uma espécie de autoconhecimento desencantado.
Gonçalo M. Tavares, escritor jovem nascido na Luanda de 1970, em plena guerra de
independência de Angola, que vive e atua em Lisboa e já acumula diversas premiações,
traduções e adaptações de seus trabalhos assume, no texto, o difícil papel de um narrador
participante (e nem sempre onisciente ou congruente) que transita, como um antigo lançado
português das costas atlânticas e todos os atualíssimos personagens do seu poema, entre
diversos lugares geográficos e culturais.
Escrito em versos livres e publicado em Lisboa, Portugal, e em São Paulo, Brasil, no
mesmo ano, o livro é também, de acordo com o seu subtítulo, um “itinerário” geral da
“melancolia contemporânea” que pretende refletir sobre os significados íntimos da história
europeia do início deste século fazendo uma leitura múltipla das epopeias da Antiguidade
Clássica, dos Lusíadas de Camões, do Ulisses de Joyce, do Em Busca do Tempo Perdido de
Proust e do Baghavad Gita de Vyasa, entre outros (inter)textos canônicos. “Uma Viagem à
Índia”, no entanto, é capaz de ironizar simultaneamente estas mesmas pretensões épicas,
eruditas e universalistas num pastiche cheio de zombarias a respeito, por exemplo, do
heroísmo autoimputado e passadista dos portugueses.
Este, e apenas este, viés irônico da obra é explicitado no denso prefácio escrito pelo
filósofo lusitano Eduardo Lourenço. Não é fácil, contudo, afirmar que “Uma Viagem à Índia”
é apenas um exercício de cinismo mordaz e desesperança, uma vez que seu texto muitas vezes
desenvolve, através passagens de intenso lirismo, imagens e reflexões interessantes e às vezes
96
otimistas sobre o valor insuspeitado, a importância de particularidades ínfimas, a extrema
importância sócio histórica de um único gesto ou ruído.
A realidade e a viagem de Bloom são vistas na epopeia, consequentemente, como uma
transformação constante através de uma de suas imagens recorrentes, a metáfora da
tempestade que tem por trás de si um sol brilhante ou vice-versa. Gonçalo M. Tavares, ou
alguns dos outros narradores que se intrometem sem aviso e multifacetam o texto, aumentam
constantemente a sensação de ambiguidade através de alterações estonteantes de perspectivas,
escalas, contrastes binários e contradições ímpares.
Na estrofe seguinte, do VIII canto, uma das muitas fábulas e/ou digressões
interpoladas à ação principal, podemos encontrar uma das explicitações textuais destas
características instáveis, da perspectivação inerente à obra:
“(Numa sala fechada e sem janelas
acendem-se fósforos com a mesma indiferença
com que se liga a eletricidade,
porém, ao ar livre, o fogo, quando surge por meios
manuais e antigos, traz um assombro controlado
mais progressivo. À medida que a noite vai surgindo
a luz exibe ao mesmo tempo perigo e calma.
Homens rodeiam o fogo como um animal caçado
que é agora, no centro, o banquete.)”
(VIII, 13 – Pg.327)
Muitos outros trânsitos enunciativos e históricos percorrem a trajetória de John Bloom
em sua “Viagem à Índia”, entretanto. É interessante notar, por exemplo, que Gonçalo Tavares,
e/ou seus narradores-personagens, parecem comparar implicitamente a “melancolia
contemporânea” geral, pós-colonial e pós-moderna, com a busca fracassada pelo universal e a
falência do império Português que, num fenomenal exercício de anacronismo poético e junto
com o protagonista, talvez, poderíamos pensar, já estivesse fadado ao seu futuro de país
97
periférico numa violenta crise econômica antes mesmo que a primeira caravela deixasse a
“ocidental praia lusitana”.
Mas “voltemos ao enredo”, como reza um dos bordões do épico. Pretendendo esquecer
um passado trágico que lembra sensivelmente o drama edípico freudiano misturado com o
tédio de uma velha Europa que dominou técnica, científica e cartograficamente toda a Terra e
buscar conhecimentos numa Índia idealizada, o herói, que é também anti, sub e super-herói
coletivo, uma vez que ele representa subliminarmente o povo português e todo o gênero
humano contemporâneo, itinerante e melancólico, parte e retorna à Lisboa, entre 2003 e 2010.
Nos seus bolsos está um rádio quebrado, que pertencia ao seu falecido pai homônimo e que é,
de certa forma, uma relíquia de sua estirpe violenta, capitalista, calculista e conquistadora. Tal
família e o próprio Bloom sob a rubrica dos termos e das metáforas “astronomia” e
“geometria” teriam ajudado a criar, historicamente, diversas técnicas epistemológicas de
dominação que incluem uma espécie de híbris heroica, o domínio linguístico ou religioso e o
roubo de conhecimentos alheios, representado na trama pelo encontro e pelo roubo de velhos
livros indianos.
Numa das primeiras estrofes do poema, ainda no tom invocativo daqueles que
afinavam as velhas liras, “tuba[s] belicosa[s]” ou as “frauta[s] ruda[s]” Gonçalo M. Tavares,
aliás, anuncia e resume todo a trama enfatizando a crueldade clânica dos John Bloom e a sua
relação de filiação e de metonímia, já que o herói se vê e algumas vezes é visto através de um
espelho que é a própria história da expansão portuguesa, como um dos antigos navegadores
lusitanos e simultaneamente como um herói trágico grego que ao tentar fugir de seu passado
individual acaba seguindo os passos de seus ancestrais:
“Falaremos da hostilidade que Bloom,
o nosso herói,
revelou em relação ao passado,
levantando-se e partindo de Lisboa
numa viagem à ìndia, em que procurou sabedoria
e esquecimento.
E falaremos do modo como na viagem
levou um segredo e o trouxe, depois, quase intacto”
98
(I, 10 – Pg.28)
Entretanto, se a fuga de John Bloom é tão trágica quanto errática, já que nesta viagem
até a distância geográfica da Índia mi(s)tica do new age o herói tem que retroceder
temporalmente e passar em primeiro lugar pela Inglaterra dos grandes impérios neocoloniais,
e depois pela França do Iluminismo e pela Alemanha de Lutero e Gutenberg, as estratégias de
domínio, a “astronomia” e a “geometria” da Europa, também parecem afundar num futuro
melancólico. Afinal
“(...) Um único ponto,
tem inúmeros lados, a geometria erra de modo
ostensivo: nada é uniforme ou previsível.”
(VII, 81 – Pg.317)
e a mesma estrofe continua lamentando, numa paráfrase do tema da “glória de
mandar”, da “vã cobiça” e da “vaidade a que chamamos Fama” do IV canto dos Lusíadas, a
violência arbitrária de todos esses projetos “racionais” de conhecimento e submissão e, no
limite, da própria capacidade discursiva e simbólica da humanidade:
“E as palavras são governadas pela força; poderemos dar
uma volta inteira ao dicionário ou às regras da sintaxe
e encontraremos sempre o mesmo por cima, em cima,
dominando: a força, a força, a estúpida força.”
(VII, 81 – Pg.317)
Ainda podemos acompanhar, mantendo a temática desta condenação da “astronomia”,
da “geometria” e da “força” egoísta, no próprio decorrer da trama e especialmente no choque
cultural que ocorre na Índia “verdadeira” dos cantos VII e VIII com suas vacas, seus rios
99
poluídos e suas ruas engarrafadas, alguns dos efeitos deletérios do relacionamento entre
indivíduos ou povos que tem poderes desiguais e das criações discursiva de outros
diferenciados, sintetizados neste fim de estrofe:
“(...) Por exemplo,
so assassina quem conhece o método
de olhar para os outros de longe como se fossem ouros, precisamente.”
(VIII, 48 – Pg.340)
Ao final do livro, o radinho quebrado, que simboliza alternadamente a solidão
ontológica humana, o clã dos Bloom e o fracasso do progresso técnico, vai e volta, no tempo e
no espaço, de Lisboa à Índia e de volta à Lisboa, sem fazer nenhum ruído e acaba passando
desapercebido por todos os outros personagens da trama em contraste com o mundo de sons e
com a insistência das diversas metáforas auditivas do texto. É possível, aliás, que neste e em
outro detalhe sonoro estejam a maiores ironias de toda a obra. Afinal, John Bloom, filho de
John Bloom, neto de John John Bloom, homônimo do Ulisses joyceano e intermediário entre
este, o astuto, teimoso e sedutor Odisseu homérico e o verborrágico Vasco da Gama dos
Lusíadas, se propõe desde o início a escutar e não consegue. O herói quer aprender com o
Outro assassinável, com a sua Índia irreal, porém, assim como os supracitados heróis da épica
e do romance, não consegue sair do egoísmo do seu próprio ponto de vista nem parar de
imaginar-se como o centro de todas as ações ou de cessar, por um momento que seja, a
narração direta ou indireta de suas próprias aventuras em sua língua materna.
Mas, como já foi indicado anteriormente e ao contrário da apreciação de Eduardo
Lourenço, nem tudo é uma tragicomédia desesperada e o misticismo da Índia orientalizada, da
Índia ideal, ainda que seja feito de ouro falso, reluz e embeleza especialmente a
transcendência das últimas páginas do épico. No final do penúltimo canto, após a angustiada
pergunta
“Quem é Bloom? Ninguém sabe (muito menos ele: está demasiado perto.)”
100
(IX, 88 – Pg.395)
aparece-nos, em resposta, uma belíssima definição do herói, de cada um de nós e da
humanidade, enfim, junto com um conselho – acabar a viagem, parar de fugir em algum lugar
físico e espiritual que, no caso, é a própria Lisboa de origem para poder conhecer e amar – de
Gonçalo M. Tavares, autor e narrador, à John Bloom:
“E um organismo que tem tudo em potência.
Pode ser santo, ou vender anjos roubados
à igreja de um padre que salva.
Os homens têm fome, e quando
têm medo fogem e nessa fuga pisam o
chão ou outros animais. O amor existe,
mas não num ser vivo que se move.
O inesperado insinua-se no que parece definitivo
e ninguém se conhece antes de morrer. Ámen.”
(IX, 89 – Pg.395)
101
Sidney W. Mintz. 2010. Three Ancient Colonies: Caribbean Themes and
Variations. W.E.B. Du Bois lecture series. Cambridge: Harvard University
Press. 257 p.
Ana Elisa Bersani
Mestranda em Antropologia Social - IFCH – UNICAMP
O antropólogo Sidney W. Mintz vem realizando trabalhos na região do Caribe desde
meados do século XX, quando essa passa a ser considerada uma “área etnográfica”
importante e, ao mesmo tempo, desafiadora para as análises antropológicas. Seu trabalho
etnográfico em Porto Rico, em 1948, inicia o longo percurso de pesquisas do antropólogo no
Caribe. Esse trabalho deu origem à obra “Sweetness and Power” (1985), na qual o autor
descreve o papel econômico, histórico e nutricional do açúcar (produzido, sobretudo, no
Caribe) na transformação das sociedades camponesas europeias em sociedades proletárias,
servindo como combustível para a Revolução Industrial e o desenvolvimento do mundo
contemporâneo. Mais tarde, em 1952, ele se dedica a um estudo etnográfico na Jamaica entre
os camponeses moradores do vilarejo de Sturge Town, fundado pela igreja Batista após a
emancipação da antiga colônia britânica e, em 1958, realiza, no Haiti, um estudo sobre os
mercados populares. A importante obra “Caribbean transformations” (1974) de Mintz surge
dessa longa experiência, é considerada uma obra inovadora e absolutamente central para a
compreensão da realidade caribenha.
A reflexão feita pelo autor em “Three Ancient Colonies: Caribbean Themes and
Variations” é fruto dessa longa história de pesquisa e produção etnográficas. Pode-se
interpretar o título escolhido para a obra enquanto uma referência, irônica talvez, à própria
“antiguidade” do autor que se propõe a uma reflexão com um distanciamento de várias
décadas do período de campo. O livro surge da compilação de uma série de conferências
ministradas pelo autor em homenagem a William Edward Burghardt Du Bois no Du Bois
Institute of Harvard University, em 2003, e traz uma reflexão profunda acerca das diversas
histórias da escravidão no Caribe e dos impactos culturais provocados pela dinâmica do
sistema escravocrata na conformação das sociedades que conhecemos hoje. Ao retomar as
descobertas que fez em cada ‘viagem’ etnográfica, o antropólogo enfrenta o desafio
102
comparativo de realidades complexas e heterogêneas. As três ex-colônias Porto Rico, Jamaica
e Haiti têm suas histórias e culturas revisitadas nessa obra que foge do modelo etnográfico
‘clássico’ e que, segundo Mintz, “é mais uma reflexão, um olhar para trás pessoal – diferente
da forma pesada acadêmica” (p. 24).
O trabalho de Mintz no Caribe e o seu interesse na investigação do real significado do
sistema imposto pelo trabalho forçado dos escravos vindos da África para o Novo Mundo nos
revela transformações na própria história da Antropologia que, salvo raras exceções, vinha
deixando no esquecimento essa região, enquanto campo de estudos, até o fim da Segunda
Guerra Mundial. As sociedades que ofereciam condições adequadas para o trabalho
antropológico seriam essencialmente aquelas consideradas ‘primitivas’ – para usar um termo
corrente à época. O Negro no Novo Mundo representa um elemento desconcertante aos
modelos antropológicos e, por tanto, um desafio. O reconhecimento, no trabalho do autor, da
significância histórica e cultural das sociedades Caribenhas não é, portanto, trivial. No
entanto, de acordo com os apontamentos de Mintz, as duas últimas décadas foram marcadas
por um entusiasmo em relação às retóricas da mudança o que fez com que a região do Caribe,
antes desimportante, ganhasse novo status e relevância à medida que termos como
mestiçagem, hibridismo, globalização e crioulização passaram a fazer parte do vocabulário
conceitual antropológico.
O método proposto por Mintz para se pensar as sociedades Caribenhas passa pela
importância que o autor atribui à história na pesquisa antropológica. Ele considera superado o
debate posto pela antropologia cultural que questionava a relevância da história. Apesar de
metodologicamente diferentes, a antropologia e a história se debruçam sobre perguntas de
uma mesma ordem e mantém uma relação íntima. Dessa forma, ele incorpora o colonialismo
no universo empírico como parte da experiência das pessoas. Os indivíduos em interação são
centrais na apreensão dos processos sociais que estão envolvidos nas transformações
históricas da mesma forma que os processos históricos são extremamente importantes para a
compreensão do presente.
No caso do Caribe, Mintz propõe que as transformações ocorridas nessas três excolônias se deram em relação à dois aspectos fundamentais da história dessa região: a
exploração do trabalho escravo e o plantation como sistema de produção. As divergências
histórias entre o colonialismo escravista Britânico, Francês e Espanhol são as chaves para se
entender as distintas características dessas três sociedades. No decorrer de todo o livro, Mintz
oferece observações históricas sobre cada uma das três ex-colônias, somando a elas as
103
trajetórias e experiências pessoais dos atores encontrados nos campos etnográficos, chamados
por ele de “little people”, com os quais estabeleceu relações muito próximas.
Porto Rico, Jamaica e Haiti compartilham várias semelhanças que vão dos aspectos
geográficos, do papel que desempenharam em favor do desenvolvimento do poderio europeu
ultramarino, ás semelhanças históricas: todos foram ocupados e povoados por colonos
europeus e escravos africanos; todos tiveram seus povos nativos exterminados pelas doenças e
pela escravidão; em todos houve uma marcante mistura cultural e de raças. Porém, cada um
deles abriga sociedades extremamente distintas, inclusive no que diz respeito ao lugar que a
escravidão ocupa nas suas histórias e na formação demográfica de suas populações. Apesar de
reconhecer a importância do sistema escravista e das relações raciais para a conformação da
história e identidade locais nas três ex-colônias, para Mintz, essas relações não são as
mesmas. A escravidão foi menos importante na história de Porto Rico, por exemplo, o que
evidencia o modelo colonial distinto das colônias Hispânicas no Caribe.
A obra apresenta uma reflexão cuidadosa, aproximando e distanciando as três
sociedades estudadas. Ao passo que na Jamaica e no Haiti a população local se tornou
preponderantemente africana em sua origem ao longo dos séculos, em Porto Rico isso não
aconteceu. Enquanto a Jamaica recebeu imigrantes vindos de lugares como Índia e China, o
Haiti e Porto Rico não fizeram o mesmo. Assim, não apenas a instituição escravista variou em
relação à duração e importância nessas ilhas, mas outros fatores como a composição física,
demográfica, da população local e a influência dos grupos libertos não brancos também
variaram ao longo do tempo, marcando cada sociedade com características distintivas.
Ao pensar o caso de Porto Rico, onde desde o início a população era majoritariamente
composta por descendentes de europeus livres e a aparência física da maioria foi se tornando
cada vez mais mestiça ao longo do tempo, devido à queda da importância econômica dos
escravos, Mintz aponta para as consequências do fenômeno da mestiçagem. Segundo ele, essa
experiência histórica única engendrou relações de raça e atitudes raciais menos conflituosas
em Porto Rico. Aqui, podemos notar uma interpretação da mestiçagem enquanto elemento
decisivo para a suavização dos conflitos raciais nos moldes de Gilberto Freyre.
Dois aspectos chamam a atenção de Mintz ao contrastar as diferenças culturais das três
sociedades: gênero e raça. A maneira como homens e mulheres são percebidos diferem
bastante nas três ex-colônias. Porém, são nas relações de raça que o autor vê as diferenças
mais dramáticas entre Porto Rico, Haiti e Jamaica. Ele vai se debruçar sobre essa questão e
desenvolver uma interpretação acerca do conceito de crioulização para explicar a
heterogeneidade Caribenha. A composição demográfica das raças aparece aqui como um fator
104
fundamental para explicar as diferenças entre Porto Rico e as outras duas sociedades. Para
Mintz, a chave para compreensão de Porto Rico está no fracasso Espanhol na construção de
um sistema escravista de plantation do mesmo tipo que vingou nas colônias Britânicas e
Francesas no Caribe no período que vai de 1650 a 1800. Em contraste com a Jamaica e o
Haiti, a economia colonial de Porto Rico, sob o controle Espanhol, não estava baseada no
sistema de plantation. Além disso, a conformação de uma população majoritariamente
descendente de europeus resultou, segundo Mintz, em relações raciais mais cordiais, “less
toxic”, em comparação às outras duas sociedades. Apesar dessa constatação, o antropólogo
afirma que isso não fez com que Porto Rico fosse mais econômica e politicamente igual.
A redefinição do conceito de crioulização permite que Mintz dê sentido as diferenças
descritas entre as colônias Hispânicas e o resto do Caribe. A palavra “crioulo” teve vários
significados ao longo da história. Em oposição aos significados mais comuns da palavra,
Mintz define o conceito crioulização como sendo uma síntese cultural criativa que se deu no
Novo Mundo, “pela qual novas instituições sociais, adornadas com conteúdo cultural
reordenado, foram forjadas para fornecer as bases de um contínuo crescimento cultural” (p.
190). O autor acredita que foram os escravos das plantações coloniais do Novo Mundo que
forjaram essa síntese através de um processo de mudança social que se deu na interação entre
eles e os libertos, incluindo a classe dos Senhores.
Com exceção dos índios nativos, todos os recém-chegados ao Novo Mundo, vindos
das mais diversas regiões, eram culturalmente heterogêneos. Esse ‘repovoamento’ envolveu
basicamente dois grupos diferentes: um minoritário, politicamente dominante, cultural e
linguisticamente homogêneo; e outro numericamente maior, subordinado, culturalmente
heterogêneo entre si e formado por falantes de línguas diversas. Na Jamaica e em Santo
Domingo (Haiti), a grande maioria da população era composta por escravos. Em razão das
terríveis condições em que eles eram mantidos sob o julgo de uma violência atroz, no Caribe,
a mudança social era inescapável. Os habitantes dessa nova terra – tanto escravos como
Senhores – foram obrigados a comer novos alimentos, a se adaptar ao clima tropical, a lidar
com novas plantas e animais e, sobretudo, conviver com pessoas distintas em aparência,
língua e comportamento. Cada sociedade se transformou em uma espécie de “incubadora de
inovação social”.
Segundo Mintz, o processo de Crioulização, enquanto criação de uma nova cultura a
partir das ruínas da escravidão teve lugar em colônias como a Jamaica e o Haiti, mas não em
Porto Rico, pois as bases desse processo – a escravidão e o sistema plantation de produção –
foram fenômenos enfraquecidos na colônia Espanhola. Para reforçar o argumento, o autor
105
chama atenção para a relação entre a língua e as relações sociais. Ele acredita que a não
existência de línguas crioulas nas sociedades formadas sob o poderio Espanhol é uma pista
importante para a reflexão sobre a homogeneidade social nesses contextos coloniais
Hispânicos. Da mesma forma que determinadas condições contribuíram para a emergência
das línguas crioulas no Haiti ou na Jamaica, elas também levaram à criação de “culturas
crioulas” nesses territórios.
A crioulização foi, antes de tudo, um ato efetivo de criação por parte dos escravos e
teve consequências similares na Jamaica e no Haiti. Mintz sugere, por exemplo, que um efeito
importante dessas mudanças foi um tipo de modernização. Longe de ser uma mistura passiva
entre culturas distintas, esse processo concretizou um esforço de criação de novas instituições
híbridas e novos significados culturais para substituir aqueles que foram destruídos pela
escravização. Foi uma reação aos terríveis constrangimentos impostos por essa situação e à
concomitante desorganização étnica. Os escravos tiveram que construir coletivamente
instituições sociais no interior do sistema escravista para fazer com que a vida cotidiana
ganhasse algum sentido. A memória do passado era crucial, mas não bastava. As memórias
precisavam ser arranjadas coletivamente através da construção de práticas sociais
compartilhadas que permitissem uma perpetuação cultural. Esse processo de reconstrução, de
atribuição de novos sentidos às atividades cotidianas, foram experiências modernizadoras,
segundo Mintz.
A discussão retomada pelo antropólogo em “Three Ancient Colonies” recupera pontos
fundamentais para a reflexão acerca das ideias de globalização e hibridismo, por exemplo.
Cinquenta anos depois, ao voltar às sociedades onde havia estudado ao longo de sua carreira,
Mintz mostra como a antropologia pode ser uma ferramenta potente ao permitir a exploração
de questões históricas de difícil compreensão. O seu interesse no impacto das dinâmicas
econômicas da sociedade escravocrata e na continuidade das hierarquias sociais baseadas na
raça e nas relações sociais de gênero levaram o antropólogo a formular a ideia de processo de
crioulização como uma importante matriz de compreensão das culturas humanas.
106
CASTELO, Claúdia; THOMAZ, Omar Ribeiro; NASCIMENTO, Sebastião (Orgs).
2012. Os outros da colonização: ensaios sobre o colonialismo tardio em Moçambique.
Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. 361 pp.
Luciano Cardenes Santos
Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/Unicamp). Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Amazonas e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos de Políticas
Territoriais na Amazônia (NEPTA/UFAM).
Presente em todo o pensamento ocidental, o colonialismo atua enquanto um discurso
manejado no campo político, sociológico, militar, ideológico, científico e imaginativo (SAID,
1978). Aplica-se sempre que ameaçada a sua sobrevivência, forjando representações culturais
através de forças desiguais e irregulares, expressas na competição pela autoridade política e
social do mundo moderno daqueles que estão no propósito das classificações ocidente/oriente,
civilizado/primitivo – colonizador: português da metrópole, branco do mato – colonizados:
africanos, indígenas, árabo-mulçumanos, sino-moçambicanos, sino-asiáticos, sino-africanos,
coolies, chineses, indianos.
Ao tomar essas classificações como matéria-prima, o pós colonialismo tem como
elemento fundamental o discurso das minorias, transformando-as em sujeitos operadores da
cultura e da mudança para desnaturalizar o racismo, a pobreza e os processos de dominação
entre nações.
A crítica pós-colonial formula revisões em torno das diferenças culturais, da
autoridade social e da discriminação política, muitas vezes reveladas no interior do
pensamento moderno a partir da desconstrução de estruturas binárias e essencializantes:
gênero, raça, etnia, nacionalismo. (BAHBHA, 1994)
Em sintonia com as reflexões de manifestos pós-colonialistas, o livro Os Outros da
colonização: ensaios sobre o colonialismo tardio em Moçambique merece nossa atenção por
administrar perfis intelectuais, políticos e um material etnográfico histórico-ocular,
instigando-nos ao desafio de ver nos espaços intersticiais a produção, ocultamento e
extermínio de alteridades.
O livro reúne perfis e trajetórias de lá (África Moçambicana) e além mar (Portugal,
Brasil, Estados Unidos). Pensamentos que se incomodam com a memória do colonialismo do
ultramar e do ultramundo, seduzindo-nos à experimentação da viagem pelo mundo
107
moçambicano, sobretudo como forma de conhecermos a nós mesmos – cobaias de projetos
similares como o lusotropicalismo de Gilberto Freyre (1940, 1958).
Partindo da leitura desse mundo, o livro reúne uma sensível e criteriosa antropologia
para a leitura de processos recentes de um tardo colonialismo, colocando-nos diante de
testemunhos orais, documentos oficiais e memórias organizadas por olhares sociológicos
atentos aos conflitos e a história de movimentos sociais daquele pedaço da África austral.
Na constelação de pesquisadores, o brilho precioso é realçado pelos artigos de
intelectuais, alguns militantes políticos de destaque e que testemunharam o interior e os
desdobramentos da história mundial em Moçambique. É o que podemos conferir nos textos de
Amélia Neves Souto, Eduardo Medeiros, Isabel Casimiro, João Paulo Borges Coelho, José
Luís Cabaço, Teresa Cruz e Silva, pesquisadores da Universidade Eduardo Mondlane, atores
de círculos de fruição intelectual e agentes políticos nos movimentos sociais de libertação em
contextos pretéritos e posteriores a independência em 1975.
Os artigos estão organizados a partir da ideia de colonialismo tardio - tardo
colonialismo – caracterizado por um conjunto de estratégias mais lentas, fora do tempo e que
tem por objetivo a manutenção da geopolítica e do status do império lusitano, cuja resposta
aos seus críticos e opositores culminou na transformação das antigas colônias em províncias
ultramarinas no ano de 1951.
Ao enfrentar movimentos sociais e grupos nacionalistas, o Estado novo de Salazar e
Marcelo Caetano adotou a estratégia de intervenções tipificadas como sociais, anunciando
projetos desenvolvimentistas para as áreas científicas e tecnológicas, aliando-se a uma postura
antirracista para construção de uma África portuguesa, pluricontinental e multirracial – uma
perspectiva aplicada de 1950 até a revolução dos cravos (1974) e a independência de
Moçambique (1975), uma prática colonial tardia na primeira metade do século XX.
Partindo desse contexto histórico, o livro está estruturado em quatro partes: Estado,
sociedade e produção de alteridades (Parte I), Paradoxos e limites do assimilacionismo em
Moçambique (Parte II), Representações (Parte IV) e; A guerra (Parte IV).
Ao abordar as representações, em termos metodológicos, Penvenne (Capítulo 8) nos
faz lembrar que as imagens também se comunicam e que nelas, podemos ler a história e
perceber as transformações sociais das representações ridicularizadas, sexualizantes e
exóticas, operadas em Lourenço Marques (atual Maputo) e que tentavam se expressar através
de fotografias assimilacionistas e de expressão do sucesso da empresa física colonial do
sólido domínio português.
108
Se para o Estado novo a fotografia teve o seu papel, a imprensa moçambicana também
teve suas atribuições para a empresa colonial. Há aqui a revelação de um caráter duplo e que
reflete os interesses do Estado ou a ele associados. Por um lado, disseminam-se um
agrupamento de ideias que se tornam hegemônicas e passam a constituir-se enquanto
ideologia, por outro lado, refletem-se interesses divergentes, podendo coincidir em alguns
aspectos com os do Estado, mas dando origem à produção de ideias de ruptura que podem
integrar utopias, aspecto explorado por Mendonça (Capítulo 9).
No escopo desse tardo colonialismo são notáveis as ações que se estendem à produção
literária dos processos de escolarização, desde o nível de letramento até a educação superior.
Como resposta à crise interna em que o país vivia após a I Guerra Mundial, a adoção de
estratégias que correspondessem culturalmente ao esforço de justificação que a empresa
colonial se via na contingencia de apresentar para assegurar sua permanência nas terras
obtidas revelavam-se uteis. Assim, o espólio da invasão colonial é romanceado e
transformado em direito inalienável por meio da literatura, ou seja, a prática literária passa a
ser vista como um excelente meio para disseminar um conjunto de ideias funcionais a
dominação.
É neste espírito que se criou o Concurso de Literatura Ultramarina, uma reocupação do
território, não apenas físico, mas artístico, filosófico e desportivo, conforme nos mostra
Chaves (Capítulo 10) e Domingos (Capítulo 11) ao analisar o futebol e a cidadania informal, a
mobilidade e a vida pública. Pina-Cabral (Capítulo 12), por sua vez observará na arquitetura
um elemento marcante para perceber essa disputa colonial através da arte e religião.
As reações a essas representações criadas pelo Estado Novo serão o combustível para
os conflitos da década de 1960-1970. No período de guerra (Parte IV), a estratégia colonial
instituiu a africanização dos conflitos, criando a aparência de que as hostilidades sociais eram
oriundas de moçambicanos contra moçambicanos e retirando as responsabilidades do Estado
português, justificando as redes de articulação com a população local e que favoreceram o
sucesso do colonialismo (Ribeiro, Capítulo 13 e Coelho, Capítulo 14).
Sem dúvida uma relevante contribuição do livro está nas referências às alteridades de
diversos grupos e coletivos sociais (Parte I) objeto das políticas assimilacionistas do Estado
novo português (Parte II), com argumentação conceitual no lusotropicalismo - um processo de
miscigenação conduzido pelo português como significante dos significados de outras
alteridades. Assim, a vocação multirracial e poligâmica nos trópicos será pensada como uma
apropriação da poligamia muçulmana – onde o português, por sua ascendência islâmica, será
o agente intercultural da poligamia (Macagno, Capítulo 2).
109
É nessa inspiração assimilacionista que serão feitos os projetos de povoamento
agrícola com a população excedente e pobre da metrópole portuguesa (Castelo, Capítulo 1). A
mesma orientação se estenderá a prática pedagógica do letramento da população Tsonga
(Cruz e Silva, Capítulo 4), à formação universitária (Souto, Capítulo 6) e ao trabalho como
tutela do Estado para a assimilação humanista do negro (Cabaço, Capítulo 7). É também
diante dessas ações coloniais que o movimento estudantil utilizará o associativismo para
forjar o seu nacionalismo e, mais tarde, a Frente de Libertação de Moçambique (Casimiro,
Capítulo 5).
Por fim, na medida em que o livro expõe a produção, o ocultamento e extermínio das
alteridades, coloca-nos a pensar acerca das reverberações dessas classificações coloniais no
âmbito do discurso anticolonial e pós-colonial. Afinal, que alteridades permaneceram ocultas
na virada do século XXI, quando as aporias colonizador/colonizado perderam seu valor
heurístico, se é que um dia o possuíram.
REFERÊNCIAS
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2005. FREYRE,
Gilberto. O mundo que o português criou, Rio de Janeiro, José Olympio, 1940.
______. Integração portuguesa nos trópicos. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar,
1958.
SAID, Edward. Orientalismo - o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura
Eichenberg. Coleção Companhia de Bolso. São Paulo: Companhia das Letras, 2007
110
GARFIELD, Seth. A luta indígena no coração do Brasil. Política indigenista, a marcha
para o oeste e os índios xavante (1937-1988). Tradução de Claudia Sant’Ana Martins,
UNESP, 2001, 392 p.). [Apresentação Prof. John Manoel Monteiro].
Francisca Navantino P. de Angelo
Indígena do povo Paresí. Historiadora pela UFMT. Mestre em Educação Pública/Instituto de
Educação/UFMT. Doutoranda em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ e como
aluna especial, participou do Curso “Tópicos Especiais em Antropologia Social: Perspectivas
Pós-coloniais sobre o Mundo Lusófono Colonial”, ministrado pelo Prof. John Manuel
Monteiro da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2012.
Seth Garfield é professor-associado do Departamento de História da Universidade do
Texas, em Austin, Estados Unidos.
O livro traz à luz a luta do povo xavante frente ao processo de ocupação do seu
território no estado de Mato Grosso e às políticas indigenistas adotadas como forma de negar
os seus direitos territoriais, “(...) a partir do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945),
criou um projeto político e um discurso cultural para dominar os grupos indígenas e seus
territórios.” (p. 12).
A história relatada se passa num período em que o estado de Mato Grosso, localizado
na região Centro Oeste, se encontrava isolado dos “progressos” centrais do país, ficando
meramente à mercê das oligarquias locais.
A leitura nos chama atenção pelas revelações sobre a contradição do poder estatal e
das suas ações, às vezes em defesa dos povos indígenas e muitas vezes contra esses povos e
sua cultura.
O livro foi dividido em oito capítulos demonstrando que o autor procurou registrar
também uma pesquisa etnográfica do povo xavante, sua tradição e até alguns rituais, já sob a
pressão de missionários e funcionários do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) com o resultado
de crescentes mudanças sociais e culturais.
Um dos focos “é o envolvimento xavante nas estruturas socioeconômicas e nos
mecanismos culturais que buscavam redefinir sua economia e identidade política. A história
dos xavante pós-contato – assombrada por morte, exílio, perda territorial e violência cultural –
não é exceção à maioria das experiências pós-conquista dos nativos americanos.” (p. 22).
Todo esse processo numa época em que o estado de Mato Grosso era considerado o sertão
111
selvagem, com baixa população urbana, visto pelos intelectuais brasileiros como o “eldorado”
a ser explorado e conquistado a qualquer custo. No início da década de 1940, o povo xavante
lutava para dar visibilidade a sua identidade e à legitimidade da sua luta por território.
O livro nos mostra a trajetória dessa luta, com um estado centralizador e com um
governo que implantou o chamado “desenvolvimento econômico” planejando ações de
pacificações do povo xavante, seu confinamento em reservas, uma vez submetido à ordem e
ao comportamento exigido para se tornar um povo de cidadãos brasileiros, cristãos e fiéis à
pátria brasileira.
Os xavante citados neste trabalho são da região denominada Xavantina, de Pimentel
Barbosa, da região de Couto Magalhães, do Batovi, que ocuparam a região de Paranatinga, e
de Parabubure.
Outro processo marcante foi a implantação do projeto Marcha para o Oeste –
Expedição Roncador-Xingu, lançado em l943 pelo Governo Getúlio Vargas que resultou na
criação do Parque Nacional do Xingu, transferindo povos indígenas dos seus territórios
tradicionais. A população de muitas etnias diminuiu em virtude das epidemias que assolaram
as comunidades indígenas.
Toda essa operação foi comandada pelo Coronel Flaviano de Mattos Vanique, e por
Antonio Basílio (Capitão da FAB-Força Aérea Brasileira). Trata-se de uma expedição que
“planejava percorrer 1.800 quilômetros a partir da fronteira noroeste de Goiás-Mato Grosso
até Santarém (PA). Nesse percurso previa-se um acampamento às margens do Rio das Mortes
e uma incursão pela Serra do Roncador, região habitada por índios xavante”.
No tocante a atuação do SPI, o autor revela o espírito que predominava na instituição
frente a situação dos povos indígenas, ora centrado na defesa dos direitos territoriais, ora
determinado pelo governo central.
É neste contexto que o texto sobre a pacificação do sertão de Mato Grosso nos revela
como o SPI, por meio do lema do órgão que era “morrer, se necessário for; matar, nunca”,
atuava conforme os mesmos procedimentos usados para a “atração” do povo xavante como a
de qualquer outro povo nativo.
A forma de “conquista atrativa”, usando a armadilha dos “presentinhos”, não se
diferenciava da dos tempos coloniais, com espelhos e “bugigangas” oferecidas aos indígenas.
Desta forma, o autor nos mostra que as formas acompanham os tempos, mudando apenas os
produtos, mas a metodologia é a mesmo dos tempos de Cabral.
Uma das evidências retratadas no texto é a violência interétnica e os conflitos entre os
indígenas e os invasores. Os primeiros eram reprimidos principalmente no que concerne às
112
disputas nas ocupações territoriais e com o apoio do governo para o estabelecimento de
propósitos de retirar os índios de suas terras indígenas.
Essa luta travada pelos indígenas no coração do Centro Oeste sempre foi negada por
historiadores mato-grossenses. A imagem que sempre foi repassada à população de uma
maneira geral foi a de que os índios são agressivos, selvagens e praticam atrocidades contra os
não índios, sem todavia mostrar outro lado da história, as consequências nefastas do contato.
O autor procurou mostrar os xavante depois do contato com os não índios, destacando
o papel das lideranças nesse processo. As divergências ocasionadas pelas disputas políticas
que resultavam em mortes, chacinas e até expulsões dos territórios tradicionais são
destacadas, mostrando a tensão vivenciada por ambas as partes.
Outro ponto fundamental retratado pelo autor é a política de “politicagem” praticada
por funcionários “indigenistas” com os indígenas, gerando situações de clientelismo e
assistencialismo
que
levavam
a
privilégios
e
direcionavam
comportamentos
de
individualismo e egoísmo. Os valores e princípios indígenas eram discriminados, assim como
a própria cultura indígena.
A ideologia do desenvolvimento da Amazônia tinha como fundo, a “segurança
nacional” com fins de ocupação das terras indígenas e “visava promover a industrialização, a
modernização agrícola e a expansão da infraestrutura” com a suposta finalidade de sanar o
desequilíbrio regional (p.211).
Neste aspecto o autor nos revela as intenções do Estado brasileiro de “desenvolver as
regiões” e promover a integração nacional. “A ideologia da segurança nacional baseava a
defesa do Brasil na industrialização, na utilização eficaz dos recursos naturais e na
“integração nacional”, por meio de extensas redes de transporte e comunicação”. (p. 211).
“Os limites da Amazônia Legal, concebidos segundo critérios sociopolíticos,
expandiram a jurisdição federal sobre o Centro-Oeste: enquanto a definição “clássica” ou
geográfica da Amazônia, empregada historicamente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, compreendia Amapá, Acre, Roraima, Pará, Amazonas e Rondônia, a Amazônia
Legal ampliava sua área em mais um terço, incluindo as regiões norte de Mato Grosso e
Goiás, além do oeste do Maranhão” (Mahar, 1979 apud Garfield, 2001, p.213).
O autor mostra que a política indigenista sempre esteve vinculada a projetos de
governo com a finalidade de transformar os povos indígenas em “pessoas civilizadas”,
cidadãos, expulsando-os dos seus territórios para expandir a ocupação e o povoamento das
regiões, e a dominação e controle dos povos que ficaram na rota deste projeto
desenvolvimentista. Estes povos têm sido deixados à mercê de acordos e políticas que os
113
colocam na dependência de ações assistencialistas tanto por parte do SPI, quanto por políticos
locais.
Pode-se verificar que o autor procura dar destaque ao protagonismo indígena na luta
pelos seus direitos mesmo diante de ameaças e apesar da submissão ao controle do Estado,
tanto do SPI, quanto da FUNAI.
No deslumbre do processo histórico, o autor nos coloca como o surgimento de
municípios como Barra do Garças, Nova Xavantina e Canarana foram criadas a partir da
ocupação de terras e da exploração dos recursos naturais, do desmatamento do cerrado para
dar lugar a pastagens de gado e aos migrantes vindos do sul do Brasil. A consolidação da
Marcha para o Oeste possibilitou esses processos de ocupação.
“Herminio Ometto, industrial paulista e primeiro presidente da AEA [Associação dos
Empresários da Amazônia], foi um “pioneiro” na Amazônia: fundou a fazenda Suiá-Missu, de
seiscentos mil hectares, nas terras xavante de Marãiwatsede em l961, três anos antes do golpe
militar.” (p. 225).
Atualmente, essa terra indígena é alvo de várias batalhas jurídicas e conflitos com
posseiros, invasores e aventureiros que adentraram nesse território com o apoio dos políticos
locais e regionais de Mato Grosso. Lembramos que do ponto de vista legal, a justiça deu
ganho de causa ao povo xavante, ordenando a retirada imediata dos invasores até o dia 06 de
dezembro de 2012.
Garfield nos revela as tentativas de transferência do povo xavante, inclusive para
Minas Gerais por parte dos militares, e a resistência e revoltas que levaram à conquista dos
direitos xavante no que concerne à permanência em seu território.
Apesar das lutas travadas para que os xavante pudessem permanecer nos seus
territórios, o relacionamento entre os indígenas e os “brancos” foi se agravando a medida que
o governo, através de sua política desenvolvimentista, promovia a ocupação e a expansão para
consolidar atividades agropecuárias, e na tentativa de transformar os xavante em
“agricultores”, tentando fazer com que passassem a ocupar pequenos lotes de terras.
Outra contribuição registro do trabalho de Garfield diz respeito à análise do processo
educativo escolar entre os xavante. A presença dos missionários evangélicos e católicos
(salesianos) veio atender à política de civilização e de “integração à comunhão nacional”. O
governo facilitou a entrada nas terras indígenas do SIL (Summer Institute of Linguistics), com
a finalidade de traduzir textos cristãos na língua indígena para a conversão religiosa.
114
O trabalho de evangelização era acompanhado pelo monopólio dos atendimentos na
área social e na saúde, e com isso muitas tradições e rituais foram sendo substituídos pelo
modo de vida não indígena.
Destaco o registro do autor sobre a questão da alimentação que foi substituída pelos
produtos industrializados com graves consequências para a saúde do povo xavante.
O livro permite um aprofundamento na história do Mato Grosso e conhecer como as
oligarquias locais promoveram a corrupção, os privilégios e, principalmente, como o
desenvolvimento nunca foi igual para todos os cidadãos.
Garfield esclarece os meandros das relações interétnicas, dos conflitos entre indígenas
e não indígenas, e que nos permite entender como estes processos contribuíram para o
delineamento do modo de ser do povo xavante, que experimentou fases diferenciadas da
história do contato. Trata-se de uma leitura fascinante que nos ajuda a compreender melhor a
história de um povo, e, sobretudo, dos verdadeiros habitantes das terras mato-grossenses.
115
PAIVA, Adriano Toledo. Os indígenas e os processos de conquista dos
sertões de Minas Gerais (1767-1813). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. 1
mapa. 208 p. (História; 13) [Apresentação de Adalgisa Arantes Campos;
Prefácio de Adriana Romeiro.]
Marina M. de Freitas
Historiadora, pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestra em Ciências Sociais, pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e Professora Assistente IV da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. No segundo semestre de 2012, na condição de aluna
especial, participou do Curso “Tópicos Especiais em Antropologia Social: Perspectivas
Póscoloniais sobre o Mundo Lusófono Colonial”, ministrado na Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP) pelo Prof. John Manuel Monteiro.
Dois padres: um mulato; outro, índio. Através da trajetória desses dois personagens,
Adriano Toledo Paiva conduz o leitor aos sertões do Rio da Pomba e aos meandros da
sociedade mineira entre a segunda metade do século XVIII e os primeiros anos do século
seguinte. Esses sertões constituíram, durante parte dos setecentos, uma barreira natural à
expansão colonial, mas, igualmente, um empecilho aos descaminhos do ouro. Neles vivia um
grande contingente de índios – Coropós, Coroados e Puris – e existiam muitos quilombos. Na
segunda metade do século XVIII, momento em que a exploração aurífera declina, essa região
de fronteira, até então considerada território indígena, será incorporada aos domínios coloniais
e, para tanto, nela seria erigida uma paróquia, a Freguesia do Mártir São Miguel dos Sertões
do Rio da Pomba e Peixe dos índios Cropós e Croatos, unidade administrativa composta por
um aldeamento régio e mais as pequenas aldeias adjacentes. A Freguesia do Rio da Pomba, de
grande extensão territorial, abarcaria a porção sul e central da atual Zona da Mata mineira.
Manoel de Jesus Maria, o padre mulato, filho de Maria Angola e seu senhor, João
Antunes, comanda a Freguesia do Rio da Pomba de 1767, época da sua criação, até o seu
falecimento, em 1811. Antes, no entanto, percorre um longo caminho, pois o mulatismo, a
ilegitimidade de nascimento e o ser alforriado constituíram três empecilhos que dificultaram e
retardaram seu ingresso na vida sacerdotal. Assim, foi preciso esperar por 10 anos, até que,
finalmente, conseguiu do papado a dispensa dos “seus defeitos”. Pouco tempo depois da sua
ordenação, seria criada a referida freguesia, da qual ele se tornou o primeiro vigário.
116
Pedro da Motta, índio coroado, inicialmente é um administrado do Guarda-mor
Manoel da Motta Andrade, uma das grandes fortunas das Minas Gerais no século XVIII. O
militar custeia seus estudos, realizados na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de
Guarapiranga, região vizinha ao que depois se tornaria a Freguesia do Rio da Pomba. O índio
Pedro aprende a ler e a escrever, em português e em latim e, mais tarde, após sua ordenação,
retorna aos sertões do seu nascimento para catequizar os índios de sua nação. Entre 1780 e
1784, na condição de sacerdote coadjutor do Padre Manoel de Jesus Maria, atua na catequese
e colonização dos índios do Rio Xopotó, porção da freguesia do Rio da Pomba. Em 1785,
morre precocemente, provavelmente em virtude de doenças contraídas nesse mesmo sertão
onde havia nascido.
Sobre o padre coroado, informa Adriano Toledo Paiva, propagou-se, desde o final do
século XVIII, “o argumento de que o clérigo (...) teria abandonado a batina e retornado às
vivências gentílicas com os que deveria catequizar e civilizar” (p. 92). Entre os que trataram
do assunto, Paiva cita Spix e Martius, observadores da ingratidão do indígena que, apesar de
ser tratado com desvelo pelos colonizadores, fugiu para as matas, retomando seu estado
anterior: “Um índio da tribo dos Coroados foi criado pelos brancos, tornando-se, tão instruído,
que recebeu ordens, e, como Padre, disse missa; mas de improviso, abandonou o estado
clerical, despojou-se da batina e fugiu nu para o mato, volvendo ao seu primeiro modo de vida
nômade” (Spix e Martius, apud p. 93). Paiva dedica algumas páginas do livro a desconstrução
desse argumento, que corrobora a incapacidade dos nativos de viverem no “mundo
civilizado” dos colonizadores, apoiando-se, entre outros documentos, na análise do
testamento do padre índio.
As trajetórias dos padres Manoel de Jesus Maria e Pedro da Motta estão contempladas,
respectivamente, nos dois primeiros dos quatro capítulos do livro. No terceiro capítulo, o
autor trata das transformações ocorridas no espaço e nas comunidades indígenas a partir da
instalação de uma paróquia nos sertões do Rio da Pomba. No quarto e último capítulo, Paiva
ocupa-se da militarização dessa fronteira e das guerras entre índios e não índios,
“intensificadas pelas alterações da política indigenista oitocentista” (p. 33).
O livro, originalmente uma dissertação de mestrado, é resultado de uma pesquisa de
fôlego, da qual fez parte o cotejamento de uma variada e esparsa documentação (paroquial,
cartorária, correspondências, legislação, recenseamentos etc.) depositada no Museu Histórico
117
de Rio Pomba, no Arquivo Público Mineiro, nos arquivos eclesiásticos da Arquidiocese de
Mariana e da Paróquia de São Manoel de Rio Pomba e em outras instituições.
A dissertação, intitulada “O Domínio dos Índios”: Catequese e conquista nos sertões
de Rio Pomba (1767-1813), elaborada sob a orientação da Professora Adalgisa Arantes
Campos, foi apresentada, em janeiro de 2009, ao Programa de Pós-Graduação da UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais) e aprovada, conforme parecer da banca examinadora,
“com distinção e louvor”, “em razão da qualidade excepcional do trabalho”.
Adriano Toledo Paiva é autor de diversos artigos publicados em revistas, jornais e
anais de congressos e do livro História indígena na sala de aula, publicado, em 2012, pela
Fino Traço. Em 2013, concluiu na UFMG, sob a orientação da Professora Adriano Romeiro, o
doutorado em História, após a defesa e aprovação da tese intitulada “Aranzéis da tradição”:
conquistadores nos sertões do ouro (1760-1800).
No livro aqui em pauta, Os indígenas e os processos de conquista dos sertões das
Minas Gerais, Paiva analisa os processos coloniais de conquista e governo dos sertões do Rio
da Pomba entre os anos de 1767 e 1813, um tema pouco estudado pela historiografia.
Distingue o trabalho do autor, além da extensa pesquisa documental, o trazer à tona uma outra
história das Minas Gerais, focada em uma região secundária, e a tentativa bem sucedida de
dar visibilidade às populações nativas, priorizando o protagonismo indígena na história do
Brasil colonial e ultrapassando o marco da vitimização dessas populações. Encontramos,
então, índios que aderem à colonização europeia, aceitam viver em aldeamentos e, a partir do
convívio com os não índios, reestruturam aspectos da sua cultura.
A capa do livro traz o rosto de um mulato. A imagem é curiosa e causa um certo
estranhamento, porque na obra não há maiores esclarecimentos sobre a mesma, exceto os
créditos de praxe que sugerem ter sido a mesma desenhada especialmente para a composição
da capa do livro, pelo designer Paulo André Ferreira de Souza. Quem seria o mulato retratado
nessa imagem? Seria uma representação do padre Manoel de Jesus Maria? Não sendo uma
representação do padre mulato, que relação existe entre essa imagem, os indígenas dos sertões
do Rio da Pomba e os processos de colonização dos sertões das Minas Gerais, objeto de
estudo de Adriano Toledo Paiva?
Alguns leitores poderão ficar insatisfeitos com a ausência de explicações para essa
imagem e, ainda, com o fato de muitas das questões elencadas por Paiva permanecerem em
aberto. Outros, talvez, argumentem que algumas das afirmativas, conclusões, apresentadas
118
pelo autor não estão justificadas a contento. Essa crítica poderia ser exemplificada por
afirmativas como a que se lê à página 32, na qual o autor afirma que o Padre Manoel de Jesus
Maria “aderiu à carreira eclesiástica como mecanismo de ascensão social na sociedade
setecentista”. Essa ideia é recorrente no livro, no qual Paiva informa que o mulato Manoel
ascendeu socialmente ao tornar-se padre. Contudo, é possível que a argumentação apresentada
pelo autor não seja capaz de convencer a todos os leitores sobre ter sido um projeto do mulato
tornar-se pároco e oferecer-se para trabalhar nos sertões do Rio da Pomba, catequizando
índios, visando apenas ou principalmente a ascensão social.
Ainda que essas imperfeições possam existir, elas não comprometem os méritos do
autor e do seu trabalho, haja vista, é importante repetir, a riqueza da pesquisa documental e a
tentativa bem sucedida de preencher lacunas da historiografia, explorando assuntos ainda
pouco estudados. O livro, além de contribuir para o conhecimento da história dos índios no
Brasil, leva à reflexão e ao desejo de conhecermos mais sobre os sertões mineiros, os seus
habitantes, índios e não índios, e os processos históricos que transformaram as terras dos
Cataguases nas Minas Gerais. Os aficionados pela história mineira terminarão a leitura na
expectativa de outras pesquisas capazes de seguir a importante trilha percorrida pelo
historiador Adriano Toledo Paiva no livro Os indígenas e os processos de conquista dos
sertões de Minas Gerais (1767-1813).
119
ENSAIO FOTOGRÁFICO
120
Sob os Céus de Laguna Blanca: Arqueologia e Etnicidade na Puna
Argentina
Brena Caroline B. de S. Miranda –
Graduanda em Arqueologia, Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Laureline Cattelain.
Graduada em Arqueologia e História da Arte e mestre em Ciência Política, Université Libre
de Bruxelles (ULB).
Yves Dal Canton.
Graduado em Arqueologia e História da Arte e mestre em Arqueologia, Université de Liège
(ULg).
Situada na província de Catamarca no noroeste argentino, a Reserva de Biosfera
Laguna Blanca é um oásis de 973.270 hc encravado na região montanhosa da Puna
meridional.
Desde 1990 o Instituto Interdisciplinário Puñeno, da Universidade Nacional de
Catamarca, atua na região através de projetos arqueológicos e museais visando o
empoderamento e a emancipação da comunidade campesina de Laguna por meio de uma
práxis arqueológica definida como “Socialmente Útil”, preocupada com a produção conjunta
de conhecimento e no posicionamento político junto aos povos originários no objetivo de
restaurar direitos históricos e políticos sobre seus territórios e promover o fortalecimento da
autogestão dos recursos naturais e culturais.
As primeiras escavações realizadas pelo Proyecto Arqueologico Laguna Blanca
permitiram inserir esse assentamento no período Formativo (primeiro milênio D. C) e revelar
um importante posto de administração do Império Incaico, cujas velhas estruturas
remanescentes são hoje reutilizadas e resignificadas pelos atuais 600 moradores da reserva.
As fotos foram produzidas entre novembro e dezembro de 2012 durante o
voluntariado internacional que congregou jovens pesquisadores da Argentina, Brasil, Bélgica
e França.
121
Foto 01 Acesso à Laguna Blanca (vista da RP-43). Novembro de 2012. Foto Brena Barros
122
Foto 02 Caminho até a zona arqueológica de Piedra Negra. Novembro de 2012. Foto Brena
Barros
123
Foto 03 Flanco oriental do nevado de Laguna Blanca (vista a partir dos 3.352 metros).
Dezembro de 2012. Foto Brena Barros
124
Foto 04 O quintal de Doña Rosa. Novembro de 2012. Foto Laureline Cattelain
125
Foto 05 A lagunense Liliana e suas meninas. Novembro de 2012. Foto Brena Barros
126
Foto 06 Desenho de croquis do recinto pré-incaico PIN-07. Novembro de 2012. Foto Yves
Dal Canton.
127
Foto 07 Peneiragem do sedimento arqueológico. Dezembro de 2012. Foto Laureline Cattelain.
128
Foto 08 Escavação do recinto pré-incaico PIN-07. Novembro de 2012. Foto Brena Barros.
129
Foto 09 Vasilha cerâmica marleada. Dezembro de 2012. Foto Laureline Cattelain
130
Foto 10 Momento de recreação pós-campo entre o arqueólogo argentino, Gustavo Pisani, e o
pequeno lagunense Camilo, de 5 anos. Dezembro 2012. Foto: Laureline Cattelain.
131
Sobre os autores
132
Ana Elisa Bersani é formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), em
2010, é mestranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Com especial interesse nas áreas de Antropologia do Desenvolvimento e da
Ajuda Humanitária, desenvolve pesquisa com ênfase em contextos de crise e pós-desastre.
Tendo realizado pesquisa de campo no Haiti em 2012 e integrado o conjunto de Visiting
Students do MIT Anthropology (Massachusetts Institute of Technology) em Boston, Estados
Unidos.
Alessandro Henrique Cavichia Dias, é licenciado em História pela Fundação Educacional
de Fernandópolis, Bacharel em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” – Campus de Franca, Mestrando em História pela Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Franca. Bolsista Capes. E-mail:
[email protected]
Caesar Malta Sobreira. Tem doutorado em Filosofia (Psicologia) pela Universidade de
Salamanca e professor de Antropologia na UFRPE, é escritor e membro da Academia
Olindense de Letras, da Academia Maçônica de Letras do Recife, do Instituto Histórico de
Olinda e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, e autor de Nordeste Semita (São
Paulo: Global, 2010), obra vencedora do Prêmio Nacional Gilberto Freyre. Endereço
eletrônico: [email protected]
Catarina Casimiro Trindade possui licenciatura em Sociologia pela Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra, Portugal, tendo feito a sua pesquisa de monografia sobre
microcrédito e mulheres em Maputo, Moçambique, na área da Sociologia do Trabalho e do
Emprego. Em Maputo, trabalhou como oficial de programas numa ONG feminina para a
promoção e defesa dos direitos humanos da mulher, e mais tarde numa rede de escolas e
centros profissionais, onde desempenhou o cargo de técnica de género. Faz parte da rede de
formadores do Fórum Mulher, rede da sociedade civil que congrega várias organizações
comprometidas com a defesa dos direitos humanos das mulheres e igualdade de género. É
actualmente mestranda do programa de pós-graduação em Antropologia Social da
Universidade Estadual de Campinas, pesquisando associações de poupança e crédito rotativo
também em Maputo, Moçambique, mais especificamente a prática do xitique.
133
Diego da Rocha Viana Muniz é etnomusicólogo. Graduado em História em 2014 na UERJ
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Autor do livro “Que Swing e esse?! A Formação
do Caldeirão de Ritmos da Axé Music”, em processo de publicação. Baseado na monografia
homônima aprovada com louvor e indicada pra publicação. Pesquisador membro do grupo “O
Som do Lugar e o Mundo” vinculado à UFBA (Universidade Federal da Bahia) desde 2013.
Pesquisador Membro da IASPM – América Latina (International Association of Studies of
Popular Music) – Latin America) desde 2014. e-mail: [email protected]
Francisca Navantino P. de Angelo é indígena do povo Paresí. Historiadora pela UFMT.
Mestre em Educação Pública/Instituto de Educação/UFMT. Doutoranda em Antropologia
Social do Museu Nacional/UFRJ.
Luciano Cardenes Santos é doutorando em Antropologia Social (PPGAS/Unicamp).
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas e pesquisador associado
ao Núcleo de Estudos de Políticas Territoriais na Amazônia (NEPTA/UFAM).
Marina M. de Freitas é historiadora, pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestra em
Ciências Sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e Professora Assistente
IV da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Vítor Queiroz é doutorando do PPGAS (Programa de Pós Graduação em Antropologia
Social) do IFCH-UNICAMP. Bacharel e mestre em História Social também pelo IFCHUNICAMP.
Brena Caroline B. de S. Miranda. Graduanda em Arqueologia, Universidade Federal de
Rondônia (UNIR).
Laureline Cattelain. Graduada em Arqueologia e História da Arte e mestre em Ciência
Política, Université Libre de Bruxelles (ULB).
Yves Dal Canton. Graduado em Arqueologia e História da Arte e mestre em Arqueologia,
Université de Liège (ULg).
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Thiago Sampaio. Graduando em História pela Faculdade de Ciências e Letras –
UNESP/Assis.