9 de janeiro - Biblioteca Celso Furtado

Transcrição

9 de janeiro - Biblioteca Celso Furtado
ARTIGOS DE MANUEL CARVALHEIRO:
“CELSO FURTADO E O SÍNDROME CULTURAL DO DESENVOLVIMENTO
DESIGUAL”
Série publicada no jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto, Portugal, de novembro de 2004 a
fevereiro de 2007 (para números que faltam ver o site do jornal)
ver artigos julho 2006 – ver nº 100
http://www.oprimeirodejaneiro.pt/?op=pesquisa&di=2002-03-06&df=2006-0306&chave=Celso%20Furtado&tema=
27 de dezembro de 2004
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (III)
A este propósito, o elogio necrológico do The New York Times (1) não deixava de sublinhar o
seguinte: “Furtado mais tarde tornar-se-ia no ministro do planeamento no Brasil, embora tivesse sido
removido desse posto em 1964, quando um golpe militar derrubou a administração Goulart. Isto
constituiu um dos momentos mais difíceis da sua carreira”.
Não deixando de acrescentar que o influente economista brasileiro tinha recentemente apoiado o
director do Banco Nacional do Desenvolvimento, criticado pela sua política excessivamente
proteccionista, em face das forças económicas que lhe eram supostamente adversas no terreno do
mercado livre no Brasil de agora.
O desenvolvimento como aspiração universal está condicionado pelos elementos subjectivos
específicos duma cultura duma sociedade determinada, em que um plano de vida reflecte uma escala de preferências físicas e
psicológicas; em que o comportamento das variáveis económicas foi tecnicamente analisado em 1936 por Wassily Leontief, com base
nos dados da procura final (2).
Celso Furtado fora buscar ideias para a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), no final dos anos
cinquenta no Brasil, depois de ter escrito em Cambridge o seu livro “A Formação Económica do Brasil” em 1957, à experiência da
Autoridade do Vale do Tennessee e ao programa do planeamento da Sicília ; de forma a resgatar da seca, da fome e da miséria, toda
uma região Nordeste constituída por nove dos vinte e dois estados, além de um distrito federal e quatro territórios autónomos, conjunto
das divisões administrativas principais do Brasil, através do recurso então original do planeamento regional. O filme de título homónimo
adaptado da obra literária de Graciliano Ramos, “Vidas Secas” (realizado por Nelson Pereira dos Santos em 1963), melhor do que
ninguém no seu contrastante preto e branco de imagens em movimento da “caatinga” (sertão montanhoso, planície e planalto) do
Nordeste, abarcou nos seus silêncios naturalistas o dramatismo realista da sobrevivência do trabalhador nordestino sem saída das
condições adversas de meras gotas de água na seca tenaz no seu dia-a-dia de sol de meio dia a pino.
Foi graças à sua acção directiva, nessa entidade chamada SUDENE, que o presidente Kennedy em 1961 recebeu Celso Furtado na
Casa Branca e mais tarde no mesmo ano, no quadro da sua ideia de ajudar ao desenvolvimento da América Latina, através da recémcriada instituição “Aliança para o Progresso”. Recentemente, então, promovida pela administração democrática norte-americana, para
minorar o desgaste económico e político dos seus investidores; e para pacificar, assim, com medidas de reformas menos desajustadas
ao equilíbrio das trocas comerciais, com as turbulentas economias dos países deficitários da América Latina ou deficientemente
apoiadas pelos seus próprios governos, enfraquecidos na respectiva democratização.
Eduardo Portella, que em 1997 pronunciou o discurso de boas-vindas a Celso Furtado, para se sentar na cadeira nº11 da Academia
Brasileira de Letras, afirmava num opúsculo publicado a 22 de Março de 1963, quanto à ineficácia - para além do simbolismo da
intenção -, generosa, da ajuda mínima por parte do que considerava um país superdesenvolvido naquele contexto de 1961-1962 : “ O
que é tanto mais grave porque sabemos, pela palavra autorizada do ministro San Tiago Dantas, que ‘o volume dos capitais brasileiros
empregados nos Estados Unidos, Suiça e outros países é uma vez e meia maior do que o máximo que o Governo brasileiro espera
obter em todo o programa da ‘Aliança para o Prtogresso ‘” (3). Do bem-estar social das respectivas populações, mais carentes de
auxílio compensatório à exploração externa, agudizada pelas administrações norte-americanas anteriores, que o homem de acção e
intelectual brasileiro (o homem com qualidades, em diálogo com o homem sem qualidade), posteriormente, se viria a encontrar em
Punta del Este, no Uruguai, com o comandante Ernesto Guevara, na época também director do Banco Central de Cuba.
Mas, águas passadas já não moviam moinhos, mesmo nessa época de alguma generosidade democrática e progressista, no quadro do
vicioso sistema dependente de trocas comerciais internacionais, entre países desenvolvidos industrializados e países em vias de
desenvolvimento. É nesse contexto que afirma: “Sabemos agora de maneira irrefutável que as economias da periferia não serão nunca
‘desenvolvidas’ no sentido de se tornarem semelhantes às economias do centro actual do sistema capitalista” (4).
Para as quais Celso Furtado na sua perspectiva económica de então, dando mais importância à cooperação do que à competitividade,
ambicionava já uma revolução científica e tecnológica, que no entanto só viria mais lentamente do que previsto. E quando já não
ocupava o lugar de decisão inerente, expulso por um golpe militar que se encarregaria de promover o “milagre económico”, sem a
participação das populações reprimidas e passivas na sua recepção imposta.
E, mercê de um estado de penúria e de menosprezo pelo trabalho assalariado ou pela redução do desemprego, como uma das
prioridades antes defendida. Fortemente explorado pelas potências de influência hegemónica, como os E.U.A. do período belicista da
guerra do Vietname, a partir de 1965 e até 1975. Em que a acção das instituições de Bretton Woods depois da II Guerra Mundial,
permitiram aos E.U.A. investir na investigação do desenvolvimento, para obter uma posição de vanguarda no que diz respeito à
produtividade, permitindo-lhe também assim “ser o centro principal da economia capitalista” (5).
Talvez com excepção da França, brandindo a sua política autónoma de identidade nacional, face à influência do “american way of life”,
com a sua política económica mais voltada para trocas comerciais. Sensíveis a uma maior equidade desenvolvimentista e
complementar com as economias regionais de crescimento penosamente auto-sustentado. Necessária para um melhor
desenvolvimento conjuntural dos então chamados países do Terceiro Mundo – de política externa não alinhada, no diferendo
sistemático entre os E.U.A. e a U.R.S.S., na corrida aos armamentos nucleares -, carentes de solidariedade no auxílio interno. Para
uma melhoria das respectivas políticas económicas a braços com a pobreza, a fome e a doença ou mesmo o secessionismo e a guerra
civil larvar, em que uma modesta melhoria nas relações externas entre centro capitalista e periferia dependente, era sempre bem vinda.
NOTAS :
(1) Simon Romero, “Celso Furtado, 84, Influential Brazilian Economist, Dies”, Obituaries, The New York Times, November 26, 2oo4.
(2) Celso Furtado, “Théorie du Développement Économique”, L’Économiste nº19, Presses Universitaires de France, Paris 1970-1976,
pág. 21.
(3) Eduardo Portella, “Política Externa e Povo Livre”, Universidade do Povo nº6, Editora Fulgor, São Paulo 1963, pág. 25.
(4) Celso Furtado, “Le mythe du développement économique”, Éditions Anthropos, Chatou 1976, pág. 96.
(5) Celso Furtado, “Globalisation et exclusion : le cas du Brésil”, Éditions Publisud, Paris 1995, pág. 65.
3 de janeiro 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (IV)
Manuel Carvalheiro
Os economistas neoclássicos subestimaram a reacção dos factores de produção, em regime de monopólio ; e,
que, também, a rigidez dos agentes produtivos, era uma realidade periférica, da qual os preços transmitiam um
equívoco em geral. Werner Sombart referira-se ao contraste entre o centro industrial hegemónico e a periferia
agrícola, subordinada com transacções desiguais ; Charles Kindleberger anotou durante o “New Deal”, desde os
anos quarenta, a elasticidade da procura entre os E.U.A. e o resto do mundo ; e, Ernst Wagemann, contribuiu com
noções como ciclo cêntrico e ciclo periférico.
Os três influenciaram Raul Prebisch – de quem a UNCTAD promovendo o diálogo entre Norte e Sul obteria
resultados estéreis, apesar do seu empenho e dedicação entre 1964 e 1968 – com a sua noção de deterioração
dos termos da troca comercial. Os preços de intercâmbio seriam, porém, válidos para a
Argentina, onde outrora tinha sido director do Banco Central, antes de passar a professor, para não ocupar um
chorudo emprego noutro dos bancos da sua pátria inquieta.
Mas, noção essa, estéril para outras economias agrícolas, como a da Austrália, que entretanto havia conseguido uma reforma da
propriedade fundiária com uma revolução tecnológica no campo. Quanto a François Perroux e Maurice Bye, com o efeito de domínio,
implementado desde os anos trinta, em França - para caracterizar os factores políticos da economia internacional, que condicionaram
desde os comportamentos dos mercados às variáveis económicas (como preços relativos, monopólios, taxas de juro, fluxos financeiros,
transmissão ou bloqueio de inovações tecnológicas) -, influenciaram mais Celso Furtado do que Raul Prebisch.
Esta era a indicação genealógica da economia estruturalista de Raul Prebisch, a quem Celso Furtado dedicará em 1954 o seu livro “A
Economia Brasileira” - em que a dividia em quatro períodos e modelos : 1º) o período colonial esclavagista ; 2º) a economia colonial
com base no trabalho assalariado ; 3º) a etapa que sucedeu à crise de 1929 com transformações económicas rápidas no Brasil : e, 4º)
a cristalização recente dos profundos desequilíbrios com a crise do sector colonial (1) -, que será a ponte para o seu clássico de 1959, “
Formação Económica do Brasil” (2), em que o autor – aqui de uma erudição que lhe é típica - cita o ensaísta português António Sérgio,
a propósito da abertura da nova rota de especiarias, em 1498 ; com a quebra dos preços para metade : os venezianos em vez de irem
a Alexandria, vinham então com maior frequência, agora, comprar pimenta a Lisboa, em vez de aos árabes.
Porém, ao optimismo do desenvolvimento económico-social, típico dos anos sessenta, cedo deu lugar um distanciamento crítico ; mais
aperfeiçoado pela bateria de conceitos de Celso Furtado, que no seu livro “Raízes do
Subdesenvolvimento” (ex-“A hegemonia dos E.U.A. e o subdesenvolvimento da América Latina”) em 1973 (reeditado em 2003,
inteiramente revisto com textos entre 1964 e 1968) e, logo de seguida, um ano depois, em “O Mito do Desenvolvimento Económico”,
descaroçou o problema do esvaziamento generoso dessas políticas económicas, entretanto, falidas. Acreditando ele, agora, que a
industrialização dirigida pelo estado progressista, só por si não chegava para ultrapassar a situação crónica de países de dominante
económica agrária e rural.
Desestruturada, desde a época colonial e padecentes de uma quase inultrapassável dependência tecnológica, por parte da constante e
mirífica inovação dos países do Norte. Assim, como concluiu que o subdesenvolvimento não era, apenas, automaticamente, uma fase
categórica anterior do desenvolvimento, concluiu, também, que podia ser uma anemia económica endémica, provocada pela
estagnação dos operadores financeiros com um estatuto autónomo. E, sabiamente conservado na sua inércia, à deriva da situação de
trocas comerciais, cada vez mais desfavoráveis com os países capitalistas ; que condicionavam outras opções, como a presença
voluntariosa de países social-democratas e socialistas, mais isolados e distantes do bastião da América Latina, como mercado quase
exclusivamente dos E.U.A..
Essa estagnação social fora permitida pelas políticas económicas, que defendiam a auto-regulação do mercado livre ; por parte de
elites cénicas, de alto padrão de vida impolido, adverso ao modo de vida alienígeno. E, este, conservado propositadamente arcaico, se
necessário à força ou com a permanente ameaça dela. Sem ter em conta o bem-estar social, minimamente colectivo e participativo,
desejado pelos defensores do activismo do serviço público contra os tenores do estado mínimo.
E, do neo-liberalismo, opressor e espartilhante da divisão internacional do trabalho, com o sacrifício do desemprego crescente e de
revoltas prontamente reprimidas. Mesmo, quando, apenas, reflexo de explosões sociais do próprio sistema desgovernado, até à crise e
à falência do estado. Perante a crescente violência diante das desigualdades e a paralisação do aparelho produtivo. O populismo e o
radicalismo, desarticulados, não constituem melhor resposta social aos desafios de uma renovação das políticas económicas, entre os
países do Norte e do Sul. Numa encruzilhada estéril e à espera de nova crise dos países produtores de petróleo, produzindo-se assim o
colapso anunciado ; e, a eventual reformulação das negociações de empréstimo e de dívida dos países sem petróleo (“mas a França
tem ideias”, dizia-se como refrão em 1973) e dependentes ; por sua vez, em situação invertida, como quem agora souber melhor fazer
a corte à Arábia Saudita, depois dos ataques terroristas à América em 2001. Segundo um professor de história do Brasil :”Os países
dotados dum aparelho de estado experimentado e duma economia complexa podiam, a despeito de um arranque industrial, cair
prisioneiros de novas formas de dependência tecnológica e financeira” (3).
Um contemporâneo da governação do planeamento feita por Celso Furtado, retratava o quadro da situação no início dos anos sessenta
no Brasil, assim : “Com respeito, porém, os Estados Unidos, é na medida em que a objectividade do novo diálogo se confunde agora
com a sorte da ‘Aliança para o Progresso’, os resultados não são de modo algum positivos”. E Eduardo Portella em 1963 propunha,
sem ver a onda contrária crescer : “Observámos, portanto, a evidente necessidade de uma revisão em nossa política com os
superdependentes, que parta de modificações prévias no plano interno”. Essa revisão foi interrompida pelo golpe militar de 1964.
Uma semana antes, abria-se a 23 de Março de 1964, em Genebra, a Conferência Mundial sobre o Comércio e o Desenvolvimento,
convocada pelas Nações Unidas. O comandante Ernesto Guevara afirmava, a dado passo, do seu discurso oficial e num contexto em
que a administração Johnson nos E.U.A. havia, entretanto, substituído a de Kennedy, antes mais liberal : “No entanto, em Punta del
Este haviam prometido 2000 milhões de dólares por ano”, referindo-se à “Aliança para o Progresso” ao tempo de Kennedy em 1961,
acrescentando a propósito : “Em contrapartida os fundos anunciados tiveram que alcançar durante este ano, com optimismo, nem
metade dos 2000 milhões prometidos”. O livro de Celso Furtado de 1962 intitulava-se “A Pré-Revolução Brasileira”. O seu amigo
economista chileno André Gunder Frank (4), em 1963, numa recensão ao livro, intitulava-o “Contra-Revolução”. E, pouco depois,
discutindo com Fernando Henrique Cardoso, a quem fora buscar ao aeroporto em 1964, em Santiago do Chile, quando aí se exilara
como sociólogo, recebeu deste último a asserção de que não tinha havido nenhuma revolução…
“Embora não fosse um marxista, Furtado fora influenciado por algumas ideias marxistas” (5). Curiosamente, o programa “Fantástico” da
TV Globo revelou, de 13 para 14 de Dezembro de 2004, uma reportagem de câmara oculta, no interior de um quartel da aeronáutica no
estado da Bahia, em que supostamente fora descoberta uma queimada de documentos históricos. Referentes à época da ditadura,
onde eram referenciados métodos de vigilância e relatórios ilegais sobre personalidades civis ; inclusive, com práticas ainda utilizadas
em 1986, durante a presidência democrática de José Sarney, actualmente presidente do Senado. Essa reportagem, agitou os meios
defensores da conservação do património histórico e arquivístico, mesmo de práticas ilegais do passado obscurantista e antidemocrático.
NOTAS :
(1) Celso Furtado, “A Economia Brasileira : contribuição à análise do seu desenvolvimento”, Editora A Noite, Rio de Janeiro 1954, pág.
14. O seu prefácio é de 1953, antes do suicídio do presidente Getúlio Vargas.
(2) Celso Furtado, “Formação Económica do Brasil”, Companhia Editora Nacional, São Paulo 1970 (10ª edição), págs. 5 e 6.
(3) Luiz Felipe de Alencastro, “Celso Furtado, économiste brésilien : grand théoricien du développement”, Carnet, Le Monde 23.01.04.
(4) André Gunder Frank, “Fallece el famoso economista brasileño : La dependencia de Celso Furtado”, Rebelión, El Caballero de la
Esperanza, 22-11-2004.
(5) “Celso Furtado, Influential Brazilian economist who championed active intervention by the State in developing countries”, Obituaries,
Times Online, December 15, 2004.
10 de janeiro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (V)
Manuel Carvalheiro
Um dos programas da série «World Review 2004» da BBC World, emitido a 31 de Dezembro de 2004, foi
dedicado a três países da América Latina: a Venezuela, o Brasil e a Argentina. O problema que constituiu a
firmeza da política externa brasileira na reunião de Cancun, constituiu um dos enfoques da globalização como
resposta dos países periféricos aos países desenvolvidos.
Fazer uma previsão arriscada, como aquela que Celso Furtado fizera no capítulo final da sua obra de 1959,
«Formação Económica do Brasil» e falhar chegado ao ano 2000, é certamente pouco para manchar a sua
reputação de seriedade e contenção (1). Embora, fosse suficientemente significativa sobre a sua alegada
qualidade visionária. Visionária, mas não profética.
Assim, na altura, com os índices que lhe permitiram um cálculo aproximativo da sua estimativa aventurosa para o
virar do milénio, quantificar o total demográfico da população brasileira como atingindo o limiar – provável, mas
não taxativo - dos 225 milhões de habitantes, não apareceu tão arriscado estatisticamente como
agora. Agora que já sabemos de facto serem à volta de 175 milhões de habitantes (22 por cento
destes vivem abaixo do limite da pobreza e 9 por cento com cerca de um dólar por dia), isto é, menos
cinquenta milhões de habitantes do que aqueles que Celso Furtado havia previsto em 1959.
Excesso só explicável pela euforia da taxa de crescimento demográfico (2,2) do censo de 1960 e da
inauguração de Brasília, pelo então presidente Juscelino Kubitcheck, para quem Celso Furtado havia
desde 1956 sido convidado para trabalhar no Plano de Metas, naqueles anos de dinamismo e
optimismo construtivos. Entretanto, o índice de crescimento demográfico havia passado de 3,1 para
1,8 entre 1960 e 2000 (prevendo-se, agora, 200 milhões de habitantes no Brasil em 2015, à taxa de
crescimento de 1,1).
Em contrapartida, foi extraordinariamente baixa a previsão de Celso Furtado, em 1959, no mesmo último capítulo do seu ensaio
famoso, quanto à capitação ou rendimento per capita (o chamado PIB por habitante, no Brasil) para o virar do milénio, que ele havia
estabelecido como uns possíveis 620 dólares; com base nos índices de preços em 1959 e na extrapolação do rendimento per capita de
1950, que era de 230 dólares; quando, de facto, em 1997, viria a ser de cerca de 4500 dólares e, em 2000, (e mesmo 2001) de cerca
de 7037 dólares (2).
Ora, mesmo que estas previsões tenham falhado, o raciocínio subjacente de Celso Furtado em 1959, quando fora publicado
«Formação Económica do Brasil», era dar uma estimativa de quase meio século, para trás e para a frente, no acidentado processo de
industrialização do Brasil. Privilegiando o seu mercado interno e fortalecendo, desse modo, a integração das suas regiões. Como, por
exemplo, nas trocas comerciais do Rio Grande do Sul com a Bahia, vencendo a monocultura do café, como até então epicentro do
crescimento económico e das trocas comerciais com o exterior. Sem esquecer, estrategicamente, já nessa altura, o imenso mercado da
borracha na Amazónia, região aberta e cobiçada ao desenvolvimento desenfreado de recolha de diversas matérias-primas, que já
desde essa altura dos finais dos anos cinquenta do século XX incrementava a juta.
Onde, por volta de 1912, havia decorrido a acção romanesca do romance verista de Ferreira de Castro (1898-1974), «A Selva».
Traduzido em francês por Blaise Cendrars (autor de «L´Or», sobre a saga da exploração mineira dos trabalhadores na Califórnia).
Adaptada, agora, cinematograficamente, por Leonel Vieira, em estilo híbrido de telenovela brasileira e série britânica, a estrear
proximamente em «multiplex» e cinemas Palácios a 11 de Março de 2005, em todo o Brasil. E onde havia sido realizado em cenários,
reconstruídos em ambiente natural fluvial, autêntico, referente ao material documental da ficção autobiográfica do escritor português,
jovem imigrante após a eclosão da República em 1910.
A autonomia cultural é a condição prévia para ter uma consciência crítica, em face da colonização ideológica do paradigma
homogeneizante da cultura de Hollywood, para que o desenvolvimento não seja dependente da má avaliação do peso incontornável do
subdesenvolvimento. Criando-se, em caso contrário, um raciocínio falacioso e mítico, favorecendo univocamente o mimetismo cultural
de uma classe dirigente, seja ela prisioneira ou não de uma classe dominante na economia de exploração (3).
Um recente programa «Earth Report», patrocinado pela UNEP e exibido pela BBC World, a 14 de Dezembro de 2004, focava os
problemas da poluição no rio S. Francisco, no estado de Alagoas. Provocados, essencialmente, pelos despejos de dejectos com
resíduos tóxicos de minerais, como o zinco e o crómio, entre outros. Produzindo, artificialmente, um cascalho ferro-argiloso, que
contaminava as águas e matava peixes, prejudicando a agro-pecuária e a pesca regionais.
Um recente dirigente da SUDENE (4) caracterizou o efeito de demonstração da teoria do subdesenvolvimento como ironicamente
“levando pobres a pretender consumir como ricos”, referindo-se também às contribuições de economistas como Gunnar Myrdal e Arthur
Lewis, entre outros. Também um dirigente partidário (5) se referiu a Amartya Sen, economista indiano Prémio Nobel de 1998, que fora
companheiro de Celso Furtado em Cambridge no período de 1957-1958, com a figura tutelar da britânica Joan Robinson.
O modelo brasileiro de desenvolvimento de Celso Furtado, só tem plena´influência se compreendido à escala da América Latina e das
suas diferenças comparativas com outras formações sociais, tanto na Colômbia como na Venezuela, na Bolívia ou na Argentina (e
mesmo no Togo, na África ocidental ou nas Antilhas).
NOTAS :
(1) Op. cit., São Paulo 1970 (10ª edição), pág. 242.
(2) “Rapport Mondial sur le Développement Humain 2001”, PNUD/UNDP, De Boeck
Université, Paris-Bruxelles 2001, pág. 179.
(3) Clóvis Cavalcanti, “Meio ambiente, Celso Furtado e o desenvolvimento como
falácia”, Scielo Brazil, Ambiente & Sociedade, vol. 5 nº2/vol. 6 nº1, Campinas
2003.
(4) Clemente Rosas, “Opiniões certas e erradas : três artigos sobre Celso
Furtado”, “site” Uma coisa e outra, Cultura e comportamento, Dezembro, Brasil
2004.
(5) Eduardo Suplicy, “Celso Furtado e Amartya Sen”, JB Online 27/11/2004.
17 de janeiro 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (VI)
Manuel Carvalheiro
O sintoma ecológico (1) já existe pelo menos desde 1972, no pensamento de Celso Furtado, com a terminologia
característica que lhe conhecemos actualmente. Como prioritária em qualquer avaliação de uma economia
industrializada, que usa os serviços dos países em desenvolvimento enquanto cobertura da sua exportação de
detritos. Essa referência de 1972 era curta e apontava o engodo da agricultura itinerante como forma de não
proteger-se os solos da sua perda de fertilidade ou da sua transformação mais forçada e inevitável em pastagens.
Apesar do predomínio do latifúndio como “empresa altamente autocrática”, que teria raízes no autoritarismo
brasileiro e nas metamorfoses da grande propriedade fundiária do mundo rural tradicionalista, que economistas
como os de Chicago desde 1964 tal Theodore W.Schultz, citado por Celso Furtado no seu livro sobre o “modelo”
brasileiro de então, apelidavam de agricultura tradicional segundo o modelo neo-clássico.
Em que até a roça por conta própria tem dificuldades em coabitar, devido ao pouco valor comercial das terras e ao
atraso tecnológico perpetuado pela grande empresa agro-mercantil, com uma infinidade de mão-de-obra à disposição a troco de
qualquer salário de sobrevivência. O filme “S. Bernardo” de Léon Hirszman, realizado em 1972, adaptou o romance de Graciliano
Ramos de título homónimo, que retratava a fazenda com também esse nome; e, o problema da acumulação do capital e da alienação
do seu proprietário, que em tempos de eleições oferecia copos de vinho aos trabalhadores assalariados.
Um teórico da economia política, professor em Cambridge, sobretudo entre as duas grandes guerras mundiais no século XX,
comentava numa sua introdução à economia política, em estilo de vulgata superior à da tradicional sebenta coimbrã expurgada, dessa
época de traduções adaptadas: “Ajudada por uma grande abundância de estatísticas que o mundo moderno pode oferecer,
especialmente os Estados Unidos, a investigação seguiu o caminho dum estudo dos índices de negócios e das correlações de preços”.
Maurice Dobb citava, então, a propósito do seu desabafo sobre as limitações da investigação económica de então, quando Keynes era
só conhecido apenas de mais reduzidos círculos, uma obra de 1924, “O Desafio da Economia” (The Trend of Economics), como
exemplo talvez de anuário estatístico.
A sua comparação com o território então chamado Rússia Soviética, revelava que os seus
economistas se preocupavam com a planificação e os seus problemas concretos; cujo
desenvolvimento era, segundo ele - um britânico distante e pensativo -, mais parecido com o que
economistas anteriores aos fisiocratas estabeleciam no seu tempo para o governo ; ou, talvez, de
pesquisadores do capitalismo após a recessão de 1929 com uma tremeda crise de desemprego e de
taxas de crescimento nulos, recuando ainda mais no tempo, mais cepticamente com os seus
antecessores alemães do século XVIII da “escola cameralista”, por oposição às contemporâneas
escolas da viragem do século XIX para o século XX, austríaca e suiça, do capitalismo crítico e
posterior a Marx, como as de Menger, Boehm-Bawerk e Wiese, ou Walras e Pareto, mesmo até em
Inglaterra, com Jevons e Marshall.
Entretanto, sobre o nominalismo da globalização, desde 1952, um próximo da escola de Freiburg (que
comportava, por exemplo, W.Eucken, autor em 1948 de um artigo intitulado “On the Theory of the
Centrally Administered Economy: An Analysis of the German Experiment”), referia-se à transição da
teoria do mercado para a teoria do circuito, a propósito do denominador comum das economias de consumo e de empresa, através da
economia do cálculo com unidades de dinheiro, coisa julgada mais técnica que económica, distinta da procura global (2). As autoestradas alemãs não foram de imediato rentabilizadas como previsto, pelo custo enorme não previsto de nafta e dos automóveis a ela
destinadas, antes da existência do Volkswagen, quando foram construídas antes da guerra.
A respeito do desenvolvimento desigual em empresas, indústrias e países, tal provém da concorrência e disfunção da produção
industrial. Sendo que nos países economicamente subdesenvolvidos, como a Índia e a Indonésia em 1965, antes da queda de Sukarno
e substituição por Suharto em 1966 (com a crise do Tsunami em 2004, revelou-se que a sua dívida externa é de cerca de 32 mil
milhões de dólares), a expansão da indústria pesada através da planificação estatal era um passo considerado progressista, porque
desenvolvia a economia capitalista desses países, em abono da sua independência económica fora de qualquer pretensão monopolista
(3).
As previsões de então, para uma sociedade automatizada que beneficiasse a humanidade iam, em 1960, até 1980 (a primeira
conferência sobre a automação decorrera em Duisburg em 1965, com a crise do desemprego na Alemanha Federal pressionada pelos
sindicatos). A estagnação da economia russa começa em 1983 e atinge o apogeu com o acidente na central nuclear na Ucrânia, a 26
de Abril de 1986. Enquanto a economia norte-americana bate o recorde de défice federal, pondo em cheque o programa de
rearmamento da “guerra das estrelas”.
Desenha-se, assim, o início contestado de uma Nova Ordem Internacional em 1983, com o relatório McBride da UNESCO propondo
antes do tempo, já então, uma Sociedade de Informação à escala mundial.
Keynes e Beveridge, com os problemas do emprego, do crescimento económico, da inflação e do serviço social de previdência, só
tiveram a sua linguagem empregue no Plano de Fomento de 1967, da então economia subdesenvolvida portuguesa. Quando tanto a
emigração galopante para os “bidonvilles” em França, como o serviço militar obrigatório de quatro anos (numa guerra interminável nos
territórios colonizados de África), além da pressão da concorrência de economias desenvolvidas europeias, fizeram subir os salários
(4).
É então que o corporativismo fascisante coabita, enfraquecido, com o capitalismo tecnocrático e se promove a participação sindical,
como panaceia ao invés da colaboração de classes nas relações atrofiadas capital-trabalho, vinte anos depois da corrente da
OCDE/OECD. A renda per capita em Portugal em 1965 atingia apenas os 11 contos, equivalendo ao câmbio do dólar a 28,8 escudos, a
cerca de 370 dólares por ano.
As grandes inundações nos anos sessenta e setenta no Paquistão e na Índia, puseram em causa a estratégia da planificação do
desenvolvimento económico de um país em vias de desenvolvimento, apenas assente prioritariamente no investimento industrial e na
política de restrições do comércio externo. Com efeitos perversos que não tinham em conta os indicadores de consumo internos, de
preferência pelos investimentos na agricultura desde os anos cinquenta e sessenta nos referidos países, que assim teriam minorado o
impacte de devastação das cheias nas suas economias.
Mesmo a experiência de Raul Prebisch na CEPAL, no incremento dos investimentos externos no sector industrial a troco da
dependência controlada das importações, foi considerada com limitações para Portugal (5). Preocupado, então, após a sua revolução
democrática, com a construção de refinarias sem grande competitividade para os produtos petroquímicos no exterior.
No programa “Negócios da Semana” da SIC Notícias a 6 de Janeiro de 2005, o ministro das finanças em governo de gestão Bagão
Felix afirmou que os portugueses imaginavam os níveis de consumo dos países escandinavos, quando o seu próprio país tinha um
desenvolvimento mais próximo do dos países magrebinos.
Em “Um Adeus Português” de João Botelho, a cena no filme - evocativa de um trauma familiar - da coluna de militares atacada algures
durante a guerra de África nos anos sessenta, subjaz a uma política que levou o regime de então a interromper a auto-estrada LisboaPorto e a congelar as poupanças na Caixa Geral de Depósitos. Com o paliativo de mostrar garantias aos países da OTAN,
nomeadamente a Itália, a França e a Alemanha Federal, quanto ao fornecimento em armamento, que era depois utilizado não no
território continental ou nas ilhas adjacentes, mas em especial na Guiné como os aviões Fiat em bombardeamentos.
NOTAS:
(1)Celso Furtado, “Análise do ‘modelo’ brasileiro”, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1972, págs. 107 e 108.
(2)Walter Adolf Joehr, “Las Fluctuaciones Económicas”, Librería El Ateneo Editorial, Buenos Aires 1958, págs. 208 e 209.
(3)P.Nikitin, “Fundamentos de Economia Política”, Perspectivas do Homem nº 24, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1967, pág. 185.
(4)Álvaro Neto, “Crítica a alguns aspectos do Plano de Fomento”, Seara Nova, Lisboa 1969, pág. 20.
(5)Richard S. Eckaus, “Problems of Overall Planning and Coordination in Portugal” in “Conferência Internacional sobre Economia
Portuguesa - 11 a 13 de Outubro 1976”, 2º Volume, The German Marshall Fund of the United States/Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa 1977, pág. 1038.
31 de janeiro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (VIII)
A baixa produtividade é incompatível com a segurança do emprego de uma população rural que ainda não interiorizou a indústria, veja-se o paradoxo da acção
ficcionalizada em “O Homem do Rio” (1963) de Philippe De Broca, entre cenários arquitectónicos futuristas, como os do Palácio da Alvorada em Brasília e uma tasca à beirario, algures na Amazónia.
Manuel Carvalheiro
John Maynard Keynes em 1930 anteviu uma plenitude universal em que se podia viver com facilidade em 2030,
quando o problema da subsistência estaria finalmente resolvido como antípoda da depressão económica em que
se vivia na sua época, onde a luta contra a necessidade receberia um auxílio do Estado. Visão essa do futuro
anterior, em que se punha de lado catástrofes, explosão demográfica e guerras destrutivas como a I Grande
Guerra. A economia como ciência da escassez teria os seus dias contados: “todo trabalhador teria máquinas que
fariam dele um super-homem”.
Um historiador sócio-económico, David S.Landes, indica na bibliografia do seu livro (2) – cujo título parafraseia
uma reactualização do clássico de Adam Smith, “Riqueza das Nações” –, também, a tradução norte-americana de
1963 de “Formação Económica do Brasil” (Economic Growth of Brazil). Mas não cita nenhuma das suas
passagens, nem comenta a problemática brasileira nele evocada – para além da comparação entre a natureza na
Argentina e no Brasil (1), sendo que a da Argentina estaria mais próxima da dos E.U.A. – no tempo da colonização europeia.
Parecendo Landes ter uma competição subliminar com a escola laica brasileira, em favor alternativo do universo do catolicismo
asfixiante (versus protestantismo) de “Casa Grande e Sanzala” de Gilberto Freyre.
Ora, Gilberto Freyre havia criticado Celso Furtado durante a sua superintendência da SUDENE no Nordeste, por ter aplicado segundo
aquele uma “política economicista” – incidente recordado agora num “blog” (3) –, a propósito de um texto pouco conhecido em que o
acusava ou criticava de ter posto “arbitrariamente em prática, contra o mais elementar ecologismo, uma mecânica transferência de
brasileiros do Nordeste árido para o Nordeste húmido – o Maranhão – sem preparar-se o migrante, oficialmente dirigido, para uma tão
radical mudança de adaptação a ambiente. O fracasso não tardou a verificar-se”. O próprio Celso Furtado em 2003, quando o
presidente Luis Inácio Lula da Silva recriou a SUDENE, admitiu um certo número de carências no início dos anos sessenta.
Nomeadamente, da penúria de dados sobre a região abarcada por aquela instituição, inovadora no panorama da agricultura (da luta
contra a seca e da industrialização do Brasil, durante as administrações Kubitscheck, Quadros e Goulart de democracia
presidencialista), a que como alternativa de urgência recorria, então, com a sua equipa de economistas, a uma “boa dose de
imaginação”. Tal como recomendava o mesmo, para esta nova fase da SUDENE reencontrada no século XXI “com um grande volume
de informações à disposição”. Concluía Celso Furtado em 2003 que para delinear o futuro do Nordeste era sempre necessário, tanto
ontem como hoje, embora por razões distintas, ter uma “boa dose de imaginação”. Visto que se recorria à improvisação ditada pelos
acontecimentos súbitos, que alterassem o melhor dos planos de gabinete e não se ficasse paralisado diante da movimentação social,
independentemente do desejo dos técnicos e tecnocratas, sabendo que as soluções são sempre políticas e não apenas económicas.
Celso Furtado admitia em 2003 a Francisco de Oliveira, numa entrevista traduzida depois para espanhol, haver uma distância
respeitável entre a instituição universidade e a sociedade, coisa que não acontecera no seu tempo, quarenta e cinco anos atrás. Ao
contrário dos anos cinquenta, em que a interacção era mais consciente e o trabalho intelectual era decisivo e sem a função estéril
actual do debate económico. Sente-se a acção do Movimento dos Sem Terra no campo, mas será necessário conduzir os problemas
sociais de forma a atrair a população à conquista do poder real e não fazer da política um jogo de elites. Um crítico sagaz e
excessivamente exigente, quanto ao legado do economista Celso Furtado, opôs talvez algo esquematicamente a herança reflexiva
deste no domínio da “inteligência colectiva”. Com vista ao equacionamento entre a mobilização das forças da sociedade, interligadas ao
“protagonismo do trabalho vivo”, e aquilo que depreciativamente considerou como um “neodesenvolvimentismo do tipo
schumpeteriano”. E que não deixaria, supostamente, avançar a mesma pretendida reflexão, prioritária, atrás exposta. Devido ao
neoliberalismo, mais interessado na concentração da renda do que na mudança cultural da sua distribuição equitativa, que gera o bem-
estar colectivo e permite um incremento no processo de desenvolvimento.
Para Celso Furtado, que faz algumas objecções de fundo a esta alegada ideia feita de princípio, Joseph Schumpeter encara o
empresário como um permanente inovador, que retoma a tradição mais generosa do cavaleiro da indústria do tempo da consolidação
do capitalismo mercantil britânico, no final do século XIX e início do século XX. Depois que os primeiros sintomas da revolução
industrial se deram na Holanda no século XVII e na Flandres no século XVIII. Celso Furtado é taxativo desde 1967 na sua obra maior,
“Teoria e Política do Desenvolvimento Económico” (4), a este respeito de uma idealização generalizante com base na solidez
circunscrita ao mercado norte-americano, pois ao invés disso, existe um antes e depois de Schumpeter : “O empresário será fenómeno
de todas as organizações sociais, da socialista à tribal”. Não há progresso económico sem a intervenção das inovações do empresário,
experimentando ousadamente as invenções tecnológicas facilitadas pelo crédito, querendo mais transformar o processo produtivo do
que antecipar os lucros, sem dar prioridade às flutuações dos preços.
É Joseph Schumpeter quem privilegia a produção, fazendo do progresso tecnológico o motor do desenvolvimento da economia
capitalista. Essa mudança de Schumpeter distingue-o até hoje dos economistas neoclássicos, embora segundo Celso Furtado essa
mudança de perspectiva, de enfoque, não tenha ido mais além do que uma explicação julgada insatisfatória do desenvolvimento.
Furtado sublinhou que Schumpeter, na sua obra “The Theory of Economic Development” (publicada em 1951, pela Harvard University
Press), distinguindo crescimento de desenvolvimento, havia estabelecido um aperfeiçoamento da teoria do ciclo económico, na medida
em que crescimento era gradual e desenvolvimento procedia por avanços súbitos. Mas Schumpeter mostrava mais interesse pela teoria
geral do equilíbrio dos sistemas económicos do que pelo processo de aumento da produtividade do trabalho.
Em “A Queda” (1978) de Ruy Guerra, os operários da construção civil trabalham na megapolis brasileira com níveis incomportáveis de
ruídos mecânicos ao ar livre de escavadoras e brocas, que conduzem ao acidente de trabalho com frequência ; enquanto capatazes e
proprietários comunicam a partir de gabinetes insonorizados. A falta de capacetes insonorizados dificulta a azáfama laboral e
transformam o ambiente propício ao soterramento de terrenos, sem o alerta necessário devido ao desgaste dos trabalhadores. As
empresas recorrem às inovações como aplicação dos seus recursos acumulados automaticamente.
Embora, segundo Celso Furtado a propósito da sua releitura de Joseph Schumpeter (em 1967, no 5º capítulo sobre a teoria do
empresário em “Teoria e Política do Desenvolvimento Económico”), não é tanto a inovação que faz mover o empresário para uma
situação privilegiada, mas muito mais o empobrecimento dos outros na concorrência entre eles. Sendo esta uma crítica de Furtado à
competitividade pela inovação atribuída à teoria económica de Schumpeter, já que este último elaborou no fim de contas uma teoria do
lucro. A redução dos custos é a via que o empresário toma para aumentar os lucros. A introdução técnica ou variante, serve de estímulo
a combinações na produção. Para Furtado a teoria das inovações deve ser antes formulada em consonância com a teoria da
acumulação do capital, que deve assim ser uma base de uma teoria do desenvolvimento.
O crescimento económico na empresa industrial relaciona-se com a redução dos custos unitários quando os negócios aumentam.
Schumpeter dispensa maior atenção à acumulação do capital, que contribui para o aumento da produtividade, onde o empresário não
manifesta necessariamente espírito inovador e por tal motivo sai fora do que aquela considerava “desenvolvimento”. A acumulação do
capital não provocada pela expansão do crédito pode reflectir a propagação de uma inovação ou combinação, sendo que o
desenvolvimento tanto resulta dessa inovação como da sua propagação sem expansão de crédito e apenas resultando da acumulação
do capital. Para Paul Sweezy em 1943, aquando do 60º aniversário de Schumpeter e tendo em conta a edição em 1934 do seu livro
“Theory of Economic Development” (em Cambridge, no Massachusetts), uma economia sem empresários fica estacionária, estagnada
(5).
A cultura da miséria no interior do Nordeste acentua-se com o desemprego e a sobrevivência caritativa. A alternativa é a introdução de
um sistema económico eventualmente lento e que permitirá o emprego sem uma perspectiva filantrópica. A baixa produtividade é
incompatível com a segurança do emprego de uma população rural que ainda não interiorizou a indústria, veja-se o paradoxo da acção
ficcionalizada em “O Homem do Rio” (1963) de Philippe De Broca, entre cenários arquitectónicos futuristas, como os do Palácio da
Alvorada em Brasília e uma tasca à beira-rio, algures na Amazónia. É necessário coragem e criatividade para viabilizar a agricultura
numa sociedade diferente e que seja adequadamente integradora “de inovação das técnicas produtivas no meio rural”.
NOTAS:
(1) R.L. Heilbroner, “Grandes Economistas”, Biblioteca de Ciências Sociais nº9, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1959, pág. 263 in “O
Mundo Moderno”.
(2) David S. Landes, “A Riqueza e a Pobreza das Nações”, Gradiva, Lisboa 1998/2001 (4ª edição), págs. 330 e 331.
(3) “Celso Furtado: de keynesiano a pós-moderno?” da autoria de J.A. do “site” “Pura Economia”, a 29 de Novembro, Portugal 2004.
Ver, também, Francisco de Oliveira, “Com Celso Furtado, sociólogo y economista, relevante personalidad intelectual brasileña”, Brasil
de fato, 21-febrero-2003. E, Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, “O legado de Celso Furtado”, Director da FASE, Rua das Palmeiras nº 9022270-070-Botafogo, Brasil 2004.
(4) Op. cit., Lisboa 1976 (2ª edição), págs. 79 a 88, sobre a contribuição de Wicksell e o empresário schumpeteriano.
(5) Paul M.Sweezy, “Teóricos e Teorias da Economia”, Divulgação Cultural, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1965, pág. 22 in “A teoria da
inovação de Schumpeter”. Paul Sweezy nasceu em 1910 e faleceu em 2004.
14 de fevereiro 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (X)
O Carnaval do Rio viu desfilar no sambódromo, em Sapucuí, a escola de samba da Portela, que este ano dedicou a sua exibição – de 80 minutos ao vivo pela TV Globo (na
madrugada de 7 para 8 de Fevereiro de 2005), para além do percalço do último carro alegórico com a velha guarda e um gigantesco retrato de Sérgio Vieira de Mello terem
passado, em silêncio, fora dos trâmites regulamentares, episódio inédito desde 1935 – às oito metas do milénio estabelecidas pela ONU em 2000. Espectáculo
especialmente assistido pelo ministro da Cultura e compositor musical Gilberto Gil, acompanhado pela sua colega homóloga do Senegal, em visita oficial ao Brasil, tendo
eles seguido depois directamente de avião para o Carnaval da Bahia.
Manuel Carvalheiro
O interesse pelo ritmo do desenvolvimento, pela sua intensificação, fez Celso Furtado proferir uma conferência na
Escola de Sociologia e Política em São Paulo a 19 de Novembro de 1953, isto é, há pouco mais de meio século
(1). O problema da pobreza das economias subdesenvolvidas entre 1929 e 1953 preocupava o economista
brasileiro, que traduzira o manifesto da CEPAL da autoria do economista argentino Raul Prebisch (1900-1995) em
1949.
Onde se alertava, essencialmente, para o desfavorecimento das trocas comerciais entre centro capitalista, em
países industrializados desenvolvidos e países periféricos na América Latina e Caribe, com economias em vias de
desenvolvimento no quadro do Terceiro Mundo. Classificação esta estabelecida havia pouco, em 1952, um ano
antes da morte de Joseph Staline, autor de um livro sobre a “Questão Nacional” (parcialmente co-escrito com
Bukharine durante a estadia de seis meses daquele, em Viena, antes da queda do tsarismo). E, de outro, nesse ano final – que
mereceria a reconstituição irónica e mesmo sarcástica do filme de ficção britânico, “O Monarca Vermelho” (1983) de Jack Gold, apoiado
nas crónicas vividas de Yuri Krotov, revelando o humanismo, a crueldade e o paradoxo do poder absoluto, em demência persecutória
sob fundo de melodrama e pieguice – intitulado “Problemas económicos do socialismo” (em que era questionada a persistência da lei
do valor, como sobrevivência tenaz da economia capitalista na construção do socialismo de extracção agrária ainda muito pesada).
Cujo delegado tinha assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas, estando especialmente atento ao desmembrar do Império
Britânico, após a independência da Índia em 1947 (em África, em 1952, aparecera a insurreição tribal e camponesa “Mau Mau”, no
Quénia) e à turbulência latente da questão colonial na Indochina.
Etiqueta aquela do Terceiro Mundo e que cobria, geograficamente, economias não europeias de mercados dependentes e com parte
substancial das respectivas populações sustentando-se, penosamente, num mercado interno muito fragilizado pelas assimetrias
coloniais dos impérios europeus, nomeadamente, em economias pré-capitalistas de subsistência fragilizadas pelo seu isolamento
comercial. Em face da internacionalização das trocas, após a II Guerra Mundial e a tentativa de hegemonia dos EUA e dos seus
aliados, face ao bloco dos países socialistas, coordenado pela então União Soviética.
O facto de Celso Furtado chamar a atenção para este lastro historicamente lamentável e, mesmo assim, recordar que o Brasil neste
campo do ritmo de crescimento do desenvolvimento não ser dos países mais atrasados da América Latina em face da hegemonia
económica dos EUA, alertava no entanto para o facto de nalguns desses países serem talvez necessários séculos para vencerem esse
atraso relativo da pobreza cada vez maior na América Latina. Por comparação inusitada, Celso Furtado em 1953 chegava a prever para
dali a cerca de 250 anos a possibilidade da renda per capita brasileira vir a atingir, quanto muito, um terço da que já desfrutava a então
população norte-americana. Tendo em conta uma favorecida taxa de nascimento anual do Brasil, que se situava em média, entre 1939
e 1951, em 2,5%, mesmo assim, paradoxalmente, superior à da norte-americana, que era de 2,1% per capita.
Referindo-se à neutralidade técnica do planeamento, que tanto pode servir para fortalecer como para enfraquecer o conjunto das
empresas privadas num sistema dado de produção de conjunto, salienta no entanto que o seu objectivo se situa nessa época para
além da modificação política da estrutura. Mas tão só com a finalidade de incrementar os seus recursos já existentes para sem interferir
com a vontade dos consumidores, elaborar uma técnica da previsão da procura. Prevendo estatisticamente a sua vontade, evitando-se,
assim, elevação de preços nuns sectores económicos ou a acumulação de “stocks” noutros sectores, não vendáveis ou com menos
procura.
A CEPAL, de onde provinha Celso Furtado, em Santiago do Chile, em 1949, havia sido criada em 1948 ao abrigo da reconstrução do
pós-II Guerra Mundial e da ideologia liberal-democrática norte-americana de um dos conselheiros económicos do presidente Roosevelt,
Alvin Hansen, que havia alertado quanto à inter-relação entre pobreza e prosperidade, sendo que o aumento daquela punha em perigo
esta. Já que desde 1950 e já durante a administração Truman, que não via passivamente a independência de espírito dos economistas
da CEPAL, identificava a miséria dos países subdesenvolvidos como terreno fértil para uma suposta ideologia estranha aos interesses
norte-americanos (2).
Num relatório endereçado ao secretariado da ONU em 1949 pela CEPAL, intitulado “Relações de troca do pós-guerra entre países
subdesenvolvidos e países industrializados” dizia-se a dado passo: “Os países subdesenvolvidos, através dos preços que pagaram
pelas suas manufacturas importadas, em relação ao que obtiveram pelos seus produtos primários exportados, contribuíram para manter
um padrão de vida crescente, nos países industrializados, sem receber no mesmo preço dos seus próprios produtos, uma contribuição
equivalente para o seu próprio padrão de vida”.
Os economistas da CEPAL alertavam, então, para turbulências sociais e políticas nos países subdesenvolvidos, em face do silêncio
metropolitano perante o bloqueio de transferências internacionais de riqueza (3). O caso de Cuba passaria a ser paradigmático dos
últimos 45 anos na América Latina. Um autor (4) refere-se a Hirschman, Lewis, Nurkse e Rodan como tendo influenciado Celso Furtado
na noção de dependência entre centro e periferia capitalista na América Latina em relação aos EUA.
Neste contexto dos anos 60, Celso Furtado disse no seu livro “A pré-revolução brasileira” em 1962, que “menos importância teria a
forma de organização da produção – e maior importância o controlo dos centros de poder político”. No filme “Diários de um motociclista”
(2004) sobre a excursão pela América Latina do jovem argentino e aventureiro licenciado em medicina, Dr. Ernesto Guevara, há uma
antevisão dos problemas da América Latina em dependência, numa viagem feita desde o seu país a Sul e seguindo em paralelo pela
cordilheira dos Andes até chegarem à América Central tumultuosa de então na Guatemala do presidente Jacob Arbenz por volta de
1952. Guevara ainda muito jovem numa cena protagoniza um incidente arriscado com um camião de transporte de tropas de segurança
ao recinto exterior das minas da empresa Anaconda, atirando uma pedra a eles depois de se ter visto recusar uma entrada para
observar as condições físicas dos mineiros.
Numa reportagem intitulada “Barreiras do desenvolvimento” apresentada pelo Jornal Nacional nocturno da TV Globo a 26 de Janeiro de
2005, referia-se a região de Tapajós, em Santarém, no Estado do Pará, próxima do rio Amazonas (5), em que na estrada de Cuiabá há
ainda hoje pontes antigas e mal tratadas pelo uso constante, com estradas quase mesmo intransitáveis durante a época das chuvas.
Assim, a ecologia dificulta o investimento pelo excesso de licenças e estudos de impacte ambiental, havendo necessidade de
harmonização para evitar o bloqueio social-económico ao progresso económico e social.
NOTAS:
(1)Celso Furtado, “A Técnica de Planejamento Económico”, Revista de Economia, Vol. VII, Fasc. I, Lisboa 1954, págs. 23-29.
(2)”Celso Furtado, la CEPAL y la NOVA ORDEN MUNDIAL”, http://iberoame.usal.es (pdf).
(3)Gregorio Vidal, “Celso Furtado y el problema del desarrollo”, Universidad Autómona Metropolitana, Comercio Exterior, Vol. 51, núm.
2, febrero, México 2001.
(4)Carlos Mallorquín, “El estructuralismo de Celso Furtado”, Memoria-Revista Mensual de Política y Cultura nº117, México 2003.
(5)”Green Cross Launches Citizens Campaign for a Global Treaty on the Right to Water”, World Urban Forum, September 13, Barcelona
2004.
28 de fevereiro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XII)
A conversão de divisas em ouro fora, entretanto, abolida pela Inglaterra nos anos trinta do século passado.
Manuel Carvalheiro
Celso Furtado conta em “Globalisation et exclusion – Le cas du Brésil” (1), que em 1984 um texto de Raul
Prebisch, intitulado “Cinco etapas no meu pensamento sobre o desenvolvimento” (do economista argentino
fundador em 1948 em Santiago do Chile da CEPAL, organismo económico da Nações Unidas para os países da
América Latina e do Caribe, de que recentemente, em 16 de Fevereiro de 2005, 16 países se reuniram no
Suriname para tratar dos mais pobres na
América do Sul), identificava aquele na economia de mercado à escala internacional, uma economia influenciada
por flutuações cíclicas que provocava uma espécie de “fractura estrutural” a partir do centro para os países periféricos do continente
americano via Norte-Sul, produtores de matérias primas.
“Fractura estrutural” essa, gerada pela mais demorada difusão do processo técnico, a que Kofi Annan chamara “digital devide” no seu
relatório “We, The People/Nous, les Peuples” em Setembro de 2000 nas Nações Unidas, augurando um século XXI apoiado na
biodiversidade e no conhecimento. Mas, Raul Prebisch pensara décadas antes, na segunda metade do século XX, em função de uma
divisão internacional do trabalho sem ainda a existência da OMC, só criada em 1995, cuja dependência segundo também Celso
Furtado seu admirador fazia atrasar o desenvolvimento dos países subdesenvolvidos, quase perpetuamente ora em estagnação ou em
revolução e sem estabilidade prolongada, em “estruturas sociais heterogéneas”. E onde a maioria das respectivas populações não
usufruíam dos benefícios e bem-estar, devido aos desequilíbrios desse desenvolvimento, afinal distante ou reduzido a um clientelismo
urbano, minoritário, em sociedades largamente compostas por formações económicas pré- capitalistas e rurais.
Para Celso Furtado, Prebisch concebia a economia mundial como um sistema estrutural, que se reproduzia sim mas em expansão e
contracção cíclicas, devido ao avanço e ao recuo do progresso tecnológico. Para além da tradicional teoria da balança de pagamentos
e do seu défice entre exportações e importações, tanto do lado do centro hegemónico como do lado da periferia, condicionada à
deterioração das trocas comerciais entre Norte industrializado e Sul rural. Ao contrário dos Estados Unidos da América, porém, a
Inglaterra tinha um coeficiente de importações superior ao seu coeficiente de exportações nos anos vinte do século XX. E, em que
cerca (ou mesmo mais) de um terço das primeiras, eram pagas à custa de rendimentos, obtidos à custa dos seus investimentos no
exterior ; por ter tido um papel avançado no domínio tecnológico, que lhe havia possibilitado uma grande penetração nos mercados
carentes dele.
A conversão de divisas em ouro fora, entretanto, abolida pela Inglaterra nos anos trinta do século passado. Este fenómeno só se
começou a dar nos anos sessenta nos E.U.A. e atingiu a sua suspensão em 1971, desde que em 1963 o presidente Johnson começou
a preferir a conversão do dólar em moedas europeias. Entretanto, em 1973, a ressaca anterior, devido à forte valorização do ouro em
dólares, provocou tal sobreavaliação do dólar, que impulsionado artificialmente pela fraqueza estratégica dos E.U.A. como centro
hegemónico dos negócios mundiais, após os efeitos da guerra do Vietname na economia de mercado mundial, acabou também
provocando assim uma crise monetária, agravada ainda mais pela crise energética dessa época.
Uma antologia publicada em 1999, no México, com o título “Prebisch y Furtado. El Estructuralismo Latinoamericano” da autoria de
Jorge Lora e Carlos Mallorquín, destacava a dado passo pelo autor J.Williamson, que ambos se opunham ao Consenso de Washington
em 1990, a respeito das “reformas estruturais” a promover então pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Ora, mais
recentemente, foi o próprio Prémio Nobel da economia em 2001, que dirigiu o Banco Mundial durante a administração Clinton, quem
comentou com acidez e desassombro, a propósito do refluxo da globalização na Federação da Rússia, que na anterior reconversão ao
novo sistema económico a “prosperidade sem precedentes” trouxe-lhes a verdade inesperada de que “a pobreza é maior do que
nunca”, mostrando o contraste com a China cujo PIB era 60% do da Federação da Rússia em 1990, tendo no entanto sido já invertidos
os respectivos dados na viragem do milénio : “Em muitos aspectos, para a maior parte das pessoas, a economia de mercado revelou-se
ainda pior do que os seus dirigentes comunistas tinham previsto” (2).
As posições estruturalistas de Prebisch e de Furtado, nos anos cinquenta do século XX na agência regional das Nações Unidas CEPAL
para a América Latina e o Caribe, referiam-se ao exame crítico das noções dos economistas neoclássicos, essencialmente
monetaristas e actuantes indirectamente no domínio da microeconomia. Prebisch e Furtado começaram a interessar-se pelo reverso da
medalha de noções como crescimento sem dependência, comércio com trocas menos desfavoráveis entre centro e periferia do
capitalismo, controlo de recursos para diminuir a delapidação das receitas públicas e o papel do estado como regulador das flutuações
do mercado internacional e do refluxo do mercado interno de países subdesenvolvidos (carentes de equipamentos e de modernização
das forças produtivas), como forma de aumentar a produtividade do trabalho, sem que a acumulação necessária do capital se
correlacionasse e apenas com disponibilidade crescente de mão-de-obra não qualificada (3), conforme constatou Cristóbal Kay num
dos estudos daquela antologia.
Recorde-se a cena famosa e algo inexplicável nos cânones da época, como universo fictício de um filme como “O Eclipse” (1961) de
Michelangelo Antonioni, em que todo um plano-sequência fixo marca o minuto de silêncio no interior da Bolsa em Milão pela morte de
um corretor ou especulador por ataque cardíaco. Ernest Mandel em 1964 publicara um texto, sobre a taxa de crescimento dos últimos
dez anos nos países industrializados, intitulado “A Economia Neo- Capitalista” (3), em que promovia a análise do ciclo económico longo,
introduzida nos anos vinte do século XX pelo economista russo N.D.Kondratieff, retomada depois pelo economista austríaco Joseph
Schumpeter antes emigrar para os E.U.A..
A utilização das técnicas de planeamento pelos oligopólios europeus, apresentava-se como uma ferramenta para fazer face à anarquia
da produção e à estagnação económica nos então seis países do Mercado Comum Europeu (ex-mercado comum do carvão e do aço
deste o Tratado de Roma em 1957), mais a Inglaterra. Lutando contra as capacidades excedentárias do mercado, que faziam baixar os
lucros das empresas, apesar da ajuda ao capitalismo monopolista de estado e da promoção da automação. Como forma de manter os
salários baixos e uma reserva importante de operários, empregados e técnicos especialistas, sob constante pressão da ameaça
eminente de desemprego ou de subemprego deslocalizante como agora se pratica.
Como forma de controlar a taxa de crescimento do neo-capitalismo e a exportação de capitais norte-americanos para a Europa, que
desde 1963 com a administração Johnson provocava inevitavelmente um défice na sua balança de pagamentos. Apesar da taxa de
crescimento dos países subdesenvolvidos não conseguir – nem de longe, nem de perto – ter tido a possibilidade de acompanhar entre
1954 e 1964, durante uma década, portanto, a concomitante subida da taxa de crescimento dos países industrializados na sua
expansão de mercados.
Sobre o sistema de Leontieff e crítica dos seus limites entre 1941 e 1954, um autor e futuro político centrista francês na presidência de
Valéry Giscard d’Estaing (1974-1981) comentava já então na década de cinquenta do século passado : “Esforça-se por adaptar à teoria
do equilíbrio geral de Walras a ideia fisiocrática de quadro-económico”, nas relações inter-industriais (5). Deste modo, trata-se de então
propor a substituição do planeamento imperfeito pelo planeamento indicativo, na democratização da sociedade industrial neo-capitalista
dessa época.
Então, também, moldada pela Guerra-fria à volta da partilha prestigiante de Berlim como montra de abundância do mercado livre em
concorrência com o austero socialismo planificado, pelo mundo bipolar em blocos equilibrados pelo terror atómico e pela queda do
poder colonial nos países do Terceiro Mundo desde a Conferência de Bandoeng, em 1955, na Indonésia. Democratização planetária
ainda tímida que marcou a criação do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, embora só a partir de 1970 com a Comissão
Pearson se chegasse ao actual modelo de intervenção na luta contra a pobreza à escala mundial. Virando o modelo de produção,
voltado para o lucro privado, para uma nova produção, mais orientada para as necessidades de consumo ; sem se utilizar, contudo, o
sentimento de insegurança como forma de se coartar o progresso, dissimulando assim os benefícios como forma de camuflar ou
defraudar o fisco, numa estrutura autocrática da empresa multinacional de centro decisor altamente corporativo e neo-liberal, que
fomentava a alienação no código de trabalho nos locais de interferência transnacionais e a poluição dos outros países respectivamente
dependentes.
NOTAS :
(1)Op. Cit., in “III-Retour à la vision globale de Prébisch”, Paris 1995, págs. 61 e 62 (tradução do seu livro “Brasil, a Construção
Interrompida” (1992).
(2)Joseph E. Stiglitz, “Globalização, A Grande Desilusão”, Terramar, Lisboa 2002, pág. 42.
(3)Op. Cit., E.I.A.L., volumen 11 – n.2, Julio/Diciembre, México 2000.
(4)Ernest Mandel, “Traité d’Économie Marxiste”, Vol. III, Bourgois Éditeur, Collection 10-18, Paris 1973, págs. 269-288.
(5)Raymond Barre, “Manual de Economia Política-Vol.I”, Editora Fundo de Cultura (P.U.F., 1957), Rio de Janeiro 1964, págs. 231-236.
7 de março de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XIII)
O chamado “dualismo social”, teorizado em 1953 por J.H. Boecke, refere-se à coabitação de uma sociedade colonial da do tipo do Sudeste
Asiático.
Manuel Carvalheiro
No Fórum Económico Mundial em Davos, na Suiça, o ministro alemão da economia recordou que existem cinco
milhões de desempregados na Alemanha, quinze anos depois da sua reunificação. Sendo que a luta contra a
pobreza no mundo, um dos temas do 9º Encontro anual desde 1996, parece poder estender-se ao próprio
território nacional de um país industrializado, cuja actividade financeira dinamizadora é o centro hegemónico da
actual União Europeia, com 27 estados em vias de serem aderentes à zona euro.
“Charles, mort ou vif” (1968), um filme do suíço Alain Tanner, relatava em estilo descontraído de reportagem
televisiva adaptada a uma ficção à flor da pele a história de um sequestro de um capitalista suíço, chamado
Charles De. Proprietário de uma das fábricas artesanais de relógios por encomenda, cujo centenário era
comemorado nessa altura e que acaba por conviver, finalmente, para sua surpresa, com mais descontracção com
os seus próprios jovens raptores, os seus filhos - que haviam, assim, encenado o desaparecimento do pai, deixando outro irmão de se
encarregar em se queixar às autoridades e desse modo obter um detective que é suposto persegui-los -. do que com o fisco ou o
delegado sindical outrora nas suas instalações fabris.
Isto de forma a preservar a vida, reconhecendo nesse tempo de clausura e de espera de uma solução ligada ao anonimato, que
pretende escolher como opção de um mundo que já não é mais o seu, a calma para reconhecer a parábola em que se invertem os
papéis entre dominador e dominados. Tendo em conta a sua crise existencial e a necessária pausa para o redimensionar da sua vida,
agora que está provisoriamente retirado do negócio e do circuito trabalho assalariado/obtenção de mais valia.
A noção de forças produtivas, divulgada por Marx no século XIX da revolução industrial inglesa, era uma noção retomada de um outro
economista, Friedrich List, autor em 1841 de uma obra intitulada “O Sistema Nacional da Economia Política”. E que, segundo Celso
Furtado (1), historicizou as actividades produtivas do capitalismo manufactureiro, ampliando-se a ritmo relativamente acelerado até
1867, data da inauguração em Londres do edifício Hotel Midland Grand da estação ferroviária de Saint-Panglas. Começada a construir
em 1863 pelo engenheiro William Barlow da Midland Company, em frente à maior cúpula do tempo, com uma abóbada cuja altura no
“hall” de passageiros atingia o recorde de 73 metros para a época, concebida pelo arquitecto George Gilbert Scott, sem qualquer apoio
de pilares, traves ou colunas. Facto que mereceu um documentário, em 1999, de Richard Copans, para o Canal Arte de Estrasburgo,
intitulado precisamente “La Gare de Saint-Panglas”.
Em 1867, data inscrita na pedra da estação de Saint-Panglas em Londres como a da sua inauguração, também seria por coincidência
notória a da publicação de “O Capital” (mas que só teria a primeira tradução inglesa, já só após a morte de Marx em 1883), mas antes
vistas no quadro apenas da firma de export-import, como agora pertencendo a um novo processo social, que transformou o ideal dos
economistas, quando, antes, estes traduziam apenas os problemas económicos em sistemas de equações diferenciais.
Mais tarde, Joseph Schumpeter ocupar-se-ia da teoria do desenvolvimento, transformando o empresário num inovador, não lhe
interessando os automatismos dos mercados de concorrência pura e perfeita, como também acentuou Celso Furtado, nesta sua obra
resumo, de 1980, por ele revista em 2000 ; e, certamente, um apêndice reflexivo à sua obra maior de 1967, reeditada em francês em
1976, “Teoria e Política do Desenvolvimento Económico”. Furtado sublinha, para além da multidisciplinaridade, o carácter da sua
preferência pela abordagem ou enfoque que ele estima como sendo histórico-estrutural.
Para o economista brasileiro, a macrodecisão e a noção de pólo de crescimento trazida para o debate económico do capitalismo por
François Perroux, constituiem o âmago da teoria do desenvolvimento, após a contribuição de Joseph Schumpeter. Mas que, ao nível de
se centrar na capacidade de iniciativa inovadora do empresário e da empresa, se apoia no poder do estado- nação, para uma prévia
avaliação global das reacções à reconstrução social, após os desequilíbrios do mercado. Não desprezando a coacção, para fazer
coincidir os comportamentos centrífugos dos agentes económicos em conflito latente.
Mas um autor, em 1980, referindo a obra de Celso Furtado, “Criatividade e Dependência na Civilização Industrial” (1978), utilizou-a a
propósito de um contexto “numa economia que se globaliza”, segundo palavras escritas por Furtado e retomadas por este autor (2),
quando a temática e a expressão não mereciam ainda a atenção que ulteriormente viria a ter...
Gunnar Myrdal, apoiado nas relações étnicas e regionais ou no desgaste provocado no século XX ao capitalismo pelas relações raciais
de cor de pele (3), aproximou funcionalistas e estruturalistas no processo social do desenvolvimento, dando importância à decisão
económica como cadeia de reacções entre subdesenvolvimento e estratificação social, entre domínio estrutural e teoria do
desenvolvimento. Ficara antes famoso pelo relatório negro onde se discutia o atribuído gradualismo ao inquérito monumental feito em
1944 a pedido da Carnegie Corporation e intitulado, “An American Dilemma. The Negro Problem and Modern Democracy”, que tornou
famoso o professor sueco pelas 1483 páginas sobre o protofascismo sulista e a maneira de o superar.
O falso equilíbrio do subdesenvolvimento, foi diagnosticado economicamente em 1950, também, por Ragnar Nurkse, que introduziu
para o efeito a noção de excedente estrutural de mão de obra, quando em 1953 escreveu “Problemas da Formação de Capital nos
Países Subdesenvolvidos”. Por essa época, igualmente, W.Arthur Lewis, em 1954, publicou “Desenvolvimento Económico e
Abastecimento Ilimitado de Trabalho”, referindo-se à oferta ilimitada de mão de obra, em que o preço de oferta dessa mesma mão de
obra nos países de economia pré- capitalista, se situa um pouco acima do nível de vida da população no limite da subsistência.
O chamado “dualismo social”, teorizado em 1953 por J.H. Boecke, refere-se à coabitação de uma sociedade colonial da do tipo do
Sudeste Asiático. Na época, talvez a Malásia, por exemplo, nas sua lutas após a II Guerra Mundial em 1947 e que só atingiu a
independência em 1957, depois do esmagamento da rebelião guerrilheira, conforme a ficção protagonizada por William Holden e
Capucino, Trevor Howard e Susannah York, em “The 7th Dawn“ (1964) de Lewis Gilbert, com a penetração do capitalismo em face da
colectivização socialista mais ou menos forçada dos campos.
Em 1963, um dos maiores críticos dos regimes económicos dos países africanos, que haviam obtido a independência desde 1957,
como o Gana de N’Krumah (4), o agrónomo francês René Dumont, ainda apontava como causa do socialismo aventureiro a
sudamericanização do continente africano. Ao reprovar antecipadamente quem, desses dirigentes envaidecidos, com o novo estatuto
diferente do modelo do colonizador, fizesse construir quinze a vinte anos antes do tempo palácios como os de Brasília. Criticando o
presidente Juscelino Kubitscheck, segundo o diplomata interafricano nas Nações Unidas, Demba Diallo (5), “denunciando-o” aquele
francês pelo esbanjamento. Mas sem nada dizer sobre a situação miserável do conjunto dos países da América Latina, que fazia dizer
a Porfírio Diaz este lamento irónico : “Pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”.
A partir de 1965, após a sequela da revolta Simba no Congo, ficcionalizada em “Combóio para o Katanga” (Dark of the Sun, 1967) de
Jack Cardiff, filmado na Jamaica e que terminou com a República Democrática do Congo, dando origem ao Zaire, procedeu-se nesse
país à construção de monumentos e cidadelas turísticas com amplitude faraónica de uma oligarquia de trinta anos…
Quando era mais importante, segundo René Dumont, naquele contexto de libertação do modelo do palácio do antigo governador-geral como em “Les Maîtres Fous” (1954) de Jean Rouch, onde um ritual tribalístico de deglutição de um cão vadio após leve cozedura numa
lata aquecida ao fogo nas trazeiras de um quintal num bairro africano dos arredores de Accra antes da independência, serve aos
descendentes dos emigrantes do Niger fora dos seus empregos na administração colonial para exorcisar a pompa e circunstância de
um desfile com a presença da hierarquia local britânica - da potência colonial, desenvolver e intensificar a agricultura nesses países
onde as fomes eram horríveis, tais as da Etiópia, mais tarde entre 1972 e 1974.
NOTAS :
(1) Celso Furtado, “Introdução ao Desenvolvimento : enfoque histórico- estrutural”, Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro 2000, pág.
32 in “III-A nova visão do desenvolvimento : influência de alguns autores”.
(2) António Rebelo de Sousa, “Da teoria económica à teoria do desenvolvimento”, Livraria Clássica Editora, Colecção Estudos de
Economia Moderna nºXXV, Lisboa 1980, págs. 36-68 in “3- Análise do subdesenvolvimento”.
(3) Daniel Guérin, “Décolonisation du Noir Américain”, Grands Documents nº 10, Les Éditions de Minuit, Paris 1963, págs. 19 a 27.
(4) Kwame Nkrumah, “L’Afrique doit s’unir” (London 1963), Études et Documents, Payot, Paris 1964, pág. 162, em que previa o sufrágio
universal desde a sua frequência como secretário-geral do 5º Congresso Panafricano decorrido em Manchester entre 15 e 21 de
Outubro de 1945.
(5) Demba Diallo, “L’Afrique en Question”, Cahiers Libres nºs 114-115, François Maspéro, Paris 1968, pág. 12, citando o capítulo XVII
do livro de René Dumont, “L’Afrique Noire est mal partie”, Éditions du Seuil (1962).
14 de março de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XIV)
E acaba por nos evidenciar que, no capítulo da vaidade, o Brasil ocupa o 7º lugar num pressuposto “ranking” mundial.
Manuel Carvalheiro
Celso Furtado dizia que sertão era a corruptela de “desertão”. Uma série de reportagens diárias sobre o “Sertão”
foram exibidas no quadro do Jornal Nacional da TV Globo, na semana de 28 de Fevereiro a 4 de Março de 2005.
Actualizando, assim, a informação sobre os cerca de 28 milhões de habitantes que vivem nos estados do
Nordeste do Brasil, equivalendo a 18% da sua população actual como país sempre em crescimento demográfico
imparável.
Uma das reportagens era sobre os nordestinos beatos que, tão habituados àqueles lugares ensolarados e
pitorescos, se recusam a sair dali para qualquer outro lugar. Apesar da miséria melhorada em que se encontram e
do saudosismo impertinente, que os faz resistentes ao progresso avassalador e mortificante. A outra reportagem,
era sobre os bichos do Nordeste, como a visita a uma quinta de cabras, cuidadas por um antigo engenheiro feito
proprietário na reforma e o percurso turístico a um parque natural de araras, inseridos numa estratégia de
protecção ecológica da região.
Mais uma outra, sobre as grutas de há 46 mil anos onde existem desenhos e gravuras de homens pré-históricos, para além do negócio
de trilobites apontar para a confirmação que naquela parte o sertão fora outrora zona litoral. Também, outra das reportagens, era sobre
os ainda actuais vaqueiros, que se arranham a cavalo no percurso no meio dos riachos entre o mato de silvas e que são os
descendentes da razia de decapitações ferozes que a polícia em 1938 fizera ao bando de cangaceiros de Lampião e Maria Bonita, com
museu antropológico na povoação chamada Piranhas.
Para Celso Furtado, a ideia de desenvolvimento mergulha as suas raízes, talvez, no passado mais recôndito do século XIX, quando o
conceito alargado de progresso foi utilizado. Para que, após a época da invenção da máquina a vapor, as suas utilizações derivadas
fizessem maravilhar os habitantes da Terra, isto é, partindo do meridiano de Greenwich, tudo o que estivesse para além das ilhas
Britânicas e da alçada da rainha Vitória. E, em particular, da Europa, com as sucessivas invenções técnicas e científicas, que nesse
mesmo século XIX permitiam, por essa via, alcançar melhores índices de vida para os seres humanos e uma subsistência para além da
sobrevivência.
Desenvolvimento desse progresso, visualizado nas comunicações entre continentes, para atingir uma vida confortável e que deixasse
para trás a ignorância do selvagem e o ruralismo do aldeão. Sinónimos parecidos pelo atraso comum ou do isolamento em relação à
primazia da cidade e do seu porto de abastecimento. Sobretudo, daquelas que promoviam as comunicações marítimas: a promoção de
produtos comerciais em direcção a outros continentes.
Entretanto, o fluxo do ganho na economia clássica serviu, quantitativamente, para medir a sua relação com a força de trabalho
necessária e, correspondentemente, exigida para avaliar o estádio do processo de desenvolvimento. Indicador, assim, de um provável
crescimento, anunciado, mercê de novas técnicas aplicadas no esforço de produção ou de um aumento no investimento de capital por
cada “pessoa activa” (1), que reunidos com uma “constelação de factores” permite à respectiva sequenciação constituir então “um
sistema económico nacional”. Conforme, propedeuticamente, nos sintetizou Celso Furtado no primeiro capítulo da sua obra “Teoria e
Política do Desenvolvimento Económico”, que sabemos também agora ter sido uma obra que cresceu a partir de um capítulo inédito do
seu livro de 1961, “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento” (cuja tradução americana foi de 1964), intitulado “O processo histórico do
desenvolvimento” (2).
Para A. Cuvillier em 1936 na sua “Introdução à Sociologia” (Coimbra 1940), o factor económico em última instância era essencialmente
determinante no desenvolvimento das forças produtivas, tendo em conta o capitalismo social da Frente Popular em França nessa
época, em que pela primeira vez no mundo uma lei consignava os patrões a pagarem férias aos trabalhadores. Mais uma vez Celso
Furtado se socorre da definição que François Perroux dava, então, sobre desenvolvimento no século XX, mais propriamente, no
contexto da economia política de 1965, como sendo a “combinação de mudanças mentais e sociais de uma população que acerta a
fazer crescer, cumulativa e duravelmente, o seu produto real global”. A palavra mágica “global”, aparece, aqui, como epicentro de uma
difusão à escala internacional; como padrão de um capitalismo multinacional, em que a Europa é a base de exportação de conceitos
generalizantes, para locais em que as formas feudais predominam ou coabitam, ainda, com ele em grandes espaços tropicais
sobretudo.
Foi o próprio Prémio Nobel da economia em 2001, Joseph E. Stiglitz, na sua obra “Globalização. A Grande Desilusão” (Globalisation
and its Discontents), quem afirma que, no senso comum, globalização como noção se equipara ou é “sinónimo de progresso” (3).
Tendo, para isso, em conta a sua associação “à aceitação do capitalismo triunfante”, em que o microcrédito por telemóvel no
Bangladesh é apenas a vacina contra a especulação.
Antes, este mesmo autor, revelara o paradoxo daqueles que no “mundo em desenvolvimento”, talvez até algures no Cambodja, nos
arredores de Pnom Penh, preferiam deixar o campo, onde cultivavam arroz de geração para geração para virem a ser explorados,
agora, urbanamente, numa sucursal da fábrica de vestuário da multinacional britânica Nike. Apesar dos baixos salários e, coisa que não
se refere tanto, a despeito do trabalho infantil, como denunciou um programa “Panorama” da BBC, pouco depois do ano 2000.A
UNICEF, no seu relatório mundial e anual de 2005, revelou que no caso das fábricas em Portugal, por exemplo, havia a trabalhar nelas
parte substancial das 47 mil crianças que se ocupavam ilegalmente, fora de qualquer parâmetro justificativo, como alternativa à
exclusão ou ao abandono escolar. Porque o rendimento mínimo das suas respectivas famílias – no caso de as terem – era muito baixo
ou nem sequer estava assegurado com continuidade substancial como salário mínimo.
Ainda mais recentemente, o assalto ao autocarro de turismo com portugueses destinado a Porto Galinhas, a sul do Recife, no estado
de Pernambuco, foi condenado pela cantora Simone de visita a Lisboa por essa altura. Ela que desde os 13 anos na Bahia deixou de
acreditar no Pai Natal, quando este não atendera a um seu pedido de oferta de uns patins para fazer desporto.
O aumento do poder de compra per capita, no sistema capitalista, às franjas menos beneficiadas da sociedade civil e ligadas à
produção, não é pela contenção salarial que se faz e forçada administrativamente por um Estado democrático, apenas um pouco mais
sensível às prioridades do patronato. Mas, antes, por reais aumentos de salário às camadas mais pobres ligadas à produção privada,
mercê de uma concertação com os sindicatos e as associações de empresários.
Depois, a evolução do perfil da procura, faz com que os empresários se preocupem com a introdução de novos produtos, que atraiam
um vasto leque de consumidores (4). Esta linha neo-keynesiana, neste estudo de Celso Furtado com Alfredo de Sousa, precocemente
falecido economista português, tentava promover o crescimento económico. Centrando-se na “análise dos fenómenos de repartição do
rendimento (níveis de remuneração dos factores e suas variações)”, quase numa política trabalhista entre patronato conciliador e
trabalhadores dóceis. Cooperação essa, com vista ao aumento de produtividade sem menosprezo pela qualificação laboral; mas que,
infelizmente, poucos frutos poderia dar, sem um Estado social e menos corporativo (5).
O documentário de Fabiano Maciel, “Vaidade” (2003), com a duração de 50 minutos, exibido no canal de cabo GNT para Portugal entre
6 e 7 de Março de 2005, expôs no estado do Pará, no Brasil, um inquérito sociológico à beira do trajecto do rio Amazonas. E acaba por
nos evidenciar que, no capítulo da vaidade, o Brasil ocupa o 7º lugar num pressuposto “ranking” mundial. Com efeito, aquele inquérito
averiguou que nos gastos médios dos habitantes daquele estado pitoresco, só 0,88% da renda individual ia para o arroz ao passo que
um montante bem superior, 1,27%, ia para a compra de perfumes e assimilados produtos de luxo. Ora, de cerca de um milhão de
revendedoras de cosméticos existentes em todo o Brasil actualmente, cinco mil existiam só na capital do Pará, Belém.
As chamadas “marreteiras”, lutando a seu modo para a dignificação do sexo feminino, face ao machismo fedorento do elemento
masculino, o mais das vezes garimpeiro de ouro ou mecânico de automóveis. De que o cantor Roberto Carlos, originário do
modestíssimo estado do Espírito Santo, com a sua canção “O Calhambeque”, seria o engraçado e também alienante epifenómeno
musical dos anos sessenta do século XX. Face ao inebriante “Morte e Vida Severina” de Chico Buarque de Holanda com letra de João
Cabral de Melo Neto, precisamente sobre o drama da seca no Nordeste brasileiro.
NOTAS :
(1) Op. cit., Paris 1976 (2ème édition), págs. 12 e 13.
(2) Gildo Marçal Brandão, “Celso Furtado : o peregrino da ordem do desenvolvimento”, USP, Brasil 2003.
(3) Op. cit., Terramar, Lisboa 2002, pág. 41.
(4) Celso Furtado e Alfredo de Sousa, “Perfil de procura e perfil de investimento”, Análise Social, Vol. VII, n. 27-28, Lisboa 1969, pág.
502.
(5) Luís Carlos Bresser-Pereira, “Método y pasión en Celso Furtado”, Revista de la CEPAL nº84, Diciembre, Santiago do Chile 2004.
28 de março de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XVI)
Sobre o desenvolvimento capitalista brasileiro, a nação como estado face ao subdesenvolvimento, foi comparado com a ideia de dependência e de solução gradualista de
compromissos com a potência económica dominante.
Manuel Carvalheiro
Luis António Bitencourt, director do “Brazil Project” no Woodroow Wilson Center em Washington, foi interpelado
pelo programa “Insight” de Jonathan Mann na CNN a 15 de Março de 2005 sobre a “guerra civil rural” no estado
do Pará, no Brasil, agravada após o assasínio de uma cooperante religiosa a 12 de Fevereiro de 2005. O recente
envio de dois mil militares para a região veio confirmar a instabilidade relativa devido ao recrudescimento de
pistoleiros a soldo dos grandes fazendeiros, desde que Chico Mendes fora morto em 1988 na Amazónia.
Menos de 3% de brasileiros são ainda proprietários de 2/3 das terras, o que deixa cerca de 250 mil potenciais
agricultores ou lavradores sem terra.
Habitando o estado de Maranhão desde 1966, Dorothy Stang mudara-se para o Pará por pressão das autoridades
da época. Com 74 anos, os fazendeiros apelidavam-na de “terrorista”, quando se sabe que 1300 pessoas já
morreram de morte violenta e embuscada na região desde 1985. Gustavo Fonseca de um organismo de conservação da natureza e
Scott Paul do “Greenpeace” inquietam-se com a delapidação de madeiras tropicais raras na região.
A relação entre as respectivas prioridades económicas de Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso repousa na teoria da
dependência, que o último, mais novo do que o primeiro cerca de onze anos, majorou através do seu tempo passado na CEPAL, mas
igualmente pela sua formação de sociólogo e não de economista como o primeiro (ou Marx contra Marx, o historiador social contra o
economista).
A teoria da dependência tem um marco irrecusável no livro incontornável de Anibal Pinto, “A economia dependente” escrito em 1945,
antes da criação da própria CEPAL em 1948 por Raul Prebisch em Santiago do Chile. No entanto, Carlos Mallorquin em “El
estructuralismo de Celso Furtado” (1), um dos mais conhecidos especialistas da obra de Celso Furtado desta época pioneira na
América Latina para a ciência económica estruturalista, acha que existe uma certa confusão entre o aparecimento da expressão
“dependência”, de facto como referência meramente nominalista no pensamento de Celso Furtado e a atribuição equívoca da sua
paternidade local nos estudos sobre o Brasil, que conduziram em 1959 à publicação da sua obra-prima “Formação Económica do
Brasil”.
Porém, Celso Furtado poucos anos antes, em 1956, havia escrito um livro intitulado “Uma Economia Dependente”, que já de si era o
desenvolvimento do seu outro livro anterior de 1954, “A Economia Brasileira”, cujos capítulos 3, 4 e 5 foram retrabalhados
alegadamente neste livro que se lhe seguiu, com a teoria da dependência mais acentuada nas suas preocupações sócio-económicas.
Essa teoria da dependência coabita em paralelo com a economia estruturalista de centro-periferia antes defendida e divulgada por Raul
Prebisch. Em 1971, o sociólogo da economia Talcott Parsons publicou “Dependência externa e teoria económica”, dando assim mais
importância desde então às chamadas mudanças estruturais directamente no mercado do que à estratégia das políticas de
desenvolvimento dos poderes locais, como preferia outrora Celso Furtado. Em 1995, Jaime E.Estay referiu-se, também, ao alegado
neo-desenvolvimentismo, escrevendo então sobre o liame entre Prebisch, Furtado e Pinto.
No entanto, desde 1964, porém, que Celso Furtado sustem sem rodeios que a modernização técnica de um país atrasado na América
Latina engendra uma dependência cultural da sua classe dirigente, que por sua vez condiciona a estrutura económica e social, já de si
disfuncional. E que ainda mais aliena os empresários, sem contrapartida possível no melhoramento das condições de vida do povo, que
apenas recebe o impacte diferido dessa modernização neocapitalista. O domínio sem contrapartida continuava a ser o dos E.U.A..
Andre Gunder Frank (2) cita Gunnar Myrdal a propósito da asserção em que este dizia textualmente: “As teorias económicas surgem do
momento político que gera a sua necessidade e lhe dá a sua razão de ser” (no seu artigo de homenagem, “La dependencia de Celso
Furtado”). Antes do início da II Guerra Mundial a generalidade dos países latino-americanos, em particular o Brasil, limitou a entrada de
divisas e com uma intervenção estatal fizera-se então nesse invulgar contexto de euforia de reconstrução agreste uma política de
substituição de importações, tal também como acontecera na Argentina em que o próprio Raul Prebisch fora igualmente ministro muito
antes de dirigir a CEPAL em 1948.
Segundo o mesmo Andre Gunder Frank, a teoria e a política contra a dependência na América Latina, tivera, para desconhecimento de
muitos, um precedente histórico da política de estado quanto à substituição das importações durante a crise económica dos anos trinta
do século XX. Particularmente, nos Balcãs, com o uníssono de países como a Jugoslávia, a Roménia, a Bulgária, a Grécia, o Irão e a
Turquia, condicionados estes países pela política económica da Alemanha dirigida pelos nacionais-socialistas, segundo se depreende
de um livro por ele indicado e publicado em 1998, da autoria de Dilek Barlas, “Etatism & Diplomacia en Turquia, 1929-39” (Editora Brill).
Sobre o desenvolvimento capitalista brasileiro, a nação como estado face ao subdesenvolvimento, foi comparado com a ideia de
dependência e de solução gradualista de compromissos com a potência económica dominante. Tese essa, complementar ou
conflituante entre Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso. Analisadas estas variantes, de Celso Furtado em 1956 e de Fernando
Henrique Cardoso em 1969, da teoria da dependência de Anibal Pinto em 1945, comparativamente, numa dissertação de mestrado em
2000 na Universidade de São Paulo (3).
Fernando Henrique Cardoso “sublima” a trauma do subdesenvolvimento, aceitando a dependência para conseguir algum
desenvolvimento para o seu país, adiando assim a consolidação nacional com a superação do subdesenvolvimento perfilhada por
Celso Furtado, num torneio em diferido com resultados prognosticados de antemão em função do jogo díspar de prioridades. De que
classe média falam ambos?
David S.Landes no seu livro “A Riqueza e a Pobreza das Nações” (4) atribui a Fernando Henrique Cardoso um destaque na escola da
dependência latino-americana com o livro deste em 1969, “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”, que a partir de 1993
como ministro da Fazenda do presidente Itamarati Franco combateria o “narcótico monetário”, que era a inflação galopante no Brasil
dessa última década do século XX.
Uma homenagem a Celso Furtado seria feita postumamente em Paris no final de 2004 (5), sobre a sua qualidade de teórico do
desenvolvimento desigual no interior do mesmo país, em que Alain Touraine fora um dos anunciados como estando presentes, até por
que autor em 1976 de um livro intitulado “As Sociedades Dependentes”, sobre o tema da marginalidade. Citando Touraine no seu livro
de 1980 (revisto em 2000), “Introdução ao Desenvolvimento”, Celso Furtado interessava-se pelas estruturas sociais da industrialização
retardada, das motivações dos agentes que exerciam poder segundo ele na economia senhorial em face da marginalidade urbana em
ascenção. Finalmente, das relações entre subdesenvolvimento e as estruturas de dominação e qual a sustentação social para os fins
da acção do Estado. O filme de Luis Buñuel “Los Olvidados” (1950), era um emblema duradouro daquela situação no México.
“O Agente da Broadway” de Woody Allen (Danny Rose, 1984) reflectia uma situação romanesca de dependência entre a comunidade
italiana em Nova Iorque durante os anos cinquenta e sessenta nos meios artísticos de Times Square e a infiltração da Mafia nos artistas
de algum sucesso e em ascensão. Sendo que o pressuposto agente artístico ao seduzir por excesso de zelo a namorada do
cançonetista, obrigou a comunidade criminosa a tentar abater o intruso Danny Rose. Porém, Danny Rose consegue escapar-lhes da
“vendetta”, trocando a identidade com um pobre animador de cruzeiros tropicais, que ao não ir e sem ter sido prevenido cai nas garras
daqueles. No entanto, o agente da Broadway irá ao Hospital Roosevelt visitá-lo da tareia e pagar-lhe a conta, já que a namorada do
protegido da Mafia abandonara este para voltar de novo para aquele.
Depois de morto, Danny Rose seria mais tarde recordado pelo seu nome atribuído
a um tipo de “sandwich” vendida no restaurante Carnegie, situado algures na
Broadway daqueles anos a preto e branco.
NOTAS:
(1) Op. cit, Memória-Revista Mensual de Política y Cultura n.117, Mexico 2003.
(2) Op.cit, Reggen, Rio de Janeiro 2003.
(3) Fábio R. Kalvan, “O Lugar da Nação”, USP, Brasil 2000.
(4) Op. cit., Lisboa 1998/2001 (4. edição), págs. 576 e 577.
(5) «Hommage à Celso Furtado (1920-2004)», La Maison de l’Amérique Latine, 15 décembre, Paris 2004, avec Sid Ahmed, L.F. de
Alencastro, J.P. de Cuellar, C.Quenan, A.Rouquié, Ignacy Sachs e A.Touraine
12 de abril de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XVIII)
Ora, no caso do petróleo, o Brasil mantém relações bilaterais com a Bolívia em condições favoráveis, com 15% da sua exploração económica actual canalizada pela
companhia Petrobrás, uma empresa brasileira multinacional sempre no centro de qualquer tempestade económica regional na América Latina
Manuel Carvalheiro
Há quem diga que Celso Furtado durante a governação do presidente Fernando Henrique Cardoso, sugeriu a este
a existência necessária da aliança de estados que daria origem ao Mercosul (1), isto é, uma aliança comercial
entre o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai. Foi a partir, portanto, da existência da aliança económica e
social do Mercosul, que o Brasil durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso conseguiu recuperar o seu
prestígio na negociação com os países da União Europeia. E, assim, estabelecer uma espécie de equilíbrio de
influência que fizesse contrapartida à criação da NAFTA recente até então, isto é, a aliança alfandegária de livre
comércio entre os E.U.A., o Canadá e o México.
Nomeadamente, numa época em que se falava no uso e abuso pelas multinacionais - como a Monsanto, norteamericana - de produtos transgénicos, cujas sementes alteradas de trigo, por exemplo, eram vendidas aos
agricultores, retirando força concorrencial à economia de subsistência e à agricultura tradicional nos países da América Latina.
Celso Furtado chamou a atenção para o facto do Mercosul beneficiar, talvez, mais o Uruguai e o Paraguai, do que o Brasil e a
Argentina, por “que, ao entrarem para o Mercosul, removeram o maior constrangimento ao crescimento, que é a estreiteza do próprio
mercado interno” (2). A integração sub-regional é um caminho de desenvolvimento preferível ao do dinamismo do mercado interno
apadrinhado pelo modelo de industrialização, substituindo-se as importações como adoptara o Brasil preferencialmente antes, devido
às suas grandes dimensões geográficas que o faziam e fazem mais uma excepção do que a regra entre os outros países do Terceiro
Mundo e em especial da América do Sul.
O recente conflito institucional na Bolívia, que pôs em causa a própria autoridade do presidente actual Carlos Mesa, levando-o à
solicitação da
demissão no meio da crise, revelou também por um lado a fragilidade social continua das desigualdades persistentes desde a ditadura
do general Barrientos em 1967 ao tempo da expedição de infortúnio de Guevara, devido ao tratamento injusto em face dos preços do
petróleo e do gaz, que a população indígena maioritária e mais carenciada (constituída pelos descendentes dos índios précolombianos), por outro lado havia reivindicado nas ruas de La Paz e de outras cidades com a renegociação da venda do preço do gaz
aos E.U.A..
Ora, no caso do petróleo, o Brasil mantém relações bilaterais com a Bolívia em condições favoráveis, com 15% da sua exploração
económica actual canalizada pela companhia Petrobrás, uma empresa brasileira multinacional sempre no centro de qualquer
tempestade económica regional na América Latina.
Mas a Bolívia, que pratica um certo isolamento próprio dos países de montanha - e recorde-se a luta mineira no filme de Jorge
Sangines, “O Sangue do Condor” (1972) ou “Paraíso Infernal” (Only Angels Have Wings, 1939) de Howard Hawks, sobre uma estação
de aviação de correio algures nos Andes na zona fronteira entre vários estados andinos, como o Chile, a Bolívia e o Peru -, não
pertence ao Mercosul e, por isso, não beneficia desse estatuto mais aberto às exportações para os países da União Europeia.
A Nigéria, por exemplo, alvo de críticas quanto à corrupção generalizada num país de 130 milhões de habitantes em África, tem apenas
1% da sua população a beneficiar dos ganhos com a exploração do petróleo. E um governo actual que dedicou 13 milhões de dólares
só com o aluguer de satélites, dentro do seu plano de desenvolvimento e de luta contra a corrupção, segundo um programa “HARDtalk”
da BBC World de 14 de Março de 2005, em entrevista à ministra das finanças desse país, Dra. Ngozi Okonjo-Iweala, na semana do
lançamento do relatório da Commission for Africa da iniciativa de Gordon Brown.
Celso Furtado ainda en 2002, a propósito do que ele chamava de défice habitacional no Brasil (3), indicava haver 53 milhões de
habitantes sem dinheiro para pagar aluguer de uma moradia e sem hipóteses de ter mesmo casa própria. Sendo que, nessa medida,
para poder vencer esta pobreza de base, só com cerca de 4% do produto nacional bruto o governo brasileiro poderia ainda vir a tentar
cumprir se quisesse esse objectivo social.
Não fosse, talvez, antes prioritariamente pressionado pela dívida externa e há vontade em obter essa verba, que oneraria sobremodo
esse acto considerado heróico, em pagamento de juros de igual montante. Este panorama é um círculo vicioso absurdo na luta inglória
contra a pobreza habitacional, que na França porém foi vencida relativamente bem nos anos cinquenta do século XX, após a II Guerra
Mundial com o projecto HLM generalizado então desde Le Havre a Marselha.
No seu presumivelmente último texto (4), Celso Furtado apresentara-nos um quadro da situação económica do Brasil e apontava
soluções para se sair do labirinto da denegação do poder político. Sem face naquela altura para a capitulação diante do neoliberalismo, que violou o direito internacional e agravou as sequelas e os efeitos colaterais na luta contra o terrorismo internacional, no
contexto de uma exigência democrática no limite da ingerência belicista.
Celso Furtado, fazendo o que ele considerou ironicamente como a quadratura do círculo, apelou no seu último texto a uma reforma
fiscal no Brasil, em que achava que essa mesma carga fiscal devia incidir sobre as instituições bancárias. Achando, igualmente, que
valia a pena para a sociedade brasileira como um todo melhorar socialmente, por que embora “sectores do sistema produtivo decerto
sofrerão baixa de rentabilidade”, esse inconveniente abrirá no entanto a possibilidade de modificação para melhor do “sistema de
valores das classes dirigentes”. Sistema abusivo, que estava também em jogo democrático como anterior responsável pela
concentração de renda, mal social número um do desenvolvimento económico e social da sociedade brasileira contemporânea.
A este respeito, no seu livrinho síntese “Introdução ao Desenvolvimento : enfoque histórico-estrutural” (5), a classificação das duas
dimensões da divisão social do trabalho, serve para exemplificar o que Celso Furtado considerava como a racionalidade de uma
sociedade, isto é, a sua eficiência num dado instante ou num período de tempo maior. A especialização dos elementos do grupo, as
suas tarefas individuais em sincronia servem para a produção de um bem final, como caçar, pescar, plantar e colher. Mas o que pesca
e os que produzem equipamentos para a pesca “constituem uma equipe que se desdobra no tempo” : é a acumulação no plano das
forças produtivas, conclui Celso Furtado para a diacronia.
Será útil compreender a parábola de um filme de ficção como “O Desporto Favorito dos Homens” (Man’s Favorite Sport ?, 1964) de
Howard Hawks, em que o tema da concorrência entre empresas vendedoras de artigos de pesca, se consubstancia num concurso
desportivo de pesca num local de lazer artístico onde outrora houvera uma reserva índia. A personagem do próprio autor do guia de
pesca, que no fundo nunca antes havia pescado em concurso - as cenas nos riachos para apanhar salmões e trutas ou outra variedade
de pesca competitiva, põe-no em conflito com os valores femininos de solteiras, casadas e divorciadas, belas e inteligentes -, reflecte o
paradigma do homem de sucesso no capitalismo civilizado norte-americano, em vésperas do país se atolar na guerra do Vietname.
NOTAS:
(1) Theotonio dos Santos, “La Hora de Celso Furtado”, El Caballero de la Esperanza, Rebelion, 21 de febrero del 2003.
(2) Celso Furtado, “O Longo Amanhecer : Reflexões sobre a Formação do Brasil”, Paz e Terra (2ª edição), São Paulo 1999, pág. 17 in
“A busca de novo horizonte utópico”.
(3) Celso Furtado, “Em Busca de Novo Modelo : Reflexões sobre a crise contemporânea”, Paz e Terra, São Paulo 2002, págs 18 e 19 in
“I-O problema da pobreza no Brasil”.
(4) Celso Furtado, “Para onde caminhamos ?”, Jornal do Brasil, 22 de Novembro de 2004.
(5) Op. cit., Paz e Terra, Rio de Janeiro 2000, págs. 52 e 53 in “V-A dialéctica inovação-difusão das técnicas”.
25 de abril de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XX)
Segundo o Jornal Nacional da TV-Globo a 15 de Abril de 2005, uma organização não governamental no Brasil propõe-se fazer turismo social, que consiste na vinda de
grupos que exerçam as suas profissões enquanto permanecem numa região de visita de férias
Manuel Carvalheiro
De notar que, o próprio Bill Clinton (1), após a grave crise financeira asiática de 1997, no seu livro (My Life), como
antigo presidente norte-americano referenciou o seu aval junto do FMI em 1998, para um empréstimo em
condições especiais de 42 mil milhões de dólares à administração de Fernando Henrique Cardoso. Administração
que beneficiara de um tratamento de juros e empréstimo temporal, para atrair investimentos na economia
brasileira dependente antes de estar à beira da bancarrota, garantindo o combate prévio à especulação.
Facilitado, alegadamente, pelo seu contributo para a luta contra a pobreza à escala mundial e, em particular, no
Brasil, com a introdução no programa do seu governo no segundo mandato da chamada “bolsa escola”, pagando
às famílias cujos pais conseguissem conservar os seus filhos nas escolas, tendo em conta agora os recentes
massacres no Rio de Janeiro por autoridades policiais desautorizadas para tal em clima de consternação e de
miséria. Porém, recentemente, o ministro da Fazenda rescindiu o contrato com o FMI, continuando no entanto a pagar os juros daquele
empréstimo do tempo da presidência de Fernando Henrique Cardoso. Tendo este último corroborado a nova medida de suspensão
decretada pela presidência de Lula, como perfeitamente lógica. Tendo em conta a melhoria da situação económica do Brasil, face aos
mercados financeiros internacionais (o seu PIB em 2004 foi de 1,76 trilião de reais) e pelo facto dos tempos políticos serem outros,
quando para o Banco Mundial é nomeado Paul Wolfowitz, um neo-conservador da administração Bush.
Segundo o Jornal Nacional da TV-Globo a 15 de Abril de 2005, uma organização não governamental no Brasil propõe-se fazer turismo
social, que consiste na vinda de grupos que exerçam as suas profissões enquanto permanecem numa região de visita de férias. Assim,
um grupo do Estado norte-americano do Arizona, constituído por médicos-cirurgiões e pessoal hospitalar, numa intenção complementar
mais curativa do que caritativa operou no Estado do Ceará no Brasil uma menina com um defeito no pé. E, nos intervalos da sua
actividade de medicina social em férias, visitava o mercado para comprar objectos de folclore etnográfico local, reatando assim a ideia
original do Peace Corps do tempo de Kennedy em 1961, posteriormente algo descaracterizado com o rumo que lhe daria em seguida
em 1964 Johnson.
A visita que Schlesinger fez nessa altura a Celso Furtado então à frente da SUDENE com o pico do seu prestígio internacional,
controlando nessa altura uma política de desenvolvimento em toda a extensa área do Nordeste – abarcando nove estados brasileiros :
o Piaúi, o Pará, o Maranhão, o Ceará, o Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Alagoas e parte de Minas Gerais – com a
cooperação dos governadores desses mesmos estados, revelou-lhe uma iniciativa agrícola original, no entender daquela delegação do
Congresso Norte-Americano ao Nordeste brasileiro, que o novo programa do governo de Kennedy intitulado ousadamente Aliança para
o Progresso, poderia vir a apoiar após uma reportagem da sua equipa a mostrar depois no Capitólio em Washington.
Para Schlesinger (2), Furtado era um discípulo de Kaldor e de Kahn nos anos cinquenta em Cambridge, nessa promissora transição
para a segunda metade do século XX. Seja como for, Schlesinger e o seu acompanhante da altura o senador McGovern, acolheram
ambos com simpatia a opção de Furtado na sua coabitação competitiva e cooperante com as Ligas Camponesas de Francisco Julião,
um advogado tenor entusiástico e algo desorganizado da reforma agrária naquela região do Nordeste brasileiro. Depois, o político e
também historiador Schlesinger continuaria a sua viagem para o Peru e McGovern voltou a Washington com a reportagem aí feita
especialmente para ser ulteriormente lá mostrada.
Celso Furtado descreveu em “A Fantasia Desfeita” que em seguida tivera a visita de televisão ABC (3), que fez um notório e realista
documentário sobre os parâmetros sociais da miséria e sua superação económica na região semi-árida. Documentário esse intitulado
“The Troubled Land” (A Terra Perturbada) da autoria da repórter Helen Jean Rogers, uma vedeta da época com prestígio na Casa
Branca, que não seria exibido no Brasil na época ao contrário da grande audiência que depois tinha tido na televisão norte-americana,
alertando com sensibilidade e pertinência o público da época para a seriedade positiva do trabalho e planos alternativos de
desenvolvimento sem recurso à utilização da violência para combater a prepotência nos latifúndios organizada pelos seus proprietários
na sua maioria, tudo isto implementado por parte da SUDENE sempre atenta ao evoluir dos acontecimentos político-económicos e à
sua função actuante e moderadora no contexto turbulento do Brasil arcaico de então naquela publicitada região do Nordeste campestre
e bucólico de fachada.
A questão da contradição dos objectivos da Aliança para o Progresso, após os mil dias que durou a administração Kennedy, fez da
ideia de promoção da democracia no terreno e do respectivo progresso económico que lhe era correlativo como que empecilhos
tácticos na nova estratégia mais conservadora e menos politicamente liberal da nova administração Johnson em relação à globalidade
dos países da América Latina, sublinhou em 1968 um especialista (4).
O próprio Celso Furtado, no seu célebre texto em Abril de 1963 na revista “Foreign Affairs” de Nova Iorque, intitulado “Brazil : what kind
of revolution?” (Brasil : que espécie de revolução), inspirado num resumo do seu livro de 1962, “A Pré-Revolução Brasileira”, referia-se
à distante influência de uma estrutura sócio-política. Pelo facto de também requerer para o Brasil progressista de então uma indesejável
disciplina espartana com uma figura moldada no guerreiro Alexandre o Grande dos tempos heróicos da colonização macedónica, três
séculos antes do advento do cristianismo. Além de que o estado compósito na Europa Ocidental não representa necessariamente já a
ditadura da burguesia por essa altura desde o final da II Guerra Mundial, visto constituir um compromisso de serviço público com função
repressora exclusiva anterior, quando a sociedade não era aberta às trocas comerciais frequentes posteriores, sendo por isso
retrogressivo segundo Celso Furtado em 1963 nivelar diferentes formas sociais de intervenção recorrendo à ditadura de uma só classe,
cobrindo valores humanos com mitos sociais.
O auxílio ao estrangeiro no último ano da administração Kennedy, seria de cerca de mil milhões de dólares em 1963, 72% dos quais
para o auxílio militar e económico, 15% no quadro da assistência fornecida pela Aliança para o Progresso e as organizações
internacionais apenas receberiam como contribuição financeira 4% ou cerca de 150 milhões de dólares à taxa de câmbio de então (5).
A Aliança para o Progresso havia sido inaugurada pelo presidente Kennedy em Março de 1961 como organismo de cooperação de
desenvolvimento económico e social entre os Estados Unidos da América e a América Latina.
NOTAS :
(1) Bill Clinton, “A Minha Vida”, Temas & Debates, Lisboa 2004, pág. 847.
(2)Arthur M.Schlesinger, Jr, “A Thousand Days – John F.Kennedy in The White House”, Fawcet World Library, New York 1967, págs.
170 a 173 in “Latin American Journey”.
(3) Op. cit, Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro 1989, págs. 109 e 110 in “A Aliança para o Progresso”.
(4) Claude Julien, “L’Empire Américain”, Éditions Bernard Grasset, Paris 1969, pág. 246 in « VI-L’Empire Économique ».
(5) Gail Archibald, « Les Etats-Unis et l’UNESCO (1944-1963) », Publications de la Sorbonne, Paris 1994, págs. 302 e 303.
2 de maio de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXI)
Manuel Carvalheiro
O primeiro projecto de investigação no Nordeste brasileiro, numa das áreas mais áridas da “caatinga” em 1959,
levaria dez anos a ter resultados significativos segundo Celso Furtado, que havia recebido quase um milhão de
dólares de ajuda do fundo especial das Nações Unidas. A título de empréstimo para apoio técnico no segmento
médio do rio S. Francisco, atravessando também o estado de Alagoas mas não só, de forma a irrigar solos
considerados quase sem valor comercial, mas que por isso seriam úteis para fins de colonização (1). Os estudos
pedológicos levaram, no entanto, dois anos e só em 1961 centenas de milhares de hectares foram escolhidos
como área de potencial agrícola, onde já havia sido previamente instalada energia eléctrica barata.
Celso Furtado no seu livro de 1961, revisto em 1963, “Desenvolvimento e subdesenvolvimento”, sugere dividir a população brasileira de
então em quatro grupos : trabalhadores rurais, trabalhadores industriais, empregados em serviços e proprietários de factores. E só
quanto ao último grupo social, o dos proprietários de factores, houve “melhoria relativa e absoluta dos padrões de consumo”. O
desenvolvimento industrial do Brasil fizera-se, portanto, até então, à base de salários reais estacionários, sem haver ou ter havido por
outro lado melhoria sensível nas condições de vida dos trabalhadores rurais.
E Celso Furtado interrogava-se sobre onde residiria o desenvolvimento inegável no Brasil do início dos anos sessenta? Talvez,
sobretudo, na transferência de mão-de-obra de Minas Gerais e do Nordeste para São Paulo e o Paraná, dos sectores de baixa
produtividade de trabalho naqueles que transitaram da actividade agrícola para outros de melhor produtividade. Houve, mesmo assim,
alguma elevação dos salários reais com um aumento de produtividade do trabalho naqueles que transitaram da actividade agrícola para
a indústria urbana e, também, dos dois referidos sectores para outras formas de emprego urbano.
Para Celso Furtado, o grande volume de investimentos industriais dos últimos decénios, substituíra a pressão inflacionária que actuou
sobre o processo de substituição de importações referente aos anos trinta. Assim, “o crescimento das indústrias é que permitiu a
expansão do emprego nos serviços”, sendo que a urbanização “actuou como factor dinâmico sobre a agricultura, permitindo a
ampliação da área cultivada. Como contrapartida dessas modificações, operaram-se as transferências de mão-de-obra referidas” (2).
O problema da planificação social e económica como trave entre o subdesenvolvimento e o desenvolvimento tecnocrático não é
desprovido de ideologia de classe, porque a neutralidade do Estado no regime capitalista é uma ficção, já que os grupos de interesses
favorecem inevitavelmente a propriedade privada, as grandes empresas e corporações. Podendo corrigir, no entanto, os seus abusos
ou a estagnação económica de algumas regiões mais atrasadas na recepção de investimentos de capital (3).
Não foi por acaso que a UNESCO pôs em causa a continuação da classificação como património da humanidade reservada desde
2002 ao Vale do rio Douro em Portugal, após detectar incúria desenvolvimentista por parte das autoridades governamentais. Haverá,
assim, necessidade de superar a negligência administrativa governamental, coordenando melhor a sustentação financeira do projecto
aprovado, reactivando desse modo o gabinete que reúna especialistas de áreas que não podem continuar desencontradas no apoio
financeiro constante ao projecto em curso de fortalecimento regional.
E, até mais acentuado, se necessário for, como as áreas da cultura (concertos nas encostas do Douro, mostradas na abertura do filme
de Manoel de Oliveira, “Vale Abraão” em 1993 ?!), da agricultura (oferta de garrafinhas de vinho “Vale Abraão” na Casa da Música no
Porto ?!), do planeamento económico (previsão de uma parte dos cento e cinquenta mil empregos prometidos pelo 1º ministro José
Sócrates até 2009, digamos pelo menos 10% daquele número fantástico ?!) e do ambiente (proibir poluição fabril naquela superfície,
aumentar vigias nos sopés do vale por causa dos incêndios e fazer colheita de águas no rio ?!), com uma responsabilidade assim
renovada sobre uma área de 21 mil hectares. Área essa, considerada uma das duas regiões mais pobres da Europa, abarcando 13
municípios de três distritos, turisticamente equiparada ao Vale do Loire, em França.
Segundo parâmetros de 1965 na então União Soviética - que a 25 de Abril de 2005, no discurso da união da Federação da Rússia, feita
pelo actual presidente Vladimir Putin, este considerou o seu desaparecimento como “a maior catástrofe geopolítica do século XX”,
segundo reportagem da BBC World do mesmo dia -, naquela época já recuada em reforma económica dos seus métodos de gestão
centralizadores e algo absolutistas, a restauração da propriedade privada chegou a estar uma geração antes da governação de Ieltsin
na calha. Com o equívoco provocado pela teoria da planificação das unidades de produção com autonomia administrativa (4), já que
segundo o famoso economista Liberman, “os ‘superavit’ da produção não reverte a favor dos capitalistas, mas sim de todas as pessoas
que trabalham e a favor dessas apenas”.
Celso Furtado havia contestado no seu artigo de 1963 (5), “Brazil : what kind of revolution?”, que esse planeamento soviético anterior,
apesar de resultados meritórios na industrialização, não havia recuado porém diante da utilização de “formas de trabalho semiescravos”, fazendo desse desenvolvimento socialista um enorme custo humano para a classe camponesa no seu conjunto. Assim, os
países subdesenvolvidos sabem também o alto preço que pagam por continuarem subdesenvolvidos. Ora, quantos milhões de seres
vivos são sacrificados por ano no Brasil, por exemplo, interrogava-se ele ainda em 1963?
NOTAS:
(1) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro 1989, pág. 12.
(2) Celso Furtado, “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento”, Fundo de Cultura, São Paulo 1963 (1ª edição em 1961), págs. 264 a 268
in “Considerações finais”.
(3) A.J.Avelãs Nunes, “Os Sistemas Económicos”, Separata do Boletim de Ciências Económicas vol. XVI (1973), Coimbra 1994, págs.
248 a 253 in “Planificação indicativa e planificação imperativa”.
(4) Ivsei Liberman, “A Reforma Económica Soviética”, Foreign Affairs, October 1967, in Cadernos D. Quixote n.12 – “URSS-50 anos
depois”, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1969, pág. 66.
(5) Op. Cit., Foreign Affairs, April, New York 1963, pág. 531.
9 de maio de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXII)
Celso Furtado na sua obra de 1998 “O Capitalismo Global” afirmara que o Brasil durante três séculos teve uma economia baseada na “exploração extensiva de recursos em
grande parte não renováveis da exploração florestal dos seus primórdios até à grande mineração de ferro, passando pelo uso destrutivo dos
solos nos ‘ciclos’ agrícolas”.
Manuel Carvalheiro
Celso Furtado em “Formação Económica do Brasil” julga que a Europa pensa e age na ocupação económica do
Novo Mundo para a sua expansão comercial, porque no século XV as invasões turcas impossibilitam a utilização
das linhas orientais para abastecimento de produtos manufacturados (1).
O ouro é a razão de ser e as civilizações pré-colombianas tinham-no na meseta mexicana e no altiplano andino. A
Espanha e Portugal tinham a prioridade na ocupação dessas terras para usufruírem desses tesouros em face das
outras nações europeias, nomeadamente a cobiça francesa que criou a primeira colónia de povoamento no
Nordeste brasileiro.
Mas o Tratado de Tordesilhas serviu para proteger a divisão do Novo Mundo. O comércio de peles e de madeiras,
justificou a criação de feitorias no Brasil. No entanto, a actividade corsária da Holanda, da Inglaterra e da França,
potências em expansão, faz forte concorrência à hegemonia daqueles aliados da Península Ibérica. A Espanha com o eixo de metais
preciosos México-Peru, vê penetrar o seu centro de defesa nas Antilhas nomeadamente pelos franceses. Damião de Góis – o génio
português do humanismo erasmiano – via o rápido desenvolvimento da Europa e aconselhou a colonização das terras do Brasil,
embora sabendo que se retirariam assim recursos às “empresas muito
mais produtivas no Oriente”, sobretudo Goa. Os portugueses foram assim os primeiros cujas colonizações na América se preocuparam
com o cultivo do solo.
Em 1612, Veneza interditava a exportação de equipamentos para a refinação do açúcar. Mas um genovês foi tido como inicial produtor
na ilha da Madeira. Os italianos, segundo Celso Furtado, estiveram na expansão agrícola das ilhas do Atlântico. Os segredos técnicos e
a produção de açúcar refinado de Chipre, divulgado desde a Síria até Espanha ao longo do Mediterrâneo, proibiam a exportação de
equipamentos, de técnicos e de capitais, mas Portugal conseguia o desenvolvimento dessa indústria graças à expansão agrícola nas
suas ilhas do Atlântico como Cabo Verde, que serviram de plataforma para a empresa brasileira, devido ao avanço técnico também de
Portugal na indústria de equipamentos para os engenhos açucareiros, percorrendo o caminho da expansão comercial dos factores do êxito
da empresa agrícola, da metrópole, pelas ilhas e até às colónias.
Segundo Charles Boxer (2), em 1585 ainda só havia três engenhos de açúcar no Rio de Janeiro, enquanto Olinda já contava com
sessenta e seis engenhos. Um ano antes, segundo um testemunho de Fernão Cardim coligido em tratado do Brasil, roubado por
corsários ingleses em 1601 e editado em 1625 em Londres parcialmente por Samuel Purchas, eram utilizados 40 navios só para o
comércio do açúcar entre Recife e Lisboa, quando já desde 1534 havia sido introduzido o sistema administrativo de doze capitanias no
Brasil.
Mas devido ao crescente assalto dos corsários, o preço do açúcar era mais barato em Londres do que em Lisboa. Mesmo assim o
açúcar do Brasil era mais lucrativo para a Coroa portuguesa do que todos os produtos de Goa, oriundos do Oriente. Também a ilha de
Santiago em Cabo Verde para o tráfico de escravos da Senegâmbia e a ilha de São Tomé como interposto do açúcar que era cuidado
por escravos de Angola desde 1483, foram economias de escala dos galeões para o Brasil, nomeadamente para as capitanias de
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. A economia das plantações, cerca de 130 em 1600 com cinquenta mil escravos obtidos em trinta
anos, sendo que cada um deles durava em média sete anos de trabalho, produzindo oitenta arrobas de açúcar por ano, numa produção
anual nessa época de cerca de 800 mil arrobas.
Celso Furtado constata que “os sistemas de cultura emergem de um duplo processo de conquista e colonização” (3), mas o genocídio
ou a esterilização no contexto do latifúndio, da “encomienda” e da mina (tradição local), foram mais a excepção do que a regra da
dominação social, sendo que o normal foi a simbiose entre dominados e dominadores, a cultura mestiça e a emergência de uma nova
realidade cultural. Mas a história não obedeceu a um rígido determinismo, porque houve tempo para opções. O México e a Argentina
constituem dois pólos de oposição diferente ao império colonial espanhol. Por um lado, em Vera Cruz uma burguesia atenta à
industrialização de Hamilton nos E.U.A., por outro lado uma autocracia unificadora em Buenos Aires, ligada ao sector da pecuária. Por
acaso, o filme de Robert Aldrich “Vera Cruz” (1954) refere-se à luta dos juaristas e do general Ramirez contra o peculato do imperador
Maximiliano III, que retira uma carroça de ouro atravessando território rebelde de peões camponeses rumo àquele porto mexicano para
embarcar para a Europa com vista ao recrutamento de tropas para esmagar a rebelião.
A liberalização do comércio marítimo no século XVIII, dará força aos interesses latifundiários na generalidade da América Latina,
quando um século depois chegará a vez da independência política com a promoção da emigração europeia. A revolução técnica dos
transportes marítimos é reflectida na obra de Jules Verne e em particular em “A Jangada”, cuja narrativa se passa em Manaus e no
curso do rio Amazonas no século XIX dos ciclos da borracha e da madeira como indústrias nascentes para a exportação especuladora.
O centenário da morte do escritor de ficção geográfica (1905-2005) comemora também o apogeu das matérias-primas na troca desigual
nascente.
Thor Heyerdahl descreveu (4) o Equador e o Peru em 1946 quando foi com um colaborador à busca de toros de balsa de maneira a
construírem uma jangada, numa época de chuvas intensas em que as vias de comunicação entre a beira-mar e a montanha estavam
intransitáveis para se cumprir o seu objectivo pioneiro de travessia do oceano Pacífico a partir de Lima até às ilhas Marquesas.
Antes, a madeira de balsa tinha sido quase que integralmente vendida durante a II Guerra Mundial pelo Peru à Inglaterra, para a
construção de planadores e outros aviões de reconhecimento, devido às suas características únicas de leveza e robustez, flexibilidade
e durabilidade. Sendo que a desflorestação à beira-mar no Equador era um facto já entretanto desde essa época bastante irreversível
em 1946, questão precocemente ecológica que aquele famoso antropólogo norueguês especialista em migrações primitivas desde os
tempos glaciares e que ele questionava desde então ao mais alto nível das recém criadas Nações Unidas.
Celso Furtado na sua obra de 1998 “O Capitalismo Global” afirmara que o Brasil durante três séculos teve uma economia baseada na
“exploração extensiva de recursos em grande parte não renováveis da exploração florestal dos seus primórdios até à grande mineração
de ferro, passando pelo uso destrutivo dos solos nos ‘ciclos’ agrícolas”. E acrescentava com sarcasmo e algum desencanto: “Com
efeito, por muito tempo fomos um caso exemplar do que hoje se conhece como ‘desenvolvimento sustentável’” (5).
O pau brasil foi substituído pelo pau de arara, no interregno na ditadura militar, mas a democracia foi mais persistente e a madeira
vermelha permaneceu um símbolo de identificação cultural num cenário natural que atrai a comunicação, o turismo e a preservação do
património multisecular.
“A Volta ao Mundo em 80 Dias” de Micael Anderson, realizado em 1959 com uma adaptação cinematográfica de grande
espectacularidade da obra homónima de Jules Verne, vista no contexto actual da tecnologia digital e de efeitos especiais cada vez mais
especializados e cósmicos, dá-nos uma nostalgia de perfume duplamente perdido de um século XIX com aspectos fantasmagóricos na
sua antevisão do século XXI mirífico e pacífico da globalização, tal como agora em inícios de Março de 2005 decorreria com a volta ao
mundo de Peter Fawcett num planador sem reabastecimento e num período de crise de energia e de recessão à vista na era do
petróleo.
NOTAS:
(1) Op.cit., Companhia Editora Nacional, São Paulo 1970 (10ª edição), págs. 5 a 9.
(2) C.R.Boxer, “O Império Colonial Português (1415-1825)”, Edições 70, Lisboa 1981 (1969), pág. 101 in “Capítulo IV-Os escravos e o
açúcar no Atlântico Sul (1500-1600)”.
(3) Celso Furtado, “Prefácio a Nova Economia Política”, Dinalivro, Biblioteca Perspectivas do Homem nº 5, Lisboa 1976, págs. 125 a
136 in “IV-Conhecimento Económico da América Latina”.
(4) Thor Heyerdahl, “A Expedição da ‘Kon-Tiki’ – 8000 km numa jangada através do Pacífico”, Empresa Nacional de Publicidade,,
Lisboa 1959, págs. 53-94 in “III-Para a América do Sul”.
(5) Celso Furtado, “O Capitalismo Global”, Paz e Terra (4ª edição), São Paulo 2000, págs. 35 a 45 in “3. Globalização e identidade
nacional”.
23 de maio de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXIV)
Manuel Carvalheiro
Os cerca de trinta livros que Celso Furtado publicou em cerca de sessenta anos, dando uma média de um editado de dois em dois anos
(apesar de ter havido anos em que publicou dois), com um total mundial de tiragens e difusão internacional em várias línguas - que dá
um número astronómico de quantidade de exemplares vendidos - de cerca de dois milhões, para livros versando a temática da
economia política, revela o interesse mundial pela sub-temática do desenvolvimento económico e social. Particularmente, tendo em
conta a existência da Universidade das Nações Unidas em Tóquio, criada por decisão da Assembleia Geral em 6 de Dezembro de 1973
e os seus cursos de “capacity development” e de “sustainable development and environment”.
A sua obsessão ou palavra fetiche foi “desenvolvimento”, mais do que a sua réplica “subdesenvolvimento”, palavras associadas num
estudo colectivo antologiado em 1958 pela Oxford University Press, reunindo já aí entre outros autores famosos o de Celso Furtado. A
cura e a doença, a doença e a cura – parafraseando um longo “commercial” (anúncio) feito por Amartya Sen recentemente e divulgado
pela CNN em 11 de Maio de 2005, em que este economista indiano, Prémio Nobel da economia em 1998, comparava o número de
mortes no 11 de Setembro de 2001 na América com idêntico número no mesmo dia em outras partes do mundo devido ao HIV-AIDS e
à falta de condições sanitárias em muitos países, como a Índia, etc. -, respondendo-se na teoria cultural da criatividade, que o
economista brasileiro falecido em 2004 sempre almejou entre os meios e os fins da sociedade de consumo, entre as técnicas e os
valores do capitalismo global e em que o socialismo deixou de constituir uma resposta imediata aos anseios da humanidade. Apesar da
herança utópica e dos seus tópicos realistas adaptados ao século XIX, que Marx nunca haveria de experimentar para além da
decepção trágica de 1871 em Paris. E que Keynes no século XX respondeu com a teoria geral do emprego, para sarar a crise do
capitalismo a seguir à recessão de 1929, iniciada em Nova Iorque com a queda da bolsa.
Que dizia Celso Furtado, por exemplo, no seu livro de 1964, “Dialéctica do Desenvolvimento” ? Ele considerou, em face da crise que se
adivinhava (pouco antes do golpe de estado dos militares conservadores no Brasil a 31 de Março desse mesmo ano), esse texto como
seu testamento intelectual da sua lavra, no dizer duma das rubricas do seu livro de memórias escrito em 1988 em Paris – uma geração
depois, praticamente -, “A Fantasia Desfeita” (1). Nesse sub- capítulo de análise retrospectiva do seu livro “Dialéctica do
Desenvolvimento” (que por lapso um seu crítico em 1966, numa recensão feita no exílio numa revista argentina, apelava de “Dialéctica
do Subdesenvolvimento”, o que mesmo assim seria outra coisa), sobressaíam seis capítulos com os seguintes pontos como tópicos
sintetizados : 1) reencontro da dialéctica ; 2) processo de mudança cultural ; 3)lutas de classes e instituições políticas ; 4) ideologias e
poderes ; 5) desenvolvimento capitalista ; e, 6) projecções do subdesenvolvimento.
No primeiro ponto, “reencontro da dialéctica”, Celso Furtado sublinha a necessidade histórica, o problema do determinismo que já vinha
do filósofo Hegel, de quem Marx inverteu as categorias dialécticas e introduziu a tripla definição de análise, antítese e síntese. Celso
Furtado, citando Herschel, dizia que a fórmula do todo e das partes, consubstanciada na construção do modelo marxista da sociedade
composta de superstruturas e de infraestruturas era no século XX apenas uma simplificação, cuja audácia levara Marx a representar
assim no século XIX a realidade social das forças produtivas e das relações de produção, entretanto transfiguradas por novos campos
de atracção e repulsão (2). Gunnar Myrdal construíra, para o processo de mudança social, um modelo abstractizante dito de “causação
circular dinâmica”, mercê das ciências sociais, em que a história como modelo se encontra em desenvolvimento. “Mas o próprio da
ciência”, dizia Celso Furtado, “é produzir vias para a acção prática” !
Curiosamente, em 1969, Gunnar Myrdal (3) alertava contra o incremento da guerrilha urbana na América Latina : “Este
desenvolvimento chegou ao topo no Brasil, mas cresce igualmente em outros países da América Latina. Pequenos bandos, sem
aparentemente grande cooperação entre eles, adquirem fundos para a sua actividade assaltando bancos. Instalações públicas são
destruídas, resultando em desordem temporária. Aconteceu até que funcionários públicos, locais ou americanos, tenham sido
capturados e trocados por resgate ou mortos”.
E alertava, também, para que se a sublevação continuasse, que não seria de excluir uma espécie de alternativa para o fascismo na
América Latina, agravando ainda mais o latente estado de sítio sobretudo no Brasil do tristemente célebre, pelo contínuo recurso à
tortura, presidente general Garrastazu Médicis (1969-1974) : “Esse fascismo teria a sua própria marca latino-americana, mas talvez
fosse mais do tipo italiano, espanhol ou português. Seria diferente do nazismo alemão, enquanto não implicasse perseguição racial”. E
Myrdal, que seria Prémio Nobel da economia em 1974 (ex- aequo com Hayek), concluía o seu raciocínio, com alguma acidez : “Eu
então faço excepção do contínuo assassinato de índios em remotos distritos rurais no Brasil e num punhado de outros países latinoamericanos, que tem continuado quase sempre mas que extraordinariamente foi alvo de pouco interesse quer localmente como noutras
partes do mundo”.
Em “O Homem de Mármore” (1976) de Andrzej Wajda é feita uma revisitação ao processo de industrialização acelerada no início dos
anos cinquenta na Polónia e o custo humano de trabalho voluntário que se transfigura a pouco e pouco em desumanidade,
desconfiança competitiva e emulação policial, levando à sabotagem – a cena dos tijolos sobreaquecidos que queimam o operário jovem
e ingénuo, que acelerava o ritmo de construção com o seu sacrifício insensato para os seus camaradas – e à descida da produtividade
por falta de estímulos materiais correspondentes, onde a ideologia não podia fazer tudo a seco...
Passando ao segundo ponto, “processo de mudança cultural”, Celso Furtado criticou a economia do seu tempo por ser a-histórica e por
isso ter tido uma revelação quando se interessou pela antropologia, que valorizou a herança cultural como processo e o conceito de
mudança social como cultura. Tal como por exemplo o revemos em “O Pai foi em Viagem de Negócios” (1984) de Emir Kusturica, que
evocou a crise na Jugoslávia durante o conflito latente em 1948 entre Leste e Oeste, com o isolamento económico num clima de grande
tensão interna e o recurso à autogestão para promover o desenvolvimento no quadro de uma política de não alinhamento entre blocos.
As inovações explicam as mudanças sociais pela introdução de técnicas que provocam reacções em cadeia na cultura material. A
história social europeia deu sentido ao desenvolvimento económico (4), caso particular da mudança social, em que as necessidades
humanas são satisfeitas através da diferenciação do sistema produtivo. A noção de conflito serve de contrapeso à mudança como
resistência por parte das classes que detém “a propriedade privada dos meios de produção”. Porém, a tecnologia faz aumentar o
produto que se assume em seguida como excedente, cujas opções em parte ou no todo a destinam à acumulação. A organização
social tem diversas formas que prevalecem se proporcionarem crescimento de riqueza (5).
No terceiro ponto, “as lutas de classes e as instituições políticas”, Celso Furtado promove a noção de consciência de classe cuja
formação está ligada ao capitalismo industrial, cuja “forma particular” tem a ver com o processo de urbanização que conglomera
“grandes massas heterogéneas de trabalhadores”, transformando conflitos de grupos dispersos em lutas organizadas. A prestação de
serviço da sociedade civil e a função repressora do Estado, foram uma simplificação que conduziu a brutais desilusões, a partir da
“esfera política nos povos de língua alemã” no século XIX.
No século XX a instabilidade do capitalismo e da sociedade, conduziu a uma maior flexibilidade das estruturas políticas, crescendo o
aparelho estatal, sendo que os regimes democráticos modernos são a convergência dessas características não previstas no século
XIX. Só assim as lutas de classes, sem recorrerem à guerra civil nem ao golpe de estado militar, são o motor do desenvolvimento. E
desde que a propriedade privada dos bens de produção não entre em conflito com o interesse público, ela é respeitada pela sua
eficiência, sem que haja necessidade de repressão às liberdades políticas. Sendo que o reconhecimento do direito à greve encerrou o
ciclo dos antagonismos revolucionários. A construção do socialismo terá de se haver com novos incentivos ao trabalho.
Um filme como “O Homem do Fato Branco” (The Man in the White Suit, 1951) de Alexander Mackendrick, reflectiu com humor
subversivo as peripécias de um cientista inglês que nas suas pesquisas para encontrar um tipo de tecido que seja à prova de sujidade e
dure eternamente, faz experiências químicas que o conduzem ao sucessivo despedimento de fábrica em fábrica. Numa Inglaterra pósrevolução industrial, em época de reconstrução dos bombardeamentos da II Guerra Mundial e rés-vés à grande crise de poluição no
Tamisa em 1952, que conduziu a inúmeras mortes por asfixia nas zonas fabris e à existência das primeiras leis em defesa do ambiente.
NOTAS :
(1) Op. cit., Paz e Terra, Rio de Janeiro 1989, págs. 182 a 186.
(2) Georges Duveau, “1898”, idées n.66, NRF-Gallimard, Paris 1965, pág. 63, o primeiro operário a participar num governo democrático,
o de Louis Blanc, chamava-se Albert, pseudónimo de um membro de uma sociedade secreta que fazia a ligação entre os “ateliers” de
Lyon e os de Paris, que era a “sombra” daquele respeitado chefe, segundo Lamartine que inicialmente o havia proposto.
(3) Gunnar Myrdal, “The Challenge of World Poverty: A World Anti-Poverty Programme in Outline”, A Pelikan Book, Penguin Books,
Harmondsworth 1971, págs. 452 e 453 in “Appendix – The Latin American Powder Keg”.
(4) Maurice Godelier, “La notion de mode de production asiatique”, Les Temps Modernes, Mai, n.228, Paris 1965, págs. 2005 e 2006.
Em 1853, a Índia tinha locais com comunidades com propriedade colectiva do solo sob domínio geral de um poder burocrático de elite
não hereditária no estado.
(5) Joseph Needham, “La science chinoise et l’Occident”, Sciences-Points, Éditions du Seuil, Paris 1977, págs. 127 e 129, sobre o
modo de produção asiático e a produção do arroz.
30 de maio de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXV)
Manuel Carvalheiro
Relações de compensação e estabilidade, a propósito dos índios Tupi da Amazónia, cujo multicomunitarismo
neutralizou a sua estratificação (1), estão associadas a uma economia de autarcia partilhada (na ausência de uma
economia mercantil desenvolvida).
Supostamente, o historiador e comunicólogo da E.H.E.S.S em Paris e que tivera durante dez anos um programa
semanal no Canal Arte de Estrasburgo, Marc Ferro (2), garantiu que tinham sido brasileiros do estado do
Pernambuco, pouco após uma insurreição em 1847-48 e por razões individuais de segurança, que resolveram
continuar o processo de colonização em Angola, com a economia estagnada pelo desinteresse da monarquia
portuguesa, desenvolvendo assim o cultivo da cana-do-açúcar depois da sua ruína agrícola no Nordeste brasileiro.
Sendo que já em 1781 Angola se encontrava na dependência dos colonos do Brasil, devido ao tráfico de
escravos, pelo que Portugal se lamentava de que – caso contrário e assim não fosse – o comércio e a navegação
se lhe escapavam para ir para o controlo dos estrangeiros, sobretudo holandeses.
Continuando a referir “Dialéctica do desenvolvimento”, Celso Furtado em 1988 peneirou o seu livro de 1964 em seis tópicos, de que já
abordámos três, a saber, o reencontro da dialéctica, o processo de mudança cultural e lutas de classes e instituições políticas. Agora,
aborde-se o quarto ponto, a saber, “ideologias e poderes”, para em seguida se focar o quinto, “desenvolvimento capitalista em si e per
si” e, finalmente, o sexto e último ponto da sua resenha retrospectiva de tópicos, “projecções de subdesenvolvimento”. O todo assim
inserido naquilo que Celso Furtado havia chamado de seu “testamento intelectual” (do século XIX no século XX).
As ideologias e os poderes, em face de crises cíclicas, entre desemprego em massa, greves paralisantes e outros fenómenos sociais,
exigem virtuosismo das lideranças políticas (3). O ciclo vital das classes não se verificou com a velocidade pensada em 1848 ; e, por
susto ou astúcia, a burguesia modificou as instituições políticas no final do século passado, no tempo pós-Marx e de vida ainda de
Engels até 1895, dando participação à classe operária na co-responsabilidade nos centros de decisão, segundo uma reavaliação de
Celso Furtado naquilo que, em 1988, em Paris, sobre o que havia escrito em 1964, pouco antes do golpe de 31 de Março, e que ele
havia intitulado com sombria ternura como seu “testamento intelectual”, talvez pensando que nunca mais voltaria a ser ministro, nem do
planeamento (1961-1963) nem da cultura (1986- 1988, por sugestão da actriz Fernanda Montenegro segundo reza a lenda).
Em “Crónica de uma morte anunciada” (1987) de Francesco Rosi, adaptação à situação da Colômbia do romance homónimo de Gabriel
Garcia Marques, decorrido numa povoação chamada Santiago (com costumes arcaicos de vingança e honra), a réplica estrutural que
se anunciou foi como que uma revisitação da problemática social pelo mesmo realizador antes em “Salvatore Giuliano” (1961), sobre a
ilha da Sicília e as consequências do pós-II Guerra Mundial no seu desenvolvimento agrário, contendo dissenções sociais de natureza
criminal e de banditismo, não resolvidas pela gestão norte-americana desde 1943. É assim deveras elucidativo que um filme iraniano
que evoca na fronteira do Afeganistão o regime opressor dos Taliban, instaurado em 1996, “Kandahar” (2001) de Mohsen Makhmalbaf
e com a extraordinária participação da socióloga, actriz e diplomata afegã radicada no Canadá, Nelofer Pazira, sobre os campos de
refugiados antes da tomada de Cabul pela Aliança do Norte, antecipe o universo de problemas que a gestão posterior norte-americana
viria a ter pela sua incapacidade em perceber os muçulmanos no quadro da guerra ao terrorismo e a Osama Ben Laden, que antes
toleraram quando se tratou de lutar contra o comunismo e a ocupação soviética.
Quando surgiu Lenine, a partir do seu livro de 1900, “Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia” (sobre a formação do mercado
interno num país dominado pela servidão da gleba até muito tarde), ele lidara com uma sociedade no essencial ainda longamente na
sua fase pré-capitalista e sob a ditadura autocrática secular do tsarismo. Em que a classe operária até então só ascendia enquanto
ideologia na mentalidade sindicalista e episodicamente parlamentar na Douma, veja-se a adaptação cinematográfica de “Ressurreição”
feita em 2000 pelos irmãos Taviani, a partir da obra significativa de Leon Tolstoi suposta decorrer na viragem do século XIX para o
século XX e antecipando a revolução de 1905, que de Odessa a S.Petersburgo abalou a velha tirania russa imperial.
Supostamente, “o socialismo na Rússia era o poder dos sovietes mais a electricidade”, dizia Lenine, depois já como presidente do
conselho dos comissários do povo em 1918, ao que se pensa durante uma visita a uma fábrica. Frase essa propositadamente de
sínteses e à qual Nicolai Bukharine mitologicamente havia respondido com humor e uma ponta de insolência consentida pelo mestre,
em voz baixa e a despropósito olhando para Lenine seu presidente e camarada : “O pior é se os fusíveis se vão abaixo !”.
Mas de facto quando Lenine a 10 de Novembro de 1918 dá como certa a revolução proletária na Alemanha, em Kiel e depois em
Berlim, de forma a desafogar a situação económica na Rússia Soviética e a justificar o seu ataque sem remissão ao prestígio de
Kautsky, o herdeiro do legado do socialismo científico de Engels, era antes o espectro de uma concepção liberal da democracia
socialista sem ditadura para os oponentes fora do quadro parlamentar europeu que se entrevia.
Quanto ao quinto tópico, o “desenvolvimento capitalista” e o seu impulso duplo e contraditório, de um lado a acumulação em que uma
minoria limita para além do necessário o consumo público e, por outro lado, a luta pela melhoria das condições de vida da massa da
população . O desenvolvimento industrial (4) foi longamente entravado por causa de falta de carvão até aos anos trinta do século XX,
adiantando-se que o Brasil só com a aproximação da II Guerra Mundial tinha posto os seus jazigos a render cem mil toneladas por ano.
Sendo que investimentos e oferta de mão-de-obra colidem devido às desigualdades de riqueza e renda ou falta de requalificação
profissional. Referindo-se neste aspecto ao atraso rotineiro mais agravado por uma cultura da inércia da Administração Pública (5), em
1982, em Portugal, em cumprir os próprios prazos que estipulava e que algo terá a ver longinquamente com a tendência persistente
para a flutuação incontinente do défice actual.
Essa contradição que minava o desenvolvimento foi parcialmente anulada como incremento da tecnologia, que resolveu em parte a
questão da nova oferta de mão-de-obra. Absorvendo, assim, o investimento, a poupança do capitalista, Que de outro modo via a sua
hegemonia a descoberto, face à rápida acumulação e ao pauperismo da força de trabalho. A democracia capitalista tende a autolimitar-
se, flexibilizando os antagonismos pela pluralidade ideológica. No entanto, o poder da máquina burocrática do Estado-Nação constitui
uma muralha de privilégios, neutralizando a duplicidade do serviço público versus não interferência nos processos económicos.
O sexto tópico refere-se às “projecções do subdesenvolvimento”. Tal ocorre porque a economia mantém-se do tipo colonial nesta
evolução especial do capitalismo periférico. Sendo que, como consequência histórica, os seus dirigentes - no dizer de Celso Furtado manifestam uma “alienação de tipo ptolomaico”, isto é, desconhecem as suas próprias forças e fraquezas no quadro do sistema
financeiro mundial coordenado pelo centro capitalista. Centro esse que se deslocou da Inglaterra pós-victoriana de Lloyd George para
os Estados Unidos da América, entre as duas guerras mundiais no século XX.
Para Celso Furtado a “transplantação da tecnologia” do centro para a Periferia, não se faz tendo em conta a globalidade do
subdesenvolvimento de uma dada economia subdesenvolvida, no caso a do Brasil, mas apenas tendo em conta os preços do sector
importador. O que faz com que a economia monetária dela decorrente prejudique o desemprego, ainda mais com investimentos que,
antes pelo contrário, deviam ter prioritariamente em conta as “grandes massas subempregadas”. O filme de Luís Berlanga “Bienvenido
Mr. Marshall” (1953) caricaturiza o plano de auxílio americano a Espanha, consubstanciado na visita a uma povoação atrasada, Villar
del Rio (na Andalúzia), que requer auxílio de um plano de desenvolvimento daquele tipo no quadro de uma sociedade autoritária e rural,
destruída antes pela guerra civil de 1936-1939.
Segundo Celso Furtado, a classe dirigente brasileira estava fadada ao insucesso no caminho do desenvolvimento nacional porque
dividida essencialmente em três grupos: os latifundiários que faziam resistência à mudança, os do comércio exterior porque
trabalhavam só em comércio próprio e os do mercado interno ligados à industrialização, o sector mais progressista, receavam o
isolamento pelo facto dos do comércio exterior os frear. A ideologia populista penetra numa espécie de massa assalariada urbana em
estado gelatinoso ou plasmático como se diz em física, visto serem ameaçados pelo “exército de reserva de subempregados”. Os
trabalhadores industriais comportavam-se como a classe média, sendo permeáveis à ideologia dominante pulverizada nas facções em
luta, gerando instabilidade e desnaturando o conceito de democracia cada vez mais cobertura para a restauração de uma ditadura de
classe, que nas circunstâncias só poderia ser contra o desenvolvimento social sem um “distribuicionismo facilitista” e no final contra a
liberdade do estado como serviço público.
NOTAS :
(1) Georges Ribeill, “Tensões e transformações sociais”, Colecção Ciências Sociais e Humanas, Série Universidade n.8, Livraria
Bertrand, Lisboa 1976, págs. 108 e 109,
(2) Marc Ferro, “História das Colonizações – Das Conquistas às Independências – Sécs. XIII-XX”, Referência n.17, Editorial Estampa,
Lisboa 1996, pág. 180.
(3) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro 1989, págs. 186-190 in “Testamento intelectual”.
(4) Juri Semjonov, “As Riquezas da Terra”, Estúdios Cor, Lisboa s/d (original 1936), pág. 504 in “América do Sul : população escassa,
terras férteis, ricos jazigos, grande futuro”.
(5) João Oliveira Rendeiro, “Estratégia industrial na Integração Europeia”, n.21, Banco de Fomento Nacional, Lisboa 1984, pág. 63.
6 de junho de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXVI)
Em 1966, o presidente Frei no Chile, face aos problemas de desenvolvimento com interferência da ocupação das minas de El Teniente, reformou então o sistema bancário,
renunciou ao imobilismo monetário do anti- inflaccionismo, promoveu a sindicalização rural e prometeu fazer uma reforma agrária (3)
Manuel Carvalheiro
A questão do subdesenvolvimento nacional nos países da América Latina, foi questionada, por assim dizer, desde
1969, com ainda mais acuidade após Fernando Henrique Cardoso permanecer quase cinco anos no Chile, depois
de se ter visto praticamente expulso do Brasil após o golpe militar conservador de 1964. No livro “Dependência e
desenvolvimento na América Latina” (1), fazia-se um historial de casos, entre a ruptura do pacto colonial e a
formação do estado nacional no século XIX. Referindo-se, particularmente, à intervenção estrangeira no México, à
estagnação e falha de hegemonia política no Peru, à prosperidade e lutas na Argentina ou no Uruguai, à oligarquia
burguesa chilena e à fraqueza das classes médias na Colômbia ou sua “incorporação” na Venezuela, na Bolívia e
no México.
Num dos capítulos mais abstractos do seu livro, talvez mais conhecido internacionalmente, Fernando Henrique
Cardoso - de parceria com Enzo Faletto - pressentiu uma análise global do desenvolvimento para a América Latina. Citando-se
Tonnies, a propósito da então considerada desactualizada dicotomia comunidade “versus” sociedade; e que as sociedades latinoamericanas - no seu alegado e típico dualismo estrutural - tinham começado por ser tradicionais, para virem a ser em seguida
modernas. Conceitos que não abarcariam, já então, todas as situações, nessa época, possíveis de hibridez em vias de
desenvolvimento. Sendo que, tanto aqueles como estes últimos conceitos, já também não articulavam - com clareza e operacionalidade
- as diversas fases do desenvolvimento. Com a estrutura social de classes, cooperantes ou antagónicas, na partilha ou na hegemonia
do poder político e dos centros de decisão, para se sair do subdesenvolvimento e continuar o desenvolvimento agora mais autónomo
para os decisores não hesitarem na sua possível integração no mercado financeiro internacional.
Curiosamente, Celso Furtado na sua obra de 1976, “Prefácio a Nova Economia Política” (2), sublinhava o abandono provisório, nas
prioridades do pensamento económico latino-americano de então – face à nova configuração do capitalismo monopolista, com a
emergência e consolidação do sistema de multinacionais (em Paris, fora difundido um enorme cartaz de publicidade à multinacional da
marca de cigarros Philippe Morris, aquando das comemorações do 30º aniversário da Libertação em 25 de Agosto de 1944, instalado
sobretudo perto do Châtelet e do Hotel de Ville, na Rue Rivoli e também junto à margem direita do rio Sena perto da grande loja
Samaritaine), após a Conferência de Helsínquia em 1975, que abriu espaço para a troca de mercadorias e de ideias entre o Leste e o
Oeste, em clima de consolidação do desanuviamento internacional após o final da Guerra do Vietname –, do conceito de crescimento
económico. Prioritário, em contrapartida, “no centro do esforço de teorização realizado nas universidades europeias e norteamericanas”. Ele reassumia a ocorrência de um trabalho interdisciplinar, orientado para “o aparelho cognitivo para os elementos
estruturais que oferecem mais resistência à transformação”.
Tratava-se, na ocorrência, de “explicitar juízos de valor” na ideia de transformação; renovação, sem a qual não poderia haver
“mudanças ao nível das estruturas”, nesse pretendido desenvolvimento global coincidente da era da presidência de Carter nos E.U.A.
mais sensível aos direitos humanos. Após o final da Guerra do Vietname e da libertação das forças produtivas do unilateralismo
belicista, nas relações de oportunidade de desnuclearização da Europa ainda no tempo da direcção de Brejnev na U.R.S.S.. Com esta
posição sobre o processo social, Celso Furtado demarcava o pensamento estruturalista económico-social latino-americano da “visão ahistórica do pensamento estruturalista europeu” obcecado pelo conceito de crescimento económico.
Nessa sua obra, reunia textos de conferências em Paris, Teerão, Argel e em Caracas, como no capítulo final intitulado “Conhecimento
Económico da América Latina”, correspondente a uma conferência dada no quadro do seminário “Consciência e Nação” (organizado
pela Universidade de Simão Bolívar, em Maio de 1976, na inauguração do Instituto de Altos Estudos da América Latina), acompanhado
de sua esposa de origem argentina Helena Furtado.
Para o efeito, Celso Furtado constatara, em Caracas, em 1976, sobretudo dois aspectos decorrentes dessa nova realidade geopolítica,
que importava realçar com veemência argumentativa face à escalada da econometria e do monetarismo: 1) o destino comum do
reencontro dos povos da América Latina, cuja ideia-força seria a luta contra o subdesenvolvimento e a dependência dos respectivos
países; e, 2) a demarcação face ao “laissez-faire” das instituições liberais no quadro económico do desenvolvimento, face à
“transnacionalidade da economia” que fomenta passividade perante a desarticulação e que traz “desigualdades geográficas dentro de
um mesmo país, concentração social da renda, ‘marginalização’ de amplos segmentos de população”, com enormes custos sociais
crescentes e imprevisíveis de consequências, até mesmo no quadro das liberdades democráticas.
Em 1966, o presidente Frei no Chile, face aos problemas de desenvolvimento com interferência da ocupação das minas de El Teniente,
reformou então o sistema bancário, renunciou ao imobilismo monetário do anti- inflaccionismo, promoveu a sindicalização rural e
prometeu fazer uma reforma agrária (3). As forças políticas que o substituíram em 1970, aproveitaram a sua cedência face à
administração Johnson nos E.U.A., desprestigiada com a invasão e golpe na República Dominicana em 1965, para ganhar terreno
social e combater os latifundiários. Miguel Littin nessa época de transição recorreu aos valores históricos do passado chileno, em “El
Chacal de Nehualtoro” (1969), sobre um caso de triplo homicídio feito por um pastor em 1960 e que seria depois condenado à morte,
assim como em “La Tierra Prometida” (1971) para revitalizar pelo cinema nacional em ascensão o chamamento cultural para os
conflitos sociais, que desde o século XIX perdurariam na geografia longilínea do seu país. Presentemente, o Chile detém em 2005 a
direcção da Organização dos Estados Americanos, tendo o presidente Lagos obtido apoio do presidente Lula para a eleição do exministro do interior Insulza, um chileno em lugar do candidato mexicano defendido pelo presidente Fox, antigo promotor da
multinacional Coca-Cola.
As vantagens competitivas dinâmicas (4), teoria que alarga as limitações ricardianas da antiga teoria das vantagens competitivas,
combatendo o estatismo da “inalterabilidade das dotações de factores”, tenta conciliar e assim inovar no campo do comércio
internacional, com uma integração económica que contorne a antiga fronteira de possibilidades de produção. Tendo em conta que,
desde há uma geração, nos chamados países periféricos, quer o analfabetismo, a informação, a água, como a assistência e a
mortalidade, foram índices ou indicadores melhorados nos acessos dos extractos sociais mais carentes e cujas taxas desceram no
cômputo negativo de uma radiografia demográfica da população mundial. Não será tanto uma questão de mais estado, nem muito
menos de estado a menos, mas antes se trataria, trata e tratará de obter melhor estado, tanto quanto o necessário em cada
circunstância desta ou daquela década, “tendo por objectivo a correcção das desigualdades causadas pelo mercado” (5).
NOTAS:
(1)F.H.Cardoso et Enzo Faletto, “Dépendance et développement en Amérique Latine”, Politiques, Presses Universitaires de France,
Paris 1978, págs. 13 e 14.
(2) Op. Cit., Dinalivro, Lisboa 1976, págs. 126, 127 e 136.
(3) Miguel Urbano Rodrigues, “Opções da Revolução na América Latina”, Paz e Terra, Rio de Janeiro 1968, págs. 126 e 127.
(4) António Rebelo de Sousa, “Da Teoria da Relatividade Económica Aplicada à Economia Internacional e às Políticas de Cooperação”,
Colecção Teses, Universidade Lusíada Editora, Lisboa 2004, pág. 24 e 25.
(5) Fernando Henrique Cardoso, “Relação Norte-Sul no Contexto Actual : Uma Nova Dependência?”, in “O Brasil e a Economia Global”,
antologiado por Renato Baumann, Campus, Rio de Janeiro 1996, pág.8.
27 de junho de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXIX)
Voltando atrás no tempo, imagens de arquivo a cores, revelam-nos num documentário exibido a 1 de Maio de 2005 no Discovery Channel, trabalhadores forçados nas minas
de estanho na Nigéria em 1943, depois dos ingleses terem perdido o acesso ao estanho na Ásia, após a invasão dos japoneses
Manuel Carvalheiro
Na sua distinção, em 1972, entre crescimento e desenvolvimento económicos, Gunnar Myrdal (1) manifestou a
sua insatisfação em relação ao uso e abuso dos PNBs. Já que, para ele, estas estatísticas eram assentes em
indicadores parciais, porque incompletos de variáveis possíveis (Amartya Sen, mais tarde, duas décadas depois,
defenderia os índices de desenvolvimento humano, para cobrir as deficiências distributivas de renda dos PNBs e
dos PIBs “per capita” de cada país). Por que, também, distorcidas, por vezes devido ao facto de não incluírem
muitos factores – variantes e parâmetros – económicos, e mesmo não-económicos. Falseando, por isso, a sua
operacionalidade mais imprevisível como índices imperfeitos e falíveis nos países em vias de desenvolvimento,
assim como nos próprios países industrializados.
Para Myrdal, assim, a noção de crescimento económico tinha em vista a produção de um dado país, incluindo os
seus sectores diversos: o consumo, as classes sociais, os investimentos, os preços e salários e as exportações e
importações. Enquanto que a noção de desenvolvimento – como “movimento em direcção ao topo do conjunto do sistema social” –
implicava, não só a produção, mas também a repartição do produto líquido ou renda e os modos de produção: com os níveis de vida, as
instituições, os comportamentos dos agentes económicos (empresários e sindicatos, etc.) e as políticas económicas e financeiras
governamentais.
Os anos sessenta, sobretudo em África, viram a desconfiança como factor não-económico a influenciar a apreciação da diplomacia do
desenvolvimento, preconizada desde 1960 por Eugène Black (1898-1992, ex-director do Banco Mundial: colaborou com um projecto
hidroeléctrico entre a Índia e o Paquistão, além de financiar o Egipto após a crise do Suez em 1956), um professor de economia norteamericano, que publicara em Harvard “The Diplomacy of Economic Development”. O lamento por vezes irascível contra as iniciativas de
fomento bancário, ao desenvolvimento económico e social dos antigos países colonizados e, agora, à mercê de uma orientação
capitalista, fizeram, no entanto, perceber que a estratégia de apoio financeiro aos países africanos por parte dos russos e seus aliados
ou dependentes, em vez de constituir uma contrapartida complementar, pretendia à exclusividade no apoio político para estes
superarem o fosso do atraso secular (2).
Voltando atrás no tempo, imagens de arquivo a cores, revelam-nos num documentário exibido a 1 de Maio de 2005 no Discovery
Channel, trabalhadores forçados nas minas de estanho na Nigéria em 1943, depois dos ingleses terem perdido o acesso ao estanho na
Ásia, após a invasão dos japoneses. O então secretário das Colónias pronunciou um discurso na Câmara dos Comuns em Londres
onde dizia oferecer 4 xelins por mês a cada um dos cerca de 14098 trabalhadores africanos, forçados e andrajosos nessas minas de
estanho na Nigéria, segundo a narração de Art Malik naquele documentário de 2002, revelando as características daquela sacrificada
tribo negro-africana a salários de fome.
Manifestantes norte-americanos de origem negro-africana reivindicando, recentemente, a negritude de Tutankhamon, durante uma
exposição itinerante num museu de Los Angeles, argumentaram diante da televisão CBS Evening News – Weekend, a 19 de Junho de
2005, que o Egipto de onde ele provinha era África.
E, portanto, os antigos egípcios eram núbios, mais negros que brancos, isto depois de ter sido revelado, através da sua múmia, a
reconstituição em realidade virtual dos seus traços faciais e cor da pele acastanhada clara. Duas visitantes afro-americanas
comentaram que a efígie do príncipe era antes da cor dourada...
Joseph Schumpeter afirmou – enquanto economista – a respeito de Keynes (3), que este desde a sua obra de 1913, “Indian Currency
and Finance”, ao preocupar-se com os problemas da Índia colonial, em especial preços de exportações e de importações – tocando na
troca desigual entre matérias-primas e produtos manufacturados –, tinha já desde então uma apreciação sobre produção e emprego,
que “era não obstante qualquer coisa de novo” no panorama da investigação da economia política neo-clássica. O mesmo Schumpeter
sublinhava, porém, mesmo assim, o seguinte sobre Keynes, a respeito dessa inter-relação entre desemprego e acumulação, entre mãode-obra ilimitada e excedente não reinvestido: “qualquer coisa que, se não determinou unicamente isso, condicionou contudo a sua
própria linha de avanço”.
A acumulação está por detrás da ideia de riqueza, como fluxo de capitais, destinados em parte ao investimento e como “stock”, para
fortalecer a capacidade de produção ulterior. John Stuart Mill distinguia riqueza de utilidade, mas para Keynes os fluxos deixaram o
conceito de riqueza como que esquecido, prevalecendo o caso particular da acumulação investimento, mas a acumulação global
continuava desconhecida.
Celso Furtado, em “Prefácio a Nova Economia Política”, caracterizava em 1976 a teoria do desenvolvimento como ocupando-se das
“relações entre acumulação e progresso técnico”. Sendo que, esse mesmo progresso técnico, quando se manifestava fora do sistema
de produção, como no caso do neocolonialismo e da dependência acrescida (de uma minoria dirigente corrupta e oligárquica),
apresentava-se “sob a forma de modificação no estilo de vida de grupos da população”; e, quando o progresso técnico se integra no
sistema de produção, “assume a forma de assimilação de processos produtivos mais eficazes”(4).
Ao fazer o saldo da segunda metade do século XX, no aspecto referente ao desenvolvimento económico nos antigos países
colonizados, que atingiram a independência depois do final da II Guerra Mundial, John Kenneth Galbraith – que fora embaixador dos
E.U.A. na Índia durante a administração Kennedy –, concluiu com cepticismo no desaire que foram na generalidade esses programas
de cooperação com economias subdesenvolvidas (5). Apesar de um outro aspecto, que sobreviveu positivamente a essa grande ilusão
dos países desenvolvidos e industrializados, quanto à exportação de modelos económicos, adaptados mecanicamente a realidades que
levam mais tempo a modificar do que apenas meio século.
Mas, o referido economista norte-americano dizia também, como excepção no panorama geral, que incluía com nota alta os países da
orla do Pacífico, como a República da Coreia, Singapura, a Malásia e a Tailândia. Porque tinham sabido encontrar a disciplina e
organização com um dinamismo interno específico. Através, nomeadamente, do reforço dos seus quadros com uma aposta continuada
na educação e formação como segredo do motor do crescimento económico.
Com efeito, Galbraith, como economista, admitiu, por exemplo, que os próprios países da América Latina e, em especial, os da América
do Sul, pelo facto de terem obtido as suas respectivas independências há mais de um século, portanto, ainda em pleno século XIX
(nomeadamente com a expedição de Simão Bolívar e o seu idealismo libertador), nesse contexto pois já uma década antes - desde os
anos cinquenta - dizia que os programas de desenvolvimento económico tinham tido algum realce naquele continente sul-americano.
Idealismo libertador aquele, retomado agora pelo presidente Chavez na Venezuela, com toda a carga mítica e por vezes inoportuna pela caricatura populista subjacente –, apesar da generosidade também subjacente ao desejo de cobrar 50% de lucro na venda do
barril de petróleo em 2005. De notar, também, que está anunciada para Setembro de 2005 a inauguração das emissões televisivas da
Telesur para a América Latina, com sede em Caracas e formada por capitais públicos argentinos, uruguaios e cubanos. Sendo uma
espécie de televisão informando e formando também as comunidades pobres e urbanas.
NOTAS:
(1) Gunnar Myrdal, “Procès de la Croissance – À contre-courant”, Économie d’Aujourd’hui, Presses Universitaires de France (P.U.F.),
Paris 1978, págs. 194 a 196 in “X-‘Croissance’ et ‘développement’”.
(2) V. Chtchétinine, “L’Afrique dans la Politique et l’Économie Mondiales”, Éditions du Progrès, Moscou 1971, pág. 234 in “Du système
de la domination nationale directe à la ‘diplomatie du développement’”.
(3) Joseph A. Schumpeter, “Ten Great Economists : from Marx to Keynes”, George Allen & Unwin Ltd, London 1996, pág. 265 in “John
Maynard Keynes (1883- 1946)”.
(4) Op. cit., Dinalivro, Biblioteca Perspectivas do Homem n.5, Lisboa 1976, págs. 14 e 15 in “Um conceito de acumulação mais
abrangente”.
(5) John K. Galbraith, “Viagem através da economia do nosso século”, Círculo de Leitores, Lisboa 1994, págs. 198-209 in
“Descolonização e desenvolvimento económico”.
4 de julho de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXX)
Ora, esse processo jurídico, relacionado com o maior evento penitenciário desde o fim da Guerra da Secessão, só teve fim em 2000 com a indemnização respectiva aos
queixosos.
Manuel Carvalheiro
Por acaso, quase em simultâneo com o encerramento do 1º Encontro entre os Países Árabes e a América do Sul,
que reuniu 34 países em Brasília entre 9 e 11 de Maio de 2005, a sessão final fora presidida pelo Peru, Brasil,
Argélia e Emiratos Árabes Unidos. Aprovando-se um documento comum, essencialmente centrado em dois
tópicos : luta contra a pobreza e inserção na Organização Mundial do Comércio. Tendo, um dia depois, o
presidente Bush recebido na Casa Branca seis presidentes dos países da América Central e do Caribe, levando
em conta o aplanar de diferenças, a propósito da intervenção do “lobby” do açúcar no Congresso NorteAmericano, já que os preços haviam, entretanto, aumentado no mercado asiático, recentemente.
A homogeneização inofensiva do mundo belicista - com a exibição dos guardas “robots” cobertos de máscaras
simiescas, capacetes respiratórios e fatiotas de plástico branco no desfile de estrelas do 58º Festival Internacional
do Filme de Cannes -, sela a estreia do sexto e último episódio da saga “Star Wars” de George Lucas, com a exibição ao vivo de
manequins promovendo o “marchandising” do filme que mais lucro deu na história do cinema. Ultrapassando, mesmo, correlativamente
ao tempo em que não havia televisão em 1939, “E Tudo o Vento Levou”, no ano em que foi adiada a inauguração do Festival de
Cannes, criado em rivalidade com a promoção belicista do Festival de Veneza, que promovia a cultura fascista e nacional-socialista.
A aspereza desse tempo na Europa em guerra foi, com grande oportunidade, revelada no filme da realizadora australiana Gillian
Armstrong, “Paixão sem fronteiras” (Charlotte Gray, 2001), com a actriz Cate Blanchett naquele papel feminino sobre a resistência
anglo-francesa na chamada “zona livre” controlada pelo regime de Vichy, durante a ocupação alemã da França na II Guerra Mundial.
Em que a heroína, Charlotte Gray, oriunda de Londres e saltando de pára-quedas (enquanto é observada por duas crianças, cujos pais
haviam sido recentemente deportados), participa depois num descarrilamento nocturno de um comboio de mercadorias com armamento
militar ; e vive, entretanto, escondida numa propriedade acastelada, na posse de um feitor, que por sua vez será, também, em seguida,
descoberto e deportado, para preencher a quota anti-semita de sangue puro, até cem anos atrás na sua árvore genealógica...
O número de efeitos especiais evoluiu de 28, quando não havia ainda cinema digital com cenas parcialmente reconstituídas em
computador, para 2151, entre o episódio inicial de 1977 e 28 anos depois com o sexto e último episódio de 2005, “O Regresso do Sith”.
Tendo, até agora, as duas trilogias cinematográficas de antecipação científica espacial, ganho 3 mil milhões de dólares, sem ainda
contar com as receitas deste último filme. Por outro lado, há 10 mil milhões de euros em negócios anuais de jogos de computador,
actualmente, em que a Sony Pictures lidera o mercado internacional, com a venda do último modelo de consola contendo imagens
parecidas com as do cinema, apresentado em Los Angeles a 17 de Maio de 2005.
Celso Furtado concebe o desenvolvimento económico como um “processo de mudança social” e dizia em 2002 que só o
compreenderíamos se interrogássemos na sua complexidade a ideia de criatividade (1), segundo o seu último livrinho intitulado “Em
Busca de Novo Modelo : Reflexões sobre a crise contemporânea”. A convergência de dois processo de criatividade cultural, a revolução
burguesa e a revolução científica, gerou a civilização industrial, concluiu o economista brasileiro, inspirado numa reflexão sobre as
filosofias grega ou helénica e indiana ou hindu. A amplitude do horizonte da ideia de criatividade é indizível e a visão da natureza, tal
como a formulou Galileu, continua a ser o paradoxo em que se apoia o desenvolvimento, com a sua estrutura de racionalidade e
disciplina, no progresso técnico e social a obter. A visão abstracta do mundo superou, assim, a visão tradicional do mundo. Com ironia,
Celso Furtado ao referir-se à evolução do capitalismo, desde o tempo de Galileu com a “dessacralização” da natureza e a
“secularização” da sociedade, atribui-lhe dois marcos, que constituíram uma “autêntica mutação” : a invenção da sociedade anónima e
a invenção da greve.
O problema da criatividade é o mimetismo ideológico, sem uma consciência crítica da industrialização retardada, em que a tendência
para a dependência cultural tende a agravar a situação de instabilidade económica e de autoritarismo social difuso. Celso Furtado
nesse seu texto de 2002 não se esquecia de referir, também, o remanescente da sociedade socialista sob controlo comunista :
“Ademais, nas sociedades em que a civilização industrial penetrou por outra via que não o capitalismo, ou seja, pela planificação
centralizada, é que se dotaram de um forte mecanismo de acumulação, o processo de racionalização também se manifestou com
virulência”.
Peter Bachlin, em 1947, na Suiça, após ter feito durante a II Guerra Mundial um estudo económico mundial do cinema (2), referiu-se ao
pioneirismo publicitário de Walt Disney com o filme de desenhos animados “Branca de Neve”, que após a sua apresentação antes da
estreia oficial vendeu “147 licenças permitindo a fabricação de 2183 produtos ou objectos diversos reproduzindo personagens do filme”.
Esse pioneiro “marchandising” teria valido à indústria dos jogos infantis cerca de dois milhões de dólares suplementares ao cambio da
época, para além da venda do livro estimada em 20 milhões de exemplares, recorde absoluto na altura. Os produtos essenciais
correlativos ao universo do filme consistiam em bonecas, canecas e sabonetes em miniatura com, respectivamente, as imagens de
Branca de Neve nas bonecas e nas canecas e os sete anões estampados cada qual na colecção de mini-sabonetes.
Tudo isto serviu, depois, nessa campanha pioneira de publicidade a produtos exteriores ao consumo do próprio filme, para um
acréscimo da procura de lugares nos cinemas onde iria ser exibido aquele filme nos E.U.A.. A pretensão do mercado, em querer dirigir
o conjunto duma sociedade como se fosse um extra-terrestre, assenta que nem uma luva por contraste na aparente insignificância que
é o ser humano consumidor do século XXI, que não se apercebe da influência que exerce no sistema de preços em vigor nesse mesmo
mercado, sendo os preços resultado do confronto entre uma oferta e uma procura do produto inovador.
Nesse aspecto a teoria dos jogos, como novo ramo das ciências matemáticas aplicadas à economia política desde 1944, sobretudo no
capítulo da previsão e simulação antecipada dos desejos e fobias dos potenciais consumidores de mercadorias – de bens de consumo !
-, só se pode entender em diálogo com essas mesmas ciências económicas. Assim, “o equilíbrio dos mercados, se existe, permite fazer
emergir espontaneamente essa ordem do caos dos interesses contraditórios dos indivíduos que compõem uma sociedade ?” (3).
A noção de “racionalidade limitada” em que os supostos intervenientes no jogo de mercado – titulares ou não de acções na bolsa de
valores - são substituídos por autómatos (Gaël Giraud diz-nos que “o carácter aparentemente irrealista de uma hipótese não é uma
razão suficiente para a abandonar”), o carácter limitado da potencia de cálculo dos “jogadores” (intérpretes de uma espécie de sorteio)
faz-nos, em resposta à estratégia dos adversários, “optar por uma resposta, que se não é a melhor, é menos custosa a calcular”.
Com a globalização, a partir de 1993, o Estado-Nação deixou de ser a base única das trocas comerciais, suplantado pela
regionalização e pela transnacionalidade das empresas com a internacionalização dos mercados (4) : a América do Norte, como
espaço de uma “nação inacabada”, com a exclusão e a desigualdade desde o início (5). O documentário de cinema directo, “Attica”
(1973) de Cinda Firestone, ficou arquifamoso por ter sido distribuído mundialmente, sobretudo na Europa, em 1974, com a finalidade da
recolha de fundos para o processo movido pelos presos sobreviventes ao assalto policial - à cadeia do mesmo nome com 75% de afroamericanos -, a 9 de Setembro de 1971 e que fizera 42 mortes (32 presos e 10 reféns e guardas). Ora, esse processo jurídico,
relacionado com o maior evento penitenciário desde o fim da Guerra da Secessão, só teve fim em 2000 com a indemnização respectiva
aos queixosos.
Embora a lei dos direitos cívicos tivesse sido aprovada pelo Congresso Norte- Americano desde 1964, após pressão da comitiva de
Martin Luther King Jr..
Recentemente, foi pela primeira vez pedida desculpa pública pelo Senado Norte-Americano pelos suplícios dos linchados e
fotografados em vários estados, durante piqueniques dos anos vinte aos sessenta do século XX. Simultaneamente, com a descoberta,
confirmação e julgamento do responsável principal pelo desaparecimento em 1964 de três jovens activistas dos direitos cívicos – dois
brancos e um negro -, cujo caso estranho dera antes origem à ficção cinematográfica “Mississipi em Chamas” (Mississippi Burning,
1988) de Alan Parker.
NOTAS:
(1) Op.cit, Editora Paz e Terra SA., São Paulo 2000, págs. 53-68 in “IV-As duas vertentes da civilização industrial”.
(2) Peter Bachlin, “Histoire Économique du Cinéma”, La Nouvelle Édition, Paris 1947, págs. 192 e 193.
(3) Gaël Giraud, “La théorie des jeux”, Champs Université, Économie n.3001, Flammarion, France 2000, págs. 15 e 16, 256, 257 e 259
in “Le chaos et après ?” e “XI-La rationalitée limitée”.
(4) Renato Baumann, “Uma visão económica da globalização” in “O Brasil e a Economia Global”, Campus, Rio de Janeiro 1996, págs
43 e 44.
(5) Elise Marienstras, “Les mythes fondateurs de la nation américaine”, textes à l’appui, François Maspéro, Paris 1976, pág. 349.
11 de julho de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXXI)
Manuel Carvalheiro
No seu texto “Formação cultural do Brasil”, inserido no seu livrinho “O Longo Amanhecer: Reflexões sobre a
formação do Brasil” (1), que faz eco à sua obra mais famosa “Formação económica do Brasil”, publicada, quarenta
anos antes, como conclusão de um esforço de dedução ensaística iniciada em Cambridge em 1957, após Celso
Furtado ter largado as suas funções na CEPAL em Santiago do Chile, ele inventaria a base cultural do seu país,
recuando ao cruzamento colonial entre as fontes culturais europeias dos portugueses no Brasil arcaico das
capitanias do século XVI e a perda de identidade cultural dos aborígenes e dos africanos trazidos como escravos.
No estilo cultural que resultou de três séculos de período colonial, o Brasil foi a única colónia latino-americana que
acolheu o rei da sua própria potência colonizadora. O que explica que, mesmo após a independência em 1822, as
actividades mercantis das empresas agro-industriais continuaram nas mãos dos portugueses. Ao contrário da
tradição de levantamentos e insurreições locais, perpetrados pelas burguesias nacionais do império colonial
espanhol, situada à volta da data crítica de 1810, em Buenos Aires, Caracas e Cidade do México.
O cultural não é o livresco, nem a personagem caricaturizada do diplomata um intelectual de café, para se utilizar a gíria populista
refractária às “elites bovaristas” da “modernização dependente”, de que fala Celso Furtado no seu referido texto “Formação cultural do
Brasil” datado de 1999. Mas cabe recordar que, segundo o Fórum Económico Mundial, a mulher brasileira no capítulo genérico da
igualdade de oportunidades na sociedade actual com o homem, colocou o Brasil entre 58 países consultados em 51º lugar. Em
algumas das opções questionadas sobre essa desigualdade, ela é de facto menor no capítulo do salário, ficando o seu país então em
21º lugar naquela lista ; e já quanto ao acesso a cargos de decisão, o fosso é enorme, pois coloca o Brasil em 57º lugar, o penúltimo
daquela lista elaborada em função dos países consultados pelo Fórum Económico Mundial. Quanto ao consumo de livros, os brasileiros
lêem em média 2 livros por ano, menos que os argentinos que lêem 4 ou os americanos, 5 e os franceses, 7.
No século XVIII, Voltaire escreveu a novela da volta ao mundo iniciática da juventude europeia, “Cândido”, cujo objectivo consistia na
busca do El Dorado, algures situado numa região da cordilheira dos Andes. Mas, em que no final o casamento e a compra de uma
casinha com um jardim, reflectia a ambição cultural de tranquilidade, associada à de prosperidade. Depois da busca dos meios de
fortuna e da substituição entre “dois mundos ordenados : o da fé e o do conhecimento científico”, como sublinhara ainda Celso Furtado
no seu texto “Formação cultural do Brasil”.
O que Celso Furtado chamava de “ciclo barroco brasileiro”, resulta da primazia do “sistema de dominação social latifundiárioburocrático”, referenciando no século XVIII, em Minas Gerais: a força pré-Renascentista da Europa, consubstanciada num Portugal
retrógrado em relação às ideias latentes de reforma religiosa. Valores transmitidos pela herança cultural da pintura flamenga,
nomeadamente, que passou pela Península Ibérica e se foi alojar - através da Igreja e da Coroa - no Brasil arcaico da exploração
esclavagista e da conversão dos índios, de que um artista como o Aleijadinho personificou o trauma e os valores religiosos do préhumanismo.
Comportamento imitativo da Europa instalou-se no Brasil no final do século XVIII, com os alvores da revolução industrial. E instalara-se
como forma de progresso um quadro cultural em que a aculturação indianista rejeitava ver a cultura indígena tal como ela era,
instalando-se assim “o distanciamento entre elite e povo”, elite essa pan-europeia e povo aquele descaracterizado ou subavaliado pelos
padrões de referência que eram exteriores à herança cultural local. Essa consciência crítica só se instalaria mais tarde no século XX.
Os termos de heráldica e o princípio do brasão das Cortes europeias, nomeadamente portuguesa e espanhola, foram inspiradores na
cultura dos índios caduveo no Paraná e dos bororo no pantanal de Mato Grosso, sobretudo enquanto motivos picturais inscritos na pele
humana desses índios, visitados por um missionário como Sanches Labrador entre 1760 e 1770 e, depois, pelo italiano Boggiani em
1885. Antes de o ser por Levi-Strauss, segundo “Tristes Trópicos” (2) em 1935. “Porque é que os indígenas alteram a aparência do
rosto humano ?”, anotou Levi-Strauss esse reparo no diário do sacredote, que só via como explicação a força do demónio em enganar
o criador, pois “o xamã, assumindo atitudes horripilantes, com caretas e impercações, pretendia denotar o mal imitando-o” (3).
Mas, para esses índios, um índio ao natural não seria homem, por isso tinham necessidade de cobrir o corpo com tatuagens, que
imitassem o contacto com os conquistadores ; e, em 1857, quando viram um navio, no dia seguinte apareceriam com âncoras
desenhadas, como motivos artísticos estampados no corpo, no rio Paraguai. “Factores políticos e culturais” ofereceram “resistência à
destruição das estruturas pré-existentes”, à divulgação rápida mas irregular do modo capitalista de produção. (4). Engels, em 1894,
dizia em carta a Heinz Starkenburg a 25 de Janeiro, que a “base geográfica” se incluía entre as relações económicas, com os vestígios
de anteriores fases de desenvolvimento, assim como o “meio ambiente”.
Celso Furtado, em 1967, em Paris, organizou para a revista de Jean-Paul Sartre, “Les Temps Modernes”, uma colectânea de artigos ;
e, onde, no seu (5), recordou a ideia de futuro, associada à de Brasil, que durante a II Guerra Mundial o escritor austríaco Stefan Zweig
aí exilado (autor de uma biografia sobre Fernão Magalhães, depois de ter feito escala em Portugal em 1938 e de “Brasil, Pais do
Futuro” em 1941), havia feito aquela comparação, a respeito do seu novo local de residência, como fórmula para a “integração do
homem moderno no meio tropical” ; cultura essa “original e vigorosa” e resultante da “interacção de valores europeus, africanos e
ameríndios”.
Essa referida imagem de 1941, após ter feito uma viagem pela América Latina a partir de Nova Iorque, criada por um escritor que pouco
depois se haveria de suicidar com a sua mulher em 1942, divulgada contudo com a ideia de que o lugar comum continha uma faísca de
esperança, ficava mesmo assim ainda aquém de uma mesmíssima realidade, segundo Celso Furtado naquela sua introdução ao seu
estudo. Aliás ainda de plena actualidade, apesar de mais de uma geração ter decorrido sobre a sua redacção. Onde o retrocesso social
face à abundância de recursos naturais, devido ao seu pleno inaproveitamento, era uma explicação para a persistência dos privilégios
ocultos, que - quer antes como depois da inauguração de Brasília - haveriam de prevalecer como barreira ao desenvolvimento humano.
Num documentário apresentado em 2002 sob a direcção de Romane Melis e intitulado “Brazilian Cinema in Search of its Identities” (O
cinema brasileiro à procura das suas identidades), referiu-se entre outros a feitura de uma produção cinematográfica recordando em
2001 a passagem sessenta anos antes do escritor austríaco por terras de Santa Cruz.
NOTAS :
(1) Op. Cit., Paz e Terra (2ª edição), São Paulo 1999, págs. 57-67, cita António Sérgio como historiador de referência neste caso.
(2) Op. Cit., Colecção Problemas n.32, Portugália Editora, Lisboa 1976, págs. 232 e 233 in “XX-Uma Sociedade Indígena e os seu
estilo”
(3) Massimo Canevacci, “Antropologia do Cinema : do mito à industria cultural”, Editora Brasiliense, São Paulo 1984, págs. 156 e 157 in
“O pneuma mimético, a máscara e o imaginário”.
(4) Op. Cit., Dinalivro, Lisboa 1976, págs. 43 e 44 in “Capitalismo e modo capitalista de produção”.
(5) Celso Furtado, “Brasil : da República Oligárquica ao Estado Militar” in “Brasil : Tempos Modernos”, colecção Estudos Brasileiros
n.23, Rio de Janeiro 1979 (Paris l967), pág. 1.
18 de julho de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXXII)
Manuel Carvalheiro
No filme de Clint Eastwood, “Cowboys do espaço” (2002), um problema dito de “tecnologia obsoleta” leva
astronautas norte-americanos na reforma a decidirem-se a aceitar uma última missão no espaço, cinquenta anos
depois de se ter iniciado a aventura cósmica. Catastrofismo que motivara antes “Dr. No”, filme de Terence Young
em 1962 que nos revelava o arquétipo do anti-Nemo (inspirado ao que parece nos “seriais” de Fu-Manchu do
tempo do cinema mudo).
Alojado numa suposta ilhota da Chave do Caranguejo (Crab Key), algures na
Jamaica, filho de um missionário alemão e de uma freira chinesa, dedicado a experiências com a radioactividade e
a prejudicar o lançamento do então programa espacial Mercury. Nessa altura (1), supunha-se já que uma viagem
a Marte, onde a gravidade era apenas de 1/3 da da Terra, serviria talvez para curar doenças cancerígenas. Já
que, no espectro das radiações cósmicas, poderia vir a descobrir-se qualquer indício que viesse a permitir, talvez, lá para o ano 3000, a
respectiva cura.
Esta parábola serôdia chamava, no entanto, a atenção para as consequências de uma rivalidade entre modelos sócio-económicos,
cujos padrões se encontravam à mercê de uma tecnologia de ponta, que contribuiu, pelo seu não acompanhamento – a partir de 1963
e da estagnação cibernética, que se agravou a seguir ao acidente de Tchernobyl em 1986 -, para o atenuar dessa rivalidade
geopolítica. Agora substituída por complementar cooperação, na competição pela sua influência no crescimento económico. Facto
esse, que permitiu que se libertasse uma sociedade: cujo desenvolvimento alcançaria a libertação das forças produtivas e a
harmonização das relações de produção. Voltadas estas, agora, para a paz, a justiça e o trabalho, compensatório e vocacionado, não
apenas para a subsistência humana, mas também para o fortalecimento dos tempos livres e da vivência existencial condigna com a
comunidade.
É significativo reparar como um certo revivalismo dramatúrgico e espacial volta a ser entretanto tema de um filme, “Sonhando com o
espaço” (2005) de Alexei Uchitel, que obteve recentemente o prémio do Festival de Moscovo e que engrena colateralmente na figura
emblemática e de origem modesta do cosmonauta Yuri Gagarine, famoso em 1961 aos vinte e seis anos por ter sido o primeiro a fazer
uma órbita extraterrestre numa cápsula espacial. Esse tema romântico evocado supostamente num porto que podia ser Murmansk
(filmado no entanto em Cronstadt) a partir de 1957, elege a liberdade dessa época tal como era concebida pela juventude de então.
Mas no contexto distanciado da actual Federação da Rússia e, contudo, com a já então tentativa de descoberta de outros horizontes,
recuperada agora para outra geração meio século depois.
Isaiah Berlin (2), em 1959, cerca de dois anos depois da primeira colocação no espaço sideral de um satélite, o Sputnik a 4 de Outubro
de 1957, que inauguraria a aventura espacial colocando em xeque o complexo militar-industrial norte-americano, com os sucessivos
desaires, dizia que existia dois factores que haviam moldado até então o século XX : 1) o desenvolvimento das ciências naturais e da
tecnologia; e, 2) aquilo que ele apelidou eufemisticamente de “desdobramentos” da Revolução Russa. Desdobramentos esses, que não
haviam sido previstos pelos pensadores argutos do século XIX, como o nacionalismo, o racismo, o fanatismo e a tirania. E, anulando,
desse modo, segundo ele, os efeitos benéficos daquelas descobertas e utilizações tecnológicas das ciências. Isaiah Berlin dizia,
interrogando-se, também ainda em 1959 no mesmo texto, como Anaxágoras havia deduzido e intuído na antiga Grécia de Péricles, que
“a Lua era muitas vezes maior que o Peloponeso, embora parecesse tão pequena no céu”. Posição que, talvez, viesse a convergir, de
alguma maneira, com a que, actualmente, tem um historiador social como Eric Hobsbawm.
Luis Carlos Bresser-Pereira, que fora ministro da Fazenda quando Celso Furtado era ministro da Cultura, durante um dos governos da
presidência de José Sarney (1985-1990), num texto reflexivo aprofundado e sintético sobre o conjunto da obra daquele economista
brasileiro que formou directa ou indirectamente três gerações comentava o seguinte: “Ser heterodoxo é desenvolver novas teorias, a
mais das vezes a partir da identificação de novos factos históricos que modificam uma certa economia e quadro social estabelecido e
tornando inadequadas teorias pré-existentes” (3).
Na república do Uzbequistão, ao contrário de outras repúblicas da ex-União Soviética em que a população rural e camponesa
decresceu a partir de 1980, na última década 1988-1998 cresceu na proporção de 57,7 % em Janeiro de 1984 para 61 % em Janeiro de
1994. Sem contudo a área cultivável se ter então modificado no mesmo período temporal (4), num território desértico em que só 10%
da terra é habitável por enquanto. Sobretudo, rica em oásis e nas margens dos rios, pois o restante - incluindo pastagens nas
montanhas circundantes - só suporta em última instância o carneiro de lã Caracolum.
Mas, mesmo assim, havia em média cinco vezes mais habitantes nas áreas rurais do Uzbequistão, o que dava 0,37 hectares por
habitante rural, comparados com os dois hectares da Ucrânia e os 0,75 hectares na Moldávia para cada habitante da população rural
respectiva. Estas disparidades estruturais no Uzbequistão, podendo estar interrelacionadas com a recente crise política na fronteira
com a Quirguízia em Maio de 2005, obrigando por consequência a grandes correntes migratórias de inelutável peso e contrapeso
económico a curto e médio prazos. É assim de recordar a eficiência escolar e pedagógica da personagem de um professor recémletrado e jovem em 1924, no filme de Andrey Kontchalovsky, “O primeiro Mestre” (1965), cuja acção a preto e branco muito contrastado
se insere numa região em que o próprio alfabetizador era meio analfabeto. Convencendo, contudo, com muita tenacidade os
camponeses a mandarem os filhos à escola, naquele contexto de servidão abreviada pelas circunstâncias do eco da revolução,
também por arrasto anti-feudal.
O conceito de turbulência é empregue, sempre que modificações no ambiente são difíceis de prever, devido também à complexidade
da sua aceleração desenvolvimentista. Graças ao incremento de novas interacções, devido ao melhoramento das comunicações e dos
transportes. A noção de futuro caótico resulta da acumulação não distribuída aos humanos, que trabalharam para que houvesse
excedente de produção. O desafio que cabe aos administradores das empresas, é como é que poderão sobreviver a um futuro não
previsto com perfeição e, pelo contrário, onde a turbulência do ambiente, enquanto inovação coabita com a “cacofonia de falsas
partidas” (5). Sendo a transição um período de desequilíbrio de conhecimentos entre um mundo feito passado recente e um novo
mundo.
As cadências de Taylor e de Ford, a partir de 1911, foram ridicularizadas em “Tempos Modernos” (1936) de Charles Chaplin, em que o
trabalhador como peça de uma máquina continua, mais de meio século depois daquela realização cómica, por falta de preparação
social dos empresários da época como de agora, para a desejada interactividade no trabalho alucinante e alienante.
NOTAS :
(1) Robert Lachene, “Feu vert pour l’espace”, Colléction Savoir et Connaître, Éditions La Farandole, Paris 1961, pág. 124 in “L’ère
cosmique”.
(2) Isaiah Berlin, “Limites da Utopia: capítulos da história das ideias”, Companhia das Letras, São Paulo 1991 (1959), págs. 13 e 17 in
“A busca do ideal”.
(3) Op. Cit., www.redcelsofurtado.edu.mx, pág. 7 in Luis Carlos Bresser- Pereira e José Márcio Rego, org., “A Grande Esperança em
Celso Furtado”, Editora 34, São Paulo 2001.
(4) Zvi Lerman, “Land reform in Uzbekistan” in “Land Reform in the Former Soviet Union and Eastern Europe”, Edited by Stephen K.
Wegren, Routledge, London and New York 1998, págs. 137 e 138 in “The Pre-1990 Agricultural System”.
(5) Russell L. Ackoff, “The Democratic Corporation”, Oxford University Press, New York/Oxford 1994, págs. 4, 7 e 33.
25 de julho de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXXIII)
Manuel Carvalheiro
Os modelos que excluem variáveis relacionadas com o avanço tecnológico, como na teoria económica ortodoxa,
estão condenados a dar respostas inadequadas, apesar de funcionarem com dados em princípio fidedignos ou
mesmo exactos. O aumento de produtividade, a competição entre empresas nas indústrias electrónicas e
farmacêuticas, nomeadamente, são padrões de comércio internacional nos bens manufacturados. Constituem, por
conseguinte, uma extensa variedade de fenómenos económicos, onde o avanço tecnológico é uma força central,
como já, em 1982, assentavam comummente os economistas de então, tais como aqueles que garantiam o
seguinte: “O síndroma intelectual seguramente marca o após II Guerra Mundial acerca da teorização do
crescimento económico a longo prazo” (1).
A região da Renânia do Norte da Vestefália, na área do Rühr onde a indústria do aço imperou, pela abstenção
eleitoral operária face à crise de desempreego de 18,4%, chegou a índices semelhantes a quase tanto como nas
antigas regiões a leste da Alemanha antes da reunificação. Em Duisburg desde 1960 que se perderam 97 mil empregos, para uma
população de 504 mil habitantes. Na região há 12,1% de desemprego. Em finais de 2008, será fechada a última mina de carvão
existente em Duisburg, eliminando 3500 empregos e não é em “dois, três ou cinco anos “ que se faz uma “reviravolta estrutural” numa
cidade como esta, afirma o enviado especial do jornal françês “Le Monde” (Adrien de Tricornot) na edição de 22 de Maio de 2005, fimde-semana eleitoral que daria a vitória à democracia cristã.
Em “A Tragédia da Mina” (1931) de G.W. Pabst, há todo um panorama que se repete mais de meio século depois noutros horizontes
geográficos que não a Alemanha de Weimar, sociologia fílmica essa que revela apesar de tudo um feixe de problemas gerados pela
revolução industrial, desfazada na Europa de entre as duas grandes guerras mineiros franceses próximo da fronteira do Sarre são
socorridos pelos seus colegas alemães, um deles usando uma máscara anti-gás ainda da I Guerra mundial, o que motiva uma cena
com um incidente com a desconfiança de um socorrido. trêsanos antes da ascensão do nacional-socialismo (de facto inspirado na
catástrofe mineira de Courrières, em 1906).
Agora, mais de meio século passado, os sindicatos em Duisburg – que, em 1965, forçaram o patronato a um primeiro congresso sobre
a então recente automação da indústria alemã e a perda de postos de trabalho – acusam a falta de responsabilidade social das
empresas e os excessos do capitalismo, graças à subida dos preços do aço e às reformas sociais favoráveis ao patronato, feitas pelo
governo social-democrata.
O efeito de demonstração foi teorizado em 1949 por James S. Dusenberry em Harvard, como relatando o comportamento do
consumidor impulsionado, estimulado e contagiado “pelos níveis de vida de outros consumidores do mesmo país” (2). Daí, em 1953,
Ragner Nurske tê-lo extrapolado para a esfera económica dos países em desenvolvimento, que em vez de darem prioridade antes à
formação de capital e de crescimento a longo prazo, como se fossem por isso novos ricos (enquanto elites de um novo poder
independente politicamente), quiseram elevar de imediato os níveis de consumo da população carente. Dirigida por uma minoria que
herdou dos governos coloniais o sufocamento do desenvolvimento de indústrias indígenas, tal como em 1957 Gunnar Myrdal havia
descrito esses “efeitos para trás” do crescimento, no seu livro “A Teoria Económica nas Regiões Subdesenvolvidas”.
Em 1960, o governo japonês decidiu construir um aeroporto, que abastecesse o complexo industrial petroquímico nos arredores da
capital, no seu esforço de “dobrar a renda” com vista ao incremento de desenvolvimento industrial do país, após a fase de reconstrução
que se seguira à II Guerra Mundial e que motivara um filme de Akira Kurozawa, “Vivo no medo” (1955), em que o herói negativo do
filme, à beira da loucura com as experiências atómicas no arquipélago de Bikini e a sua natureza belicista, tenciona emigrar para o
Brasil para fugir a nova calamidade no mar do Japão.
O movimento Sanrizuka, conseguiu adiar a inauguração do aeroporto em 1978, subsequente a lutas que atrasariam esse evento desde
1970 mais de um milhão de manifestantes pela luta contra a poluição sonora e pela irrigação daquelas terras que albergaram 120
famílias de agricultores, permitiram a essa “comunidade disjuntiva concreta” (3) revelar a natureza daquele crescimento económico em
nome do progresso das populações, sem a consulta democrática dessas mesmas populações. Pondo em causa os fundamentos
participativos da democracia naquela sociedade de sucesso industrial. Essa transformação económica acabou por ter custos sociais
desproporcionados no seu desenvolvimento.
A forma como, em 1976, Celso Furtado via a economia japonesa e o seu Factor de expansão – que ele considerava ter raízes
históricas na disciplina tradicionalista do nivelamento da estratificação social –, talvez, actualmente, após a crise financeira asiática de
1997, pudesse ser revista pelo próprio, se o tivesse podido, agora, fazê-lo. Mas, no essencial, o que o economista brasileiro dissera no
seu livro de então, “Prefácio à Nova Economia Política” (4), inseria-se num subcapítulo intitulado “O custo de reprodução da população”.
E baseava-se, a propósito, na sua expectativa face a duas sociedades capitalistas mais igualitárias: a Suécia e o Japão. No caso do
Japão, “a organização da empresa não se funda na concorrência entre aqueles que a compõem”, já que a carreira se assemelha à de
um funcionário público. Sendo que a pressão social para elevar o “custo de reprodução da população é fraca”. O potencial da expansão
da economia japonesa, resultaria do facto da produtividade social aumentar, como consequência a esse estado de espírito de sacrifício
carreirista e, correlativamente, à “homogeneização nos padrões de consumo”.
Esse potencial de expansão, no passado servia para financiar o militarismo nipónico e no após II Guerra Mundial, na canalização para a
“acumulação no sistema produtivo”, apesar do Japão ter limitações na sua “base de recursos naturais”, como disse Celso Furtado. A
tradição na organização social no Japão refreou a tendência às desigualdades sociais na economia capitalista, conservando no entanto
a estratificação social do país com um “custo relativamente baixo”, como consequência. Dizia Einstein, a um escritor que o visitara em
Princeton a 14 de Maio de 1946, a propósito da bomba atómica em Hiroxima e Nagasaqui e lamentando a morte de Roosevelt, antes
do final da II Guerra Mundial: “O senhor percebe que o mais perigoso é contar com a lógica” (5). A explosão da primeira bomba atómica
experimental “Trinity” fora a 16 de Julho de 1945, no deserto do Novo México, confirmando o esforço de pesquisa do projecto
Manhattan encabeçado por Robert Openheimer, fez agora sessenta anos.
NOTAS:
(1) Richard R. Nelson and Sidney G. Winter, “An Evolutionary Theory of Economic Change”, The Belknap Press of Harvard University
Press, Cambridge Massachusetts and London 1982, pág. 27 in “2-The Need for an Evolutionary Theory”.
(2) Richard T. Gill, “Introdução ao Desenvolvimento Económico” (1963), Estudos de Economia Moderna n.20, Clássica Editora, Porto
1972, págs. 162 e 163.
(3) David E. Apter, “Rethinking Development : Modernization, Dependence and Postmodern Politics”, Sage Publications, Los
Angeles/London/New Delhi 1987, pág. 229 in “7 - Sanrizuka – A Case of Violent Protest in a Multiparty State”.
(4) Op. cit., Dinalivro, Lisboa 1976, págs. 22 e 23.
(5) Ilya Ehrenburg, “Memórias : no entardecer da vida (1945-1953)”, Vol. VI, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1970, pág. 79.
5 de setembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXXVI)
Quanto à redução da fonte do ouro, repare-se que isso coincide com a sua penúria entre 1873 e 1898, com o consequente recuo dos preços (5), o que levou a uma euforia,
depois, com a descoberta de novas minas de ouro, nomeadamente na África do Sul.
Manuel Carvalheiro
A retórica desenvolvimentista voltava-se contra o próprio presidente Juscelino Kubitscheck na sua, até então,
política económica para o Nordeste brasileiro. Celso Furtado foi então, também, nomeado pelo Banco do Nordeste
para fazer parte de um grupo de trabalho sob recomendação de Sette Câmara do governo civil do presidente.
Pouco depois, Celso Furtado descobriria no seu inquérito “in loco” que a água represada era para saciar apenas o
gado dos fazendeiros e que, em contrapartida, era descurada flagrantemente a sua irrigação, estando igualmente
atrasados os projectos hidroeléctricos, dizendo ele que se “atendia ao latifundiário,
não aos miseráveis”, segundo Claudio Bojunga em “JK – O artista do impossível”.
Esse mesmo biógrafo de JK remetia-nos para uma anotação de final de livro,
resumindo o que Celso Furtado concluíra, nessa altura dos finais dos anos
cinquenta do século passado, sobre a sua hoje histórica visita ao Nordeste, cujo
imaginário
colectivo era preenchido pelas imagens do filme de Lima Barreto, “O Cangaceiro”
(1953),
realizado a preto e branco, como se por essa altura de um filme mexicano de
Emilio
Fernandez se tratasse em 1935. Algo como depois em “remake”, este a cores,
viria a fazer
Ismael Rodriguez em “La Cucaracha” (1959), visão folclórica de exportação
originária dos
anos trinta e cuja temática remontava à revolução de 1910 e ao papel das
“soldaderas”. Mulheres que seguiam os peões revoltados, abastecendo-os em munições e em alimentação nas pausas dos combates,
único episódio não rodado do inacabado “Que Viva México!” de S.M.Eisenstein, rodado em 1930.
Na edição “Brasil: Tempos Modernos”, do número especial de 1967 da revista francesa do mesmo nome, a problemática da reforma
agrária no Nordeste, no período 1955-1964, chocava com o seguinte argumento: acabar com as grandes propriedades para dividir as
terras em minifúndios era repetir o esquema mexicano demasiado fora do seu tempo histórico; não aumentando por isso o emprego
agrícola, nem melhorando a produtividade e o nível de vida no campo (1). Nesse aspecto, o governador do estado de Pernambuco a
partir de 1962, Miguel Arraes, senador falecido a 13 de Agosto passado, ao instituir o salário mínimo obrigatório aos assalariados
agrícolas, promoveu a medida social mais coerente dessa época.
Ora, Celso Furtado havia concluído, da sua rápida e abrangente inspecção, com apenas três semanas para escrever um relatório
operacional, descontando o período do Carnaval, o seguinte: 1) a aridez era consequência do “solo raso e cristalino que impedia a
absorção da água” e não da falta de precipitação, já que havia várias colheitas por ano nos oásis das margens do rio S.Francisco e nos
pés de serras; 2) era desconhecida a periodicidade das grandes secas nas “regiões de baixa precipitação”, porque havia imprevidência
das autoridades, que se escudaram nessa falsa previsibilidade bienal, armazenando apenas água para o gado sem desenvolver ali
uma economia ecologicamente adaptada e “sem recorrer às soluções de emergência do governo central” como panaceia de círculo
vicioso; e, 3) no século XIX constituiu-se entre o minifúndio e o latifúndio uma economia agrícola tripla, quer de subsistência como
comercial e de pecuária, em que os próprios fazendeiros a pouco e pouco prevaleceram sobre os trabalhadores da terra, equiparados
aos servos sucessores do esclavagismo do ciclo do açúcar do século XVI.
Sendo, por isso, obrigados a “migrar para não morrer”, porque a produção de alimentos se fazia nas terras húmidas do litoral nordestino
e apenas aí. Quando, antes, os trabalhadores daí, haviam sido expulsos para a periferia do sertão pela crise de mão-de-obra.
A propósito da influência da colonização portuguesa no Nordeste brasileiro, o sociólogo Gilberto Freyre, que fora colaborador
constrangido da SUDENE e alimentara uma crise súbita de desconfiança financeira em 1963, perante a direcção de Celso Furtado que
o havia convidado em 1959, ainda no tempo de Juscelino Kubitscheck e contra o parecer deste último, aquele recordaria em tempos
recuados, em 1932, o caso de um latifundiário de origem eclesiástica, que no século XVII no Piaúi deixara “trinta fazendas” quando
morrera (2). Em “Casa na Areia” (2003), o tema do filme em quatro épocas ao longo do século XX, sempre com a personagem da
mesma mulher na mesma moradia no litoral do Maranhão, é uma alegoria sobre a passagem de gerações. Os “currais eleitorais”
impediam, no entanto, a solução “natural” e medieval de extermínio pela sede e fome ou pelo êxodo em massa, comentou o biógrafo de
JK a propósito, em 2001.
Entretanto, Celso Furtado reparou que a situação de Fortaleza como capital do estado do Ceará, era lamentável quanto à energia
eléctrica disponível então e ainda sem água canalizada em 1958/59. Sendo que a indústria têxtil estava em regime de sobremprego e a
rede rodoviária não existia entre os próprios estados nordestinos brasileiros e os do centro e do sul do país, só sendo possível o
transporte marítimo pelo litoral entre Belém e Recife ou em casos mais raros através de avião. A industrialização do Nordeste era
precária e era barrada pelos “industriais da seca”, proprietários dos “currais eleitorais” e dominantes no Congresso, recolhendo a ajuda
financeira federal.
Porém, Celso Furtado, na reunião com JK em Janeiro de 1959, defendeu, em “brainstorm” solicitado pelo presidente, uma “política
global de desenvolvimento”, porque a economia nordestina estava desagregada e não resistia a medidas e iniciativas desconexas
numa área monopolizada pela cana- de-açúcar, contudo pedindo e introduzindo novos empresários para neutralizar os oligarcas
protegidos pelo governo. Em Março de 1959 foi, então, criada a SUDENE e Celso Furtado apresentou um relatório.
Em 1959, Celso Furtado com o apoio do presidente Juscelino Kubitscheck, teve como objectivo nacional não deixar que os nove
estados do Nordeste brasileiro (sete, mais a Bahia e o Maranhão) continuassem a ter “30% de renda ‘per capita’ da dos habitantes dos
estados costeiros do Centro-Sul”, segundo Claudio Bojunga em “JK – O artista do impossível” : “As classes brasileiras, tímidas,
cautelosas, sem imaginação, estavam sendo sacudidas” (3). Aquando da ruptura de negociações com o FMI de então, Juscelino
Kubitscheck convocaria uma série de ministros e conselheiros, entre eles Celso Furtado.
Mais tarde, após a sua morte num desastre de viação em 1976, o próprio Carlos Lacerda que a ele se opusera com veemência
enquanto governador do estado de Guanabara (capital, Rio de Janeiro), render-lhe-ia homenagem póstuma: “Foi o fim de ele ter tido a
coragem de fazer frente ao Fundo Monetário Internacional, enquanto que nós fizemos uma revolução” (referia-se ao golpe de estado de
1964), “para nos submetermos a ele. (...) A moeda era a virgindade dos povos. Enquanto isso continha-se o desenvolvimento
brasileiro”. Segundo Celso Furtado em “A Fantasia Desfeita”, os investimentos públicos na construção de Brasília elevaram a sua taxa
de 14,5% em 1956, para 20,6% em 1959, acarretando a aceleração do crescimento económico (4).
Mais tarde, durante a presidência de João Goulart (1961-1964), a plataforma desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck “estava
superada pela ousada proposta de alterações estruturais na sociedade brasileira”. É neste ambiente que “O Pagador de Promessas”
(1961) de Anselmo Duarte recebeu a Palma de Ouro em Cannes, mostrando ironicamente o papel da igreja junto dos deserdados na
Bahia e que serve de amortecedor nas revoltas sociais. Em 1962, Roberto Farias havia realizado “Assalto ao trem pagador”, sobre a
criminalidade nas favelas do Rio de Janeiro. Mas Celso Furtado não conseguiria compreensão durante a tentativa de aplicação do seu
Plano Trienal, que pretendia reduzir “o nível de inflação dos 52% de 1962 para 10% em 1965, mantendo um crescimento real de 7%”,
distribuindo também melhor a riqueza e liquidando assim os “gargalos estruturais do desenvolvimento económico” no Nordeste.
Mas, Celso Furtado, porém, afastar-se-ia quando se apercebeu que o Plano Trienal que defendia na luta contra a inflação, patinava na
radicalização e obstrução de Lionel Brizola, que tinha grande influência na reforma social da administração Goulart, enquanto
governador do estado do Rio Grande do Sul, para além de ser cunhado do próprio presidente brasileiro de então. Mesmo assim, Afonso
Arinos, muito mais tarde não conseguiria, após o golpe militar de 1964, eliminar o nome de Celso Furtado como moderado da lista dos
perseguidos elaborada pelo general Costa e Silva, chefe da intentona anti-constitucional e obreiro dos posteriores e substitutivos actos
institucionais.
Segundo François Perroux, nos últimos trinta anos – referia-se à época entre 1957 e 1981 – “a insuficiência da cobertura nos custos do
estatuto humano da vida” desarticulava as economias em vias de desenvolvimento, havendo necessidade de diálogo, para a “partilha
do valor acrescentado ou dos ganhos de produtividade”. Sendo que o crescimento económico dependeu também do desempenho
fundamental dos valores culturais no custo do homem e da mulher no desenvolvimento dos mercados isolados e sem comunicação ou
transportes suficientes entre eles, já divididos por questões étnicas, tribais e linguísticas: “Os valores culturais estão na base das
motivações que travam ou aceleram o crescimento e da legitimação dos objectivos do crescimento” (5).
NOTAS:
(1) Antonio Callado, “A volta às cooperativas da morte” in Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro 1979, pág. 188.
(2) Gilberto Freyre, “Casa-grande e senzala”, Livros do Brasil, Lisboa 2001, pág. 207 in “III-O colonizador português: antecedentes e
predisposições”.
(3) Op. Cit., Editora Objectiva, Rio de Janeiro 2001, págs. 520, 524, 532, 533, 599, 600 e 628.
(4) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro 1989, pág. 34 in “A Operação Nordeste: Prolegómenos”.
(5) François Perroux, “Ensaio sobre a Filosofia do Desenvolvimento”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1987, págs. 60 e 61 in “IIIO Desenvolvimento”.
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A propósito de Celso Furtado, uma professora de economia da Universidade de São Paulo, Leda Paulani (em “Celso Furtado e a
dialéctica do desenvolvimento”, Margem Esquerda n.5, São Paulo 2005), garantiu o seguinte: “Em sua autobiografia ele afirma que
estava interessado no desenrolar dos acontecimentos no tempo, de modo que substituiu o par centro-periferia, essencialmente
sincrónico, pela idéia de ‘economia colonial’, já que ela lhe permitia inserir o país em seu quadro histórico”.
Em 1897, as relações comerciais entre Portugal e o Brasil atravessavam uma crise mais grave do que o habitual (1). Desde que, em
1873, as exportações portuguesas devolviam a Portugal cerca de três mil contos a mais. Progredindo até 1893 com dez mil contos
anuais. Exportações essas avaliadas, no entanto, por Silva Cordeiro, em quinze mil contos anuais, no seu livro “A crise e os seus
aspectos moraes”, segundo Teixeira Bastos (1857-1902) amigo do futuro presidente Teófilo Braga (1843-1924), bem antes da
implantação da República em Portugal em 1910.
O “gold standard” imperou na Europa a partir do seu implemento com sucesso na Inglaterra, depois da segunda metade do século XIX.
Tendo em conta a adopção pioneira do padrão ouro, em Génova, em 1447, como resposta competitiva ao uso de ducados no comércio
de Veneza, que prevalecera até essa data. Reimplantado mais tarde, em 1922, como conclusão de uma conferência também ainda em
Génova. Na América Latina, o Chile foi o primeiro país cujas elites políticas e económicas perceberam as alterações estruturais que
provocava o “gold standard” na economia local e nacional, quando não seguidos os parâmetros financeiros da moeda própria sempre
acorrentada aos valores de câmbio ditados pelos interesses do exterior, segundo Celso Furtado no seu livrinho “O Longo Amanhecer:
Reflexões sobre a Formação do Brasil” (2).
Calculou-se, em 1961, que 1/3 do PNB português provinha das suas províncias ultramarinas ao passo que só 1/20 do PNB belga
provinha em 1960 do Congo Belga antes da sua independência. Mas o essencial da sua economia de exportação-reexportação (3)
provinha dos ganhos portugueses com as divisas estrangeiras do comércio dos seus territórios sob sua administração, tendo em conta
que o “Portugal, do Minho a Timor” da propaganda conservadora veiculada pelo ministro Franco Nogueira (democrata até 1945, crítico
literário até 1960), lhe havia permitido ser recebido pelo presidente Kennedy cerca de um mês antes do trágico Outono de 1963. Já em
1959 o embaixador Álvaro Lins no seu livro “Missão em Portugal”, publicado um ano depois no Brasil, se lamentava da concorrência
que o café de Angola fazia na Europa ao do seu país no quadro da balança de pagamentos de Portugal na então OCEE/OEEC criada
em 1947 no quadro do Plano Marshall de reconstrução e desenvolvimento.
Ora, no meio da rivalidade euro-americana-soviética, os russos no comércio bilateral com a Índia pediram que a rúpia pudesse ser
convertida com base na paridade em ouro. Mas tendo sofrido inicialmente uma resposta negativa das autoridades indianas, estas
pouco depois em 1966 seriam obrigadas a uma desvalorização da sua moeda, pelo que qualquer produto novo importado sofreria um
aumento de 57% e qualquer produto indiano exportado para a então União Soviética teria um aumento de 47%. Vinte anos após a
independência da Índia, a sua economia nacional “estava ainda dependente principalmente das monções – porque os vastos recursos
em águas subterrâneas tinham ficado largamente inexplorados” (4). Triste sina que já havia revelado o filme “Pather Panchali” (1955)
de Satyajit Ray, sobre os arrozais e a luta pela sobrevivência, para além das condições climatéricas imprevisíveis; enganando-se a
fome com métodos de cultivo ancestrais ao arrepio da rentabilidade tecnológica que a Comissão do Plano então recusava, fugindo
assim as populações dos campos para as cidades.
A mesma professora, Leda Paulani, ainda a propósito de Celso Furtado sintetizaria: “Em função disso, ele percebeu que a deterioração
dos termos de troca, descoberta por Prebisch, constituía na realidade o corolário natural da vinculação Metrópole-Colónia e um aspecto
particular e historicamente específico da tendência geral do capitalismo de concentrar poder económico”.
Apesar do aparente irrealismo geopolítico do filme “Queimada” (1969) de Gillo Pontecorvo, revelava-se a insensatez obstinada e nada
liberal da colonização mais absolutista no início do século XIX, algures num entreposto de açúcar nas Caraíbas, aonde o esclavagismo
predominava para além do próprio defendido até pouco antes pelos britânicos. Um negro, José Dolores, encabeça então uma revolta
que conduz à independência da ilha (talvez equiparada à de Fernando de Noronha, a nordeste do estado de Rio Grande do Norte,
capital Natal, no Brasil arcaico), que posteriormente seria neo-colonizada por uma companhia mercantil. Porém, Jean-A. Gili, que
organizara uma primeira semana do cinema português em Nice em 1972, um ano antes ao fazer a recensão deste filme polémico na
revista “Cinéma 71” de Março, após o mesmo ter sido capa do número de Fevereiro, dizia tratar-se de uma colónia portuguesa nas
Pequenas Antilhas, enquanto que mais recentemente os coordenadores do dicionário de filmes editado pela Larousse em 1995
atribuíram àquela ilha o estatuto espanhol.
No decénio 1880-89, entraram 200 mil imigrantes europeus no Brasil, sendo que já então 1/3 da população brasileira vivia no Nordeste
; ora, actualmente, segundo dados de 2003, embora a população absoluta seja muitíssimo maior, só menos de 1/5 da população vive
nos estados da mesma região. Mas, naquela época, no século XIX, o ministro da Fazenda era Rui Barbosa, uma personalidade de
renome internacional como positivista e progressista, que criara três bancos de emissão, um na Bahia, outro no Rio de Janeiro e
estoutro no Rio Grande do Sul, isto no ano da inauguração da Torre Eiffel em Paris, 1889, data também do primeiro governo
republicano brasileiro, sendo que ele se dizia segundo ainda Celso Furtado um “arauto da ortodoxia do padrão Ouro”, tendo em conta
que 10% da moeda circulante provinha do crédito estatal. No período de 1890-99, esse mesmo dinheiro circulante triplicou mesmo,
aproximando-se o ciclo da produção da borracha na Amazónia. Rui Barbosa (1849-1923) falharia na sua candidatura para a eleição da
presidência do Brasil em 1910.
Mas, em 1889, o Brasil transformara-se numa república, modificando as instituições e as políticas económicas dos seus estados
federados. Provocando, assim, uma sucessiva descida anormal do câmbio de 25/28e para 8e, reduzindo, deste modo, a fonte de ouro.
Que jorrava desde o tempo em que o historiador Alexandre Herculano dissera, que o Brasil ao deixar de ser colónia portuguesa passara
a ser a melhor colónia nacional, com a expatriação periódica de capitais devido aos rendimentos dos repatriados. No entanto, em 1897,
por exemplo, o consumo dos vinhos portugueses no Brasil passara a deparar com a competitividade acrescida dos vinhos espanhóis,
franceses, italianos e alemães. Quanto à redução da fonte do ouro, repare-se que isso coincide com a sua penúria entre 1873 e 1898,
com o consequente recuo dos preços (5), o que levou a uma euforia, depois, com a descoberta de novas minas de ouro,
nomeadamente na África do Sul.
NOTAS:
(1) Teixeira Bastos, “Interesses Nacionaes”, Livraria Chardron, Porto 1897, págs. 290 e 291 in “VIII-As relações commerciaes com o
Brasil”.
(2) Op. cit., Paz e Terra (2ª edição), Rio de Janeiro 1999, pág. 112 in “Rui Barbosa e a Política Financeira do Primeiro Governo
Republicano”.
(3) Perry Anderson, “Le Portugal et la fin de l’ultracolonialisme”, Cahiers Libres n.44, François Maspéro, Paris 1963, págs. 139 e 140 in
“Perspectives économiques”.
(4) Durga Das, “India from Curzon to Nehru & after”, Rupa & Co/Collins Ltd, New Delhi 1977 (1971), págs. 309 e 310 in “Chapter 10 –
Planned Development”.
(5) Jean Lecerf, «L’or et les monnaies : histoire d’une crise», collection Idées n. 186, Éditions Gallimard, Paris 1969, pág. 13.
12 de setembro 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXXVIII)
Manuel Carvalheiro
O teste de 20 imagens elaborado por Henry Murray entre 1935 e 1943 em Harvard, que serviria durante a II
Guerra Mundial para pilotos e pára-quedistas, era no entanto inicialmente para ser aplicado a adolescentes de
catorze anos, que quisessem fazer alpinismo ou remar à beira-litoral, tal como o
seu autor fizera durante as férias que passara na Suíça durante a sua juventude
em 1930 (1).
Relator do movimento pela independência da Índia desde 1918 (até mesmo no
quadro da anexação de Goa, a 18 de Dezembro de 1961), com talento oficioso,
sagaz e minucioso quanto ao método de exposição, Durga Das faleceu em 1974.
Mas, em 1969, no seu extenso e elucidativo ensaio “India from Curzon to Nehru &
after”(2), referiu-se com pertinência, franqueza e argúcia ao paradoxo do
desenvolvimento na Índia, que entrou em colapso com a seca de 1967. Visto que
Nehru tinha sido
até 1964 mais um político do que um economista, ao ter promovido
exclusivamente a electrificação prioritária do seu imenso país; no entanto, mais à custa da contenção do caudal da água em grandes
vales do que ao arrepio do símbolo dessa pretendida industrialização acelerada. Recusando-se os seus sucessores, na presidência e
no governo indianos, em abrir as barragens e abastecer de água os agricultores e cultivadores.
A decorrente crise alimentar fazia mesmo nesse contexto absurdo ao governo indiano de então recusar a oferta de sementes para
poder abastecer-se em reservas alimentares ulteriores. Para fazer baixar os preços especulativos dos vendedores de arroz, o governo
deixou que se publicasse uma notícia em que se dizia ir-se importar arroz, quando era apenas mais uma manobra para tentar
convencer os hipotéticos especuladores de que a política agrícola mais expedita não passava no essencial destas artimanhas. Tendo
em conta que a Comissão do Plano na altura prestava já pouca atenção à divulgação de fertilizantes, insecticidas e sementes entre a
massa camponesa, totalmente iletrada e desconfiada com a metodologia tecnológica e científica de uma proposta para uma nova ou
renovada agricultura mais rentável e que ultrapassasse a crise cíclica alimentar. Nehru desconfiava por isso dos métodos de irrigação
também, porque no entender dos engenheiros das barragens hidroeléctricas, enfraqueciam o poder eléctrico e por conseguinte
retardavam o desenvolvimento industrial que era então considerado prioritário, sobretudo a indústria do aço e similares. A única
compensação para a agricultura, nesse contexto distorcido agudo de crise alimentar urgente a resolver, era a autorização para as
pastagens serem apoiadas. Visto essa tarefa ficar mais barata e na prática resolver a situação de penúria, com menos água gasta nos
solos ressequidos.
O risco de um crescimento sem desenvolvimento (constroem-se mais campos de golfe no Algarve com relva e lagoas artificiais,
enquanto há cada vez mais seca e morre gado a poucas dezenas de quilómetros no Alentejo, por que não se melhorou entretanto o
sistema de irrigação) resultaria das economias de escala instaladas pelos países desenvolvidos nas zonas litorais dos países em
desenvolvimento. Existem 261 explorações agrícolas em Portugal, que perdeu 1/5 entre 1999 e 2003, segundo um estudo europeu; os
agricultores com mais de 65 anos constituem 1/3 dos proprietários, recorde na Europa comunitária; sendo que em média cada
exploração agrícola tem agora 13 hectares, um pouco mais do que antes como efeito de compensação.
Os Estados Unidos estão na cauda da lista dos países da OCDE/OECD na ajuda ao desenvolvimento com apenas 0,1% do seu
PIB/GDP destinado a isso (3) ao contrário dos 0,7% assentes na Conferência de Monterrey, no México, entre os países mais
desenvolvidos do planeta, sendo que recentemente a Alemanha legalizou já essa exigência mundial. A actualização da problemática da
teoria do desenvolvimento de 1960 é o interesse da rede entre o México e a França de pesquisa autónoma, numa época em que “a
droga se substitui às batatas” na sobrevivência dos camponeses (4). De reparar que na seca em 2005 em França, sobretudo na região
do Sudoeste, só 10% da água gasta foi para consumo doméstico através das canalizações. Sendo o restante absorvido essencialmente
por plantações de milho, um cereal que tem a particularidade de esgotar as reservas de água dos subsolos onde é plantado. A seca
deveu-se também ao desperdício de água represada pelos agricultores – e ao abuso do método de regas -, que a pagavam a preços
irrisórios. Esgotando-se as reservas departamentais das regiões atingidas pela vaga de calor, fora do habitual e com a pluviosidade
abaixo da dos anos anteriores, para a mesma época de Verão.
Em 2005 foi coordenado pelo dinamarquês Lars Von Trier um filme de compilação de outros 25 com cinco minutos cada um sobre o
tema da Europa, sendo que Portugal veria a sua representatividade pela curta-metragem “Bico” realizada pelo finlandês Aki Kaurismaki,
que viveria uma parte do ano nessa aldeia próximo da zona serrana de Castro Laboreiro: a referência à ditadura passada e ao então
flagelo da emigração ilegal para França correlativa aos anos sessenta do século passado, é feita como sugestão distanciada e até
bucólica, através das paisagens da serra no interior e dos silêncios da sua população remanescente e envelhecida, enquanto “leitmotiv”
do enrolar da lã na roca, que é secundada pelos sons de um acordeão e dos guizos das ovelhas e das vacas, em contraste com a ideia
de civilização rústica oriunda do século XII.
Segundo Adorno, “pensar com o ouvido” faz destacar no “dispositivo cultural” as “pretensões da cultura à aristocracia e à distinção”,
elidindo-se “as condições materiais da vida”; a pretensa “dignidade dessa sublimação”, revelará “a verdade acerca da consciência
insincera”. E, enquanto “elemento usurpatório”, o crítico na sociedade burguesa exerce no “mercado dos produtos espirituais” o seu
privilégio, que como tal faz dele “um parasita pago e honrado” para legitimar a cooperação, tendo em conta que como “agentes do
comércio espiritual” desempenham o “papel de peritos e logo o de juízes”. O crítico nas “formas da sociedade de competição” é ele
próprio um “ser acidental” e é medido como “produto do mercado”, sendo que a falta de “conhecimento sério das coisas e dos
problemas” é secundário objectivamente, sendo substituído frequentemente “por pedanteria e conformismo”. Ora, ainda para Adorno, “a
experiência de liberdade” faz com que o crítico se esqueça da “reflexão sobre a própria escravatura”, quando o seu antecessor “se
encontrava em contradição com a opressão declarada”, numa espécie de involução atribuída à “selecção social dos detentores do
espírito” no estado autoritário, quando existia “a irrupção da horda selvagem na coutada do espírito” (5).
NOTAS:
(1) “Evocative Images : The Thematic Apperception Test and The Art of Projection”, Edited by Lon Gieser and Morris I. Stein, American
Psychological Association, Washington DC 1999, pág. 67.
(2) Op. Cit., Rupa & Co/Collins Ltd , New Delhi 1977, pág. 310 in “Chapter 10 – Planned Development”.
(3) Jan Orbie, “EU Development Policy Integration and the Monterrey Process : A Leading and Benevolent Identity ?”, European Foreign
Affairs Review, University of Sussex, Volume 8 Issue 3 Autumn 2003, pág. 409.
(4) “Le Réseau Eurolatinoaméricain de Recherche ‘Celso Furtado’ : Origine, Objet, Méthode”, UNAM (Mexico) et ISMEA (France), Mars,
Paris 2005.
(5) T.W.Adorno, “A crítica da cultura da sociedade”, in “Cultura e Sociedade”, Colecção Perspectivas n.25, Editorial Presença, Lisboa
1970, págs. 9 a 15.
19 de setembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XXXIX)
Na época da rainha Vitória, em especial na segunda metade do século XIX, o capitalismo industrial triunfante criara um “clima cultural” tal, que “qualquer mudança era
considerada progresso” (4). O “darwinismo” social resultaria dessa suposição de que naquela sociedade só o melhor conseguia sobreviver, sendo que se valorizava o
atributo físico do ser humano para que fosse o mais forte
Manuel Carvalheiro
Os valores diferem das normas, num contexto de fragmentação de orgulhos nacionais e pulverizados pela
globalização mais recente. Na contraditória e livre circulação de mercadorias e ideias, em que as opiniões e os
ideais se volatilizam face à desculpa dos poderes públicos. Transformados em democracias autoritárias ou
esvaziadas de autoridade pelo abuso constante dela, a pretexto da segurança em nome da estabilidade dos
mercados. Previamente desvinculados das normas de previdência e sustentabilidade social, com “a
interdependência crescente das diversas regiões do mundo” (1).
Em 1998, no mundo, a palavra “democracia” só apelava a 41% dos inquiridos quanto à sua satisfação prioritária
na época 1990-1993. Tudo resumido nesta frase, após a crise asiática dos mercados financeiros em 1997 de
países em desenvolvimento próximos de alcançar o estatuto de países desenvolvidos: “Revertendo tendência que
havia sido consolidada após a Revolução Industrial, o emprego garantido para o resto da vida tornou-se coisa do passado” (2).
Celso Furtado, em Fevereiro de 1961, na introdução do seu livro “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento”, remetia-nos para a sua
definição de 1954: “A Teoria do Desenvolvimento económico trata de explicar, numa perspectiva macroeconómica, as causas e o
mecanismo do aumento persistente da produtividade do factor trabalho e suas repercussões na organização da produção e na forma
como se distribui e utiliza o produto social. Essa tarefa explicativa projecta-se em dois planos” (3). O modelo estatístico e o contexto
histórico, obrigando uma constante verificação entre análise e realidade.
Na época da rainha Vitória, em especial na segunda metade do século XIX, o capitalismo industrial triunfante criara um “clima cultural”
tal, que “qualquer mudança era considerada progresso” (4). O “darwinismo” social resultaria dessa suposição de que naquela sociedade
só o melhor conseguia sobreviver, sendo que se valorizava o atributo físico do ser humano para que fosse o mais forte.
Mas, de facto, a transposição da selecção natural de Darwin – que se inquietara com a sorte inquietante e triste dos escravos negros
numa escala do “Beagle” no Rio de Janeiro, quando muito jovem e a convite do comandante naval para substituir o naturalista de bordo
– para a sociedade dos seres humanos, era apenas uma modificação aleatória da teoria guerreira, sobrepondo-se ao condicionamento
ambiental da teoria da evolução de Darwin, referente à biologia e à sua história genética. Mesmo hoje, os modelos diferentes de genes
populacionais, apenas existentes nos programas de computadores dos departamentos universitários, provam só o hipotético da
abstracção estatística de dispositivos inadequados à realidade tal como a conhecemos, simplesmente servindo de referência
prospectiva e especulativa positiva.
Em 1883, o vulcão Cracatoa, situado numa ilhota do estreito de Sonda, entre Samatra e Java, na actual Indonésia, explodiu expelindo
lava para os céus e provocando “tsunamis” com ondas de 45 metros de altura, matando 36 mil pessoas. Se a sua intensidade destrutiva
equivaleu ou não a vinte bombas atómicas de Hiroxima (há quem diga duas mil) é uma especulação benfaseja de cientistas autoculpabilizados, um século depois. O que é certo é que este fenómeno natural pôs à prova toda a tecnologia da época e, em especial,
aquela que se relacionava com a previsão meteorológica e de tremores de terra.
Coube aos holandeses, como administradores coloniais dos batavos, os pescadores habitantes daquela região sinistrada, recolher o
máximo de informações antes e depois do terrível evento, que afectou a economia de toda uma imensa área de transportes e
comunicações, entre Ocidente capitalista ou dominador e Oriente feudal ou dependente: os efeitos foram ou não pagos pelas
companhias de seguros, o atraso das trocas comerciais teve ou não efeito sobre os preços das mercadorias, a efectivação de revoltas
de descontentamento dos colonizados afectou ou não o dispositivo colonial (mais do que o que poderia suportar em clima de
exploração desenfreada do homem pelo homem)? Tal como o pudemos ver no filme “Lord Jim” (1965) de Richard Brooks, adaptação
feliz do romance homónimo de Joseph Conrad, decorrido em 1899, naquela mesma área multi-insular e cheia de revoltas e roubos
incivilizados ou equivalentes.
Em 1936, o escritor de ficção científica Karel Capek, como também ex- médico, notabilizou-se por imaginar algo de equivalente para a
civilização, inclusive com um maremoto na Luisiana que atingiria Nova Orleães, antevendo a aproximação rápida da II Guerra Mundial
na Europa, na região perdida algures numa ilhota da Indonésia. Onde, de resto, era ridicularizado um marinheiro meio português que
por lá comerciava – seguindo a tradição de Rafael Hitlodeu, em “Utopia” de Thomas More, publicado em Lovaina em 1516 (influenciado
pelo diário de Américo Vespucci) -, com o aparecimento de estranhos animais que assustavam os batávios, narrando assim “A Guerra
das Salamandras”, proibida em parte ou em todo por várias censuras ao longo das décadas que se sucederam.
O exército de salamandras bípedes dominava pouco a pouco o mundo, em época de globalização militarista e também nipónica,
quando a pátria do autor desapareceria de seguida em 1938 (ano também da sua morte), ao fim de vinte anos de existência.
Checoslováquia essa, evocada, mais tarde, noutra personagem em trânsito e sem visto, em “Casablanca” (1943) de Michael Curtiz. E
Capek, inventor da palavra “robot”, havia feito da geopolítica um dédalo à Lewis Carroll, em face do determinismo belicista e ulterior
desconhecimento do processo histórico, prenhe de consequências para a humanidade, numa charla engenhosa e talentosa à “A Guerra
dos Mundos” de H.G.Wells.
Essa especulação tem ressonâncias de tanta utilidade como supor-se que no quadro actual de acontecimentos históricos em 2005 com o furacão Katrina em Nova Orleães, no panorama de angústia existencial vivida através dos telejornais (como a da reportagem no
cemitério Lafayette, em que as campas cobertas com água tomavam ao fim de dez dias o risco de epidemia, através dos restos mortais
infiltrados poderem contaminar as águas freáticas com hepatite A e B) –, o mundo poderá alguma vez ter menos pobreza até 2015,
conforme metas pensadas em 2000 pelas Nações Unidas. Quando, agora, se propala cepticamente que essas metas voltaram para
trás, até 1990 e aos índices que antecederam a Guerra do Golfo.
Tomás Antonio Gonzaga, em 1768, no seu “Tratado de Direito Natural”, redigido quando tinha 24 anos, no Brasil, dizia, a dado passo, o
seguinte: “Disso segue-se que pode haver acções fisicamente livres, que o não são moralmente” (5). Gonzaga morreria em 1810, uma
data crítica para a América Latina, pois nesse ano várias cidades do império colonial espanhol rebelaram-se. Curiosamente, a morte
acidentalmente controversa do jovem trabalhador electricista de 27 anos no metropolitano de Londres, levara a comunicação social
internacional a colocar os seus holofotes e câmaras na cidade mineira de Gonzaga, no Brasil, de onde era originária a vítima.
NOTAS:
(1)Rapport mondial sur la culture : culture, créativité et marchés», Éditions UNESCO, Paris 1998, págs. 282-311 in «Chapitre 16 :
Opinion publique et éthique universelle : description et analyse des données fournies par les enquêtes» (Adriaan Van der Staay).
(2) Rubens Ricupero, “Esperança e Ação - A ONU e a busca de desenvolvimento mais justo : um depoimento pessoal”, Prefácio de
Celso Furtado, Paz e Terra, Rio de Janeiro 2002, pág. 29.
(3) Op. cit., Editora Fundo de Cultura (2ª edição), Rio de Janeiro 1963, pág.19.
(4) Stephen Jay Gould, “Darwin et les grandes énigmes de la vie”, Sciences- Points, Pigmalion, Évreux 1984 (1977), pág. 41.
(5) «Le droit d’être un homme», Robert Laffont/UNESCO, récueil de Jeanne Hersch/préface de René Maheu, Paris 1968, pág. 84.
26 de setembro 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XL)
“Quando consideramos os esforços feitos para sonegar a distanciação cultural tão característica da época colonial, nós compreendemos que nada foi deixado ao acaso e
que o resultado total olhado pelo domínio colonial era na verdade para convencer os nativos de que o colonialismo viera para iluminar a sua
escuridão
Manuel Carvalheiro
Atribuir-se o Leão de Ouro a um filme de “cow-boys” actual, decorrido entre dois jovens no estado de Wyoming,
nos E.U.A., na 62. Mostra Internacional de Cinema de Veneza, ainda por cima a um realizador com um curso de
economia política tirado na ilha Formosa, que com capitais canadianos conseguiu produzir o seu filme sobre o
machismo “versus” homossexualidade latentes na América profunda e alucinada, é confirmar-se um princípio de
globalização.
Que nos faz de certa forma poder recuar até ao ano de 1958, em que um realizador de origem suiça fizera um
inolvidável fresco sobre os homens de fronteira no final do século XIX, associando o regime de propriedade a um
duelo ao ar livre, entre dois tipos de “cow-boys” em moldes civilizados e com armas de salão, de onde o par
feminilidade e masculinidade estava já invertido nas normas entre Oeste e Leste, que chocavam com a partilha de
águas e em que um contrato prévio de casamento era desfeito em abono de outro imprevisível.
Os filmes de Ang Lee, “Brokeback Mountain” e “The Big Country” de William Wyler, têm certamente e de uma forma genérica este ponto
de contacto: o que parece não é e o que é não parece, mas as circunstâncias ostentatórias actuais remetem-nos para o recato de
outrora. Sobre estilos de comportamento na pradaria ou a moral do cavalheiro e do capataz, ambos querendo a filha do patrão, um exmajor cultivador de gado, cheio de preconceitos sociais sobre o vizinho, no quadro do final dos anos do “maccarthysmo” em Hollywood.
O Movimento dos Sem Terra, em 1998, abarcava cerca de quatro milhões de pessoas no Brasil e o seu ineditismo à escala global de
então, consistia no facto de ser essencialmente constituído por trabalhadores urbanos, que queriam regressar ao campo e terem direito
a serem integrados em pequenas propriedades, onde constituiriam cooperativas de forma a defenderem-se das grandes organizações
comerciais.
Celso Furtado apontou a sua existência no quadro da crescente ingovernabilidade do seu país, que atravessava então o impacto da
crise financeira asiática de 1997, agudizando o “fenómeno do desemprego estrutural e a exclusão social”, como ele também então
havia sublinhado no seu livro “O Capitalismo Global” (1).
Entretanto, Fernando Henrique Cardoso considerou recentemente, em 2005, ao programa “Por outro lado” da RTP-2, emitido a 12 de
Setembro, ter cumprido 70% do que prometera sobre a reforma agrária, durante os seus dois mandatos de presidente do Brasil, entre
1993-1997 e 1998-2002; faltando, logicamente, os 30% restantes dentro daquela argumentação institucional, que disse o presidente
Lula não ter ainda cumprido, apesar de ter prometido um sonho neste aspecto.
Em “O Homem que Virou Suco” (1981) de João Baptista de Andrade, a trama fílmica faz da personagem central do nordestino o agente
do campo revoltado que vem à grande cidade de São Paulo matar o gerente de uma empresa multinacional que por ironia se chama
Joseph Losey. O nordestino é o vingador anarquista da exploração a que é sujeito no campo, desligado do meio urbano absorvente das
verbas estatais para a industrialização.
Mas o excesso de mão-de-obra urbana faz da passividade e disponibilidade do migrante um reservatório acumulativo de revolta social e
de banditismo sem remissão, um novo tipo de cangaço: como dizia a avó de Fernando Henrique Cardoso, no dizer do mesmo
sociólogo, recordando as suas origens portuguesas a propósito do tempo da transição da monarquia para a república no início do
século XX, “tudo como dantes no quartel de Abrantes”.
O programa “Earth Report”, exibido na BBC World a 9 de Agosto de 2005, versava sobre o “Port of Dakar”, isto é, sobre o problema dos
“stocks” de arroz não vendido por falta de publicidade e de “marketing” adequado em Dacar, no Senegal. País africano da costa
ocidental do continente, banhado pelo oceano Atlântico, em que embora 70% da sua população esteja ocupada com a agricultura, tem
4/5 dessa mesma população rural a viver abaixo da linha tolerável de pobreza.
Com a liberalização, aquilo a que num cartaz exposto de relance pela câmara da reportagem episódica dessa série da UNEP/TVE foi
considerada como a “fractura agrícola mundial”, faz por exemplo com que as cebolas importadas da Holanda façam apodrecer as
outras cebolas cultivadas em terra senegalesa. E porque é que o arroz do vale do Senegal não chega ao mercado de Dacar, a capital,
concorrendo com o arroz aí presente antecipadamente e importado de Taiwan?
Há cerca de 440 mil pequenas propriedades agrícolas familiares no Senegal. Mas se um destes pequenos agricultores quiser pedir um
crédito entre 300 e 500 dólares não consegue obtê-lo, pelo menos com suficiente rapidez para o salvar da penúria de imediato;
enquanto uma multinacional como a GDS, que emprega 2600 pessoas, consegue empréstimos entre um e dois biliões de dólares no
Senegal. Assim, a cooperativa FIARA tenta fazer novas colheitas com novas ideias, para ter os seus produtos no mercado de Dacar a
partir da região de Nyaes, de forma a inverter esta situação paradoxal e caricata sobre o alegado desenvolvimento sustentável. O que
fazia na década de cinquenta Frantz Fanon (1925-1961) dizer, ao arrepio das novas independências e do estatuto neo- colonial
omnipresente: “Quando consideramos os esforços feitos para sonegar a distanciação cultural tão característica da época colonial, nós
compreendemos que nada foi deixado ao acaso e que o resultado total olhado pelo domínio colonial era na verdade para convencer os
nativos de que o colonialismo viera para iluminar a sua escuridão. O efeito conscientemente concebido pelo colonialismo era introduzir
nas cabeças dos nativos a ideia de que se os colonos deviam partir, eles iriam imediatamente cair na antiga barbaridade, degradação e
bestialidade” (2).
Na telenovela “A Diarista” (2005), no episódio dedicado à embaixadora de um país africano imaginário chamado Morumba, Marinete,
que para as amigas é apenas Nete, consegue colocação de faz-tudo numa festa da embaixada pelo seu amigo Figueirinha partidário do
Black Power. Mas, quando serve de bandeja os convidados, ao mesmo tempo que dissimula o esfregar de um pedaço de gelo num
dente seu que lhe dói naquele instante, acidentalmente, para não tropeçar, agarra-se ao colar da embaixadora Magamba Nuru
(parecida com a modelo Naomi Campbel). E, depois, com os convidados e ela no chão, troca o “pivot” do seu dente por um dente do
colar de dentes de leopardo, constituindo um imbróglio típico do teatro elisabetiano no país do Rei Ubu.
Os “ajustes estruturais” solicitados pelos doadores, afectaram a partir de 1990 as instituições políticas de países como a Tunísia, a
Nigéria e o Zimbabwe ou mesmo a Zâmbia, embora outros como Portugal, o Chile e o Gana tivessem suportado melhor a falta de
coesão social necessária em contrapartida para a austeridade guiada pelas instituições criadas em 1944 em Bretton Woods (3). Um
surto grevista afectou Moçambique antes do acordo de paz de 1992. O FMI e o BM ao sugerirem a liberalização das sociedades
africanas, corrigiram alguns desvios e hipertrofias, mas disfuncionalizaram com tratamento de choque a autoridade remanescente,
abandonando o tecido social às intempéries e às ONGs. Por exemplo, de trezentas destas últimas que havia em Angola em 2002, só
restaram cerca de uma trintena actualmente. É neste contexto que o Banco Mundial ainda recentemente em 2005 concedeu 125
milhões de euros de empréstimo ao governo angolano (com o aval de 45 milhões de euros da União Europeia) para este combater
melhor a pobreza. Com as dificuldades crescentes do petróleo do Kuweit, num cenário instável, o petróleo de Angola sai mais rentável
nas suas inversões no quadro de trocas com a economia norte-americana.
Celso Furtado em “Transformação e Crise na Economia Mundial” (4), já se havia referido à “grande incerteza” da história, em 1983,
aquando do rescaldo da guerra das Malvinas e da relação Argentina-Inglaterra. A propósito do relatório da Comissão Económico-Social
para a América Latina das Nações Unidas, o Brasil é o país da América Latina com um fosso maior de nível de vida entre os mais ricos
e os mais pobres, seguindo-se-lhe a Argentina e a Venezuela nos últimos dez anos (5). O Brasil no índice de desenvolvimento humano
aparece em 63. lugar, logo atrás da Argentina, do Chile e do Uruguai.
NOTAS :
(1) Op. Cit., Paz e Terra (4ª edição), São Paulo 2000, pág. 78 in “8-Risco de ingovernabilidade”.
(2) Frantz Fanon, “On National Culture” in “The Wretched of the Earth”, “Art in Theory 1900-2000 – An Anthology of Changing Ideas”
edited by Charles Harrison & Paul Wood, Blackwell Publishing, USA-UK-Australia 2004, págs. 711 e 712.
(3) José Francisco Lynce Zagallo Pavia, “Economia e Política : Moçambique e as instituições de Bretton Woods”, Vega, Lisboa 2000,
págs. 90 e 91 in “A dimensão política do ajustamento estrutural”.
(4) Op. Cit., Paz e Terra, Rio de Janeiro 1987, pág. 161 in “VI-A crise económica internacional e a tutela do FMI”.
(5) Jose Antonio Ocampo, “The Inequality Predicament”, DESA, UN, New York 2005.
3 de outubro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XLI)
Manuel Carvalheiro
A questão do petróleo como fonte de energia afectou a economia do século XX. Ainda em 1953, um filme de
Anthony Mann, “Thunder Bay”, ficcionalizava na área costeira americana do Golfo do México o trabalho da
perfuração de um poço no alto-mar e ainda dentro das águas territoriais norte-americanas.
A desvalorização da iniciativa relacionava-se com a luta dos pescadores locais contra aquela iniciativa de um
engenheiro, interpretado por James Stewart, que não desistia de descobrir aquela fonte de energia.
Alegadamente, com a proposta de desenvolver a região adstrita, caso fosse objecto de sucesso na persistente
busca da extracção mecânica do fundo do oceano, a 2600 metros de profundidade com utilização de cargas de
profundidade de dinamite e de cabos de sismógrafo para reconhecer a bacia geológica submarina.
Estala o conflito social e, entretanto, agudiza-se a contradição entre os investidores e os empregados não pagos
da plataforma - pioneira de pesquisa de petróleo na área litoral – a partir do dia seguinte. Enquanto os pescadores
preparam um assalto à plataforma. Porém, o furo no oceano produz de repente resultados, não sem antes ter havido uma descoberta
suplementar, que entupia a sonda instalada no tubo perfurador com os cabos do sismógrafo partidos, que atrasou a iniciativa
desenvolvimentista: o chamado camarão grande dourado das profundezas, na cercania da orla marítima, naquela área litoral do Golfo
do México.
Em meados dos anos cinquenta do século XX, nem sequer se falava ainda no problema suplementar da poluição residual, havendo
apenas a sensação de que uma coisa contrabalançava a outra: o lucro como objectivo ultrapassava todas as eventuais barreiras
tecnológicas e o consumidor desde que comprasse o produto final era pouco tido em conta na causa do início da cadeia da extracção e
produção refinada do petróleo em gasolina, desde que não poupasse na compra de automóveis por querer continuar a consumir antes
querosene. Resolvido conjunturalmente o problema social de emprego daqueles pescadores, cativados pelo camarão gigante dourado,
estava encerrada a questão do conflito local e os investidores voltaram a abrir a bolsa com a renda à vista.
“Ora bem, a indústria não pode florescer se não há recurso industrial algum no território – especialmente se não há fontes de energia –
e por muito sobrepovoada que esteja uma região, se não tem recursos industriais deve procurar outras fontes de ocupação – uma
indústria turística, uma indústria cinematográfica, ou à falta de qualquer outra actividade procurar em outras terras que permitam a
imigração” (1)
E. W. Arthur Lewis, em 1949, indicava: “A indústria depende também de um mercado interior de magnitude apreciável”. Acrescentando
mais adiante: “O mundo cairia numa situação caótica se cada pequena unidade política atrasada enveredasse pela industrialização”.
Curiosamente, dava por fim dois exemplos coloniais, o da Rodésia do Norte e o das ilhas adjacentes às Índias Orientais Holandesas,
considerados por ele na época como “países atrasados”, embora com o estatuto de colónias. Confessando que os problemas de
planificação económica nos países adiantados eram diferentes dos países atrasados, tal como a sobrepopulação em relação à
subpopulação então respectivas, admitindo que os problemas de colonização eram diferentes dos do tempo de Gibbon Wakefield.
Quanto à economia de mercado, paradoxalmente, já então não se podia basear apenas no critério raro de competência, já que a sua
competitividade teria de inevitavelmente para “funcionar adequadamente” não poder dispensar o “apoio positivo do Estado”.
Nessa mesma década de viragem dos anos quarenta da guerra mundial para os anos cinquenta de prosperidade e optimismo, um filme
tão interessante como “Magnífica Obsessão” (The Magnificent Obsession, 1954) de Douglas Sirk, em dado plano em que uma mulher
acidentalmente cega pensa ir para a Suiça para ser operada, é-lhe revelado a ela que já poderá ficar pela Califórnia porque a podem
operar num dado hospital entretanto modernizado. Naquele instante vemos as letras gordas na primeira página de um jornal lido na
praia, revelando: “New Economic Crisis in Europe”.
O Brasil, por exemplo, com metade da população de agora, no início dos anos setenta só produzia metade do petróleo de que
necessitava (2). Em 1961, durante a presidência de Jânio Quadros, a sua produção diária estava potencialmente avaliada em 330 mil
barris de petróleo por dia, mas a Petrobrás só investia 20% dos seus lucros no país, porque 80% era então consumido com a
prospecção feita com uma maioria de técnicos estrangeiros (3). Em 1973, Arnaldo Jabor realizou “Toda a Nudez será castigada”, onde
na última cena se evoca a fuga jovial de avião feita pelo ladrão boliviano, a personagem simpática de um burlão da sua comédia sobre
a burguesia acomodada à ditadura militar, que proibiria mesmo assim o filme depois de um enorme sucesso. Crê-se que há cerca de 30
mil bolivianos no Brasil actual, sendo que metade estaria a trabalhar ilegalmente. Recentemente um originário asiático como empresário
explorava esse trabalho boliviano em condições de semi-escravatura no próprio Brasil, paradoxo noticiado de um Brasil complexo e
incontrolável.
O fenómeno inflacionário, sempre latente no Brasil, era visto por Celso Furtado não como um problema monetário, segundo as teses
monetaristas do FMI nos anos cinquenta, mas antes como ligado à distribuição de renda: economista esse que, em 2002, apelava à
utopia, também, como elemento de criatividade de uma renovada política económica, com variantes diferentes da do capitalismo
monopolista de inspiração norte-americana (4).
Citando o livro “O mito do desenvolvimento económico” de Celso Furtado, publicado em 1974, Roberto Imbelloni sublinha que “de
acordo com Celso Furtado”, o desenvolvimento “é um mito imposto” que “consiste na exigência de que todos deviam manter os
mesmos padrões de consumo” e “impondo hábitos alienígenas sem que se considere as necessidades locais”. Mais adiante, Imbelloni
garante que “a degradação ambiental tornou severas as multas aplicáveis” às empresas multinacionais por “manter a mesma
industrialização por meios não-renováveis”, porventura porque “o capital extraído da produção seria reduzido significativamente se
fosse necessário adaptar a indústria às necessidades do meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Confirmando que “pensar em
desenvolvimento sustentável sob a égide do petróleo e seus derivados como principais recursos energéticos, assim como carvão
mineral, é plenamente inviável”.
Porque “a diferença em termos de desenvolvimento sustentável é que a insustentabilidade destas formas poluentes e não-renováveis
de energia será perceptível apenas a longo prazo, quando já for muito tarde para compensações por indemnizações de qualquer
monta” (5). A 13 de Setembro passado, o presidente Lula fora à Guatemala, para também convidar cinco presidentes centroamericanos a visitar o Brasil, para uma conferência sobre o etanol e o biodiesel.
NOTAS:
(1) W.Arthur Lewis, “La planeacion economica” (The principles of economic planning, London 1949), Breviarios n.62, Fondo de Cultura
Económica, Cidade do México -Buenos Aires 1957, págs. 143 e 144.
(2) C.Spidtechenko, “Panorama da geografia económica mundial: 1-países capitalistas e em vias de desenvolvimento”, Editorial
Estampa, Lisboa 1974, pág. 108 in “Os países da América Latina”.
(3) Harvey O’Connor, “Petróleo em crise”, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1962, pág. 188, 189 e 203.
(4) Celso Furtado, “O Novo Brasil”, Revista Carta Capital, Ano IX, n.221, 25 Dezembro 2002.
(5) Rodrigo Imbelloni, “É sustentável o desenvolvimento sustentável?”. Ecol News, Brasil, 5/2004.
10 de outubro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XLII)
O interesse sincero pelos países em desenvolvimento manifestado pela administração Kennedy, faria contudo da experiência autónoma de Porto Rico um caso à parte e de
duvidosa aceitação. Pelo seu relativo desvirtuamento económico do desenvolvimento social, assente na selecção dos consumidores e no “dique demográfico” a troco de
auxílio com verbas empresariais, após a morte prematura daquele presidente demo-liberal norte-americano na década de 1960-1970
Manuel Carvalheiro
W. Artur Lewis (1915-1991), nascido na ilha de Santa Lúcia nas Caraíbas, afro-britânico, que relativamente cedo
ensinou na Universidade de Princeton nos E.U.A., que foi, por fim, Prémio Nobel da economia em 1979 (ex-aequo
com Schultz), no seu livrinho de 1949, “La planeación económica” (The Principles of Economic Planning),
distinguia o planeamento económico compulsivo do planeamento económico através do mercado livre (1).
Referindo-se, W.Arthur Lewis, a dado passo do seu livro sobre planeamento económico, à transição de uma
economia de guerra, em 1918, para uma Nova Política Económica em 1921, no quadro das oscilações políticas da
revolução bolchevique de 1917, onde se degladiaram as teses de alguns dos intervenientes de então.
Repercutindo a polémica das companhias comerciais mistas russo-jugoslavas, na origem da crise de confiança
política entre os dois países em 1948. Aliás, crise ridicularizada pelo lapso de um dirigente, desconfiado, pensar
que a Holanda não pertencia à união aduaneira Benelux (segundo a recordação de Milovan Djilas, em
“Conversações com Stalin”, publicado em 1961). União aduaneira essa, entretanto, criada no contexto alternativo do
Plano Marshall de reconstrução após a guerra mundial. Meio século mais tarde, os netos de Churchill, Roosevelt e de Staline, reúnemse em Ialta no fim-de-semana de 1 de Outubro de 2005, falando sobre o tratado pioneiro de Maastrich.
Esses anos mereceram a caricatura de Alexander McKendrick em “O Quinteto era de cordas” (The Lady Killers, 1955), relatando um
bando de cinco falsos músicos sinfónicos, albergados em casa duma viúva de um capitão da marinha em
Londres, que resolve fazer um assalto que lhes rende 60 mil libras. Depois de muitas dúvidas, justificam a cumplicidade da locatária
dizendo-lhe que os seguros cobriam no ano seguinte aquele assalto. Aumentando apenas de 1/4 de
penny as apólices de seguros, pequeníssima importância a cobrar ao povo britânico, em face de um retrato de Churchill ilustrando a
primeira página de um jornal nos escaparates.
Pierre George, em “A economia da U.R.S.S.”, afiança com imparcialidade e objectividade que a guerra civil que durara quatro anos e os
seis anos de “restauração do potencial de produção ao nível de 1913 por um recurso temporário à economia liberal e concorrencial” (2),
entre 1921 e 1927, atrasara o primeiro plano quinquenal (que afinal seria apenas de quatro anos, 1929-1932). Já que o primeiro ensaio
de planeamento, havia sido, anteriormente, apenas sectorial: a elaboração e aplicação do plano eléctrico de Estado do tempo de
Lenine (Goelro), feita por Krjijanovski. Entretanto, aquela competitividade empresarial fora substituída pelos jovens operários de choque
em finais de 1928, depois de em 1927 ser preparado o início do planeamento socialista (Gosplan) pela mesma individualidade.
A 5 de Maio de 1930 abre a fábrica de tractores de Stalinegrado; uma fábrica de maquinaria agrícola é inaugurada em Rostov a 15 de
Junho; a10 de Agosto é instituído o ensino primário obrigatório; entre 25 de Novembro e 7 de Dezembro são julgados oito engenheiros
acusados de formarem o partido industrial com vista a um golpe militar; a 18 de Março de 1931 decorre em Viena, na Áustria, a primeira
conferência agrária anti-soviética (3). Desse tempo foi reflexo, embora sensual e poético, o filme “A Terra” (1930) de Alexandre
Dovjenko, um ucraniano de origem, que revigorou a força do cinema mudo a preto e branco. Relatando a quebra de vedações entre
uma grande propriedade e um baldio ou a morte do filho do pequeno camponês pelo filho do grande proprietário. Ressalvadas as
dissemelhanças e a perspectiva histórica, geográfica e cultural, no quadro de uma economia agrária oligárquica com apoio forte
parlamentar, a morte do seringueiro Chico Mendes em 1988 – denunciada por um menor que fora acolhido antes pelos proprietários da
fazenda, de onde partira as ordens para a emboscada ao líder sindical - esteve na origem, em seguida, do Movimento dos Sem Terra
no Brasil.
Celso Furtado, no seu livro “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento”, clássico do início dos anos sessenta, traduzido em inglês e
editado também em americano, referiu-se aos dois planos da explicação do aumento de produtividade do factor trabalho, através de
modelos explicativos: “O primeiro – onde predominam as formulações abstractas – compreende a análise do mecanismo propriamente
dito do processo de crescimento, o que exige construção de modelos ou esquemas simplificados dos sistemas económicos existentes
baseados em relações estáveis entre variáveis quantificáveis e consideradas de importância relevante” (4).
No fundo, tratando-se da actualização dos quadros estatísticos de Wassili Leontieff, introduzidos durante o New Deal do presidente
Roosevelt em 1936. A sua maior obra foi certamente o Tennessee Valley Authorithy, fornecendo equipamentos (5) para aquele vale,
concebido como um empreendimento público nacional de grande envergadura para a época da Depressão, que contudo levou ao
agravamento do défice que podia ter custado a reeleição de F.D.R.. Mas, Celso Furtado acrescentava: “O segundo – que é o plano
histórico – abrange o estudo crítico, em confronto com uma realidade dada, das categorias básicas, definidas pela análise abstracta.
Não basta construir um modelo abstracto e elaborar a explicação do seu funcionamento”.
Ora, o contexto histórico e a evolução do desenvolvimento económico e social de cada área ou região geográfica obedeceria não à
rigidez conclusiva de anteriores análises, mas à mobilidade da realidade e à anterioridade explicativa superada por novos
acontecimentos antes pouco previsíveis: “Igualmente importante é a verificação da eficácia explicativa desse modelo, em confronto com
uma realidade histórica.”. E Celso Furtado concluía: “Somente essa verificação poderá indicar as limitações decorrentes do nível de
abstracção em que foi elaborado o modelo e sugerir as modificações a serem introduzidas para fazê-lo válido do ponto de vista de uma
realidade dada”.
O interesse sincero pelos países em desenvolvimento manifestado pela administração Kennedy, faria contudo da experiência autónoma
de Porto Rico um caso à parte e de duvidosa aceitação. Pelo seu relativo desvirtuamento económico do desenvolvimento social,
assente na selecção dos consumidores e no “dique demográfico” a troco de auxílio com verbas empresariais, após a morte prematura
daquele presidente demo-liberal norte-americano na década de 1960-1970. Porventura, ainda contemporâneo de “Os pássaros” (The
Birds, 1963) de Alfred Hitchcock, uma encenação fílmica e geográfica sobre a ameaça atómica e a contaminação das aves migratórias
em Bodega Bay, no microcosmos de uma povoação descrita como escocesa e europeia, embora situada numa península californiana
não longe da cidade de San Francisco.
NOTAS:
(1) Op. cit., Fondo de Cultura Económica, Cidade do México-Buenos Aires 1957, págs. 22, 23 e 144.
(2) Op.cit, Colecção Universidade Moderna n.5, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1970, pág.51.
(3) Louis Segal, “Russia : A Concise History – from the Foundation of the State to Hitler’s Invasion”, Turner & Dunnett, Liverpool 1944,
págs. 222 a 225.
(4) Op. Cit., Editora Fundo de Cultura, Rio de Janeiro 1963 (2ª edição), págs. 19 e 20.
(5) Pierre George, “A Economia dos E.U.A.”, Colecção Universidade Moderna, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1970, págs. 126 e
146.
17 de outubro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XLIII)
O desenvolvimento são “bombas de água, tractores” ou materiais afins oferecidos – em vez de meios financeiros, que só contribuem para o aumento de corrupção,
indirectamente e acabam por servir para os governos pobres desses meios comprarem mais mísseis e tanques –, explicou o músico Ali Farka Touré do Mali, autor do disco
de kora “The heart of the Moon”
Manuel Carvalheiro
“Assim sendo, o desenvolvimento para Celso Furtado não é também questão de simples aumento de oferta de
bens e serviços com acumulação de capital. Mesmo que seja um fenómeno induzido do exterior, o
desenvolvimento só será sustentado se for um processo de auto-transformação de uma colectividade humana em
função de objectivos que esta colectividade se propõe alcançar. De outra forma, a colectividade tende a se
desagregar com crescente aumento da tensão social e violência ou a apelar para o autoritarismo” (1).
O alagamento da Aldeia da Luz no Alentejo, lembrando o documentário antropológico sobre a aldeia do mesmo
nome, no norte de Portugal, durante a ditadura, que não consultou a população e a desabrigou à força como um
facto consumado – em “Vilarinho das Furnas” (1972) de António Campos –, porém mais recentemente antes da
viragem do milénio, aquando da construção da barragem do Alqueva (num projecto tido pelos seus críticos
mordazes como “elefante branco” financiado pela União Europeia), compara-se, também, agora, com o problema
de desajolamento de setecentas famílias do vale do rio S.Francisco - abarcando os estados de Minas Gerais, Bahia, Alagoas e Sergipe,
nomeadamente -, no Brasil, com vista ao projecto de irrigação em fase avançada e que beneficiará doze milhões de habitantes antes
afectados pela seca.
O desenvolvimento são “bombas de água, tractores” ou materiais afins oferecidos – em vez de meios financeiros, que só contribuem
para o aumento de corrupção, indirectamente e acabam por servir para os governos pobres desses meios comprarem mais mísseis e
tanques –, explicou o músico Ali Farka Touré do Mali, autor do disco de kora “The heart of the Moon”. Cuja confusão entre a palavra
“blues” e “blouse” em África foi por ele explicada no programa “Por outro lado” da RTP-2, emitido a 3 de Outubro de 2005 (gravado em
Julho, na véspera da actuação do seu grupo de oito no Parque das Nações em Lisboa).
Pois aquela última expressão de “blouse” (em vez de “blues”) remetia para os homens de bata azul na sua cidade de Niafunké, na
margem esquerda do rio Niger povoada de hipopótamos, cujas 53 aldeias da sua comunidades esperam vir a ter cada uma um
reservatório de água e uma escola, a 202 quilómetros de Timbuktu : os médicos, os enfermeiros e os veterinários é que usavam “blouse
blue” (blusa azul). O pai de Ali Farka Touré fora militar e morreria antes do final da II Guerra Mundial num dos batalhões de
senegaleses que aí combateram no último ano, como foi recordado no filme de Ousmane Sembène, “Emitai” (1972), sobre o paradoxo
do colonialismo se servir dos próprios autóctones como carne para canhão na Europa. Num estudo sobre uma expedição americana ao
Congo em 1909, uma das fotografias feitas revelava uma africana da tribo Manghetu intitulada “La Parisienne” (2). Herbert Lang, o
fotógrafo do Museu de História Natural de Nova Iorque, permaneceu no Congo até 1915, numa região focada indirectamente pelo
romance “Coração das Trevas” de Joseph Conrad.
Peter Wollen, em 1990, associara a moda, a produção industrial, a mudança política e o turismo, já que o encontro do modernismo com
as outras culturas obedecia a uma mistura de códigos. Mistura essa inserida no novo quadro mundial de relações da globalização do
capital na sua renovada produção cultural: “Os modos de contacto mudaram, assim como ambas – as próprias – culturas
metropolitanas e periféricas” (3).
Por exemplo, entre 1950 e 1990, as esculturas em argilite e os totens feitos pelos povos autóctones das comunidades Gawii Haida das
ilhas de Queen Charlotte, das quais se destacam entre as maiores a Graham Island a norte e a Moresby Island a sul (a ocidente do
Canadá, Colúmbia Britânica, um arquipélago com mais de 150 ilhas, algumas desabitadas ou nunca habitadas).
Elas revelaram o que Cook já havia feito dois séculos antes, com os artefactos que recolhera no sul do oceano Pacífico. A grande
mudança da arte tribal para a arte turística, desenvolveu os centros de venda, o negócio de exportação nos hotéis, assim como a
criação de cooperativas, ateliers e bazares. Preenchendo o “vacuum” deixado entre a pós-modernidade e o fim do colonialismo em todo
o mundo com o advento da globalização. Revelando a cultura provinciana da metrópole face à inovação dos países periféricos, embora
com os seus fluxos e padrões de contaminação.
Recentemente, uma equipa de investigadores descobriu na ilha Robinson Crusoé, no sul do oceano Pacífico e a meio caminho da ilha
da Páscoa, em longitude aparentada à da cidade de Valparaíso, no Chile, seiscentas barricas escoradas à custa de um “robot” e
encontraram peças em ouro do tempo dos Incas, avaliadas em 8 mil milhões de euros. Ou utopicamente o equivalente à vitória do
concurso Euromilhões sempre pela mesma pessoa, durante vinte anos seguidos e todas as semanas, à média de 98 milhões de euros
cada sete dias.
Ilha essa onde, no século XVIII, um só habitante que por lá ficou abandonado, quando foi recuperado e voltou a Inglaterra, serviria
então de modelo literário a Daniel Defoe para a sua famosa novela com o negro Sexta- Feira. E aonde se faz turismo de exploração
actualmente a preços relativamente elevados.
“Desde os anos a partir de 1970, países que sofreram muito de mudanças revolucionárias no governo – tais como a Argentina, o Irão, a
Grécia, Portugal, o Chile, a Tailândia e o Peru – eram principalmente encontrados na parte média da escala do IDP/PDI” (4). O que é
então esta última sigla, se não um Índice de Distância de Poder – num inquérito mundial feito em 1968 e repetido em 1972, em várias
línguas com as respostas a 116 mil questionários à encomenda da IBM – entre um responsável e um subalterno numa dada hierarquia,
testada em laboratório e no terreno pelo sociólogo holandês Mauk Mulder entre 1971 e 1977, que se baseou em vinte requisitos, o
primeiro dos quais a satisfação, por exemplo, entre Robinson e sexta-Feira.
Michael Porter, economista formado em Harvard, dissera em 1990: “O que é claro é que, tal como as indústrias, as economias
nacionais são tudo menos estáticas” (5). A busca de novas fontes de vantagens competitivas em segmentos de indústrias, conduz a
novas posições de alta produtividade na economia, reavaliada após uma catástrofe, tal como no final da II Guerra Mundial.
NOTAS:
(1) Yoshiaki Nakano, “Celso Furtado”, Revista de Economia e Política, Vol. 25 n.2, Apr/June, São Paulo 2005 (transcrição de “Valor”
23/11/2004).
(2) Nicholas Mirzoeff, “Photography at the heart of darkness - Herbert Lang’s Congo photographs (1909-15)” in “Colonialism and the
Object - Empire, material culture and the museum”, edited by Tim Barringer and Tom Flynn, Routledge, London and New York 1998,
pág. 181.
(3) Peter Wollen, “Into the Future : Tourism, Language and Art” in “Raiding the Icebox”, “Art in Theory 1900-2000 : An Anthology of
Changing Ideas”, Edited by Charles Harrison and Paul Hood, Blackwell Publishing, USA, UK, Australia 2004, págs. 1106-1108.
(4) Geert Hofstede, “Cultures Consequences: Comparing Values, Behaviors, Institutions, and Organizations Across Nations”, Sage
Publications (Second Edition), Thousand Oaks-London-New Delhi 2001, págs. 83 e 111.
(5) Michael E. Porter, “The Competitive Advantage of Nations”, The Macmillan Press Ltd, London and Basingstoke 1990, pág. 543 in “10
– The Competitive Development of National Economies”.
24 de outubro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XLIV)
“Para Hugo Chávez, ‘Brasil e Venezuela estão caminhando juntos e firmes rumo à construção de uma América do Sul nova, da pátria nova’. Chávez considerou a assinatura
dos acordos como êxito no processo de integração de uma região que conta com mais de 360 milhões de pessoas e lembrou de Celso Furtado ao destacar a necessidade
de superar a dependência que impede o desenvolvimento económico”
Manuel Carvalheiro
Em 1948, Luchino Visconti realizou “La Terra Trema” na Sicília, sobre os pescadores de Aci Trezza (ao modo do seu manifesto do
cinema antropomórfico), uma comunidade específica que falava apenas um dialecto incompreensível para o comum dos italianos
saídos da guerra. A questão do Mezzagiorno estava na ordem do dia com as eleições de 18 de Abril de 1948 à vista e a situação
quase colonial do sul em relação ao norte servia de campanha.
O neo-realismo italiano, cuja expressão fora inventada ocasionalmente em 1942 por Mario Serandrei, montador também de “La Terra
Trema – episodio del mare” (os outros episódios, o dos camponeses e o dos mineiros, nunca foram rodados), fez deste filme um
precedente sem paralelo. Este modelo de filmagem repercutiu-se mais tarde em “Barravento” de Glauber Rocha em 1962, com
montagem de Nelson Pereira dos Santos, durante a ascensão do cinema novo brasileiro e da estética da fome inspirada em Josué de
Castro e no seu livro “Geopolítica da Fome”.
De notar que “O caso Mattei” (1972) de Francesco Rosi, Palma de Ouro em Cannes, que fora segundo assistente de Visconti naquele
filme da Sicília, se reporta à morte misteriosa em desastre de avioneta a 27 de Outubro de 1962 de Enrico Mattei, o director da empresa
estatal italiana de petróleo ENI, que inclusive financiara a FLN argelina durante a sua luta pela independência e que iria assinar em
Novembro seguinte um acordo com aquele país norte-africano.
Em proporção mais reduzida e, mais recentemente, “Camarate” (2000) de Luis Rocha confrontou, noutra dimensão, as imperfeições
retroactivas de dois inquéritos em processo jurídico sobre a avaliação da morte de um antigo 1º Ministro em 4 de Dezembro de 1980,
num acidente aéreo nos arredores de Lisboa com uma avioneta que havia pertencido ao presidente venezuelano Carlos André Perez.
A questão das fontes de energia tivera, sobretudo nessa época dos anos cinquenta do século XX, no Brasil, como patrono, o próprio
presidente Juscelino Kubitscheck. O círculo vicioso agravou-se e o descrédito nos mercados financeiros instalou-se, até ao golpe militar
e o seguinte “milagre económico” do ministro Delfim Neto.
Em “Brasil, Ano 2000” (1968/69) de Walter Lima Jr., a prospecção utópica a partir de Brasília - e da arquitectura da equipa dos
arquitectos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer -, revelou-se uma geração depois numa diferença maior de avenidas asfaltadas e de trânsito
controlado electronicamente, supostamente e agora retroactivamente após a III Guerra Mundial e o desaparecimento dos países
desenvolvidos durante a crise do ano de 1968, marcado fundamentalmente pelas revoltas citadinas de Paris e da Cidade do México.
Pouco tempo depois, em 1973, Nelson Pereira dos Santos realizaria “Quem é Beta ?”, um filme de ficção científica que reformularia o
desespero de então no quadro de um país futurista.
“Para Hugo Chávez, ‘Brasil e Venezuela estão caminhando juntos e firmes rumo à construção de uma América do Sul nova, da pátria
nova’. Chávez considerou a assinatura dos acordos como êxito no processo de integração de uma região que conta com mais de 360
milhões de pessoas e lembrou de Celso Furtado ao destacar a necessidade de superar a dependência que impede o desenvolvimento
económico” (1). A refinaria a construir no estado do Pernambuco, selou um acordo entre a Venezuela e o Brasil, recentemente,
aquando da visita do presidente Chávez ao Brasil, durante a Cimeira das Américas a 29 de Setembro de 2005.
“Nos países industrializados, nesses sectores altamente dependentes de capital e tecnologia, também o Estado está presente, mais
comummente sob a forma de grandes encomendas e como defensor militar dos seus interesses no exterior. O caso do petróleo
americano é exemplar” (2). A conflitualidade entre os Estados Unidos da América e a Venezuela advém da questão da soberania sobre
o petróleo, visto a política energética da Venezuela estar voltada para a nacionalização da energia e uma partilha equidistante dos
lucros, favorecendo preços mais baixos na exportação de petróleo para quinze países da área do Caribe.
“A difícil equação e o carácter um tanto emblemático da tecnologia no planejamento cepalino parece encontrar na Escola da biomassa
seu desfecho ou solução. (...) As fontes energéticas que fundamentaram o acelerado crescimento dos países desenvolvidos,
actualmente, alcançaram a sua exaustão: o carvão polui absolutamente e o petróleo, ademais, tem a sua morte anunciada para duas
ou três décadas” (3).
Na verdade, a busca prioritária na Europa para uma solução alternativa no capítulo da competitividade energética com os países
fornecedores de petróleo como a Venezuela, a Nigéria, Angola, os Emiratos Árabes Unidos, o Iraque, a Arábia Saudita, etc., conduziu
recentemente a um incremento científico e tecnológico das energias alternativas, como as energias eólica e solar, já tendo dado
resultados desde há mais de uma década nos países nórdicos fundamentalmente.
“Petrobrás negocia compra de fatia na estatal portuguesa de energia Galp, que tem negócio também no Brasil e em Angola” (4).
Entretanto, a indústria petrolífera brasileira procura o mercado angolano que é penetrado por uma empresa estatal portuguesa,
reflectindo isso a mobilidade do mercado petrolífero mundial que estabilizou em preços por barril que são o triplo do que eram há dois
ou três anos.
Superar a dependência que impede o desenvolvimento económico? Celso Furtado comentou, segundo o antigo ministro da Fazenda
durante seis meses num dos governos do presidente José Sarney, no campo específico económico-financeiro o papel das elites
miméticas ainda pouco antes de falecer, revelando assim “post-mortem” o seu pensamento labiríntico neste domínio do poder
executivo: “Sua luta, hoje, no Brasil, contra as taxas de juros decididas pelo Banco Central visava precisamente proteger o Tesouro
nacional e viabilizar a recuperação da poupança pública e dos investimentos na infra- estrutura. Por isso, inclusive, opunha-se ao
conceito de superávit primário, que esconde o efeito dos juros sobre o déficit público” (5).
NOTAS:
(1) “Brasil e Venezuela vão construir juntos refinaria em Pernambuco”, Jornal Hora do Povo, secção Política/Economia, Ano XVI n.2406,
Brasil 5 e 6 Outubro 2005.
(2) Genserico Encarnação Júnior, “A Fantasia Desfeita”, Revista de Economia & Energia n.33, Julho-Agosto, Brasil 2002-revisão a 28
Agosto 2005.
(3) Júlio Ambrózio, “A Tecnologia dos Trópicos e a Cepal”, I.H.P. Março 2003, Brasil - reeditado a 17/04/2004.
(4) Ricardo Rego Monteiro, “Das águas profundas ao além-mar”, JB-Jornal do Brasil, 29/Set/2005.
(5) Luiz Carlos Bresser-Pereira,“Sempre na Luta, Exigindo Reflexão”, Revista de Economia Política, Vol. 25 n.2 Apr.-June, São Paulo
2005 (in “Valor”, 26/11/2004)
31 de outubro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XLV)
Manuel Carvalheiro
“A análise económica fala do investimento, da poupança, do consumo, o que nós chamamos de variáveis
macroeconômicas, que descrevem o funcionamento da economia. O estruturalismo se preocupa com os factores
que condicionam essas variáveis. Nós não nos preocupávamos com a tendência do sistema, mas com aquilo que
condiciona o comportamento do sistema. O pensamento estruturalista está voltado para reformas’” (1). Em
síntese, o estruturalismo da CEPAL via a economia dos países latino-americanos em conjunto e como um
conjunto. Celso Furtado seria uma espécie de coordenador em assuntos de planeamento, dada a precariedade e
disfuncionalização da articulação da agricultura com o processo de industrialização.
Mas em 1992, à beira da globalização das “transnacionais” (multinacionais) com a próxima criação em 1995 da
Organização Mundial de Comércio que era suposto vir a servir de plataforma de regularização entre os países, foi
apenas um fórum substitutivo do GATT e um pára-vento do G-7, coma reunião anual dos chefes de estado dos
países mais industrializados. É nesse contexto intermédio entre duas épocas de transição da história recente da última década do
século XX que é dito: “A competição é útil, pode ser até divertida, mas quando levada ao ponto de procurar a humilhação ou o
sofrimento dos outros não é a maneira apropriada de procurar o desenvolvimento do mundo humano” (2).
Ora, o desenvolvimento sob a globalização toma novo fôlego através das comunicações modernizadas, das indústrias electrónicas e a
pretensão de uma sociedade da informação e do conhecimento ao alcance tanto do habitante da aldeia como do da megalópolis.
Igualizando nas oportunidades em perspectiva o rural ao urbano via rede de auto-estradas, pontes, aeroportos e portos, utilizando-se o
correio electrónico para se oferecer força de trabalho e o “site” na Internet para publicitar os produtos da firma, que dista do cliente a
milhares de quilómetros. Esse desenvolvimento de uma globalização mirífica e sem forças de bloqueio social como alternativa credível
à descapitalização dos estados nacionais menos poderosos: “Obviamente, ela potencializa ainda mais os desafios que normalmente
estão associados aos fenómenos mais conhecidos — e longa data familiares aos economistas clássicos e modernos — da defasagem
tecnológica, da competição desenfreada, da substituição de trabalho humano por processos produtivos poupadores de trabalho, da
pressão constante sobre os salários derivada da incorporação de novos exércitos industriais de reserva, enfim, velhos problemas já
tratados, sob diferentes ângulos, por estudiosos tão diversos como Adam Smith e Karl Marx, Joseph Schumpeter e Milton Friedman,
Raul Prebisch e Paul Krugman, Celso Furtado e Joseph Stiglitz” (3).
A BBC World a 5 de Setembro passado, dava o seguinte quadro comparativo decrescente nas perdas de petróleo: 1,5 milhões de barris
a menos por dia, devido ao furacão Katrina; 2,3 milhões de barris por dia a menos, devido à Guerra do Iraque em 2003; 2,6 milhões de
barris por dia a menos, devido aos acontecimentos na Venezuela entre 2002 e 2003; 4,3 milhões de barris por dia a menos, devido à
Guerra do Golfo em 1990; e 5,6 milhões de barris por dia a menos, devido à Guerra no Irão entre 1978 e 1979. Cerca de 2800
perfurações (rigs) atingidas, 4 refinarias fora de uso representando 5% do petróleo nos E.U.A., pesquisa subterrânea interrompida e
transformação de crude em gasolina idem aspas.
A Agência Internacional de Energia, constituída por representantes de 26 países, anunciou cinco dias após o furacão Katrina se ter
abatido sobre a zona costeira norte-americana do Golfo do México (onde existem 2800 perfurações de petróleo, 44 das quais
totalmente inoperacionais), que daria durante um mês dois milhões de barris de petróleo por dia: ¼ da produção petrolífera norteamericana estava paralizada e 10% da produção petrolífera norte-americana estaria, assim, inoperacional, devido ao rescaldo da
catástrofe de 29 de Agosto de 2005. Com a perda, momentânea, de cerca de um milhão de empregos, avaliada numa estimativa por
cima – talvez exagerada -, como reflexo colateral na economia da região, que abarca os estados da Luisiana, do Mississipi, do Alabama
e da Florida.
Entretanto, havia dado já entrada no serviço de emprego nacional norte-americano devido às consequências cerca de 250 mil pedidos,
avaliando-se porém com prudência estatística – mais de três semanas depois –, que se esperava um total provisório de 400 mil pedidos
de emprego resultantes da catástrofe e não de imediato o milhão inicial previsto tempos antes nos dias a seguir à catástrofe. A
Companhia Colonial petrolífera perdeu, por exemplo, 38% da sua operacionalidade corrente, de entre outras companhias também
lesadas com o evento catastrófico.
Por conseguinte, o Departamento de Energia dos E.U.A. aprovou um empréstimo à Exxonmobile de 6 milhões de barris de petróleo,
feita pela reserva estratégica (que possui reservas da ordem dos 400 biliões de barris, comparadas com os 61 biliões da Federação da
Rússia), segundo a estação de televisão CNN a 1 de Setembro último. Três dias após a catástrofe, um dia antes do apoio logístico no
terreno, dado, finalmente, pelo governo federal ao governo estadual da Louisiana e ao governador da cidade, mais afectada, de Nova
Orleães, com o rompimento dos diques e a sua inundação a 80%, além de, também, com cerca de 160 mil casas inteiramente
destruídas.
Ora, predominou, certamente, pelo menos um preconceito financeiro; e que, depois, como cidade que duplicou de população por esse
facto, serviria de apoio, também, aos evacuados de Nova Orleães. Por reflexo global, a União Europeia, que em 2004 cresceu 2,1%,
tinha uma estimativa para 2005 de crescimento económico do conjunto dos seus países aderentes de cerca de 1,6% ; mas, de facto, foi
agora divulgado - no início de Outubro de 2005 - que o crescimento havia sido menor, isto é, de 1,2%. O crescimento económico norteamericano está previsto ir reduzir-se de 0,5 a 1%, pelo menos nos próximos dois trimestres, após uma melhor avaliação dos efeitos
devastadores do furacão Katrina, anunciara a BBC World nove dias depois da catástrofe e antes do aparecimento do furacão Rita.
Sendo que a ajuda federal estava já estimada em 51 biliões de dólares, numa avaliação total de cerca de 200 biliões de dólares a
respeito das consequências imediatas da catástrofe do furacão Katrina. Só aquilo que os seguros não cobrem como prejuízo,
entretanto, está avaliado em cerca de 100 mil milhões de dólares. A governadora do estado da Luisiana revelou que a área destruída
comporta 240 mil milhões de dólares de prejuízos, sem falar portanto nos outros estados.
Nove companhias petrolíferas dos estados do Mississipi e da Louisiana fecharam e quatro reduziram a produção petrolífera. Nas
últimas décadas houve maior crescimento económico da indústria petrolífera mundial, após as sucessivas crises das décadas de
setenta do século XX, mas o desenvolvimento tecnológico ficou para trás, porque não houve investimentos à altura do desafio nos
últimos trinta anos. Sobretudo na tecnologia da produção, transporte e refinação de petróleo, o que provoca uma dificuldade imediata
de resposta face à crise actual latente.
O crescimento foi ao ponto de aumentar dois e meio milhões de barris por dia em relação aos níveis anteriores, antes da primeira crise
mundial de 1973. A produção petrolífera do Golfo do México representa, no entanto, apenas 3% da produção mundial actual. O preço
do petróleo nos mercados, nervosos, subiu até 70 dólares o barril em 29 de Agosto de 2005, atingindo um novo recorde com a subida
de 7% num só dia após a catástrofe do furacão Katrina. Actualmente, três semanas depois do evento funesto, desceu para 67 dólares o
barril. Um furacão como o Charley em 2004 e como o Camille em 1969 e o Andrews em 1992, custaram, respectivamente, às
companhias de seguros, cerca de 7,5 mil milhões de dólares os dois primeiros e 15, 5 mil milhões de dólares o último. Aventando-se de
imediato um orçamento de 25 mil milhões de dólares para este mais recente furacão devastador, devido à deslocação de cerca de um
milhão de pessoas da área sinistrada e à destruição subsequente.
A questão da poluição marítima por navios petroleiros acentuou-se desde o naufrágio do “Exxon Valdez” com um derramamento de 37
mil toneladas; mesmo depois do afundamento do “Prestige”, em Novembro de 2002, a Organização Marítima Internacional (OMI/IMO)
ainda não tinha legislação aperfeiçoada entre os seus membros, a respeito da obrigatoriedade de um porto de recurso ou local de
refúgio, que pudesse ter atenuado substancialmente este último caso. Caso que se verificou próximo da região espanhola de Finisterra,
na Galiza, junto à fronteira norte portuguesa. O “Prestige” jaz a 3600 metros de profundidade algures no oceano Atlântico, com a sua
carga de óleo de 43 mil toneladas a bordo (4).
“No decénio de 1990 ocorreram no mundo três vezes mais desastres naturais importantes do que no decénio de 1960” (5), porque só
em 1998 os furacões Georges e Mitch provocaram nas Caraíbas – nos países do Caribe – cerca de 13 mil mortes, sendo o último o
mais perigoso nos dois últimos séculos. Inundações, incêndios e tremores de terra, provocaram em todo o mundo cerca de 50 mil
mortes nesse mesmo ano – desde a Índia ao Brasil, do Afeganistão à Federação da Rússia, da China à Indonésia.
O ano de 2004, com 250 mil mortes devido em especial ao “tsunami” a 26 de Dezembro, quintuplicou o número de mortes em
catástrofes naturais de 1998. Só em 2005, na área das Caraíbas, houve até agora 19 furacões - com o Stan como o mais recente,
provocando calamidades em S.Salvador, nas Honduras, na Nicarágua, na Guatemala e no México, nomeadamente -, sendo que o
recorde no século XX pertenceu ao ano de 1933 com 21 furacões só para a mesma área e no mesmo período de tempo anual.
Ultimamente, o Vilma inquieta as autoridades da área dos países do Caribe para os próximos dez dias.
NOTAS:
(1) Amir Labak, “Quixote Céptico: Celso Furtado”, TD n.19, Agos/Set/Out, Brasil 1992.
(2) Federico Mayor (c/ Tom Forstenzer), “A Nova Página”, Edições 70/UNESCO, Lisboa 1994, pág. 33 in “1-Cultura de guerra e cultura
de paz”, prefácio de Ilya Prigogine.
(3) Paulo Roberto de Almeira, “A Globalização e o Desenvolvimento: vantagens e desvantagens de um processo indomável”,
Achegas.Net - Revista de Ciência Política, n.20 Nov-Dez, Brasil 2004.
(4) Rucemah Leonardo Gomes Pereira, “Impactos Ambientais em Desastres Marítimos”, Funenseg – Fundação Escola Nacional de
Seguros, Rio de Janeiro 2003, pág. 29.
(5) Kofi Annan, “Prevención de la guerra y los desastres: un desafío mundial que va en aumento – Memoria anual sobre la labor de la
Organización”, Departamento de Información Pública de las Naciònes Unidas, Nueva York 1999, pág. 2.
(XLVI)
Peter Brook havia realizado “O Senhor das moscas” (Lord of the flies,
1963) como parábola da sociedade, após a recolha de um grupo de adolescentes algures numa ilha perdida e tropical após um
desastre de avião. O comportamento desse grupo leva-os a subdividir-se e a guerrearem-se entre si, para a sobrevivência adaptativa a
uma nova realidade que os faz recuar na ordem natural das coisas e descobrir no interior de uma gruta a cabeça de um porco cheio de
moscas.
Animal esse que servirá depois para testar as suas crenças e descrenças num futuro incerto, cujo primitivismo revisitado reflecte as
carências alimentares e de conforto para a sua situação anterior de privilegiados. Por contraste, um filme de Stanley Donen como
“Casamento Real” (Royal Wedding,
1951) reproduziu em Londres, num teatro de dança, o par simbolizando o ritual de alegria moderna, em frente a um mapa do mar das
Caraíbas com as silhuetas de Cuba, Haiti e Jamaica mais salientes, de forma a depois se proceder à passagem de habitantes dos
trópicos em trajes folclóricos, de um ritmo colorido contrastando com a insipidez europeia.
A UNESCO aprovou a 20 de Outubro de 2005 a Convenção da Diversidade Cultural com os votos de 154 países membros: 148 a favor,
2 contra (Estados Unidos e Israel) e 4 abstenções (Austrália, Honduras, Nicarágua e Libéria). Essa convenção sobre a “excepção
cultural”, impede que se considere o património cultural como uma mercadoria e que tudo está sujeito à comercialização da
globalização, revelando a diversidade de “expressões culturais” dos povos.
Um estudo sobre a Amazónia, feito por uma equipa de cientistas norte- americanos e brasileiros, revelou que, afinal, as estimativas
anteriores sobre
a desflorestação respectiva subestimaram em 60% a sua danosa progressão. O flagelo do abate encoberto de árvores com madeiras
raras, para além das clareiras iniciais, tendo em conta agora o uso de imagens por satélite cedidas pela NASA, revela também que
cresceu a proporção de dióxido de carbono em 25% na atmosfera respectiva, podendo perigar espécies como os tucanos por exemplo.
O subdesenvolvimento era equiparado a uma devastação, tanto de uma catástrofe natural frequente como de uma destruição devido à
guerra: o planeamento indicativo, aprendido em França, em 1948, com a ajuda do caso clássico do planeamento russo na leitura de
Strumiline, levou depois Celso Furtado, na equipa da CEPAL, a criar o primeiro manual de técnica de planeamento das Nações Unidas.
Nos anos vinte desse mesmo século XX, o primeiro planeamento económico dedicado à electrificação foi o coordenado pelo
engenheiro Gleb Krjijanovski, colega desde 1893 de Plekhanov, Struve e Lenine. Krjijanovski esse que se desligaria em 1930 do
Gosplan, passando em seguida a exercer funções num instituto de energética. Porque, devido ao facto do plano não se ter iniciado em
1923 como havia pretendido, dando os investimentos necessários para poupar gastos e ser estendido experimentalmente a dez anos,
para dar tempo às firmas agrícolas ou “kolkhozes” e “sovkhozes”, em regime cooperativo ou estatal.
Mas, esse plano mais de “racionamento” do que de “desenvolvimento” económico em 1918, começou tarde, em 1929 e foi reduzido a
quatro anos. Devido aos excedentes e aos recursos inutilizados, segundo Ernest Mandel em “Traité d’Économie Marxiste” (1), em
função de uma industrialização cuja aceleração coordenada com a agricultura devia ter começado antes, houve o abate de gado em
1930 e 1931 pelos camponeses provocou uma terrível fome na Rússia em 1932 e 1933.
Ora, nos anos cinquenta do século XX, havia “a precaridade das estatísticas” e, por isso, como ele dizia - no texto enorme de 1999
“Mensagem aos jovens economistas” -, inventou com os colegas da CEPAL “conceitos novos” para o “produto nacional”, através da
respectiva actualização da “situação das principais economias latino-americanas”.
Criaram-se conceitos domésticos, tais como o de “capacidade para importar” e o de “disponibilidade de bens” ; conceitos esses criados
enquanto complementaridade na função dos indicadores precários então disponíveis, tanto de preços referentes a importações vigentes
como de alguns índices de produção industrial e de agropecuária. Havendo, contudo, na época, poucos países com dados fiáveis sobre
renda nacional, sendo que o Brasil, em particular, só os tinha referentes precisamente à então omnipresente produção industrial.
As informações recolhidas indirectamente, precárias e aproximativas, revelaram uma economia atrasada, apesar dos recursos naturais,
da sua grandeza e da imensa população. Embora a Argentina, o Chile e o México estivessem à frente do Brasil, com as respectivas
rendas “per capita” várias vezes superiores, como no caso do primeiro país. Esse atraso era explicado com o progresso do século XIX,
de onde ressaltavam preconceitos climáticos e raciais.
No seu livrinho “O Longo Amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil” (2), Celso Furtado em 1999 aos 79 anos, cinco anos antes
de falecer, escreve uma carta longa aos economistas mais jovens. Aborde-se pelo menos três aspectos e de uma forma também
didáctica: a necessidade de uma mensagem, de um testamento, de uma proclamação, de uma passagem de testemunho, de um
conselho familiar ou mesmo de um desabafo mais íntimo em tom de ressentimento nostálgico. O desafio pelas origens sempre foi o
elemento catalizador do pensamento e reflexão, em função da acção pedagógica, por parte de Celso Furtado.
O desafio implicou competição, nomeadamente com Caio Prado Jr. E com também Gilberto Freyre, talvez menos com este último, na
sua atracção pela investigação, descoberta e revelação sobre a origem do Brasil como nação e depois como Estado, monárquico-liberal
primeiro e republicano positivista em seguida. Eça de Queiroz (3) referiu-se, no ano do tricentenário da morte de Camões, a uma
“vistoria social” feita durante um ano por um enviado especial do “The Times” britânico, que incluiu as relações entre o Brasil de 1880 e
o império de Portugal.
A economia do desenvolvimento – “equidistante”, como disse o professor Cavaco Silva - pode estar relacionada, sobretudo, com o tema
da desigualdade social e a forma de a corrigir através do planeamento, a sua miséria e a riqueza potencial de uma região ou de um
país ou conjunto de nações fronteiriças ou equidistantes entre continentes na geopolítica do subdesenvolvimento. Celso Furtado, sendo
filho de um juiz, licenciou-se em direito, quando já fazia jornalismo de investigação pelo seu amor ao inquérito.
Talvez, influenciado pela presença na época do cineasta Orson Welles, no Brasil do então presidente Getúlio Vargas, em 1942, quando
aquele dirigiu as filmagens dos jangadeiros do Ceará, na sua aventura marítima até ao Rio de Janeiro, para proclamar e reclamar um
estatuto de maior atenção para os seus problemas de sobrevivência no Nordeste costeiro sem seguro de vida nem herança patrimonial
para além das ondas por vezes traiçoeiras. A morte do jangadeiro Jacaré afectaria muito Orson Welles, que então interrompe assim as
filmagens desinteressando-se por conseguinte da sua montagem.
Finalmente, depois de fazer o serviço militar em Itália, rumou a Paris e em três anos fez uma tese na Sorbonne, em 1948, sobre o
estatuto colonial das origens do Brasil no contexto da América Latina, quando a sociedade de consumo passava - até nesse instante pelos anúncios ouvidos de rompante no rádio de bordo num cruzeiro, numa sequência ao ar livre em “A Dama de Xangai” (Lady from
Shanghai, 1947) de Orson Welles. Esse triplo impacto da sua formação, marcou em seguida a sua carreira com a entrada para a
CEPAL, dirigida pelo economista argentino Raul Prebisch em Santiago do Chile, entre 1949 e 1957: e, depois, em Cambridge, entre
1957 e 1958, onde escreveu “Formação Económica do Brasil”.
Uma visão mais ampla dos fenómenos sociais obcecou, com razão e empenho, Celso Furtado, adversário da especulação fantasista,
do fatalismo e do abuso de autoridade: “a sociedade é algo que os homens não param de refazer”, dizia ele na sua mensagem de
1999, combinando a criatividade e a gestação, não ainda comprovada pela ciência, embora esta última mais ligada à exactidão do
tecnicismo e dos especialistas, que ele de resto defendia, aprovava e promovia nos seus estudos e ensaios ou artigos e notas de
resposta solicitada.
O funcionamento real da sociedade indígena, porém, estava em contraste com a superficialidade da teoria sem trabalho de campo : a
organização tripartida e assimétrica chocava com a pretensa simetria e dualismo aparentado da estrutura social de tribos Xerente,
Canela, Bororo e Apinajé, nos modos de produção primitivos e pré-capitalistas anteriores à própria colonização europeia (4). O porto de
tráfico Ouidah (Ajudá, no Daomé, actual Benim) e o “yevogan” (ministro dos brancos) representavam uma economia dual, de dois
sistemas de conta num enclave (5).
NOTAS:
(1) Op. Cit, Tome IV, Collection 10-18 n.434/435, Union Générale d’Éditions, Paris 1969, pág. 13 in «Étapes de l’économie soviétique».
(2) Op. Cit., Paz e Terra (2ª edição), Rio de Janeiro/São Paulo 1999, págs. 71, 72, 77 e 78 in “Mensagem aos jovens economistas”.
(3) Eça de Queiroz, “Cartas de Inglaterra”, Livraria Lello, Porto 1928, pág. 205 in “X-O Brazil e Portugal”.
(4) Claude Levi-Strauss, “Antropologia Estrutural”, Biblioteca Tempo Brasileiro n.7, Tempo Brasileiro (2ª edição), Rio de Janeiro 1985
(Plon, Paris
1958) in “VII - As Estruturas Sociais no Brasil Central e Oriental”.
(5) Elikia M’Bokolo, “África Negra : História e Civilizações (até ao século XVIII)”, Tomo I, Editora Vulgata, Lisboa 2003, pág. 393 in “O
tráfico, um facto marginal nas economias africanas ?”.
7 de novembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XLVII)
Manuel Carvalheiro
No ano da comemoração do quarto centenário da publicação de “D.Quixote de La Mancha”, é mais natural que a
Espanha esteja na selecta. A Espanha, austera e desertificada, faz ver moinhos de miragem a D. Quixote, um
velho esquelético que mal pode com a sua lança em riste, para aproar fantasmas da sua imaginação delirante. A
cultura popular que se desenha em Espanha nesta época transmite, porém, optimismo na derrota possível de
qualquer desafio, personificado para modificar a realidade de relações de produção, concentradas à volta do
castelo e do seu senhor feudal. O absolutismo impera na época de Filipe II, o rei da circum-navegação
consolidada, cujo império dizia-se que dava a volta ao mundo sem o Sol nunca se pôr, da Espanha inteiramente
peninsular até às Filipinas de seu real nome inspirada.
Na sua obra editada em Turim, em 1964, “Ascesa e tramonto del colonialismo”, Raimondo Luraghi (1) referiu-se à
implantação da “encomienda” pelos “hidalgos”, em que o trabalho - na perspectiva autocrática e militarista de
Castela - para aquele tipo dominante de plantação - sobretudo no território onde hoje fica a Colômbia - era para os servos e para os
escravos, quando o colonialismo espanhol recolhia o ouro e a prata entre o México e o Peru. Ao contrário dos ingleses da Magna Carta,
que já na época defendiam a sua autonomia administrativa (2), embora leal à Coroa, na Jamaica de então.
Para os latino-americanos de 18 países, segundo a organização chilena Barómetro Latino, dirigida por Marta Lagos, em estudo
divulgado no essencial pela revista britânica “The Economist” (October 29th-November 4th 2005), educação, saúde e alojamento são
problemas sociais que só recolhem o interesse e a participação de 4% da sua imaginária opinião pública. Sondada esta desde 1995,
anualmente, no quadro da economia de mercado entre recessão e retoma, visto que mais de 30% dão prioridade ao desemprego: a
mesma percentagem dos que acham as privatizações benéficas.
A BBC World a 21 de Março de 2005, havia emitido uma reportagem sobre os pescadores de lagostas no norte do Brasil, que adquirem
uma doença que os deixa paralíticos: nos últimos dez anos já teriam morrido 80 pessoas desta estranha doença. Mais adiante, a CBS
Evening News –Weekend, a 19 de Junho seguinte, emitiu também uma reportagem sobre “lobsters”, lagostas com as crostas infectadas
na zona costeira do estado de Maryland, deixando cépticos os pescadores com barcos e gaiolas próprios, num sistema automatizado
de pescaria que deixa os biólogos preocupados com problemas de consumo.
A economia política do século XVII estava limitada à contabilidade dos carregamentos dos galeões, que aportavam nomeadamente a
Cádiz. O grotesco da Idade Média, reinterpretado por Cervantes à luz do Renascimento, existia de forma a criticar o autoritarismo do
Estado (3). Por sinal, em 1923, a certa altura de visita à cidade do Panamá, em circunstâncias tais, que o presidente, um homem culto
de então, manda receber o visitante ilustre de padiola, devido à sua perna esquerda ter ficado imobilizada com uma crise de ciática,
quando no transatlântico “Francónia” se expusera ao refrigerador da cabine em que viajava. Refere ele uma estátua de Cervantes (4)
numa praça perto do canal, depois de ter viajado desde La Habana, onde admirara o forte desenvolvimento, apesar do crescimento da
pobreza, mostrando ter uma noção de economia política, avançada para a sua época.
Hoje em dia a expressão “quixotesco” revela o equivalente a “robinsonada”, isto é, a vacuidade de pensamento e o ridículo da livre
iniciativa do indivíduo face à sociedade blindada à concretização dos seus desejos sonâmbulos. Impróprios de realizar-se em qualquer
quadro que se lhe apresente, tal como um ente desorientado no meio de uma catástrofe. Porém, a Espanha actual revela
manifestações de “quixotismo” inequívoco, com o problema da barreira à imigração africana em Ceuta e Mellila, enclaves em Marrocos,
sem solução à vista quanto a direitos humanos mais estáveis. Por outro lado, os pescadores de Barcelona armaram um pé-de-vento
pelo preço actual do gasóleo, incomportável com os seus padrões de nível de vida, no limite da sobrevivência no quadro de uma
economia piscícola mediterrânica em sobressalto constante na União Europeia.
O PIB da Espanha, entre 1975 e 1996, mais do que triplicou, com o desenvolvimento de infra-estruturas e serviços superior ao da
indústria e da agricultura; mas, por exemplo, a região tradicionalmente menos desenvolvida da Andaluzia no sul da Espanha, atingia
apenas 78% da média do PIB espanhol de 2001: contudo, nessa mesma região, na província de Huelva, investimentos públicos no
património costeiro foram até 31% do orçamento local, ao passo que na província de Cádiz chegaram aos 47% para a mesma rubrica.
Que género de conhecimentos necessita um planificador-gestor que aceite o “Decálogo para o planeamento e gestão integradas das
áreas litorais”, senão uma formação aberta à multidisciplinaridade para trabalhar numa das 35 regiões europeias contendo zonas
integradas (5). A RTVE a 10 de Março passado emitiu o documentário de Manuel Garcia, “Islas Atlanticas de Galicia” da série “Red de
Parques Nacionales”, lembrando no final o naufrágio do “Prestige”, que com os hidrocarbonetos inundou parte desta área do norte de
Espanha, em que 7 mil hectares são reserva marinha e mil hectares são reserva terrestre, havendo 55 espécies de flora endógena.
NOTAS:
(1) Raimondo Luraghi, “Histoire du Colonialisme”, Marabout, Gérard & Co, Verviers 1967, págs. 83 e 84 in «III-Le pays qui ne servait à
rien».
(2) Luiz Inácio Lula da Silva, “Celso Furtado: Mestre em Brasil”, 1 de Dezembro de 2004 (29/11/2004 in “Valor Económico”).
(3) Mikhail Bakhtine, “L’oeuvre de François Rabelais et la culture populairer au Moyen Age et sous la Renaissance”, Bibliothèque des
Idées, NRF – Éditions Gallimard, Paris 1973 (1970), pág. 46 in “Introduction : Posons le problème”.
(4) Vicente Blasco Ibañez, “A Volta ao Mundo”, Tomo I, Livraria Peninsular Editora, Lisboa 1931, pág. 70 in “VII – Panamá a verde”.
(5) Juan M. Barragán, “Las áreas litorales de España: del análisis geografico a la Gestión Integrada”, Editorial Ariel-Ciencia, Barcelona
2004, págs. 77, 80 e 86.
14 de novembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XLVIII)
Em 1972 Barbet Schroeder realiza no Uganda um retrato cinematográfico intitulado «Idi Amin Dada», uma personagem controversa que faria rir o milionário distante, dando
de comer aos crocodilos diante da câmara. Tornando absurdo o efabular de rituais locais ao nível duma tradição reconhecida pelo próprio estado, fragilizado pelo tráfico de
influências, ridicularizados pelo fascínio e nepotismo centralizado
Manuel Carvalheiro
Celso Furtado, em 1980, em “Introdução ao Desenvolvimento” (1), revisto em 2000, dava uma visão global sobre
os primeiros autores que, no seu entender, haviam marcado a teoria do desenvolvimento económico nos anos
cinquenta do século XX. Na sua sistematização de então a que chamou “enfoque histórico-estrutural” do
desenvolvimento económico-social, cuja “pequena introdução” já havia sido antes também interdisciplinar, vinte
anos atrás, além de mais cinco agora, Celso Furtado articulou a posição de Ragnar Nurkse com as de W.Arthur
Lewis e J.H. Boeke.
A heterogeneidade do sistema capitalista, como conformidade estrutural do sistema de divisão internacional do
trabalho, não pode ser esquecida no estádio actual das relações internacionais; essa heterogeneidade consumista
integrava o subdesenvolvimento. Porque o desenvolvimento, mesmo equidistante, não deixava de agravar e
agudizar o subdesenvolvimento crónico de grande parte da humanidade, destruindo as culturas locais por
negligência ou por necessidade de economia de escala ou de enclave.
A contradição do século XIX, entre rendimentos decrescentes e forte crescimento demográfico, que barraria a oferta de matériasprimas, conduzia à hipótese de que “a especialização e o progresso técnico dariam lugar a um forte aumento de bens de produção”.
Contexto recolocado nos anos cinquenta do século XX pela teoria de Prebisch-Singer, de que as guerras comerciais entre os países
desenvolvidos - e, ainda vivas, após o final da II Guerra Mundial, como sequela económica da época da Depressão dos anos trinta -,
eram então agravadas nos países em vias de desenvolvimento, numa relação de troca desigual pelas políticas proteccionistas agrícolas
que predominavam nos primeiros (2).
Pois, ainda em 1986, aqueles dos países em vias de desenvolvimento, que por ausência produtiva fossem “não exportadores de
petróleo”, tinham, porém, os seus termos de trocas comerciais agravados, paradoxalmente, sempre que os preços desse mesmo
petróleo aumentassem, num ciclo ilógico que não superavam. Em 1953, J. H. Boeke publicou “Economics and Economic Policy of Dual
Societies” em Nova Iorque, como reflexão a partir de “culturas sofisticadas”, no entender de Celso Furtado, como eram consideradas as
ainda dominadas colonialmente no Sudeste Asiático.
O próprio Ragnar Nurkse dedicava importância considerável à Índia, que ainda em 1913 fora objecto de estudo nas trocas comerciais
com o Reino Unido por Keynes, antes deste aderir à sua tese da primazia do político sobre o económico. O mais directo divulgador de
Keynes, R.F.Harrod, em 1939 dinamizou o seu modelo macroeconómico baseado no rompimento do “equilíbrio do
subdesenvolvimento”, tolerado até antes pelos economistas neoclássicos, inspirados em Ricardo e nas sequelas da teoria das
vantagens competitivas.
Subutilizando, porém, os recursos produtivos através da sua visão não- sistémica da firma e da sua racionalidade dos custos, baseada
na estabilidade de uma economia capitalista assente no sistema de preços. Sendo que a luta contra o desemprego era irrelevante,
dada a abundância de mão-de-obra no mercado, cuja vertente anti-cíclica era deixada ao Estado e a uma política económica de
potenciais “modificações estruturais”, de forma a superar o subdesenvolvimento através de um projecto contudo adiado.
Boeke referiu-se ao dualismo social das sociedades coloniais dependentes da metrópole, em que o excedente obtido pelo capitalismo
só é investido de novo depois de apropriado no exterior; a pressão local, no sentido da elevação dos salários, condiciona o processo de
acumulação; coexistindo, assim, os dois sistemas sociais, sendo que a doutrina dualista é a alternativa do colonialismo e não a
resultante directa do capitalismo nas colónias.
O salário de subsistência do trabalhador, não corresponde à produtividade deste, na marginalidade a que o sistema capitalista na
colónia lhe reserva.
Mas, a produtividade média, situa-se acima da marginal, por isso é rentável para acumulação capitalista; sendo o desemprego
disfarçado em excedente estrutural de mão-de-obra, potencial de recursos para a aceleração daquela acumulação: a mão-de-obra
tende a transitar do sector pré-capitalista para o capitalista.
O país imaginário de África de expressão francesa, algures entre o Sahara e as florestas equatoriais (3), quando a personagem de um
ministro da informação é descrita pela barriga que o fazia ter o dobro da idade que tinha, vinte e oito anos, faz também neles –
indivíduo e patriota - convergir todos os defeitos de uma fase anterior à história conflituosa da Europa a meio do século XIX. Quando os
exploradores eram motivados pela geografia, pela aventura e pela higiene: o europeu a transpirar era mais limpo do que o mineiro
cheio de fuligem do seu próprio país.
Em 1972 Barbet Schroeder realiza no Uganda um retrato cinematográfico intitulado “Idi Amin Dada”, uma personagem controversa que
faria rir o milionário distante, dando de comer aos crocodilos diante da câmara. Tornando absurdo o efabular de rituais locais ao nível
duma tradição reconhecida pelo próprio estado, fragilizado pelo tráfico de influências, ridicularizados pelo fascínio e nepotismo
centralizado.
Milton Obote, recentemente falecido, porém, em 1963, fora o estadista africano que endereçara pessoalmente um pedido à
administração norte-americana como eco de um protesto anterior à forma como as autoridades reprimiam as manifestações dos direitos
cívicos e da igualdade racial perante a lei, segundo Gail Archibald em “Les États Unis et l’Unesco” (4).
O economista Ragnar Nurkse (1907-1959), antigo colaborador da Sociedade das Nações, retroactivamente à teoria do subconsumo de
J. A. Hobson, precedendo de pouco a I Grande Guerra, refere-se a propósito ao “padrão de expansão do comércio”. Que, com
excepção da Malásia, o império britânico beneficiou; expansão do comércio esse, das regiões temperadas como celeiro do mundo;
independentemente do capital de investimento ter passado ao largo das “economias tropicais primitivas”, de colonização menos
recente. E Ragnar Nurkse confirmava: “Elas dissiparam o fantasma ‘malthusiano’ da escassez mundial de alimentos, ao menos por um
século ou dois. Isto resulta de ter sido o objecto e alcance principais das exportações britânicas de capital” (5), durante todo o século
XIX.
Será que em 2005 não há crises endémicas de fome, nessas mesmas áreas temperadas, a não ser quando mais de 2750 aldeias no
Paquistão sofrem por acidente natural um desabamento dos seus precários circuitos económicos de montanha em Outubro? Crises que
conduzem, para além dos milhares de mortes imediatos, a três milhões de migrantes na região, até à parte norte do território dividido da
Cachemira. E em que parte dos quais não poderão refazer, no mesmo local sinistrado, as suas casas destruídas, se não forem
imediatamente reconstruídas, como confirmou o presidente Pervez Musharaff.
Com ou sem auxílio internacional, o dilema é assustador: no quadro do banho ideológico, que permite posteriormente desestabilizar,
ainda mais, a região problemática, caso o desenvolvimento não passe de curativo humanitário transitório. E em que o preconceito
financeiro, mais um vez, serve de filtro à economia de mercado, sem abastecimentos normais à praça da aldeia, global e sinistrada (na
época, 44 das quais, não tinham sequer sido ainda alcançadas pelas equipas de socorros, mais de duas semanas depois do
terramoto).
NOTAS:
(1) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro - São Paulo 2000 (1980), págs. 34 a 37 in “III-A nova visão do desenvolvimento:
influência de alguns autores”.
(2) Jaime de Melo – Jean-Marie Grether, “Commerce international: Theories et applications”, Ouvertures Économiques, De Boeck
Université, Bruxelles/Paris 2000 (1997), págs. 161 a 163 in “4.7 Applications: termes de l’échange et pouvoir d’achat”.
(3) Georges Conchon, «O Estado Selvagem», Colecção Autores Universais, Livraria Bertrand, Lisboa 1964, pág. 14.
(4) Op. Cit., Publications de la Sorbonne, Paris 1994, pág. 313 in “IX-Une année trompeuse (1963)”.
(5) Ragnar Nurkse, “Equilibrio y Crecimiento en la Economia Mundial”, Ediciones Rialp, S.A., Madrid 1964, págs. 328 e 329 in
“11.Patrones de comercio y de desarrollo: 2-El papel de los nuevos países en el comercio y la inversion en el mundo” (1959).
(XLIX)
“O clássico livro ‘Formação econômica do Brasil’ quase foi condenado às traças de algum depósito velho dos correios. Quando acabou
de escrever o livro de 400 páginas, Celso Furtado estava na Inglaterra e enviou os originais para o Brasil. Sem resposta do editor,
desconfiou de extravio. Foi até uma agência dos correios e confirmou a suspeita, ganhou mil pedidos de desculpas e sete libras de
indenização. O livro só saiu porque um amigo cauteloso o havia convencido a tirar uma fotocópia dos textos. Com um rolo de filme e um
aparelho de projeção, Furtado teve que copiar página por página” (1).
O efeito de aceleração ou relação acentuada no ciclo económico, sujeito a flutuações provocadas por paragens institucionais,
solavancos temporais e fricções sociais na estrutura económica comercial - efeito esse reexplicitado na obra de W.A.Johr “Las
fluctuaciones económicas” (2), editada em Zurich em 1952 - , segundo a teoria de Harrod em 1936, que reagiu à procura de meios de
produção duradouros, face a variações imponderáveis na procura de bens de consumo, leva a substituir-se assim os meios de
produção, entretanto já esgotados pelo desgaste do seu funcionamento contínuo e a ampliar-se, desse modo, aqueles bens de
produção, devido ao aumento da procura.
Se o ciclo é largo, o crescimento é percentualmente pequeno de bens de produção, se bem que a necessidade de cobrir a ampliação
dos meios de produção percentualmente no entanto é um múltiplo de vezes maior. Sendo que o desenvolvimento económico é
condicionado por uma conjuntura de determinantes dinâmicas, tanto restritivas quanto ao crescimento percentual de bens de consumo,
como expansiva quanto ao aumento de investimentos superior ao volume da produção. Embora, depois, no auge, se possa inverter a
relação de novo, entre as determinantes que eram restritivas e passam em seguida à superação da força expansiva, impossibilitando
por isso o equilíbrio entre essas forças indeterminadamente e por isso mesmo cumprindo-se o ciclo.
Em “Le crime de monsieur Lange” (1935) de Jean Renoir, o patrão foge da pequena empresa quase familiar com o dinheiro do
pagamento dos empregados, curiosamente numa ficção sarcástica que fazia adivinhar o ano seguinte em que pela primeira vez em
França e na Europa os trabalhadores conquistaram o direito de terem anualmente férias pagas. Por contraste com “O Crepúsculo dos
Deuses” (1968) de Luchino Visconti, em que o poder económico em 1933 se interpenetrou pouco a pouco com o poder político de um
partido que conduziria a Alemanha ao rearmamento a partir de 1936 ou a aliança forçada da grande burguesia de origem aristocrática
com a pequena burguesia e o lumpen- proletariado que esvazia uma democracia com a crescente ditadura. Um filme interessante e
insólito que reproduz como uma canção de embalar de reminiscência colectiva familiar uma sociedade destruída pela guerra e que
recupera da paragem a sua auto-estima, compartilhando o desenvolvimento e a retoma do crescimento interrompido pela catástrofe da
história, é “Europa”
(1991) de Lars Von Trier, sobre a Alemanha no imediato pós-II Guerra Mundial e a restauração das vias de caminhos-de-ferro e a
indústria do aço da companhia Krupp.
Segundo Ragnar Nurkse em 1959 no seu livro póstumo “Equilibrio y Crecimiento en la Economia Mundial” (3) , uma economia dual era
aquela cujo “sector exportador bem desenvolvido coexistia com uma economia interior primitiva” (2). Ele criticou economistas como
Marshall e Robertson na sua visão do século XIX de domínio comercial britânico ao esquecerem os países exóticos e estranhos como a
China, a Índia, a África tropical e a América Central, que comparados com os ditos “países de recente colonização, ficaram
relativamente esquecidos da expansão da procura de exportações, assim como da corrente do capital”.
Os países de recente colonização eram os do sudoeste asiático, como o Afeganistão, a Birmânia, a Tailândia, a Indochina, etc. António
Rebelo de Sousa em “Da Teoria da Relatividade Económica Aplicada à Economia Internacional e às Políticas de Cooperação” (4),
resumindo os dois círculos da teoria de Nurkse, quanto ao investimento em oferta este corresponde em geral a uma “reduzida
capacidade de poupança”, círculo vicioso que se encontra nos países em vias de desenvolvimento nos anos cinquenta do século XX, a
que corresponderia uma procura de investimento, sem o Estado fragilizado apostar em incentivos para o atrair visto a produtividade ser
de baixo nível.
O tal círculo completo da inépcia da oferta e da procura de capital na era da pré-globalização e da existência de blocos. Perduraria este
“esquema analítico” ainda hoje, se Nurkse não tivesse morrido tão cedo e os blocos tivessem dado origem à OMC em 1995?
O critério central da maximização dos lucros da empresa é o objectivo principal do capitalismo: o nível de acumulação por pessoa
empregada é incompatível com o investimento feito numa sociedade onde impera o desenvolvimento retardado, posto isto só obtém
uma parte da força de trabalho disponível explicou Celso Furtado, reunindo as teorias de Ragnar Nurkse e de W.Arthur Lewis, que na
primeira metade dos anos cinquenta do século XX questionaram o funcionamento das sociedades híbridas de capitalismo e précapitalismo, sobretudo nas ilhas dependentes nas Caraíbas.
No entanto, o primeiro economista a fazer ponte entre subdesenvolvimento e desenvolvimento com a realidade social enquadrada por
uma visão da história como processo ora evolutivo ora dialéctico, foi Gunnar Myrdal (1898-1987), Prémio Nobel da economia em 1974
em ex-aequo com Friedrich Hayek (1899-1992), que desde cedo lidou com a discriminação racial nos E.U.A., assim como este último
na Alemanha, sem “uma linha demarcatória rígida entre elementos funcionais e estruturais”.
Segundo Celso Furtado, o que Gunnar Myrdal, conhecedor da interdisciplinaridade devido ao seu estudo sobre as relações entre as
raças, nomeadamente entre os WASP (White Anglo-Saxon People) e os afro-americanos, fez em relação a Schumpeter e à teoria da
inovação centrada no empresário anti- monopolista no quadro de uma busca do equilíbrio no mercado capitalista nacional, foi a
alternativa de considerar o processo social desequilibrado numa reacção em cadeia ao introduzir-se um novo factor na acumulação.
Sendo que a “situação de mercado” não só tem a ver com preços relativos, taxas de juros e elevação de lucros, mas também com uma
visão mais ampla das decisões dos agentes económicos menos limitados pelos parâmetros e variáveis, curvas e oscilações dos
quadros económicos momentâneos. E mais abrangidos pela estratificação social, no contexto de um desenvolvimento que integra e não
aliena o crescimento económico, voltado antes de costas para as manchas maioritárias do subdesenvolvimento.
O domínio das relações de trabalho na estrutura social de um país com industrialização retardada, pressupõe o estudo da acção do
respectivo Estado e a sua base de sustentação social. A marginalidade urbana é correlativa ao choque entre a concentração da renda
entre assalariados que tanto pode reproduzir como agravar a concentração de riqueza da economia capitalista no controlo de senhores
com egocentrismo deslocado na história presente. “Aliás, com Furtado, a expressão ‘desenvolvimento’ passa a ser entendida como
crescimento integrado a redução das desigualdades sociais. Mas sua contribuição é analítica, ele inaugurou no país e na América
Latina mais ou menos concomitantemente com Aníbal Pinto e Maria da Conceição Tavares a discussão sobre padrão ou modelo de
crescimento” (5). E mais adiante : “Furtado integrou dois conjuntos de elementos: o perfil da oferta de bens e sua transformação e o
perfil da demanda de bens, que refletiria a composição do emprego, dos salários e da distribuição de renda”.
NOTAS :
(1) “Celso Furtado : O economista do social”, C&T Jovem, MCT, Brasil 2002/2005.
(2) Op.cit., Libreria “El Ateneo” Editorial, Buenos Aires 1958, págs. 274 a 276 in “VII-El modelo de la competencia perfeita como modelo
inicial”.
(3) Op. Cit., Ediciones Rialp, S.A., Madrid 1964, pág. 327.
(4) Op. Cit., Colecção Teses, Universidade Lusíada Editora, Lisboa 2004, págs. 78 e 79 in “2.7.Contribuições dos autores
estruturalistas”.
(5) Ricardo Bielschowski, “Furtado explicou nosso atraso”, Revista Economia e Política Vol. 25 N.2 Apr./June, São Paulo 2005
(entrevista a Folha de S.Paulo 28/11/2004).
21 de novembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (L)
Manuel Carvalheiro
A propósito da aplicação do Plano Trienal de desenvolvimento e crescimento económico iniciado em 1963,
quando Celso Furtado era ministro do Planeamento na administração Goulart, sendo Santiago Dantas, um antigo
ministro dos Negócios Estrangeiros, agora, naquele passado contexto, ministro da Fazenda (Finanças), um
estudioso dá-nos um retrato credível numa atmosfera social de sinais contraditórios e tumultuosos, como era a
daquela época da realidade latino-americana e, do Brasil, em especial.
Diz esse estudioso: “As críticas se aprofundaram a partir do momento em que as consequências da política de
eliminação de subsídios ao trigo e ao petróleo começaram a ter efeitos sobre os salários das classes populares”. E
mais adiante, comentava: “Ao mesmo tempo em que retirava os subsídios para o trigo e o petróleo e cortava
investimentos públicos, o governo anunciou que estava prestes a adquirir, por 188 milhões de dólares, doze
usinas do sector de energia eléctrica norte-americanas” (1). “Cabra Marcado para Morrer” (1984) de Eduardo
Coutinho é citado, como sendo um filme que retratou esses tempos tumultuosos, até ao desfecho do final do primeiro trimestre de 1964.
Quarenta anos depois, é no próprio território norte-americano que a natureza social de uma falha de coordenação na assistência
pública, após uma imprevista catástrofe de tal amplitude, faz revelar a sua relação indirecta com o petróleo como ainda principal fonte
de energia, à parte a electricidade e o nuclear.
A questão racial e de classe foi abordada, por conseguinte, anteriormente, durante o atraso de quatro dias, a propósito da resposta do
governo federal americano ao pedido do governo estadual, aquando do furacão Katrina a 29 de Agosto de 2005, tanto na Louisiana
como no Mississippi, como razão da inércia e do atraso decorrente da burocracia: mas, parece que foram mais problemas de classe do
que raciais; na medida em que a noção de classe social desfavorecida se repercutiu mais sobre a população afro-americana ou negra.
Como, talvez, enquanto motivo imediato para a origem da evacuação dos doentes de um hospital privado, antes de um outro, público,
em Baton Rouge, a segunda cidade do estado da Louisiana. Soerguendo aqui um problema de ética por parte das autoridades locais
públicas, que deram primazia estranha à evacuação de um hospital privado, antes de um público com população no seu conjunto mais
carecida economicamente.
Seja como for, uma tragédia tão bem enunciada como no filme de Gus Van Saint em “Elephant” (2003), premiado em Cannes com a
Palma de Ouro, revela o estado de espírito numa escola terminal de adolescentes norte-americanos precocemente adultos. E
intoxicados pela virilidade nostálgica da suástica e do seu reverso hindu simbólico, que não obstante conduzem - como imagens
históricas subliminares e vistas a preto e branco num circuito interno televisivo (onde também passavam jogos de eliminação física) um dueto problemático - um deles toca piano antes da missão suicida - à compra de armas pelo correio e ao desejo de extermínio dos
colegas e professores na biblioteca local.
Um economista conhecedor dos problemas de terreno clarifica: “Em Outubro, o Brasil enfrentará uma nova rodada de licitação de
nossas bacias petrolíferas. Apesar de identificadas por geólogos da Petrobrás, essas áreas vêm sendo leiloadas pela Agência Nacional
do Petróleo (ANP) com autorização do Governo Federal, o que impede a estatal brasileira de incorporar activos importantes como
petróleo e gás” (2).
O mesmo economista conclui: “Isso significa que o Brasil está a caminho de se tornar importador do seu próprio petróleo, retornando ao
passado, apesar de o país estar a caminho da auto-suficiência. Como especialistas independentes prevêem um choque do petróleo a
ocorrer até 2010, o Brasil sofrerá as agruras dos choques anteriores, o que não ocorreria se o governo brasileiro tivesse mantido o
monopólio estatal do petróleo” (2). Rubens Ricupero em “Esperança e Ação” (3) referiu-se aos choques petrolíferos de 1973 e de 1979,
como no seguimento da crise de civilização inaugurada em 1968 com o questionar individualista da sociedade de consumo destruída
pela competitividade desumanizada. Recuperando o conceito de pauperização, aparentemente ultrapassado desde 1848 e reactivado
pela campanha anti-globalização desde 1998.
Seria no entanto arrojado fazer-se uma previsão tão pessimista como aquela que ficcionalmente foi feita em “2010” (1984) de Peter
Hyames, um filme de ficção científica que, numa dada sequência decorrida numa nave espacial de programa russo-americano, nos
introduz num conflito entre blocos rivais da política terrestre. Por causa, supostamente – e, quase no limite do ridículo, do contexto do
programa da guerra das estrelas do presidente Reagan, posteriormente abandonado, mas então contemporâneo da produção do filme
e da sua antecipação irónica -, do bloqueio a um país da América Latina, que desencadearia um novo risco de guerra atómica. E por
reflexo, prejudicando a cooperação tecnológica e científica entre os antigos rivais, de novo numa espiral de contenda mais profética do
que realista.
A indústria brasileira, na ideia então em vigor de processo de industrialização entre a democracia e a ditadura - segundo um estudo da
CEPAL, concomitante ao período 1961-1971 (quando, de facto, existiu o perigo de conflagração mundial, por causa da crise dos
foguetes em Cuba, em 1962 e o decorrente bloqueio, até hoje nunca levantado) -, poderia atender a 86% do equipamento eléctrico
necessário para aquela época. Desde que, já então, tivesse cumprido “certos requisitos, no sector de equipamentos básicos” (4),
prevendo-se nessa altura, por volta de 1966-67, segundo Fernando Henrique Cardoso no dossier “Brasil: Tempos Modernos”,
coordenado em 1967 por Celso Furtado a pedido da revista “Les Temps Moodernes”, que como integração industrial o Brasil pudesse
socorrer 64% do ramo petrolífero e petroquímico.
De resto, Celso Furtado em “A Fantasia Desfeita” (5) comentou, retroactivamente, em 1988, o seu papel no tão contestado, por razões
conjunturais, Plano Trienal de 1963-1965: “Tivera o cuidado de, no plano de economias visando a reduzir o défice de caixa do Tesouro,
abrigar-me no artigo 7 da lei orçamentária para 1963, o qual estabelecia que as despesas variáveis podiam ser contidas em até 45%,
‘mediante proposta a ser submetida pelo Poder Executivo ao Congresso’. Por outro lado, respeitara os planos de investimentos
públicos, concentrando o corte nos subsídios directos e indirectos, dentre os quais se destacavam os ao trigo e combustíveis e
lubrificantes derivados do petróleo”.
NOTAS:
(1) Caio Navarro de Toledo, “1964: o golpe contra as reformas e a democracia”, Unicamp, Revista Brasileira de História, Vol.24 n.47,
Maio, São Paulo 2004
(2) Nílton Pedro da Silva, “Celso Furtado: ícone da utopia desenvolvimentista brasileira”, COFECON - Conselho Federal de Economia,
Brasília 2005.
(3) Op.cit., Paz e Terra, São Paulo e Rio de Janeiro 2002, pág. 228.
(4) Fernando Henrique Cardoso, “Hegemonia Burguesa e Independência Econômica : Raízes Estruturais da Crise Política Brasileira”, in
Op.Cit, Paz e Terra (3ª edição), Colecção Estudos Brasileiros n. 23, Rio de Janeiro 1979, pág. 90
(5) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro 1989, pág. 160 in “Inovações no planejamento”.
28 de novembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LI)
Manuel Carvalheiro
Será talvez um epifenómeno dramático, pouco compreensível no contexto actual, evocar-se a sensibilidade
nocturna do expressionismo alemão, quando já então nos E.U.A. o realizador Friedrich W.Murnau realizava
“Aurora” (Sunrise, 1927), sobre também a força da natureza durante uma tempestade num lago próximo da hoje
antiga cidade de Tilsit, perto de ex-Konigsberg (antiga capital alemã da Prússia Oriental e onde nasceu, viveu e
morreu o filósofo Emmanuel Kant)- situadas actualmente no enclave russo de Kalininegrado, em território prussooriental polaco, mas aquela agora com o nome de Sovietsk.
E em que o volte-face da natureza humana, correspondia à imprevisibilidade do desfecho de um temporal,
enquanto contexto naturalista da sensibilidade e crueldade humanas: era a razão crítica da imagem, como razão
pura da então actualização do imperativo categórico de um alemão, este também filósofo das artes e tendo vivido
na Suiça; Murnau, nascido em Murnau na Vestefália, fora piloto de aviões na I Grande Guerra, antes de ser um
faustiano realizador de cinema, emigrado entretanto na América a partir de 1926.
Cerca de 79% do petróleo estava fora de recolha e 58% de gás natural idem aspas, quando 90% da produção de petróleo do Golfo do
México estava paralisada devido a questões eléctricas, às inundações e destruições de plataformas e refinarias na costa marítima
americana. Os E.U.A. importam 13 milhões de barris dos 18 milhões que gastam por dia de petróleo (de crude).
Daí, terem precisado da ajuda externa conjuntural de dois milhões de barris suplementares por dia, a partir de 2 de Setembro de 2005,
para os trinta dias seguintes, após a avaliação da tragédia do furacão Katrina. Também cerca de 58 plataformas, refinarias e navios ou
outras instalações, estavam fora de operacionalidade. Prevê-se um decréscimo de população nas zonas costeiras, cujo crescimento e
actividade económica poderão ser afectados até 2010, num prévio estudo de 1994 que fez um levantamento desde 1960, constatando
a contaminação do ambiente marinho norte-americano. E, por consequência, a diminuição da atracção das qualidades dos recursos
sociais, sendo que práticas predatórias em terra, podem de certa maneira afectar negativamente os recursos em água e a herança
cultural respectiva (1).
Pelo menos 10 refinarias não operavam, o que significavam 25% da produção do petróleo nos E.U.A.. Como consequência directa, o
galão de 3,8 litros chegou a custar - nos primeiros dias após a catástrofe do furacão Katrina - cerca de 6 dólares, pensando-se logo que
poderia vir a provocar inflação, que se repercutiria a breve prazo nas taxas da Reserva Federal Norte-Americana (como acabou,
efectivamente, por vir a acontecer, depois).
Aquando da passagem do furacão Rita, por cidades no sul dos Estados Unidos da América, incluindo, entretanto, o próprio estado do
Texas, foram afectadas 19 refinarias, próximas de quatro cidades texanas situadas entre Houston e Beaumont. Centros petrolíferos
esses, afectados na sua produção regular e que obrigaram, por conseguinte, a fazer novas estimativas: com a previsão imediata, de
27,4% da produção norte-americana afectada, de derivados do petróleo refinado, como gasolina, gasóleo e óleo; e correspondendo,
sobretudo, entretanto, ao aumento do preço da gasolina para 5 dólares o galão. Tendo, por isso, ameaçado, assim, a economia
mundial por reflexo dessa crise imediata: o que levou a UNCTAD, a querer reunir os responsáveis pela política energética dos E.U.A.,
com os da União Europeia, do Brasil e da Índia.
Em 1987, Celso Furtado referiu no seu livro “Transformação e crise na economia mundial” (2), a propósito do “desenvolvimento
retardado” e da “preservação da identidade cultural”, o que ele apelidou de “governo multi-soberano”, isto é, a então CEE de doze
países europeus (com a recente entrada da Espanha e de Portugal). Considerando-a como uma das novas formas de organização para
fazer face a um poder transnacional, que no quadro de uma crise económica dificultaria o acesso à tecnologia ; e, em que um dado
sistema económico nacional poderia perder, se isolado, a sua autonomia de decisão; perante empresas que punham em causa os
dispositivos de auto-regulação, privando-o da expansão necessária ao comércio internacional, atendendo às “diferenças de níveis de
desenvolvimento”.
Um conflito de interpretação da antevisão da Lei Mundial do Mar levou o Canadá a interpelar a CEE em 1993, quanto às normas
pretensamente violadas de conservação do pescado em alto-mar pela Espanha e por Portugal entre 1986 e 1989. Atribuindo-se-lhe
uma zona costeira alargada, em que as quotas eram largamente ultrapassadas pelos arrastões, oriundos da Europa há décadas, numa
tradição dificilmente regularizada. Sobretudo, quando se exercia um poder de dissuasão para além do projecto convencionado e que só
seria aprovado a 16 de Novembro de 1994, depois de longas negociações entre 70 estados de costas pesqueiras e 10 estados de
pescas distantes (3).
Uma classificação feita em 1994 sobre os modelos de cidades europeias apoiada em “características estruturais”, tais como a
“concentração de poderes de decisão”, a “concentração de empresas e/ou de instituições internacionais”, a “presença de serviços
terciários de nível metropolitano” e “uma mais ou menos boa acessibilidade geográfica”, serviria para distinguir cinco tipos de grandes
centros populacionais: entre metrópoles cosmopolitas como Londres e Paris, metrópoles regionais como Dusseldorf e Estrasburgo ou
sub-regionais como Salzburgo e Berna; e cidades periféricas como Lisboa e Dublin ou mais ou menos periféricas como Barcelona e
Atenas. Todas elas em grupos quer com um estatuto internacional dominante, especializado, como em crescimento ou limitado (4).
Como reflexo paradoxal, a acalmia dessa crise petrolífera, cerca de dois meses depois, conduziu três companhias a lucros excessivos,
como a Chevron que ganhou 3,6 mil milhões de dólares, a Cocono 3,8 mil milhões de dólares e a Exxon 9, 9 mil milhões de dólares. O
que alertou a Comissão Nacional de Política Energética do Senado norte-americano, quanto ao escândalo, a 9 de Novembro de 2005.
No programa da CNN “NewsNight-State of Emergency”, a 28 de Outubro de 2005, foi revelado que a população dessa área sinistrada
nos E.U.A. havia crescido 14%, do mesmo modo que as licenças de condução automóvel. Mas, só foi de 6% o crescimento de auto-
estradas, o que deu origem a terríveis engarrafamentos, aquando da evacuação da população por causa dos furacões Katrina e Rita,
nomeadamente nos cinco estados do Sul, Texas, Louisiana, Alabama, Mississippi e Florida.
Por outro lado, o tufão Damrey, na mesma altura, depois de atravessar as Filipinas e a China, atingiu o porto de Haiphong no Vietname,
obrigando a uma longa evacuação de populações do litoral no golfo de Tonquim. Embora provocasse relativamente poucas mortes,
destruindo apenas 950 casas, mas mobilizando 25 mil militares para o socorro na evacuação de cerca de 300 mil habitantes das áreas
afectadas. Na China, o mesmo tufão já havia dado um prejuízo equivalente a 100 mil milhões de euros, só na ilha de Hainan; tendo,
contudo, apenas provocado a morte de dez pessoas, à sua passagem.
A governadora do estado da Louisiana, em jeito de balanço final, embora ainda sujeito a correcção ulterior - em alta ou em baixa -,
estimou em ¼ de trilião de dólares a verba para a reconstrução das áreas sinistradas, após a passagem catastrófica do Katrina e do
Rita, quando os seguros só cobririam cerca de 100 mil milhões de dólares da área sinistrada. O índice de confiança do consumidor - em
face do rescaldo catastrófico do furacão Katrina - recuou para índices mais baixos, de há dez anos.
Entretanto, foi revelado pela BBC World a 17 de Setembro passado, que cinco companhias de seguros tentaram enganar sobreviventes
do furacão, quanto a pagamentos de indemnização. Em 1961, o furacão Carla havia coberto o Golfo do México, naquela girândola que
os caracteriza, vistos da estratosfera por imagem de satélite, provocando a interrupção de 1300 milhões de barris de petróleo no Golfo
do México.
A OPEC/OPEP produzia 28 milhões de barris de petróleo por dia, segundo a BBC World a 22 de Setembro de 2005; como tal, decidiu
não aumentar a respectiva produção da sua quota, por que mesmo assim teria por dia 1,5 milhão de barris de petróleo excedentários.
Montante de barris esses que, contudo, estão à disposição de Gordon Brown, que representa a União Europeia nas negociações
petrolíferas. O Xeque que actualmente dirige a OPEC/OPEP pedia, em contrapartida, 50% do valor das taxas para, em caso contrário,
não aumentar a produção diária; já que o preço do barril de petróleo estava, então, elevado no contexto internacional. Isto, porque só
68% do seu preço era referente a taxas de produção de petróleo apropriadas pelas companhias estrangeiras, enquanto que outros 16%
eram referentes a refinarias e mais o comércio dos “marketers”, para além de outros tantos 16%, estes sim que eram aqueles que, na
realidade menos conhecida da opinião pública, eram os únicos apenas cobrados pelos países exportadores.
Países esses que, concretamente, se achavam então mais preocupados com os abastecimentos (supplies) do que com a procura do
petróleo (demand) no contexto energético instável, desde então e, talvez, mais ligeiramente atenuado agora. O realizador Werner
Herzog fez um documentário intitulado “Lessons of Darkness” (Lektionen in finsternis, 1992) a propósito do incêndio provocado nos
poços de petróleo kuweitianos a seguir à Guerra do Golfo em 1990/1, mostrando o trabalho de uma equipa internacional de bombeiros
especializados em acidentes naturais no deserto, com sensibilidade cromática e musicalidade etérea face à gravidade das condições
penosas na areia escaldante.
Harvey O’Connor em “O Petróleo em Crise” dizia: “As reservas do Kowait são hoje estimadas em 62 bilhões de barris, um quinto de
todo o abastecimento mundial conhecido, duas vêzes o dos Estados Unidos”. E mais adiante, relembrando o quadro de concessão do
Xeque em 1934 à Kuwait Oil Company, resultado do acordo entre a Gulf Oil de Mellon e a Anglo-Persian de John Cadman, com o
beneplácito concessionário de Frank Holmes da Eastern & General Syndicate com direitos no Bahrein e na Arábia, que teria o prazo de
75 anos, isto é, até 1999, aquele autor do livro citado adiantava ainda a respeito: “Em 1951 o Kowait recebeu a participação meio-ameio, em troca da qual a concessão foi prorrogada por mais 17 anos, até 2026, a mais prolongada concessão de que se tem
conhecimento” (5). Chamavam-lhe com desprezo, devido ao atraso da técnica de refinação, “betume”.
NOTAS:
(1) Edward D.Goldberg, “Coastal zone space: Prelude to conflict?”, IOC Ocean Forum, Unesco Publishing, Paris 1994, págs. 16 a 18 in
“The diminishing coastal zone”.
(2) Op. cit., Paz e Terra, Rio de Janeiro - São Paulo 1987, Págs. 258 a 260 in “Um mundo desregulado” (conferência na Universidade
Técnica de Lisboa a 23 de Março de 1987).
(3) Gareth Porter, Janet Welsh Brown and Pamela S.Chasek, “Global environmental politics” (Third Edition), Westview Press, Colorado Oxford 2000, pág. 138 in “Straddling and highly migratory fish stocks”.
(4) Nadine Cattan, Denise Pumain, Céline Rozenblat, Thérèse Saint-Julien, “Le Système des Villes européennes” (2ème édition),
Anthropos, Paris 1999 (1994), págs.162 a 176 in “Prospective pour un système des villes européennes”.
(5) Op. cit., Zahar Editores, Rio de Janeiro 1962, pág. 379 a 381 in «29 - Kowait : O Eixo Dourado».
5 de dezembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LII)
O American Petroleum Institute afirmou, também, já a 23 de Setembro passado, que 21 refinarias se encontravam no percurso do furacão Rita, mas dias depois só apenas
duas delas haviam sido seriamente atingidas. O preço do barril de petróleo desceu entretanto nessa época após o evento catastrófico seriado para 66,40 dólares
Manuel Carvalheiro
A reserva federal norte-americana subiu o preço do dólar de 25 pontos percentuais de 20 para 21 de Setembro de
2005, com a subida da taxa de juro para 3,75%. A FED pretende combater assim a inflação, não se preocupando
tanto com o incentivo ao crescimento económico, caso não tivessem subido as taxas. Mas o FMI/IMF destina para
2006 que a economia mundial vai crescer 4,3%, segundo o canal EuroNews ainda a 21 de Setembro passado: o
crescimento da União Europeia vai deste modo passar previsivelmente de uma estimativa anterior de 1,2% para
agora uma projecção mais afinada de 1,8%, sendo que o dos E.U.A. descerá de 3,5% para 3,3%, mantendo-se
contudo constante o do Japão nos 2,2% em 2005-6. As taxas de juros no Japão estiveram a 0,10%, na União
Europeia a 2%, nos E.U.A. já entretanto a 4% (depois da saída de Alan Greenspan) e no Reino Unido a 4,5%.
Em 1983, Robert Bresson realizou o seu último filme magistral, “L’Argent”, em que reflectia sobre as fraudes
juvenis feitas com os novos cartões plastificados de crédito. E em que, por ironia, numa sociedade
maioritariamente rural (apesar da desertificação populacional nas áreas agrícolas devido à sua industrialização pecuária, piscícola e
alimentar), numa cena dostoievsquiana inspirada em “Crime e Castigo” e de visita a uma prisão citadina, uma personagem aí retida lê
“Contribution à la critique de l’économie politique”, ensaio clássico escrito por Karl Marx durante o apogeu da revolução industrial, em
1859, na Inglaterra. A propósito do FMI, Celso Furtado no seu livro “Transformação e Crise na Economia Mundial” dizia que a instituição
em 1983 tinha perdido influência no “fluxo de pagamentos correntes”, mercê então do “aumento do valor das reservas monetárias e do
volume das transacções internacionais em bens e serviços”, porque “o desenvolvimento deu-se fora de qualquer controle institucional”
(1).
O American Petroleum Institute afirmou, também, já a 23 de Setembro passado, que 21 refinarias se encontravam no percurso do
furacão Rita, mas dias depois só apenas duas delas haviam sido seriamente atingidas. O preço do barril de petróleo desceu entretanto
nessa época após o evento catastrófico seriado para 66,40 dólares. Porém, Brenda Erkwuzel da “Union of Concerning Scientists”
(Associação dos Cientistas Solicitados) declarava com picardia à BBC World no mesmo dia que desde há quinze anos o aumento do
dióxido de carbono no Golfo do México era responsável pelo aumento da temperatura da água do oceano a 90º Fahrenheit e que a
frequência dos furacões não tinha mesmo nada a ver com o inquietante fenómeno actual. Agora, o preço do barril de petróleo está a
54,45 dólares a 15 de Novembro de 2005 (dois anos antes, o Brent estava entre os 29 e os 32 dólares).
O maior produtor de gás do mundo, a companhia russa Gazprom, permitiu participações da companhia norte-americana Chevron,
juntamente também com co-participações de mais duas companhias da França e da Noruega segundo o mesmo canal EuroNews já
antes a 17 de Setembro de 2005; o estado russo controla 1/3 da produção gerida, que doze dias depois comprou por 13 biliões de
dólares à Sibneft 75% dos seus interesses. O Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento aprovou em tempos um
projecto de construção de refinaria e de oleadutos na ilha de Sacalina, dirigido pela companhia petrolífera Shell, com um orçamento de
20 biliões de euros, apesar de terem entretanto crescido os problemas ambientais, que já porém existiam desde a altura em que as
renas e os cetáceos a 6200 milhas a leste de Moscovo acusavam no seu “habitat” a influência do projecto em construção.
O que faz com que por exemplo uma simples baleia leve três anos a repovoar o seu grupo caso não tenha morrido precocemente,
segundo o que se aquilatou de uma reportagem da BBC World exibida a 5 de Outubro passado, revelando as preocupações de uma
associação ambientalista internacional como a World Wild Fund (WWF). Pela mesma altura, a União Europeia fazia uma mesa redonda
com industriais russos em Londres. Nesse contexto, Igor Yurgens garantiu à opinião pública mais esclarecida que 17% da associação
de produtores de petróleo na Federação da Rússia, que reúne trezentos mil associados, vão para actividades filantrópicas e para
organizações de interesse social, mais do que no Reino Unido portanto.
Por acaso, mas com oportunidade, o programa “Earth Report” exibido na BBC World a 28 de Setembro passado fora dedicado às
alterações das fugas de petróleo no fundo marinho das plataformas da BP, a segunda maior companhia petrolífera do mundo. No
Relatório da Comissão Mundial Independente para os Oceanos, em 1998, “O Oceano Nosso Futuro” (Cambridge Press
University/Fundação Mário Soares-Expo’98, in “2- Em busca da equidade dos oceanos: O argumento da equidade”), referia-se
pioneiramente uma parceria entre o Fundo Mundial para a Natureza e a transnacional Unilever a propósito das empresas de mariscos,
anunciando-se uma estratégia empresarial com alguma preocupação pelo desenvolvimento sustentável, revelando já então “maior
sensibilidade aos impactos negativos do ajustamento estrutural e de processos de globalização”.
De recordar é a cena do início da exploração de um poço petrolífero no filme “Louisiana Story” (1948) de Flaherty, que com lirismo nos
dava o contraste entre uma sociedade rural e arcaica e um modo de produção que viria a galvanizar a esperança da população para o
melhoramento das suas condições de vida, que perigavam na inocência de um meio florestal pantanoso e campestre invadido por um
processo de industrialização letal para a civilização em busca de uma logística artificialmente expansiva e predatória. A viuva de
Flaherty, Frances, em 1964 apresentou uma montagem de quinze horas de um filme intitulado “Studies for ‘Louisina Story’”. O filme fora
produzido com o auxílio da Standard Oil, companhia que curiosamente testara a gasolina com chumbo desde 1922 e em que num
grupo de 49 trabalhadores 5 tinham morrido devido a envenenamento, sendo que desses 35 sofreram “sintomas neurológicos” (2).
Eric Hobsbawm na sua avaliação do Terceiro Mundo no século XX tem a dado passo do seu livro de divulgação aprofundada dos
dissabores e avanços do processo histórico a seguinte reflexão sobre a intervenção do petróleo na marcha dos acontecimentos
referentes ao desenvolvimento económico de países então desmunidos de qualquer tipo de planeamento social : “O petróleo era então
tradicionalmente produzido por empresas privadas ocidentais, que tinham em geral as mais estreitas relações com as potências
imperiais” (3). O facto das empresas serem privadas e não públicas dos países desenvolvidos implantadas nos países em vias de
desenvolvimento carentes de meios tecnológicos para fortalecerem a utilização dos seus recursos naturais foi sobretudo uma
característica da primeira metade do século XX. E Hobsbawm continuava: “Os governos, seguindo o exemplo do México em 1938,
passavam agora a nacionalizá-las e dirigi-las como empresas estatais”.
Curiosamente, o presidente Lula no Brasil a 18 de Novembro de 2005 recebeu o candidato índio à presidência da Bolívia, que o
notificou de que um dos aspectos do seu programa era a nacionalização do petróleo e do gás bolivianos caso fosse proximamente
eleito. Sintoma que Lula disse respeitar mas que haveria uma maneira de preservar os interesses da companhia estatal brasileira
Petrobrás que tinha avultados investimentos na Bolívia e que havia até então de alguma forma contribuído para o desenvolvimento
mais harmoniosos da Bolívia. A respeito da lei do petróleo em 1997 no Brasil, um especialista em geofísica, concluiu: “Como o sistema
produtivo dos fornecedores locais padece de séria defasagem tecnológica em relação aos concorrentes internacionais, e como ocorrem
muitas ‘falhas de mercado’ no Brasil - por ex. taxas de juros altas, infra-estrutura deficiente, etc. -, é necessário que haja um órgão de
política industrial que atue no sentido de corrigi-las. É justamente esse ator que esteve ausente das mudanças institucionais e das
políticas da década de 1990 na indústria do petróleo” (4).
Num filme melodramático de Edmund Goulding, “The great lie” (1941), uma cena separadora de uma acção decorrida num palacete no
sul profundo dos Estados Unidos da América, dois personagens cavalheirescos fazem girar um globo terrestre que, de repente, como
um “leitmotiv” visual e sinfónico, pára. E onde, primeiro, é apontada a Bolívia e, depois, nomeada algures na área do Brasil a cidade de
Manaus: a paixão pelo globo terrestre e o girá-lo como uma bola, dá posse, pose e distanciação, à acção do norte-americano rico.
Também, interessado na América do Sul, como um terreno de risco, aventura, experiência e retorno ao doce lar, com mil histórias para
contar à família endinheirada. Mote de um romance de uma vida generosa, a do empresário desprendido da cobiça, como no século
XIX de expansão do capital britânico e dos cavaleiros da indústria.
Contudo, Hobsbawm apontava também a alternativa que havia prevalecido: “Os que se abstinham de nacionalizações descobriam
(sobretudo após 1950, quando a ARAMCO ofereceu à Arábia Saudita o até então inimaginável acordo de uma divisão de rendimentos
50/50) que a posse física de petróleo e gás lhes dava o domínio das negociações com as empresas estrangeiras”. E foi neste dédalo de
interesses contraditórios e conflituosos que se originou o contra-poder às transnacionais petrolíferas: “Na prática, a Organização dos
Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que acabou ameaçando o mundo para obter concessões nos anos 70, tornou-se possível
porque a posse do petróleo do mundo passara das empresas para relativamente poucos governos produtores”, conclui a este respeito
Eric Hobsbawm, talvez exagerando a ameaça velada e o tipo de sociedade em que então se vivia em 1973, aquando do primeiro
choque petrolífero. “A existência de um mercado mundial disposto absorver tudo, e no qual se pode procurar tudo, não só permite como
gera desenvolvimentos desarticulados, em que prosperam actividades nómadas, que não estimulam – ou até sufocam – as actividades
sedentárias locais, deixando assim faixas inteiras da sociedade na miséria” (5). A noção de “desenvolvimento desarticulado” entre
actividades nómadas e sedentárias, mistura uma fase anterior à revolução industrial do século XIX com o chamado “modo de produção
asiático”, assente num absolutismo particular em que castas de funcionários faziam a osmose com a sociedade da era do moinho e da
charrua.
Em “A vida continua” (1990) de Abbas Kiarostami, um terramoto no Irão serve de guia de conduta de um automobilista e do seu filho
pelo itinerário da falha geológica mortífera, entre uma auto-estrada com engarrafamento e caminhos de cabras à volta da zona rural
sinistrada. Fazendoo desta narrativa em forma de inquérito um documento único no género catastrófico, através da valorização de um
cinema nacional voltado com autenticidade para o problema da instrução, educação e cultura da infância e da juventude. Perante um
acontecimento de tal natureza e significado mundial, com as arestas do desenvolvimento polidas pela informação em vias de
conhecimento “auto-didáctico”.
NOTAS:
(1) Op. cit, Paz e Terra, Rio de Janeiro - São Paulo 1987, pág. 166 in “VI - A crise econômica internacional e a tutela do FMI”.
(2) “World Resources: A Guide to the Global Environment - 1998-99”, A joint publication by WRI+UNEP+UNDP+WB, Oxford University
Press, New York - Oxford 1998, pág. 60 in “Persistent Organic Pollutants: Lead in Gasoline”
(3) Eric Hobsbawm, “A era dos extremos: breve história do século XX (1914- 1991)”, Editorial Presença, Lisboa 1996 (1994), pág.345 in
“Segunda Parte: A Era de Ouro; 12. O Terceiro Mundo”.
(4) André Tosi Furtado, “Mudança Institucional e Política Industrial no Setor Petróleo”, Departamento de Política Ciêntifica e Tecnológica
- Instituto de Geociências, Unicamp, SBPC-Labjor, Brasil 2002.
(5) Pierre-Noel Giraud, “As desigualdades do mundo” (Éditions Gallimard, Paris 1996), Terramar-Editores, Distribuidores e Livreiros,
Lda, Lisboa 1998, pág. 115 in “As políticas do desenvolvimento”.
12 de dezembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LIII)
Manuel Carvalheiro
Nos pólos citadinos de Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Rio de Janeiro, este último transformarase para os economistas brasileiros de então num “campo de batalha ideológica”, segundo afirmou Celso Furtado
quarenta e cinco anos depois recordando o tempo em que Brasília estava ainda em construção (1).
Pois, em 1957, ele tinha deixado o “manto protetor e imobilizador de funcionário internacional”, regressando de
Santiago do Chile, onde estivera na CEPAL, durante nove anos com a equipa de Raul Prebisch nesse organismo
económico das Nações Unidas para a América Latina e antes de seguir para Cambridge, onde a convite de um
economista local de formação “keynesiana”, Nicolas Kaldor, permaneceu cerca de um ano a escrever “Formação
Económica do Brasil”, um livro que consolidaria o seu prestígio. Nesse intervalo, fez dez conferências em meados
de 1957, sobre um curso de treinamento ministrado no Banco Nacional de Desenvolvimento Económico no Rio de
Janeiro. Tendo-as de imediato publicado com o título “Perspectivas da Economia Brasileira”, depois dos seus dois
livros, “A Economia Brasileira” em 1954 e “Uma Economia Dependente” em 1956, terem sido a base para voos epistemológicos mais
importantes.
Celso Furtado gizou, com clareza, simplicidade, elegância, convicção e cultura, o quadro dinâmico de um Brasil em que segundo ele,
em 2002, recordando o feito pedagógico de 1957, o “divisor de águas perdera nitidez, já não se distinguindo facilmente quem andava
para frente e quem andava para trás, como dissera Robert Musil da Viena decadente”. A referência a Viena, capital da Áustria recém
saída do império austro-húngaro, após a Grande Guerra Mundial de 1914-1918, é apenas incidental; e, contraposta em recordação de
2002, quando Celso Furtado já ocupava há cinco anos a cadeira número onze na Academia Brasileira de Letras, depois de eleito ou
cooptado em 1997 com o discurso de elogio a cargo do académico Eduardo Portella, polemista reputado ao tempo da administração do
presidente João Goulart entre 1961 e 1964. Mas referência aquela a Viena, bastante significativa, tendo em conta, tal como o filme
evocativo do final da II Guerra Mundial (e da divisão entre os Aliados, a respeito do território antes anexado em 1938 pela Alemanha),
“Welcome to Vienna” (1986) de Alex Corti. Filme esse que reeditou como um documento dramático inspirado numa peça de Thornton
Wilder, a problemática do mercado negro. Evocado também outrora por Billy Wilder em “A Foreign Affair” (1948) na Berlim do pósguerra ou a trapalhada das zonas de influência administrativa e económica citadinas, dividas geograficamente a régua e esquadro, sem
terem em conta os problemas reais da população afectada, como na igualmente na sátira de “O Terceiro Homem” (1949) de Carol
Reed.
O problema da decadência dos sistemas económicos é o que, no entanto, interessou Celso Furtado em 1957, dois anos depois da
desmilitarização da Áustria e da sua neutralidade (negociada desde antes com o seu ingresso simultâneo com Portugal nas Nações
Unidas), a propósito daquele curso de desenvolvimento dado num banco, destinado a corrigir esses efeitos perversos que, em 2002, ao
evocá-lo com agudeza de espírito, lhe fizeram lembrar essa Viena mais distante no tempo – de encruzilhada entre os séculos XIX e o
XX – e, sobretudo, entre as duas grandes guerras mundiais do século passado. Isto é, o Rio de Janeiro em 1957 recordava-lhe, vinte
anos antes, a Viena que em 1937 dispersara os seus valores intelectuais – inclusive financeiros e económicos – pelo mundo inteiro.
Chegando ao paradoxo de um dos seus lídimos representantes culturais, como foi o caso de Stefan Zweig, vir parar ao Brasil e, em
1941, escrever um notável ensaio intitulado “Brasil, País do Futuro” (2), em que a dado passo vaticinou: “Um número espantosamente
grande de pessoas continua a não cooperar aqui na vida econômica nem como produtor, nem como consumidor; segundo a estatística,
o número de pessoas sem ocupação ou sem determinada ocupação orça por 25 milhões (Simonsen: ‘Níveis de vida e a economia
nacional’), e seu padrão de vida é, sobretudo nas zonas equatoriais, tão baixo que as condições de alimentação às vezes são piores
que as dos tempos da escravidão”.
Ainda mais um passo antes, na sua prosa aqui já citada, Stefan Zweig indicava que as estatísticas dessa época classificavam o Brasil
como país contendo entre quarenta e cinquenta milhões de habitantes. Quinze anos depois, em 1957, Celso Furtado, nessas dez
conferências em forma de curso sobre o desenvolvimento dado a colegas e neófitos do BNDE, no Rio de Janeiro, apontava para o seu
país como um imenso território – com uma zona então totalmente quase desocupada que era do tamanho do Sahara – com setenta
milhões de habitantes nessa época. É neste último quadro estatístico e social, que Celso Furtado embrenhava qualificadamente e com
eficiência didáctica, evitando porém “debater os problemas” que daí advinham, “sem deslizar para a invectiva ou para a metafísica”.
Porém, hoje em dia, foi revelado que houve uma distribuição de renda superior em 3% ao da do final dos dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, favorecendo assim os extractos mais desprotegidos social e economicamente da população. “Na escala de 0 a 1 do
índice de Gini – quanto mais próximo de 0 melhor a distribuição e de 1 maior a concentração da renda –, o índice ficou em 0,559 em
2004, depois de registrar 0,566 em 2003. A queda nos dois últimos anos é de 1,4 ponto percentual, já que em 2002, a escala apontava
0,573” (3).
“Partindo do ponto de vista de que desenvolvimento regional e desenvolvimento nacional não podem ser dissociados, pois são
dimensões de um mesmo processo, que tem como eixo a formação da nação”, saiu novo livro sobre as relações biunívocas,
inesgotáveis sob o ponto de vista da experiência acumulada pela equipa da SUDENE, de que Celso Furtado a partir de 1958 foi o
inspirador-mor, agora objecto em que “a tese central de Anderson César G. T. Pellegrino é que, ao contrário do que um localismo tosco
levaria a imaginar, o problema nordestino é um problema nacional” (4). Não sei se o “localismo” tosco sublinhado, agora, se refere à
contraposição entre a pesquisa universitária distante e a pesquisa no terreno? Dicotomia essa, que o próprio Celso Furtado aceitava
poder encontrar-se até em si próprio, na sua prática e experiência a respeito do Nordeste e do recente reinício da SUDENE.
Sampaio Bruno no seu livro “O Brasil Mental” fazia um esboço de pensamento crítico, cuja erudição se apoiava num livro de Silva
Cordeiro sobre a crise da sociedade portuguesa, cuja monarquia desconhecia a república irmã e as suas “condições específicas da
sociedade política e económica” (5). Seja como for, a experiência portuguesa do seu crónico problema agrário, motivador da emigração
para o Brasil até pelo menos 1960, foi estudada em 1911 por Afonso Costa, o político republicano de maior envergadura intelectual,
que continuaria a reflexão oriunda dos seus anteriores positivistas. Interessados já bem antes pelo que se passava de novidade no país
da “Ordem e Progresso” colocada no meio de um losango ilustrando um globo, que decorria da esfera armilar e dos cinco castelos do
país progenitor por distracção.
NOTAS:
(1) Celso Furtado, “Perspectivas da Economia Brasileira”, Rio de Janeiro 1957, págs. 19 a 21 in “Apresentação” (2002), versão Adobe
in “Redcelsofurtado”, México 2002.
(2) Op. Cit., wwwjahr.org, ebook:paisdo futuro.html, pág.57 in “Economia” (1941).
(3) Sabrina Lorenzi, “IBGE: distribuição de renda é a maior em 23 anos”, InvestNews, Jornal do Brasil - JB , Economia, 25 / 11, Rio de
Janeiro 2005.
(4) Anderson César G. T. Pellegrino, “Nas Sombras do Subdesenvolvimento : Celso Furtado e a Problemática Regional do Brasil”,
Editora Alínea, São Paulo 2005, in “comentário de lançamento a 19/09/2005” de Plínio de Arruda Sampaio Jr.
(5) José-Augusto França, “Lisboa 1898: estudo de factos sócioculturais”, Expo’98, Lisboa 1997, pág. 180 in “11.’Conversão’”.
19 de dezembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LIV)
Ora, sem uma política a curto prazo para primeiro corrigir o desequilíbrio regional entre o Nordeste e o Centro-Sul, respectivamente, com uma economia agrícola
reorganizada para a produção alimentar, não havia desenvolvimento regional e muito menos nacional
Manuel Carvalheiro
Nas dez conferências que fez, em 1957, no BNDE, no Rio de Janeiro, que deram origem ao seu livrinho
“Perspectivas da Economia Brasileira” (1), nas suas linhas de força para vencer os desequilíbrios externos e
internos, com vista àquilo que definiu de forma modernizante e sofisticada como “crescimento económico autosustentável”, Celso Furtado ao “liberalismo tresnoitado” de um “enfoque conservador de política económica” (como
recordou em 2002), dava esse curso para promover: 1) o “desentorpecimento” dos investimentos; 2) mudanças no
sistema produtivo; e, 3) uma política económica de substituição faseada de importações. Segundo ele, a taxa de
crescimento só seria elevada se houvesse uma estratégia mais objectiva e centrada no objectivo da “prevenção
desses desequilíbrios”, tendo em conta a base sólida oferecida pela “disponibilidade de recursos” como café e
minérios. O desejo de um ritmo de crescimento estável apontaria, nesse tempo – para além da retórica, mesmo
contida e de circunstância –, também, para a sua elevação, tendo em conta a variação tanto da taxa de poupança
como da produtividade dos investimentos no decénio 1945-1954.
Três objectivos, então, se apresentavam como parecer fundamentado de Celso Furtado, com enorme confiança na sua própria
autoridade em ascensão em 1957: 1) aproveitar a capacidade de exportação com um plano; 2) descontando a estimativa da
capacidade de importar, fazer um plano sobre os investimentos no sector industrial e nos serviços básicos; e, 3) plano de recursos e
assistência ao campo, estimulando a produção alimentar e de matérias-primas agrícolas.
Porém, em 1958 decorreram vários seminários no Nordeste sobre as endemias rurais e a subalimentação, em que Josué de Castro
sublinhou a sua validade de então (2), como conclusões objectivas a extrapolar para as outras regiões subdesenvolvidas do mundo,
tendo em conta o espartilho da monocultura, do latifúndio, da seca e do marasmo económico. Nessa altura, já então três usinas-modelo
realizavam o enriquecimento da farinha de mandioca com proteínas e sais minerais Clemente Rosas, ex-Procurador Geral da SUDENE,
que com ele trabalhou nessa época, disse recentemente: “Meus pais, aliás, já me haviam falado daquela breve convivência, em tempos
passados, com o jovem Celso, um veranista um tanto atípico: sempre no terraço da casa de praia da família, lendo, estudando” (3). E
diz ainda mais adiante: ”Nas suas memórias Celso Furtado refere-se com admiração à CEPAL (Comissão Econômica para a América
Latina), que, de simples agência das Nações Unidas, converteu-se em escola de pensamento”. E na improvisada homenagem que lhe
fez, garantiu: ”Pois bem. Da mesma forma que hoje se fala de uma ‘escola cepalina’, guardadas as proporções, creio que se poderia
falar também de uma ‘escola sudeneana’”.
A condição “sine qua non” era que sem apoio social não poderia haver - no entender ainda de Celso Furtado, desde 1957 no curso
dado sobre desenvolvimento no Rio de Janeiro - boa política de desenvolvimento. Visto que o “efeito de demonstração” dos seus
colegas norte-americanos da mesma época como Nurske e Lewis, que promoviam uma teoria do desenvolvimento sem terem muito em
conta os aspectos lesivos de arrancada: pelo facto dos serviços pessoais terem preços relativos muito baixos; eufemismo diplomático,
para dizer que sair-se do subdesenvolvimento à custa de tecnologia, com o abaixamento dos preços relativos dos bens de consumo
duráveis, não era suficiente mas antes ilusório. Porque iria só beneficiar, apenas, as classes média e alta na estratificação social de
então; sem mesmo haver a contrapartida correctiva de uma melhor política fiscal, necessária de imediato e reequilibrante, para
posteriormente financiar-se, sobretudo, as desigualdades sociais mais gritantes no Brasil arcaico e folclórico.
Ora, sem uma política a curto prazo para primeiro corrigir o desequilíbrio regional entre o Nordeste e o Centro-Sul, respectivamente,
com uma economia agrícola reorganizada para a produção alimentar, não havia desenvolvimento regional e muito menos nacional. Por
isso, sugeria que se fixasse, assim, a anterior mão-de-obra excedente, que migrava devido à monocultura e ao latifúndio.
Reorganizando-se, desse modo, aquela política fatalista de câmbio anterior, para a industrialização desregulada do Centro-Sul, com a
nova política de reequilíbrio fiscal, com a respectiva reorganização da economia agrícola do Nordeste, aumentando em perspectiva, por
conseguinte, o consumo geral da população.
Recuando um século, passando de meados do XX para o XIX, Celso Furtado em “O longo amanhecer: Reflexões sobre a formação do
Brasil” (4), diz que a disparidade entre as regiões se acentuou nos anos setenta do século XIX com a migração europeia, devido ao
café no Sul em detrimento do açúcar do Norte.
Porém, mesmo assim, a tecnologia era uma distonia, que entrava mais no estilo de vida do que no aparelho de produção;
modernizando antes mais o estilo de vida das classes elevadas da sociedade do século XIX e agravando paradoxalmente o
subdesenvolvimento de parte do país. Entretanto, a população do Brasil havia crescido - na época do escritor Machado de Assis - de 4
para 7 milhões, havendo ainda dois milhões de escravos até metade desse mesmo século XIX.
Celso Furtado também constatava, ainda no seu curso em 1957, que o grau de integração dos diferentes factores da economia
brasileira necessitava de ser reaproximado, de forma a evitar-se que o desenvolvimento continuasse espontâneo. Tanto na
disponibilidade de recursos como na estrutura social, cujo entorpecimento naquela etapa do sistema económico poderia vir a reduzir o
ritmo de crescimento. Devido às suas tendências para um profundo desequilíbrio, agravado pela ineficácia futura da acção governativa
de então, sem ainda programa e uma clara definição de objectivos.
Sendo que 2/3 do território tinha um vazio demográfico da mesma natureza e superfície do Sahara, apenas vivendo 10% da população
em outros 5,5 milhões de km2, o maior vazio do globo terrestre segundo o economista brasileiro. E é de recordar que, num filme
realizado no Mali, “A Luz” (Yeelen, 1987) de Souleymane Cissé, o deserto e a areia escaldante, o nomadismo e o feudalismo,
coabitavam de forma estranha numa África de fome, doença e seca, mas com extraordinária convicção evocativa e pluri-secular. No
outro 1/3 do território brasileiro, existiam então dois rígidos sistemas económicos, cuja autonomia, no Nordeste e na parte sulina
repartiam porém, 18 e 35 milhões de habitantes em, também, respectivamente, 1,3 e 1,5 milhões de km2.
“Assim, no contexto da divisão internacional do trabalho criada durante o período do Pacto Colonial e prolongada durante a primeira
etapa da Revolução Industrial, a forma tradicional de desenvolvimento que se seguiu à crise de 1929 teve profundas repercussões na
região. Foi a tentativa para achar uma solução para o problema que se tem salientado desde então que pavimentou o caminho para a
emergência da presente consciência da América Latina” (5). O recente alargamento do Mercosur para cinco estados membros em
Montevidéu, constitui eco a essa realidade de “países emergentes” (e já não taxativamente “subdesenvolvidos ou em vias de
desenvolvimento” à escala mundial).
NOTAS:
(1) Op. cit., Rio de Janeiro 1957, págs. 23 a 25 in “1-Grau de integração da economia brasileira”.
(2) Josué de Castro, “A luta contra a fome no Nordeste do Brasil”, in “O Subdesenvolvimento Económico”, Colecção Perspectivas n.14,
Editorial Presença, Lisboa 1966, págs. 173 e 175.
(3) Clemente Rosas, “Celso Furtado e a história da SUDENE”, “site” Cultura e Comportamento, discurso evocativo na Academia
Paraíbana de Letras, 20 de Janeiro, Brasil 2005.
(4) Op. cit., Paz e Terra (2ª edição), São Paulo 1999, págs 104 e 108 in “Machado de Assis : contexto histórico”.
(5) Celso Furtado, “Economic Development of Latin America : Historical
Background & Contemporary Problems” (Second Edition), Cambridge University Press, Cambridge, London, New York, Melbourne 1978
(1970), pág. 2.
19 de dezembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LV)
Manuel Carvalheiro
A propósito, ocorre agora que, no mesmo Sahara plurinacional, mas em território argelino, algures uma moderna
instalação industrial de extracção de gás natural, visitada recentemente por uma equipa de reportagem da BBC
World, emitida a 7 de Dezembro de 2005, revelou que 10% desse mesmo gás natural é composto unicamente por
dióxido de carbono ; produto nocivo que, depois de separado, em vez de ser enviado para a atmosfera, é de novo
reenviado para o subsolo através de oleadutos (para os poços de profundidade onde é reinstalado), evitando-se a
poluição que se julga poder contribuir para o agravamento do aquecimento global... ou pelo menos cumprindo-se
o estipulado pelo protocolo de Quioto de 1997, que caduca em 2012.
O antigo presidente Clinton, que esteve presente na Conferência sobre as Alterações Climáticas, decorrida em
Montreal, no Canadá, a 9 de Dezembro de 2005 pronunciou um discurso chamando a atenção da gravidade da
situação, que se não for corrigida rapidamente trará consequências inesperadas para a humanidade.
Recorde-se que no seu livro “A Minha Vida” (5), ele evocava que fora em Bariloche, em 1997, na Patagónia, que meditando num lago
com árvores pervincas - tingidas de laranja devido ao ácido tânio, que as conservava em solos bem tratados e em águas limpas -, cujo
ecossistema fazia respirar ar puro, que ele pensou alertado pela Argentina, para 1 de Dezembro seguinte, constituir um programa de
metas com incentivos fiscais para o mercado de tecnologias limpas, que permitissem ver ratificado o referido protocolo.
Caso contrário, dali a trinta anos, isto é, por volta de 2027, segundo a projecção que fizera, países então como a Índia e a China viriam
a produzir emissões danosas para a atmosfera em quantidade muito superior aos 25% dos E.U.A. O filme documentário de Fernando
Solanas, “La hora de los hornos” (1968), tentou pôr em dia o passivo caótico da Argentina das pampas e da dependência
“terrateniente”, de que o cinema mudo com “The Gaucho” (1927) de Douglas Fairbanks nos dera uma imagem mirífica de “justicialismo”
antecipado.
A maneira como Celso Furtado caracterizou o grau de integração da região nordestina brasileira, revelou que só parcialmente podia ser
considerada como um sistema económico dos séculos XIX ou XX. Visto que, de mercado, a sua economia só tinha os rendimentos de
mobilidade dos factores produtivos, isto é, “uma série de ‘manchas’ de actividade económica“, voltadas na maioria para a subsistência ;
e, também, além daquilo, um “pequeno fluxo de renda monetária”. Sendo que o fluxo monetário das correntes comerciais, deparavam
com comunidades que necessitavam de ser transformadas, para poderem pagar mais a quem quisesse nessa época aumentar as suas
vendas, aumentando-lhes a produtividade. E, dessa forma, ajudando-as a criar um excedente de produção, para alargar o mercado de
consumo e a sua economia regional em geral. Para que dos 110 dólares de renda mínima “per capita” de então, em 1955, portanto apesar do economista brasileiro estar a dizer isso dois anos depois, em 1957, em “Perspectivas da Economia Brasileira” (2) -,
pudessem dessa forma progredir para um patamar superior na escala social de miséria encoberta.
Essa proposta de transformação desse tempo no Rio de Janeiro, feita por Celso Furtado naquelas circunstâncias de passagem pelo
seu país, entre Santiago do Chile e Cambridge, era para talvez sugerir que o governo interviesse nessa área, criando factores de
produção de dentro para fora, que conduzissem ao progresso de uma cultura de exportação dessa região para outras no Brasil e não
apenas o inverso como era hábito na indústria alimentar do estado do Rio Grande do Sul para os estados do Nordeste, por exemplo. A
entrada de capital no Nordeste devia ser também incentivada pelo governo , com vista à promoção de novos empresários oriundos de
fora da região nordestina com dois objectivos principais : explorar recursos naturais e criar actividades manufactureiras. Esse impacto
transformaria as comunidades pouco a pouco, caso contrário a taxa de crescimento só por si com os recursos apenas locais não se
libertaria do subdesenvolvimento esmagador e do gargalo da seca, visto a poupança não ser automática naquelas condições precárias
de subsistência sem a alternativa de uma intervenção estatal mais forte embora exterior à região.
Havendo a hipótese caso contrário de o nível da renda “per capita” poder até recuar para índices ainda menores em anos vindouros, se
nada se fizesse de substancial para além do abastecimento financeiro federal àquilo que os entendidos chamavam os tradicionais
“currais eleitorais”, isto é, os fazendeiros que acaparavam as verbas e o regadio só para as suas plantações. O Brasil é actualmente o
maior exportador de algodão do mundo e pediu em 2005 à União Europeia que cancelasse os subsídios proteccionistas que impediam
a competitividade defendida na Organização Mundial de Comércio.
O estímulo para uma procura em expansão não podia vir em 1957 de comerciantes locais do Nordeste que eram também capitalistas,
de maneira a aumentar o crescimento dos bens produzidos e por essa via então aumentar também a actividade comercial, o que seria
por isso sinal de um novo para a época desenvolvimento económico sustentado estatalmente e não lentamente espontâneo como até
então e até certo ponto naquelas circunstâncias atrozes previsível de estagnação prolongada ou de recessão cíclica. A criação de um
novo sector de produção nas manchas de economia de subsistência dinamizava a área, sendo que se não houvesse logo então esse
estímulo externo o excedente comercial da classe capitalista rural era investido prioritariamente em residências de luxo ou era
exportado para fora da sua região ou enterrado na construção de edifícios.
Mas, como em 1958 escreveria em Cambridge, Celso Furtado referiu-se ao ponto central da interpretação de Ragnar Nurkse, quando
este em 1952 estivera no Brasil e interpretara o “tamanho do mercado de um país como um factor limitando o desenvolvimento
económico” (3). A “emergência da civilização industrial” (4) com a expansão do capital comercial fez com que a Holanda detivesse a
primazia da cooperação entre alguns elementos do poder tradicional com os comerciantes em negociatas além-mar, contribuindo isso
para o lento desfazer das ligas hanseáticas, abolindo-se a actividade usurária e eliminando- se privilégios feudais. Sendo que a posse
da terra era cada vez mais um factor de produção e a integração de uma proporção crescente da população como força de trabalho,
desenvolviam a acumulação primitiva do capital desde o século XVI.
É o próprio Celso Furtado quem em “Economic Development of Latin America” dissera em 1970 : “Na segunda metade dos anos 1950,
quando a industrialização baseada na substituição de importações começou a revelar as suas limitações, pela primeira vez na América
Latina os obstáculos ao desenvolvimento regional criados pelo tamanho reduzido dos mercados nacionais começou a ser amplamente
discutido ; essa discussão atirou luz para as semelhanças e contribuiu para a criação de uma consciência regional” (5).
NOTAS:
(1) Op. Cit., Temas & Debates, Lisboa 2004, págs. 785, 786 e 788.
(2) Op. Cit., Rio de Janeiro 1957, págs. 23 a 25 in “1-Grau de integração na economia brasileira”.
(3) Celso Furtado, “Capital formation and economic development”, in“The Ecoinomics of Underdevelopment”, Edited by A.N.Agarwala
and S.P. Singh, Oxford University Press, London-Oxford-New York 1971 (1958), pág. 312.
(4) Celso Furtado, “Accumulation and development: The logic of industrial civilization”, Martin Robertson, Oxford 1983 (1978), pág. 2 in
“Introduction to the English edition”.
(5) Op. cit. (Second Edition), Cambridge University Press, Cambridge-London- New York-Melbourne 1978, pág. 2 in “1.From the
conquest to the formation of nation-states”.
26 de dezembro de 2005
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LVI)
Manuel Carvalheiro
”Dentre os muitos leitores de Celso Furtado talvez poucos saibam que o nosso maior economista escreveu, aos
25 anos, um livro de ficção”, dizia Alfredo Bosi aquando do lançamento dos três volumes da sua obra autobiográfica a cargo de Rosa Freire d’Aguiar e acrescentava mais adiante : “Para fazer literatura com experiências
de guerra basta muitas vezes a pura memória” (1). “Contos da vida expedicionária: de Nice a Paris” era o título
dessa primeira obra publicada em 1946, em cima da divulgação mundial dos primeiros filmes neo-realistas
italianos.
Curiosamente é de Federico Fellini de quem mais tarde Celso Furtado falará como exemplo cultural de estudioso
do problema da comunicação e da falta dela na sociedade moderna - cujo paradoxo foi em 1956 o seu filme
“Noites de Cabíria”, com a cena de confusão entre o vidro transparente, a porta de saída da mansão luxuosa e o
ecrã da sala -, em 1983, na edição inglesa de um livro de 1978, “Accumulation and Development : The logic of
industrial civilization” (2). Fellini, também nascido em 1920, não fez a guerra; foi apenas caricaturista, observando em Rimini o ridículo
mussoliniano, enquanto este durou.
A Toscânia observada por Celso Furtado, no final da guerra como militar Auxiliar, é certamente com uma curiosidade intercontinental ; o
mesmo efeito, visto de outro ângulo e de outra proveniência continental, que um qualquer intelectual neo-zelandês em Gallipoli, na
Turquia europeia, poderia ter visto no final da I Grande Guerra.
Se ainda existe a fotografia do autor brasileiro, quando jovem sub- oficial militar fardado, tirada em frente à estátua de Eça de Queiroz
na rua do Alecrim em Lisboa, ela é certamente dessa época, com graciosidade intercalar num período de ligeira abertura da sociedade
portuguesa de então.
Essa foto foi referenciada como conteúdo simbólico de grande valor para o falecido, no seu obituário feito por uma jornalista do “The
Guardian”, Sue Branford, em 26 de Novembro de 2004.
Provavelmente, feita ao acaso numa curta estadia de Celso Furtado, em 1945, em Lisboa, com seguida de viagem depois para o Brasil,
ainda nesse ano : “A vida pessoal tem o mistério desses tesouros de fábula que, quando expostos à luz, perdem seu verdadeiro
significado”. Depois, consegue voltar de novo à Europa, chegando em 1946 a Paris, provavelmente já com o seu primeiro livro de
contos expedicionários já entretanto publicado. Há poucos registos desse tempo e só numa posterior biografia se detectarão esses
itinerários cruzados entre os dois continentes. Em “A Fantasia Organizada” publicada em 1985 existem algumas achegas a esse
respeito sobre as discussões com uma colega francesa de então na Paris do pós-guerra e a sua frequência do curso universitário de
Auguste Cornu sobre história económica do século XIX (3).
Reflectir sobre a economia de reconstrução europeia no final da II Guerra Mundial era pedir muito, pois Celso Furtado iria depois para
Paris onde em dois anos e meio obteria a tese sobre a origem colonial do Brasil arcaico com o professor da Sorbonne, Maurice Byé,
que se considerava discípulo de François Perroux que fora aluno de Schumpeter em Viena.
Há um testemunho evocativo de um tempo histórico de entusiasmo e dinamismo, provavelmente a seguir à libertação da Toscânia e ao
ferimento de que Celso Furtado é objecto como aspirante em missão, em que este leva uma carta de recomendação que consegue de
Pierre-Mendès France na turbulência daqueles dias : “Ainda não conhece seu destinatário embora, por uma dessas artimanhas que a
história aprecia, ele tenha permanecido longo tempo em seu país antes de se incorporar às Forças Francesas Livres que se
preparavam para libertar a África”.
Esse testemunho refere-se ao professor Maurice Byé, que já havia permanecido no Brasil antes de conhecer o aluno Celso Furtado,
que o contactará por acaso estando ambos de novo já fora, na Europa : “Foi uma temporada que ele jamais esqueceu, e, melhor ainda,
lhe despertou essa paixão pela economia internacional e pelo desenvolvimento, a mesma que já era a sua, e o trouxe a Paris para
estudar” (4).
A história do pensamento económico encontrou também em August Cornu, um especialista na obra de Marx editado pelas Presses
Universitaires de France na mesma altura, uma referência para a não simplificação dos dados do problema quando transplantado para
a realidade histórica do Brasil no século XIX da sua independência política e continuada dependência estrutural económica. Porém, a
amplitude de interdependências epistemológicas levam Celso Furtado a fasear a sua actividade teórica, propedêutica primeiro,
estrutural depois entre 1954 e 1984 e funcional, por fim, nos últimos vinte anos de divulgação e consagração : “O segredo último da
permanência da síntese de Celso Furtado está nos termos muito amplos de sua composição. O conceito de subdesenvolvimento, de
agudo senso histórico, fez o encontro da nossa formação periférica com as linhas de desenvolvimento capitalista do pós-guerra” (5).
Não que o mascaramento do socialismo utópico no Brasil nunca tivesse antes existido. De resto uma comunidade histórica que praticou
o falanstério comunal no século XIX, foi objecto de uma experiência fílmica evocativa por Jean-Louis Comolli, em “La Cécilia” (1975),
sobre a economia pública e privada algures no estado do Paraná por fim entre 1890 e 1894, mas iniciada em Porto Alegre por um
experimentador científico chamado Giovanni Rossi, oriundo do movimento libertário e anarquista italiano.
NOTAS :
(1)Alfredo Bosi, “Fantasia e Planejamento”, Folha de S.Paulo, 8 de Novembro, Brasil 1997.
(2)Op. Cit., Martin Robertson, Oxford 1983, pág. 177 in “8-In search of a global view”.
(3)Celso Furtado, “A Fantasia Organizada”, Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro 1985, pág. 32 in “1 – Os ares do mundo”..
(4)Gérard Destanne de Bérnis, “Celso Furtado : uma homenagem”, Universidade de São Paulo, Instituto de Estudos Avançados, Vol.
11, n.29 Jan.-April., Scielo Brazil, São Paulo1997 (2005).
(5)Juarez Guimarães, “A vida continuada de Celso Furtado”, Boletim Periscópio, Fundação Perseu Ábramo, 22 de Novembro, Brasil
2004.
LVII
Karl Mannheim (1893-1947) e Max Weber (1864-1920), são dois pontos nodais no discurso reflexivo universitário e universalista de
Celso Furtado, a propósito das “sobredeterminações” do desenvolvimento e subdesenvolvimento em “última instância”. Max Weber
interrogou-se sobre a diferença existente a propósito da estratificação social, entre classes sociais - provenientes do modo de produção
capitalista do século XIX, essencialmente na Europa - e grupos de “status”, segundo o crítério de consumo manifestado num estilo de
vida de uma dada comunidade nos interstícios da luta de classes, englobando os momentos de lazer e de convívio interclassista (1).
Karl Mannheim, discípulo de Georgy LLuckacs, foi professor de sociologia do conhecimento na Escola de Economia de Londres
(London School of Economics) e em 1946 esteve para ser o orientador de tese de Celso Furtado. Ou pelo menos as suas opiniões e
teorias interessavam prioritariamente o então jovem jurista brasileiro com um prémio Roosevelt pelo seu trabalho jornalístico intitulado
“Trajectória da democracia”, também então interessado em sociologia e em economia política. Porém, Karl Mannheim morre em 1947,
embora na sua sociologia do conhecimento classificasse e comparasse os termos psicológicos e espirituais da crise da sociedade
capitalista, dividida entre liberalismo económico e planificação social, ao tempo inovador do plano Beveridge, do Estado previdência e
da segurança social generalizada à população laboriosa.
Revelando, por isso, a cultura de uma crise de elites, que outros Consideraram, posteriormente, como uma maneira de alterar a
ideologia, utopicamente “incapaz de integrar a materialidade dos conflitos de interesses” (2), traduzindo-os como problemas de
integração ou não integração das camadas sociais mais prejudicadas. No entanto, o peso dos intelectuais sem ligações na produção de
conhecimentos, na busca “a priori” da harmonia entre indivíduos e sociedade, era uma variante de dialéctica social. Dialéctica essa em
função da circularidade da reprodução social, longe dos conflitos e da luta, mais a ver por isso com a solidez do ambiente sócio-natural.
A ideia de reconstrução era cara a Mannheim, segundo Celso Furtado no seu primeiro livro evocativo desses tempos, “A Fantasia
Organizada”, numa Europa destruída pela II Guerra Mundial; assim como, o esforço institucional em preservar o homem, através do
planeamento social. E neutralizando, desse modo, as posteriores crises e instabilidades da economia de mercado do carvão e do aço,
que antes haviam feito o “descarrilamento da humanidade” (3), num processo oriundo do século XIX e ainda pouco estudado no século
XX.
A economia de guerra e sabotagem bem evidente, no filme de reconstituição da actualidade da resistência ao poderio bélico do então
ainda recente ocupante belicista germânico, como foi o caso descrito em “La bataille du rail” (1945) de René Clément, continuava com o
Inverno de 1946/47 e as “rações alimentares”, ainda generalizadas na Europa dos Urais ao Atlântico. Estudar previamente, em 1940,
como Mannheim o havia feito com antecipação visionária, a história das ideias e das técnicas provenientes do modo de produção
mercantil oriundo da revolução industrial, quando se falava quer em combinados e em planos quinquenais como em conglomerados de
“trusts” e planos de reconstrução - quer após a crise de 1929 como no pós-guerra -, pareceria algo abstruso sob o ponto de vista
normativo de uma teoria do conhecimento, remanescente da Escola de Francforte do tempo ainda da Alemanha de Weimar, entre 1918
e 1933.
Quando ele havia assistido ao falhanço da república dos sovietes em Budapeste e tentava prolongá-la em retrospecto experimental
com um inevitável reducionismo ético na Inglaterra demo-liberal dos cais de embarque ferroviários e da igualdade no trabalho entre
homens e mulheres. Devido à dinâmica entusiástica do movimento grevista em tempo de paz, posterior ao tempo do aparelho produtivo
acelerado do recente convívio liberal nas fábricas de guerra, como disso é sintoma em “Breve encontro” (1945) de David Lean. Mas, tal
referência frustrada, era sobremaneira uma proeza demasiado esquisita para um jovem desmobilizado e intelectualmente ávido de
pesquisar como Celso Furtado. Originário de um país de plantadores de café, mas também de fome endémica pela existência
inexplicada do subdesenvolvimento. Fenómeno, por essa altura, ainda pouco conhecido e estagnante, dum precário mercado interno
na zona de latifúndio, de outro continente menos civilizado ; aparentemente, que nada tinha a ver com a tradição ultrapassada um
século antes - na Europa desenvolvida, mas agora destruída - da herança das lutas de cultivadores e de camponeses nos séculos XV
na Itália e XVI na Alemanha ou dos séculos XVII na Inglaterra e XVIII na França.
Entretanto, o pessimismo e cepticismo simultâneos, reflectir-se-iam posteriormente nesta asserção nostálgica seguinte de um amigo,
desse tempo de Celso Furtado jovem, numa Europa em vias de cartografar a sua nova evolução económica e política, já na Paris (entre
1946 e 1948) do renascimento cultural, em todas as direcções planetárias : “O cinema norte-americano, o japonês e, em geral, o
europeu nunca foram subdesenvolvidos, ao passo que o hindu, o árabe ou o brasileiro nunca deixaram de ser” (4).
Celso Furtado em “A Fantasia Desfeita” comentava, sobre um texto então ainda inédito no início de 1964, em pleno apogeu do
“cinemanovismo” que em Portugal dera um prolongamento chamado “Mudar de Vida” (1963) de Paulo Rocha, sobre a “manutenção da
estabilidade nas experiências de socialização dos bens de produção” e referia-se ao paradoxo de que a inexistência de privilégios não
provava que os apetites tivessem desaparecido, citando então Mannheim a propósito de estímulos e incentivos a novos factores
produtivos, mas com a necessidade imperativa de haver um novo grupo dirigente no poder político então caótico e disperso, que
dirigisse uma ordem social mais estável e apetecível com instituições mais flexíveis (5), a propósito do seu ensaio ainda em gestação,
“Dialéctica do Desenvolvimento”, saído em livro, posteriormente, nesse ano que seria também de exílio.
Curiosamente, o cinema checo nos anos sessenta emergiu como corrente inovadora no cinema europeu através de um filme intitulado
“O Ás de Paus” (Cerny Petr, 1963) de Milos Forman. Sem que o drama irónico e irreverente da mercearia, como loja integrada num
tímido circuito de mercado livre, constituísse o espaço cénico do primeiro emprego de um jovem provinciano, no quadro do roubo
citadino por clientes acima de qualquer suspeita. Numa sociedade socialista industrializada, cujo comércio internacional era
parcialmente bloqueado. O homem novo, ingénuo e gabarolas, fora contratado como vigilante das distracções do pequeno proprietário,
perante os seus clientes modestos que surripiavam alimentos nas prateleiras de um mini-mercado, abastecedor com preços julgados
mais elevados do que o que podiam então ainda pagar, face à tentação consumista.
Em “A Cidade de Deus” (2002) de Fernando Meyrelles, uma cena revela uma viatura de marca alemã DKW dos anos cinquenta, a
atravessar numa estrada que ligava a um aterro não asfaltado de uma favela. Movimento cénico esse, feito no quadro de uma produção
industrializada de um país de economia agora emergente, em que a miséria marginal, produto do subdesenvolvimento, já não tem nada
de um cinema artesanalmente dependente dos padrões técnicos do espectáculo de qualidade.
NOTAS :
(1)Antonio Lucas Marín, “Introdução à sociologia”, Biblioteca de Conhecimentos Básicos n.4, Editorial Notícias, Lisboa 1979, págs. 114
a 116 in “VIII-O processo de estratificação social”.
(2)Jean-Marie Vincent, “La théorie critique de l’école de Francfort”, Collection RC, Éditions Galilée, Paris 1976, págs. 75 a 77 in “1-La
théorie assiegée”.
(3)Op. cit., Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro-São Paulo 1985, págs. 14 a 17 in “1-Os ares do mundo”.
(4)Paulo Emílio Salles Gomes, “Cinema : Trajetória no Subdesenvolvimento”, Editora Paz e Terra, Colecção Leitura, São Paulo-Rio de
Janeiro 1996, pág. 85.
(5)Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro-São Paulo 1989, pág. 186 in “Testamento intelectual”.
2 de janeiro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LVIII)
“Como sabemos, Celso Furtado tinha uma visão mais abrangente da economia: para ele, a Ciência Econômica tinha uma interdisciplinaridade com as Ciências Sociais e
Políticas. Nesse sentido, sua obra é caracterizada pela apresentação de um método analítico e histórico-estrutural (mais especificamente, estruturalismo) que busca
explicar a dinâmica do desenvolvimento da economia brasileira e da América Latina a partir da transição de economias com bases coloniais para sistemas capitalistas”
Manuel Carvalheiro
Comentando a trajectória de Celso Furtado, à passagem esta constatação: “Reporta-se a Duesemberry, no seu
famoso ‘efeito de demonstração’, para definir a geração de poupança, ou não, diante da posição do indivíduo na
escala social de distribuição de renda, já colhendo, ao mesmo tempo, a intuição de Prebisch, de que o citado
fenômeno também se manifesta no padrão imitativo global, em que o mundo subdesenvolvido se compagina ao
das nações mais adiantadas” (1).
Ernest Mandel dizia, em passagem esclarecedora no seu “Traité d’Économie Marxiste” (2), citando o “efeito de
demonstração” de Duesemberry, numa escola de economia que se debruçava sobre os obstáculos principais à
industrialização dos países subdesenvolvidos: “Por outro lado, todos os economistas estão de acordo em afirmar
que as populações dos países subdesenvolvidos assimilaram rapidamente as necessidades de consumo que a
economia não pode deixar de lhes atribuir”.
Esse “efeito de imitaçção”, como parodiava Mandel, levava a que metade ou menos de metade do que é o mínimo fisiológico para
pessoas poderem trabalhar, como o consumo diário médio em calorias estimado em 1200 na Bolívia, 1600 no Equador e 2000 na
Colômbia, que nada porém justificaria o nível então muito baixo dos salários devido à alegada “falta de necessidades” dos
trabalhadores dos países coloniais. Afirmação esta desmentida em primeiro lugar pelo estado de necessidade carenciada terrível em
que aqueles se encontravam, estado esse próximo da fome como a este respeito a obra notável de Josué de Castro, “Geopolítica da
fome”, esclareceu no comentário global de Ernest Mandel em 1962.
Mandel também citava W.W.Rostow, integrado numa colectânea de Alvin Hansen e Richard V. Clemence, intitulada “Readings in
business cycles and national income”, publicada pela W.W.Norton& Cy em 1953 em Nova Iorque, a propósito da limitação de
investimentos no mundo industrializado da Europa. Fenómeno que faz com que estes sejam, depois, aplicados por inerência do
excedente nos países dominados economicamente, como os ainda não industrializados da América Latina, entre outros semi-coloniais
e coloniais: “Alfred Marshall e Wicksell constatam-no e explicam a grande depressão de 1873 a 1896 por esse recuo”.
Celso Furtado referiu-se a uma porção de economistas que visitou e conheceu na sua visita de 1951 aos departamentos de economia,
sociologia e antropologia de universidades como Nova Iorque, Harvard, Boston e Chicago. Numa época em que o desenvolvimento era
apenas mencionado a respeito de economias atrasadas e a sua aplicação em áreas geográficas delimitadas por especialistas
funcionalistas. Hans Singer do Departamento Económico e Social das Nações Unidas preocupava-se com a relação de trocas dos
países exportadores de produtos primários. Celso Furtado visitou Vassili Leontieff em Harvard e falou-lhe do atraso industrial dos
países latino-americanos, com o desperdício de factores habitual a atravancar a produtividade social; este, porém, referiu-se-lhe à
prioridade da compra de melhores equipamentos.
Em Boston, Celso Furtado foi recebido por W.W.Rostow que lhe emprestou o seu manuscrito dactilografado “As etapas do crescimento
económico”, falando- lhe de Joan Robinson em Cambridge, que se interessava pela problemática do crescimento económico com a
noção de equilíbrio do modelo de Keynes. Mas Rostow apostava nas “invariâncias dos processos de desenvolvimento económico”.
Como em “Chotard e Cie” (1933) de Jean Renoir, a personagem de um poetastro herdeiro de uma cadeia de mercearias, depois de por
acaso ganhar o prémio Goncourt, lançando a fama por uma localidade antes esquecida da imprensa, a economia diária dos preços
resumia-se a saber compensar as descidas e subidas com a alteração dos preços de revenda das pastas e dos molhos. Obrigando,
assim, os outros comerciantes a andar num rodopio de especulação para atrair a clientela, mas a segui-lo nas variações de mercado
pois o sogro era membro influente da comissão de controlo de preços e multas da cidadela. Ora, vinte anos mais tarde, “os modelos de
crescimento ainda não haviam entrado na moda com suas sofisticadas variantes de função de produção”, dizia Celso Furtado
recordando-os em “A Fantasia Organizada” em 1985 (3), a propósito dessa sua viagem pioneira aos Estados Unidos da América em
1951.
Alguém parecido com W.W.Rostow era S.M.Wright, interessado apenas pelo crescimento económico capitalista, em ascensão
“entrecortada de acidentes sempre superados”. Sem necessidade de recorrer à própria história do capitalismo, como fazia o anterior
colega e futuro responsável pela pasta da economia na ulterior administração Kennedy (entre 1961-1963). Como na cena na camioneta
lotada de “Subida al cielo” (1952) de Luis Buñuel, decorrida num México com problemas de transporte - em áreas enlameadas,
ciclicamente, pelas chuvas -, até para o circuito de um mercado aviário entre altiplano e zonas costeiras.
“Partindo do princípio de que a diversificação da procura, tanto quanto o aumento da produtividade, constitui elemento motor do
desenvolvimento”, Celso Furtado “argumenta que os países que se especializaram de acordo com suas vantagens comparativas
transformaram-se em importadores de novos bens de consumo, e o seu desenvolvimento econômico passou a confundir-se com a
importação de padrões de consumo” (4). Mais adiante, o mesmo investigador diz: “Isto, segundo Furtado, gerou uma ‘descontinuidade
na ‘superfície’ da procura’, e foi a industrialização ‘substitutiva de importações’ que transferiu essa descontinuidade para a estrutura do
aparelho produtivo”. Concluindo o comentário aos textos de referência de Celso Furtado, a propósito de uma certa industrialização
dependente, dominada perifericamente pelos conglomerados do centro capitalista de então: “A partir daí, a industrialização adquiriu
uma conotação de mera ‘descentralização geográfica de atividades manufatureiras’”.
Situação caricata essa, que conduzia à dívida por intermédio da solicitação de investimentos estrangeiros a troco de taxas baixas: “Ora,
essa descentralização não significa industrialização no sentido de autonomia para criar produtos industriais; significa localizar, parcial
ou totalmente, na ‘periferia’, a produção física de artigos que continuam a ser criados [ênfase no original] nos centros dominantes (2000:
259)”, referindo-se o “original” ao livro “Teoria e Política do Desenvolvimento Económico” de Celso Furtado, publicado em 1967 em
Paris e editado de seguida no Brasil.
“Como sabemos, Celso Furtado tinha uma visão mais abrangente da economia: para ele, a Ciência Econômica tinha uma
interdisciplinaridade com as Ciências Sociais e Políticas. Nesse sentido, sua obra é caracterizada pela apresentação de um método
analítico e histórico-estrutural (mais especificamente, estruturalismo) que busca explicar a dinâmica do desenvolvimento da economia
brasileira e da América Latina a partir da transição de economias com bases coloniais para sistemas capitalistas” (5). Referindo-se com
ironia ao mau desenvolvimento do passado, por falta de sincronia entre desenvolvimento e crescimento, este outro comentador
assinalou : “Pelo referido método, a estratégia de desenvolvimento das economias periféricas deveria passar por mudanças estruturais
da sociedade, caso contrário, elas estariam destinadas à reprodução das condições que levam inexoravelmente ao
subdesenvolvimento”.
NOTAS:
(1) Candido Mendes, “Celso Furtado: fundação e prospectiva do desenvolvimento”, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro, vol. 48, N.1, Jan.-Mar. 2005.
(2) Op.cit., Collection 10-18 n.432-433, Union Générale d’Éditions, Paris 1969 (1962), págs. 144 a 146 in “Les surprofits coloniaux”.
(3) Op. Cit., Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro-São Paulo 1985, pág. 90 a 95 in “VI-A estrada real”.
(4) Wilson Suzigan, “Industrialização na visão de Celso Furtado”, Instituto de Economia/UNICAMP, Brasil 2005.
(5) Fernando Ferrari Filho, “Celso Furtado: O Imortal”, Zero Hora, 27/11, Brasil 2004.
9 de janeiro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LIX)
O filme de Betty Kaplan, “Doña Bárbara” (1998), segunda adaptação do romance de 1929 de Rómulo Gallegos (a primeira foi no México em 1943 interpretada por Maria
Félix), que foi candidato à presidência em 1948, insere- se no quadro histórico da ditadura militar de Juan Vicente Goméz
“Furtado intuíra que as acções deveriam ser precedidas de consistente planejamento, ainda não exercitado com sofisticação técnica em nosso país, mormente no
Nordeste”(5). Nesse aspecto é curioso como inflação e poupança, dois termos importantes numa concepção unicamente monetarista da economia política, tivessem outra
integração no universo conceptual de Celso Furtado
Manuel Carvalheiro
O professor Jacob Viner da Universidade de Princeton visita então, a convite de economistas oficiais, o Rio de
Janeiro, para responder ao desafio do economista argentino Raul Prebisch, a respeito da teoria do comércio
internacional. Em que o primeiro na época era uma autoridade mundial, desconhecendo porém o que significava
“um país subdesenvolvido”, visto não haver - segundo ele - traço anterior na literatura económica mundial sobre a
matéria (1). Mesmo num inquérito feito em 2000, só os economistas e os cientistas políticos consideravam a
multidisciplinaridade como factor importante da escolha da obra de Celso Furtado, à cabeça dos autores de sua
preferência, querendo isso dizer que tanto os sociólogos como os antropólogos no Brasil escolhiam outros nomes
(2).
“A orientação de Mannheim, de que os instrumentos intelectuais produzidos pelos cientistas são essenciais para
compreender os caminhos e descaminhos do mundo actual, está na base da discussão de Celso Furtado sobre o
papel social dos homens de ciência”, dizia em 2004 uma pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina, no estado do Paraná,
Maria José de Rezende, acrescentando ela ainda : “Este último partilha com aquele primeiro da convicção de que há uma parte, mesmo
que minoritária, de intelectuais, socialmente voltada para os interesses da sociedade como um todo. E a esses caberia um
‘entendimento gradualmente compreensivo e racional da realidade, pré-requisito para um acesso científico à política e à mudança
social’ (Bramstedt, E.K. e Gerth, H, “Nota sobre a obra de Karl Mannheim” in Karl Mannheim, “Liberdade, Poder e Planificação
Democrática”, Mestre Jou, São Paulo 1972, págs. 9 a 16)”. Segundo ainda essa pesquisadora, “Mannheim referia-se ao período da
Segunda Guerra e também aos anos que a precederam. ‘Em 1929, Mannheim colocava sua esperança na ‘intelligentsia’ socialmente
desligada, nome dado por Alfred Weber a esse estrato intersticial da sociedade moderna’” (3).
Visitado em 1951 por Celso Furtado, um outro pesquisador económico, Charles P. Kindleberger (1910-2003), mais tarde colaborador da
Grande Sociedade do presidente Lyndon Johnson (1964-68), interessava-se pelo comércio internacional, devido ao seu livro adoptado
durante trinta anos no ensino universitário – depois da sua experiência na reconstrução da Áustria e da Alemanha, como militar e
economista, tendo participado na concepção do Plano Marshall para a Europa - e admitia, apenas, para a América Latina, que as
técnicas deviam corresponder às necessidades de uma industrialização retardada. Mas, Thomas Sherwood, também do M.I.T., achava
que de um ponto de vista prático, isso eram apenas especulações desinteressantes para as prioridades do departamento de
engenharia.
Celso Furtado anotou em “A Fantasia Organizada” retrospectivamente, que reparou, então, que a teoria do subdesenvolvimento,
abordada conjuntamente com o desenvolvimento de uma nova forma interdisciplinar, chocava com a teoria dos preços no comércio
internacional, que não levava em linha de conta a “percepção de diferenças estruturais” (4). Embora Kindleberger não fosse um
monetarista ortodoxo e acreditasse mais na narrativa histórica do que nos modelos matemáticos da inflação, e estivesse mais próximo
de um economista como Galbraith do que de Friedman, Schwartz e Samuelson, por razões óbvias diferenciadas a respeito da Grande
Depressão dos anos trinta no século XX. Mas era impossível um Plano Marshall para a América Latina, equiparando-se por
conveniência mútua (de um momento politicamente delicado de um ponto de vista internacional e solidário) “industrialização retardada”
- devido ao subdesenvolvimento e à apropriação da tecnologia pelas elites - à “reconstrução” devido à guerra terminada, como na
Europa desses anos antes da criação da CECA (Communauté Européenne du Charbon et de l’Acier, tratado assinado a 18 de Abril de
1951 em Paris) em 1949, havia apenas dois anos.
O subdesenvolvimento era então considerado nos meios universitários norte-americanos como uma espécie de “imperfeição” - no
quadro da teoria económica formulada algo estaticamente e em vias de axiomatização dogmatizante -, assim como um refúgio para a
inacção. “Imperfeição” essa que a CEPAL desmistificava em Santiago do Chile desde 1948. Mesmo assim, Celso Furtado encontrou
alguma abertura de espírito e de crítica em Chicago, na universidade, da parte de Bert Hoselitz e de Perloff, o primeiro com interesse
pela Índia e o segundo por Porto Rico. Eles que já admitiam portanto a economia num quadro interdisciplinar, mas contudo sempre
especializada e espartilhada em áreas geográficas.
O filme de Betty Kaplan, “Doña Bárbara” (1998), segunda adaptação do romance de 1929 de Rómulo Gallegos (a primeira foi no México
em 1943 interpretada por Maria Félix), que foi candidato à presidência em 1948, insere- se no quadro histórico da ditadura militar de
Juan Vicente Goméz, que afectou a Venezuela durante uma geração, entre 1908 e 1935 ; desta vez, a adaptação foi realizada no
noroeste da Argentina, próximo da fronteira com o Paraguai, nos arredores da cidade de Corrientes, embora se reporte à selva
venezuelana e a uma propriedade chamada Altamira, que é objecto de cobiça por parte de uma mulher dominadora que recorre a
feitiços para se apropriar das fazendas dos rivais oligárquicos.
Porém, a antropologia condicionaria também o desenvolvimento, já que o desenvolvimento era considerado por esta um processo de
mudança cultural ; em determinada cultura periférica, o motor do desenvolvimento era a difusão do progresso técnico. O professor
Melville Herskovits, da North Western University de Chicago, era nessa época um conhecedor profundo do Brasil ; para quem, porém, a
inovação era mais uma resposta da lógica da cultura do que uma mudança na história. Defendendo ele, por isso, a preexistência de
uma base cultural, para que a natureza de difusão emergisse do foco de criatividade, embora houvesse o risco de determinismo sem
inovação nem mudança. Nos povos africanos a área focal seria a religião como explicação da sobrevivência económica ; o empréstimo
de outras culturas fora a área focal da formação da sociedade brasileira e no caso de uma sociedade de classes o processo de difusão
de valores far-se-ia - no entender de então – através, também, dos cortes culturais (essenciais ?) mais nítidos pela máxima percepção.
Ernest Mandel em “Traité d’Économie Marxiste” afirmou: “A obra ‘The Economic Development of Brazil’, publicada pelas Nações
Unidas, constata que para todo o período de 1939-1953, que viu no entanto um impulso excepcional da industrialização – e, por isso,
um crescendo da produtividade – os salários reais ficaram praticamente intocáveis, do facto da invasão constante da sobrepopulação
rural nas cidades” (5).
NOTAS:
(1) Manuel Jacinto Nunes, “Temas Económicos”, Estudos Gerais Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 1989,
pág. 38 in “5. Celso Furtado : Apóstolo do Desenvolvimento”.
(2) Simon Schwartzman, “As ciências sociais brasileiras no século 20”, Ciência Hoje, Abril, Brasil 2000.
(3) Maria José de Rezende, “Celso Furtado e Karl Mannheim: uma discussão acerca do papel dos intelectuais nos processos de
mudança social”, Universidade Estadual de Londrina-Paraná (Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maringá, v. 26, n. 2, p.
239-250), 20 de Setembro, Brasil 2004, pág. 3 in “Karl Mannheim e suas influências sobre as análises de Celso Furtado acerca do
papel social do intelectual e da planificação”.
(4) Op. Cit., Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro-São Paulo 1985, págs. 90 a 95 in “VI-A estrada real”.
(5) Op. Cit., Collection 10-18 n. 432-433, Union Générale d’Éditions, Paris 1969 (1962), págs. 144 a 146 in “Les surprofits coloniaux”.
LX
Em 1953, Theodore Schultz deu-nos um retrato da relação entre renda agrícola e consumo alimentar numa dada comunidade rural.
Aspecto da agricultura no quadro de uma economia norte-americana instável, que interessara sobremaneira Celso Furtado. E que
aquando da sua visita, em 1951, aos diversos departamentos de economia com actividade interdisciplinar nos Estados Unidos da
América, ele conferiria com Schultz. Este diria em 1953, num seu livro reputado importante : “Nós podemos esperar, em pressupostas
áreas, a propensão marginal para que o consumo alimentar decresça com a renda. Isto significa que se a renda sobe, a parte da renda
destinada pelos consumidores à proporção gasta em alimentação decai quando aquela destinada a alguns outros itens sobe”.
Schultz caracterizava isto, remetendo-nos a uma recolha pioneira de estatística agrícola fundamentada em 1888, em plena crise de
recessão mundial do império britânico detentor do padrão ouro de trocas comerciais: “Este efeito da renda acima da procura é muitas
vezes referida como a ‘lei de Engel’, porque houve um estudo que este publicou em 1888 (a elasticidade da renda para a alimentação
indicada por Engel era de 7)”. E adiantava, porém, agora, ainda em 1953: “O trabalho estatístico que ele fez sobre este problema, fora
um importante primeiro passo; contudo, é ainda um longo caminho até se providenciar uma resposta para a seguinte pergunta: ‘Qual é
a elasticidade da renda de produtos agrícolas?’”. Por fim, Schultz caracterizava a economia agrícola como estando em expansão,
apesar das flutuações industriais desta última no território norte-americano: “É uma economia em expansão, com rendas subindo e com
tecnologias desenvolvendo-se na agricultura, com uma grande diferença na elasticidade da parte da renda dos produtos agrícolas
quando é menor do que 5 ou substancialmente maior, tomando a comunidade como um todo, descaindo lenta ou mais rapidamente
enquanto as rendas sobem” (1).
O mais paradoxal, foi o encontro pessoal que Celso Furtado teve com Theodore Schultz, um economista de Chicago autor de um livro
sobre agricultura americana, que interessara o brasileiro antes, em Santiago do Chile. Mas pareceu-lhe que Schultz parecia não estar
muito interessado com as consequências da competitividade nos países atrasados e periféricos. Porque achava que as “imperfeições”
do sistema económico mercantil, desde que solucionadas na América, eram quanto baste para acarretar modificações sinónimas nos
outros países dependentes da economia norte-americana.
O “mundo ideal da concorrência pura e perfeita”, consistia na descoberta da racionalidade do agente económico; sendo que “a política
de controle da área plantada”, no seu entender de então, “não tivera então qualquer eficácia” no contexto norte-americano, unicamente
e “podia ser dispensada”. Como, por isso, os preços agrícolas nos E.U.A. eram instáveis, era necessária no entanto uma acção do seu
governo federal, no quadro de uma economia instável por natureza, de maneira a que os preços dos agricultores não tendessem à
baixa. Visto que a renda então disponível para consumo quando este crescia, segundo a lei de Engel, fazia concomitantemente que a
participação dos gastos com alimentos tendesse a declinar. Mas o proteccionismo aos preços agrícolas prejudicava, por extensão
continental aos países atrasados de industrialização retardada na América Central e do Sul, “os preços dos produtos agrícolas dos
países Ora, os objectivos mais empíricos de Celso Furtado, nesta ronda às universidades norte-americanas mais sensíveis ao
desenvolvimento económico dos parceiros continentais em 1951, a de ajuda económica às “imperfeições” do mercado livre de
mercadorias (desequilibrante de inúmeras balanças de pagamentos de países de comércio dependente), fazendo então a ponte entre a
sua experiência de pesquisa em Paris, Santiago do Chile e nos E.U.A., era desabrochar o que seria considerado pela CEPAL das
Nações Unidas como o “paradigma do desenvolvimento”. Prisioneiro do funcionalismo, recordando em contrapartida a ideia de “polos
de desenvolvimento” e crescimento de François Perroux. Celso Furtado recolocava em filigrana no seu pensamento de então “o
problema epistemológico da relação entre fins e meios nas ciências sociais”, com a interdisciplinaridade oriunda da história económica,
da demografia, da antropologia, da sociologia e da história da ciência e das técnicas.
Também E.J.Hamilton de Chicago se preocupava então com os estudos do desenvolvimento e com as suas tendências ou mudanças a
longo prazo. Para Hamilton, segundo Furtado “a prata da América havia caído no telhado da Espanha e escorrido para os países
vizinhos, verdadeiros beneficiários”, sendo que os efeitos negativos de influxo dos metais preciosos nos séculos XVI e XVII na
economia espanhola conquistadora e colonizadora, resultaram paradoxalmente do seu comércio insensato com as suas colónias
americanas, conforme havia pesquisado nos arquivos da Casa das Índias em Sevilha.
No Canadá, em 1985, o filme “Le Déclin de l’Empire Américain” de Denys Arcand, revelou um grupo de universitários de Montréal,
alguns deles com passagem pela universidade norte-americana de Yale, reunidos num fim-de-semana com os seus cônjuges numa
casa de campo em que fazem um doméstico “brain storm” da intimidade, prevendo o ciclo histórico como um caso particular da guerra
do Vietname, feita então em nome da civilização ocidental e dos valores democráticos e... do desenvolvimento. Ora, trata-se do tema “o
desenvolvimento do conceito de dualismo estrutural. Este conceito chave da teoria do desenvolvimento obteve-o, talvez, do trabalho de
A.Lewis, ‘Desenvolvimento económico com mão-de-obra ilimitada’ (Economic development with unlimited supply of labour, Manchester
School, May 1954), mas deu-lhe uma focagem muito diferente da do ‘metropolitano’ desse autor” (2). A noção de socialização das
perdas, foi proposta por Celso Furtado quando se apercebeu que a relação de trocas na sociedade brasileira era do tipo colonialmetropolitano e não tanto periférica-central, como Prebisch defendia. Consistindo isso em que “as perdas dos grupos exportadores” dos
países periféricos ou de passado colonial ainda omnipresente na sua formação social independente, nomeadamente da indústria têxtil
algodoeira - que era a pioneira no arranque da industrialização retardada, que lhes era inerente como países periféricos e, no caso, o
Brasil - “eram em grande parte transferidas para a massa da população carente”, ou seja, “de transferência para a massa dos prejuízos
impostos às empresas agroexportadoras pela contracção do mercado externo”. Característica esta da fase depressiva, com a diluição
dos prejuízos através do mecanismo da “socialização das perdas”.
Que dizia W.Arthur Lewis em 1965 ? “A essência da inflação estrutural é o facto de ser impedido um crescimento mais rápido da
economia em virtude do baixo ritmo de aumento das exportações e de uma excessiva propensão a importar” (3). E mais adiante: “Além
de serem o motor do crescimento na economia de subsistência (primeira etapa), as exportações podem tornar-se um freio ao
crescimento na economia madura (quinta etapa)”. Remetendo-nos depois para um quadro parcial : “A América Latina oferece exemplo
de economias nas quatro primeiras etapas. A Venezuela está na primeira etapa ; uma economia que cresce mais de 6% ao ano e onde
as exportações (petróleo) são o motor do crescimento. O Brasil estava na segunda etapa nos anos 50 ; uma elevada taxa de
crescimento baseada na substituição de importações industriais. O Chile tem permanecido na terceira etapa ; foram atingidos os limites
da substituição de importações de manufacturas ; para que prossiga o crescimento é preciso ou um avanço na agricultura ou um novo
impulso na exportação de manufacturas e minérios. O México conseguiu o avanço agrícola e está na quarta etapa”.
Pedro Malan na revista brasileira “Valor” caracterizou muito bem a alternativa que constituía a CEPAL : “O que ficou associado mais ao
pensamento cepalino, que não era teoria, mas uma hipótese que o Prebisch levantou nos anos 40, foi que, analisando séries históricas
de determinado período, vê-se que os preços de matérias-primas, ou de ‘commodities’, ou de produtos agrícolas, tendiam a crescer
menos que os de produtos industrializados ou manufaturados” (4).
A ideia de comparativismo ou comparatismo de “séries históricas de determinado período” esteve no âmago dos relatórios colectivos
dos seus participantes intervenientes nas retóricas governamentais de então numa época de ditaduras militares, golpismo e democracia
tutelada ou mesmo “bananeira”. E Malan condensou esse interesse cívico também: “Foi o argumento usado em prol da industrialização,
da produção manufatureira, em países em desenvolvimento, independentemente da dimensão do seu mercado interno, para fugir à
hipótese de deterioração de longo prazo das tendências dos termos de troca entre preços de produtos agrícolas e produtos
industrializados” .
Digamos que a sua formação tardia em economia se deu após os 26 anos: “Furtado intuíra que as acções deveriam ser precedidas de
consistente planejamento, ainda não exercitado com sofisticação técnica em nosso país, mormente no Nordeste”(5). Nesse aspecto é
curioso como inflação e poupança, dois termos importantes numa concepção unicamente monetarista da economia política, tivessem
outra integração no universo conceptual de Celso Furtado, como salienta com perspicácia o mesmo analista, já que o economista que
se segue era o representante oficial do Brasil nas Nações Unidas ao tempo em que Celso Furtado entrou para a CEPAL: “Roberto
Campos, em 1992, ao analisar as obras de lorde Keynes e Frederick Hayek, observou que este costumava afirmar que ‘não era bom
economista quem fosse apenas economista’”.
NOTAS:
(1) Theodore W. Schultz, “The Economic Organization of Agriculture”, McGraw- Hill Book Commpany, Inc. New York-Toronto-London
1953, pág. 49 in “5-Gauging the relevant income elasticities”.
(2) Arturo Guillén R., “A la memoria de Celso Furtado (1920-2004)”, in Revista de Economia Política, vol. 25, n.2, Apr.-June, São Paulo
2005.
(3) W.Arthur Lewis, “Política Econômica - A programação do desenvolvimento”, Biblioteca de Ciências Sociais, Zahar Editores, Rio de
Janeiro 1968 (1966), págs. 46 e 47 in “2-Comércio exterior : Inflacção estrutural”.
(4) Pedro Malan, “Apaixonado explicador do Brasil”, Valor, 26/11, Brasil 2004.
(5) Marco Maciel, “Um Humanista”, Folha de São Paulo, 26/11, Brasil 2004.
16 de janeiro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXI)
“Muito foi escrito acerca da globalização, que se transformou num assunto de moda na discussão, embora nem sempre seja claro o que é que exactamente significa o
termo. Críticos da globalização para quem, segundo Krugman em 1996, também tudo frequentemente se refugia na “economia de quiromancia”, toma a globalização como
sendo uma coisa de soma zero e ao fazer isso tendem a ignorar, por exemplo, o princípio das vantagens comparativas sob o qual o comércio internacional é com efeito um
jogo positivo de somas. Há também crítica ao mercado, enquanto sendo coisa sagrada e, implicitamente, no mínimo, exaltando o Estado como um objecto sagrado”
Manuel Carvalheiro
Repare-se que John Frankenheimmer em “O Homem de Kiev” (The Fixer, 1968) nos dera o fresco dos tumultos
dos “progroms” periódicos feitos a coberto do tsarismo, no final do século XIX e no início do XX. Explicando-se o
contexto da brutalidade da repressão e do que se preparava lentamente na sociedade russa, que viria a justificar
posteriormente o desabamento simultâneo do feudalismo e do capitalismo, com poucas alternativas institucionais
práticas em direcção à democracia representativa, que passou a transcorrer paralelamente nos sovietes a partir
de 1905.
Celso Furtado evoca o nome do economista chileno-alemão Ernest Wagemann, “criador nos anos vinte do
Instituto da Conjectura de Berlim”, no seu livro “A Fantasia Organizada”, tendo-o ouvido numa conferência que
este dera em Santiago do Chile em 1949, “autor de uma das mais ‘percucientes’ análises da grande inflação
alemã do começo dos anos 20” (1). Celso Furtado explicou também que Wagemann traçara o quadro de conflito
hierárquico de moedas no circuito alemão, que conduzira à aberração da inflação então sofrida entre, nomeadamente, 1918 e 1927.
Período em que a introdução de uma moeda fiduciária, inicialmente apenas indexada à renda da terra, se sobrepôs na procura
posterior à oferta inicial do já existente signo monetário.
Signo monetário este, simbólico, que no entanto perderia pouco a pouco a sua função inicial como mercadoria regulada; assim,
perdendo também as suas iniciais funções tradicionais como moeda oficial e por isso, sendo substituída pelo “rentenmark”, na sua
assimetria no jogo normal de oferta e procura. Um filme insólito que retratou em 1923 essa crise diária em Berlim entre 3 e 11 de
Novembro, foi o “Ovo da Serpente” (1976) de Ingmar Bergman, com cenas de sobrevivência indignas quando um maço de tabaco
chegara a custar quatro mil marcos da época.
Um estudioso da crise financeira de 1929, Charles Kindleberger, refere um episódio no contexto da espiral inflacionária, que acabou por
vencer o poder político democrático por descrédito junto da população desempregada e do caos económico exagerado e mais aparente
do que real na Alemanha de 1932: “Um memorando social-democrata de Julho de 1931 defendeu que o Reichbank poderia incumbir-se
de uma nova emissão de bilhetes de banco sem ter em conta os limites legais impostos pelas suas reservas de cambio estrangeiro e de
ouro, evitando o perigo da inflação em elevando a taxa de desconto. Disso se incumbiu a última, mas não a primeira”. Conclusão: “E o
Danatbank teve permissão para abrir falência, um pecado de omissão olhado como incompreensível de uma perspectiva actual” (2).
Wagemann havia estudado também a inflação crónica chilena antes da I Grande Guerra, que apesar de estável parecia já aberração
nessa época pioneira, por ser um fenómeno financeiro novo em face da ortodoxia clássica dos economistas do século XIX. Tendo-lhe
servido porém de trampolim de investigação para captar depois a lógica da ulterior explosão inflacionária alemã a seguir ao Tratado de
Versalhes, tendo por isso mesmo estabelecido contacto com Keynes, porém interrompido aquando do início da II Guerra Mundial.
Wagemann fora o autor de um esquema de desenvolvimento conjuntural, que melhorara os prognósticos económicos de sistema dito
de barómetro financeiro elaborado em Harvard para o período de expectativa de pré-guerra, entre 1903 e 1914. Este último com alusão
ao comportamento das flutuações da especulação, da actividade dos negócios e do mercado de dinheiro, atravessando
simultaneamente cinco fases entre os extremos da depressão por um lado inicial e da crise industrial pelo outro lado final, com pelo
meio e nessa ordem, a recuperação mais lenta, a prosperidade de negócios ligeiramente mais curta que a fase anterior e por fim de
novo o início da tensão financeira, fases estas intermediárias e mais ou menos duráveis cronologicamente num período de dez anos.
Mas Wagemann alargou, entretanto, o dito sistema de barómetro financeiro, assente no esquema dos “três mercados” ou Índice de
Harvard para as Condições de Negócios, agora então compreendendo treze gráficos diferentes sem curvas, mais adequado ao período
de pós-guerra, entre 1918 e 1927, segundo Walter Adolf Joehr em “Las Fluctuaciones Económicas”, publicado em Zurique em 1952 (3).
Contudo, Celso Furtado referiu-se, também, a outro economista de origem austríaca, Richard Lewinson, que havia emigrado para o
Brasil em 1940 oriundo de Paris, portador da sua experiência de Viena e do seu “fecundo caleidoscópio cultural” subsequente à
desagregação do império austro-húngaro.
Richard Lewinson pusera sob crítica a teoria quantitativa da moeda em 1946 na revista “Conjectura Económica” que dirigia, como
dogma anterior ao “salto inflacionário”; e fora um divulgador educativo de economia mundial, como autor de um livro sobre “trustes” e
“cartéis”. Através igualmente de uma revista de que era o director e onde Celso Furtado começou a colaborar quando voltou a primeira
vez da Europa em 1945, com artigos sobre a situação a curto prazo, acompanhando a atmosfera do meio empresarial e de outros
agentes económicos, na improvisação de inquéritos de rua a martelo.
Actualmente, na era da globalização sem alternativa como contrapeso substancial e centralizado na economia mundial, a situação
colocou em crise a própria autoridade das agências económicas das Nações Unidas, como aconteceu no fórum de Hong-Kong a 13 de
Dezembro de 2005 com três países como a África do Sul, o Brasil e a Índia a terem uma posição mais saliente na Organização Mundial
do Comércio, que mostra a evolução em mais de meio século da função utilitária dos investimentos numa economia subdesenvolvida
por falta de escoamento dos seus produtos agrícolas, como foi o caso do algodão face ao proteccionismo dos países mais adiantados
do G-7.
“O argumento neoliberal convence aqueles que participam do sistema financeiro global de que mercados onde os governos praticam
políticas fiscais responsáveis são mais confiáveis para receber investimentos por não arriscarem novos endividamentos” (4). E o círculo
vicioso continua: “Dependentes destes investimentos externos, os governos dos países em desenvolvimento são forçados a manter
seus orçamentos equilibrados. Por serem forçadas a abdicar de políticas expansionistas e manter taxas de remuneração muito altas
para o sector financeiro, estas economias são preteridas por investidores interessados em explorar o sector produtivo”. E por fim:
“Assim, para as economias em desenvolvimento, sobram os recursos financeiros especulativos de curtíssimo prazo que em nada
contribuem para a expansão económica e a geração de emprego”.
No filme de Frank Capra, “Doido com juízo” (Mr.Deeds goes to Town, 1936), a personagem de um homem sem qualidades, oriundo da
sua cidadezinha de província, herda uma fortuna deixada por um capitalista; e, participa, depois, numa reunião importante numa
megalópolis, onde no quadro negro está um gráfico com as célebres curvas do comportamento humano entre o normal e o anormal,
parodiando-se o estilo frenético ou catatónico dos agentes económicos face à euforia ou à tensão bolsista, antes do New Deal para
vencer a estagnação e a recessão crónica com uma retoma de crescimento e desenvolvimento.
Um pesquisador encontrou no documento das Nações Unidas em 1951 sobre os países em vias de desenvolvimento, coligido por
W.Arthur Lewis e por Theodore Schultz, uma manifestação do livro de John Stuart Mill escrito em 1848 e renovando com o utilitarismo
económico, no quadro republicano burguês em época de crise de instituições feudais, na Europa pós-napoleónica
“Estes são os argumentos básicos do ‘Measures’. Não temos a vã pretensão de recompor em detalhe as tradições intelectuais a que
remete. Mas, uma delas é talvez a mais evidente, à qual podemos dizer que o documento de fato acena: Stuart Mill. No livro I (caps. 7 e
13) de seus Princípios o leitor encontrará exactamente os temas dos documentos da ONU que sintetizamos mais acima. Há motivos
para supor que a correspondência não é casual” (5).
E voltando a frisar que a relação entre o documento de 1951 e as “Medidas” de John Stuart Mill não eram fortuitas, o mesmo
pesquisador salienta: “Desafiado, como fora Mill, a examinar países e regiões que não constavam privilegiadamente dos temas eleitos
pela tradição Smith/Ricardo, o ‘Measures’ deveria estar atento a factores que, lembrando o comentário de Marx sobre as limitações da
economia política clássica, explicassem não apenas como se produz nas relações capitalistas, mas também sobretudo como se
produzem as relações capitalistas”.
NOTAS:
(1) Op.cit., Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro-São Paulo 1985, págs. 47, 99 e 100.
(2) Charles P.Kindleberger, “The World in Depression”, University of California, Berkeley 1987 (1973), pág. 295 in “14. An Explanation of
the 1929 Depression”.
(3) Op. Cit., Libreria “El Ateneo” Editorial, Buenos Aires 1958, págs. 21 a 25.
(4) Daniel Negreiros Conceição, “Mão invisível’ ou ‘mão leve’ do mercado. Onde foram parar os emprêgos ?”, Pdf. Brasil 2004, pág. 8.
(5) Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes, “Nota sobre a economia do desenvolvimento nos ‘vinte e cinco gloriosos’ do pós-guerra”, in
“Reformas econômicas liberalizantes em países em desenvolvimento”, inquérito colectivo a cargo de Sebastião Velasco e Cruz,
Fapesp-Brasil, Julho, São Paulo 2004.
------------------------LXII
Em “O Contracto” (The Draughtsman’s Contract, 1982) de Peter Greenaway, a acção concentrada decorre no final do século XVII, em
que um desenhador é contratado pela esposa do dono da propriedade rural para em doze estampas resumir o estado do sítio de forma
a proceder-se à descoberta de um herdeiro, visto que as mulheres por lei não podiam herdar terrenos de senhores feudais. A alegoria
sobre a infertilidade e a sucessão, reflectem com minúcia e alguma inevitável pretensão, o quadro da situação familiar no campo, após
a revolução de Cromwell e a consciência cartesiana omnipresente. Com um perfume de perfídia e sentimentalismo condicionado à
aparente frieza de relações, pela impossibilidade de solução aparente na crise dinástica, circunscrita ao núcleo da classe dominante da
terra.
Em 1949, Duesemberry havia escrito um texto importante sobre o comportamento dos consumidores, de onde deduzira a teoria da
demonstração. Celso Furtado comentou em 1985 que uma pessoa poupava em função da sua posição na escala social e, portanto,
também em função da sua renda. Mas Duesemberry referia-se ao padrão do consumidor nos E.U.A. de então, em que 2/3 da
população não poupava, consumindo e endividando-se progressivamente mesmo. Isso transplantado para a população dos países de
industrialização retardada ou mesmo sem industrialização, provocava distúrbios na percepção global do desenvolvimento dessas novas
economias subdesenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. Com o tempo, a renda média decrescia com o fenómeno anterior da
subida do coeficiente de poupança, em crescimento comparativo com a renda individual; e, esse tempo em séries, era o historial
recente dos ciclos e anti-ciclos periódicos da economia capitalista hiper-desenvolvida entre a crise e a retoma, a expansão e a tensão
de mercados.
Na fase de prosperidade e de expansão económicas, Celso Furtado atribuía a outros factores o refrear da elevação dos salários reais
dos trabalhadores ligados às actividades primário-exportadoras, atendendo àquilo que caracterizou como oferta elástica de mão-deobra enquanto factor principal de inércia, que viria a constituir posteriormente o modelo de W.Arthur Lewis cinco anos depois. Mais
tarde em “A Fantasia Organisada” é o próprio Celso Furtado quem dirá: “Comentando o artigo de Arthur Lewis sobre ‘desenvolvimento
com oferta ilimitada de mão-de-obra’, que logo ocuparia um grande espaço na literatura académica, eu dizia em carta a Noyola, em
Fevereiro de 1955, tendo dedicado mais tempo do que qualquer pessoa ou grupo de pessoas a pensar e investigar nesse campo,
encontramo-nos hoje sem nada de real significação para apresentar” (1).
Kaldor ofereceu-lhe o seu texto “Teorias Alternativas da Distribuição” sobre inovação na teoria da distribuição, tendo em conta o beco
sem saída em que havia caído a teoria económica, sem novo desenvolvimento após a abordagem de Keynes. Fora no México que em
1957 Celso Furtado encontrara por acaso Nicholas Kaldor, atraído para uma conferência sobre comércio internacional e desigualdade
nas trocas pela CEPAL, a convite do economista mexicano Victor Urquidi seu responsável local. Uma versão de um jogo vídeocomputorizado com mapas interactivos está agora disponível: “O objectivo é simples - fundar uma civilização e conduzi-la ao longo dos
séculos, enfrentando os rivais até alcançar a vitória. O jogador pode optar por vários caminhos, incluindo a conquista de terras sem
apelar às armas, apenas com a influência cultural, religiosa e comercial” (2).
A circulação dos conhecimentos, a especulação sobre o destino da economia mundial dividida entre três polos, como o Japão, os
E.U.A. e a Europa, não encontrou na última década um círculo de estabilidade referencial. Sobretudo, desde a crise asiática dos
mercados financeiros em 1997, prevendo-se que na próxima década haverá que refazer parte do caminho perdido na problemática
social desde 2001.
“Muito foi escrito acerca da globalização, que se transformou num assunto de moda na discussão, embora nem sempre seja claro o que
é que exactamente significa o termo. Críticos da globalização para quem, segundo Krugman em 1996, também tudo frequentemente se
refugia na “economia de quiromancia”, toma a globalização como sendo uma coisa de soma zero e ao fazer isso tendem a ignorar, por
exemplo, o princípio das vantagens comparativas sob o qual o comércio internacional é com efeito um jogo positivo de somas. Há
também crítica ao mercado, enquanto sendo coisa sagrada e, implicitamente, no mínimo, exaltando o Estado como um objecto
sagrado” (3).
Ainda em 1954, W.Arthur Lewis afirmava peremptório, a propósito dos países menos avançados que sofressem de desenvolvimento
espontâneo, um quadro de estagnação ou de oscilação irrealista da política económica, o seguinte : “Nesses países, a política
aconselhada é, ao contrário, criar tanto emprego quanto possível no sector manufactureiro e desprezar os preços das importações
concorrentes, até que o produto líquido da mão-de-obra no sector industrial seja positivo” (4).
Separava, no entanto, esses países em superpovoados e subpovoados, sendo que os segundos não justificavam tal urgência de que
Lewis colocava nesses o Brasil de então do presidente Café Filho ou o Gana ainda Costa do Ouro, porque este último só atingiria a
independência política dois a três anos depois. Porém, o grupo dos primeiros, incluía: a Índia, dirigida por Nehru depois de Ghandi
desde 1948, o Egipto já da revolução de Nasser desde 1952 e a Jamaica, juntando-se à comunidade internacional de negócios através
da Federação das Índias Ocidentais em 1958 (acabou por sair dela mais tarde em 1961 antes da independência no ano seguinte),
como tendo aqueles três países economias ditas superpovoadas; e, cuja urgência, na criação de emprego manufactureiro, ultrapassava
as carências de industrialização e fixação rural de populações.
Sobretudo, em países como o Brasil de então - com áreas do tamanho do Sahara - em regiões como o Nordeste, mas
demograficamente de menos relevo gritante à escala mundial dessa época, isto é, na primeira metade da década de cinquenta do
século XX. Isso um ano antes da Conferência de Bandoeng na Indonésia, que em 1955 levou à criação do Plano das Nações Unidas
para o Desenvolvimento. Recentemente, uma colectânea de estudos económicos em forma de planos de acção muito mais interventiva
no tecido social africano, num ciclo diferente do das expectativas económicas e sociais de meio século antes, abarcou a África do Sul,
Moçambique, Nigéria, Quénia e Uganda, assolados por desequilíbrios estruturais de natureza e formação diferentes no quadro do
desenvolvimento democrático possível no novo milénio num continente martirizado pela história e pelas circunstâncias adversas ao
exercício desigual do seu rumo político mais acentuado (5).
Em finais de 1957 Celso Furtado está em Cambridge, no King’s College, e meditava ao lá chegar sobre o “fruto das circunstâncias”,
mas havendo então momentos que “não cabemos nas circunstâncias”, tendo para isso conseguido libertar-se da “tirania das
circunstâncias” – com a “força das circunstâncias”, como é dito num diálogo entre o médico, o governador com reumatismo e um seu
adjunto propenso ao absolutismo na Jamaica de 1687, entre escravidão britânica, pirataria francesa e liberdade espanhola
condicionada, numa cena de “Captain Blood” (1935) de Michael Curtiz -, com a assistência então aos seminários educativos de
Nicholas Kaldor e de Piero Sraffa, dois economistas brilhantes. Para além de ser a altura em que se publicou o livro “Accumulation of
Capital” de Joan Robinson, a maior autoridade da época nesta matéria, crítica ao pensamento ortodoxo da herança de Keynes, de que
dois pesquisadores, Amartya Sen e Piero Garengnani, seguiam o curso que um deles, Nicholas Kaldor, dava.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro-São Paulo 1985, págs. 182 e 183 in “XII-O cavaleiro andante”.
(2) Marcelo Nóbrega, “‘Civilization IV’ transforma o jogador em um líder global” Jornal do Brasil 2/1/2006.
(3) Marian Svetlièiè, “Globalisation: Neither Hell nor Paradise”, Journal of International Relations and Development, Vol. 3, No 4,
December, Lyublyana 2000 in “Introduction”.
(4) W.Arthur Lewis, “A Teoria do Desenvolvimento Econômico”, Biblioteca de Ciências Sociais, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1960
(Manchester, 1954), pág. 451 in “Cap. VI-A população e os Recursos Naturais ; 2 – As relações internacionais: a) O comércio
internacional”.
(5) “Standards & Global Trade – A voice for Africa”, Editors John S.Wilson and Victor O. Abiola, The World Bank, Washington, D.C.
2003 – The International Bank for Reconstruction ande Development/The World Bank, cf. págs. 65 a 164 in “2.Bridging the Standards
Divide: A Case Study and Action Plan for Mozambique” (Gabriela Rebello da Silva, Lara da Silva Carrillo
23 de janeiro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXIII)
Com o professor J.E.Meade em Cambridge o “quiproquo” verificava-se quando Celso Furtado a propósito de comércio internacional lhe deu a ler um artigo que iria enviar
para “The Indian Journal of Economics”, que havia preparado sobre “a natureza dos desequilíbrios externos das economias subdesenvolvidas”. No entanto, Meade sem dar
maior importância à questão, apenas defendeu a “retomada dos fluxos financeiros”
Manuel Carvalheiro
Num ambiente de celibatários e solteironas, John Maynard Keynes (1883-1946) tinha um sucessor em Cambridge:
era o professor Richard Kahn, que Celso Furtado, em 1957, conhecera, como tendo sido um dos quatro
catedráticos de economia ali. E, cuja notoriedade, estava ligada à famosa teoria do multiplicador. Outro, era
A.C.Pigou, a quem Keynes, por aquele ser discípulo de Marshall, considerava como “o totem” do pensamento
clássico económico progressista, por ser apoiante da teoria de Say; teoria de que Keynes discordava, avançando
este último, então, com a do multiplicador de Kahn, seu discípulo privilegiado “post-mortem”, guardião do templo
dos seus manuscritos.
Entretanto, a “função de progresso tecnológico” do modelo de crescimento económico de Nicholas Kaldor, de quem Joan Robinson
criticava a excessiva matematicidade, segundo ainda Celso Furtado em “A Fantasia Organizada” (1), embora esta última fosse
defensora apenas da conservação de variáveis estritamente económicas nos seus esquemas e apesar de defender o não
“reducionismo” da realidade social ao económico – sendo, porém, sensível aos problemas sociais, sobretudo da economia chinesa e do
modo de produção asiático no século XIX -, relacionava então a taxa de crescimento de acumulação de capital por trabalhador com a
taxa de crescimento de produtividade de mão-de-obra, inerentes, ambas, a um crescimento dual e com as quais pretendia que se
calculava prioritariamente a distribuição de renda.
No tempo dos neo-clássicos da revolução industrial descobrira-se, por exemplo, a mais-valia, isto é, quando o trabalhador recebia 10
pela sua força de trabalho geralmente então equivalente à sua manutenção ou subsistência próximas da sobrevivência no limiar da
fome, o industrial ficava com 40 do que aquele produzira no total, mas desses 40 – que utilizava no seu modo de vida folgado - uma
parte seria para reinvestir, o capital, no qual também se incluía a renovação do equipamento pelo seu desgaste ou caducidade face à
concorrência com outros proprietários de ateliers de meios de produção manufactureira ou fabril durante a revolução industrial inglesa
após a descoberta da máquina a vapor.
Para eles todos, após o pensamento ortodoxo ter assente em Keynes, que torneara os neo-clássicos, era de Ricardo o novo ponto de
repartida do pensamento económico, tal como o fazia Sraffa em 1957 em Cambridge no seu manuscrito - dactilografado durante uma
década de investigação dos clássicos - intitulado estranhamente “Produção de mercadorias por meio de mercadorias”, em círculo lógico
que retomava as fontes da crítica neo-clássica, desde Quesnay a Adam Smith, mas depois de se conhecer historicamente a solução de
Keynes para a crise do capitalismo face a Marx e a sua profecia histórica. Por outro lado, Nicholas Kaldor queria dinamizar sem
dogmatismos os modelos macroeconómicos. Segundo a recordação despretenciosa de Celso Furtado, o fenómeno do desenvolvimento
económico em Cambridge nessa segunda metade dos anos cinquenta do século XX tinha no curso dado por Kaldor, que o havia
convidado a permanecer lá para escrever um ensaio, como seria depois “Formação Económica do Brasil”, no entender deste a
“percepção das limitações das construções abstractas” e o excesso de “linguagem simbólica”, que Joan Robinson em contrapartida
pedia mais embora com menos matemática. O que é certo é que Nicholas Kaldor dava então um panorama crítico do pensamento
económico com uma “tradução gráfica das ideias” excepcional e em que se punha em dúvida a si mesmo.
Mas J.E.Meade e Piero Sraffa, conjuntamente com Joan Robinson, quando viram o texto de Nicholas Kaldor no “Economic Journal”,
depois de ter sido apresentado e defendido na antiga biblioteca Marshall em Cambridge por um economista australiano seu partidário,
passaram a crivo o que consideravam na época como mistificador e mesmo uma perda de rumo, mas que ele aceitou corrigir o que
fosse necessário se necessário fosse mesmo, porque não era dogmático em relação a si próprio. Um outro retrato sobre Nicholas
Kaldor por esta altura, enquanto leitor de economia em Cambridge a partir de 1952, depois de em 1949 ter sido um dos relatores das
Nações Unidas sobre medidas a tomar sobre pleno emprego à escala nacional e internacional: “A teoria económica do crescimento
segundo Kaldor foi proposta à medida que escrevia seis artigos importantes espaçados entre 1956 e 1962, marcando uma gradual
evolução dos detalhes da teoria sem afectar os seus substanciais esboços” (2).
Provavelmente, foi no México que a generosidade proverbial de Kaldor lhe fez revelar - a título particular e informal - a Celso Furtado
esses esboços do seu modelo, ainda em construção e mais tarde em aperfeiçoamento. Levando o último a aceitar o convite do
primeiro, para passar um ano em Cambridge no King’s College com uma bolsa da fundação Rockfeller, porque as Nações Unidas não
atribuíam bolsas aos seus funcionários internacionais como era o caso: “Começou por ser uma simples teoria keynesiana da
macrodistribuição (Kaldor, 1956), à qual era então acrescentada uma chamada ‘função de progresso técnico’, uma marcação de
preçário e uma particular função de investimento (Kaldor, 1957)”.
Assim, esses detalhes acrescentados pouco a pouco, abarcaram no caso posterior ao convite aceite da presença directa de Celso
Furtado os anos de 1957 e 1958, essencialmente, talvez mesmo o início do primeiro trimestre de 1959: “A função de investimento foi
então reformulada (Kaldor, 1958), o que produziu ulteriores modificações na versão final do modelo (Kaldor, 1962)”. Um outro retrato
mais extenso, diz-nos que “Kaldor nunca publicou um modelo completamente esvoaçante do desenvolvimento em espírito, por
exemplo, como o dos primeiros economistas clássicos, ou de Arthur Lewis em tempos mais recentes” (3). Nessa época, Sidney Lumet
realizava “O Agiota” (The Pawnbroker, 1964), sobre a dualidade psicológica de um antigo sobrevivente dos campos de concentração,
agora instalado num bairro da lata em Nova Iorque; lidando com a injustiça da sua função social numa loja de penhores, face à pobreza
e à ignomínia da luta pela sobrevivência económica; no contexto da prometida Grande Sociedade do então presidente Lyndon Johnson,
cuja administração lidava com a iminência do incidente do Golfo de Tonquim no Vietname e com o passivo da segregação racial no Sul
dos E.U.A..
E, mais adiante, nesses tempos modernos da segunda metade do século XX e da actualização dos antigos clássicos da economia dos
séculos XVIII e XIX em Inglaterra, esse economista caprichoso de origem húngara, Nicholas Kaldor, assentou as suas inúmeras
viagens como especialista em taxas recomendadas aos países do Terceiro Mundo, que visitava periodicamente desde o Ceilão à
Venezuela: “Durante muitos anos ele foi leitor em Cambridge sobre economia fechada num modelo de crescimento de dois sectores
que integrava o crescimento da agricultura (produção primária) e indústria num quadro de equilíbrio, que pode formar a base de um
modelo geral de crescimento e desenvolvimento, mas de que nunca nos revelou a sua própria fruição”.
Durante os anos trinta do século XX, máquinas oriundas de países industrializados vendidas em segunda mão após a Grande
Depressão serviriam para o processo de industrialização no Brasil, citando-se Celso Furtado no seu artigo “A industrialização do Brasil”
numa antologia organizada por C.Veliz “Latin America and the Caribbean” e, também, W.Baer em “Industrialization and Economic
Development in Brazil” (4); contribuindo para o crescimento industrial a compra barata de maquinaria estrangeira às fábricas afectadas
pela depressão económica, com estagnação recessiva prolongada e obrigadas a fechar caso contrário nos próprios E.U.A. de então.
Mas, depois dessa crise mundial dos anos trinta, o mesmo processo era adoptado nos anos sessenta, em pequenas firmas de Porto
Rico, México e Japão.
Ora, se há algumas vantagens nisso, desde que esse material ainda esteja em uso em países industrializados, como manter operários
antigos especializados como aconteceu no primeiro plano quinquenal na Rússia soviética, também há inúmeras desvantagens em usarse material em segunda mão quando já há nos países industrializados nova maquinaria para o mesmo efeito e para o processo de
industrialização dos países em desenvolvimento, pelo facto de ter mais curta duração e ser mais difícil arranjar peças de substituição.
Uma projecção de vinte anos, feita por um respeitável economista norte-americano, recomendava uma inquietação maior por parte dos
governos com respeito, nomeadamente, “à ‘composição’ da produção em relação ao simples ‘nível’ da produção e do emprego” (5),
entre outras coisas, alertando para o desnível de tempo entre a acção encetada e o efeito com resultados nas balanças de pagamentos
da comunidade internacional.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro-São Paulo 1985, págs. 202 e 203 in “XIII-As contas do passado”.
(2) Mark Blaug, “Nicholas Kaldor, 1908-86” in “Pioneers of Modern Economics in Britain”, Volume 2, Edited by David Greenaway and
John R.Presley, Macmillan, London 1989, págs. 70 e 71.
(3) Anthony P. Thirwall, “Nicholas Kaldor”, Grand Masters in Economics, General Editor Mark Blaug, Double-Volume, Wheatsheaf Books
Ltd, Brighton 1987, págs. 201 e 202 in “8-The Theory and Practice of Economic Development”.
(4) R.B. Sutcliffe, “Industry and Underdevelopment”, Development Economic Series, Edited by Arthur Hazlewood, Addison-Wesley
Publishing Company, London- Massachusetts-California-Ontario-Sydney-Manila/Printed in Spain 1971, pág.187 in “5.Technology and
Industrialization. 5.9. A Compromise Technology ?”.
(5) W.W.Rostow, “L’Ultimatum de l’an 2000 : Chances de survie de l’économie mondiale”, Economica, Paris 1981, págs. 246 a 249 in
“14-Epilogue : La démocratie peut-elle survivre ?”.~
LXIV
Cambridge, funcionava, como um dos centros de investigação universitária, para “um novo capítulo desse processo de permanente
reapetrechamento da ciência econômica para que possa cumprir as funções que dela espera a sociedade”, dizia Celso Furtado em “A
Fantasia Organizada” (1). Havia, mesmo, lá, uma réplica da Câmara dos Comuns transformada em clube – onde se debatia e votava
como numa câmara de ecos, simulando a sociedade civil de então no final dos anos cinquenta do século XX.
Com o degelo, da Guerra-Fria e, a reaproximação, feita pela UNESCO – através da Associação Internacional de Economistas – entre
Leste e Oeste, numa povoação turística da Turquia dessa época, reuniram-se russos e americanos, ingleses e checos, brasileiros e
egípcios, romenos e franceses, polacos e suecos, turcos e húngaros. Sensibilizando-se o meio académico universalista – por essa via
institucional de uma organização prestigiada no campo educacional, científico e cultural –, para problemas usuais na economia mundial
desse tempo de pós-II Guerra Mundial.
Com planificação e consumo, metidos – como arquétipos do movimento social – numa carapaça estatal de um lado; e, preconceitos
sobre o atraso, menosprezados para índices anteriores a 1914, por outro lado. Por exemplo, ligando a economia checa aos preços
ditados pelo comércio internacional do mercado livre. Num filme húngaro de Istvan Gaal, “Green Years” (Zoldar,1965), a juventude de
então - antes e depois de 1956 – interrogava-se sobre o reflexo das barreiras da produção na população e no quadro de sectores
burocratizados ; de uma economia cuja crítica tendia paradoxalmente a ser privada ou silenciada sem alternativa, com consequências
para o bloqueio do consumo no quadro da planificação social necessária para a industrialização.
Com o professor J.E.Meade em Cambridge o “quiproquo” verificava-se quando Celso Furtado a propósito de comércio internacional lhe
deu a ler um artigo que iria enviar para “The Indian Journal of Economics”, que havia preparado sobre “a natureza dos desequilíbrios
externos das economias subdesenvolvidas”. No entanto, Meade sem dar maior importância à questão, apenas defendeu a “retomada
dos fluxos financeiros”. Meade não pretendia ir além de um modelo macroeconómico com variáveis que não contradissessem os
neoclássicos e a sua teoria da distribuição de renda.
Seja como for Joseph Losey em “Accident” (1967) dar-nos-ia os efeitos perturbadores da memória selectiva, face à recordação de um
desastre de viação em Oxford, em que dois professores universitários casados disputam os favores de uma estudante. Princesa de
origem austríaca, que será apanhada por um dos mestres a conduzir o automóvel sinistrado ao lado do estudante que morreria, num
quadriculado dramático em que até a filha do reitor intervém como factor de um passado referente a uma década atrás. Onde o fortuito
desenlace oculta tensões, num ambiente fechado e de imobilidade social, para além da tradição aristocrática de um herdeiro de Curzon.
Segundo o biógrafo A.P.Thirlwall em “Nicholas Kaldor” (2), após treze conferências no Chile em 1956 e mais cinco no Brasil, o curso de
Kaldor em Cambridge em 1957/58 em Cambridge ajudou Celso Furtado a compreender melhor a sua própria intuição de que o
subdesenvolvimento ultrapassava a ciência económica até então concebida, visto que aquele dava uma “dinamização ao modelo
keynesiano”, institucionalizando assim a sua nova contribuição à teoria da distribuição que ultrapassasse os cânones caducados da
outra teoria neo- clássica da distribuição de renda até ali vigente.
E como a concebia Meade também em Cambridge, que subestimava o facto das “sociedades afectadas por conflitos sociais” não
dependerem apenas e tão só de simples “problemas de ajustamento”, mas que também era necessário compreender os “problemas
colocados pelas transformações da ordem mundial”, levando em conta também as “causas dessas transformações”, que antes não
eram consideradas pelos próprios pioneiros clássicos e muito menos pelos neo-clássicos: o parasitismo dos arrendatários rurais, o
capitalismo selvagem, a legitimação dos monopolistas, a acção reguladora crescente do Estado eram apenas episódios que haviam
acontecido para se aperfeiçoar o modelo de distribuição desde que não fosse contra a ordem social vigente. Isto apesar de ter havido
alguém como John Stuart Mill para alertar que “o desenvolvimento sempre seria fruto da acção de factores exógenos”.
O dogma do equilíbrio geral não devia contradizer, porém, o devir histórico na economia clássica e neo-clássica. Sendo que o
pensamento ortodoxo monetarista, agora com a ajuda do Estado, subestimava a ideia de acumulação – a estratégia de William Pitt e a
Paz de Paris: “crise da futura acumulação mundial de capital mapeada” (3) após 1763 – e sobrestimava o perigo da sobrepopulação
ontem como agora. Apesar da herança de rigor lógico reformista de Stuart Mill, perante os rendimentos decrescentes da agricultura,
que atraíram Marx para a descoberta da mais-valia.
Referindo-se, indirectamente, ao princípio de demonstração de Duesemberry de 1949, Celso Furtado no seu texto de 1958, “Capital
formation and economic development”, era então taxativo: “Assim como os grupos sociais de baixa renda ‘per capita’ tendem a copiar
os padrões de consumo de pessoas no topo da escala social, os países pobres tendem a imitar os seus vizinhos ricos no modo de
viver” (4). Em 1959, Ragnar Nurkse proferiu uma conferência em Estocolmo, em homenagem póstuma ao economista Wicksell,
antologiada em “Equilibrio y crecimiento en la economia mundial” (5), em que nos dava o seu “tableau économique” (palavras dele) da
conjuntura do comércio internacional em 1957.
Com excepção do que ele apelidava de “área soviética”, alertando porém para o facto do GATT considerar a Austrália, a Nova Zelândia
e a Argentina como países não industrializados, quando em muitos aspectos eles já o eram. Mas, Nurkse, sem no entanto mudar muito
a sua estimativa de então, dava-nos a seguinte esquemática avaliação: assim, os países industrializados detinham 43% das trocas
comerciais entre eles, ao passo que os países não industrializados apenas detinham 9% entre eles no comércio internacional; mas os
países industrializados com os não industrializados exportavam Norte-Sul 26% desse comércio internacional, quando o inverso era só
de 22%, isto é, menos 4%.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro-São Paulo 1985, pág.225 in “XIV-A Ceia de Natal”.
(2) Op. Cit., Grand Masters in Economics, General Editor Mark Blaug, Wheatsheaf Books Ltd, Brighton 1987, pág. 202 in “The Theory
and Practice of Economic Development”.
(3) Andre Gunder Frank, “Acumulação Mundial, 1492-1789”, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1977 (1974/1976), pág. 146 in “As Guerras
Cíclicas, 1689-1763”.
(4) Op. Cit., in “The Economics of Underdevelopment” Edited by A.N. Agarwala and S.P.Singh, Oxford University Press, London-OxfordNew York 1971 (1958/1963), pág. 323.
(5) Op. cit., Ediciones Rialp, S.A., Madrid 1964, pág. 332 in “Patrones de comercio y de desarrollo” (1959).
30 de janeiro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXV)
Durante a VIII Cimeira Luso-Brasileira, o presidente Lula teve o ensejo de explicar a dúvida quanto à medida da União Europeia em proibir a importação de carne brasileira,
depois de se ter detectado um surto de febre aftosa numa fazenda
Manuel Carvalheiro
Durante a VIII Cimeira Luso-Brasileira, o presidente Lula teve o ensejo de explicar a dúvida quanto à medida da
União Europeia em proibir a importação de carne brasileira, depois de se ter detectado um surto de febre aftosa
numa fazenda. Com efeito, a falha numa vacina que custa poucos reais, afectou uma componente importante das
exporta-ções brasileiras. Mas isso não quer dizer
que depois de se apurar a razão pela qual este ou aquele fazendeiro não verificou a tempo esse detalhe, o Brasil
através inclusive das boas acções do governo português não pudesse vir a então levantar o embargo excessivo à
carne brasileira, cujas divisas tanta falta faziam à economia daquele país latino- americano.
Logo a seguir veio o representante de uma associação de fazendeiros, responder ao “Jornal Nacional” do canal
GNT a 14 de Outubro de 2005, dizendo na altura que a falta não podia ser imputada à lacuna de vigilância e
cumprimento das regras sanitárias por parte exclusiva dos fazendeiros brasileiros. Mas, também e sobretudo, à
deficiente fiscalização dos mecanismos correspondentes do governo, visto que ainda assim as suspeitas recaíam sobre a conduta do
actual ministro da Agricultura. Porém, este já havia entretanto prometido averiguar a falha de detecção da vacina contra a febre aftosa,
que fez espalhar a crise então epidémica. E amplificar o sensacionalismo dos média, por retaliação contribuindo essa atmosfera
institucional para a entrada em vigor de uma medida excessivamente draconiana por parte da União Europeia. Enquanto o presidente
Lula já se deslocava por outros países europeus, inclusive num périplo à Federação da Rússia, seu principal importador daquele
produto agro-pecuário.
No episódio da série televisiva “Bonanza”, intitulado “The Gunmen” (Os Pistoleiros), realizado no início dos anos sessenta do século XX
para a televisão norte-americana, os dois irmãos Joe e Hoss são presos por engano ao serem confundidos na cidadela de Kiowa Flats
no estado do Texas, nos E.U.A., com os irmãos Slade. Enquanto o imbróglio não é resolvido pelo “sheriff” Brown, o mais novo diz que
existe uma erva chamada “loco” que o gado comia e acabava por enlouquecer, sendo que quem por sua vez comesse essa carne
ficava também “louco”. Que era o que lhe parecia sobre quem os havia acusado de serem quem não eram. Por isso, o melhor era
aguardarem na prisão por uma identificação melhor, antes de serem julgados e enforcados em caso contrário. Mas desde já era bom
não ficarem loucos, porque tinham a certeza de não terem ainda comido daquela carne típica, naquela região onde estavam.
Segundo Celso Furtado no seu livro de 1967, “Teoria e Política do Desenvolvimento Económico” (1), “a análise neoclássica tendeu a
transformar o agente económico num dispositivo de resposta automática, integrando-o no mecanismo do mercado, que passa a ser o
centro produtor de decisões”. As preferências dos consumidores seriam as bases dos dados técnicos e psicológicos desse mecanismo.
Ora, Albert O.Hirschman, segundo ainda Celso Furtado, preocupar-se-ia desde 1958 ora com o efeito de arrasto ora com o efeito de
propulsão das decisões económicas no quadro do desenvolvimento de um programa e de uma estratégia, isto é, das decisões sem
elementos aleatórios e da expansão em função de circunstâncias desconhecidas, sendo que Gunnar Myrdal desde 1957 previra
cadeias de reacção em função de decisões autónomas, onde eram possíveis factores de irradiação que aumentassem ou reduzissem o
desenvolvimento. Mas François Perroux pôs em realce “o fenómeno do poder que é subjacente às relações económicas”.
Já o próprio Albert O.Hirschman em “The Strategy of Economic Development” (2), numa sub-rubrica sobre a habilidade para investir,
citava a fórmula “Só os capitalistas poupam”, atribuída a W.Arthur Lewis, que “tinha claramente visto que o crescimento dos países
subdesenvolvidos era sustido de volta pela pequenês do sector moderno (capitalista) em vez de por qualquer absoluta inabilidade para
poupar resultante dos baixos níveis de renda”. Citando um artigo de 1955 de Lewis, Hirschman continuava : “Contudo, ele mantém as
poupanças no seu tradicional papel como principal agente do crescimento; e desde isso ele deseja relacionar o crescimento com o
tamanho do moderno sector em vez daquele do todo da economia a que ele é naturalmente conduzido para a ‘clássica’ proposição que
só os capitalistas poupam (ou de que só as suas poupanças contam)”.
Sobre as economias de enclaves, segundo François Perroux em “Ensaios sobre a Filosofia do Desenvolvimento” (3), “justapõem-se
sem se ligarem” e a economia costeira “é extrovertida e não comunica com o interior”. Inevitavelmente, as economias desenvolvidas
impõem uma “fixação unilateral das condições de troca”. Para Cabo Verde, “um caso insular nas relações Norte- Sul”, por exemplo,
apela-se a uma “reorientação das trocas de forma a reduzir os riscos da dependência”, embora “com excepção do Senegal, as relações
comerciais com a região são praticamente ocasionais” (4). Até 1964, o nível do crédito consumidor no Egipto era liberal, pois era
possível comprar um aparelho de ar condicionado com o pagamento de 3 libras e o resto a prestações mensais (5).
NOTAS:
(1) Op. Cit., Colecção Universidade Moderna n.15, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1976 (1ª edição, 1971), págs. 159 a 166 in “VIII Interacção entre decisões e estruturas”.
(2) Op. Cit., Yale University Press, New Haven and London 1970 (1958), pág. 38 in “2-Growth Models and Development Processes”.
(3) Op. cit., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1987 (1981), pág. 59 in “III - O Desenvolvimento”.
(4) João Estevão, “O Desenvolvimento de Cabo Verde e o Modelo de Integração Económica Internacional”, Estratégia - Revista de
Estudos Internacionais 20-1 semestre, I.E.E.I., Lisboa 2004, págs. 144 e 152.
(5) Peter Mansfield, “Nasser e a Revolução Egípcia”, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1967 (1965), pág. 150 in “9-A Política
Económica”.
6 de fevereiro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXVI)
Não é sem estranhar, que o burguês cria o mundo à sua imagem, em pleno século XIX, consagrando três séculos de luta comercial contra a
persistência do feudalismo (1)
Manuel Carvalheiro
A adaptação cinematográfica de “Memórias póstumas de Brás Cubas” (2001) de André Klotzel, por demasiado
osmoticamente condensada do clássico de Machado de Assis, não deixa de ilustrar por recurso a época em torno
de 1869, quando é recordado por absurdo cronológico o tempo em que o jovem, depois de gastar 11 contos e 15
meses com o primeiro amor, singra para a Europa e se licencia na Universidade de Coimbra em Direito. Dando
depois uma volta pela Espanha, França, Inglaterra, Alemanha e Itália, com um percurso sentimental oitocentista
entre Balzac e Flaubert, Zola e Eça de Queiroz; percurso esse que depois o faz regressar de novo ao Brasil, para
enfrentar a realidade poeirenta de uma fazenda e do atraso semi-colonial de então em relação à novidade.
Não é sem estranhar, que o burguês cria o mundo à sua imagem, em pleno século XIX, consagrando três séculos de luta comercial
contra a persistência do feudalismo (1). Em “O Capital”, publicado em 1867, no capítulo XXI dedicado à “Génese do capitalista
industrial”, o mercado universal que dava a volta ao globo, andava a “passo de tartaruga” (2); na expressão empregue pelo seu autor,
frequentador assíduo do Museu Britânico em Londres, mercado universal esse criado no entanto “pelas grandes descobertas do final
do século XV”. Isto é dito “ipsis verbis”, por um pensador alemão exilado, então, há quase vinte anos e sem a mínima simpatia pelas
quezílias normativas do ensino académico tradicionalista de então. Sujeitas ao filtro das hierarquias de conveniência das universidades
de então, divididas pelas polémicas das viagens de Darwin e do seu reflexo no poder temporal aliado da especulação financeira e do
capitalismo selvagem, fundamentalmente com a exploração desenfreada do trabalho, em especial jovem, na actividade mineira da
época. Apesar de ter sido o crítico irónico dessa ideologia, ligada à ciência administrativa de então, que não prejudicasse majestade
alguma na Europa continental.
“A ordem mais ou menos cronológica” era também evocada nesse capítulo; e fazia-o colocar Portugal à frente, seguindo-se-lhe a
Espanha, a Holanda, a França e a Inglaterra, na lista dos países cuja realidade social dessa altura tinha envolvido a acumulação
primitiva. Um mito criado através do método ancestral da usura ou pelo fortalecedor capital comercial da época moderna,
imediatamente subjacente à pré-revolução industrial nos três séculos anteriores. Este último país, atrás citado, distinguia-se, portanto,
por a partir de 1666, aquando da peste e do incêndio em Londres, contemporâneo da descoberta da circulação sanguínea por Harvey,
como se viu numa cena do filme “O outro lado da nobreza” (Restoration, 1995) de Michael Hoffman, ter reunido na sua formação social
todos os sistemas económicos de métodos compósitos ou distintos de acumulação primitiva. Feitos tanto pelo proprietário de terras
como pelo industrial oriundo do mestre de atelier da cidade medieval.
A força do poder do Estado sobre o trabalho assalariado, explorara a precipitação violenta da passagem da velha ordem para as
finanças modernas, com os seus proteccionismos, o crédito e o regime colonial, com a descoberta mais recente de regiões com ouro e
prata sobretudo na América, o dealbar da acumulação primitiva e estendendo-se à pilhagem da Índia e à caça ao negro em África,
como era explicitamente frisado com palavras cruas e directas, que nem Jules Verne conseguiria acentuar muito mais em um capítulo
de “Vinte mil léguas submarinas”, escrito em 1869, na mesma época.
Ao ponto que, em 1838, M.W.Howitt escreveria um livro a contar aquela devastação sob o ponto de vista de um cristão tolerante, livro
esse citado com fina ironia e alguma iridiscência não ingénua pelo próprio Karl Marx, com tão maior prazer e algum rancor sublimado
que não subestimara - por razões de conveniência argumentativa do alegado visível fervor da sua fonte considerada por ele até
insuspeita -, neste caso concreto longe dos litígios da Europa contemporânea de ambos. Mas distintamente compreendida entre eles,
sobre as então revelações da face escondida da acumulação dita primitiva (no sentido tanto explícito como figurado), concentrada no
civilizado. Também na época de excepção, por concentrar nele a riqueza social e a redistribuição da renda, do salário, do imposto e do
dízimo, quando se tratava antes de pagar o trabalho dependente de cada um, ligado por contracto assinado por iletrados e alcoólicos.
Em “Grandes ambições” (High Hopes, 1988) de Mike Leigh, o drama diário de uma família disjuntiva e ridícula de operários
especializados da quinta geração da revolução industrial inglesa, serve pelo absurdo quotidiano, das suas parcas falas rotineiras e
posterior à da época da moda estilística da mini-saia de Mary Quant e do casaco de couro à motociclista barbudo. Para nos conduzir,
dos arrabaldes de Londres, pejados de antenas de televisão e de terraços, sem vista para fora das traseiras dos prédios de habitação,
a uma sequência inusitada. Cena essa verista, descrita em tom de reportagem turística, à visita de uma numerosa delegação de turistas
chineses de pequeno porte ao cemitério de Highgate; decorrida em silêncio atónito da multidão disciplinada, minúscula em perspectiva
rotineira diante do túmulo do profeta do desenvolvimento dinâmico, contrastando no bronze escurecido em gigantesca figura de pose
estática mas vigilante.
O prémio Nobel de economia em 1992, que estudou o comportamento como capital humano educado (3), referiu Marx e Smith, na
velha polémica do dualismo e do monismo sem processo histórico, disjunção do trabalho para a criação de riqueza. Mas que
enfraqueceria o trabalho com o alargamento do mercado: a especialização, dependendo do ponto de vista na praça do mercado, teria
tanto vantagens como desvantagens na geração de operários, tanto mais disciplinados e espartilhados como menos criativos e
inventivos.
“A velha utopia de um futuro radioso com a hegemonia, no plano político das massas trabalhadoras, herdada da aurora da ideologia
socialista, tende a cumprir-se perversamente em benefício de estruturas empresariais transnacionais”, afirmou Celso Furtado no seu
livro “Em busca de novo modelo: Reflexões sobre a crise contemporânea” (4). Quatro anos antes, Celso Furtado dizia em “O
Capitalismo Global”, talvez com o arrojo datado da distância geográfica da América Latina em relação à Europa de então, em 1998,
também Ano Internacional dos Oceanos, que a União Europeia era concebida como protótipo conseguido de “superação do Estado
nacional como meio de disciplinar a convivência humana num quadro democrático” (5). A única novidade é que o seu sucesso
económico está hoje abalado e existe um interrogar da sua identidade comum em que a história recupera uma nova ambição perdida
desde 1885.
NOTAS:
(1) John Cassidy, “The Next Big Thinker”, Independent On Sunday, 7 December, London 1997, págs. 10 a 13 (in “The New Yorker”,
1997).
(2) Karl Marx, “Le Capital”, Livre I, Garnier-Flammarion, Paris 1969, pág. 558 in “XXI-Genèse du capitaliste industriel”.
(3) Gary S. Becker, “Human Capital : A Theoretical and Empirical Analysis, with special reference to education” (1964, 1975, Third
Edition), The University of Chicago Press, Chicago and London 1993, pág. 309 in “Chapter XI – The Division of Labor, Coordination
Costs, and Knowledge”.
(4) Op. cit., Paz e Terra, Rio de Janeiro-São Paulo 2002, pág.50 in “III-As raízes da Globalização”.
(5) Op. Cit., Paz e Terra (4ª edição), São Paulo-Rio de Janeiro 2000, pág. 31 in “2-O novo capitalismo”.
13 de fevereiro 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXVII)
“Os grupos de direita que se organizaram em muitos países da Europa central e ocidental, visando essencialmente excluir a presença de representantes da classe
trabalhadora nos governos – as famosas ditaduras da burguesia conhecidas como fascismo –, usaram as mesmas técnicas de assalto ao poder”
Manuel Carvalheiro
É em 1893, no Círculo de S. Petersburgo animado do exterior por Plekhanov para combater o terrorismo
provinciano, cuja adaptação cinematográfica de “A Mãe” (1954) por Mark Donskoi - a partir de uma recriação
colorida e com movimentos de câmara, substituindo a estética muda a preto e branco anterior da primeira versão
“pudovkiniana” de montagem russa da novela homónima de Máximo Gorki - nos deu, no seu tempo, a melhor versão do romance
homónimo, decorrido antes de 1908, que nasce a ideia de planeamento económico pela primeira vez.
E é nesse ambiente, cujos quadros de Repine nos dão o desespero melancólico dessa época até pelo menos à revolução falhada de
1905, que o jovem engenheiro Gleb Krjijnowsky então de vinte e um anos, compartilhou ideias a respeito com o futuro dirigente da
revolução russa, mais velho dois anos na época e irmão de um terrorista executado em 1887, assim como com intelectuais jovens tais
como Struve, filho de um astrónomo célebre e Starkov ou Potresov, adeptos do “marxismo legal” no quadro de uma democracia liberal
e ocidental.
Mas, em 1894, foi Béatrice Webb da Sociedade Fabiana londrina, que Lenin criticara mas que Stalin posteriormente adoptara, quem no
século XIX defendeu a maquinaria da instituição estatal como correspondendo aos anseios do socialismo mais igualitário herdeiro do
terror administrativo da Grande Revolução francesa de 1789-1793, mas cujo planeamento seria alternativo da liberdade individual do
“laissez faire”, como sublinhou W. Arthur Lewis (1) em “La planeación económica” (The Principles of Economic Planning, 1949), prémio
Nobel da economia em 1979, juntamente com Theodore Schultz.
Muito mais tarde, Krjijnowsky, em 1953, numa antologia sobre Lenin no exílio, salientava que este na altura até “podia com igual
facilidade permanecer incógnito em qualquer grupo de agricultores do rio Volga” (2). A revolução bolchevique de 1917 trabalhou com
especialistas em caminhos-de-ferro, tal como se poderia igualmente depreender de uma bela cena invernal em “Doctor Zhivago” (1965)
de David Lean, apesar do lamento institucional retroactivamente nas memórias escritas no exílio turco em 1929/30 (Léon Trotsky, “Ma
Vie”, Livres de Poche n. 1726, Paris 1966) : “Parei em Samara onde se tinha concentrado nessa época o estado-maior interior, isto é,
não emigrado do ‘Iskra’ (Centelha). Tinha à sua cabeça, sob um pseudónimo de conspirador (Claro), o engenheiro Krjijnowsky,
actualmente presidente do Gosplan”. O amargurado ex-revolucionário acusava-o, por conseguinte, de se ter afastado depois de 1905
para tarefas no meio industrial em que recusava auxiliar os clandestinos.
Porém, o planeamento era visto em 1919 mais como racionamento e não tanto como desenvolvimento. Nessa época conturbada de
instabilidade energética russa, a busca de mais óleo combustível instou o governo a ordenar que mandasse escavar depósitos e
também que se mobilizasse os quadros técnicos intermédios da administração tsarista derrubada para esta tarefa em “choças
lamacentas”. Deste modo, os pântanos de turfa nos arredores de Petrogrado foram repensados como bases para a produção de
electricidade, referencia numa carta que Lenin escreveu por essa altura a Gleb Krjijnovsky, instando este a conversarem mais tarde por
telefone. Quedas de águas, petróleo, turfa, açúcar de serradura, seriam matérias-primas imaginadas por Lenin para a electrificação,
mas de novo retomadas em 1929, aquando do primeiro plano quinquenal e depois em 1939.
Curiosamente, um dos derradeiros textos de Lenin como estadista seria sobre a constituição do Gosplan, em Janeiro de 1922,
concedendo a Krjijnowsky o estatuto de especialista com formação científica, apto a rodear-se de colaboradores de várias disciplinas e
a não estar por isso subordinado automaticamente à execução burocrática de directivas políticas. Mas só em 1928 é que o Gosplan
começou a executar o primeiro planeamento, coordenando industrialização e colectivização dos campos. Contudo, desde 1930 Gleb
Krjijnowsky afastar-se-ia do Gosplan e criaria um instituto de energética (3) a ele ligado até 1939.
Porém, Lenin em 1921 no VIII congresso dos sovietes referira-se a duzentos sábios e técnicos no plano (4). E a 19 de Fevereiro de
1921 escrevera a Krjijnowsky dizendo para não fazer conta de Miliutin, que criticava o planeamento do Gosplan, não acreditando que o
capitalismo de estado absorvesse o capitalismo privado no quadro do subdesenvolvimento do país : “Um plano global, integrado, é
realmente para nós, hoje, uma utopia burocrática. Não vá atrás disso”. E, mais adiante, contrapunha que se escolhesse um mínimo de
empresas industriais e, sublinhando a expressão, “restaure-as”.
Dois meses depois, insistia freneticamente com Krjijnowsky de novo para recolher materiais, restos e desperdícios próprios para colecta
de combustíveis e depois para trocar por trigo ; sendo que, um mês ainda mais tarde, recomendava-lhe também o envio urgente de
sacos de cereais e de artigos de consumo para a Ucrânia. Haveria seguramente insucesso nas colheitas e muita fome por motivos
disso, pelo que para antecipadamente minimizar esses efeitos catastróficos teriam de usar as reservas de ouro para comprar no
estrangeiro alimentos, combustível e equipamento industrial.
Uma semana antes, havia de novo pedido a Krjijnowsky, seu visível alter-ego fora da administração governamental, que o Gosplan
desse atenção às fábricas de produção de bens de consumo, para trocar por cereais açambarcados pelos camponeses ; e fazer, por
conseguinte, também, cortes orçamentais nas despesas habituais de outras áreas do aparelho de estado rotineiro : como na Marinha,
reduzindo igualmente no Exército, eliminando por fim de ¼ a metade no próprio funcionalismo público. Mas a 22 de Agosto telefonoulhe sobre o caso de Leslie Urquhait e a concessão das minas de cobre, querendo saber se o acordo beneficiava a electrificação do
país. Ainda em 1922, pediu-lhe, depois de uma crítica de Trotsky, um plano de tarefas para cada um dos decisores do Gosplan, porque
não havia supervisão geral então.
Já a 26 de Outubro escreveria a Piatakov e Krjijnowsky sobre a necessidade da compra de uma draga de turfa no exterior. E a 7 de
Dezembro seguinte responderia a Karl Steinmetz, um sábio de origem alemã que trabalhava para a companhia norte-americana
General Electric, dizendo-lhe que fora recomendado por Krjijnowsky e mandando-lhe uma fotografia autografada. Achando que uma
contribuição sua a um país com 1/10 dos recursos nessa área da electrificação comparada com os E.U.A., recursos que poderiam ser
canalizados para a construção económica da U.R.S.S. com a sua ajuda rara de especialista estrangeiro, que Lenin achava
supostamente solidário com o proletariado russo.
Isolado, naquele momento, face às potências da Entente (Inglaterra, França e América), cujo filme “O Poeta” (1956) de Boris Barnet nos
dera sublimemente esses combates coloridos e desgastantes, nas fronteiras de um novo espaço geo-económico entre o porto de
Odessa e a Ásia Menor, que mobilizava as simpatias no mundo cultural e científico europeu e mundial pelo poder dos sovietes em
expansão, após o imediato desfecho da I Grande Guerra. De recordar que “A Comissária” (1967) de Alexander Askoldov, retratou a
preto e branco os idos de 1922, com uma corajosa mulher à frente de um destacamento armado naquelas condições de guerra civil e
de cerco internacional, obrigada a dar à luz na casa de judeus. Por não haver no local em que se encontrava, num intervalo de uma
dessas batalhas, outro sítio ; e vir, assim, a reconhecer uma outra situação, que não mais a levasse a guerrear o adversário de classe,
confundido simploriamente antes com o inimigo da pátria renascente.
Ora, já em 1923, S.G. Strumiline, que comparou o problema social a uma esfinge que enfrentava a humanidade com o enigma
“descobre-me ou despedaço-te”, que era a expressão da falência do problema histórico e o crescimento da desorganização na
sociedade, estimava que entre 15 e 20% dos camponeses aderentes à Nova Política Económica controlavam toda a produção de trigo
à venda.
Celso Furtado, em “A Fantasia Desfeita”, em 1989, caracterizou em abstracto a sua contribuição geral deste modo circunstancial,
levando em conta a epifania mimética e melancólica dos últimos dias de Março de 1964, enquanto escrevia “Dialéctica do
Desenvolvimento” sobre a experiência amarga da pré-revolução brasileira do presidente Jânio Quadros e do vice-presidente João
Goulart em 1961, que se transformaria numa contra-revolução latino-americana por falhas na avaliação da correlação de forças num
estado federal com então apenas pouco mais de um século : “Lenin, que lidava com problemas de uma sociedade no essencial précapitalista, retomou a ideia de revolução como instrumento de mudança social num plano distinto” (5).
NOTAS:
(1) Op. Cit., Fondo de Cultura Económica, México-Buenos Aires 1957, pág. 10 in “Por qué planear?”.
(2) “Louis Fisher, “A Vida de Lênin”, Vols. I e II, Colecção Documentos da História Contemporânea n.33-33a, Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro 1967 (1964), págs. 80 e 557. Criador e editor da revista norte-americana “The Nation”.
(3) Marcel Liebman, “La révolution russe”, Marabout Université n.136, Éditions Gérard & Co, Verviers 1967, pág. 409 in “Le socialisme
dans un seul pays”. Com prefácio póstumo do historiador Isaac Deutcher, escrito dez dias antes de falecer.
(4) Lénine, “La Révolution Bolchéviste”, textes de Serge Oldenbourg, Petite Bibliothèque Payot n.43, Paris 1963 (1931), pág. 214.
(5) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro-São Paulo 1989, pág. 187 in “Testamento intelectual”.
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Em 1928, Vsevolod Pudovkine realizou “Tempestade sobre a Ásia”, referindo uma cena no mercado, algures entre o território da Rússia
soviética, a Mongólia e a China, em que um negociante de peles americano tenta intrujar um vendedor autóctone mongol. Provocando,
depois, a revolta deste face ao intervencionismo das tropas, que haviam cercado, entretanto, aquela localidade fronteiriça, onde aquela
praça mercantil de subsistência estava precariamente instalada, devido à tradição montanhesa daquele povo primitivo.
Este quadro sinóptico reportava-se, provavelmente, aos acontecimentos decorridos cerca de uma década antes, que haveriam de
conduzir à resistência das populações locais – em desejo de largarem a estrutura imperial tsarista – para um novo estatuto de
autonomia. E de arranjo com o poder soviético de então, naquela parte do continente já não apenas euro-asiático, mas para além dos
montes Urais e do Cáucaso, por onde outrora Genghis Khan cavalgara o seu império até à Pérsia.
A situação precária de fome e da fragilidade dos circuitos comerciais dos povos periféricos semi-colonizados, remetia-nos para um novo
contexto em que em Leninegrado, ex-S.Petersburgo e já então ex-Petrogrado, dirigida por Sergei Kirov, a competitividade na
produtividade se instalara numa fábrica modelo: em que os operários antigos coabitavam com os mais jovens na construção de uma
gigantesca turbina, orientada pelos técnicos mais individualistas mas conhecedores das regras da encomenda e da procura social,
quadro de contemporaneidade no filme de Friedrich Ermler e Sergei Yutkevich, “Contraplano” (1931), que teria música de Chostakovich,
mais tarde adaptada num dos trechos ao hino das Nações Unidas, aquando da criação desta instituição internacional em S. Francisco
em 1945. Entretanto, Gleb Krjijnowsky deixara a instituto de energética em 1939 para, durante mais vinte anos, ocupar-se da cadeira de
vice-presidente da Academia das Ciências.
A propósito desse contexto sócio-económico, Celso Furtado teceu algumas considerações sintéticas e estimativas ponderadas em “A
Fantasia Desfeita” em 1989: “Uma sociedade em que penetra o capitalismo industrial, permanecendo as instituições políticas
bloqueadas, tendo a acumular tensões sociais que debilitam o poder do Estado. Em circunstâncias como essas, um partido do tipo
leninista pode ter a sua chave e chegar a controlar o poder”. Adiantando, porém, mais adiante, depois de tecer algumas considerações
sobre as garantias anteriores da eficiência social e da rígida autoridade subjacente: “Os grupos de direita que se organizaram em
muitos países da Europa central e ocidental, visando essencialmente excluir a presença de representantes da classe trabalhadora nos
governos – as famosas ditaduras da burguesia conhecidas como fascismo –, usaram as mesmas técnicas de assalto ao poder” (1).
Durante a invasão hitleriana, entre 1941 e 1942, “os recursos totais de combustível se reduziam à metade de antes da guerra. As
fábricas de motores na Sibéria e nos Urais não podiam ocupar tôda a sua capacidade produtora e, durante a maior parte de 1942, a
fabricação de tanques, aviões, canhões e munição ficou muito aquém das necessidades”, garantiu um correspondente de guerra inglês
do “The Sunday Times”, durante a sua permanência durante a conflagração mundial (2).
Foram, então, adoptadas medidas ditas draconianas, com novas minas de carvão perfuradas e centrais eléctricas construídas:
improvisando-se o recrutamento de duzentos mil novos mineiros, sem experiência alguma anterior na sua maioria ; com mulheres e
jovens acatando uma disciplina de guerra, sobretudo no Casaquistão, cujos maridos e pais estavam já na frente de combate, em
especial, longe, nas margens do rio Volga.
Embora não conseguissem atingir então os 166 milhões de toneladas de carvão extraído no total antes da invasão alemã, em
Karaganda, Kuzbas, Urais, Moscovo e Don, foi feito um esforço distributivo com índices de crescimento parciais superiores, mas cuja
totalidade não atingiria ainda a produção total anterior de carvão. Embora, porém, já tivesse então contribuído para a contra-ofensiva
das tropas russas na defesa do seu imenso território ; utilizando-se, também, hulha e turfa, sobretudo nos transportes citadinos, devido
ao respectivo cerco durante o Inverso e à escassez de combustível ou à deficiência nas comunicações com as áreas de nova
exploração de carvão, prioritariamente canalizado para o esforço de guerra.
Por volta de 6 de Outubro de 1941, está em Moscovo a fotógrafa norte-americana Margaret Bourke-White da revista “Life-Magazine”,
que relata o facto de alunas do liceu e das escolas secundárias em geral fotografadas por ela (3), serem levadas depois para fora da
cidade sitiada então, em direcção aos campos para aprender como lidar de emergência com tractores para continuar a fazer as
colheitas mais ricas. Colheitas essas, que haviam sido abandonadas por motivos de força maior pelos seus trabalhadores, requisitados
como soldados para o esforço de guerra, conjuntamente também com a requisição de camponeses para as linhas de frente contra a
invasão alemã.
É nesta época, a 21 de Fevereiro de 1943, que o rei Jorge VI de Inglaterra ofereceu a espada de honra, “Sword of Honour”, desde o
cerco e derrota alemã em Stalinegrado, segundo Louis Segal em “Russia – A Concise History : from the Foundation of the State to
Hitler’s Invasion” (4).
Mais tarde, a 2 de Março de 1945, Elena Rzhevskaia como intérprete licenciada participou nas buscas à chancelaria em Berlim sitiada
pelas tropas russas, encontrando por exemplo a notícia da execução de Mussolini e de Clara Petacci pela resistência italiana do coronel
Valério. Dada por uma rádio e retranscrita pela secretária de Hitler, com uma máquina de escrever especial que com tipos ampliados de
impressão serviam para o Fuhrer não usar óculos, de que não gostava por julgar que prejudicavam o seu prestígio junto das massas
alemãs. Este, dois dias antes do seu suicídio com Eva Braun, dava-se ao trabalho a 28 de Abril de 1945 de sublinhar o telegrama a
lápis nas palavras “Mussolini” e “pendurado de cabeça para baixo”. O que aquela intérprete russa, vinte anos depois ao recordar aquele
instante histórico, dizia ser a “chave para um retrato sócio-psicológico dos chefes e da ideologia fascistas” (5).
Estava ela, então, acompanhada do jovem operador de câmara Ivan Ivanovich Sokolnikov; e, parte dessas imagens de arquivo,
confidenciais, foram depois reveladas numa cena antológica de “A Infância de Ivã” de Andrey Tarkovsky, que obteria o Leão de Ouro
em Veneza em 1962, num júri presidido pelo filósofo françês Jean-Paul Sartre.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro – São Paulo 1989, pág. 187, “Testamento intelectual”.
(2) Alexander Werth, “A Rússia na guerra (1941-1945)”, Vol. II, Colecção Documentos da História Moderna Contemporânea n.22-a,
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1966 (1964), págs. 663 e 664 in “4 - O esforço económico de 1942- 43 – O ‘New Look’ do exército
vermelho – Os empréstimos e arrendamentos”.
(3) Margaret Burke-White, “Moscow’s calm citizens: life in the threatned capital”, The Illustrated London News, Oct. 25, 1941, pág. 526.
(4) Op. cit., Turner & Dunnett, Liverpool 1944, pág. 260 in “Appendix II – Diary of Events since the Revolution of 1917”.
(5) Elena Rzhevskaia, “O fim de Hitler”, Biblioteca Arcádia de Bolso n. 75, Editora Arcádia Lisboa 1967 (1962), pág. 48 in “As últimas
horas”.
20 fevereiro 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXIX)
Manuel Carvalheiro
A notícia invulgar da descoberta anunciada no Vale dos Reis, em Luxor, no Egipto, a 9 de Fevereiro de 2006 pela
BBC World, de que tinha sido encontrado um túmulo com seis sarcófagos, de perfeição e decoração comparáveis
à da descoberta de Tuthankhamon em 1922 por Lord Carnarvon, caiu num contexto semelhante pelo valor das
suas peças intactas ao longo de três mil anos, como as do anterior até a sua saída para o ar livre para exposição
no museu do Cairo – com o cortejo de mitos acessórios à própria descoberta – e depois exibidos pela primeira vez
no exterior, em Paris, no Grand Palais, em 1967, por iniciativa de André Malraux.
O realizador Yussef Chahine abordou, em “A Terra” (El Ard, 1969), o episódio rotineiro da opressão de um “bey”
sobre os seus “fellah” antes da ocorrência do derrubamento do regime do rei Faruk em 1952. O desenvolvimento
económico do Egipto após a revolução de Nasser em 1952, que derrubou o rei Faruk e a sua insensibilidade
devido ao feudalismo entorpecido e explorador dos “fellah” do delta do Nilo, assentou em três vertentes: em
primeiro lugar, nos benefícios trazidos pela barragem de Assuão em 1960; depois, pela nacionalização do Canal do Suez em 1956,
com a cobrança das tarifas da passagem estratégica para navios da rota mercante com o Oriente e a Ásia, ou vice-versa com a Europa
e o mar Mediterrâneo, a mais antiga rota do mundo a par da rota da seda por terra e pela Síria; e, por fim, pelo turismo que, entretanto,
explodiu em flecha ascendente nos últimos vinte e cinco anos com a consolidação do poder do presidente Mubarak.
Onde hoje fica a estância balnear de Charm-el-Cheik, conhecida pela sua retumbância mundial e qualidade de oferta de serviços, com
preços perfeitamente concorrenciais com as melhores estâncias balneares da Tailândia, como na ilha de Pucket onde houve a tragédia
do “tsunami” em 26 de Dezembro de 2004.
Desde Nasser, que falecera de cansaço em 1970, após uma reunião da Liga Árabe, que o Egipto, apesar de ter conseguido um
assinalável destaque como potência também cultural à escala mundial, abandonara algo do seu prestígio político herdado de dezoito
anos de uma intrépida liderança. Assente nas conquistas sociais das massas populares, devido a uma política económica apontando
para os mais desfavorecidos, apesar do agregado de corrupção resultante de um Estado que, embora laicizante, cujo lastro se perderia
na noite neocolonial da sobreposição das sucessivas influências das potências colonizadoras, após o desaire da confluência turca no
século XIX.
A destruição do poder dos latifundiários, foi um dos primeiros objectivos da revolução dos oficiais livres em 1952, “aspecto sócioeconómico” importante (1), segundo Peter Mansfield em “Nasser e a revolução egípcia”. O que, como medida política, se destinava a
desobstruir a mudança prioritária “em seu desejo de melhorar o quinhão dos ‘fellah’, reduzindo os alugueres das terras aráveis”,
segundo o mesmo autor no referido livro de 1965.
A revolução de 1919, encabeçada por Saad Zaghloul, apenas havia “egipcianizado” algumas actividades financeiras, com uma ideia
não concretizada de industrialização da riqueza. Mas sem abalar “as raízes dos problemas económicos sociais”, como o próprio Nasser
reconheceu numa famosa Carta Nacional em 1962, após o rompimento com as classes capitalistas sírias em 1961. O que levou, na
conjuntura da época, ao próprio pan-arabismo derivante do projecto da República Árabe Unida, fusão do Egipto, do Iraque e da Síria,
que em contrapartida – mercê do conhecimento próprio de Nasser sobre a sua própria história egípcia antes de 1952 – lhe havia
permitido antes aprofundar relativamente a sua ideia de revolução social. Com o amadurecimento prévio da sua própria concepção da
estrutura económica, política e social do Egipto, com o canal de Suez nacionalizado. Permitindo-lhe, também, ultrapassar o falhanço do
desenvolvimento, que estivera nas mãos dos herdeiros dos aventureiros estrangeiros do século XIX, após a influência imperial das
grandes potências, resultante do fracasso de 1920 para a verdadeira independência política económica do Egipto.
O capitalismo local só poderia sobreviver com a protecção alfandegária, mas a pressão económica exterior era mais forte do que um
sistema capitalista livre, num país então forçado a permanecer subdesenvolvido. Sem outra perspectiva, embora pago pelo povo, face à
exploração das fontes das suas riquezas. Daí a necessidade do traçar de um planeamento alternativo, para não condenar o país à
subserviência de uma democracia parlamentar, sem democracia social; sendo esta assente, agora – naquele contexto de então e que
perdura ainda hoje de alguma forma –, na base do reforço da propriedade pública, com ¼ do comércio interior não abandonado ao
capital mais especulativo.
Um profundo conhecedor da realidade diária egípcia desde 1932, antigo professor na faculdade de comércio da Universidade de
Alexandria até 1962, que havia conhecido o economista Ali Greitly, que pouco havia durado na época dos anos cinquenta da revolução
como alto funcionário do ministério das Finanças, comentava assim retroactivamente a situação em 1964: “O Wafd tinha querido vencer
o analfabetismo e desenvolver todos os graus de ensino. Para esta tarefa, designara na qualidade de ministro da Educação nacional
um homem de grande valor, Taha Hussein”.
Depois, como numa lenga-lenga de mau desenvolvimento: “Uma reforma foi iniciada, mas o grande partido do povo era dominado pelos
proprietários de terras ricos, que tinham necessidade da mão-de-obra infantil para as pequenas colheitas de algodão; eles temiam que
um desenvolvimento demasiado rápido da instrução não fizesse renascer sentimentos revolucionários nos ‘fellahs’ que os começavam
já a inquietar. Progressos foram realizados, mas o essencial continuava por fazer”.
Dito isto, o referido professor da faculdade de comércio, que perderia metade da sua biblioteca de trinta anos ao abandonar o Egipto
em 1962, comentava ainda o que o novo regime de Nasser retomara no capítulo fulcral da educação: “A expansão da instrução, a
generalização do ensino e a sua gratuitidade continuam a ser méritos essenciais do novo regime, mesmo se o nível dos estudos nos
ensinos secundário e superior baixou” (2).
Quando em 1967, em Janeiro, um sociólogo brasileiro que hoje ocupa a cadeira n.11 na Academia Brasileira de Letras deixada livre
pelo falecimento de Celso Furtado em 2004 – que em 1957 conhecera em Istambul, num encontro internacional de economistas
organizado com o patrocínio da Unesco, um reputado economista da Universidade do Cairo –, tentou prever a duração e direcção
ulterior do regime militar brasileiro instaurado em 31 de Março de 1964, aventou a hipótese de ulteriormente essas forças militares
virem a subdividir-se, após a chegada ao fim do mandato presidencial imposto com a chefia do marechal Castelo Branco em 1967 no
Brasil.
Com a eventual passagem de testemunho para uma nova geração de militares, que permanecera aliada da classe média, numa
espécie de “nasserismo” em contra-corrente (3). Sendo que isso não se viria a dar, apenas com um único sinal de desespero e de
sobressalto social, em 1969, com a eclosão esporádica de acções protagonizadas isoladamente pelo capitão Lamarca. E que, antes
pelo contrário, agravariam a tendência para a propensão “colonial-fascista” da ditadura, apesar do estatuto independente com que
protagonizava episodicamente certos aspectos comuns de um ponto de vista internacional com países de independência mais recente,
como fora o caso do Egipto.
Recordando que Celso Furtado era considerado um “anti-sistémico” em 1974, um economista português (4) contou como o foi convidar
a Paris para vir a Lisboa falar sobre estratégia do desenvolvimento. Com a sua visão estruturalista, especificamente como um expoente
de pensamento não conformista a respeito da repartição do rendimento nacional. Diferente, no Terceiro Mundo de então, da do egípcio
Samir Amin, este menos ou diferentemente mediador inter-cultural no contexto da época com a Comunidade Europeia, onde ambos
viviam, um exilado do Brasil em Paris e o outro em diáspora a partir de Dakar, no Senegal.
Ora, partir de 1991 o Egipto começou a dinamizar o seu desenvolvimento económico com a diminuição pouco a pouco das suas
barreiras ao investimento estrangeiro. Mas, ainda em 1994, certas indústrias ainda requeriam mais de 60% para contentamento local,
para que se qualificasse reciprocamente reduções nas obrigações alfandegárias. Sendo que previa-se, então, para 1999, o fim desse
“status quo”, de forma a que os acordos regionais dos países do Mediterrâneo com a União Europeia pudessem, com a excepção
desde 1977 dos têxteis e vestuários, ser incrementados com países europeus de altos rendimentos “per capita” (5).
NOTAS:
(1) Op. Cit., Colecção Documentos da História Contemporânea n. 29, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1967, págs. 129 a 133 in “9A política econômica”.
(2) Raymond Morineau, “Egypte”, Collection L’Atlas des Voyages n. 28, Éditions Rencoontre, Lausanne 1964, pág. 148 in “Vingt-neuf
ans d’enseignment”.
(3) Hélio Jaguaribe, “Brasil; estabilidade social pelo colonial-fascismo?”, in “Brasil: Tempos Modernos” (Paris, 1967), Paz e Terra (3ª
edição), Rio de Janeiro 1979, pág. 46.
(4) Mário Murteira, “Lembrando Celso Furtado”, Gurus online.TV, Janeiro 2005.
(5) “Investment Policy Review – Egypt”, United Nations Conference on Trade and Development, Geneva 1999, pág. 37 in “II-The Policy
Framework. 2-Trade policy”.
27 de fevereiro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXX)
Manuel Carvalheiro
Eça de Queiroz, que foi à inauguração do Canal de Suez em 1869, descendo o rio Nilo acompanhado por um
engenheiro que participara na sua construção, reflectiu entre outros aspectos sobre a condição do “fellah”, que
considerava inferior ao escravo, mas não deixou de sintetizar a sua impressão nesta seguinte frase : “vi muitos
‘fellahs’ que se assemelham à Esphinge” (1).
Quando a 26 de Julho de 1952, inopinadamente, os jovens Oficiais Livres egípcios, constituindo uma junta militar,
derrubaram o rei Faruk e o sucessor provisório - rapidamente exilado numa embarcação a caminho do porto de
Nápoles, em Itália -, tiveram de momento algum receio de que as tropas inglesas, habitualmente estacionadas em
guarda ao canal de Suez, perto de Alexandria, interviessem. Como havia, já antes acontecido em 1882, aquando
da tentativa de derrube do governo frágil de Thewfic, filho de Ismail, este último que havia governado durante a
inauguração do mesmíssimo Canal de Suez do tempo da visita de Eça de Queiroz. Acordado, porém, como
anterior projecto, durante a governação de Said, com Ferdinand de Lesseps, o seu arquitecto e construtor europeu.
Entretanto, os insurgentes vitoriosos de 1952 nomearam logo o general Neguibe, de antepassados sudaneses, para substituir o rei
Faruk na chefia do Estado egípcio. Mas conservaram, como jovens oficiais heteroclitamente aliados, o poder político-militar nos
bastidores da cena pública e internacional. Menos de um mês depois, prepararam rapidamente um decreto que “limitava as
propriedades rurais a 200 feddans (1 feddan era equivalente a 1,035 acres) com mais cem feddans extra, caso o proprietário tivesse
dois ou mais filhos e providenciava a redistribuição de terras confiscadas aos ‘fellahins’, em lotes de 2 a 5 feddans. A recompensa era
baixa, porém proporcional ao imposto territorial, que os proprietários tinham sonegado. Era-lhes, portanto, difícil reclamar” (2), segundo
Peter Mansfield no seu livro de 1965, “Nasser e a revolução egípcia”.
A propósito do Canal de Suez, com a sua nacionalização em 1956, os E.U.A. tiveram outro comportamento oficial, segundo “L’Afrique
au XXe siècle” (Éditions Sirey, Paris 1966): “A intervenção franco-inglesa na zona do canal, combinada com a ofensiva israelita na
península do Sinai, devia, no pensamento dos seus inspiradores conduzir ao derrubamento do ditador egípcio. (...) Mas a intervenção
americana impediu-os de tirar partido dos seus sucessos”. A influência daqueles aliados europeus no chamado, então, Próximo Oriente,
não conseguiu, porém, no contexto da época, impedir a ajuda estratégica que o Egipto dirigido por Nasser dava à independência da
Argélia; ajuda essa, que já entretanto havia feito com que Bourguiba, da Tunísia, se reconciliasse com o então consagrado chefe do
mundo árabe e da sua influência mundial.
Marc Ferro em 1994 consubstanciou com maior distanciação, na sua “História das Colonizações: das conquistas às independências,
Sécs. XIII-XX” (3), o quadro sinóptico desta evolução no Egipto: “Mas Nasser e os seus oficiais livres personificaram um mundo árabe
novo e não o dos albomozes e do feudalismo: o mundo da pequena burguesia intelectual ou militar, o novo contra o velho – o que
explica a atracção que a revolução nasseriana exercia na pequena burguesia síria ou iraquiana e que tão bem se exprimiu no filme ‘Les
Murs’ (Al Aswar, 1979)”. Tratava-se do filme iraquiano de Muhammad Shourky e que evocara retroactivamente os dias da revolução
islâmica vistos de um bairro popular em Bagdade.
Celso Furtado, para além de em “A Fantasia Desfeita” (4), a propósito de um enfraquecimento político e internacional visível em 1963
da administração João Goulart no Brasil de então, não teve muitas referências a esta situação, com as suas consequências similares
entre o Delta do rio Nilo e o Nordeste brasileiro, na sua extensa obra sobre problemas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento
agrário em meio rural tropical. Mas referiu-se à figura de Nasser, que a par de outras havia criado em 1955 o Movimento dos Não
Alinhados, como consequência da Conferência de Bandoeng, na Indonésia. Ponto de partida estipulado no comunicado final, para mais
tarde em 1960 as Nações Unidas criarem o Programa para o Desenvolvimento e a Década do Desenvolvimento.
Em Outubro de 1965, segundo Claude Julien em “L’Empire Américains” (5), os E.U.A. recusam renovar o acordo trienal sobre as
entregas de trigo “quando desde há dez anos os Estados Unidos forneciam ao Egipto por 870 milhões de dólares de trigo”. O problema
é que esta era a única maneira dos E.U.A. evacuarem os seus excedentes agrícolas, visto que o facto de os guardarem lhes tinha já
custado anteriormente em 1960 cerca de 576 milhões de dólares em perdas compradas aos agricultores do seu próprio país. Caso
contrário, tê-los-ia arruinado, nesse ano, pelo menos, pois precisavam das divisas exteriores,
Mesmo sendo estas pagas pelo Egipto em moeda local, apesar das pressões e das intervenções do seu próprio governo.
NOTAS:
(1) Eça de Queiroz, “Egypto-Notas de Viagem”, Livraria Chardron, de Lello & Irmão, Porto 1927, pág. 64 in “III - Através do Delta,
considerações sobre o Egypto contemporâneo”.
(2) Op. cit., Colecção Documentos da História Contemporânea vol. 29, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1967 (1965), págs. 38 e 39
in “2 - Revolução”.
(3) Op. cit., Colecção Referência n. 17, Editorial Estampa, Lisboa 1996 (1994), pág. 376 in “O contexto internacional: Suez e o eclipse
dos Impérios”.
(4) Op. cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro - São Paulo 1989, pág. 175 in “O declínio da autoridade do presidente”.
(5) Op. cit., Éditions Bérnard Grasset, Paris 1968/9, pág. 243 in “VI - L’empire économique”.
6 de março de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXI)
Manuel Carvalheiro
A Comissão dos Assuntos Económicos do Senado Brasileiro promoveu a 24 e 25 de Novembro de 2005 um
seminário intitulado “A Actualidade do Pensamento de Celso Furtado sobre Desenvolvimento” (1), dele consistindo
uma súmula de intervenções de que se resume o projecto de relevância: “Furtado foi um dos formuladores da
chamada Teoria do Subdesenvolvimento. Ao lado do colega argentino Raul Prebisch, apresenta o problema como
decorrente das relações assimétricas de poder entre os países centrais e periféricos”.
Em 1969, Celso Furtado havia alertado para a discrepância de atitudes, entre o optimismo entusiástico raiando o
sobrestimar de forças pelos novos países africanos e asiáticos, face às dificuldades do desenvolvimento e o
declínio de época por contraste, que atravessavam na generalidade os países latino-americanos. Estes últimos,
mais próximos das consequências do subdesenvolvimento subestimado, face à hegemonia do principal centro
decisor externo das suas políticas económicas e garante principal nas instituições internacionais afins, criadas em
1944 para a reconstrução económica, após o final da II Guerra Mundial (2).
E, mais concretamente, as soluções gerais que Celso Furtado propôs em vida, pela sua delimitação regional ou pela sua modéstia
política como reformas implícitas, não deixaram de ter um impacte global entre os estudiosos da matéria e mesmo entre decisores de
uma nova geração, mais instruída sobre as ilusões de um desenvolvimento importado de modelos míticos: “Furtado também questionou
a interpretação de que a saída para os subdesenvolvidos estaria limitada à exploração de sua ‘vocação agrícola’. Propôs, como
solução, o planejamento, os incentivos e o investimento estatal directo em infra-estrutura e na industrialização, inclusive para reverter
os desequilíbrios regionais dentro do próprio país”.
No início da década de setenta do século XX, houve uma crise de seca no Sahel, que provocou meio milhão de mortes na época. Em
“Le mythe du développement économique” (3), Celso Furtado congeminou uma explicação das pressões sobre os recursos duráveis, de
que dependeria o crescimento económico: primeiro pela reacção do que ele chamou de “freio malthusiano”, isto é, com a elevação da
taxa de crescimento demográfico da população devido ao solo arável intensificado com mão-de-obra não qualificada. Embora “factores
institucionais” pudessem também dificultar o acesso aos solos e por outro lado o desenvolvimento de culturas destinadas à exportação”
supostamente virem a obrigar à descida da oferta de alimentos para consumo desses trabalhadores agrários disponíveis.
Força de trabalho não qualificado essa que pertenceria a uma população rural imensa, que dependeria em última instância da
“agricultura de subsistência”. E que das duas uma: ou ficava na região afectada e sofria a “exaustão de recursos não renováveis”
devido à pressão provocada pela herança do passivo imobilista - embora não tanto alarmista como nos relatórios das agências
internacionais - das disparidades entre uma minoria privilegiada e a massa da população ou então emigrava para outros países, o que
nem sempre nessa época era fácil.
Ora, no Sahel africano, apenas “sectores delimitados” sofreram calamidades e só minimamente foi afectado o conjunto do sistema rural
agrário com a desertificação e com as populações desses sectores confinadas às fronteiras de cada país. O que Celso Furtado
pretenderia então clarificar fora que o crescimento económico dessas regiões na altura afectadas pela seca no Sahel africano dependia
menos da introdução de novos produtos e mais da difusão de produtos já conhecidos, com a consequência de se diminuir o “coeficiente
de desperdício”. O que ia contra as previsões de um relatório mundial da época sobre os limites do crescimento nos países mais
industrializados, sem o auxílio inopinado das exportações dos excedentes para os países subdesenvolvidos e em vias de
desenvolvimento conduzido a partir do exterior, intitulado precisamente “The Limits to the Growth” (Os limites para o crescimento).
Querendo isso apenas significar que o crescimento nos países ricos tinha chegado a um limite, devido sobretudo às reivindicações dos
seus próprios assalariados, em consumo excessivo e sem poupanças garantidas para os investimentos no mercado interno de cada
país mais civilizado. Só então completado com a sucção de produtos agrícolas de regiões fora do capitalismo desenvolvido e para onde
se tentava introduzir, em trocas que aprofundavam as desigualdades, novos produtos excedentários. Com a hipótese mirífica de que,
por essa via conjuntural de crescimento artificioso, já então se dizia que “os modos de consumo actuais dos países ricos tendem a
generalizar-se à escala planetária”. Sendo que os excluídos “da periferia dos benefícios criados por esse desenvolvimento” eram,
paradoxalmente, uma “massa demográfica em expansão rápida”.
Por conseguinte, Celso Furtado alertava já para o problema do crescimento demográfico exponencial da periferia em relação ao centro,
se se excluísse “um fluxo migratório substancial” dos países pobres em direcção aos países ricos. O mito desse tipo de
desenvolvimento forçado consistia, em contrapartida, em querer impingir-se um modelo neo-mercantilista que só iria agravar ainda mais
essa desigualdade acumulada, com a introdução de novos produtos deslocados em lugar de fortalecer-se prioritariamente a difusão dos
já existentes e mais tradicionais nas regiões periféricas. O filme argelino de Mohamed Bouamari, “Le Charbonnier” (1972), elucidou-nos
sobre o trajecto de um carvoeiro e da sua mulher entre o campo e a cidade para fugir à miséria. Provando-se que a civilização agrícola
e rural era, em muitos aspectos, superior à civilização industrial, que havia até então concretamente trazido mais prejuízos do que
benesses para a continuidade da maioria da humanidade da qual aquele carvoeiro se sentia agora ainda mais excluído.
Sérgio Rezende havia realizado em 1997 uma ficção, inspirada em factos ocorridos no sertão da Bahia, intitulada “Guerra de Canudos”,
decorrida durante a época de 1893 a 1897 e em que António Conselheiro, um monárquico iluminado, reunira à sua volta os sertanejos,
enquanto a jovem República de 1889, inquieta com o fenómeno social crescente, mandava o exército dispersar o movimento
messiânico encabeçado pelo ilustre mediador público.
O Brasil reúne ecossistemas como a Depressão Sertaneja, a Chapada Diamantina e o Planalto de Borborema na região do Norderste:
o problema consistia então na gestão dos recursos hídricos para aumentar a produtividade agrícola, em que Celso Furtado mantinha a
opinião fundamentada também então – em entrevista à “Revista Econômica do Nordeste” em 1997-, que nem tanto o factor físicogeográfico como nem mesmo o económico eram decisivos, perante o factor social de que a seca trazia agora por acréscimo um mero
factor ecológico: havia pessoas que continuavam a enriquecer-se no Nordeste em 1997, enquanto as bolsas de pobreza permaneciam
contudo ao longo das décadas; abrangendo ainda 70% da área e 63% da população, em que a dimensão do subdesenvolvimento
continuava a ser a agropecuária, apesar do maniqueísmo e da ambiguidade do crescimento económico, com a seca como castigo
ecológico fatal (4).
A propósito de energia no Nordeste, segue-se um testemunho retroactivamente revelador sobre o compasso de espera entre 1963 e
1986: “O povo nordestino ainda carece de coisas mínimas, e nós estamos nos atrasando, distanciando muito do resto do país pela
ausência de infra-estrutura, de condições de crescimento” (5).
Ora, a mesma personalidade do governador Miguel Arraes, do estado de
Pernambuco, que ficara famoso por ter tido a iniciativa de atribuir um salário mínimo pela primeira vez, então, aos assalariados
agrícolas como meio de recurso fundamental para a sua fixação regional, face às secas cíclicas que produziam o factor de emigração
de mão-de-obra para as zonas urbanas de outros estados mais industrializados, seria postumamente homenageada por reflexo
conjuntamente com Celso Furtado na capital Recife, seguindo o referido testemunho: “Em 1963, eu estava no governo de Pernambuco,
Celso Furtado era presidente da Sudene (Superintêndencia de Desenvolvimento do Nordeste) e lhe falei sobre a necessidade de
aumentar a oferta de electricidade no Estado com a chegada da rede da Chesf (Companhia Hidroeléctrica do Vale do Rio São
Francisco), que estava sendo inaugurada com atraso de meio século em relação ao futuro”. Especificando melhor o contexto
burocrático, adiantou ainda, a respeito dessa época passada envolta ainda em muita confusão: “Queria que a Chesf levasse energia
aos povoados, às populações rurais. Foi enviado um projecto para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Foi o Celso que
o viabilizou”.
Em seguida, a reviravolta de uma política energética local, aprovada mas depois reaproveitada no sentido inverso: “E veio o golpe, e
esse projecto foi aprovado e executado pelos governos militares de forma totalmente diferente daquela que tinha sido prevista. O que
se pretendia era democratizar a energia. O que eles fizeram: colocaram energia nas grandes propriedades, e a rede eléctrica passava
por cima dos pequenos. Então, eram 29 mil propriedades grandes; a menor tinha 200 hectares. Minifúndios e pequenas propriedades
não foram atendidos”.
NOTAS:
(1) “Senado promove seminário sobre Celso Furtado”, Nota para Site de ADB - Associação dos Diplomatas Brasileiros, 18 de
Novembro, Brasília 2005.
(2) Celso Furtado, “Esferas de influência e desenvolvimento: o caso da América Latina”, Revista Análise Social, n. 25-26, Vol. VII,
Lisboa 1969, págs. 50 e 51.
(3) Op.cit., Éditions anthropos, Chatou 1976, págs. 87 a 90 in “Le mythe du développement économique”.
(4) «Agricultura sustentável», Agenda 21 Brasileira, Seminário, Brasil 1999 in «No Domínio do Semi-Árido (Caatinga)».
(5) Deigma Turazi, “Justiça concreta”, Cultura – La Insignia, Agência Brasil, 14 de Agosto, Brasil 2005.
13 de março de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXII)
Manuel Carvalheiro
Jean-Jacques Faust em “Brasil, uma América para amanhã”, um dos melhores ensaios escritos sobre a realidade
multifacetada do desenvolvimento cultural daquele país em 1966 (1), socorria-se também e por consequência de
ensaios escritos até então por Celso Furtado, para dar um panorama de economia política institucional do ponto
de vista de um publicista e correspondente estrangeiro. Referente à mudança inconstitucional sofrida em 31 de
Março de 1964 com a chegada negociada ao poder do marechal Castelo Branco, que interromperia o mandato do
presidente João Goulart e que deveria ainda durar mais um ano. Portanto, até 1965, se a ordem democrática não
tivesse sido suspensa por um golpe militar conservador, saído da cidade de Juiz de Fora sem a certeza de que iria
vencer, não fosse a fuga julgada precipitada do ex-presidente para o Uruguai.
Assim, Faust cita o livro “Dialéctica do Desenvolvimento”, retomando as palavras de Celso Furtado: “o
subdesenvolvimento é menos a característica de uma economia essencialmente agrária – possuiríamos, então,
apenas uma economia atrasada – do que a existência de um dualismo de estruturas”. Esse país era não só atrasado por ser
subdesenvolvido, mas era sobretudo subdesenvolvido porque a concepção do desenvolvimento que vigorara era dualista e forçava ao
agravamento desse mesmo subdesenvolvimento.
Cerca de trinta anos depois, o mesmo autor e ensaísta, radicado agora no Rio de Janeiro, escrevia novo livro anunciando para dali a
dois anos a comemoração dos quinhentos anos da chegada dos portugueses, em que se resume o período de democratização desde
1985: “desde há vinte anos que o Brasil mudou muito. Então quando largava a ditadura militar foi logo uma das primeiras vítimas da
‘globalização’. O Brasil recorreu à inflação, sistema que alterou a economia e a vida dos brasileiros. Nesse caos”, acrescentava o
resumo da edição de 1998 do novo ensaio de Faust, “a violência, a corrupção, todos os tráficos se desenvolveram rapidamente” (2).
Planificar a economia de uma forma mais indicativa do que imperativa, sem se apoiar nos – antigos, chamados – “industriais da seca”,
por ironia, era uma das soluções de 1963/4 de Celso Furtado, para corrigir os desequilíbrios regionais resultantes desse dualismo: do
desenvolvimento “versus” subdesenvolvimento, capitalismo industrial incentivado de um lado, feudalismo ou servidão agravado de
outro, sem se reorganizar o arcaísmo (ou arcaicidade) deste último; e iludindo as elites daquele, com um nível de vida deslocado numa
sociedade dependente, em relação aos padrões de consumo de países industrializados, como tais havia já várias gerações anteriores.
Esse dualismo, referido, então, “cria um desequilíbrio ao nível dos factores económicos que se repercute sobre o conjunto da situação e
provoca uma instabilidade intrínseca”, dizia ainda por essa altura, no seu livro retrospectivo dessa falha no planeamento proposto,
através do combate à inflação pelo inglório Plano Trienal, interrompido antes da catástrofe política institucional de 31 de Março de 1964,
passagem aquela do texto e retida pelo ensaísta Faust do livro “Dialéctica do Desenvolvimento” de Celso Furtado. Aparecido este,
também, em 1964, como súmula de um trajecto inverosímil tomado previamente pela sociedade brasileira, então completamente
avessa a uma ponderada reflexão antes da iminência do volte-face ditatorial num regime democrático federalizante.
O testemunho de um antigo dirigente estudantil, que convidara Celso Furtado para um debate com um dirigente político, ulteriormente,
desaparecido durante o regime militar posterior, revela à distância o perfil da contradição de base da iniciativa governamental de que
aquele economista era contextualmente integrante: “O Plano Trienal pretendia, de facto, combater a inflação, naquela altura superior a
50% ao ano, promover reformas no sector público e oferecer um caminho para que a economia brasileira retomasse o dinamismo da
segunda metade da década anterior” (3).
Isto revela que a década de cinquenta presidia ainda o início da década de sessenta, pelo que ainda segundo o actual político José
Serra, refrescando, em homenagem ao estudioso Celso Furtado, aqueles tempos incertos na balança comercial de uma potência
emergente, cuja memória do planeamento referido estabelecia então o seguinte, também, como processo de algum alívio, perante a
responsabilidade do fracasso indesejável: “Previa deter o galope inflacionário combatendo o ‘déficit’ público, controlando a expansão
monetária, melhorando a oferta agrícola, atenuando o desequilíbrio externo e freando a espiral preços-salários”. Porém, a confrontação
de interesses agudizara-se e a máquina da produção ameaçava parar por esta ou aquela prioridade política institucional, paralisando o
raciocínio sobre as decisões que afectariam o gigantismo do mercado interno brasileiro: “A esquerda criticava não os objectivos, mas os
instrumentos e a consistência do próprio plano, que, embora defendesse a reforma agrária, não previa a ampliação da participação do
Estado na economia nem maiores restrições ao capital estrangeiro, considerados por ela como factores chave de qualquer estratégia
económica nacional bem-sucedida”. Essa dicotomia social entupiu a relação com o dualismo económico omnipresente, por via de uma
deriva da sociedade civil, quer para a religiosidade conservadora, quer para o belicismo irresponsável, comprometendo a situação geral
das instituições democráticas prisioneiras de burocratismo e de privilégios antigos.
Celso Furtado, porém, era avesso à demagogia populista, que por exemplo, segundo um testemunho de Jô Soares, num dos seus
programas em 2005, referente talvez em caricatura do tempo distanciado, pela sua própria juventude de então, revelasse que os
trabalhadores portuários de Santos tivessem lançado fogo-de-artifício, quando o presidente João Goulart os foi visitar sem estar no
programa, após uma reivindicação daqueles quanto a um aumento substancial de salário. Preferia, antes, Celso Furtado efectivar a
participação dos assalariados urbanos e das massas camponesas na formação do próprio poder político, quer local como regional,
federal ou estadual, mas criando ainda então por essa altura uma situação objectiva que “garantirá a aceleração do desenvolvimento
económico numa sociedade democrática pluralista”. Tal não foi, infelizmente, o caso por uma intervenção imprevista dos factores
históricos quase de “fait divers” à partida.
Assim, ao ser interrompido este processo histórico, essa situação já não foi possível de se enraizar nos hábitos sociais de então; e por
derrota imprevista os trabalhadores já não puderam tão cedo voltar a poder organizar-se em liberdade, para satisfazer as suas naturais
aspirações imediatas, como Celso Furtado pretendia ao tentar implementar o depois fracassado Plano Trienal ainda um ano antes.
Mesmo depois de conceder que o governo a que devia lealdade e embora sem rumo social disciplinado por parte de João Goulart
enquanto ainda seu presidente, por contraste para se poder debruçar em perspectiva e a tempo de não se dissolver mais
profundamente nas raízes do problema económico e social da altura no Brasil. País agigantado, com o seu vício dualista estrutural não
inteiramente corrigido e sofrivelmente avaliado mesmo no contexto histórico, algo já desfavorável no continente sul-americano de então.
Porém, já em 1963, o PNB descera para 2%, abaixo assim da taxa de crescimento demográfico correspondente que já era de 3,3% na
altura. Sintoma de que se cuidava mais do efeito dos factores políticos do que da economia, quando ainda em 1961, após a demissão
imprevista e desencorajante do presidente eleito Jânio Quadros, apenas ao fim de um primeiro semestre de governação tumultuosa
mas ainda controlável o PNB havia inopinadamente crescido 7,7% e só descido por compensação desfasada para 5,5% em 1962. Mas
isso já havia indicado algo, já que um estudo comparativo da CEPAL em Santiago do Chile entre a produção e o consumo no Brasil
dessa época, em 1963, dava em milhares de toneladas o consumo de bens intermediários como o aço, o alumínio, a celulose, os
adubos, o papel de jornal, o petróleo e o chumbo, com excepção do cimento, acima dos seus níveis anuais de produção, por vezes
mais do que triplicando, como no caso do petróleo e do papel de jornal (celulose) ou os adubos. Em 1962 o Brasil produzia por exemplo
2100 mil toneladas de café, em 1997 desceu para 1.170 mil toneladas (4)
Ora, Faust levantou a suspeita em 1966 no seu referido ensaio para a editora Seuil em Paris, de que os lucros do crescimento industrial
não haviam sido repartidos equitativamente “entre todos os brasileiros”; quando o que Celso Furtado pedia na altura referida, isto é, três
anos antes, era mais três anos para pôr em ordem a base dessa possibilidade distributiva equitativamente. Coisa essa em nebulosa
inextricável de que o presidente substituto não lhe dera a garantia de estabilidade, a não ser depois de 1965 se fosse reeleito como
pressupostamente se dizia que pensava.
O rendimento “per capita” no Brasil era de 380 dólares por ano em 1963, o que colocava esse país à cabeça da lista dos países em vias
de desenvolvimento na época. Mas, enquanto o mesmo já era relocalizado de 700 a 800 dólares por ano no estado de São Paulo,
diluía-se assimetricamente essa média postiça nos estados do Maranhão, no Piaúi, no Ceará, no Rio Grande do Norte, em Paraíba, em
Pernambuco e no Alagoas, conhecidos como os chamados estados da região do Nordeste. Sem contar com a Bahia e com Minas
Gerais, como o fazia a SUDENE (5) como superintendência autónoma para o seu desenvolvimento regional, que se defrontava com um
rendimento nacional por habitante que era na realidade então de 80 a 100 dólares.
NOTAS:
(1) Op. cit., Colecção Documentos do Tempo Presente n.47, Editora Ulisseia, Lisboa 1968, págs. 161 a 165 in “3 – As fronteiras da
esperança. 1. A economia dos ciclos”.
(2) Jean-Jacques Faust, “Le Brésil : Chronique d’une Démocratisation”, L’Harmatan, Paris 1998.
(3) José Serra, “Um apaixonado pela razão”, Folha de S.Paulo 22/11/2004 in Revista de Economia Política, “Documento - Artigos na
Imprensa sobre Celso Furtado”, Vol. 25, N.2, Apr./June, São Paulo 2005.
(4) “Atlas économique mondial 2000”, Les Guides Le Nouvel Observateur- Atlaséco, Paris 1999, págs. 32 e 33.
(5) José Sydrião de Alencar Júnior (org), “Celso Furtado e o Desenvolvimento Regional”, colectânea de relatórios inéditos e de textos
de especialistas, Banco do Nordeste, Brasília 2006.
20 de março de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXIII)
Manuel Carvalheiro
O nome do Infante D. Henrique na ponta de Sagres, no promontório a sul da Europa, avistando a imensidão do
oceano Atlântico e observando a cosmogonia da sua empreitada, é um lugar quase comum da dramaturgia
histórica sobre a mítica Escola de Sagres de navegação. Recorrente, até, de peças de teatro, como a que lhe foi
dedicada por Jaime Cortesão, que nos descreveu os seus diálogos com Cadamosto, um navegador veneziano ao
seu serviço no século XV, que havia chegado às costas da Senegâmbia praticamente incógnito.
Projecto de epopeia, que foi reavivada pelo documentário de Luc Cuyvers, “A Barreira do Medo”, episódio inicial
da série sobre a comemoração dos quinhentos anos do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia em
1998, a série “Na rota do Oriente” (Into the rising sun), no Ano Internacional do Oceano: “Quando, ainda menino,
ganhei um livro sobre a história dos descobrimentos fiquei fascinado. Nunca mais esqueci aquela gente épica
como Gil Eanes, Nuno Tristão, Diogo Cão, Bartolomeu Dias e Vasco da Gama. (...) Aliás, o nome de Vasco da
Gama soou-me como o de um verdadeiro explorador, invocando um exotismo maravilhoso. Sempre considerei uma injustiça o facto de
Colombo receber tanta atenção quando, efectivamente, quem chegou às verdadeiras Índias foi Vasco da Gama. (...) Tanto a viagem de
Vasco da Gama como os feitos espaciais de Yuri Gagarin e Neil Armstrong exigiram uma mente aberta e uma iniciativa de porte,
possíveis graças a líderes como o Infante D. Henrique e D. Manuel, que são comparáveis a John Kennedy e Nikita Khrushchev”,
conforme declarações do realizador flamengo em Lisboa a 29 de Junho de 1998 na Fundação Luso-Americana.
A que apenas se antecedera em grandiosidade, uma série em 1982/84 dedicada a “Cristoforo Colombo”, feita pelo realizador Alberto
Lattuada com grande pertinência e imaginação: a cena em que o actor sueco Max Von Sidow interpretava a pessoa de D.João II
recebendo Colombo regressado de uma primeira viagem a Porto Santo, é notória de visualidade plástica e arquitectónica em
reconstituição de época; enquanto aquele pegava num trio de nozes, para fazer como um exemplo de um dispositivo estratégico, com
elas em cima de uma mesa real na corte de Santarém; a substituir, simbolicamente, as ilhas que lhe pedia a este - durante a recepção
cortês ao navegador genovês -, antes de voltar a pegar nas nozes, entrechocando-as com os dedos e quebrando-as para lhes comer
assim o seu interior, com displicência exibicionista diante do atónito Colombo, sem este ainda recorrer à táctica célebre e também
exibicionista do ovo em pé como réplica.
A cartografia (1), segundo o historiador do século XIX Oliveira Martins, teria inspirado D. Henrique, quando este vira o prior do Hospital
e o navegador Afonso Furtado no paço de Sintra, depois de uma escala em Ceuta com rumo à ilha de Sicília (onde vivia uma rainha,
jovem viúva com quem D. João I queria casar um dos príncipes, D. Duarte ou D. Pedro), exemplificarem, a um D. João I ainda renitente
com a expedição, o porto comercial árabe por onde haviam entretanto passado - objectivo dos preparativos de conquista ulterior -, com
areia (para descrever a área), fita (para simular a muralha da cidade mourisca) e fava (para representar a disposição do casario aí
existente). Celso Furtado, em 1959, no seu livro fundamental “Formação Económica do Brasil”, afirmava: “”o desenvolvimento
económico de Portugal no século XV – a exploração da costa africana, a expansão agrícola nas ilhas do Atlântico e finalmente a
abertura da rota marítima das Índias Orientais – constitui um fenómeno autónomo na expansão comercial europeia, em grande parte
independente das vicissitudes crescentes criadas ao comércio do Mediterrâneo oriental pela penetração otomana”. Citou, entretanto, o
texto de António Sérgio, “A Conquista de Ceuta”, como referência do início desse interesse comercial (2). Com efeito, D. João I queria
armar dois dos seus infantes em cavaleiros; e, para o efeito, contava organizar um torneio em Lisboa, que reunisse a Europa dos
aventureiros medievais. No entanto, o seu ministro das finanças, segundo reza a lenda, entusiasmou-o antes na conquista de Ceuta,
em vez de gastar dinheiro com festas caras.
Celso Furtado dedicou-se, também, a reflexões sobre a origem da expansão comercial portuguesa, numa parte intitulada “Uma visão
retrospectiva”, no capítulo VII do seu livro assaz curioso e surpreendentemente diversificado, “Accumulation and Development: The
logic of industrial civilization” (3), editado em inglês em 1983, cinco anos depois da edição brasileira. Nesses cinco anos, Celso Furtado
havia sido, a partir de 1978, director de estudos na Escola dos Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, situada no Boulevard
Raspail, no edifício da Maison des Sciences de l’Homme.
Celso Furtado referiu-se àquilo que ele considerou, então, como a “precária natureza da independência política do pequeno reino”, isto
é, Portugal na primeira metade do século XV. Após a derrota de Azincourt pelos franceses frente aos britânicos e que dera início à
Idade Moderna, finalizando-se assim o extenso período da Idade Média em 1415. Data aproximada, também, da conquista de Ceuta e
da ilusão do controlo do mar Mediterrâneo na ligação com o oceano Atlântico, que seria desfeita com a derrota em Tânger em 1437,
pondo fim a um aspecto hegemónico do imperialismo cristão por parte dos portugueses.
Celso Furtado justificou, assim, aquilo que definiu como “a determinação” daquele príncipe português famoso, conhecido como
navegador, embora só tivesse navegado até Ceuta pago pelos burgueses tripeiros numa aventura de fé. Paradoxo esse, o de não ter
sido navegador mas alcunhado apenas com o cognome de “O navegador”, que no entanto o haveria de conduzir “a alargar o
conhecimento geográfico”, pelo facto de ter um ilustre irmão muito viajado pelas cortes europeias, que assim lhe organizava os
contactos para visitarem o pequeno reino a ocidente - preocupado com a dilatação da fé cristã e a contenção do infiel islâmico -, assim
como a incutir a produção e invenção de “instrumentos destinados à acção efectiva prefigurando uma mentalidade engenhosa que é
uma das marcas centrais dos tempos modernos”.
A escola dos “Annales” - à qual pertencera o professor Fernand Braudel, com a sua monumental obra sobre o Mediterrâneo considerou que houvera uma mudança de interesses comerciais : do principal eixo do mar Mediterrâneo, com Veneza como epicentro
portuário com o Oriente, para o oceano Atlântico, a partir das pesquisas feitas em Sagres por D. Henrique depois dos anos trinta do
século XV. Mas já então, no final do século XIV, os portugueses haviam mantido entrepostos comerciais em território da Flandres.
Sendo, por isso, que a primeira grande feitoria se instalaria em 1455 em Antuérpia, tendo em conta a produção de açúcar já então na
ilha da Madeira. Esta, redescoberta acidentalmente e colonizada havia pouco, desde 1419, após uma primeira atracagem ocasional
pelos ingleses e catalães ou mesmo genoveses, corsários ou não, ainda na segunda metade do século XIV, segundo mapas que a
localizavam hipoteticamente como arquipélago Atlântico desde a antiguidade grega.
Toda esta temática, fora, inicialmente, objecto de estudo em Cambridge, em 1957/8, por Celso Furtado, ao escrever o seu livro
“Formação económica do Brasil”, publicado, depois, em 1959, no Brasil. No seu entender, os venezianos do século XV não tinham
conseguido abrir uma frente comercial atempadamente em Lisboa, no quadro da descoberta do caminho marítimo para a Índia em
1499. Por isso, voltariam às suas rotas de especiarias através do Egipto, cerca de vinte e cinco anos depois, já em plena primeira
metade do século XVI.
Quando, entretanto, os portugueses eram já atacados em toda a parte, quer pelos turcos como pelos árabes, devido ás práticas
belicistas de Afonso de Albuquerque e de Francisco de Almeida. Embora este último fosse mais táctico do que o primeiro e, portanto,
mais comedido na eficácia dominante pretendida no controlo das rotas marítimas e terrestres; almirantes e vice-reis da Índia esses, que
lá haviam permanecido por conta do reino de Portugal, cuja costas longínquas - dos seus súbditos, conquistados - haviam sido sujeitas
à colonização de feitorias. Com alguma malfeitoria estratégica por acréscimo, como de certo modo assinalou com pertinência
universalista Marc Ferro, em “História das Colonizações: das Conquistas às Independências – Sécs. XIII- XX” (4).
Em “A Economia Brasileira (contribuição à análise do seu desenvolvimento)” em 1954, livro pioneiro dedicado ao economista argentino
Raúl Prebisch, com quem convivera amiúde em Santiago do Chile, na CEPAL das Nações Unidas, desde 1949, Celso Furtado
consubstanciava numa fórmula o seu pensamento, sobre dependência e colonização ou herança passiva profunda no desenvolvimento
retardado do continente sul-americano, de então: “A qualificação de sistema de economia colonial que aqui damos, aplica-se àquele
que não pode crescer senão por indução do crescimento de um outro sistema, melhor ainda àquele que não é capaz de criar o seu
próprio impulso de crescimento” (5).
NOTAS:
(1) António Sérgio, “Ensaios – I”, Obras Completas em VIII volumes, Clássicos Sá da Costa, Lisboa 1971, pág. 262 in “A Conquista de
Ceuta” (Rio, 1919).
(2) Op. Cit., Companhia Editora Nacional, São Paulo 1970 (10ª edição), págs. 5 e 6 in “I – Da expansão comercial à empresa”.
(3) Op. Cit., Martin Robertson, Oxford 1983, págs. 140.
(4) Op. cit., Colecção Referência n. 17, Editorial Estampa, Lisboa 1996 (1994), pág. 52 in “Albuquerque e Mamale de Cananor”.
(5) Op. Cit., Editora A Noite, Rio de Janeiro 1954, pág. 15 in “Prefácio”.
27 de março de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXIV)
Manuel Carvalheiro
Celso Furtado, no entanto, no seu livro de 1978 - reeditado cinco anos depois em inglês com novo prefácio e
alterações - como «Accumulation and Developement : the logic of industrial civilization», mais comedido, apoiouse em Ralph Davis, quanto ao facto de que desde o próprio século XIII a consolidação do Estado em Portugal e
depois dois séculos após com o seu comércio para as Índias Orientais, sobretudo, havia sido apoiado pelo então
novo poder público. Poder português esse na Europa secular para o qual havia, por isso, a seguinte explicação,
de que Celso Furtado aproveitava, com distanciação parcimoniosa, para sublinhar a importância: “A subida da
burguesia teve lugar contra forças exteriores ao país e não contra uma classe feudal local poderosa, como era
regra geral na maior parte dos países europeus” (1).
O próprio Erasmo chegara, nessa altura, a escrever ao rei de Portugal, protestando contra as alegadas margens elevadas de lucro
nesse novo comércio, feito já então em larga escala e a longo termo. Margens essas que, porém, a partir daí marcariam a formação de
uma mais alargada economia mundial desde a época pós-renascentista. E Celso Furtado em «Formação Económica do Brasil» dizia,
desde 1959, que “os venezianos passaram a comprar pimenta em Lisboa pela metade do preço que pagavam os árabes em
Alexandria” (2).
Ainda a esse respeito, contudo, Vitorino Magalhães Godinho, de resto citado pelo próprio Celso Furtado naquele livro, referenciado
como autoridade no domínio histórico da navegação comercial portuguesa, a propósito das continuadas remessas de ouro do Brasil no
século XVII, referiu-se então, por essa via e constatação documental, igualmente à questão do contexto europeu da concorrência e
competitividade com Veneza e Beirute, por parte de Lisboa e de Antuérpia. Sobretudo, aquando do descobrimento da rota comercial de
navegação para a Índia em 1498/9 (3) e quando logo então Vasco da Gama, embora posteriormente, assinaria em 1503, em Cochim,
na Índia, um pioneiro tratado internacional para a instauração aí da primeira das suas feitorias.
Ora, a teoria catastrófica veiculada pelos italianos de então, a propósito da decadência da civilização mediterrânica, era por isso
perfeitamente irrealista. Visto que, com a excepção das especiarias e da seda, os valores do algodão, do açúcar, do sal e do trigo,
permaneciam ainda globalmente superiores em termos comerciais, pelo menos até 1600, isto é, num valor global “superior ao do
caminho marítimo para a Índia”. A concorrência produzira, inclusive, efeitos ditos de ricochete comercial, já a partir de 1522 na rota do
Cabo e na permanência prolongada dos portugueses no Oriente. Quando, entretanto, já os venezianos difundiam boatos de que
aquelas feitorias tinham sido queimadas pelos árabes.
O que tinha havido a partir de 1495, fora a falência em Veneza de uma série de bancos em cadeia e de prestamistas, devido à política
imperial da guerra turco-veneziana, com o comércio cortado ou reduzido com o Cairo, Alexandria, Beirute e Damasco; e, por
conseguinte, os alemães - como antes haviam feito habitualmente -, já não virem, entretanto, com assiduidade e mesmo
abundantemente como dantes, comprar especiarias e sedas a Veneza, a troco de prata, o que originaria uma depressão económica de
todo o tamanho, pouco antes da descoberta da rota para a Índia via Cabo da Boa Esperança pelos portugueses. Mas as mercadorias,
anteriormente ainda armazenadas em Veneza, bastaram contudo apenas para o andamento dos negócios e o evitar assim da falência
total. Embora com uma enorme dívida pública, devido à continuação daquela guerra local e à política imperial do almirante veneziano,
acentuada esta após a morte inopinada do “mameluco” do Egipto.
Entretanto, com a rivalidade de Flandres, que começava a ir buscar de novo especiarias a Alexandria, nomeadamente a partir de 1516,
capitais venezianos eram também por essa altura investidos continuadamente na recém indústria manufactureira dos teares, para
assim se evitar o total colapso mercantil, apesar da ainda prolongada estagnação no comércio marítimo. O acaso também teve neste
panorama um papel algo relevante na reanimação da actividade económica de Veneza: “Almeida enviou o seu filho Lourenço a ocupar
as Maldivas. Houve qualquer engano nos cálculos dos pilotos. Após dezoito dias a navegarem, encontraram-se à entrada de um porto
desconhecido, na muito mais importante ilha de Ceilão. Lourenço de Almeida entrou ousadamente no porto de Colombo” (4). Maldivas
eram as ilhas em frente à costa de Malabar, na Índia, que serviam de alternativa como poiso comercial, para os árabes em contacto
com o Mar Vermelho, o Cairo e Veneza, de forma a evitarem as fortalezas portuguesas na costa indiana ocidental.
Camões chamaria em 1572 ao actual Sri Lanka o nome de Tapobrana, para o seu narrar épico, já na fase de decadência do poderio
bélico e comercial dos portugueses no Oriente. Nome esse, contudo, ainda atribuído a um ilhéu em frente à costa da ilha de Ceilão,
propriedade actual de um cidadão britânico, que como empresário se propôs agora em 2005 reconstruir 117 casas destruídas, por
dádiva em sinal de reconhecimento aos actuais autóctones e naturais. Pois, aquelas casas, haviam sido recentemente destruídas, após
a passagem do “tsunami” em 26 de Dezembro de 2004; e, sem, até então, haver a concretização do prometido apoio financeiro ulterior.
Catástrofe aquela, de que o proprietário britânico fora salvo, por acaso e por uma embarcação de um dos pescadores aí habitando, tal
como ele desportivamente: e que o recolhera das águas revoltas, na corrente da enxurrada, impedindo-o de se afogar... tal como numa
imaginária versão “rock”-operática de um canto de «Os Lusíadas».
Bertrand Russell, prémio Nobel da literatura em 1950, revelou numa das suas conferências, presumivelmente através da rádio BBC
para África na viragem dos anos cinquenta para sessenta no século XX, o sonho que tivera com a presença de D. Henrique, o
Navegador, como evocação de um convite recusado para estar presente em Lisboa durante o congresso a decorrer durante as
Comemorações Henriquinas de 1960, de que ele também glosaria o catálogo eventual ao promontório de Sagres como dedicado a um
precipício de pesadelo (5).
Um filme de Kevin Reynolds, «Waterworld» (1995), revelou numa dada cena o pesadelo que era para os terráqueos mobilizados para
atóis de ferro enferrujado a vida sem terra à vista há várias décadas, numa antecipação da barreira dos corais destruída por ondas que
submergiriam um continente equivalente ou como a Austrália. Resultante da falência da civilização industrial à escala mundial, da falta
de terra num universo plenamente aquático e cuja memória se perdia, de alguém a ter visto alguma vez para a geração seguinte,
submersa ou à tona. A alegoria aparentemente sem nexo, repercute-se contudo pelo absurdo da hipótese na mentalidade racional, que
retroactivamente imaginasse o que era não ver terra durante meses seguidos no tempo das caravelas; ou, mesmo mais perto de nós,
no da lenta passagem tecnológica do “clipper” a velas para o navio a vapor, na segunda metade do século XIX. E em que agora o
choque aquático viria a pôr à prova a sociedade marítima e as suas novas fontes de energia, provavelmente em vias de serem
retomadas na costa norte portuguesa, por uma empresa britânica como a Camcal escocesa, que produz a partir do poder do oceano
uma fonte de abastecimento eléctrico para povoações de mil e quinhentos lares hipoteticamente em média.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Martin Robertson, Oxford 1983, pág. 141.
(2) Op. cit., Companhia Editora Nacional, São Paulo 1970 (10ª edição), pág.5 in “I – Da expansão comercial à empresa agrícola”.
(3) Vitorino Magalhães Godinho, “Os Descobrimentos e a Economia Mundial”, Vol. III, Editorial Presença, Lisboa 1982 (1963-1971, 1ª
edição), pág. 82 in “1 – A retracção veneziana e egípcio-síria durante o primeiro terço do século XVI”.
(4) John dos Passos, “Portugal, três séculos de expansão e descobrimentos”, Editorial Ibis, Venda Nova-Amadora 1970, pág. 278 in “8
– O amansar da Índia”.
(5) Bertrand Russell, “Realidade e Ficção”, Colecção Estudos e Documentos n.33, Publicações Europa-América, Lisboa 1965, pág. 226
in “V – Sonhos”.
3 de abril de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXV)
Manuel Carvalheiro
“Dante, descrevendo o mundo como uma série de esferas, atraiu a atenção para a imutabilidade da décima
esfera, a abóbada de Deus”, dizia Celso Furtado no seu livro “Accumulation and Development: The logic of
industrial civilization”, continuando a reflexão sobre o contrário do imobilismo, na parte VIII intitulada “À procura de
uma visão global”: “O movimento era olhado como estado transitório das coisas, desde que todos os objectos
tivessem um lugar natural para jazer e para que tendessem a mover-se num universo cujo centro era a terra” (1).
Celso Furtado remetia-nos para o período imediatamente anterior àquilo que ele considerou com aspas ou comas
como Grandes Descobertas – referindo-se inexplicavelmente tanto a Portugal como à Espanha do Tratado de
Tordesilhas, por inferência -, em que em conflito coexistiam dois sistemas culturais na Europa do final da Idade
Média ou do início da Idade Moderna, de que o ano de 1415 fora a linha divisória imaginada pelos historiadores
posteriores e só retroactivamente concebida por convenção perfeitamente espúria. Talvez 1383 fosse uma data
então mais consensual para a reconversão do absolutismo na Europa, pela revolução dinástica que constituiu e a novidade dos
movimentos sociais que gerou.
E só talvez equiparados às lutas camponesas na Alemanha do século XVI, bem ilustradas pela contemporaneidade de um desenhador
como Duhrer, que se reporta à mesma época de instabilidade senhorial, perante a cobrança de passagem pelas suas terras em volta
dos castelos, em cada província autónoma germânica, que em “O Rebelde” (Michael Kohlaas,1979) de Volker Schloendorf foi ilustrado
pelo pânico do cisma protestante, em face do abuso de poder nas feiras perante o tributo cobrado localmente, antes mesmo da venda
eventual do produto, no caso cavalos utilizados até à extenuação no trabalho do cultivar da terra por conta do proprietário feudal.
Uma ideia de megalomania por parte de D. Manuel I em 1500 ao escrever a carta que Pedro Álvares Cabral levaria para entregar ao
Samorim de Calicute, ditada pelo seu conselheiro episcopal de Viseu segundo se pensa, o nome do Infante D. Henrique era invocado,
quarenta anos depois da sua morte, quando o rei nem sequer ainda era nascido, a título de vassalo, o que é estranho dado o facto de
este rei ter acedido ao poder por mero acaso histórico, sendo apenas primo do anterior que ficara sem o filho por acidente de cavalo.
Porém, a vassalagem era norma entre os fidalgos, o que nos remete por conseguinte para a figura chave do sábio Ahmad Ibn-Madjid,
natural de Omã, país que não se fez representar mesmo durante a Expo’98 em Lisboa durante o Ano Internacional do Oceano.
Ainda em 2006 a dúvida permanece se seria este ou não o piloto que levaria Vasco da Gama de Melinde a Calicute, na altura com vinte
e oito anos, numa extensa viagem de mais de três semanas pelo oceano Índico, sem registo de conteúdo de incidentes marítimos no
diário de bordo ou roteiro, cujo relator no regresso abandonou perto da Guiné o navio de regresso em 1499. Com efeito, referiu-se
recentemente (2) ao contrário da dúvida de 1998 que contrabalançava a certeza de 1968, que Madjid conduzira como piloto a parte
final da referida expedição marítima, mas tratando-o como mero piloto de embarcações árabes ou turcas, com o beneplácito ou não dos
venezianos ou francos (europeus para os árabes), por delegação no trajecto do mar Vermelho até à costa de Malabar, duvidando-se
contudo da lenda do cristão-novo quando poderia ser apenas um aculturado ao hinduísmo residente em Melinde e sonegando-se
contudo a sua qualidade de grande sábio com quarenta obras escritas sobre as correntes, os ventos e as estrelas em condução
marítima no Índico (3). Ora, Madjid, à época, já teria cerca de setenta anos, permanecendo apenas a dúvida da data de nascimento,
1430 ou 1433, portanto dificilmente já em actividade apesar de se dizer que navegara durante meio século, tendo falecido pouco depois
de 1500.
Mesmo um século depois, “o ouro brasileiro ia para Portugal dali – para pagar o excedente das importações sobre as exportações –
para a Inglaterra, e em seguida, em grande parte para o Oriente” (4), dizia Andre Gunder Frank em “Acumulação Mundial, 1492-1789”.
Mas só durante a ocupação espanhola em 1585 os holandeses que estavam em guerra com a Espanha deixaram de comprar
especiarias a Lisboa e iniciaram contactos directos com os portos indianos, assenhoreando-se do comércio de especiarias, competindo
assim com os países do Levante que se haviam aproveitado da derrocada do comércio luso a paredes-meias com o reinado de Felipe II
de Espanha (5), enquanto os ingleses, por volta de 1600, davam a volta ao Cabo da Boa Esperança.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Martin Robertson, Oxford 1983, pág. 161
(2) Theresa M.Schedel de Castello Branco, “Na Rota da Pimenta”, Colecção
Século n.16, Editorial Presença, Lisboa 2006, págs. 32 e 84.
(3) T.S.S.Rao and Ray C.Griffiths, “Understanding the Indian Ocean :
Perspectives on Oceanography”, IOC Ocean Forum II, Environment and
Development, UNESCO Publishing, Paris 1998, págs. 30 e 31.
(4) Op. cit., Zahar Editores, Rio de Janeiro 1977 (1974), pág. 151.
(5) Geoffrey Parker, “Felipe II”, Alianza Editorial, Madrid 1997 (1971, 1991),
pág. 287 in “11 – Camino de la tumba, 1589-159
10 de abril de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXVI)
Nesta fase do século XVII os holandeses em Celebes procediam ao “doce comércio” do rapto negociado com os príncipes autóctones para abastecer de escravos,
despovoando certa região da ilha de Java que perderia mais tarde, entre 1750 e 1811, cerca de 90% da população como caso limite
Manuel Carvalheiro
Quanto aos árabes, durante a existência do Califado de Córdoba, que controlava mais de metade da península
Ibérica no século VIII, cultivavam a vinha sem beberem, colhiam minerais diversos entre o Algarve e Beja, até
Málaga e fizeram canalizações nas hortas de Múrcia, Valência e Granada.
Produziam, assim, o desenvolvimento do comércio por mar, “constituindo os direitos de importação e exportação a
parte mais importante dos impostos do Estado” (1), conforme afirmou um professor da Universidade de Madrid
que estudara através de autores alemães do século XIX, desde a primeira publicação do seu texto de iniciação à
cultura histórica, já pluridisciplinar em 1925, quando já então também se dizia que o porto de Sevilha nesse
mesmo longínquo século VIII se enchia de navios com tecidos importados do Egipto, entre outras coisas como
cantadeiras e eunucos.
Lembrando, talvez, um pouco, o ambiente de pesquisa competitiva em relação ao passado arqueológico muçulmano, do ponto de vista
da atmosfera de miscelânea entre as duas grandes guerras no Cairo, a recriação da cena da gruta em “O Paciente Inglês” de Anthony
Minguela (1996), adaptação revivalista essa com um pano de fundo entre recriação de aventuras austro-húngaras e espírito de
descoberta expedicionária durante o colonialismo democrático. Tal como Albert Camus o havia definido e sentido como um dandy
melancólico, por personagem interposta admiravelmente consubstanciada em “O Estrangeiro” (1966) de Luchino Visconti, num absurdo
de situações que remete o colaboracionismo subliminarmente racista para uma situação de subalternidade, face à incomprensão do
domínio de fronteira dos hábitos civilizados importados e distorcidos nos trópicos com o choque climático e de tradição oral corânica.
O apelidado dialogo efémero de culturas, tanto nos anos sessenta como nos anos noventa, divorciadas por rivalidades entre os
próprios países colonizadores europeus, numa mescla de cosmopolitismo entre futuras nacionalidades, teve nessa dupla assunção
cultural um reparo retrospectivo, em que o escape do sensualismo recorda a diplomacia literária-imagética de Pierre Loti em Istambul,
na viragem do século XIX para o século XX.
É da reacção a esse tempo de cultura árabe, que mais tarde o século XV tirará de Granada o último reduto de direcção árabe. Sábios
tratadistas da agricultura eram árabes, como no século XII Averroés, que traduzira a cultura grega comentando-a e que havia sofrido
com o integrismo dos seus próprios chefes, obrigando-o a esconder os seus ensaios e a remetê-los por discípulos para o Cairo, de que
o filme de Yussef Chahine, “O Destino” (1997), ilustrou com veemência o período de 1126 a 1198, em que a revelação corânica não era
por aquele distinto interveniente contraposta à razão moral.
Enquanto isso, na Europa do século XVI, havia sido portanto pregada a tolerância religiosa, para o bom andamento do comércio entre
as nações. No entanto, a religião em si, fosse ela qual fosse, não era nessa época o único factor para explicar a estagnação
económica: pela intolerância para com as outras religiões minoritárias em cada nação, como no caso da revogação do Édito de Nantes;
que autorizava os protestantes, por conseguinte, a ficarem de novo em França, quando era já sabido que apenas ao invés só 10% dos
seus dois milhões haviam emigrado para outros territórios europeus, pelo que essa revogação marcava apenas um facto mais simbólico
do que decisivo (2).
Celso Furtado comentou em “Accumulation and Development : The logic of industrial civilization” (3), que “por outro lado na Índia, onde
os portugueses perderam a sua posição privilegiada, os preços de abastecimento subiram” ; deste modo, “dada a falta de elasticidade
da procura”, o principal efeito da queda nos preços era reduzir-se as margens de lucro, para vantagem de um grupo da população
beneficiando de largas rendas e caracterizado por uma extremamente alta propensão para consumir e/ou para investirem actividades
não produtivas” ; e, consubstanciava em síntese: “Se tivermos em conta a importância das especiarias no comércio desse tempo, os
efeitos negativos da nova situação, sobre a acumulação potencial sob o controlo da burguesia, seria rapidamente entendido”, a
propósito daquilo que qualificou de implementação do pacto colonial, que viria então a fragmentar o mercado a meio do século XVII nas
Índias Ocidentais. Isso depois dos holandeses terem sido afastados do Brasil e terem perdido influência no oceano Índico, a favor dos
ingleses e franceses, conservando porém as refinarias de açúcar na Europa e ainda larga parte do seu mercado longínquo.
Uma curta descrição em como “os holandeses corromperam o governador português” para se apoderarem de Malaca em 1641, é
descrita brevemente por Marx em “Le Capital - Livre I” (4) no capítulo XXXI sobre a “génese do capitalista industrial”, em que a troco de
uma promessa de lhe darem um elevado montante conseguiram introduzir-se na cidade, mas num volte-face acabando por matá-lo
primeiro poupando assim a recompensa monetária.
Nesta fase do século XVII os holandeses em Celebes procediam ao “doce comércio” do rapto negociado com os príncipes autóctones
para abastecer de escravos, despovoando certa região da ilha de Java que perderia mais tarde, entre 1750 e 1811, cerca de 90% da
população como caso limite.
Mais uma vez um manuscrito holandês de 1642, retomado em 1872 por um compatriota, serve de inspiração para uma ilha situada não
longe das ilhas Salomão, como se após a revolta na Bounty (na ilha de Pitcairn perto da Nova Zelândia, onde actualmente vivem 47
pessoas descendentes dos sublevados do século XVIII) com um sextante numa pequena embarcação, cena essa revelada em “Revolta
na Bounty” (1962) de Lewis Milestone, o comandante em vez de se apear em Timor, fosse mais além e desse com ela em frente a
outra, à procura de um inexistente meridiano zero.
O seu reflexo profissional, credível no acto de navegação e revelando a sua competência, não fora no entanto compreendido, quando
anteriormente para proteger a biologia da planta fruta-pão cultivada a bordo no regresso a Inglaterra, recorrera à excessiva e cruel
mingua da água racionada à tripulação não oficial de marinheiros do porão, com castigos incomportáveis em caso de infracção mesmo
de delírio devido ao clima tropical.
Sendo que aquela ilha onde está, é a ilha do dia presente e aquela que avista ao longe em frente àquela onde se encontra, é a “A ilha
do dia antes”, tal como a definiu Umberto Eco em 1994 - recordando o paradoxo do comandante Blyth, no seu proto-romance em jeito
de citação como revelação do pasticho pós- modernista -, por convenção geográfica dos fusos horários (mas de que o seu outro herói
agora representado em retrospecto mimético, não conseguiria restaurar aí o navio afundado cem anos antes).
“As ciências evoluem graças a agentes que são capazes de atingir e ultrapassar certos limites. Não basta armar-se de instrumentos
eficazes. O valor de um cientista resulta da combinação de dois ingredientes: imaginação e coragem”, confirmava Celso Furtado um
ano e meio antes de falecer. “Em muitos casos, cabe-lhe também actuar de forma consistente no plano político, portanto assumir a
responsabilidade de interferir no processo histórico. Não devemos esquecer que a ciência está condicionada pelos valores da
sociedade onde é gerada”. Esse desafio contém um paradoxo de que o julgar em independência é sempre difícil perante a tendência à
cumplicidade táctica: “Basta lembrar que supostas teorias científicas sobre as diferenças raciais, que prevaleceram no século XIX, nada
mais foram do que um simples subproduto das doutrinas imperialistas em voga na época” (5).
Mais adiante, Celso Furtado alertava no seu mesmo discurso escrito em Paris e enviado para o Brasil, lido no entanto na sua ausência
na sessão de entrada para a Academia Brasileira de Ciência: “As ciências sociais, talvez mais que outras, são sujeitas a influências
ideológicas que reflectem o espírito de uma época. Se ajudam os homens a enfrentar uma profusão de problemas, também contribuem
para conformar a visão do mundo que prevalece em certa sociedade”.
Essa dualidade de funções e ambiguidade de projecto tinham porém um filtro lógico de compromisso com a consciência crítica perante
a distorção da razão de Estado e da disciplina abusiva pela coerção sem persuasão: “Assim, podem servir de cimento ao sistema de
dominação social em vigor, mas também, eventualmente, justificar abusos de poder. Ao longo da história, não foram raros os casos em
que as estruturas de poder procuraram cooptar os homens de ciência”.
NOTA:
(1) Ángel González Palencia, “Historia de la España Musulmana”, Colección Labor Sección VI n.69, Editorial Labor S.A., Barcelona –
Madrid – Buenos Aires – Rio de Janeiro 1945 (1925), págs. 136, 137 e 139 in “XII – Economia”.
(2) Henry Kamen, “O Amanhecer da Tolerância”, Biblioteca Universitária Inova n.8, Porto 1968, págs. 225 e 228 in “Causas económicas
da tolerância”.
(3) Op. Cit., Martin Robertson, Oxford 1983, pág.158, 159 e 160.
(4) Op. cit., Garnier-Flammarion, Paris 1969, pág. 558 in “XXXI – Gènese du capitaliste industriel”.
(5) Celso Monteiro Furtado, “Discurso de Posse”, Arquivos - Novos Acadêmicos em 2003, Academia Brasileira de Ciências, 4 de Junho
de 2003.
--------------------------------LXXVII
Aquando de uma grave crise em finais de 2001 na Argentina, as consequências da sua inserção no Mercosur/Mercosul fizeram redefinir
o seu rumo económico caótico, para bem da situação geral daquele espaço económico voltado então para a Europa
Tal como o engenheiro que, depois de construir um observatório astronómico nos arredores de Modena, em Itália, como numa
sequência ao ar livre de deambulação feminina em cura ecológica, em “Deserto Vermelho” (Il Deserto Rosso, 1964) de Michelangelo
Antonioni, iria emigrar para a Argentina. Tudo isso porque na época o chamado Grupo Andino de alguns países latino-americanos havia
imposto normas restritivas, num código aos investimentos estrangeiros das grandes empresas europeias, japonesas e americanas.
Porém, empresas grandes essas que haviam aceite limitações à propriedade dos bens de produção, mas não à direcção da orientação
do desenvolvimento, respeitante à definição de produtos e métodos de produção relacionados com o controlo da tecnologia.
Aquando da reinserção do Instituto Europeu de Tecnologia, como palanquim em busca de país acolhedor da sua sede num dos vinte e
cinco países europeus condizentes, o presidente da Comissão Europeia José Manuel Barroso reafirmou, mais recentemente, que para
auxiliar a conter um fenómeno de desagradável incidência desde os anos sessenta do século XX, de que assim como tinha havido
transferência de desportistas necessários nos outros continentes para a Europa, há cada vez mais de cientistas europeus para os
Estados Unidos da América, sendo que dessa forma aquela instituição promoveria desse modo uma atenção maior à fixação destes
últimos.
“No centro dessa questão estava a Circulação do Ouro, ou seja, os movimentos internacionais de capitais. Por outro lado, a Argentina
se beneficiava de importante influxo migratório e mesmo de importação ‘estacional’ de mão-de-obra europeia, os chamados
trabalhadores ‘golondrinos’”, recordava a propósito do contexto em que o economista argentino Prebisch interagia a nível internacional
sobre a periferia heterodoxa do continente sul-americano, face às ideias dominantes e feitas a pronto no domínio do comércio
internacional.
Acrescentando ainda, a propósito da homenagem em 1986 aquando do seu último tributo como conselheiro do presidente Raúl
Alfonsin, após o restabelecimento da democracia na Argentina em 1983, com um saldo de trinta mil mortes e desaparecidos devido às
convulsões sociais que sofrera nomeadamente nos últimos vinte anos, pelo que Celso Furtado tentava consubstanciar o seu
pensamento prático de então: “A mobilidade institucional dos factores era, portanto, um dado imediato de observação, do qual ele
partiu. Mas essa mobilidade não assegurava a propagação internacional do progresso técnico, a cuja lentidão se atribuía a tendência à
concentração da renda nas economias centrais” (1).
Aquando de uma grave crise em finais de 2001 na Argentina, as consequências da sua inserção no Mercosur/Mercosul fizeram redefinir
o seu rumo económico caótico, para bem da situação geral daquele espaço económico voltado então para a Europa, desafogando
assim a sua exclusividade estratégica com o espaço económico do Canadá, E.U.A. e México, em propensão então a alargar-se sob a
base programática do Consenso de Washington: “A impressão que temos todos que trabalhamos nesta área”, dizia Furtado talvez
recordando Prebisch (mas sem o nomear explicitamente), “é que os outros países beneficiar- se-ão, porque a Argentina vai retomar o
seu crescimento”. Prudente quanto ao conflito político e social, paralizando inclusivamente a vida diária de então aquando da demissão
do ministro Cavallo, Celso Furtado remeteu-se para a influência além fronteira com o seu parceiro vizinho maior : “Grave é que esta
importante economia latino-americana estava paralisada e isto repercutia-se muito negativamente por exemplo no Brasil, que tinha na
Argentina um dos seus principais mercados. É evidente que a Argentina perdeu muito tempo. Esta modificação de política económica
deveria ter sido feita há dois anos. Um país importante como a Argentina não podia abandonar a sua independência monetária, que era
o que significava a ‘dolarização’” (2).
Em “Charme discreto da burguesia” (1972) de Luis Buñuel, numa cena memorável um ministro tentava vender aviões “Mirage” a uma
república centro ou sul-americana enquanto a sua conversa ao telefone com outro ministro era, momentaneamente, abafada pela
passagem dos mesmos por de cima da sua instituição.
Algures num país europeu cioso do seu lema de desenvolvimento, mesmo que para isso um incidente diplomático de alguma gravidade
anterior ficasse de imediato solucionado pelo comércio internacional então vigente. O essencial do pensamento de Prebisch – que este
argentino, economista com experiência num banco central em 1935, nascido no dealbar do século XX, consubstanciara num livro
aparecido dois anos antes de falecer, em que descrevia as cinco etapas do desenvolvimento segundo o seu ideário pouco doutrinário -,
era em volta das flutuações cíclicas do mercado internacional, de que ele derivou “a ideia do sistema de relações económicas
internacionais” dito “centro-periferia”, segundo Celso Furtado na edição francesa de “Globalisation et Exclusion – Le cas du Brésil” (3),
tradução do seu próprio livro de 1992, “Brasil, a construção interrompida”, onde fazia menção especial às características dessa
influência que tivera desde 1949, após um primeiro encontro fortuito numa passagem de Prebisch pelo Rio de Janeiro a caminho de
Santiago do Chile e em plena época do peronismo mais anti-económico em Buenos Aires.
Segundo Frances Hagopian em “Traditional politics and regime change in Brazil” (4), “as soluções de política administrativa da
economia adoptadas pelos brasileiros e pela Argentina em primeiro lugar como regimes burocrático- autoritários num tempo de
expansão do comércio mundial – em que a quase - ortodoxa estabilização seguida no caso brasileiro por uma expansão agressiva do
sector estatal empresarial -, contrasta irregularmente com os últimos projectos económicos dos uruguaios, chilenos, e o segundo dos
argentinos, de regimes militares que eram mostruários de experiências neo-conservadoras em economia monetária, liberalização do
mercado, privatização de sobreavaliação cambial”, inspirado aquele tanto em autores como Foxley ou Schamis entre 1983 e 1991 para
este livro de 1996.
Não era outra coisa, o que Celso Furtado dizia em “Economic Development of Latin America: Historical Background & Contemporary
Problems”,
(5): “Com a excepção do Brasil, colonizado por Portugal, e Haiti, colonizado pela França, as restantes repúblicas latino-americanas
partilham muito da sua história colonial e, em espanhol, uma linguagem comum. Não obstante, o facto de que a herança cultural précolombiana ter contribuído em tais alargados e diversos caminhos para a formação das personalidades presentes dessas
nacionalidades, fazem as diferenças entre países tais como a Argentina e o México tão grandes como as suas semelhanças”.
Um livro muito respeitado pelo próprio ex-presidente Lagos do Chile e por ele referenciado em finais de Novembro de 2004, aquando
da homenagem que fizera num texto sintético de oportunidade cultural póstuma, para evocar as circunstâncias do conhecimento
pessoal do autor, em 1981, em Paris, quando analisava na OCDE/OECD os índices dessa época referentes à América Latina e ao
Chile desse tempo menos favorável à sociabilidade de trato entre proscritos e não proscritos.
NOTAS:
(1) Celso Furtado, “Homenagem a Raúl Prebisch”, 18 de Maio de 1986, Jornal do Brasil, in “Dossier Celso Furtado”, J.B., 26/8/2001,
pág.4.
(2) “Furtado, una mirada optimista a Argentina”, BBC Mundo, BBC Economia Argentina lunes,7 de enero de 2002 22:54 GMT.
(3) Op. Cit., Éditions Publisud, Paris 1995, pág. 61 in “Retour à la vision globale de Prébish”.
(4) Op. cit., Tufts University, Cambridge University Press, pág. 259 in “8- Continuity in change: Brazilian authoritarianism and
democratization in comparative perspective: Historical legacies and the reform strategies of authoritarian regimes”.
(5) Op. cit., Second Edition, Cambridge University Press, Cambridge, London, New York, Melbourne 1978 (1970, 1976), pág.1 in
“1.From the conquest to the formation of nation-states; Introduction: the land and the people”.
17 de abril de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXVIII)
Manuel Carvalheiro
O filme argentino “La Isla” (1979) de Alejandro Doria remeteu-nos com brilhantismo à decomposição barroca e
europeizante das aspirações burguesas de reminiscências tardo-coloniais, no contexto de uma ideia de
nacionalidade em constante turbulência no século XX na América do Sul. Nacionalidade essa, herdeira da
competitividade em ritmo corporal e de velocímetro mecânico, três anos após o início de uma curta ditadura
belicista que duraria sangrentamente entre 1976 e 1983. Mas extemporânea, pelo legado de concepção e de
psicodramas, que fizeram da Argentina palco de um manicómio labiríntico, antecipando o expansionismo
contraditório que conduziria, já desde então em perspectiva, para a derrota na guerra das ilhas Malvinas ou
Falkland, ainda hoje sob soberania britânica após a precipitada tentativa de anexação em 1982.
Era, também, como que forçar a questão racial nas relações Norte-Sul, encapotada agora por etnicidades
genocidárias latentes. Porque, desde então, como que por acaso “a explicação da estratificação global subestima
a relevância da classe, do género e dos factores imperiais, assim como a correlacionada divisão internacional do trabalho baseada por
decima das forças de mercado” (1).
Curiosamente, foi em Creta, logo após o início da II Guerra Mundial, que se encontrava de passagem um viajante como o escritor Henry
Miller fascinado pela civilização remota de Ur, que viria a descrevê-la em 1939 (em “The Colossus of Maroussi”, só publicado em 1941)
como anexa à grega, enquanto ainda se mantinha a neutralidade por mais algum tempo, nessa época letal para a Europa de então:
“Todos estes lugares antigamente extraordinários, cujo nome próprio era um encantamento, são hoje em dia pequenos ilhéus flutuantes
no mar tempestuoso da civilização. Eles são sinais de mercadorias correntes – borracha, estanho, pimenta, café, ‘carborundum’ e
outros. Os indígenas são pobres destroços, explorados pelas alforrecas cujos tentáculos partem de Londres, Paris, Berlim, Tóquio,
Nova Iorque, Chicago, para se estenderem até às extremidades geladas da Islândia, até às extensões selvagens da Patagónia”.
Celso Furtado explicitou numa breve passagem de “A Fantasia Organizada” (2), a sua relação episódica com este paradoxo turístico, a
que chamaria “détour” (desvio de rota) após o congresso apoiado pela associação mundial de economistas e pela Unesco na Turquia
em 1957/8, como “subprodutos que não eram de desprezar”. E que como nessa altura delicadamente levantou um véu de indefinição,
pela companhia de então de Lucia Tosi, a quem se referiu como a quem pois “ainda reconstituiríamos as trilhas de Schlieman na
descoberta dos tesouros micénicos”.
E também a quem dedicaria, depois, em 1961, o seu livro “Desenvolvimento e subdesenvolvimento”, após a viagem de regresso do
Bósforo, onde entretanto adquiriria em Itália, com o pagamento de um artigo de economia numa revista local, uma máquina de escrever
portátil. Utensílio de luxo, então uma novidade tecnológica digna de privilégio funcional. Com a qual, pouco depois, implicaria passar o
manuscrito de “Formação económica do Brasil” extraviado, a partir de um microfilme substituto que sobrara por feliz acaso. E que, em
seguida, seria projectado em Cambridge através de diapositivos página a página, numa imagem fixa no ecrã com o conteúdo
manuscrito e directamente, por fim, pacientemente copiado e encurtado de novo pela novidade das teclas portáteis, lembrando talvez
uma cena célebre em “O Processo” (1962) de Orson Welles, quando numa repartição se vê uma sala imensa em perspectiva com
máquinas de escrever ensurdecedoras e pesadíssimas como eram as de então manuseadas por dactilógrafas zelosas em movimento
sincronizado de alienação consentida burocraticamente.
O “despotismo económico”, expressão de um manual de história de 1905 (3), dirigido por “uma sociedade de professores e de sábios”,
é atribuído à Espanha, para quem “toda a indústria, todo o comércio para fora, muitas culturas, como mesmo a da vinha, tinham sido
interditas aos colonos”. Colonos esses, que deviam antes, apenas, concentrar-se na extracção de ouro e prata, a troco de produtos
manufacturados impostos como importações ; curto-circuito infamante, que se interrompeu, entretanto, quando os colonos
desobedeceram aos vice-reis, impedidos estes agora do auxílio da metrópole, no período em que Napoleão invadira a Península
Ibérica. Deste modo, mais tarde as jovens repúblicas, que haviam derrotado o absolutismo, caíram em “infelizes divisões”, fazendo até
de Bolívar um herói mais popular em Paris do que em Caracas. Tendo isso como efeito que, Washington, que não vendera pólvora aos
libertadores entre 1810 e 1816, levaria em 1824 a própria Inglaterra a assinar pioneiros tratados de comércio com os novos países
independentes, reconhecidos já então antecipadamente pela sua antiga ex-colónia, que desde 1776 se havia afirmado como tal.
Como é que Celso Furtado viu esta temática de regime substituído, na repercussão económica de então, no seu livro “Economic
Development of Latin America : Historical Background & Contemporary Problems” (4) ? Assim, como constatação do que definiria dessa
forma como substituição do satelitismo regional imposto pela Europa colonizante, por um renovado localismo de teor autonomista sulamericano: “Para a região como um todo, contudo, os desenvolvimentos dos primeiros dois séculos da colonização foram
indubitavelmente de grande importância: o período de prosperidade permitiu a organização do espaço à volta dos pólos mineiros, que
providenciavam as bases das vice-realezas do México (Nova Espanha) e do Peru (Nova Castela): o declínio na economia mineira
conduziu ao enfraquecimento das ligações entre as regiões satélites, para o fortalecimento do localismo”.
Por essa altura, a teoria dos custos comparativos melhorada por Mill a partir das vantagens comparativas de Ricardo impunha-se,
consagrando Celso Furtado em “Introdução ao Desenvolvimento: um enfoque histórico-estrutural”, escrito em 1980 e reeditado em
2000, a razão do atraso da economia portuguesa no século XIX, face à dependência que tinha da industrialização na Inglaterra, no que
dizia respeito às trocas entre produtos agrícolas como os vinhos por produtos têxteis, favoráveis a estes últimos: “Pouca dúvida havia
de que exportando vinhos, Portugal estava ‘maximalizando’ vantagens comparativas, pois assim utilizava mais eficazmente recursos
que pouco ou nada lhe custavam. Mas por essa forma também estava Portugal optando por um processo mais lento de acumulação”,
porque por compensação de inércia e imobilismo terratenente “enveredando por um caminho em que eram bem menores as chances
de inovação técnica” (5).
Um século depois, ainda a chegada fictícia do primeiro automóvel, numa cena de “Aldeia da Roupa Branca” (1939) de Chianca de
Garcia, contrastava com a persistência dos costumes rurais de carroças puxadas por parelhas de burros, em face de uma indústria
artesanal de lavagem doméstica para a capital, coincidindo então com o crescimento da emigração para o Brasil. Mas, de facto, a
chegada do primeiro automóvel dera-se noutra região mais a sul do país e ainda no final do século XIX.
Ora, em “O Leopardo” (Il Gattopardo, 1963) de Luchino Visconti, a ideia de auto-consciencialização da existência de antagonismos e
alianças entre classes sociais, foi transmitida pela meditação de um arruinado proprietário de terras, o príncipe de Salinas, que a partir
do seu herdado lugarejo na ilha Sicília teve no entanto o sentido democrático de votar no plebiscito. Não se alheando, por isso, do
aconchego possível, mesmo quando a sociedade de então lhe parecia recusar a continuação da existência do seu mundo fossilizado.
Mundo rural aparentemente destruído pela reunificação das regiões autónomas, enquanto do outro lado do mundo não tardaria em
1861 a rebentar a Guerra da Secessão.
NOTAS:
(1) Richard Falk, “Predatory Globalization: A Critique”, Polity Press and Blackwell Publishers Ltd, Cambridge and Malden 2000 (1999),
pág. 16 in “1 – Democratizing, Internationalizing, and Globalizing: A Collage of Blurred Images – The Structure of the Global Political
Economy”.
(2) Op. Cit., Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro – São Paulo 1985, págs. 222 e 223 in “XIV – A Ceia de Natal”.
(3) Victor Duruy, “Histoire Générale : L’histoire abrégée de l’antiquité du moyen âge et des temps modernes jusqu’en 1848”, Librairie
Hachette (Septième édition), Paris 1905, págs. 560 e 561 in “LXXXIII-Progrès des idées libérales”.
(4) Op. Cit., Cambridge University Press (Second Edition), Cambridge – London – New York – Melbourne 1978 (1970, 1976), págs. 28 e
29 in “I – From the conquest to the formation of nation-states”.
(5) Op. cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro – São Paulo 2000 (1980), pág. 24 in “II – Desenvolvimento – Subdesenvolvimento :
a problemática actual”.
---------------------------------LXXIX
O escritor mexicano Carlos Fuentes, cujo romance “Old Gringo” fora adaptado ao cinema, em entrevista ao programa da BBC World
“Hard Talk Extra” a 5 de Abril de 2006, considerou que a necessidade artificiosa e maniqueista de identificar um inimigo – mesmo
quando a sua busca de descoberta se revelava como sendo finalmente inexistente – sempre fez parte do objectivo de certas nações
para justificarem e promoverem o seu próprio desenvolvimento como modelo mundial, referindo-se a título irónico ao facto da baleia
branca perseguida pelo Capitão Achab do romance de viagem marítima “Moby Dick” de Herman Melville, ser perseguida até ao oceano
Índico, depois da sua escuna ter atravessado o Cabo da Boa Esperança na África Austral em sua obsessiva perseguição.
A secretaria regional da Agricultura e Florestas aconselhou a Câmara de Santa Cruz, que permite às autarquias solicitar a colaboração
do médico veterinário da edilidade mais próxima, depois da queixa de vinte proprietários de bezerros e cabras, mas “caso persistam
algumas dificuldades em cumprir com as prioridades legalmente fixadas, deve solicitar o apoio dos Serviços da direcção regional do
Desenvolvimento Agrário” referiu-se a 29 de Março no arquipélago dos Açores.
Três dias depois, um programa matinal da RTP-2 apresentava uma reportagem decorrida na ilha Graciosa, em que se fazia eco de um
problema económico com crescente repercussão social e doméstica, visto haver delapidação das quintas de proprietários pecuários por
cães vadios, abandonados e predadores. Com efeito, como medida extrema a referida câmara de Santa Cruz na ilha Graciosa já tinha
ordem do tribunal local para que a polícia pudesse abater à queima- roupa os cães à solta que descessem à cidade, incluindo aqueles
que se tivessem solto das trelas nos quintais citadinos para ir dar um simples passeio. Como consequência, a recém formada próAssociação de Protecção aos Animais reclamava um apoio da mesma câmara para que os animais domésticos encontrados fossem
entregues ao canil camarário, que estava encerrado, por de momento não se possuir verba este ano para o pagamento de honorários
ao único veterinário estipulado.
Timor-Leste, como metade do território insular situado num arquipélago como o de Sonda, pertencente à Indonésia e na linha divisória
do oceano Índico para o Pacífico, foi objecto de uma atenção mediática escassa a propósito de uma epidemia que afectou cerca de
67% das plantações de café, distribuídas por oito dos seus distritos entre 2001 e 2003, segundo avaliou nos locais uma equipa com
experiência em quatro sítios seleccionados , que depois comunicou o seu relatório de terreno ao departamento de agricultura e florestas
de um país então recentemente independente. Em 2001 uma família timorense ganhava em média 200 dólares por ano só resultantes
da exploração comercial com a venda do café, isto é, cerca de 90% dos seus ganhos unitários totais anuais (1). Sendo também que,
nessa altura, já 45 mil famílias beneficiariam anteriormente do então considerado primeiro produto agrícola comerciável. Ocorre que é
curioso constatar, como já em 1850 uma novela holandesa descrevia - na narrativa de denúncia colonial pioneira - a exploração
desenfreada das plantações de café na ilha de Java (2).
Problemas como este, que em dado momento são decisivos para a manutenção de um país, sofrem uma menor atenção
comunicacional do que a visibilidade de conflitos étnicos e de relações flutuantes ao nível da exploração familiar com os países
vizinhos, nos casos da Indonésia e da Austrália: o primeiro por motivos de negociações fronteiriças e o segundo pelos debates
inconclusivos até então sobre o conteúdo da parceria a respeito da ulterior aprovação conjunta da exploração do petróleo; em moldes
mais democráticos para um desenvolvimento económico e social a médio prazo da pequena região insular entalada nos confins do
mundo.
Porém, a problemas que afectariam realmente os circuitos económicos entre montanha e costa marítima, entre povoações moldadas
fantasiosamente na concepção da aldeia global e cidades com carências de reconstrução, são dadas menos atenção comunicacional
embora sejam fulcrais para o crescimento mais harmonioso e o desenvolvimento imediato de um país como a República Democrática
de Timor carente ainda de apoio económico e social para se evitar maior flutuação na balança comercial anual devido a estagnação
conjuntural. Base de agravamento do estrangulamento financeiro, que permita o caos citadino e com a economia local sem mercado
nem planeamento. Paralizados meses seguidos, por vezes e à mercê de ocasionais dadores financeiros ou de empréstimos do capital
financeiro mais especulativo em fluxos imprevisíveis e descontínuos, que endividam ainda mais a já existente precariedade política das
forças produtivas, no seu arranque após o recente desgaste bélico. Que se prolongaria, assim, para além de uma autonomia ainda
aparente ao nível da infra-estrutura do seu território, nomeadamente, apesar da recente visita do director do Banco Mundial num volteface de renovado optimismo para a independência do país desde 2002.
O prémio Nobel da economia de 1992, Gary S.Becker, no seu clássico “Human Capital : A Theoretical and Empirical Analysis, with
Special Reference to Education” (3), dizia a dado passo: “Em minha opinião as mulheres avançam primeiramente por causa do seu
grande empenho na força laboral. Isto em contrapartida fora estimulado por um grande declínio na fertilidade, um rápido crescimento do
divórcio, e a crescente importância do sector de serviços. As análises do capital humano assumem que a escolarização faz crescer os
vencimentos e a produtividade principalmente por providenciarem conhecimentos, técnicas e um método para analisar problemas”.
No entanto, Celso Furtado já havia inicialmente alertado desde 1958 no seu famoso texto “Capital Formation and Economic
Development” (4), para o facto de os remédios económicos para as áreas atrasadas serem ministrados por economistas locais, que
raciocinavam apenas por analogia com base em escritos de outros economistas prestigiados, que sem no entanto conhecerem os
factos do subdesenvolvimento davam lições do exterior como se a realidade do desenvolvimento fosse igual em toda a parte. Dá-se o
caso de nessa altura se ter referenciada uma antiga crítica formulada por Celso Furtado a Ragnar Nurkse quando esse antigo
funcionário da Sociedade das Nações visitara o Brasil no início dos anos cinquenta e havia dado uma série de conferências bem
intencionadas, recomendando então um quadro genérico de aplicações para o planeamento de um país em vias de desenvolvimento
com o gigantismo do Brasil de uma gémea situação configuracional com os E.U.A..
Deste modo, para que o pensamento económico se transforme num “poderoso instrumento para a análise da realidade social como nas
outras partes do mundo o é”, necessita de um enorme trabalho prévio de investigação estatística para que deixe de fornecer
construções abstractas e tópicos sem tratamento aprofundado, como aquele que motivaria depois a atenção crítica de Celso Furtado,
como seja entre outros a relação entre a propensão para o consumo da população na percentagem da economia geral do
desenvolvimento e os efeitos de investimento na balança de pagamentos. Base axial de arrancada naquele contexto de 1958 em que o
optimismo voluntarioso prévio de um economista tão prestigiado como Ragnar Nurkse (1907-1959), serviria depois para Celso Furtado,
dois anos antes do Ano da Descolonização decretado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1960 concretizar um método
estóico de poupanças para os jovens países independentes não caírem na euforia do efeito de demonstração de Duisemberg de 1949
e deixarem para trás as economias artesanais e agrícolas, à custa de um esforço inglório de industrialização apressada e corruptora.
Celso Furtado, mais tarde, em 1983, na sua obra em inglês “Accumulation and Development : The logic of industrial civilization” (5),
dizia sem pestanejar que um dos factores que havia contribuído para o dinamismo do século XVI, relacionado com a expansão
marítima, tinha raízes na emissão de cartas de alforria (letras de crédito) criadas pelos mercadores venezianos com casas comerciais
importantes, avanço esse bastante considerável e que tinha apenas um senão mais óbvio que era o risco de insuficiência de liquidez
monetária, esta só resolvida em parte com o curso de metais preciosos posterior vindo da América para a Europa.
NOTAS:
(1) Kenneth M.Old and Caetano Dos Santos Cristóvão, “A rust epidemic of the coffee shade tree (Paraserianthes falcataria) in East
Timor”, in “Agriculture : New Directions for a new nation East Timor (Timor-Leste)”, Acciar Proceedings n.113, Workshop 1-3 October
2002, Dili, Australian Centre for International Agricultural Research, pág. 139.
(2) Grert Hofstede, “Uncommon Sense About Organizations : Cases. Studies, and Field Observations”, Sage Publications, Thousand
Oaks – London – New Delhi 1994, pág. 228 in “12. Case Study : Angola Coffee. Notes: 6.”.
(3) Op. cit., The University of Chicago Press (Third Edition), Chicago and London 1993 (1964), pág.19 in “II – Human Capital Revisited.
2-Education and training”.
(4) Op. cit., in “The Economics of Underdevelopment”, edited by A.N.Agarwala and S.P.Singh, Oxford University Press, London – Oxford
– New York 1971 (1958, 1963), págs. 309 e 310.
(5) Op. cit., Martin Robertson, Oxford, pág. 147 in “VII – A retrospective view”.
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXX)
Max Weber sempre foi uma referência autoral importante na panóplia de noções, conceitos e categorias de Celso Furtado, nomeadamente a respeito do planeamento
económico, quando aquele apesar de tudo erguera o seu estatuto sociológico decisivo até 1920, data do seu falecimento e do nascimento do seu
admirador
Manuel Carvalheiro
Adolf Loos, a partir de 1923, em Viena, participou no chamado “plano de construção popular económica”, que em
1927 se debruçaria sobre a “apologia de construções para minorar os efeitos da ‘macroscópica pobreza do
habitat’”, construindo-se desse modo os Hof, isto é, “super-quarteirões” à volta de pátios (1).
Em “La Roue” (1922) de Abel Gance, um ferroviário gostava da sua filha adoptiva Norma, mas ela tinha sido
destinada a ser casada com um engenheiro, que no entanto tem como rival o próprio filho daquele que a havia
outrora salvo de uma catástrofe ferroviária. Entretanto, o ferroviário ficaria cego devido a um jacto de vapor,
enquanto o filho se havia batido em duelo com o engenheiro. Fazendo isso com que deste modo Norma venha a
mudar de ideias e volte para cuidar do seu velho salvador, agora adjudicado a trabalhar temporariamente como
inválido num ascensor no Monte Branco, na Suiça.
É neste quadro verista e miserabilista, que o melodrama e a mobilidade do emprego encontram - no caso particular da caridade e do
dote - a referência ao tempo pré-capitalista, em que no comércio artesanal de então prevaleciam como valores sobre a própria troca de
mercadorias (e sua eventual inutilidade humana, em caso de devolução), sem direito a mais do que uma pensão de invalidez precária.
Max Weber sempre foi uma referência autoral importante na panóplia de noções, conceitos e categorias de Celso Furtado,
nomeadamente a respeito do planeamento económico, quando aquele apesar de tudo erguera o seu estatuto sociológico decisivo até
1920, data do seu falecimento e do nascimento do seu admirador. Urge então referenciar a noção de economia de planeamento, em
contraste ou complementaridade com a economia de mercado na Alemanha de Weimar, após as consequências catastróficas do final
da I Grande Guerra e a influência da revolução russa.
A ideia de negociação entre cartéis e organizações laborais, a propósito dos preços efectivos, inunda a concepção de Max Weber, a
propósito de qualquer sistema económico cuja actividade é orientada para fazer lucros, independentemente se essa administração está
a soldo dos grupos corporativos ou do interesse público no Estado.
Neste aspecto, a economia planificada entendida por Max Weber, ao contrário do que o ministro Neurath de um governo de então
propunha com a rigidez prussiana de um burocrata feudalizante, existe no sentido de orientar o fornecimento de bens subjacente ao
desejo de satisfação da população. Sendo por isso um sistema de racionalidade para erguer a vontade do trabalhador quanto à sua
falta de eficiência na produção, visto que este está enfraquecido pela sua falta de apoio ao desejo de consumo e a sua dependência
pela satisfação em não ter incentivos para trabalhar na prossecução última da provisão de bens. Mas que agora com “a experiência
económica da guerra esta havia dado novo impulso à ideia de uma economia racionalmente planificada, mas simultaneamente ao
desenvolvimento de interesses em apropriação” (2), como contraste ao problema do açambarcamento de mercadorias e bens, com
benefícios para especuladores assentes em intermediários entre os camponeses na colheita e os comerciantes na distribuição, arcando
benefícios incomensuráveis.
Max Weber mostra-se reticente em tomar uma posição definitiva quanto a se uma economia mais ou menos planificada deva ser
introduzida no quadro da herança de uma economia de mercado livre como a da Alemanha sua contemporânea da luta entre facções
como consequência das opiniões díspares sobre a guerra e as suas consequências de desorganização ulterior da sociedade. Pelo
contrário, o que Weber acha ser mais estritamente do domínio científico é a interrogação sobre as consequências e os resultados
práticos e o que será evitável ou indesejável fazer se se optar quer pelo planeamento da produção, mais conforme à herança de Marx e
Prudhon, quer pelo planeamento da distribuição mais conforme à sua actualização por Plekhanov e Lenine ou o que se quiser então
chamar como tal. Diz Weber nesse final contexto de 1920, que os detalhes do problema do planeamento não são possíveis de se
delinear na íntegra, porque embora se conheçam honestamente alguns dos factores, muitos dos que seriam mais importantes são
apenas ainda parcialmente compreendidos. Por isso, chegar a resultados conclusivos a este respeito é ainda concretamente
precipitado. Sendo que só um caminho fragmentário nos permite ligá-los às formas dominantes dos grupos corporativos. Só é possível,
portanto, naquele contexto, introduzir brevemente “os mais elementares aspectos do problema técnico”, porque “o fenómeno de uma
economia de mercado regulada, pelas razões indicadas antes, ainda não foi abordado com realce”.
O filme de Marcel L’Herbier, “L’Argent” (1928), repousa sobre uma época de escândalo bolsista iminente, com a fuga de um aventureiro
aviador para a Guiana onde faz fortuna à custa da ideia de que lá existiam poços de petróleo, mas que é salvo da prisão por um outro
banqueiro, parecendo mais devedor à influência de Thomas Mann e das suas circunvoluções dramáticas sobre o mundo da alta finança
especulativa da época.
Ora, segundo Eric Hobsbawm em “A Era dos Extremos: história breve do século XX (1914-1991)”, o planeamento e a iniciativa de
Estado no Médio Oriente, por exemplo, “tendia a depender menos da empresa privada directa e mais de grupos empresarias
favorecidos dominados pelo controle do governo sobre o crédito e o investimento, mas a dependência do desenvolvimento económico
em relação ao Estado era a mesma” (3).
Celso Furtado noutro contexto, em “Raíses do Subdesenvolvimento”, livro de 1973 revisto em 2003, trinta anos depois portanto, referiase ao facto de que “técnicas de planejamento convencionais destinadas a solucionar os problemas específicos das economias
avançadas tornaram-se insuficientes” (4). Mais adiante é liminar: “A ilusão de que com o aperfeiçoamento das técnicas de planejamento
tudo podia ser previsto se desfez. Descobriu-se o que nunca devia ter se esquecido: a criatividade humana desempenha papel
fundamental na evolução das sociedades”. Mas especifica, com algum retroactivo não passivo na experiência da economia planeada:
“Por último, a experiência recente da China vem demonstrar que os recursos da técnica de planejamento podem ser empregados
independentemente da centralização política das decisões estratégicas”.
“Os americanos podem bem ter sido os libertadores da Europa e modelos de modernidade”, mas tendo em conta o dilema do
excepcionalismo cultural francês, “contudo desde a presidência de De Gaulle com a controvérsia sobre o Euro Disney, as importações
americanas culturais têm sido ainda ambivalorizadas” (5).
NOTAS:
(1) Charles Delfante, “A Grande História da Cidade : Da Mesopotâmia aos Estados Unidos”, Instituto Piaget, Lisboa 2000 (Armand
Colin, Paris 1997), págs. 318 a 320 in “IV. Os conjuntos. Viena : o Karl Marx Hof”.
(2) Max Weber, “The Theory of Social and Economic Organization”, The Free Press, New York 1997, págs. 214, 216 e 217 in “14.
Market Economies and Planned Economies”.
(3) Op. cit., Editorial Presença, Lisboa 1996 (1994), págs. 345 e 346 in “12 - O Terceiro Mundo”.
(4) Op. Cit., Civilização Brasileira/Distribuidora Record, Rio de Janeiro 2003, págs. 27 e 28 in “I – O Mito da Guerra Fria. 2. O caso de
uma estratégia”.
(5) Richard Whittington and Michael Mayer, “The European Corporation : strategy, structure and Social Science”, Oxford University
Press, Oxfortd 2002 (2000), pág. 164 in “6.2. National context and Organizational Structure”.
----------------------------------LXXXI
Em 1991 o algodão como cultura industrial no Egipto havia diminuído os seus terrenos de cultivo em cerca de 36,6% da sua superfície
desde 1975 (1). O que é impressionante como característica em relação ao seu predomínio mundial desde a Guerra da Secessão nos
Estados Unidos da América entre 1861 e 1865, época em que este país deixara de produzir praticamente algodão devido à guerra civil
entre Norte e Sul.
Sendo que nesta última região predominava o esclavagismo, como se poderia detectar de certa forma nos vestígios culturais do
período da crise económica da Grande Depressão nos E.U.A., como num filme totalmente rodado com intérpretes afro-americanos mas
dirigido por um cineasta texano apologista do diálogo pioneiro da ciência com o cristianismo num tempo de iconoclastia, linchamentos e
xenofobia durante a viragem do cinema mudo para o sonoro, como seria revelador e inédito até essa época, nas cenas de ritmos
musicais de trabalho em “Hallellujah!” (1930) de King Vidor, em que as plantações de algodão continuavam a ser a base de inspiração
para cenas com a evocação coreográfica dos “blues” e do divertimento em Nova Orleães, numa intriga dramática de paixão, jogo e
prostituição. Conflituando-se as posições de afro-americanos, propensos ao integracionismo, com aqueles dos seus conterrâneos mais
propícios à revolta latente, face ao segregacionismo persistente nos estados americanos do Sul até pelo menos 1964, data da entrada
em vigor da lei da igualdade dos direitos cívicos.
Entretanto, o Egipto em 1997 passara a ser o 11º produtor e exportador mundial de algodão, revelando uma crise estrutural neste
sector agrícola, apesar dos “projectos faraónicos” ou como tal ditos (2) dos governos respectivos de então para recuperar terras aráveis
apesar do ciclo de secas e da falta de madeira devido à desertificação do país, ao ponto que com a redução das terras cultiváveis essa
desclassificação desde o lugar de primeiro produtor mundial de algodão se acentuara num século.
Em “O Faraó” (1966) de Jerzy Kawalerowicz, uma cena sumptuosa a preto e branco revela-nos o âmago da opressão física consentida
pelos escravos que conduzem aos ombros a cadeira do entronado enquanto se ouve a respiração ofegante do esforço produzido pelo
transporte humano de dinastias milenares, quando só se vê no final a figura dos escravos ao poisarem na corte o descendente de uma
divindade egípcia em ritual igual e monótono de uma realidade aparentemente imutável na noite dos séculos de exploração do homem
pelo homem. Já “Terra de Faraós” (1954) de Howard Hawks, conseguira reconstituir as intrigas de uma sociedade nos alvores da
humanidade através da arquitectura e do esforço de construção de uma pirâmide em pleno deserto, dando ênfase à racionalidade da
geometria como reflexo do problema agrário antigo.
Segundo um relatório como “Investment Policy Review – Egypt”, a principal vantagem competitiva estratégica deste país árabe e norteafricano é o “abundante abastecimento de mão-de-obra barata” (3) para a indústria têxtil sobretudo que predominava em 1999 mas
proveniente constantemente desde há mais de um século de tradição aperfeiçoada, sendo que existe uma mão-de-obra qualificada
disponível para ser integrada como activos para qualquer investimento exterior, sobretudo na área de produção comerciável do
vestuário para homens e crianças.
Sendo que das 925 firmas operando então nesta mesma área privilegiada e até àquela data, só 31 delas eram empresas públicas,
embora já houvesse um decréscimo no consumo de algodão de plantação a favor de um acréscimo da produção de fibras sintéticas. É
dito também então no referido relatório da UNCTAD de investimentos estrangeiros no Egipto a respeito do fundamentalmente da
indústria têxtil e do vestuário à base de algodão, o seguinte: “Reportando-se, a maioria das empresas de algodão não são lucrativas. As
suas perdas porém são absorvidas pelo Governo para evitar o despedimento de trabalhadores e sobrecarregar o mercado de trabalho.
Não obstante, uma proporção crescente do sector de manufactura do algodão está sendo privatizada; e os novos proprietários estão a
racionalizar a produção pela redução da força de trabalho e actualização ou valorização da carteira de maquinarias para encontrar
padrões de qualidade e eficiência”.
Mas outros países em desenvolvimento ou ditos emergentes como a Tailândia, também têm gargalos apertados que asfixiam o
desenvolvimento tecnológico das respectivas capacidades de aumento de produtividade nestes sectores, que incluem também as fibras
sintéticas para “airbags” na indústria automóvel e equipamento de desporto na indústria sanitária e de divertimento.
Kindleberger estudou a assimetria entre parceiros, que Harrod como britânico atribuía ao invés do norte-americano às taxas
alfandegárias americanas altas e à supervalorização do dólar em relação ao ouro. Mas aquele constatou que o mecanismo que
vitimizava os então países subdesenvolvidos na década de cinquenta numa conjuntura sempre desfavorável em todas as fases da
economia americana nas relações económicas internacionais era semelhante porém aos dos efeitos na variação da renda nacional
relacionada esta com o desmoronamento das exportações.
Mau grado qualquer recessão pequena que fosse, em coexistência cíclica no centro mercantil da economia de mercado após a II
Guerra Mundial. E em que o primeiro sinal era dado, não com apenas as rendas médias nacionais dos países da periferia latinoamericana - como dizia o argentino Prebisch a propósito dos défices nas balanças comerciais dos países de economia dependente e
dominada pelo centro capitalista de então -, mas com a própria Europa (liberta já do Plano Marshall e da sua reconversão no Tratado
de Roma em 1957, dos seis países da Comunidade Europeia, dependentes dos E.U.A.) e da derrocada correlativa dos países
subdesenvolvidos, ou timidamente então em vias de desenvolvimento (4).
Os dois primeiros parágrafos do manifesto de lançamento de um centro na Finlândia, dedicado às políticas de desenvolvimento
inspiradas na experiência e nos trinta anos de exercício internacional de Celso Furtado, repetem de certa forma um problema pouco
avançado na prática no início do século XXI, devido a características de retrocesso em muitos aspectos do relacionamento entre as
nações, a propósito da riqueza das mesmas sonegadas por incongruências de poder enfático na condução democrática respectiva: “1.
Nas últimas décadas, a visão dominante decretou a morte dos projectos nacionais de desenvolvimento e entregou o destino dos povos
da periferia do capitalismo às incertezas e azares das forças de mercado, sem considerar a história, as peculiaridades e as urgências
de cada sociedade. 2. No âmbito internacional e no interior dos Estados nacionais, entrou em declínio o prestígio das estratégias de
longo prazo – executadas de forma imperfeita e parcial nos “trinta anos gloriosos” do pós-guerra – que se apoiavam na acção soberana
dos governos e na coordenação de instituições multilaterais” (5). O pragmatismo ortográfico é pelo menos uma referência de
entendimento cultural local, entre países que embora de continentes diferentes quanto a integração têm porém referências atractivas na
sua evolução mais recente na última década.
NOTAS:
(1) Tahani Abdel Hakim, Mohamed Aboumandour, “Le secteur agricole et ses perspectives à l’horizon 2000 – Égypte”, Commission des
Communautés Européennes, Bruxelles-Luxembourg 1993, págs. 38 e 39 in “2-Les Cultures Industrielles. 2.1. Le Coton”.
(2) Bertrand Clare et Dominique Thiébaut, “Atlaséco 2000 – Atlas économique mondial”, Les guides ‘Le Nouvel Observateur’, Paris
1999, págs. 62 e 63 in “Égypt”.
(3) Op. cit., United Nations Conference on Trade and Development, New York- Geneva 1999, pág. 66 in “Coton spinning and weaving”.
(4) Samir Amin, “O Desenvolvimento Desigual – Ensaio sobre as Formações Sociais do Capitalismo Periférico”, Forense Universitária
(Éditions de Minuit, Paris 1973), Rio de Janeiro 1976, págs. 217 e 218 in “A assimetria nas relações internacionais: as explicações
correntes”.
(5) “Centro Internacional Celso Furtado para as Políticas de Desenvolvimento”, Conferência de Helsínquia, 7 a 9 de Setembro de 2005.
1º de maio de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXXII)
Manuel Carvalheiro
Eric Von Stroheim, em “Greed” (1924), colocou no genérico caligraficamente em itálico agora restaurado numa
cópia recente, como sendo um filme “pessoalmente dirigido por” (personally directed by) ele e baseado num
drama adaptado de um pesquisador de ouro em 1908 na Califórnia, que se transformaria como “Doc” McTeague
em personagem à míngua de água sem ter beneficiado das moedas de ouro que anunciariam o tempo ulterior em
que o local de perdição seria o outro lado da fronteira. Vilgot Sjoman foi contemplado três dias após a sua morte
recente, já com mais de oitenta anos em Abril de 2006, com uma sentença favorável por parte do Tribunal
Supremo da Suécia, em inédita jurisprudência, apesar da existência prévia local da lei da rádio e da televisão
desde 2002. E que lhe dava razão em relação à queixa que fizera contra uma estação de televisão privada, que
interrompera com cortes a projecção de um dos seus filmes, para exibição abusiva de blocos publicitários sem
acordo prévio com a sua entidade representativa. De notar, que um problema de abuso aos consumidores
audiovisuais fora tratado em 1988 no Ano Europeu da Televisão e Cinema por Federico Fellini, que conseguira antes alertar para
idêntico problema nas estações públicas.
Só no primeiro fim-de-semana na Alemanha, após a estreia retumbante de um filme de ficção que custara na época cerca de cinco
milhões de dólares, obteve então trezentas mil entradas no circuito de salas em centros comerciais com supermercados, como seja “A
Casa dos Espíritos” (1994) de Bille August, um realizador dinamarquês subsidiado pelo Eurimages do Conselho da Europa, em que
uma das cenas nos remetia para a evocação representando a ocupação e tomada da Assembleia da República em Santiago do Chile
em 1973 pelas forças militares. Mas que, de facto, por um processo de homogeneização globalizante, havia recorrido às semelhanças
arquitectónicas com a de Lisboa, para o simulacro da sequência trágica de evocação histórica, segundo o romance adaptado do
mesmo título, num exemplo de democracia disfuncional por conveniência de representação artística.
O que também gerou, na época, por outros motivos assimétricos testemunhos dos parlamentares locais de então, a respeito da
utilização considerada deselegante do urbanismo similar, cujo edifício referente estava localizado noutro continente e portanto com
outro peso político e histórico. Contra o que consideraram alguns como assédio cultural de um imaginário europeu, que havia sido
assimilado por simplificação face à dificuldade de filmar nos locais reais. Tendo também em conta que, em 1973, eram contudo ambos
os edifícios, tanto o suposto como o seu referente, de ditaduras personalizadas diferentemente na história económica, social e política,
tanto da América Latina como da Europa ocidental. Essa crispação no entanto ficaria por aí e sem maior susceptibilidade para além de
uma opinião de desconforto que os consumidores locais não fizeram caso como veículo de opinião pública consciente do desagravo
pretendido. A co-produção entre realizador e o seu espectador, já que modernamente segundo Christian Metz a representação,
expressão e significação de uma obra como texto não se pode reduzir ao que apenas se olha mas também ao que se imagina,
sarcasmo à questão do ensino ministrado - por entediantes tribos de professores de arte (1) -, como assinalaram pesquisadores
ulteriores da clivagem entre o sentir e o exprimir num simples quadro ou enquadramento, dado como inanimado é certo e apenas em
movimento simbólico.
“Em vez do marxismo, que identifica produção económica e o seu paralelo de social de relações de produção, o pós-modernismo
focaliza-se sobre relações de produção, o pós-modernismo focaliza-se sobre padrões de consumo como abastecedores das nossas
identidades. As distinções das relações de classe baseadas nas relações sócio-económicas são subscritas pelo consumo” (2), em que
cultura e sociedade perdem momentaneamente a linha divisória supostamente anterior, atendendo à evolução para um maior
igualitarismo conjuntural de género na confrontação imaginária entre representantes da maternidade e da paternidade como totalidade
incompleta em prospecção de um ideário mais sensível às diferenças de pontos de vista e à produção de textos reflexivos sobre a autosuficiência do simulacro de realidade que é dessacralizada e vulgarizada com a imagem que se constrói no ápice do evento como tal.
Muitos filmes de ficção que entram no mercado, têm por vezes duas equipas por as suas filmagens ultrapassarem fronteiras
geográficas e, por economia de produção, sujeitas a um planeamento de execução com trabalhos parciais decorridos em simultâneo
por poupança que se repercute depois na receptividade consumista.
Oito segundos durou uma curta cena decorrida na Sociedade de Geografia de Lisboa, a propósito da recepção ao resultado de um
processo eleitoral narrado no filme de autoria dinamarquesa, quando na realidade o seu trabalho levara várias horas de um mesmo dia
de produção e fabricação local do cenário proposto e transformado pela necessidade histórica disfuncionalizada, prática corrente em
outros países. Um filme de Jean Negulesco, “The Conspirators” (1944), toma bairros folclóricos de Lisboa antes do final da II Guerra
Mundial como locais de transacções sombrias e expressivas sobre o processo histórico e no entanto no seu contraste a preto e branco
permaneceu invisível pelo público local da sua própria época narrada, até ser redescoberto sessenta anos depois e exibido na televisão
de cabo, concepção liberal que então ilusoriamente seria pressupostamente atribuída ao seu neutralismo de então.
O burocratismo imobilista que o estado imobilista de então que o estado corporativo de então asfixiava socialmente foi revelado numa
cena das duas mini-séries dos “Anos de Guerra” (The Winds of War, 1983; War and Remembrance, 1988) de Dan Curtis (1927-2006),
quando a propósito da saga do fictício comandante naval Victor Henry (interpretado pelo actor Robert Mitchum), amigo pessoal do
presidente Roosevelt, para se obter um visto de trânsito era necessário um processo administrativo cujas duplicatas, rubricas e
carimbos serviam de pretexto para cobrar taxas e impostos, a que nem favores nem gorjetas conseguiam sobrepor-se como curtocircuito imobilista ao funcionamento de uma sociedade oligarquizante. De notar que no filme “Harry Potter, a câmara dos segredos”
(2002) de Chris Columbus, inspirado na novela de J.K.Rowlings, uma escritora que havia vivido no Porto antes de 1992 como
professora de inglês, o único dos quatro professores que procediam à escolha de alunos e simultaneamente a ter acesso à chave como
privilégio de feitiçaria do colégio milenar de Hogwarts chamava-se homonimamente Salazar e era alegadamente pela selecção dos
alunos através da teoria do sangue puro. É preciso voltar atrás à sociedade comercial da reunificação do mercado interno de três
séculos atrás em França para se encontrar talvez a raiz da dependência portuguesa no tempo imediatamente posterior a Richelieu e
Mazarin, após o final da ocupação espanhola no século XVII: “Pode-se muito bem ironizar sobre a regulamentação prolífera e tacteante:
o regulamento para os panos de Amiens não conta muito menos do que 248 artigos” (3).
Entretanto, a autonomia da capacidade de acção permaneceria durante quase meio século afastada dos actores sociais já por
conseguinte muito mais libertos de uma concepção determinista da economia, tal como se havia verificado na concepção do Estado
sobretudo no Chile, mas podendo-se generalizar então a toda a América Latina como forma distinta e longínqua daquela que vigorou
na Europa da segunda metade do século XX, incluindo as ex- democracias populares (4). O sistema entra em colapso quando, devido
à globalização do que Celso Furtado considerava como “imperativo tecnológico” (5), uma parte substancial da população activa não
veria garantidos os seus padrões mínimos de consumo e não teria então havido um aumento correlativo daquela com acesso a novos,
gerando desemprego como dois séculos antes no início da revolução industrial. Caricatamente, na cena decorrida no antigo Texas Bar,
no Cais do Sodré em Lisboa, em “O Estado das Coisas” (1982) de Wim Wenders, a personagem interpretada pelo realizador Samuel
Fuller apela a que o figurante empregado mate o seu irmão, numa vulgaridade naturalista que funcionou apesar de tudo como
referência bíblica de ocasião.
Notas:
(1) Michael Baldwin, Charles Harrison and Mel Ramsden, “Art History, Art Criticism and Explanation” (1981), in “Art history and its
methods: a critical anthology”, Eric Fernie, Phaidon Press Limited, Hong-Kong 1996 (1995), pág. 266 a 268 in “Expression”.
(2) Marsha Jones and Emma Jones, “Mass Media”, The skills – Based Sociology, MacMillan, England 1999, pág. 74.
(3) Philippe Minard, “La fortune du colbertisme: État et industrie dans la France des Lumières”, Fayard 1997, pág. 18 in “Le ‘colbértisme’
ramené à sa juste mesure”.
(4) Alain Touraine, “Latin America: Amidst Melancholic Discourse and the Voluntarist Construction of the Future”, International Forum on
the Social Science – Policy Nexus (IFSP), UNESCO, working paper.
(5) Celso Furtado, “El Nuevo Capitalismo”, Revista de la CEPAL, n.17-20 Extraordinario, Naciones Unidas, Santiago 1998.
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Marcel Liebman na sua preciosa obra sintética e inovadora comemorativa do cinquentenário, “La révolution russe: origines, étapes et
signification de la victoire bolchévique” (1), deu-nos um retrato conciso do agravamento da situação social e económica durante a
Primavera de 1917, logo a seguir ao derrubamento do tsar Nicolau II por uma manifestação de mulheres, depois de soldados saídos da
frente e de operários dos arrabaldes de S.Petersburgo a 22 de Fevereiro se terem solidarizado.
Com efeito, ainda antes da chegada de Lenin, oriundo da Suiça em Abril, o governo provisório tomou posse, por deliberação do soviete
de Petrogrado. A ração do pão, fixada pelo racionamento anterior com 9 milhões de soldados na frente de combate da I Grande Guerra,
era então de uma libra por dia e por habitante. Mas, passaria em breve a ¾ de libra e, logo depois, para ½ libra por dia e também por
habitante, tanto em Petrogrado como já em Moscovo.
Enquanto, na sua generalidade, por consequência, dobravam os preços dos produtos alimentícios, nessa agitada Primavera em que o
mercado negro cada vez se abastecia mais em paralelo daquilo que não existia normalmente no comércio habitual. Ora, entre o
princípio e o final do ano de 1917, passou-se de 9 biliões de rublos em circulação monetária para 19 biliões, dobrando-se a circulação
financeira em curso corrente monetário devido à crescente inflação galopante e à escassez de produtos à venda.
Revelando, deste modo, uma atmosfera propícia ao que se iria seguir, como alívio de uma tensão que ultrapassara todas as previsões
até então conhecidas socialmente no tecido urbano na Europa em que por outro lado um filme como “Vermelhos e Brancos” (1967) de
Miklos Jancso, revelaria os constantes volte-faces em coreografia guerreira a preto e branco e projectado em grande ecrã numa
silenciosa coprodução hungaro-soviética reconstituíndo a epopeia da revolução e da contra-revolução ao nível da guerra civil nos
campos. Ficção entranhada na questão da deserção dos soldados da frente de combate com a Alemanha e da sua aderência aos
destacamentos improvisados de operários mal armados e de camponeses expoliados em deriva, face aos exércitos brancos de
Denikine apoiados pelas forças da Entente, França, Inglaterra, Checoslováquia e E.U.A..
Em 1967, Alexander Werth interrogava-se se existia de um ponto de vista económico um sistema de classes, em que os operários não
especializados ganhavam apenas setenta ou oitenta rublos, com o rublo equiparado então ao dólar, sem se dizer se por mês (2).
Enquanto a diferenciação aceite por toda a gente em termos de mérito, apontava para escritores muito lidos com casas de férias, tal
como no filme “Thema” (1979) de Gleb Panfilov, que obteria o Urso de Ouro do Festival de Berlim de 1987, para também cientistas
milionários tal como o vemos talvez em “Monólogo” (1972) de Ilya Averbakh e por que não industriais de primeira classe, com um
rendimento para o Estado à parte, como talvez nem apareçam em “A gratificação” (1974) de Serguei Mikaelian, quando o plano da
empresa havia sido inicialmente recusado e por isso no final, o assistente de operário recusa a gratificação de cerca de quarenta rublos.
Por lhe terem feito perder mais de dez vezes em penalizações anteriores, quando a direcção da sua firma receberia depois como
prémio uma quantia importante mas inferior à pedida no início aos responsáveis do plano. Demonstrando-se que a economia já
patinava mais do que as expectativas, apesar do controlo estatal se exercer mais por de cima do que por baixo, base da implosão
posterior sobretudo a partir de 1987.
O que fizera com que Nikita Krutchev dissesse, havia poucos anos antes, talvez entre 1957 e 1964 (provavelmente em 1959, após a
sua visita retumbante aos E.U.A.), que a geração dos seus filhos haveria de viver dali a vinte anos integrada – mesmo esse sonho entre
1985 e 1987, ruiu rapidamente conduzindo à crise de 1989-91, com a desagregação do estatuto iniciado em 1922/23 -, apesar das
pessoas que então viviam de comércio, por terem uma instrução só compensada por cursos nocturnos ou por correspondência, se
sentirem cidadãos de segunda classe, sem possibilidades de terem um carro de quatro mil rublos com mais facilidade, embora este
pudesse ser vendido no estrangeiro por 1/5 do seu valor em dólares.
Por essa altura, Kira Muratova realizava “Breves encontros” (1967), com uma visita a Odessa de um par amoroso, ela funcionária de
uma câmara que se ocupa do alojamento e dos que constroem habitações populares, sendo encarregada de verificar o acesso das
águas aos novos apartamentos em distribuição. Conhecendo um geólogo por quem se apaixona, mas que desconhece ter em casa
dela uma nova empregada que fora antes amante dele. Na mesma época, a Bulgária apresentava o filme de fricção existencial de
Ostrovsky e Stroianov, “Separação” (Side track/Écart, 1967), também ainda a preto e branco, com a problemática do “stress” da vida
quotidiana durante um trajecto de automóvel entre um arquitecto paisagista e uma arqueóloga que rememoram na auto-estrada a sua
juventude quinze anos antes, durante um período curto de dispensa de trabalho de escritório em Sofia. Com o apaixonar de um par
revelando a arquitectónica existencial, semelhante como um espelho à sociedade civil de então, numa Europa citadina com maior
ausência ou não de trânsito rodoviário.
Ievsei Liberman, um economista russo que contextualizara então em “A Reforma económica soviética” (3), pretendendo então voltar à
ideia de “responsabilidade económica” e de “incentivos materiais individuais para os trabalhadores”, tendo como bases “a lei do valor e
das relações moeda- mercadoria”, mas “integrada no esquema de proporções” e de “taxas fixadas adentro do plano económico geral”,
para evitar a outra lei do valor que agia espontaneamente no mercado livre e soberano com crises anárquicas de produção,
desemprego e depressões com os meios de produção na posse de sectores privados, polarizando a riqueza e a pobreza. Mas a lei do
valor apesar de gerar lucro numa sociedade que a inclua no seu plano económico, os seus “superavits” em vez de beneficiarem só os
empresários ajudam também as pessoas que trabalham na empresa com vista a satisfazerem as necessidades de consumo público.
A fase anterior da sociedade russa atravessara um longo período em que a sua economia por não ter tido antes financiamentos nem
créditos estrangeiros a longo prazo, viu-se assim “obrigada a reduzir o consumo de todos os recursos”, então disponíveis na sociedade
sem classes desde 1935 oficialmente. Pois, ao não ir-se por essa altura ao encontro da lei do valor numa nova situação histórica
favorável ao desenvolvimento económico e ao crescimento harmonioso do “princípio da troca equivalente entre centros urbanos e
rurais”, por via da marcha forçada da industrialização e da colectivização anteriores, para além dos problemas suplementares da
destruição causada pela guerra mundial terminada pela vitória e da sua reconstrução a seguir que centralizou racionamentos e
enormes investimentos em infra-estruturas. Mas esse altruísmo e voluntarismo da população russa foi demasiado esticado no tempo,
porque não podiam mais ser “um progresso maciço diário e contínuo na esfera da produção, distribuição e comércio”.
Mas a crescente deterioração da qualidade das mercadorias, acarretando a insuficiente qualidade de vida e propriedade individual dos
empregados e trabalhadores, foi reflexo de uma substituição não conseguida de menos burocracia com o cancelamento de excessivas
autorizações administrativas por meio de estímulos económicos às fábricas privilegiadas e não tanto prioritárias, cuja gestão
desmazelou a utilização dos activos fixos em “desproporções desoladoras”.
Deste modo, um novo sistema de planeamento com incentivos porém havia agora levado 704 empresas com dois milhões de
empregados, constituindo estes últimos mais de 10% dos do total de empresas consideradas da indústria soviética de então a obter em
1966 um ganho superior a 10% no volume de vendas, quando o volume da produção nessa indústria havia apenas crescido 8,6 %
porque não adoptara a lei do valor em sistema socialista fortalecido e com tendências já à estagnação. P.Nikitin em 1964/5 no seu livro
“Fundamentos de Economia Política” (4), publicado na transição de Krutchev para Kossyguine, estabelecia um longo prazo de
estimativas de 1960 para 1980 assentes no plano gizado a pensar na cibernética, na automação e... na conclusão da electrificação, que
datava ainda desde quarenta anos atrás: “Em vinte anos a produção de carvão da URSS aumentará 2,3 a 2,4 vezes, petróleo 4,7 a 4,8
vezes e gás 14,4 a 15,2 vezes”.
Celso Furtado em 1963 dera uma apreciação sobre os custos administrativos que a implementação demasiado forçada da
colectivização dos campos na Rússia dos primeiros planos quinquenais provocara ao secundar uma industrialização que retirara este
país do seu subdesenvolvimento para ser incluído num desenvolvimento em que a teoria económica vigente atribuiria ao sacrifício uma
contrapartida da punição tendencialmente individualista dos camponeses e da propriedade rural não latifundiária.
Complicando, por várias décadas, o problema da distribuição entre cidade e campo ou entre estatuto urbano e desorganização rural
subestimada, quando escreveu uma estimativa político-económica, intitulada “Brazil: What kind of revolution?”, baseada no seu ensaio
de 1962, “A Pré-Revolução Brasileira”, aquando do seu tributo ao Plano Trienal de luta contra a inflação e de proposta de
desenvolvimento a prazo, contornando experiências de economia centralizada anteriores (5).
Notas:
(1) Op. cit., Marabout Université n.136, Éditions Gérard & Co, Verviers 1967, págs. 157 a 162 in “V-Orages du printemps”.
(2) Alexander Werth, “Cinquenta anos depois – A União Soviética em 1967, ano do jubileu”, The New Statesman 29/9/1967, in “URSS50 anos depois”, Cadernos D.Quixote n.12, Publicações Dom Quixote, Lisboa 1969, págs. 36 a 38 in “Haverá algum sistema soviético
de classes ?”.
(3) Op. Cit., in Foreign Affairs, October 1967, in “URSS-50 anos depois”, Cadernos D.Quixote n.12, Publicações Dom Quixote, Lisboa
1969, págs. 63 a 70.
(4) Op. cit., Colecção Perspectivas do Homem n.24, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1967 (1964, edição inglesa), pág. 388.
(5) Op. cit., Foreign Affairs-An American Quarterly Review, Vol.41/n.3-April, New York 1963, pág. 530.
8 de maio de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXXIIIV)
Manuel Carvalheiro
“Un soir, un train” (1968) de André Delvaux deu-nos a atmosfera de rotina nocturna do dia-a-dia comunitário nas
invisíveis fronteiras linguísticas de uma Bélgica subtilmente dividida pelas culturas flamenga e valónica, durante
uma época em que o sector dos serviços e das profissões liberais representaram, nos seus tempos livres após o
emprego entre duas cidades próximas, a consciência crítica do burocratismo existencial da vida moderna: com o
cansaço, a falta de imaginação, o desassossego sentimental, o uso e abuso do telefone e dos encontros de
trabalho do escritório, como ideia sem meta da existência frustrada pelos dias promissores, após a fase enérgica
de reconstrução industrial no pós- II Guerra Mundial. Tanto como uma reconstituição da evolução sócio-política da
Holanda, em “O Assalto” (De Aanslag, 1986) de Fons Rademaker, pelo labirinto do cruzar de episódios individuais
e de volte-faces perante a história sórdida da II Guerra Mundial, depois durante a época de neutralidade face aos
blocos e ao crescente belicismo anti-económico, até à construção de diques e de barragens, os “polders”, que
alargaram face ao mar o território de canais, de rios e de lagos, ligando-os de forma a produzirem maior riqueza para um país com
características especiais no continente europeu pela génese da revolução industrial no seu espaço recém-independente da então
Espanha do século XVII.
De resto, um dos filmes mais interessantes de Jean Rouch, “Madame l’Eau” (1992), retoma em jeito de reportagem como no “cinéma
vérité” de trinta anos antes o inquérito ao processo do acto inédito de transportar um enorme moinho holandês para as margens do rio
Niger e a sua adaptação ao ecossistema africano, numa comédia de costumes em que o civilizado e o bárbaro perdem fronteiras
técnicas e ganham conhecimentos recíprocos sobre culturas ancestrais, perante a pose eurocentrista involuntária diante da bola de
cristal da mundialização sem sentido interdito.
Celso Furtado teceu algumas considerações interessantes sobre a questão da unidade europeia, esclarecendo que o egoísmo atribuído
por ele em dado momento à gestão financeira da Comunidade Europeia em 1987, quando ocupava o lugar de representante do Brasil
em Bruxelas não correspondia de todo àquilo que depois teceu com ajuizado valor em defesa de um individualismo soberano doze
anos depois em 1999: “O egoísmo permanece, pois é normal que os países cuidem primeiro dos seus próprios interesses. Há
dificuldades, por exemplo, para harmonizar os pontos de vista da França e da Alemanha. Os franceses não aceitam o fim dos subsídios
e a competição livre, que liquidaria a sua agricultura, porque sabem que isso significaria renunciar à sua identidade. A França tem uma
longa história de defesa da sua identidade e é difícil imaginá-la convertida em simples complemento de uma economia internacional”
(1).
Palavras inequívocas essas de Celso Furtado há apenas sete anos, quando existia ainda uma época com uma atmosfera de optimismo
na União Europeia quanto ao próximo futuro. Mas Celso Furtado por instinto cultivado e culto concluiu o seu raciocínio apelando às
raízes históricas da Comunidade Económica Europeia: “Foram necessárias duas circunstâncias muito especiais, únicas, para alcançar
a unidade europeia: a II Guerra Mundial, que destruiu grande parte da Europa e o poder industrial da Alemanha, e portanto da Guerra
Fria, que deu aos Estados Unidos a condição de potência tutelar”.
O clima ideológico suspenso e crispado dessa época recuada foi de resto sintetizado pelo professor Manuel Jacinto Nunes, aquando do
seu elogio de entrada em 1987 de Celso Furtado como sócio honorário da Academia de Ciências de Lisboa, intitulado “Celso Furtado:
Apóstolo do Desenvolvimento”: “Idealizava-se a União Soviética, que praticamente ninguém conhecia, e a simpatia de que os Estados
Unidos haviam desfrutado durante a guerra fora substituída por uma desconfiança sistemática em relação a tudo o que procedesse
desse país “ (2). Concretizando, antes, em síntese, a expectativa dominante nos meios económicos e financeiros mais ponderados e
reflexivos e simultaneamente entusiastas pelo liberalismo democrático subjacente mas continuamente adiado pelas circunstâncias
adversas ao próprio plano Marshall e conjunturais de isolamento histórico-geográfico fatal e obscuro em relação à segurança social de
Beveridge , que também havia assinalado no seu texto de elogio o seguinte: “Pelo facto de a guerra haver demonstrado a viabilidade do
pleno emprego numa economia regulada, pensava que a União Soviética era um caso análogo de economia regulada onde, em tempo
de paz, se lograva o pleno emprego”.
Não nos devemos esquecer que durante a fase do apelidado milagre económico italiano, surgiu um filme de ficção frontalmente
denunciador das carências sociais como “O Emprego” (Il Posto, 1964) de Ermano Olmi, sobre o problema do desemprego e das listas
de espera na aflição consumista dessa época de contraste e euforia desenvolvimentista, após o período de construção maciça de autoestradas em Itália e de ligação entre regiões de forma a aligeirar as diferenças territoriais de rendimento entre um norte industrializado e
um sul agrário.
Entretanto, um dos melhores conhecedores da teoria económica de Celso Furtado, foi certamente Luiz Carlos Bresser-Pereira, que em
“Method and Passion in Celso Furtado”, afirmou em 2001 o seguinte a dado passo do seu exemplar condensado de tópicos específicos
de uma doutrina pouco ou nada demagógica e onde a casuística foi eliminada de todo o pragmatismo social: “Uma estrita
macroeconomia neoclássica é uma contradição : é a macroeconomia sem o principal objecto da sua disciplina, os ciclos económicos.
Uma pura teoria neoclássica do desenvolvimento económico ainda faz menos sentido, desde que o equilíbrio geral é essencialmente
estático” (3). Daí a arrogância reconhecida em pretender-se unificar sem protocolo mínimo diferentes métodos, como os da
microeconomia, da macroeconomia e da teoria do desenvolvimento.
Empobrecendo, certamente, mais do que enriquecendo como se pretendia a própria teoria económica no seu conjunto actual, já que é
com algum cepticismo justificado pela prudência epistemológica do passado mais recente que se pode encarar sem mais prudência
institucional a perspectiva irrealista de um modelo que pretenda unificar tudo. Como o modelo de Solow na investigação empíricaindutiva, no entender do próprio Bresser-Pereira, sempre crítico em relação ao salto no vazio dos modelos matemáticos da economia,
como garantia apriorística de muita da sua ciência institucional. E justificativa de desmandos sociais, sem provas dadas pela história
mais recente, muito pouco para além dos sustentáculos teóricos dos pioneiros da teoria do desenvolvimento. Porém, que haviam sido
divulgados abundantemente nos anos quarenta e cinquenta do século XX, fundamentalmente nos países da América Latina e não só,
quando o próprio Celso Furtado permanecera em França e no Chile após a II Guerra Mundial.
Não há assim pouco mais do que nada como então referir o que John Kenneth Gallbraith, em “Viagem através da economia do nosso
século” em 1993, consubstanciou como reflexão sintética após o desabamento da ex-União Soviética e da dissolução do Comecon, que
reunia os países da área económica que aquela potência super-entendia no centro e leste da Europa da então geopolítica consagrada
desde o final dos anos quarenta do século XX : “Lenine afirmaria, ainda que considerável exagero, que os trabalhadores dos países
capitalistas viviam às costas dos povos coloniais. E, a juntar a tudo isso, havia o antigo empenho na terra, essencial à riqueza e ao
poder” (4). Já que, no seu entender, as vantagens económicas das colónias eram demasiado dispendiosas, face à mudança que
constituíram as pressões e resistência em geral que haviam enfrentado o anterior mecanismo bem mais dedicado ao pretendido e
mirabolante bem-estar, remetendo-nos por essa via, assim, para uma situação bem diferente da então pretendida : “O crescimento
económico interno – tal como era então avaliado é muito discutido – era considerado muito mais importante do que o comércio colonial
do passado”.
Celso Furtado, na sua obra de 1967 revista em 1976, “Teoria e Política do Desenvolvimento Económico”, que traduziu os progressos da
teoria do desenvolvimento nessa altura fulcral com o somatório possível das contribuições provantes de Perroux, de Hirschman e de
Myrdal, face à alternativa da teoria do crescimento pós-keynesiana e dos seus desdobramentos mais tecnocráticos e neomercantilistas. Tendo como objectivo parcial, a determinação das condições mínimas para a operacionalidade de um econometrismo,
originário no início dos anos cinquenta do século XX com o equilíbrio dinâmico entre força da capacidade produtiva, enquanto possível
e desejável “determinação do nível do emprego” e o inventário encapotado do real subemprego.
Escamoteado, tradicionalmente, como reserva tendente a marginalizar-se, sem a identificação necessária das variáveis de um sistema,
de facto, em riscos constante de colapso imprevisível : “o aumento da produtividade física do trabalho é, essencialmente, fruto da
acumulação de capital, das melhorias técnicas que acompanham essa acumulação e do aperfeiçoamento no factor humano, sendo que
este último aspecto pode ser assimilado a uma forma de investimento” (5).
NOTAS:
(1) Mario Osava, “Futuro según Celso Furtado”, Boletin de Novedades de EMVI, 25 de junio de 1999.
(2) Op. Cit., Revista Estudos de Economia, vol. VII n.4, Jul.-Set., Lisboa 1987 in “Temas Económicos”, Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, Lisboa 1989, págs. 30 e 31.
(3) Op. Cit., in “A Grande Esperança em Celso Furtado”, orgs., Editora 34, São Paulo 2001, redcelsofurtado.edu.mx, pág. 12 in “Two
methods in economics”.
(4) Op.cit., Círculo de Leitores, Lisboa 1994, págs. 198 e 199 in “17- Descolonização e desenvolvimento económico”.
(5) Op. Cit., Publicações Dom Quixote, Colecção Universidade Moderna n.15, Lisboa 1976 (1971), págs. 165 a 167 in “IX – Esquema
macroeconómico de desenvolvimento”.
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Num encontro de residentes norte-americanos no Alasca com os russos familiares e antepassados do outro lado do estreito de Behring,
filmado por uma equipa do britânico Michael Palin num muito interessante documentário, em 1997, para a BBC, dirigido por Roger Mills
e reexibido - com outro inevitável charme, o do tempo entretanto decorrido, mas não desactualizando muito a informação pretérita da
elegância da paisagem e do modo de produção pretérito, também por conseguinte só ainda aparentemente já caduco, devido ao
aparente envelhecimento das situações - para o canal Odisseia da rede de cabo, a 3 de Junho de 2005 passado. Quase oito a nove
anos depois da sua produção e eventual prescrição turística, partia-se então para uma visita guiada à península de Kamechatka, onde
outrora fora fechado o último campo de prisioneiros domésticos, ainda em 1953, península essa, que só apenas desde 1992 se
encontrava já aberta aos estrangeiros, por motivos ao que parece de sigilo ultrapassado e imobilismo burocrático.
Seguindo-se, depois, naquela rota de imagens e de sons insólitos e delicodoces, até ao destino no porto maravilhoso de Vladivostoque,
atingido pelo comboio de conveniência, o antigo transiberiano utilizado agora essencialmente por trabalhadores migrantes e revelando
um pouco o desmazelo tecnológico da antiga União Soviética desde pelo menos 1982. Embora se tivesse vindo a acentuar, já desde
1976, o impasse tecnológico da automação cibernética, com a renovação da computorização não acompanhada, após o final da Guerra
do Vietname. E do esforço de solidariedade material que isso comportava, também para grande parte do actual território da Federação
da Rússia. Nomeadamente, com o prolongamento em 1979 da sua intervenção directa no Afeganistão, que provocaria um desgaste
irremediável nas forças produtivas, desviadas para um esforço de guerra deficientemente programado quanto a consequências
ulteriores económicas e de impacto na opinião pública local.
Entre esses dois pólos geográficos, o guia britânico sempre com invejável humor e correcção passeava, ora de helicóptero, para ver as
renas e a sua economia de subsistência correlativa a essa região, perspectivada para um ulterior turismo ecológico invejável à escala
mundial e integrada numa população local de uma região plena de fontes termais como os “geisers” e a sua actividade vulcânica para
exploração e expedição, ora de comboio, até ao porto onde se encontrava na época a armada russa fundeada, com o seu coro musical
famoso que cantou “Kalinka”. Apesar do intervalo na tarefa imposta pelas manobras, agora entretanto nessa altura já
momentaneamente conjuntas, americano-sino-russas, no oceano Pacífico.
Revelando-nos aquele documentário, assim, com surpresa agradável e instrutiva, um corte transversal da sociedade russa ainda imóvel
economicamente dentro da mobilidade que se desfrutava naquele momento histórico, mais descentralizada no entanto. Uma cena
curiosa é, sobretudo, a visita em dado instante da viagem a um super-mercado russo, em que Michael Palin anda à procura de uma
tampa para o ralo da banheira.
Este excepcional documentário sobre o adormecimento sociológico de uma sociedade politicamente então em mudança, completou
num sentido mais actual, as peripécias do desenvolvimento económico numa sociedade ainda parcialmente paralizada pela
planificação centralizada com recursos passados imensos, à manutenção agora ou então mais precária à sua frota de defesa. Nesse
aspecto, o filme de Andrey Kontchalovsky, “Siberíada” (1977/8), havia constituído para a sua época a melhor referência de um épico
contemporâneo sobre a devastação das florestas, a colonização e a descoberta de petróleo e gaz natural entre os anos sessenta e
setenta do século XX no imenso território para além dos Urais e até ao Alasca, reflectindo já então também os problemas de
coordenação na era da cibernética entre poder político demasiado centralizador e incompetente e poder económico entravado e sinal
de uma contradição que teria uma década depois o desfecho imprevisível então com o acidente em Tchernobyl, na Ucrânia, a 26 de
Abril de 1986.
Celso Furtado na edição francesa de 1976 do seu livro de 1967, “Théorie du Développement Économique” (1), referiu-se ao plano de
vida que reflectiria a escala de valores preferidos de uma dada colectividade como “base de hipóteses relativas à sua renda”. E, como
as preferências dos habitantes de um determinado território são aparentemente infinitas, “uma constelação” é por conseguinte a
expressão empregue por Celso Furtado, como factor principal que “condiciona” a respectiva escala e é a forma como é repartida essa
renda entre determinada colectividade pertencente então a uma dada sociedade civil. E se se alteram, dizia ainda Celso Furtado a
propósito, por inúmeras razões ou imprevistos transtornos, as ordens de preferências dessa escala a respectiva distribuição dos ou
para os recursos produtivos, deveria ela igualmente sofrer também as devidas alterações, porque uma coisa implica a outra e viceversa, no plano de vida não apenas de uma dada colectividade, mas de toda a sociedade num determinado contexto geográfico e
histórico.
Mas se por qualquer motivo, os preços relacionados com a fase decorrida e que se entretanto se alterara continuariam os mesmos, isso
viria a ter consequências sobre o eventual novo montante e final de uma renda global integrada em situação nova, tanto para melhor ou
mesmo para pior, conforme então os casos aparecidos como entretanto inevitavelmente concretos do antes projectado plano de vida,
que no ano seguinte nessa sociedade civil, por exemplo, poderia oferecer-se como inesperadamente mais militarizada ou menos
civilizada do ponto de vista corrente das classes sociais em estrutura embora dinâmica mas comportando alterações imprevistas que
refreariam o impulso do desenvolvimento harmonioso por necessidades externas.
Mas Celso Furtado, sempre na sua ideia do concreto moldado abstractamente como processo de desenvolvimento experimental, não
dizia que no limite dessa totalidade a sociedade em vista mas indeterminadamente utópica não pudesse, embora na impossibilidade do
seu contexto programático de escrita em 1967 ser mesmo até igualitária como hipótese menos remota. Em teoria dos jogos dir-se-ia,
como por acaso, quem detivesse o ás de espadas num baralho de cinquenta e duas cartas faria da democracia parlamentar tendo
porém ganho previamente as eleições uma democracia directa , mas se assim fosse essa hipótese se sem o rei de ouros como carta
estipulada em posse do ganhador poderia vir a destruir a própria ideia de democracia (2).
A incerteza é uma constante da ciência política num quadro democrático sujeito ao sufrágio universal periodicamente, como regra
dominante institucional entre as nações, mesmo quando sujeitas aleatoriamente quer a uma bipolarização mundial como tanto a uma
descentralização entre ex-metrópoles e ex-territórios directamente administrados à distância no acesso ao novo estatuto de
descentralização, de regionalização, de autonomia ou mesmo de independência política e administrativa desde 1945. Com grupos
sociais equiparáveis pelas escalas de preferências semelhantes, quer entre regiões entre países como no interior de cada estado
centralizador sem praticamente sectores económicos privados. Mas em que o índice do fluxo da renda serviria de enquadramento para
a concentração e redistribuição suspensa ou dinâmica dessa mesma renda. Entre os diferentes grupos sociais com interesses
partilhados porém e igualmente complementares, que apenas em raras circunstâncias ou em momentos de encruzilhada histórica se
verificariam.
Celso Furtado chamaria, então, também, a atenção, nessa época algo recuada, entre 1967 e 1976, para “o equilíbrio de forças
dominante nessa sociedade” a determinar ou pré-determinada, mais ou menos tendencialmente igualitária no limite do conhecimento
então concebido entre os seus diferentes grupos sociais, estabelecidos como tais nessa altura pré-ecológica. Sendo que o também
então considerado ajuizar desses valores mutáveis, reflectiria como não poderia deixar de ser esse equilíbrio de forças dito optimizado,
com vista à “elevação do nível material de vida” e não o contrário nessa sociedade determinada (mas não determinista). De que não
eram outras as referências sobre o seu estatuto de inserção internacional localizado, a não ser que em condições muito particulares o
perfil da procura se pudesse alterar sem que tenha havido modificações prévias de propósito na produtividade, quanto ao seu nível em
função do trabalho, do desemprego e do exército de reserva de mão-de-obra; podendo até acontecer isso num momento de inflação
crescente, devido ao isolamento dessa sociedade tendencialmente igualitária, mas sem escoamento internacional de mercadorias ou
numa transição revolucionária, em que se pretenderia desconcentrar a renda e modificar a sua distribuição “para atingir objectivos
sociais e económicos”.
A Federação da Rússia lutou contra a inflação num momento do seu máximo em 1993, isto é, garantiu que as exportações não
diminuiriam, reduzindo-se ou decrescendo as importações e estabilizando tanto quanto imprescindível os preços em subida com a
diminuição menos abrupta no próprio consumo interno. Com a finalidade de não inibir o crescimento económico e de não desencorajar
a continuidade dos então investimentos estrangeiros mais voluptuosos e voláteis (3). Infelizmente, conduto, a técnica de estabilização
monetária então necessária só aconteceu depois das privatizações e nomeadamente através do controlo do défice estatal e do acesso
dos novos investimentos. Quando três anos depois de Gaidar e Chubais terem perdido a sua credibilidade conjuntural, enquanto
políticos macroeconómicos, é que a estabilização monetária principiou a criar raízes tardias na Federação da Rússia, por volta de 1995
a 1996, já quando a comunidade financeira internacional receava portanto investir mais, porque investir nesse remoinho incontrolável
era perder dinheiro e posições administrativas de abertura ao capital externo.
Nesse espaço de tempo sempre que houvera um sucesso era ocasional, quando a inflação caía mensalmente de oito pontos
percentuais em pelo menos três ocasiões entre 1992 e 1006, mas tratando-se apenas de um sucesso ocasional de confiança, desde a
liberalização dos preços por Gaidar em 1992 com um programa dito de reformas radicais, que provocaram ao invés desestabilização.
Segundo o ministro das Finanças em 1994 Fyodorov o défice oficialmente no orçamento de então no estado russo era de 5% do
Produto Nacional Bruto – e mesmo mais alto, segundo o próprio dizia não oficialmente -, para que este acabasse com o crédito às
repúblicas do tempo soviético e ainda na zona rubro, isto quando a própria economia russa já só se equiparava à tentativa de
estabilização em função do dólar.
Mas ao invés de 1993, que cancelara os empréstimos, estes foram fornecidos porém à agricultura e às regiões do Norte da Federação,
até acontecer o período mais tempestuoso da inflação, quando o rublo num só dia, em 11 de Outubro de 1994, caiu no seu valor diário
de mais de 30%, a que se sucedeu a fuga ao fisco, aquando do auge da guerra na Tchechenia, sem que o governo tivesse controlo
fiscal na sua política monetária. Contudo, em 1995, para surpresa de todos os observadores a inflação estabilizava a 1% por mês, sem
que os empréstimos à agricultura ou às regiões do Norte, provocassem uma subida do défice no orçamento estatal. Na raiz do
problema estivera o limite do sistema em 1973 com a crise energética e o processo de automação a não ser acompanhado como
dantes pelos países do Comecon, “necessitando, especialmente de moderna tecnologia, que podia abastecer o ulterior crescimento
económico”, pois já não conseguiam fornecer materiais e produtos necessitados, uns aos outros (4). Mas em 1997, por exemplo,
poucas eram ainda as minas de carvão, que em 1995 constituíam 20% do abastecimento em energia de uma país de tamanho território
– o mais extenso do mundo -, que conseguiam aguentar-se sem subsídios estatais depois da liberalização do mercado em 1993.
Reflectia isto já a dificuldade dessas poucas cumprirem o plano estipulado e reflexo do “diferente estado da indústria e da economia
russa como um todo” (5). No entanto, apelava-se a que novas e mais eficientes minas de carvão fossem abertas para abastecer as
necessidades ainda consideráveis de carvão da Federação da Rússia, depois de fechar muitas, injectar investimentos noutras,
melhorar a maquinaria e renovar os subterrâneos de mais umas tantas. A situação actual deve estar melhorada, pois já passaram mais
de dez anos sobre este panorama e a situação política e administrativa consolidou-se com maior eficiência, apesar do gás ser a fonte
de energia primordial como já era na época devido aos seus custos mais baixos do que o carvão, pois este necessitava de transporte e
do convénio com comboios e navios portuários para exportação ou deslocação interna.
NOTAS:
(1) Op, cit., Collection l’Économiste n.19, P.U.F., Paris 1976, pág. 20 in “I – Les ensembles économiques complexes et leurs
transformations”.
(2) Adam Przeworski, “Democracy and the market: political and economic reforms in Eastern Europe and Latin America”, Studies in
Rationality and Social Change n.12, Cambridge University Press 1989, págs. 41 a 43 in “Appendice : Why do outcomes appear
uncertain ?”.
(3) Andrei Schleiter and Daniel Treisman, “The Economics and Politics of Transition to an Open Market Economy – Russia”, OECD,
Development Centre Studies, 1998, pág. 25 in “2 – Russia’s Struggle with Inflation”.
(4) Ivan T.Berend, “Central and Eastern Europe, 1944-1993 : detour from the periphery to the periphery”, Cambridge University Press
1998, pág. 223 in “6 – Crisis and erosion of state socialism, 1973-88”.
(5) “Energy Policies of the Russian Federation – 1995 Survey”, International Energy Agency, OECD/OCDE, pág. 189 in “Coal”.
15 de maio de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXXVI)
Manuel Carvalheiro
Em “Sábado à noite, domingo de manhã” (1961) de Karel Reisz, a jovem classe trabalhadora britânica quer é
divertir-se e não pensar muito no trabalho, na oficina ou na fábrica onde têm o primeiro emprego durante a
semana monótona e poluída de então. Contudo, em “Tom Jones” (1963) de Tony Richardson, a temática da
libertação individual, translúcida com a onda dos cabelos compridos do grupo musical de Liverpool que estagiara
em Hamburgo em 1960, mas transfigurada em retroactivo como matriz da juventude outrora lutando contra os
preconceitos no século XVIII na ilha britânica, foi tentadoramente adaptada com colorido dançarino de um libertino
típico em superação do opressivo costume feudal. Tendo como cenário ambiental, porém, quer a estalagem, a
lamparina e a carroça de cavalos, quer a espada a substituir a charrua, o cutelo e a marreta, princípio do ocaso da
agricultura sem ainda a manufactura a contrabalançar o fluxo móvel do desemprego e reemprego, sobretudo das
camadas desprotegidas mais jovens, tanto de três séculos antes como do século XX após a destruição da guerra.
Mas aqueles – sem contar com a viola e o cravo (equivalentes à guitarra eléctrica e à bateria, posteriores, com a sua fabricação em
massa devido à electrificação dos anos cinquenta nos instrumentos musicais, nos brinquedos e nos electrodomésticos como o nome já
indicava como novidade tecnológica doméstica, sobretudo devido ao avanço americano beneficiado pela Guerra Fria) – como utensílios
menos operativos, mas cada vez mais aperfeiçoados, são ainda bem contemporâneos retroactivamente no século XVIII (a que se
poderia comparar a Índia de 1947 a 1956) da proletarização dos campos e da necessidade de ascensão social.
Pouco antes da revolução industrial, oriunda da Holanda e do tráfico de diamantes industriais fortalecido depois no século XIX, embora,
frustrada pela rebeldia e afirmação pessoal dos ainda dominados, anunciando, porém, a mudança social ou, como alternativa
desesperada, em parte a catástrofe previsível, como naufrágios, quedas de pontes, incêndios de edifícios públicos, entre o século XVIII
e a primeira metade do século XIX; e, sobretudo, já na segunda metade do século XIX, com os terríveis desastres de comboios, que
ainda hoje assolam periodicamente a Índia. Tal como no século XVII, tais forças de trabalho sem fixação na província, já depois em
Londres, com a peste e o seu incêndio, misturando-se com outras camadas sociais modificariam a paisagem urbana e a maneira de
conceber a vida social pela constituição entretanto de uma nova geração ascendente e dominante, voltada, então, sobretudo, para o
comércio marítimo.
Os ciclos ecológicos estão interrelacionados com os ciclos económicos e estes com o devir histórico, o impasse político, o tumulto
social e a desagregação cultural, educativa e científica renunciando a uma nova ordem, absorvendo algumas tecnologias e
permanecendo no essencial sob a tutela de um poder absoluto, negociado porém no seu enfraquecimento. “A história é mais rica que a
nossa imaginação”, dizia Celso Furtado a Mário Osava em 1999, numa entrevista sobre a nuance entre competir e cooperar no futuro
(1), que consubstanciou muito bem os tópicos internacionais e nacionais dessa altura, de uma maneira sintética e com uma previsão de
cinco anos, até 2005, sobre as linhas de força da economia mundial, articulando as instâncias económica com a social e a política.
A previsibilidade da evolução do mercado internacional, era mais fácil do que a involução histórica e o seu condicionamento retroactivo
da mudança da estratégia económica, com o chamado fim da história. Sem aparente finalidade, depois da dissolução do socialismo na
economia de mercado, instável e com “bolhas” no ciclo económico renascente; mas renunciando, contudo, a um previsível retorno da
“correcção”, antes da explosão festiva do “boom” do seu crescimento – hoje dir-se-ia “boorst”, para significar elevação surpreendente da
taxa de crescimento –, como também assinalara o economista John Kenneth Galbraith (1908-2006), num programa “HARD Talk” da
BBC World em 1999, em Cambridge, no estado de Massachusetts, reexibido agora em 5 de Maio de 2006 com actualidade prospectiva
e crítica renovada de um economista político e embaixador na Índia, que fizera a II Guerra Mundial no Strategic Air Command dos
E.U.A..
Mas, também, a solidez da reflexão opinativa circunstancial, revelou-se na generalidade com prudente pertinência e lucidez
esclarecedora sobre as lições do passado: “A sociedade fez-se tão complexa que se dificulta a previsão dos acontecimentos”, dizia ele
ainda. E logo de seguida, concluía Celso Furtado na citada entrevista em 1999: “Isso era possível quando a história era mais lenta, a
sociedade mais sensível e os actores mais limitados”. O determinismo histórico e económico sofreria um atribulado rude golpe na sua
honorabilidade empírica, pois os amigos do povo não eram do povo mas apenas seus mentores, como numa cena de Ruy Guerra em
“Erêndira” (1983), rodado em condições difíceis no México.
Mas transpondo uma novela colombiana de Gabriel Garcia Marques, inspirada na sua adolescência nos anos trinta do século XX muito
marcado ainda pelo século XIX, com a solaridade do deserto, após uma revolução como a mexicana se ter desfeito na espiral do
tempo. Face ao relativismo sócio-político que passou a servir de “erzats” aos autores de maturidade científica (e normalmente
farmacêutica e medicinal), quanto à durabilidade das instituições contemporâneas e à programação de estratégias, que rapidamente
passaram a cenários perenes, como numa cena do referido filme num cartaz de propaganda sem nexo rapidamente substituído após as
eleições. É porém o próprio Eric Hobsbawm quem a dado passo nos havia revelado desde 1975, que “na década de 1840, os
intelectuais tinham-se entusiasmado também por várias formas de socialismo utópico, que prometiam não só a perfeição social, como
ainda o desenvolvimento económico, e a partir da década de 1870, o positivismo de Augusto Comte penetrou profundamente no Brasil
(cuja divisa nacional é ainda a ‘Ordem e Progresso’ comtiana) e, em menor escala, no México. O ‘liberalismo’ clássico continuava no
entanto a prevalecer. A combinação da revolução de 1848 e da expansão capitalista mundial forneceu aos liberais a sua oportunidade.
Conseguiram destruir a velha ordem legal colonial” (2).
Um século e meio depois, um certo pragmatismo calejado pelos acidentes históricos com curto-circuitos económicos frequentes, levou
ainda Celso Furtado em 1999 a estabelecer como demasiado ambicioso o projecto da ALCA, a Área de Livre Comércio das Américas
desde o Alasca à Terra do Fogo. Comparando-o com a União Europeia pelas suas dissemelhanças abissais, apesar de tudo com os
níveis de desenvolvimento mais equilibrados dos países desta última, antes do alargamento de quinze para vinte e cinco estadosmembros. Pois, segundo ele, a diferença entre os Estados Unidos e os países latino-americanos era muito maior do que entre os
próprios países europeus. Disparidades essas, que deveriam então fazer o Brasil do presidente Fernando Henrique Cardoso mais
prudente com uma precipitada internacionalização da sua economia, sem primeiro a disciplina necessária de um projecto próprio que
em caso contrário, avisava, poderia como país fazê-lo desintegrar como estado federal tal como de certa forma acontecera uma década
antes e noutros moldes à ex-União Soviética. E cuja economia emergente teria de levar em conta o reordenamento monetário mundial
com uma tensão almejada na unificação ainda fictícia das moedas, na década que se seguiria e até 2009. Face a uma situação
previsivelmente caótica, sem possibilidades de equilíbrio e com uma massa de recursos indisciplinada (referia-se às consequências
ainda gravosas da crise asiática de 1997 no continente sul-americano, com o acréscimo da dependência do Brasil aos empréstimos dos
E.U.A. do tempo do presidente Clinton).
Andre Gunder Frank (1924-2005), em 2003, numa homenagem a Celso Furtado, escreveria o texto memorialístico irónico, “La
dependencia de Celso Furtado”, em que um ano antes deste falecer e dois anos antes do próprio, dizia que “assim poderíamos dizer
que o grande mérito é a própria ‘dependência de Celso’ do ambiente em que ele vive e a conversão da sua problemática em sua
própria obra vital”. Isto porque num dos números anteriores em 2002, a revista “Foreign Policy” havia escolhido como temas, a que
distância se estava do marxismo, dos valores asiáticos, dos limites para o crescimento, da teoria da dependência, da destruição mútua
assegurada e do complexo militar-industrial. Tratando, ao que parece através de um dos seus colaboradores, o professor Andrés
Velasco, professor de finança internacional e desenvolvimento da Universidade de Harvard, os dependentistas da teoria do mesmo
nome como esquecidos para sempre pela história da CEPAL, em que Celso Furtado e Raul Prebisch nem sequer haviam sido
mencionados. Andre Gunder Frank, um pouco sarcástico dizia que nessa semana lhe haviam chegado perguntas de estudantes do
Nepal a querer saber o que era isso da dependência, quando ele quarenta anos depois havia revisitado a Universidade de Brasília com
o professor Theotonio dos Santos, depois que lá haviam estado como professores fundadores da “>=nossa época=>” (4).
Na conclusão recente de um estudo, os seus autores reconheciam a limitação actual da econometria, mas que a sua análise empírica
com falta de dados a respeito do mercado norte-americano, permitira contudo à Comissão Europeia chegar à conclusão de que o
mercado europeu presente não constituíra só por si um mercado geográfico distinto, já que para poder ser um mercado relevante de um
ponto de vista geográfico económico tinha, também, que no mínimo incluir o da América do Norte (implicando o Canadá e os E.U.A.).
No entanto, à luz da actual capacidade de expansão planeada já previamente para a Ásia, a Comissão Europeia havia porém
considerado a 20 de Janeiro de 2005 “que o mercado tem se transformado ou estava em vias de se transformar em global” (5). Tudo
isso porque uma empresa americana de plásticos proprietária de uma outra empresa equivalente àquela que queria comprar na Europa
infringia o mercado europeu anti-truste.
NOTAS:
(1) Op. Cit., 25 de Janeiro de 1999, Boletin de Novedades de EMVI.
(2) Eric Hobsbawm, “A Era do Capital (1848-1975)”, Biblioteca de Textos Universitários n. 27, Editorial Presença, Lisboa 1988 (1975),
págs. 164 e 165
in “VII – Os vencidos”.
(3) Op. Cit., Publicações Dom Quixote, Colecção Universidade Moderna n.15,
Lisboa 1976, pág. 156 in “VIII – Interacção entre decisões e estruturas”.
(4) Op. Cit., El Caballero de la Esperanza, 22-11-2004 in Reggen, Rio de Janeiro.
(5) Benoit Durand and Valérie Rabane, “The role of quantitative analysis to
delineate antitrust markets : An example. Blackstone/Acetex”, Competition
Policy Newsletter, Number 3, Autumn 2005, EU, Brussels/Bruxelles, págs. 118 e 122.
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Contudo, “a imbricação dos mercados e o desmoronamento consequente dos actuais sistemas estatais em que se enquadram as
actividades económicas estão a gerar grandes mudanças estruturais que se traduzem na crescente concentração da renda e em
formas de exclusão social que se manifestam em todos os países” (1), dizia Celso Furtado em 1998 em “El Nuevo Capitalismo”, um
artigo publicado originariamente em espanhol num boletim extraordinário da CEPAL, a organização económica das Nações Unidas para
a América Latina, sedeada desde 1949 em Santiago do Chile.
O mundo moderno fora formado com o “esforço acumulativo” que acarretava a elevação da poupança, a técnica ampliando-se em novo
horizonte e a população beneficiária de um consumo renovado cada vez mais alargada em função das colectividades privilegiadas,
sintetizou também Celso Furtado sublinhando que a reprodução ampliada do poder de compra pertencia já a uma história que se fazia
pela interacção destes ângulos, formativos de uma nova sociabilidade instigada pela inovação. O aspecto antropológico foi
consubstanciado por outrem desta maneira: “As caravanas muçulmanas que seguiam de Marrocos para sul, através das montanhas do
Atlas, chegavam ao fim de 20 dias às margens do rio Senegal” (2).
Será que cinco séculos depois a Sociedade de Informação trouxe alguma novidade a esta situação descritiva? É evidente que se está
nos antípodas, mas não é difícil imaginar-se quão idêntico fora até meados do século XIX na mesma região o que se passa a descrever
como tendo acontecido quatro séculos antes, enquanto caracterização do chamado “comércio mudo” entre povos que não conheciam
as respectivas línguas como astutos interlocutores: “Aí, os mercadores marroquinos expunham montes separados de sal, contas de
coral de Ceuta e mercadorias manufacturadas. Depois afastavam-se da vista”.
Essa “etiqueta comercial” por ridícula que nos pareça hoje, continua no entanto a alimentar os circuitos turísticos e não só: “Os homens
das tribos locais, que viviam nas minas abertas, de onde extraíam o seu ouro, vinham à margem e colocavam um montinho de ouro ao
lado de cada pilha de mercadorias marroquinas”.
Em “O Sal da Terra” (1950) de Herbert Biberman, o cenário decorre durante um conflito sindical no Novo México e fora a firmeza e o
bom senso que estabeleceram por negociação e espera paciente as etapas para a sobrevivência humana num contexto mineiro em
que o mercado regulado pela oferta e pela procura se encontra em paralisação face ao jogo mercantil que escapava parcialmente aos
vectores laborais na sua necessária expansão de poder de compra mínimo. Para que a geração seguinte pudesse vir a continuar o
sistema económico de produção local, em que aquela mina estava inserida. Sem, então, contrapartida distributiva adequada e
financeiramente mais ajustada àquele período de crise social, agravada esta com o seu encerramento precipitado ou despedimento
injustificado. Em função de um objectivo de lucro, sem que à mão-de-obra disponível correspondesse a parte integrada e necessária
para sua real rentabilidade.
Quando no ano 2000 o recorde histórico da então considerada Nova Economia (New Economy) na Wall Street atribuíra 5048,62 pontos
a Nasdaq, procedia-se em Lisboa durante dois dias ao estabelecimento de uma eventual estratégia de longo prazo, que se destinava
na próxima década a fazer da Europa comunitária tal como existia o espaço mais competitivo entre as suas colectividades, com a
criação processada em ulterior fase escalonada de mais cerca de trinta milhões de postos de trabalho. Mas essencialmente baseadas
nas reformas do mercado de bens e de serviços, com a liberalização também então anunciada de sectores da economia como os da
electricidade, do gás, dos comboios e dos correios. Com o objectivo especial de vir a criar novos mercados financeiros que
procedessem à revitalização económica do espaço comunitário europeu, com a sua renovação económica, social e ambiental numa
Europa optimista face ao mundo. Esse quadro estimulante foi agora recordado e reenquadrado num programa “Tema” do Canal Arte de
Estrasburgo sob o título “A estratégia de Lisboa”, emitido a 11 de Abril de 2006.
Porém, no final desse mesmo mês decorreu igualmente o IV Forum sobre a Sociedade de Informação entre a União Europeia e a
América Latina e o Caribe, quando cerca de dez dias antes o FMI/IMF havia revisto em alta para 2006 o crescimento económico
mundial agora de 4,9%. O impressionante retrocesso dos últimos anos não derrubaram contudo as perspectivas de acesso à
informação de cariz mais igualitário se aplicada agora ao decréscimo da exclusão social, alargando aquele prazo até 2015, após a
Cimeira de Tunes sobre a Sociedade de Informação Mundial (3).
Ora, “se numa visão global englobarmos os diversos períodos e as diversas épocas do desenvolvimento económico, observaremos que
duram cada vez menos” (4). Mas as perspectivas então da “economia do homem livre, da sociedade sem classes”, caducou pelas
razões que conhecemos, como a estagnação económica e a gerontologia dos decisores políticos inamovíveis, como o filme de Frank
Capra “Horizontes perdidos” (Lost horizon, 1938), se divertia em consubstanciar um sociedade utópica na montanha asiática onde os
ciclos económicos eram eternos e o igualitarismo de rigor higiénico e salutar, como se o mundo fosse um feliz hospital ambulantes
asséptico e onde os micróbios da corrupção não entrassem, mas na época ainda sem computadores e o radar apenas era suposto não
existir ainda. Contudo, uma nesga de felicidade existia ainda ao abrigo do comércio para além de umas férias bem passadas na altitude
e longe da economia de mercado. “A educação pode ser encarada não como um consumo mas como um investimento de capital
humano” (5).
NOTAS:
(1) Op. Cit., Revista de la Cepal n.17-20, Octubre, Extraordinario, Santiago 1998, pág. 1/6.
(2) Daniel J.Boorstin, “Os Descobridores: de como o homem procurou conhecer- se a si mesmo e ao mundo”, Gradiva, Lisboa 1994
(Random House 1983), pág. 155 in “21 – Pioneiros marítimos portugueses”.
(3) “Lisbon Declaration”, IV European Union – Latin America and the Caribbean Ministerial Forum on the Information Society – An
Alliance for Social Cohesion through Digital Inclusion”, Lisbon, 28-29 April of 2006 (Draft Version 4).
(4) Jurgen Kuczynski, “Pequena história da economia: a economia, das origens até hoje”, Colecção Séculos XX-XXI n.33, Iniciativas
Editoriais, Lisboa 1975, págs. 19 e 20 in “Introdução”.
(5) Carlo M. Cipolla, “História Económica da Europa Pré-Industrial”, Lugar da História n.21, Edições 70, Lisboa 2000 (1974), pág. 64.
22 de maio de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (LXXXVIII)
LXXXVIII
Manuel Carvalheiro
A ordem mundial, sobretudo na região do oceano Pacífico, repousaria então na impressão de estratificação racial,
imposta pelas elites de pele clara, segundo Richard Falk com certo humor negro retroactivo reportou, em tom
conciliador, em “Predatory Globalization : A Critique” (1), mas demarcando-se daquela fase em que os E.U.A. por
via da sua administração da época impusera a soberania da sua arma atómica.
Logo por sentido de oportunidade, talvez crucial nos tempos que correm de diplomacia económica, quase ausente
do cenário mundial, a OECD/OCEDE organiza em Paris entre 22 e 23 de Maio de 2006, sob um título
harmoniosamente mais atractivo, uma conferência dedicada a “Balancing globalization”. Invocando,
simultaneamente, uma espécie de equilíbrio de contrários no ciclo económico actual e reportando-nos a ideia de
somatório da última década de globalização no mercado internacional.
Época esta, em que os governos nacionais pouca interferência legislativa têm produzido desde então,
nomeadamente para o controlo dos fluxos de capital especulativo sob a capa de investimentos sem retorno fiscal, porque a
instrumentalização reguladora escapa à maioria dos estados mais frágeis do planeta, desde sobretudo há quase um quarto de século.
O crescimento económico da Federação da Rússia tem sido de 6,4%, mas supõe-se não oficialmente que pelo menos 5% provêm dos
negócios com o sector energético, se se refizerem as estimativas e se colocar o crescimento económico real nos 7% ao ano,
nomeadamente com a sobrevalorização dos preços de revenda do gás natural em função da crise do preço do barril de petróleo que é
altíssimo em relação aos preços de 2002, cinco anos antes. Por outro lado, desde a crise de 1998 com a corrupção máxima na
Federação da Rússia que as actividades económicas por melhorias rentáveis que mostrem agora parecem ainda distorcer o conjunto
do aparelho produtivo, incluindo sectores da área energética, pelo que enquanto essas correcções não forem reequilibradas
proximamente, as vantagens adquiridas irão apenas beneficiar uma parte da população russa, que no seu conjunto viu porém uma
abertura possível para a sua melhoria de qualidade de vida e de nível menos socialmente atormentado por paralização ou ineficácia do
aparelho produtivo.
Mas aquela visão mais belicista do mercado internacional, que vigorara nomeadamente entre 1948 e 1992, continuava a ter o suporte
sob nova apresentação em 1998, em que os E.U.A. ainda detinham sozinhos no mundo, com apenas 5% da sua população mundial,
cerca de 33% do controlo da energia processada e dos recursos minerais. Base económica da sua prosperidade e domínio mundiais e
em que a metáfora da aldeia global é, apenas, um espantalho mais social e inofensivo para acalmar o verdadeiro problema da sua
eliminação racial. Agora entregue, também, a empresas privadas, que podem controlar o espaço satelitário, que permite até localizar
uma agulha radioactiva num palheiro, por onde passariam eventualmente desempregados da transumância islâmica. Enfurecidos,
porventura, com a sua qualidade de prováveis fanáticos do comércio ilegal de urânio enriquecido. No entanto, a Liga Árabe ciente da
sua responsabilidade, recentemente aconselhou o Irão a ser mais paciente com a incomodidade alarmista da generalidade dos países
mais desenvolvidos e mostrar a sua intenção probante de utilização pacífica da energia atómica, a que de resto tem o pleno direito
como potência emergente na região.
Celso Furtado falava, então, desde 1973 e actualizando em 2003 no essencial o que havia antes referido em “Raízes do
Subdesenvolvimento”, “que, a rigor, a guerra fria terminou na segunda metade do decénio de 1950”, não sendo mais do que um
poderoso meio de ideologia capitalista para amedrontamento dos países, que com maior ou menor habilidade diplomática buscam o
seu desenvolvimento autónomo. Por exemplo, Arturo Valenzuela da Universidade de Georgetown, do seu Centro de Estudos LatinoAmericanos, vaticinava em Washington à BBC World a 11 de Junho de 2005, aquando da tomada de posse interina do novo presidente
Eduardo Rodriguez Veltze, que o “cocalero” Evo Morales como líder dos indígenas que se manifestavam continuamente em La Paz,
obrigando à substituição do presidente anterior e à convocação de novas eleições, “não terá mais de 20% nas próximas eleições,
porque há outros movimentos indígenas”. Assim não foi.
Mas Celso Furtado alertava em 1973, o que confirmaria em 2003 no mesmo livro citado: “O desenvolvimento económico, nas condições
adversas actuais, dificilmente se fará sem uma atitude participativa de grandes massas da população. Toda autêntica política de
desenvolvimento retira a sua força de um conjunto de juízos de valor, que amalgamam os ideais de uma colectividade”. Tal como
veríamos em “Hawaii” (1966) de George Roy Hill, em que a sociedade anónima como burocracia privada incluindo uma amálgama de
estrutura religiosa e corporativa, vigorou como base de implantação da firma oligárquica. Mas, dois séculos depois, as restrições
constitucionais actuais contestam e verificam continuamente a sua legitimidade local, como aconteceu à ITT no Chile ou mais
recentemente à Eron com o escândalo de corrupção que abalou a credibilidade do poder económico norte-americano no dealbar do
novo milénio.
Referindo-se às ameaças ao comércio sem barreiras nem proteccionismo, mas exigindo-se já então em 1997 após a recente criação da
OMC como sucessora do GATT e do Uruguay Round até 1994, os Estados Unidos preocupavam-se então com os vencimentos
estagnantes reais dos trabalhadores ditos colarinho azul diante da crescente inquietação ou insegurança sentida pelos chefesexecutivos colarinhos brancos, conforme a terminologia usada no Japão que comércio limpo subjaz ao comércio livre, isto é, a
liberalização do comércio internacional implicava já então a harmonização de normas administrativas globais no domínio do ambiente e
do trabalho, quando actualmente os E.U.A. em 2006 assinam acordos bilaterais com os países da América do Sul, nomeadamente com
a Colômbia, após falharem a ideia da ALCA num multilateralismo liberal, nomeadamente impedido pelos agora cinco países do
MERCOSUR/MERCOSUL.
No filme de Nagisa Oshima, “A Cerimónia” (1971), descreveu-se a dificuldade da sociedade japonesa ultrapassar o legado dos rituais
sociais, que bloqueavam o desenvolvimento dos destinos pessoais de uma família, entre o fim da guerra e uma geração depois: desde
o caminho até um funeral, que faz com que se descrevesse o atravessar de várias etapas geográficas por diversos tipos de meios de
transporte entre ilhas distintas, do Japão citadino ao Japão bucólico, do bulício fumarento industrial ao rural mais arcaico. Sendo que a
essa forma retroactiva da narrativa entrecortada da frente para trás no tempo histórico, dinamizava a reflexão sobre o falhanço, a
expectativa, o sucesso, a desilusão e a constatação de um ciclo económico de uma vida e dos seus prolongamentos, interrupções,
desvios, acasos, tributos, derrotas e êxtases.
Ora, fora em 1880, quando o Japão começou a abrir a sociedade tradicional à modernização, beneficiando nomeadamente da segunda
geração de capitalismo de estado na França e na Alemanha (4), como assim por esse motivo tardio os países asiáticos viriam a ser
historicamente retardatários. E, portanto, ditos de “desenvolvimento tardio”, na expressão de Alexander Gerschenkron, cuja hipótese “é
que quanto mais tardio é um país na sua industrialização maior será o papel do estado na compensação dos ‘pré-requisitos
desaparecidos’ que permitiram mais cedo aos desenvolvimentistas industrializarem”, o que “implica começar com um maior avanço em
maquinaria da tecnologia estrangeira, o que se exigiu recursos mais elevados do estado para os adquirir”. Sendo, assim, que “para
países como a China, a Coreia do Sul e a Malásia, que começaram o processo mesmo ainda mais tarde, o alcance e custo do
lançamento do desenvolvimento económico significou um mesmo enorme papel do estado”. Por conseguinte, “o tempo”, tal como se
depreenderá, “é um factor na compreensão para a expansão da intervenção do estado no planeamento económico do desenvolvimento
na zona dos países da Ásia-Pacífico. O que pressupôs que, apesar de tudo, existia um legado diferente das industrializações tardias da
Alemanha e da União Soviética, visto que são países que provieram da colonização e que legitimaram governos intervencionistas com
suficiente poder para socorrer os níveis de vida económicos dos seus povos”, já que uma civilização exterior os condicionou como
factor com “a imposição forçada da modernidade por uma orientação estrangeira”.
No filme de Zhang Yimou, “Milho Vermelho” (1986), o rapto no campo, o casamento forçado, a perturbação económica e financeira nas
relações de género, a condicionarem o domínio de propriedade da terra e a revelarem o atraso do processo de urbanização, revelaram
o motivo da revolução republicana de Sun Ya Tsen em 1912, o que motivou a revolução de 1949, que virou de cima abaixo em duas
gerações todo um continente em termos de hegemonia partilhante, condicionando as relações comerciais actuais entre os países da
região Ásia-Pacífico. Deste modo, um novo sistema de relacionamento sócio-económico e de regulação macro-económica nasceu na
China quarenta anos depois em 1988. Mas só cinco anos depois, em 1993, se concretizaria, pela dinamização das actividades
apelidadas micro-económicas por contraste com o gigantismo das empresas estatais no mercado, servido por uma reforma
administrativa do aparelho de estado, que assim viria a modificar o estatuto hierárquico das empresas estatais mais comerciais. E em
que o governo da época reestruturou cinco níveis de direcção, como sejam, o centro administrativo, a representação na província, a
actividade na prefeitura ou governo civil local, o condado ou concelho regional e a câmara citadina e da vila ou aldeã, em que seriam
essencialmente modificados três níveis de poder económico sobre as firmas estatais: 1) ao nível da propriedade das acções; 2) da
administração superior; e, 3) da ligação entre o mercado e os produtores (5).
NOTAS:
(1) Op. cit., Polity Press 1999, págs 14 a 16 in “The Structure of the Global Political Economy”.
(2) Op. cit., Civilização Brasileira/Distribuidora Record, Rio de Janeiro 2003, págs. 38 a 41 in “II - Estratégias do desenvolvimento”.
(3) Jagdish Bhagwati, “The Feuds over Free Trade”, The Institute of Southeast Asian Studies (ISEAS), Singapore 1997, pág. 10 in
“Threats to Multilateralism in Free Trade”.
(4) Vera Simone, “The Asian Pacific: Political and Economic Development in a Global Context” (Second Edition), Longman, New YorkSan Francisco-Boston- London-Toronto-Sydney-Tokyo-Singapore-Madrid-Mexico City-Munich-Paris-Cape Town-Hong-Kong-Montreal
2000/2001, págs 191 e 192 in “5 - Political Economy and Development”.
(5) You Ji, “China’s entreprise reform: changing state/society relations after Mao”, Routledge London and New York 1998, págs. 192 e
193 in “9 - The construction of a new economic model”.
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A conferência decorrida em Viena sobre a União Europeia e a América Latina, representou um ponto da situação de viragem em todo
um continente, no que diz respeito à perspectiva do conteúdo da colaboração regional, sob a etiqueta de integração regional, com
pactos comerciais bilaterais com a Europa depois de o Peru os ter feito com os E.U.A., por exemplo. O que é que significa a
cooperação regional com a União Europeia e o que é que evidencia esta perante a modificação da conjuntura da cooperação regional?
A questão da nacionalização do gás e petróleo bolivianos, serviu de pano de fundo para o encontro entre quase sessenta chefes de
estado da Europa e da América Latina, pelo menos isto suavizou o contexto internacional. O que ficará deste encontro para o futuro, já
que desde 1815 que não se realizava uma reunião tão simbolicamente representativa do mesmo género em Viena? Uma interessante
entrevista de Alejandro Toledo, presidente cessante do Peru e primeiro índio a aceder a um cargo daquela natureza na América Latina,
ao programa “HARD Talk” directamente de Viena de madrugada de 11 para 12 de Maio de 2006, confortou-nos sobre a turbulência
ocasional e cíclica nas relações diplomáticas entre países da América do Sul.
Toledo numa espécie de voluntário “low profile”, revelou uma personalidade tranquila com o seu mandato, após um ciclo em que
substituíra Fujimori, que por sua vez governara o Peru com o neo-liberalismo à solta, após ter substituído na presidência Alain Garcia
por volta de 1990. Com os números que citou como espólio económico do seu mandato sob o signo do crescimento económico, mas
sem distribuição de riqueza compatível com a enorme pobreza da população do seu país, apesar de a extrema pobreza ter descido de
24% para 18% nos últimos cinco anos no Peru, Toledo revelou-se um presidente diplomata típico, que parte sem saudades mas com a
convicção de ter substituído a década do neo-liberal Alberto Fujimori no momento certo. Sem que não deixasse de dizer que o Peru não
tinha petróleo nem gás e por isso não podia negociar da mesma forma que presidentes de outros países vizinhos, sendo que ninguém
era presidente da América Latina só por si.
A sua popularidade permanece no entanto em baixa por não ter sido mais distributivo na renda, diversificando mais a possibilidade de
aumento do poder de compra da população no seu geral. A função que Toledo aquilatou como aspecto dominante da política
económica durante o seu mandato, foi uma espécie de tarefa que se lhe impôs como seja orientar as trocas comerciais do seu país
para novos mercados como a Tailândia e a China. De forma a vender os seus produtos e com isso - com essas exportações - poder vir
a gerar novos empregos, confirmando um dos seus lemas de gabinete, pois cada país tem as suas vantagens comparativas. A palavra
“competição” foi no entanto elidida, o que significa que mesmo assim essa competição foi salvaguardada num contexto de cooperação
comercial talvez estatal cujos efeitos só serão mais visíveis depois da democracia peruana ter deixado de ter Alejandro Toledo como
seu presidente.
O Peru em 1889, quando descobriu petróleo nas suas “pertenencias” ou fazendas vendidas a uma companhia britânico-canadiana, que
as comprara ao terratenente Genaro Helguero segundo reza a lenda que nelas tinha uma mina de betume desde 1866. Segundo
Harvey O’Connor em “Petróleo em crise”, editado em 1962 (1), “os índios desde a época dos Incas, tiravam pez dali para vender
utensílios de cerâmica”. A companhia IPC da Standard comprou a frota petrolífera da companhia estatal peruana e depois subiu o preço
da gasolina, que era a mais barata do mundo em 1955, colocando-a ao nível da do mercado mundial que era o triplo. Mas abrindo
assim uma crise social no Peru, que viu os seus autocarros de passageiros feirenses a aumentarem os bilhetes de 20% a 30% num
curtíssimo espaço de tempo, embora com a renitência dos taxistas, camionistas e motoristas. Num país extenso como o Peru na
América Latina dessa época, dependendo dos transportes baratos para o desenvolvimento da sua economia, que dependia da ligação
rodoviária entre áreas costeiras e povoações montanhosas, esta medida teve como consequência o agravamento social num país que
paralizava inclusive durante a prolongada estação das chuvas devido à má qualidade da infraestrutura rodoviária.
A respeito da climatologia social do Peru, não é sem surpresa que a demagogia do petróleo ou do não ter petróleo esteve ligada por
alguma forma à actividade polémica generalizada em 1997, aquando do fenómeno mundial agudizado pelas chuvas do planalto andino
e dos deslizamentos de lama, as “huacas”, que provocam duas vezes por década em média imensas catástrofes naturais:
“recentemente, a atenção mediática focou-se sobre o par El Niño/La Niña, de tal forma exageradamente que políticos se deixaram
envolver nisso. Assim, no Peru, os oponentes do presidente Alberto Fujimori reaproximaram-se dele para explorar este desastre para
ganhar alguns pontos de popularidade” (2). A apanha das anchovas no Peru, que em 1971 detinha um quarto da sua produção
mundial, decaiu de uma produção anual de cerca de 10 milhões de toneladas para em 1973 cerca de 1,5 milhões de toneladas anuais,
diabolizando-se por isso o fenómeno climatérico oceânico do El Niño, devido à aquacultura da anchova não conseguir nos seus
reservatórios subaquáticos da costa litoral serem abastecidos como antes pelas algas, que haviam sido varridas pelas correntes
acentuadas em oceano tempestuoso constante durante o período do fenómeno da anomalia climatérica periódica.
Outrora, a Espanha aumentara sobretudo o comércio com as outras nações europeias devido à exploração do Peru, com a descoberta
de minas de prata e de ouro, que empreendera como consequência uma civilização comercial, incluindo além do Peru o México – como
sublinhou Celso Furtado em 1954 no seu livro “A Economia Brasileira (contribuição à análise do seu desenvolvimento)” (3) – porque
fazia da exploração dos metais preciosos uma actividade comercial. Essas exportações eram depois trocadas na Europa,
nomeadamente com Veneza, a partir do porto de Cádis (4), por tecidos e alimentos, que depois eram reembarcados por via marítima
através de La Habana, via Panamá (antes da existência do canal, por transporte animal durante cerca de sessenta quilómetros entre os
dois oceanos de hemisférios diferentes), mas depois na segunda metade do século XVIII via cabo Horn, contornado depois da partida
de Callao, porto aproximado de Lima, a capital do Peru colonizado pela Espanha.
Celso Furtado caracterizara este tipo de civilização retroactivamente, na primeira fase dos seus escritos económico-sociais da segunda
metade dos anos cinquenta do século XX, como civilização comercial porque tinha como exclusivo meio de produção os transportes, as
cargas e os carregamentos de navios. Visto que a quantidade infinita de metais preciosos assim julgada como tal nessa época,
conduzia ao que os economistas chamavam “elasticidade da procura”, isto “sem que houvesse a contrapartida de um maior número de
horas trabalhadas”. Por consequência, a quantidade de bens crescia e eram postos já em Espanha à disposição de toda a virtual
população. Ou por outra, a “produtividade média da economia” aumentava, sem resultar de “vantagens decorrentes de uma divisão do
trabalho mais racional”. Ou como havia depreendido Celso Furtado, nessa época e sobre essa outra época mais recuada ainda, sem
aquela civilização comercial resultar também de novos investimentos avultados nesses transportes. As formas de produção não
mudaram, mas as de distribuição de renda atingiram uma complexidade crescente, como um “subsídio vindo de fora” e provocando
“desencorajamento das actividades produtivas dentro do país”. Arthur M.Schlesinger, Jr em “A Thousand Days – John F.Kennedy in the
White House”, conta como depois de visitar o Brasil em 1961 foi para o Peru com um grupo técnico de alimentação para a paz (5).
NOTAS:
(1) Op. Cit., Zahar Editores, Rio de Janeiro 1962, pág. 146 e 150 e 151 in “Peru: província da Standard”.
(2) B.Voituriez, G.Jacques, “El Niño : Fact and Fiction”, IOC Ocean Forum, UNESCO Publishing, Paris 2000, págs. 104, 106 e 108 in
“Economic and human consequences”.
(3) Op. cit., Editora A Noite, Rio de Janeiro 1954, pág. 30 in “A experiência singular da Espanha”.
(4) Jean-Yves Blot, “Uma rota marítima na encruzilhada de interesses da Europa do Século XVIII. A América Latina às portas da
Europa: O naufrágio do navio espanhol ‘San Pedro de Alcantara (1786)”, Museu Nacional de Arqueologia e Biologia de Lisboa, Cascais
1984.
(5) Op. Cit., A Fawcett Crest Book, New York 1967 (1965), pág. 172 in “VII – Latin American Journey”.
29 de maio de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
XC
Manuel Carvalheiro
Ignacy Sachs já em 1968, num número de Janeiro e Fevereiro da revista então da FAO, a agência da agricultura e
da alimentação então exclusiva para os programas de seca e fome por parte das Nações Unidas do tempo do seu
secretário geral birmanês U Thant, escrevera - naquela época tacteante nas relações internacionais, herdadas do
final da II Guerra Mundial e do período pós-descolonização muito complexo ainda e não terminado sobretudo no
continente africano - uma determinada moção, na sua qualidade de director do Centro de Investigação sobre
Economias Subdesenvolvidas, sedeado na altura em Varsóvia, em que nomeadamente salientava que a então
considerada tecnologia mais moderna à partida assentaria inequivocamente “sobre uma base agrícola que levara
séculos a construir” (1).
Tratava-se, então, de reflectir sobre a dicotomia agricultura versus indústria, sendo que no final da II Guerra
Mundial se tinha apostado na Europa em reconstrução no desenvolvimento preferencial da segunda opção em
certo detrimento da primeira. Talvez por contágio de competição com aquilo que os decisores políticos dessa altura consideravam como
paradigma de países ricos e por essa via altamente industrializados para os padrões da época, apesar das destruições conjunturais
provocadas pelos bombardeamentos. Estes últimos recordados como epifenómeno constante, porém, agora, durante o período mais
agudo da destruição das colheitas e seu envenenamento forçado no Vietname por desfolhantes químicos, precedendo de pouco a
famosa ofensiva do TET durante as festividades do Carnaval no sul da península da Indochina.
Ora, por sequência de eventos pouco reflectidos no contexto da época, os países subdesenvolvidos - ou como tal, posteriormente,
negativamente considerados devido à ambivalência ora valorizante ora pejorativa da atribulada expressão (parasitando a economia
política desde o famoso conceito de modo de produção asiático, como caso à parte do feudalismo na Ásia, incluindo uma burocracia
não hereditária como aglutinadora do aparelho de estado dominante ainda no século XIX e XX de mandarins e letrados, conluiados
com imperadores e governadores coloniais) -, esses mesmos países subdesenvolvidos, também, posteriormente, resolveriam começar
o seu crescimento económico apostando numa rápida industrialização. Com a ilusão conjuntural de que o facto de parte dos países
desenvolvidos estar destruído pelas consequências da II Guerra Mundial, poderiam assim mais rapidamente ultrapassar o fosso que
separava subdesenvolvimento legado pelo estatuto dependente ou colonial e desenvolvimento interrompido por causas exteriores à
vontade pacífica da maioria dos ainda poucos países desenvolvidos, que dominavam as agências e instituições internacionais.
Derivadas da importância físcalizadora dos primeiros organismos resultantes dos acordos da I Grande Guerra, como por exemplo a
Sociedade das Nações e o ideal de pacifismo que lhe fora transmitido pelo presidente Woodrow Wilson desde 1920.
Um pouco antes da crise petrolífera, em 1969, Herbert Marcuse faria uma prospecção sobre o aparente imobilismo de uma população
pouco céptica ainda sobre o consumismo: Qualquer administração tecnocrática e política, tão totalitárias como se possa imaginar,
depende para o seu funcionamento daquilo a que geralmente se apelida de ‘sentido moral’: uma certa atitude (relativamente) ‘positiva’
da população oprimida para com a utilidade do trabalho e do carácter necessário das medidas repressivas que implica a organização
social do trabalho” (2). Era o tempo de «Milou en Mai» (1988) de Louis Malle, em que a avaliação de um quadro de Corot por uma das
personagens à volta da mesa durante a refeição numa propriedade rural francesa, aquando do estalar dos acontecimentos grevistas
em França durante Maio de 1968, serviu para caricaturizar o processo sucessório em que os membros de uma mesma família
dominante se degladiavam, quanto à venda unilateral em leilão daquele quadro pertença do patrímónio familiar.
Ainda em 1967, o Brasil tinha como traço específico contemporâneo o modelo de supervisão estatal do livre mecanismo do mercado
assegurado pelas empresas privadas, que assim controlavam integralmente a economia. Um modelo de promoção do desenvolvimento
económico “sem modificação da ordem social existente”, inspirado historicamente na propriedade do complexo industrial alemão e
italiano, segundo Hélio Jaguaribe, no seu artigo incluído na antologia «Brasil: Tempos Modernos» (3), coordenada por Celso Furtado
em Paris para a revista dirigida por Jean-Paul Sartre. Mas com a variante de dependência da ajuda estrangeira no acesso a mercados
no exterior, ligando as distorções estruturais a um centro externo metropolitano. Mas entrando em contradição com a impossibilidade
clássica “de se manter por longo prazo um processo de concentração política e económica”, coisa que na então Europa ocidental se
havia atenuado com “a posterior utilização mais esclarecida, pela burguesia, de enorme aumento de produtividade proporcionado pela
tecnologia”, que propiciou findas as ditaduras do capital a suficiente manutenção dessas sociedades em progresso e desenvolvimento,
“pelo efeito conjugado das pressões próprias da classe operária”.
“Alguns economistas influenciados pelas teorias da dependência então em voga na América Latina, punham ênfase na perda de
autonomia da política económica” (4) portuguesa, se ficasse directamente à mercê de decisores externos em Bruxelas conectados aos
banqueiros de Zurique, mas em 1980-89 apenas um quarto das exportações portuguesas iam para fora da Europa. Embora se
admitisse que a amortização dos produtos como o vinho antes nos territórios sob sua administração em África, nunca viesse a ser
suplantada pela perda das pescas nomeadamente com a adesão à Comunidade Europeia em 1986 por parte de Portugal, que no
entanto só veria as suas trocas comerciais com o Brasil implementadas a seu favor depois de 1996 e até pelo menos 2002.
Entretanto, Ignacy Sachs havia coordenado em 1998 um número de homenagem à concepção do desenvolvimento segundo Celso
Furtado, consubstanciando a sua opinião a respeito e ligando a imaginação ao saber; no sentido de imaginário da sabedoria
acumulada, triada, escalpelizada, praticada na SUDENE, com a integração regional no Nordeste brasileiro, feita pelo homenageado
economista brasileiro inspirado no exemplo do Vale do Tennessee do tempo de Roosevelt e da ilha Sicília na reconstrução do pós-II
Guerra Mundial. O professor Sachs resume o conceito de desenvolvimento com base em «O mito do desenvolvimento económico»
escrito em 1974 e um texto também de Furtado mas de 1992, intitulado «O subdesenvolvimento revisitado», já inquieto com a
interrupção da construção do Brasil - estava-se perante a crise dos governos do presidente Collor - e com a ascensão da globalização
em aproveitando as consequências ainda mal avaliadas na época da derrocada da ex-União Soviética, nomeadamente : “Desenvolver,
segundo Furtado, consiste em organizar o processo de acumulação em função de prioridades auto-definidas sem se deixar levar pela
leva da modernização superficial na qual o progresso técnico é quase exclusivamente assimilado ao nível do estilo de vida com uma
contrapartida insuficiente ao nível do sistema de produção” (5).
Numa entrevista em Junho de 2004 a uma publicação da Universidade de São Paulo, Ignacy Sachs, polaco de origem que veio para o
Brasil em 1941 e depois, tendo assistido à Conferência de Bandoeng em 1955, foi para Nova Delhi em 1957, onde permaneceu alguns
anos. Voltando em seguida à Polónia nos anos sessenta, onde trabalharia com três economistas de renome internacional como
Kalechi, Lange e um outro, formando uma geração de economistas para países não-alinhados, descreve em pormenor a aventura
científica da sua vida como professor desde 1968 na E.H.E.S.S. de Paris e refere-se então a Celso Furtado a propósito do
planeamento; e dos seus dissabores e contrapesos na história económica do século XX a respeito daquilo que considerava uma luta
entre o “capitalismo reformado” e o “socialismo real”, perfilhando as últimas iniciatiavas do economista brasileiro para a sociedade: “Se
assim é, essas estratégias requerem, como Celso Furtado não se cansa de repetir, um projeto nacional discutido, negociado, que surja
de um grande debate social. Um projeto nacional que resulte de um planejamento estratégico, flexível, onde não são os objetivos
quantitativos que dominam. Planejamento contextual, onde não se atua diretamente sobre o objetivo, e sim cria-se condições que
empurram os atores para determinadas direções”.
E esclarecia, também, desse modo, a recuperação da ideia tornada aparentemente desactualizada: “Planejamento negociado, onde o
Estado, os empresários, os trabalhadores e a sociedade civil sentam à mesa. Planejamento pactuado, onde se chega à
contratualização dos objetivos e das obrigações dos diferentes parceiros. O aprimoramento dos métodos de planejamento do
desenvolvimento é uma das grandes tarefas das ciências sociais”. Para remeter esse envolvimento ao seu devido lugar na pesquisa:
“Em vez de tratá-lo como um apêndice do planejamento econômico, devemos inverter esta relação: o econômico é apenas uma das
dimensões, por importante que seja, do desenvolvimento”, disse Ignacy Sachs numa passagem dessa entrevista importante, publicada
por «Estudos Avançados» em Dezembro de 2004 pela Universidade de São Paulo.
NOTAS:
(1) Ignacy Sachs, «Um falso dilema», in «O Drama do Terceiro Mundo», Cadernos D.Quixote n.6, Publicações Dom Quixote, Lisboa
1968, págs. 113 e 114.
(2) Herbert Marcuse, «Vers la libération : Au-delà de l’Homme unidimensionnel», Bibliothèque Médiations n.71, Denoel/Gonthier, Paris
1970, pág. 155 in «IV-La Solidarité».
(3) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro 1979 (Temps Modernes, Paris 1967), pág. 34 e 43.
(4) José da Silva Lopes, «A economia portuguesa desde 1960», Colecção Trajectos n.36, Gradiva 1997 (1996), págs. 128 e 129 in
«4.4. A adesão à C.E.».
(5) Ignacy Sachs, «L’imagination et le savoir : le développement selon Celso Furtado», Cahiers du Brésil Contemporain n.33/34, Paris
1998, págs. 179 a 183.
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Numa entrevista em Junho de 2004 a uma publicação da Universidade de São Paulo, Ignacy Sachs, polaco de origem que veio para o
Brasil em 1941 e depois, tendo assistido à Conferência de Bandoeng em 1955, revelou que foi para Nova Delhi em 1957, onde
permaneceu alguns anos.
Voltando em seguida à Polónia nos anos sessenta do século XX, onde trabalharia com três economistas de renome internacional como
Kalechi, Lange e um outro, formando uma geração de economistas para países não-alinhados, descreve em pormenor a aventura
científica da sua vida como professor desde 1968 na E.H.E.S.S. de Paris e refere-se então a Celso Furtado a propósito do
planeamento; e dos seus dissabores e contrapesos na história económica do século XX a respeito daquilo que considerava uma luta
entre o “capitalismo (reformado)” e o “socialismo (real)”, perfilhando as últimas iniciativas do economista brasileiro para a sociedade :
“Se assim é, essas estratégias requerem, como Celso Furtado não se cansa de repetir, um projecto nacional discutido, negociado, que
surja de um grande debate social. Um projecto nacional que resulte de um planejamento estratégico, flexível, onde não são os
objectivos quantitativos que dominam. Planejamento contextual, onde não se actua directamente sobre o objectivo, e sim cria-se
condições que empurram os actores para determinadas direcções”.
E esclarecia, também, desse modo, a recuperação da ideia tornada aparentemente desactualizada: “Planejamento negociado, onde o
Estado, os empresários, os trabalhadores e a sociedade civil sentam à mesa. Planejamento pactuado, onde se chega à
contratualização dos objetivos e das obrigações dos diferentes parceiros. O aprimoramento dos métodos de planejamento do
desenvolvimento é uma das grandes tarefas das ciências sociais”. Para remeter esse envolvimento ao seu devido lugar na pesquisa:
“Em vez de tratá-lo como um apêndice do planejamento econômico, devemos inverter esta relação: o econômico é apenas uma das
dimensões, por importante que seja, do desenvolvimento”, disse Ignacy Sachs numa passagem dessa entrevista importante, publicada
por “Estudos Avançados” em Dezembro de 2004 pela Universidade de São Paulo.
Recentemente, um autor importante recomendava: “Para lastrear e aprofundar uma compreensão do fenómeno do desenvolvimento
deve-se dar muita atenção a tudo o que foi escrito pelo magnífico trio formado por Celso Furtado, Amartya Sen e Ignacy Sachs” (2).
Talvez seja algo propedêutico, mas é certamente justo dizê-lo com essa franqueza de bibliotecário com espírito livreiro e até de busca
no sebo, irmanando-os num triângulo figurado entre Polónia, Índia e Brasil, a Europa do Centro e do Leste, a Ásia Índico-Pacífico e a
América do Sul e Central. O que é uma área reconfigurada no mapa que pode assim constituir mais de metade do mundo.
Pois que também professor na Universidade de S. Paulo, está consubstanciado no seu livro sobre desenvolvimento sustentável,
prefaciado em 2005 por Ignacy Sachs, que dizia nele: “O que importa é deixar bem claro que o desenvolvimento não se confunde com
crescimento económico, que constitui apenas a sua condição necessária porém não suficiente. Como bem disse Celso Furtado num
dos seus derradeiros pronunciamentos, ‘só haverá verdadeiro desenvolvimento, que não se deve confundir com crescimento
económico, no mais das vezes resultado de mera modernização das elites – ali onde existir um projecto social subjacente’. Por isso, em
última instância, o desenvolvimento depende da cultura, na medida em que ele implica a invenção de um projecto”.
Mas o próprio professor Sachs havia escrito em 2003, a propósito da estratégia do Plano Plurianual 2004-2007, este comentário
retroactivamente cheio de implicações, não goradas e antes explícitas no decorrer do tempo decorrido, entretanto; e, agora, com
consequências inimagináveis de gravidade presente, no imediato mais próximo: “O emprego é a via básica da inclusão. O planejamento
terá um caráter participativo. Até agora, as diretrizes não despertaram na mídia a atenção que merecem. Isso se deve, provavelmente,
ao imediatismo que permeia a cultura política brasileira e ao desafeto em que caiu o planejamento. É uma pena” (3).
Celso Furtado, no prefácio ao livro de Ignacy Sachs, referia-se aos “impasses” do desenvolvimento no Brasil (4), uma focagem pouco
iluminada habitualmente com a possibilidade de um crescimento zero e um desenvolvimento com potencialidades infinitas, que porém
pode ser interrompido, embargado, destruído, travado e desviado dada a estrutura federal que liga os diversos poderes nos estados e
entre os seus estados. Por exemplo, o estado de São Paulo tem cerca de 40 milhões de habitantes e a cidade sua capital tem 16
milhões de habitantes, a terceira no mundo.
Em «São Paulo S.A.» (1965) de Luiz Sérgio Person, a actividade do crescimento urbanístico serve para testar os valores da ascensão
de classe de um pequeno burguês na selva do cimento armado colateral à fase de industrialização acelerada que se desinteressa da
sorte rural do resto do país, o egoísmo como padrão da luta pela sobrevivência no equilibrismo social ascendente e policial. “Não
adianta propor estratégias que se choquem com a cultura. Celso Furtado dizia que o desenvolvimento é um conceito cultural, na
medida em que requer invenção. Portanto: social, cultural, ambiental. E, para que as coisas aconteçam, tem de haver viabilidade
económica e política. Portanto, a sustentabilidade remete a cinco dimensões e, à primeira vista, isso não aparece” (5).
NOTAS:
(1) «Experiências internacionais de um cientista inquieto: Entrevista com Ignacy Sachs», Scielo Brasil Estud.Av. Vol.18 n.52. Dezembro
2004, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de S. Paulo 2006.
(2) José Eli da Veiga, «O Prelúdio do Desenvolvimento Sustentável», in CAVC, «Economia Brasileira: Perspectivas do
Desenvolvimento», págs. 243 a 266, Universidade de São Paulo 2005; ver também, José Eli da Veiga, «Desenvolvimento sustentável –
desafio do século XXI», Garamond, Rio de Janeiro 2005. Prefácio de Ignacy Sachs.
(3) Ignacy Sachs, «Inovação institucional e desafios», JB, 15-07-2003, Rio de Janeiro.
(4) Ignacy Sachs, «Desenvolvimento: Includente, Sustentável e Sustentado», Garamond, Rio de Janeiro 2005, Prefácio de Celso
Furtado.
(5) «Entrevista: Por um modelo de próprio punho», Adiante, Dezembro, Brasil 2005.
5 de junho de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
XCII
Manuel Carvalheiro
Num filme de Mike Nichols, “Working girl” (1988), a secretária especializada de origem trabalhadora destrona a
dirigente empresarial que passa férias na Suiça e tem um acidente de esqui, ficando imobilizada por isso durante
um tempo, enquanto resolve tudo pelo telefone e sobretudo apoiada numa ideia da sua secretária que revigora a
estrutura da empresa. Um outro quadro da empresa auxilia a primeira a ascender ao conselho de administração
da empresa por falta profissional da segunda, em matéria de funcionamento da empresa face ao mercado exterior
e à competitividade financeira. O sucesso inverte as posições de ambas na direcção da empresa e a segunda tem
de procurar trabalho noutro sítio e ficar sem a amizade do quadro superior masculino que agora apoia a antiga
secretária da primeira.
Um estudioso das reviravoltas por que passam as teorias localizadas de geração em geração, repôs a diferença
entre estruturalismo defensor do papel regulador do estado enquanto pára vento da sociedade civil e liberalismo
económico subalternizando o estado ao mercado e confiando na auto-regulação deste na América Latina turbulenta e dominada dos
anos cinquenta e sessenta do século XX : “Hoje, os neo-estruturalistas têm um ponto de vista mais realista acerca do Estado.
Favorecem a intervenção do estatal e querem ‘obter o equilíbrio correcto’ entre o Estado e o mercado (em lugar de meramente
‘estabelecer os preços correctos’, como fazem os neo-liberais)” (1). Esta visão simplificada ajuda a enquadrar rapidamente com
correcção os dois polos principais das desavenças sobre as políticas económicas de desenvolvimento que regem a arena e os fóruns
universitários dos países em face da globalização ou da mundialização com a sequela do proteccionismo e do comércio livre sem
acordos palpáveis à vista nomeadamente nos sectores do trabalho e do ambiente.
Era necessário criar um novo modelo de civilização, em que a harmonia entre poupanças e investimentos implicaria o controlo do
mercado, de forma a que a solução do desemprego fosse a diluição da economia privada na sua aplicação social à escala do
continente europeu, a ser posteriormente beneficiado por um maior lazer, resultante da repartição da renda de outra forma “e não só
pela via do emprego”, dizia Celso Furtado na sua entrevista a Mario Osava, “Futuro según Celso Furtado”, a respeito do “desemprego
das sociedades industriais já estruturadas como as da Europa”, pois caso contrário com uma competição levada ao paroxismo
conduziria ao esgotamento da actual sociedade. Era uma meta para o novo milénio vista em 1999 (2).
Fernando Henrique Cardoso, que teorizou sobre o curto-circuito e o caos Como epifenómenos sem teoria que se encaixe nas ciências
sociais baseadas nas causas e efeitos, lembrou em finais de 2004 como Celso Furtado encarava - pouco antes de uma crise em França
- em Fevereiro de 1968, os acontecimentos sócio- económicos que decorreriam três meses depois (em Maio de 1968), citando-lhe de
memória em retrospecto a reflexão que ouvira despreocupadamente então: “Aqui se chegou a um grau de racionalidade que elimina
riscos, está havendo agora um debate sobre salário. Só que o sindicato tem tanta pesquisa quanto o governo, então vão fazer uma
negociação e chegam a um entendimento” (3).
Racionalidade, riscos, salário, negociação, palavras chave num discurso sociológico que se reforçou nos últimos trinta anos como
sinónimo de cooperação de classes em vez do animoso termo de colaboração anterior ao desfecho da II Guerra Mundial, substituído
agora por consertação social depois de conflitos sociais com consequências destrutivas terem conduzido a crispações irremediáveis e
não partilhadas nas responsabilidades entre patronato e sindicalizados de proveniência diversificada à mesa de negociações,
confluindo em objectivos essenciais para o desenvolvimento económico de um país com uma base menos estreita de apoio social
necessariamente qualificado e cooptado pela estrutura empresarial privada como forma de criação de emprego.
“O que se chama de neo-liberalismo é em grande parte uma ficção. Nos EUA, há proteccionismo, na Europa também. As grandes
empresas que pressionam já existiam antes. Mas consciência de defesa do mercado interno se perdeu. É uma simplificação excessiva
dizer que o liberalismo venceu e estamos à sua mercê. O que houve foi a mudança do papel do Estado, que diminuiu sua participação
em certa coisas e aumentou noutras, foi reciclado”, afirmou Celso Furtado em finais de 2000, quando ainda a expansão do
desenvolvimento na economia americana não contradizia a globalização de investimentos financeiros em busca e acesso de paraísos
fiscais, em paralelo com a atenção social ao desenvolvimento de países menos desenvolvidos sobretudo em África, como forma de
compensação desse capitalismo selvagem cada vez mais insensível à crescente exclusão social no mundo então na viragem ainda
auspiciosa do milénio (4).
Manuel Castells, sociólogo da informação que reconfigura o capitalismo através da empresa em rede disse: “A produtividade e a
competitividade constituem os principais processos da economia informacional/global. A primeira origina-se essencialmente na
inovação e a competitividade, na flexibilidade. Assim, empresas, regiões, países, unidades económicas de todas as espécies conduzem
as suas relações de produção para maximizar a inovação e a flexibilidade. A tecnologia da informação e a capacidade cultural de
utilizá-la são fundamentais no novo desempenho da função da produção” (5). O Estado foi reciclado, diminuindo as suas funções
numas coisas e aumentando pouco noutras. O desemprego e a reforma pauperizada ficam para a próxima geração de decisores. A
natalidade tende a diminuir e o pós-modernismo instala-se como filosofia da inacção.
NOTAS:
(1) Cristóbal Kay, “Neoliberalismo y estructuralismo. Regreso al futuro”, revista Centro de Estudios M.O. y S. Pallares y Portillo n.117,
Noviembre, Coyacán-Mexico 1998.
(2) Op. Cit., “Futuro según Celso Furtado”, 25 junio 1999, Boletin de Novedades de EMVI.
(3) “Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso”, Providence 7-11-2004.
(4) Gabriela Mafort, “Celso Furtado: Investimento no homem brasileiro”, JB, 12 Novembro 2000.
(5) Manuel Castells, “A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura”, Vol III “O Fim do Milénio”, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa 2003 (1998, 2000), pág. 464 in “Conclusão. Uma nova sociedade”.
(XCIII)
“Quatro décadas nos séculos 20-21, em plena Era da Informação, são suficientes para oferecer uma perspectiva crítica sobre qualquer
evento”, dizia Alberto Dines, que havia vivido em Lisboa na segunda metade dos anos oitenta no século XX, até pelo menos 1996. E
mais adiante acrescentava, centrando-se num “fait divers” governamental totalmente adulterado pelo tempo, pela formação diferente
dos pesquisadores actuais, pela evolução das personagens públicas e pela diferença entre teoria e prática. Sem contrapartida com o
contexto internacional passado e a novidade do então desafio social com o apogeu e prestígio da revolução cubana em 1962, face ao
diferido com um presidente Kennedy que emprestava um novo encanto pessoal à arena mundial, como que antecipando a moda
Armani no pronto-a-vestir e agir.
“Grave é a informação de que o Plano Trienal (de autoria de Celso Furtado) foi considerado na época como ‘esquerdista’ e constituído
de uma série de ‘reformas de base’. Ao contrário, o projecto de Furtado, então superintendente da Sudene (antes, ministro do
Planeamento) previa um processo de desenvolvimento sustentado e confrontava as reformas ditas ‘revolucionárias’, na marra,
proclamadas por Leonel Brizola e muito ao gosto do chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro. Este conflito entre os ‘radicais’ e os moderadoscompetentes (representados por Celso Furtado) é essencial para entender as crises internas que emperraram ainda mais o indeciso
Jango e levaram muitos liberais a seduzir-se pela ilusão do golpe cirúrgico’´” (1). Ora, “os técnicos pretenderam assimilar uma disciplina
social (a planificação e gestão) aos métodos das ciências exactas. E isso conduziu a não poucos fracassos, especialmente no campo
dos espaços naturais protegidos”, dizia Juan M.Barragán em “Las areas litorales de España: del análisis geografico a la Gestión
Integrada” (2).
René Clair em “A nous la liberté” (1931), relatou em plena crise social Europeia, face às repercussões tardias da crise bolsista norteamericana ocorrida dois anos antes, a fuga da prisão em que dois amigos se entreajudam após o sucesso de um deles à custa do
sacrifício do outro. Sendo que o primeiro, entretanto conseguindo ser proprietário de uma fábrica de discos, acabaria posteriormente por
dar emprego ao outro, que por ele antes se havia batido na prisão, conduzindo em circunstâncias diferentes à liberdade de ambos. Esta
parábola lírica entroncava-se numa situação ulterior, em que ambos são obrigados a fugir de novo, mas agora da referida fábrica, após
a ocupação feita pelos seus trabalhadores. O clima social dessa época, repercutiu-se noutros moldes, após a crise asiática financeira
em 1997, dando origem à primeira quebra de mercados à escala mundial, desde a divulgação da globalização a partir de 1992. A
recente condenação na Daewoo, uma empresa sul coreana ligada a um escândalo de direcção administrativa, reflecte uma dinâmica
ainda de ressaca desse pretérito sismo financeiro e de corrupção fiscal ou de outra natureza bolsista.
É ainda como consequência deste contexto, que Aung San Suu Kyi, prémio Nobel da Paz em 1991, apesar de ter conseguido alguma
liberdade momentânea em Myanmar, a antiga Birmânia, conforme imagens de vídeo a 8 de Abril de 2003 e agora repassadas mais
recentemente de novo, continua sob escrutínio isolado no seu país apesar de um enviado das Nações Unidas a ter contactado em
missão, num contexto de suspensão de garantias por parte das instituições actuais do seu próprio país, à revelia de qualquer
recomendação internacional.
Vem isto também a propósito da coincidente prelecção académica do actual 1º ministro britânico, na Universidade de Georgetown a 25
de Maio de 2006, em que foi substancialmente abordado o problema da reforma das Nações Unidas e em especial do seu actual
Conselho de Segurança (3), com pelo menos ainda os tradicionais cinco representantes exclusivos e mais dez eleitos de dois em dois
anos de estados membros, que segundo o preponente relembrou deveria ser alargado nesse estatuto para o dobro, com a entrada
cativa de representantes do Japão, Alemanha, Índia, como também da América Latina ou de África. No entanto, marca esta posição
política reincidente num tempo histórico adverso para tais reformas a curto prazo, embora academicamente possa igualmente reflectir a
angústia cívica geral em função do enfraquecimento decisório das Nações Unidas desde o início da crise de multilateralismo convenial
em 2003.
Será assim talvez com este lastro afectivo muito irregular e sem quadro institucional claro, alterar tão substancialmente a natureza da
carta das Nações Unidas, impregnada ainda pelo espírito da época da sua entronização em 1945, num mundo que acabara de sair da
destruição e enveredava pela reconstrução de um conflito inultrapassável em saldo até hoje. O que podem vir a ser reformadas são
algumas das suas agências, que devem ser democratizadas na sua maior capacidade de actuação, como o Fundo de Alimentação
Mundial e a sua política económica de armazéns de sacos de arroz pilhados pela multidão esfomeada, em zonas rurais ou citadinas de
conflito e desorganização súbitas, com a retirada de pessoal multinacional. Por vezes apanhados de surpresa no caos civil e
incivilizacional, quanto a sobrevivência imediata devido também a catástrofes naturais. Problemas de asfixia no desenvolvimento
precário, já, entretanto, programado e desfeito num ápice; de países, cuja fragilidade institucional é episodicamente remanescente, no
quotidiano mundial, meio século depois da Conferência de Bandoeng.
A Colômbia tem uma guerra civil larvar há mais de quarenta anos, que ocupa um terço do seu território. As características da Colômbia
permitiram, no entanto, desde 2002, atingir em 2005 um crescimento económico de 5% ao ano; o que retoma os números de 1995,
conforme o “Atlaseco-Atlas économique mondial 2000” (4) e, mesmo, aproximando-se do crescimento económico dos anos sessenta
até 1970, que era de 6,2% (ou de 4,6%, nos anos cinquenta até 1960), conforme o livro de Celso Furtado, “Economic Development of
Latin America; Historical Background & Contemporary Problems” (5). Embora com o contrapeso de 8% de desemprego, também anual,
porventura menos do que na segunda metade dos anos noventa do século passado. Mas apesar de terem dobrado as exportações
colombianas, isso é feito num contexto em que 49,2% da sua população vive abaixo do limiar de pobreza, com um índice “per capita”
de 770 dólares por habitante anual, numa população de mais de quarenta milhões de habitantes.
NOTAS:
(1) Alberto Dines, “1964 + 40 : anos de chumbo, chumbados”, www.observatoriodaimprensa.com.br, Brasil 2004.
(2) Op. cit., Editorial Ariel-Ciencia, Barcelona 2004, pág. 77.
(3) “ABC de las Naciones Unidas”, Departamento de Información Publica, Nueva York 1998, págs. 9 a 11.
(4) Op. Cit., Les Guides Le Nouvel Observateur, Paris 1999, págs. 47 e 48 in “Colombie”.
(5) Op. cit., Cambridge University Press (Second Edition), Cambridge – London – New York – Melbourne 1978 (1970, 1976), pág. 61 in
“6 – Some indicators of the degrees of development reached in Latin America”.
12 de junho de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
(XCIV)
Celso Furtado, no seu opúsculo final publicado em 2002, “Em busca de novo modelo: Reflexões sobre a crise
contemporânea” (1), dizia a propósito de um dos três flagelos que o atormentavam, em comparação desfavorável
com a própria Índia mais curial neste encarar da situação endémica de gestão da penúria, que “em alguns países
da Europa, e na Nova Zelândia, a habitação é uma meta social definida pelo governo. Desde os anos 50 a França
vem construindo as chamadas ‘habitations à loyer modéré (HLM)’, casas e apartamentos de aluguer reduzido; o
déficit habitacional que havia no final da Segunda Guerra foi sanado em pouco mais de dez anos. Essa política de
financiamento nos tem cruelmente faltado”. Ora pois bem a estratégia de novas cidades dormitórios como forma
de não sobrecarregar as grandes cidades que predominou em Inglaterra desde 1961, coincidira nesses anos após
o fim do racionamento planeado em 1954 com a reconhecida política das vantagens do desenvolvimento regional,
caminhando-se assim para aquilo que se convencionaria então depois chamar-se de “descentralização planeada” (2).
“Portugal é o velho aliado de que se bebe o vinho, foi por lá que outrora se começava a sua volta pela Europa, como Byron e Beckford”,
assim se referia num guia cultural de turismo francês em 1957, um ano após a estreia do filme oceanográfico do comandante JacquesYves Cousteau e de Louis Malle, “O Mundo do Silêncio” (1956), que de resto se via transposto em imagem publicitária em cartaz numa
parede lateral de uma casa rural e rústica à beira da estrada, numa fotografia a preto e branco também reproduzida no livrinho de Franz
Villiers reeditado em 1961.
Era o país que, segundo o vate, dera novos mundos ao mundo e que, agora,
meio século passado, sob aquela chancela vinícola e vitícola, se revela como agricultura (mundo rural ?), também, que sofre com as
mazelas parciais da sua adesão incondicional vinte anos passados à União Europeia. Com o seu sector pesqueiro, igualmente,
prejudicado ainda mais e reduzido à mínima expressão.
Embora, depois de tudo isso, cinquenta anos passados sobre aquela frase auspiciosa e com vinte anos decorridos sobre o volte face
concorrencial acelerado, esse mesmíssimo país do vate - já sem mundo para renascer os mundos de outrora - conserve, ainda,
penosamente, o sexto lugar no “ranking” mundial de exportador condicionado de vinhos.
Celso Furtado em “Introdução ao Desenvolvimento : enfoque histórico- estrutural” (3), dizia que “enquanto isso a teoria dos custos
comparativos fundada por D.Ricardo e completada por J.S.Mill, expunha de maneira irretorquível a vantagem de levar o mais longe
possível a especialização no quadro da divisão internacional do trabalho. Pouca dúvida podia haver de que, exportando vinhos,
Portugal estava maximizando vantagens comparativas, pois assim utilizava mais eficazmente recursos que pouco ou nada lhe
custavam”.
Também um estudioso como Carlo M.Cipolla de retroprojecções macro- económicas na parte do comércio externo, em países de
dimensão territorial diferente antes da revolução industrial, mas com implicações ressonantes ainda na presente actualidade, dizia a
propósito, em 1974, aquando do seu estudo sintético “História Económica da Europa Pré-Industrial” (4) e reeditado ainda uma geração
depois :”Em Portugal, cerca de meio século depois do Tratado de Methuen de 1703, o Marquês de Pombal podia queixar-se com razão
de que ‘dois terços das nossas necessidades são agora satisfeitas pela Inglaterra, os ingleses produzem, vendem e revendem tudo o
que é necessário ao nosso país. As antigas manufacturas de Portugal foram destruídas ’”.
Não é de estranhar assim que um australiano, Wilfred Burchet, de visita a Portugal em 1974 com a sua esposa búlgara, tenha noutro
contexto escrito o seguinte em “Portugal depois da revolução dos capitães”, a dado passo talvez mais correcto para dez anos antes, em
1964, mas que prevalecia mesmo assim como ideia geral nos meios mais cosmopolitas sobre o país que visitava em liberdade e que
para ele então ironizando, segundo a pretérita ideia divulgada pelo regime anterior, agora já não “tinha de permanecer um país agrário,
produtor de vinho e de rolhas para o engarrafar”. Em 1976 as exportações de Portugal - em preços FOB - representavam 11,3% do
PNB, isto é já então menos uma décima do que na Gécia na mesma altura (5).
Não foi assim por mero acaso que a série televisiva norte-americana “Columbo”, no episódio Cassini, retratava o vinho “Montefiascone”
como tendo servido de encobrimento a uma trama ilegal, em que a personagem interpretada pelo actor Peter Falk a deslindava, depois
ao encontrar uma garrafa de “Porto Ferreira” (vintage 1945), cuja colheita fora adulterada de propósito por um dos elementos do
restaurante californiano na cave. Onde se passava a trama final da acção e de dedução do delito conjuntural, sabendo este último a
tintura de iodo, devido a fermentação não compatível com a temperatura de conservação, cuja diferença fora escamoteada entre as
duas marcas.
Caricatura, apenas, mas sintomática nos anos oitenta do século XX da imagem distorcida junto do grande público consumidor no país
comprador do outro lado do Atlântico, sobre os produtos vinícolas europeus e em particular italianos e portugueses. A TV Record a 6 de
Abril de 2006 no programa “Tudo a ver” emitiu uma das reportagens “Caminhos de Portugal”, dedicado ao Porto e em especial ao vinho
de 1880 nas caves da casa Adriano Ramos Pinto, que teve outrora 50% de exportação para o Brasil, com garrafas do “vintage” descrito
como cobertas de bolor e poeira. A Confraria do Vinho do Porto reunia-se na ocasião no Palácio da Bolsa de Valores do Porto,
enquanto cá fora passavam cavalos da GNR, descrevendo-se em seguida na ocasião o ritual de 62 homens aptos à entronização de
pompa, gala e figurinos em festa e música, obrigando- se a quem a ela pertencesse de defender o seu consumo e promoção pelo
mundo inteiro.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Paz e Terra, São Paulo – Rio de Janeiro 2002, pág. 18 in “I – O problema da pobreza no Brasil : A habitação”.
(2) Stephen V.Ward, “Planning and Urban Change”, Second Edition, SAGE
Publications, London – Thousand Oaks – New Delhi 2004, págs. 164 e 165 in “6 – Adjustments and New Agendas : II Strategic Policies,
1952-74”.
(3) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro – São Paulo 2000 (1980), pág. 24 in “II – Desenvolvimento – Subdesenvolvimento :
a problemática actual”
-----------------------------(XCV)
David S. Landes em “A Riqueza e a Pobreza das Nações” (1) constatava o seguinte: “Até os cientistas e técnicos são vulneráveis, pois
a ciência e a razão são duras companheiras. Não obstante, ilusões, falsas crenças e fé são excluídas em princípio e na prática da
investigação e descoberta”.
Para Luiz Carlos Bresser-Pereira em “Method and Passion in Celso Furtado” (2), o “desenvolvimento no sentido histórico da palavra
somente ocorre quando a expansão do Islamismo força Bizâncio a voltar-se para Itália. Economias comerciais poderosas são então
formadas nas cidades-estado italianas e à volta da aristocracia, ou no seu lugar, uma nova classe burguesa aparece”. Deste modo,
“este comércio promove a integração política, que pode eventualmente por fim conduzir ao surgimento de estados nacionais”.
Paradoxo, no entanto, retroactivamente constatado, porque finalmente “as instituições neste caso emergem antes mais como uma
consequência do que como causa do desenvolvimento”.
Talvez seja polémico este último aspecto, mas no entanto, “Furtado era explícito acerca disto e repara assim como no Império Romano
a integração política conduziu ao comércio e ao desenvolvimento”, embora “na Europa fora o comércio de longo curso, aventureiro e
inseguro, que causará integração política”, sendo que também por sua vez na roda da história económica e política, “este último,
contudo, cedo se tornará um factor decisivo do próprio desenvolvimento”.
Ainda em 1974, no entanto, concluía-se que “datar o começo da Revolução Industrial em qualquer parte é tão arbitrário como datar o
começo da Idade Média ou da Idade Moderna. Dentro do mesmo país, regiões geográficas, grupos sociais e sectores económicos
movem-se a ritmos diferentes”; para além de que nesta sequência de eventos desordenada de eventos só posteriormente
racionalizada, “novas actividades e novas formas de vida se desenvolvem enquanto uma série de actividades tradicionais e velhas
instituições continuam a sobreviver”.
Ora, o autor italiano destas observações, Carlo M. Cipolla em “História Económica da Europa Pré-Industrial”, acabava por contextualizar
“a posteriori” o fosso histórico e o que dele remanescia do “antes” no “após”, isto é, “em termos largos, contudo, pode-se afirmar”,
garantia ele, “que, em 1850, a Revolução Industrial penetrara na Bélgica, França, Alemanha e Suiça”, nomeadamente, embora só
depois, segundo ainda o referido autor italiano, “em 1900, estendera-se ao norte de Itália, à Rússia e à Suécia” (3). Apenas como
fenómeno típicamente europeu oriundo do “antes”, pois na América do Norte só teria havido o “durante” e o “depois”, em função inicial
da emigração europeia sobretudo no século XIX.
Voltando ao “antes” da Revolução Industrial, a criatividade como sublimação do artista pós-medieval, cristalizaria o poder temporal da
instituição que encomendava a obra, no compromisso com a secularização da arte como então ligação proposta ou sugerida entre o
alegado imobilismo rural ligado à natureza e o desenvolvimento do centro urbanístico à volta do castelo danificado ou deixado
abandonado, patente na figura desorientada de Giotto que nos propôs o “Decameron” (1970) de Pier Paolo Pasolini, num fresco
panorâmico do que restava da instituição romana na reiniciação da civilização burguesa e popular, cuja liberdade e irracionalidade eram
uma mescla entre obscurantismo e invenção tecnológica (4).
Os ladrões de gado, o transporte de pedras, a medicina das plantas e a produção artesanal faziam parte dos circuitos comerciais, que
tendiam a desenvolver as economia de mercado e à formação do capital fixo, em proporção muito maior do que o capital circulante em
Itália durante o pré-Renascimento.
A feira coabitava com o meão, a caserna com a praça, a cidade e o estado criavam as instituições da futura nação. A produção de
conhecimentos é substituída pela introdução da ideia de simulação especulativa do conhecimento científico pela ideologia da garantia
empírica da dissimulação (5), tal como em “L’Udienza” (1971) de Marco Ferreri, numa cena extravagante recordava a guerra colonial
em África, através de um militar fardado que tentava introduzir-se clandestinamente no labirinto topográfico de Roma, para ser recebido
algures por artes mágicas por um dos próximos do Papa Paulo VI.
Significando, nessa época, uma aproximação inédita com a prática de separação de poderes, já existente de facto na república italiana.
Pelo menos, para sua exportação simbólica para os problemas do atraso medieval nas zonas interiores do continente africano, que
almejavam à independência política desde que a pioneira Libéria o fizera ainda no século XIX por antigos escravos libertos após a
Guerra da Secessão.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Gradiva, Lisboa 2001 (1998), pág. 571.
(2) Op. Cit., in “A Grande Esperança em Celso Furtado”, Editora 34, São Paulo 2001, pág. 16.
(3) Op. Cit., Colecção Lugar da História n.21, Edições 70, Lisboa 2000, pág. 331.
(4) Pier Paolo Pasolini, “Il Caos”, L’Unità/ Editore Riuniti, Roma 1991, pág. 97 in “Festività e consumismo” (1969).
(5) Michel Pêcheux, “Les vérités de La Palice”, collection Théorie n.11, François Maspéro, Paris 1975, pág. 121.
19 de junho 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
(XCVI)
Um programa “Earth Report” emitido pela BBC World a 20 de Julho de 2005, intitulava-se “Darfur – Wind and Fire” (Darfur: vento e fogo), relatando em síntese uma colecção
de dramas e desgraças que se abateram sobre aquela região sub- sahariana situada no país mais extenso de África, o Sudão
Manuel Carvalheiro
Era quase um lugar comum, quando Celso Furtado em “Le mythe du développement économique”, dizia então há
já cerca de três décadas o seguinte, como banalidade a repetir nos fóruns internacionais sobre a seca do Sahel :
“Se, pondo entre parêntesis as conjunturas, limitarmos a nossa observação ao quadro estrutural presente do
sistema capitalista, vemos que o processo de acumulação amplifica o fosso entre um centro onde a
homogeneização vai crescendo e uma constelação de economias periféricas cujas disparidades continuam a
agravar-se” (1), ciclicamente dir-se-ia talvez agora.
Face à globalização e à transformação do socialismo remanescente em ariete da economia de mercado, num
efeito dito de “boomerang” histórico com caricatura retardada na África sub-sahariana. Assim, um desejo recente
por parte de Joseph E.Stiglitz em “Globalização – A grande desilusão”, garante-nos que nem tudo pode estar
ainda perdido para daqui a mais trinta anos: “A globalização pode ser reformulada e, quando o for, e todos os
países tiverem uma palavra a dizer nas políticas que os afectam, é possível que ela ajude a criar uma nova economia mundial em que o
crescimento seja mais sustentável e menos volátil, e os frutos do crescimento sejam partilhados de uma forma mais equitativa” (2).
Joseph Gai Ramaka realizou uma nova versão cinematográfica de “Karmen” (2001), revelando a noite africana à luz da inspiração da
ópera de Bizet de 1875 e conseguiu introduzir-lhe a vitalidade das instituições em Dacar. Abstraindo-se, no entanto, o país africano e
revelando uma realidade comum aos países africanos daquela região. Elevando-a a porta-estandarte sobre a influência do
neocolonialismo europeu em elites dependentes inevitavelmente sob o ponto de vista económico, mesmo quando uma mulher de
grande integridade lhes faz frente no meio da confusão de um estado de sítio episódico.
Um programa “Earth Report” patrocinado pelo programa das Nações Unidas para o Ambiente, emitido pela BBC World a 20 de Julho de
2005, intitulava-se “Darfur – Wind and Fire” (Darfur: vento e fogo), relatando em síntese uma colecção de dramas e desgraças que se
abateram sobre aquela região sub- sahariana situada no país mais extenso de África, o Sudão. O Conselho de Segurança das Nações
Unidas cristalizou praticamente a sua atenção particularmente nesta região, como forma de tentar curar um abcesso políticoadministrativo que servisse de exemplo conjuntural para a eficácia na luta contra a sua própria paralização actual como organismo
internacional desde o hipertrofiado escândalo do programa “Oil for Food” para o Iraque, antes da intervenção norte-americana e
britânica em 2003, forçando o unilateralismo e esvaziando a autoridade ainda remanescente de um fórum que agora lida com
dificuldade a questão das eventuais sanções ao Irão pela necessidade deste país querer recorrer ao uso da energia atómica atribuída
para o desenvolvimento económico do seu território.
Neste contexto, o Darfur como território com cerca de um milhão dos seus habitantes - e cuidando de 34 milhões de cabanas -, tem
servido de modelo de intervenção solidária para evitar o abandono ou massacre de parte da sua população instalada em campos de
refugiados, que segundo as Nações Unidas representam uma parte apenas dos cerca de três milhões de pessoas que precisam de
ajuda alimentar. Actualmente, no entanto, com dois milhões de deslocados e cerca de duzentas mil mortes segundo estimativas mais
recentes e corrigidas. E segundo o director do Fundo Mundial de Alimentação levaria seis meses entre a programação da ajuda
alimentar e a sua prossecução no terreno, já que ainda faltariam 80% da verba da anterior estimativa para ajudar mais de seis milhões
de sudaneses.
Mas naquele programa “Earth Report” de 2005, uma universidade alemã avaliou na altura que Darfur com os seus então cerca de cinco
milhões de habitantes poderia tê-los alimentado se soubesse usar bem os resultados das sementes de tomates, melancias, feijões e
pimentos entretanto semeados desde que aquele território do Sudão se achava na mira da ajuda internacional com vista
nomeadamente a evitar os prejuízos das secas e as guerrilhas da SLA, que haviam provocado o problema ecológico crítico desde
2003, embora os refugiados fossem cultivadores e Cartum, a capital do Sudão, atravessasse uma profunda crise económica que fizera
subir o preço do consumo médio do gás de cinco vezes mais, devido também à actividade coincidente dos grupos armados que
combatiam o poder central. Entretanto, naquele programa televisivo dedicado em 2005 ao Darfur, era revelado como a Universidade de
El Fashir – confluência de caravanas do Chade, do Nilo e do Sara Oriental no Darfur (3) – recolhia dados para reconhecer depois que,
para se fazer uma aldeia no Sudão e, em particular, na tão especial província ocidental do Darfur, eram necessárias em média cerca de
trezentas No entanto, só apenas uma simples e única família poderia vir a ter necessidade de gastar em média cerca de 55 árvores por
ano, sendo que destas eventuais apenas três bastariam para construir uma cabana. Ora, visto que em média cada aldeia pode vir a ter
necessidade de cerca de cem cabanas, essa mesma família modelo da estatística prospectiva gastaria cerca de 53 árvores por ano
apenas só em lenha para se aquecer e cozinhar ou trabalhar, isto é, como família padrão gastaria então em média por
semana uma árvore para fazer fogo e artesanato ou metalurgia primitiva para a agricultura de sobrevivência, para a pesca eventual e
pecuária.
Uma imagem sobremaneira bucólica é a de se ver um ferreiro local à sombra de uma enorme árvore reparando um arado numa
localidade esquecida ou pequena povoação perdida na imensidão da savana e do deserto ou ocasionalmente ressurgida do nada
repovoado pelas circunstâncias do abandono anterior de outros que migraram devido à guerra local da vila fantasma. Pelo menos na
altura, em 2005, eram necessários 14 milhões de dólares para repor apenas a actividade comercial no norte do Darfur, onde as vias
rodoviárias eram de terra batida e poeira, em geral estradas muito más que fizeram perder ao comércio respectivo antes do desastre
ecológico local o equivalente aproximado àquela quantia agora estimada naquele episódio documental da série “Earth Report”.
Curiosamente, em 1968 foi publicado em Londres um livro de B.W.Hedder, “Economic Development in the Tropics” e ao qual Celso
Furtado em “Análise do Modelo Brasileiro” (4) havia dedicado um interessante rodapé sobre o agricultor de Cabrais no norte do Togo
que ao deslocar-se para o sul, adoptava os métodos de cultivo de mudança de campo, “para colonizar parte da ‘faixa central’ vazia”,
segundo Hedder, preferindo aquele agricultor migrante assim técnicas de produção que não fossem de cultivo intensivo, habituais há
séculos nas zonas mais populosas.
Actualmente, no entanto, em Junho de 2006, uma manifestação de trabalhadores exibia cartazes pouco favoráveis à permanência das
forças especiais dos países da União Africana, avaliadas em sete mil homens para um território do tamanho da França, que em
convénio com as Nações Unidas permaneciam no Darfur ocidental, território para todos os efeitos de um país soberano, o Sudão, com
apenas menos de 1% das suas terras cultivadas nos 5% aráveis, segundo o “Atlaseco – Atlas économique mondial 2000” (5). No
entanto, os tempos mudam e as vontades nem tanto num desfazamento típico entre o económico e o político, mais agravado porém
numas regiões do que noutras deste mesmo mundo.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Éditions Anthropos, Chatou 1976, pág. 86.
(2) Op. Cit., Terramar, Lisboa 2002, pág. 59.
(3) Jacques Maquet, “Les civilisations noires histoire/techniques/arts/sociétés”, marabout université n. 120, Gérard & Co.,Verviers 1966
(1962), pág. 204
(4) Op. Cit., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1972, in “Fatores institucionais e ecológicos na formação das estruturas”, pág. 110.
(5) Op. Cit., Les Guides Le Nouvel Observateur, Paris 1999, pág. 191 in “Soudan”.
Por lapso, no texto XCIV, publicado na última edição, falharam as seguintes notas:
(4) Op. Cit., Colecção Lugar da História n. 21, Edições 70, Lisboa 2000, pág. 78 in “I – A Procura. Procura estrangeira” (“Before the
industrial revolution”, 1974).
(5) Sidney Pollard, “Peaceful Conquest: The Industrialization of Europe 1760- 1970”, Ford University Press, USA 1981, pág. 319 in “9Reintegration into two Europes”.
26 de junho de 2006 XCVII
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XCVII)
Manuel Carvalheiro
“A Volta ao Mundo em 80 Dias” (2004) de Frank Coraci, renova a tecnologia imaginada por Jules Verne em 1872 e
visita lugares que a anterior versão cinematográfica de 1956 não tinha evidenciado. Resumindo ou modificando as
personagens estandardizadas pelo romance de aventuras, uma delas que se interrogava em S. Francisco sobre o
significado de civilização moderna, a miséria forçada e a liberdade de consciência, o delírio da invasão dos
homens como pássaros enquanto discurso utópico e a omnipresença da violência urbana subsequente ao
desemprego industrial.
Um discurso universitário em “voz-off”, numa cena final em “Brewster Mc Cloud” (1970) de Robert Altman, remetianos - no tempo das atribuladas perorações do vice-presidente Spiro Agnew (1968-1972) - demasiado
escolasticamente para a explicação ancestral do desenvolvimento dos pássaros, quando imitados pelo pequeno
homem davinciano contemporâneo. Acreditando este, textualmente, no mito de Ícaro reproduzido artesanalmente
num estádio de “baseball” californiano (mas que era apenas o insólito Astrodrome de Houston, no estado do Texas, em cujo abrigo
subterrâneo era suposto viver escondido o ulterior jovem voador), em que se sublinhava pausadamente, porém, no referido discurso
sonolento, os milhões de anos que levara ao aperfeiçoamento da técnica de voo, pela via da biologia muscular e da sua motricidade
voluntariosa.
Mal correspondida, contudo, no esforço inglório (apresentado na imagem de um pássaro artificial, locomovido como no tempo dos
irmãos Wright) de uma imitação experimental, sem contar com o cansaço mortal pelo esforço juvenil dispendido e que levaria ao
falhanço do “The Greatest Show on Earth”, um espectáculo de circo norte-americano que integrava em parábola a improvisação
alegórica de uma tragédia real, cuja simbologia do engodo e do mito do cimo da montanha atingido por Sísifo reactivava civicamente a
derrota anunciada e consagrada como em “Os Pára-quedistas” (1968) de John Frankenheimmer, onde a multidão ávida de espectáculo
arriscado fazia justiça natural com o silêncio do inesperado desfecho numa sociedade que só premeia o sucesso à custa da maioria dos
derrotados.
Em “A idade de cristal” (Logan’s run, 1976) de Michael Anderson, o planeta Capricórnio no ano 2274 revelou-se como a Terra do
avesso, como que coberta por um cataclismo de que teria apenas sobrevivido um velho homem, instalado na biblioteca do Congresso
em Washington e onde perto do rio Potomac se desceria por um subterrâneo até uma imensa cidade sobrevivente à última glaciação.
Onde, porém, devido ao seu igualitarismo a à crença de único mundo, fascinado pelo pensamento único, apesar da sua evolução
tecnológica futurista, era imperfeita no lema de eliminação dos maiores de trinta anos. Bastou um jovem para redescobrir a existência
de um mundo exterior selvático, mas que era livre daquele interdito absurdo, para destruir a quimera de uma utopia perfeita nas
profundidades do centro da Terra.
Seria, assim, de toda a utilidade o esforço compensatório em unificar toda uma sociedade sem classes, a troco de um exercício físico
ilimitado quando Chris Marker realizou o documentário “La Bataille des Dix Millions” (1970), valorizando o ideário de um visionário
diante do fracasso do limite não alcançado na produção voluntariosa, face à herança mono-produtiva de um legado dependente da
exportação de açúcar no mercado das Caraíbas, como extemporâneo para o desenvolvimento mais harmonioso em face da defesa
omnipresente. Perante um agressor que se imaginava mais adverso do que realmente fora, apesar das evidências da época e da
pressão dos acontecimentos históricos anteriores, como explicação da canalização da energia humana para objectivos inalcançáveis.
“Em 1997, o Brasil anunciou que estava a lançar um novo programa de duzentos milhões de dólares para desenvolver o ecoturismo nos
seus nove estados da Amazónia, quando os países da América Latina eram tidos segundo um relatório como tendo investido 21 biliões
de dólares no ecoturismo” (1).
Há trinta anos, em 1976, Celso Furtado dera uma conferência num novo instituto de estudos latino-americanos inaugurado na
Universidade de Caracas, na Venezuela, texto que constitui o essencial do capítulo final do seu livro “Prefácio a Nova Economia
Política” (2), onde se referia em comparação com essa nova fase de investigação ao seu percurso inicial em 1949, integrado num grupo
que então havia procedido ao primeiro estudo económico sistemático da América Latina, mas para dizer que haviam começado a partir
de balanças de pagamentos com dados incompletos e apenas ainda só de alguns dos países latino-americanos de então. Mais tarde,
em 1957, Celso Furtado passaria três meses na Venezuela, com vista ao estudo preparatório que serviria de base a um curso de
Capacitação, solicitado pelo ministro dos negócios estrangeiros dessa altura à CEPAL, sedeada como desde sempre em Santiago do
Chile.
A forma precária como se encontrou depois, já em Caracas, no ministério do Fomento, enquanto autoridade internacional e com direito
a autonomia de investigação sumária a respeito, levou logo a dispensar a hipótese de vir a constituir para o efeito uma equipa auxiliar
de recolha de dados em todos os sectores da economia venezuelana, optando apenas então por pessoal auxiliar e um economista do
Banco Central. Mesmo assim, conseguiria algumas das primeiras “tabulações” (tabelas) sobre população activa e actividades industriais
respectivas. Reconstituindo-se, assim, heteroclitamente pela primeira vez, séries macro-económicas sobre o decénio 1945-1955. Num
país que usufruíra da expansão petrolífera e com o início da participação do estado nos lucros provenientes dessa indústria.
Conhecendo-se, porém, o plano de obras nas áreas mais importantes do seu território e os seus imensos gastos fora das áreas mais
produtivas, apesar de um imenso crescimento económico, que no entanto era desviado do desenvolvimento reprodutivo.
No entanto, o seu ajudante qualificado e economista requisitado ao Banco Central - numa economia controlada então por um general
autocrático - desapareceria, sem haver acesso a mais dados sobre o sistema monetário vigente e sobre a visão mais realista da
balança de pagamentos desse ano. Para além dos dados do censo de 1950, que já de si haviam mesmo até então sido pouco
publicitados em estudos parciais e guardados em segredo de estado. Sabendo-se que o economista requisitado por Celso Furtado fora
transferido para Ciudad Bolivar (3), o que queria dizer - antes da redemocratização de 1958 -, que havia sido desterrado
provisoriamente.
Também, nessa época, a Venezuela, através do excelente documentário sobre as salinas do tempo do esclavagismo, “Araya” (1959) de
Margot Benacerraf, atingiria pouco depois um prestígio cultural insólito. Sobretudo para a época na Europa e à escala do reflexo cultural
de toda a América Latina, num território cuja costa marítima era revelada mais pela sua força de trabalho e de uma forma inédita desde
o tempo da visita exploratória do sábio alemão Humboldt, do que propriamente pelo seu potencial ecoturismo miserabilista, eclipsado
por um consumismo citadino de altas rendas, devido à inacção que provocava o desvio petrolífero de então.
Em “O Petróleo em Crise”, Harvey O’Connor escrevia então a seguir à redemocratização de 1958: “O Banco Mundial observava as
crescentes dificuldades financeiras da Venezuela. O bolívar, que apenas alguns anos antes, na época da ditadura, partilhava com o
dólar canadense a orgulhosa posição de ser cotado um pouco acima do dólar americano, era agora vendido no mercado com um
desconto de 30 ou 40%”. Assim, apesar da liberdade reconquistada em 1958, desde logo a distorção petrolífera na economia se impôs
e a tentativa de correcção a longo prazo fragmentou-se de imediato sem que houvesse trégua por parte do mercado externo, para além
de um curto período de expectativa por parte do liberalismo democrático incomodado com a grosseira corrupção anterior, pelo que o
referido autor concluía: “A pressão no sentido da desvalorização oficial da moeda era intensa. Os peritos do Banco Mundial não se
mostravam muito animados. Era uma infelicidade, no momento em que o governo democrático iniciava um ambicioso programa de
desenvolvimento, que o mercado mundial sofresse uma depressão e o petróleo venezuelano tivesse seus lucros reduzidos. A receita do
Banco para a recuperação económica era oposta à do Governo: determinava o aumento de produção com a reabertura de poços, pois
os baixos ‘custos de incrementação’ tornariam a produção total mais lucrativa” (4).
Em 1959, um inquérito feito por C.E.Weber no contexto da progressiva automatização da economia norte-americana dizia que a
formação dos programadores e analistas de ordenadores era um factor de abaixamento na qualificação da maioria dos empregados
nos escritórios apesar do desenvolvimento introduzido na produtividade. E em 1963, Yale Brozen num estudo projectou para entre 1993
e 2013 a total automatização da economia norte-americana, calculando-se uma taxa de crescimento quase paralela à taxa de
desemprego, 4,5% e 5%, respectivamente (5).
NOTAS:
(1) Martha Honey, “Ecotourism and Sustainable Development: Who Owns Paradise?”, Island Press, Washington 1999, pág. 18 in
“Developing countries: seeking foreign exchange and sustainable development”.
(2) Op. cit., Biblioteca Perspectivas do Homem n. 5, Dinalivro, Lisboa 1976, págs 125 a 136 in “IV – Conhecimento Econômico da
América Latina”.
(3) Op. cit., Colecção Estudos Brasileiros n. 89, Paz e Terra (5ª edição), Rio de Janeiro – São Paulo 1985, págs. 192 a 196 in “XII –
Cavaleiro andante”.
(4) Op. Cit., Zahar Editores, Rio de Janeiro 1962, pág. 181 in “XII – O País
Prisioneiro”.
(5) Eric Gaument, “O mito americano”, Colecção Praxis n. 3, Editorial Estampa, Lisboa 1971 (1970), págs. 127 e 128 in “O futuro do
povo americano
3 de julho de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
Celso Furtado associava o desenvolvimento económico e social a um processo de reconstrução em que as
técnicas empregues não deviam distorcer a identidade cultural do país que as utilizasse, no caso mais concreto
para ele o seu país de origem, o Brasil.
O chamado mau desenvolvimento económico e social era um desenvolvimento substancialmente imitativo,
mimético, “contrafacção de uma sociedade de massas”, nos antípodas do desenvolvimento futuro, que requereria
um sistema de decisões mais participativo, alargado justamente para superar o impasse do autoritarismo político.
O seu cepticismo era já então porém apontado muito mais para a emergente globalização descontrolada do capital financeiro que se
transmutou em “fluxo” intercontinental sem freio fiscal condizente e que se beneficiava contudo de ser a vanguarda tecnológica,
“explorando os desníveis de desenvolvimento entre países”, para a qual o remédio imediato no caso do gigantismo do Brasil era a
prossecução de um projecto nacional alternativo voltado em particular muito mais para o mercado interno do que para o mercado
externo volátil dos tais fluxos financeiros de janela de oportunidade.
Mercado interno esse que Celso Furtado entendia em especial como “centro dinâmico da economia”, levando em conta a síntese
prospectiva do seu ensaio final “Em busca de um novo modelo: Reflexões sobre a crise contemporânea” (1).
Em Fevereiro de 2002, em Paris, Celso Furtado intuíra uma crise de dimensões novas a nível mundial, sem saber como se iria
enfrentá-la tendo em conta “o agravamento das tensões sociais”. Mais de quatro anos decorreram sobre esse diagnóstico incompleto,
não propriamente um prognóstico tal e qual, nem uma antecipação idealista do próximo futuro, mas uma intuição apenas baseada no
ciclo e anti-ciclo económico-social mais convencional ampliado planetariamente, intuição aquela apenas inspirada ou baseada nos
anteriores ciclos económicos do século XX, permeados de crises financeiras, de guerras iminentes regionais de maior amplitude e
também de inovações.
Já em 1976 Celso Furtado no seu livro “Economic Development of Latin America ; Historical Background & Contemporary Problems” (2)
estimava a população do Brasil para o ano 2000 em cerca de 212 milhões de habitantes, duplicando assim a de 1975 uma geração
depois. Mais de quarenta milhões de habitantes do que seria de facto a sua população então anteriormente perspectivada uma geração
antes, diferença que ultrapassaria no entanto os cerca de 27 milhões de habitantes do Brasil por volta de 1920. Revelando um
crescimento demográfico impressionante e uma taxa de fertilidade que contudo desde 1978 se previa diminuir, embora sem o exacto
pormenor estatístico àquela distância temporal. Provando isso que a realidade é constantemente influenciada por uma quantidade de
factores que ao longo de uma geração interferem nas projecções estatísticas mais afinadas, surpreendendo por vezes os mais contidos
e sérios demógrafos e geógrafos económicos. Em 1974, Roberto Rossellini realizou um documentário de cerca de duas horas intitulado
“The World population” e que seria então apresentado durante a Conferência sobre a População Mundial organizada pelas Nações
Unidas em Bucareste nessa altura.
Um dos problemas demográficos que teria a haver com futurologia seria propor uma ideia do que seria a taxa de fecundidade no ano
2000 para o Brasil e os restantes países da América Latina, que em 1976 Celso Furtado quadripartia da seguinte maneira: Grupo
Andino (Bolívis, Colômbia, Chile, Equador, Peru e Venezuela), Grupo Atlântico (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), América Central
(Costa Rica, Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua) e Caríbe e outros (Cuba, Haiti, México, Panamá e República Dominicana).
Por exemplo, a taxa de fertilidade do Brasil para o ano 2000, segundo o “Atlaséco – Atlas Économique Mondial 2000” (3) era de 2,3, o
que segundo o “Rap+port Mondial de Développement Humain 2000” (4), havia passado em 1970- 1975 de 4,7 para 2,3. Mas, então,
Celso Furtado apoiado pelas projecções no Centro Latino-Americano sobre Demografia, ao tempo da Conferência Mundial de
População em 1974, estimava arriscadamente para a próxima geração uma taxa de fertilidade para o seu país de 3,9. Assente na
catapulta da taxa de fertilidade então fortemente aceite, que era para entre 1965 e 1970 de 5,5. Mas previa que a população latinoamericana no seu todo no continente iria estabilizar no futuro quanto à sua taxa de fertilidade em declínio suposto a partir de uma certa
altura, o que implicaria uma data indeterminada nesse mesmo futuro geracional, então previsto com uma perspectiva histórica
dominante diferente da de agora. Num formidável tratado sobre estatísticas (5), é contada a anedota de que quando a CBSNews e a
ABCNews davam ligeiras diferenças em sondagens eleitorais era sempre com base numa certeza, de que havia uma margem de erro
até 3%.
NOTAS:
(1) Op. Cit., Paz e Terra, Rio de Janeiro – São Paulo 2002, págs. 27 a 42 in “II – Que futuro nos aguarda?”.
(2) Op. Cit. (Second Edition), Cambridge University Press, Cambridge – London – New York – Melbourne 1978 (1970, 1976), págs. 11 e
12 in “Population pattern”.
(3) Op. cit., Les Guides Le Nouvel Observateur, Paris 1999, pág. 43 in “Brésil”.
(4) Op. cit., PNUD, De Boeck Université, Paris-Bruxelles-New York 2001, pág. 154 a 157 in “5 – Tendances démographiques”.
(5) Edwin Mansfield, «Statistics for Business and Economics: Methods and Applications» (Fifth Edition), W.W. Norton & Company, New
York - London 1994, pág.218 in «7 - Sample Designs and Sampling Distributions».
10 de julho de 2006 (XCIX)
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (XCIX)
Manuel Carvalheiro
Referindo-se ao primeiro dos quatro assuntos principais do livro de 1954 de Celso Furtado, “A Economia
Brasileira”, o do processo histórico do crescimento económico, um autor recente afirmou em 2003, a propósito do
cinquentenário da publicação daquele livro:“O primeiro, além de retomar alguns temas de sua tese de doutorado,
aprofunda-se na ‘conceituação’ do excedente económico” (1). “A respeito da teoria do excedente, como pioneira
da acumulação e desta como via quer para a distribuição como para o reforço do aparelho produtivo que fizesse
passar uma economia dominantemente comercial para uma economia industrial emergente no contexto do
subdesenvolvimento, o fardo inamovível do desenvolvimento feito de fora para dentro chocava com o óbvio atraso
secular, como na cena da chegada do comboio a vapor à estação em “Trás-os-Montes” (1976) de António Reis e
Margarida Cordeiro, revelando a estagnação temporal no interior do Nordeste de Portugal, não muito longe do
outro lado da fronteira, em Espanha, de um remoto panorama varrido pelo Plano Marshall nos anos cinquenta do
século XX da miséria atroz que levava nos anos trinta do século XX, antes da Guerra Civil, os próprios animais a atirarem-se por uma
ribanceira abaixo, como na cena célebre de “Las Hurdes – Terra sem Pão” (1931) de Luis Buñuel, excedente animal esse que
assinalava o desespero dos agricultores a somar-se aos camponeses pobres do outro lado do Atlântico mais para Sul: “Trata-se de
uma das contribuições analíticas fundamentais de Celso Furtado, a qual seria mais tarde retomada e aprofundada por ele na sua teoria
do desenvolvimento económico, e que foi também desenvolvida independentemente a partir de outros pressupostos pelo economista
russo-americano Paul Baran (1910-1964)”.
Por outro lado, tratava-se também de perceber a mudança da economia comercial para a economia industrial, através do excedente
transformado em acumulação e daí em distribuição – o interesse prioritário de Paul Baran, que via no excedente um trampolim para o
capitalismo social no quadro corporativo de uma sociedade de segurança nacional prioritária como a norte-americana dos anos
cinquenta do século XX - ou em investimento no sector produtivo, através da organização do estado sem se sobrepor porém à própria
sociedade. Corrigindo-se, assim, a industrialização retardada típica das economias latino-americanas da mesma época, por mais
diversificadas na dependência que fossem perante um centro importador de matérias-primas ao desbarato e com preços ditados por
pressões do mercado exterior.
Agora, vem uma reapreciação em 2005 da obra de Celso Furtado como expoente da história económica brasileira, o que embora seja
um ângulo privilegiado pelo autor seguinte, não deixa de ser interessante apenas sublinhar em síntese a mola privilegiada pelo ensaísta
brasileiro, que fora sem dúvida a economia agrária prisioneira da oligarquia política feita dominadora do mundo rural de então e
responsável pela absorção dos subsídios estatais forçando a migração de mão-de-obra, num ciclo ainda hoje verificado porém mais
atenuadamente a partir do Nordeste, isto é, os estados de Sergipe, Alagoas, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará,
Piaúi e Maranhão.
“Mais concretamente: nos países subdesenvolvidos, o sector ‘moderno’ é o sector exportador de bens primários, que tem, no entanto, a
sua dinâmica condicionada pela demanda externa, donde resulta que, pela deterioração dos termos de intercâmbio, ocorre a sucção do
seu excedente. O sector atrasado é representado pela larga produção agrícola de subsistência, que, entende Furtado, não cria
mercado interno, não atende aos requisitos da demanda de alimentos e nem cumpre sequer a clássica função de ‘exército de reserva’”
(2). Mas a dita produção agrícola de subsistência embora seja um freio tradicionalista ao desenvolvimento, a chamada economia
familiar não classista é originária da Idade Média como por exemplo no continente asiático no século XII, veja-se o universo de
“Intendente Sansho” (1954) de Kenji Mizogushi, em que o filho de um governador libertador do feudalismo local se revolta por sua vez
mais tarde ao tornar-se escravo de um intendente que substituíra a amizade pelos camponeses por uma cruel opressão.
“Algumas das cartas marítimas que foram desenhadas no século catorze calibram representações de outras ilhas, tais como aquelas de
St. Brendam, Brasil e Antilhas, cuja existência era menos certa, mas de que não obstante ajudaram a estimular viagens novas de
descobrimento”. O Nordeste brasileiro servira apenas de escoador de uma economia comercial em que o exterior beneficiava mais do
que os habitantes locais no seu conjunto, à mercê quer dos piratas ocasionais pela costa marítima assentando arraiais como pelo
colonizador europeu afeito ao dogmatismo religioso dominador dos escravos das plantações de açúcar: “Para as novas gerações de
navegadores europeus, de Portugal, Castela, Inglaterra e talvez de qualquer outra parte, a prospecção de ilhas no Atlântico, tanto as já
conhecidas como as que esperavam pela sua descoberta, era na verdade muito real como tal”(3).
Não interessa muito estar a relembrar a educação formativa de gerações posteriores, sem requerer a necessária atenção ao que
entretanto depois da colonização foi feito pelas elites locais africanas como foi disso significativo o filme de ficção de uma luta entre
cidade e campo em “Mortu Nega” (1990) de Flora Gomes, num território como a Guiné-Bissau entricheirado entre uma cultura animista
e outra muçulmana em extractos sobrepostos pela tecnologia aprendida com a chegada dos europeus.
“Embora tenha sido objecto de numerosas controvérsias, a posição tomada por MacLuhan, que afirmava que a mensagem e o seu
ambiente têm uma identidade comum, continua a marcar pelo menos uma das interpretações da globalização, cujo aspecto é
comparado à descoberta das armas de fogo, no século XVII. A questão que se coloca é, portanto, saber se estas novas armas
dominarão tanto as populações marginalizadas como o fizeram as armas de fogo” (4). Porém, o ridículo desta situação foi ampliado
num filme de antecipação científica como “Rollerball” (1974), de Norman Jewinson, em que o mundo a partir do ano 2000 seria
dominado por um conjunto de consórcios que estabeleceriam as regras para entreter as massas universais com um desporto violento
de eliminação progressiva dos adversários da multinacional financeira. Desporto violento de massas esse, a que teria levado a
competitividade extrema entre super-homens da desgraça e da iniquidade judicial à escala do planeta, cujo computador não teria porém
nos seus arquivos electrónicos - fantasiados uma geração antes - o enigmático século XIII de lutas fratricidas entre povos
amesquinhados com o absolutismo medieval, agora extemporaneamente omnipresente.
Parábola essa que nos remeteu toscamente para o repensar menos alucinatório do desenvolvimento, acorrentado à velocidade da
inovação supletiva, para um maior controlo exclusivo dos tempos livres de populações, carentes contudo de uma educação mais social
e muito mais necessariamente melhor preparada do que antes para a produção e para o emprego precário que se anunciava, a
conservar porém menos para toda a vida como outrora nela. Essa crise do capitalismo no mundo libertado actualmente, remete-nos ao
ciclo imperial do início do século XX e da expansão original do espectáculo de feira das imagens animadas e em movimento. “Foi
contraposto que a rede terrestre digital pode ter significativas vantagens para os consumidores em termos de
portabilidade e mobilidade e pode promover serviços inovadores, mas os agentes de mercado hesitam antes de lançar a TV terrestre
digital devido à incerta reposta dos consumidores” (5).
NOTAS:
(1) Tamás Szmrecsányi, “Cinquentenário de ‘A Economia Brasileira’ de Celso Furtado”, Boletim Informativo da ABPHE, Dezembro,
Brasil 2003.
(2) Ivonaldo Leite, “Celso Furtado e a história económica: ideias para o presente”, O Comuneiro-revista electrônica ns.1 (Setembro) e 2
(Março), Brasil 2005/6, in “IV- As duas faces da civilização industrial : desenvolvimento e subdesenvolvimento”, Departamento de
Economia, Sociologia e Gestão, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, “Seminário O Lugar das Ideias: Celso Furtado no
Quadro da História”, Primavera de 2006.
(3) J.R.S. Phillips, “The Medieval Expansion of Europe”, Clarendon Press (Second Edition), Oxford 1998, págs. 172 e 173 in “9 –
Medieval Europe and North America”.
(4) Carlos Lopes, “Compasso de Espera – O fundamental e o acessório na crise africana”, Colecção Textos n.32, Afrontamento, Lisboa
1997, pág. 101 in “6 – Cooperação técnica e globalização”.
(5) Christof Choser and Sandro Santamato, “The Commission’s aid state policy on the digital switchover”, Competition Policy Newsletter,
Number 1, Spring, European Union, Brussels 2006, pág. 26.
17 de julho de 2006 ( C )
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (C)
Manuel Carvalheiro
Celso Furtado no seu ensaio “O longo amanhecer: Reflexões sobre a formação do Brasil” (1): “Daqui a cinquenta
anos, quando alguns de vocês estiverem na posição em que hoje estou, tenho certeza de que verão um mundo
completamente diferente, pois a revolução que está acontecendo neste fim de século é maior que qualquer outra
que houve em duzentos anos”.
A relação entre capital e trabalho no Nordeste brasileiro foi objecto de um esclarecido inventário por parte de
Celso Furtado, libertando a ideia feita do feudalismo e da servidão, como explicação económica única para a
indigência, que outrora fora diferente na área do cultivo do açúcar. Ao contrário do que havia acontecido em outras
regiões do mundo na mesma época, em que a exploração local da força de trabalho servira de catapulta para a
acumulação: “Mas, se ele deu uma contribuição de ordem político-administrativa para o desenvolvimento da
região, deu também uma contribuição da maior importância, do ponto de vista científico, ao caracterizar a
agricultura nordestina do período colonial como capitalista, de vez que na área canavieira o aporte de capital na implantação dos
engenhos foi dos mais expressivos, sobretudo se comparado com a agricultura feita em outros continentes, onde havia uma
contribuição mais expressiva da força de trabalho” (2).
Referente ao passado da CEPAL, do final dos anos quarenta até meados dos anos cinquenta do século XX, Celso Furtado cristalizou
algumas das suas opções económicas, só muito mais tarde valorizadas no seu próprio país, com base experimental contudo em países
latino-americanos de tradição hispânica, o que não era o caso do Brasil que no entanto como território ocupava cerca de 49% da
América do Sul: “O nacional-desenvolvimentismo ganhava força, não apenas no Brasil de Vargas e Juscelino, mas no México de
Cárdenas e na Argentina de Péron; e no outro continente, na Índia de Nehru e no Egipto de Nasser. Neste bojo a CEPAL (Comissão
Económica para a América Latina e Caribe) se apresenta como órgão fornecedor de quadros e ideias desenvolvimentistas aos
governos latinos” (3).
Durante o III Congresso Internacional Celso Furtado, organizado pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em 2004, em colaboração com a CEPAL e a Rede Eurolatinoamericana, congresso esse dedicado ao “Desenvolvimento num contexto
de Globalização”, o professor Pierre Salama afirmou a dado passo da sua intervenção: “Vai-se para esta ‘tendência’ à estagnação
como a tendência à baixa da taxa de lucro de Marx. Ela pode ser contrabalançada”.
A ideia de que uma formulação do século XIX condicionasse ainda no campo teórico uma reflexão em pleno século XXI seria como
relativizar Einstein e fortalecer Newton com a experiência da maçã. Salama, no entanto, tomaria uma atitude mediana na sua
intervenção, ainda naquele mesmo passo da sua reflexão: “Mas à diferença da tese de Marx, as forças que poderiam reequilibrar esta
tendência não são produzidas perlas forças na origem deste movimento. Elas são-lhe externas e dependendo nos estruturalistas de
decisões públicas”.
Tratava-se segundo Salama da tendência à estagnação e da sua tipicidade ondulatória nas economias de crescimento na América
Latina, dez anos depois do resultado das economias semi-industrializadas da Ásia na sua articulação financeira com os países
desenvolvidos nomeadamente europeus. Desfasamento esse que levava a uma curiosa situação do desenvolvimento proposto para a
América Latina em pleno contexto da globalização, isto é, o choque do sucesso dos anos oitenta com a ressaca dos anos noventa, mas
como que invertendo-lhe a receita neo-liberal quanto à sorte histórica do relativo atraso e dessincronização das séries
macroeconómicas ainda com um compasso de espera para a crise em relação ao desabar da arquitectura financeira decorrente da
crise financeira asiática de 1997. Assim, Salama recordava o princípio director de Prebisch e Furtado, até à data mais recente:
“Segundo a Cepal, esta tendência podia ser contornada por uma redistribuição dos rendimentos a favor das camadas modestas, uma
reforma agrária e uma acção mais sustentada do Estado, graças a uma política de mudança adaptada, enfim uma planificação
indicativa” (4).
No documentário de José Mariani, “O Longo Amanhecer”, filmado em Julho de 2004, Celso Furtado compendiou o seu itinerário no
Brasil, na América Latina e no mundo, trazendo para o pensamento e conhecimento actual das ciências sociais brasileiras as suas
reflexões, em retrospecto desde a idade colonial, tema da tese na Sorbonne em 1948: “Mas foi em 1961 que o economista chegou à
conclusão que, dali para diante, daria o tom de toda sua obra. Com ‘Desenvolvimento e Subdesenvolvimento’, Furtado diz que
percebeu que havia países subdesenvolvidos que tinham crescido muito, mas nunca tinham conseguido sair do subdesenvolvimento.
‘Comecei a pensar que a dura verdade era que os países que se integravam no mercado internacional para, por meio da divisão
internacional de trabalho que nós conhecemos, serem subordinados ao comando de outras forças económicas, estavam condenados
ao subdesenvolvimento para sempre’” (5).
NOTAS:
(1) Op. Cit. (2ª edição), Paz e Terra, Rio de Janeiro 1999, pág. 95 in “Desemprego estrutural, cíclico, e exclusão social” (Mensagem aos
jovens economistas).
(2) Manuel Correia de Andrade, “Prefácio de ‘Seca e Poder’”, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo 1998 (Entrevista com Celso
Furtado por Maria da Conceição Tavares, Manuel Correia de Andrade e Raimundo Pereira).
(3) Alcides Goularti Filho, “O pensamento de Celso Furtado : crenças e desilusões”, III Congresso de História Econômica – 4ª
Conferência Internacional de História de Empresas – EconPapers, ABPHE 1999.
(4) Pierre Salama, “La Tendance à la Stagnation Revisitée”, III Conferência Internacional Celso Furtado, IE/UFRJ 2004, pág.7/20.
(5) “Um sonho sem fim anunciado”, SEBRAE – Unidade de Acesso a Serviços
Financeiros- UASF, in Valôr Econômico – São Paulo 12/5/2006.
24 de julho (C I)
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CI)
Manuel Carvalheiro
Um filme de Alexander McKendrick, “A high wind in Jamaica” (1965), reconstituiu uma aventurosa iniciativa de
piratas atarefados com uma tempestade tropical nas Caraíbas, que desperta a coragem e a iniciativa de crianças,
levadas da Jamaica para Inglaterra por conta dos pais, para tomarem modos mais civilizados. Mas em que o
veleiro em que viajam é assaltado por aqueles cujo chefe acaba por adoptá-los, inadvertidamente, porquanto que
à perigosidade climatérica todos devem cooperar independentemente do que façam em tempo normal uns aos
outros.
O problema dos falsos alertas que prejudicam a credibilidade dos ulteriores avisos é de tal forma curial que
mereceu destaque no caso de furacões como o “Hugo” em 1994, já que normalmente as previsões são para
duzentas milhas de distância da costa marítima quando de facto elas só são certeiras para oitenta milhas de
comprimento de costa quando como aconteceu com aquele já está praticamente em cima dela. Quanto às secas
as previsões são mais difíceis e de outra natureza, mas estão normalmente interrelacionadas com o fenómeno da oscilação climática
sulista dita El Niño que previamente se reflecte na fadiga da vegetação e dos solos com as medidas fluviométricas e de quedas de
chuva alteradas (1).
O preço do barril de petróleo já estava por essa altura a 48 dólares, após o impacte do furacão “Ivan” na economia regional das
Caraíbas e do Golfo do México. E a Cruz Vermelha Internacional pede nesse contexto três milhões de dólares para ajuda às vítimas
dos ciclones nas Caraíbas. Em St Vincent & Grenadines, o impacte económico no turismo foi devastador, com as casas destruídas
como cartas.
A este respeito, entre 1956 e 2006, observou um economista contemporâneo de Celso Furtado (2), o Nordeste brasileiro arrisca-se a ter
uma inversão climática, daquilo que outrora fora dito sobre as condições climáticas da mesma região, isto é, que antes para cada dez
anos oito eram de normalidade climática. Embora com variáveis desprezadas, que hoje são tomadas em linha de conta como factores
mutantes da natureza, que degradam o ambiente e preocupam qualquer pessoa que faça um diagnóstico sócio-económico, como o
fizera cinquenta anos atrás Celso Furtado.
Mais recentemente, o ensaísta brasileiro afirmara, como cientista social que lidou com as ciências exactas, mas que em dado momento
de opções práticas de valores com que se depara uma decisão inadiável de ordem prática, comentando ainda em 2003, referindo-se
incidentalmente à questão ecológica, que meio século antes não fazia parte do problema social como variável consciente:”Na área que
me é familiar, a economia, verifica-se um empenho em buscar o formalismo, em adoptar métodos que fizeram a glória das ciências
ditas exactas. Ora, o objecto de estudo das ciências sociais nem sempre é perfeitamente definido, é algo em formação, criado pela vida
em sociedade. Disso me dei conta cedo, ao me debruçar sobre os problemas do desenvolvimento económico” (3).
Mas sublinhava, de seguida, o seguinte: “Com efeito, já o conceito de desenvolvimento nos obriga a entender que o homem é um factor
de transformação, agindo tanto sobre o contexto social e ecológico como sobre si mesmo. Por isso a reflexão sobre o desenvolvimento
traz em si uma teoria do ser humano, uma antropologia filosófica”. As catástrofes desde há mais de meio século têm produzido
anualmente por vezes tantas ou mais vítimas do que guerras regionais. Sendo, actualmente, inclusive, o reflexo ético de uma boa ou
má governação, quanto à rápida e correcta capacidade de resposta face à adversidade e de logística social para a precaução do
agravamento de uma reacção em cadeia na paralisação de uma sociedade, seja ela qual for.
“Entre ciclones” (2003) de Enrique Colina, relata em Cuba como “Tomás, um
mulato astuto e optimista, assiste ao desmoronamento da sua casa devido a um ciclone, um dia antes de começar a trabalhar numa
empresa telefónica. Na empresa, entra em colisão com o seu chefe Conde, um velho operário amargurado que destila desconfiança em
relação à vida e às pessoas, descarregando essas angústias nos empregados”. Estas duas frases resumem o social no ecológico numa
ilha, país nação e estado, integrada nas Caraíbas e que é periodicamente objecto de um festival de intempéries que também animam a
mobilização de massas face ao decrescimento económico provocado pelas catástrofes naturais com tal assiduidade como nela. “Com a
economia paralisada acabámos por promover o turismo, a circulação legal do dólar, as empresas mistas, a pequena economia privada,
etc.” (entrevista a Alexandre Tylsky, Cadrage.net, Midi- Pyrennés, Toulouse 2003), dizia o realizador a propósito da sua metáfora
ciclónica sobre a modificação da vida e do desenvolvimento depois do fim da assistência económica duradoura da ex-União Soviética.
No entanto, a propósito de catástrofes, um autor em 1981 dedicou-lhe maior atenção, citando Simon Kuznets (1901-1985) que em 1965
fizera um texto sobre as implicações do passado na formação do capital e como tal na base do moderno crescimento económico: “A
formação de capital líquido estagnou no mundo pré-industrial, salienta Kuznets, devido não apenas ao baixo nível de rendimentos e
poupança, mas também à fraca capacidade de controlo e recuperação de catástrofes de origem social e natural” (4).
O problema ecológico e o Protocolo de Kyoto (5), em 1997, foram recordados por Celso Furtado em 2002 e 2003, pois que desde que
estivera em Cambridge em 1957 ficara sensibilizado para a questão da perenidade dos recursos naturais e do desperdício que o
capitalismo promovia na sua inconsciência “desprogramada”. Fenómeno que só viria a ter acerto conjuntural depois da comunidade
internacional se ter reunido para este efeito em Estocolmo em 1972.
Já em l995, Anh Hung Tran havia realizado “Cyclo” sobre a cidade Ho Chi Minh (ex-Saigão) e um taxista de bicicleta que luta pela
sobrevivência. Tal como na engrenagem do pós-II Guerra Mundial na Europa, com “Ladrões de bicicletas” (1948) de Vittorio De Sica,
em que o desemprego como tema era colmatado pelo subemprego endividado previamente de um colador de cartazes. Operário
artífice que ficaria depois por acaso sem o seu utensílio de trabalho, adquirido antes por penhora da sua parca riqueza acumulada, num
círculo vicioso que até hoje perdura mesmo com a economia de reconstrução mais aperfeiçoada com a socialização da miséria.
NOTAS:
(1) Russell D. Thompson and Allen Perry (Edited by), “Applied Climatology: principles and practice”, Routledge, London and New York,
págs. 312 e 313 in “23 – Climatic extremes as a hazard to humans” (Keith Smith, University of Stirling).
(2) Ignácio Tavares, “Invernos de Antigamente”, Correio da Tarde, Natal e Mossoró, 3/7/2006.
(3) Celso Furtado, “A responsabilidade dos cientistas”, Folha de S.Paulo 13 de Junho de 2003.
(4) E.L.Jones, “O Milagre Europeu (1400-1800)”, Coleção Construir o Passado n.12, Gradiva, Lisboa 1987, pág. 62 in “2 - Catástrofes e
acumulações de capitais”.
(5) Celso Furtado, “A actual situação econômica mundial”, entrevista à Revista de Economia Mackenzie, 15 de Novembro de 2002
(revista pelo próprio em Junho de 2003).
---------------------CII
A 14 de Julho de 1961, entre o meio-dia e meia e a uma hora da tarde menos dois minutos, o presidente Kennedy
recebeu Celso Furtado na Casa Branca para discutir o problema sobre o desenvolvimento do Nordeste no Brasil
A questão do nacionalismo, sobretudo na América do Sul e Central, além também do Caribe, foi considerada de certa forma um
obstáculo secundário em 1993 por um estudo colectivo acolhido pelo Institute of Contemporary Studies de São Francisco, quando Paul
H.Boeker era presidente do Instituto das Américas nos E.U.A., tendo então organizado uma antologia de textos económicos sobre
crescimento intitulada, “Transformações na América Latina : privatizações, investimentos estrangeiros (exteriores) e crescimento” (1).
Por exemplo, na Colômbia da altura, fora associada a insurreição camponesa num terço do país ao nacionalismo. Nacionalismo esse
que se interpunha entre as instâncias governamentais e as instalações petrolíferas, mas exigindo daquelas reformas consideradas
radicais a respeito da eventual destruição retaliatória destas. É porém esta a clivagem - ainda actual desde então - mais flagrante entre
nacionalismo e populismo nos últimos dez a doze anos.
Tendo por essa via tido marcos posteriores na avaliação dessa constante conflitualidade latente, como o contestado Consenso de
Washington sobre a paridade do sistema monetário norte-americano e as instáveis e promissoras economias dos países latinoamericanos mais desenvolvimentistas apesar da turbulência episódica das suas organizações quer na sociedade civil como ao nível
das políticas estatais respectivas, que levaram à paralisação da ALCA como associação de comércio livre das Américas com a tutela
norte-americana mesmo sob administração democrática parcialmente ainda coabitando com a mudança eleitoral entretanto ocorrida
nos E.U.A. a partir de 2001.
Contudo, as peripécias e enxovalhos estratégicos do neo-liberalismo e do desenvolvimento sustentável, apanharam uma barreira
administrativa de incomodidades não pactuadas por parte das políticas económicas mais reticentes à nivelização por decima e à
paridade automática com o dólar. Sem que se voltasse à atmosfera de guerra civil larvar como no Uruguai dos anos sessenta, bem
retratado em “Estado de Sítio” (1972) de Costa-Gavras, quanto à função de um coordenador de falsas políticas de desenvolvimento
para a América Latina.
Numa entrevista publicada pelo jornal “Sol” de Madrid, feita por Victor de la Serna, a Gregorio Marañon, a dado passo a pergunta
sacramental : “- A que obedece, segundo o senhor, esse movimento que dá um sentido desportivo à não impugnação de ideias, por
exemplo, comunistas ?” ; a resposta foi também epigramática, por aquele que seria doutor “honoris causa” pela Sorbonne no ano
seguinte, após a implantação da República em Espanha : “- A isso que Keyserling chamou tão certeiramente de ‘espírito de chauffeur’.
O indivíduo que conduz um automóvel ou pilota um aeroplano crê-se em possessão do sentido da condução do mundo. E isto é uma
triste aberração de perspectiva. Um zulu na ‘carlinga’ de um avião sai a voar ao quarto de hora”.
Absurdo por absurdo, o liberalismo e o proletariado anarquista correspondiam nesse tempo a uma fatia social que institucionalizara a
república tardiamente em Espanha, após o enfraquecimento de uma monarquia absolutista e incapaz de promover o bem-estar social e
a paz nas relações de classe. Esse laboratório ou ante-câmara da II Guerra Mundial serviria, também, para testar a então democracia
popular como alternativa a qualquer tipo de ditadura. Mas duraria pouco tempo e as Cortes espanholas serviriam de aviso na sua
inoperância legislativa para o triunfo do belicismo expansionista na Europa, à custa de genocídios que ampliavam as lutas liberais do
século XIX de uma revolução industrial numa carapaça institucional autoritária.
Gregorio Marañon escrevera em 1935 uma “Espanha e a história da América”, tendo viajado desde 1937 a 1939 pelo Uruguai,
Argentina, Chile e Brasil, além do Peru e da Bolívia, depois de ter estado ausente de Espanha entre 1936 e 1943, com passagem pela
França, onde em 1938 havia publicado um dos seus ensaios mais urgentes sobre o liberalismo e o comunismo na república e depois
durante a guerra civil espanhola. Voltou porém ao seu país através da fronteira portuguesa em 1943 visitando Toledo e retomou a sua
actividade como médico e divulgador talvez graças ao beneplácito influente de uma potência como a Grã-Bretanha. Marañon com o seu
universalismo enciclopedista, num livro editado em Buenos Aires em 1954, “La Medicina y Nuestro Tiempo”, num sub- capítulo sobre “A
superstição e os conhecimentos de última hora”, dizia ainda talvez com melancolia desses tempos de acumulada sabedoria no exterior :
“Para o verdadeiro homem de ciência, a actualidade não só não é a meta do saber, como é antes uma mercadoria suspeita, a que não
se pode dar beligerância a não ser depois de rigorosa quarentena” (2).
Mais tarde, Carlos Saura com o filme premiado em Cannes, “Cria Cuervos” (1976), faria o inventário fictício de uma realidade infantil de
duas gerações obliteradas pelo esquecimento propiciado por um poder centralizador oligárquico em Espanha, revelando através de
uma família vista por uma criança do sexo feminino o drama quotidiano dos preconceitos de uma sociedade anestesiada pela crueldade
sentimental do obscurantismo. Por outro lado, essa influência ibérica na América Latina correspondera ao isolamento a que as
democracias ocidentais haviam votado os respectivos países sob ditadura agrária ou militar asfixiando a sociedade civil nas garantias
de expressão e liberdade anti-monopolista, embora pelas respectivas línguas comuns o espírito de latinidade se prolongasse entre os
dois lados do Atlântico. Interferindo, assim, positivamente na cooperação universitária entre a Europa pré- comunitária do Tratado de
Roma em 1957 e a América Latina desejosa de contrabalançar a sua crescente americanização, com a nova perspectiva de
cooperação europeia finda a reconstrução das economias destruídas pela II Guerra Mundial.
Veja-se para o Peru, apesar do seu exotismo, o documentário de longa- metragem de Enrico Gras, “O Império do Sol” (L’Impero del
Sole, 1956), cuja credibilidade etnográfica era posta em dúvida pela recriação forjada do bilhete-postal fotogénico dos Urus - uma tribo
local - no lago Titicaca. Chegou a pedir-se auxílio à polícia para encher um estádio com índios de forma a estes assistirem à luta de
condores simulando os tempos antigos, novidade para a época para uma equipa de rodagem europeia e italiana, actualmente prática
corrente na reconstituição de cenas para filmes de ficção ancorados na realidade próxima ou reconstituída segundo factos recentes.
No seu filme mais conhecido pelo próprio prémio de Cannes, “Continente perdido” (1954/5), o realizador italiano Enrico Gras –
associado a mais quatro documentaristas de circunstância – tinha já antes assistido a uma viagem de exploração pela Ásia, do lado do
Pacífico, fundamentalmente, onde numa cena de caçadores de cabeças em cilada era revelada de uma forma tão cativante a
naturalidade do evento selvagem, que na Europa mais cultivada um dos seus críticos mais astutos, André Bazin, perguntava porque é
que o operador de imagens cinematográficas não tinha tido a cabeça cortada tal o risco aparente que correra naquele instante,
induzindo-se assim em dúvida a autenticidade da reconstituição do evento apenas com fins espectaculares menos legítimos. Mesmo
assim, o filme mais próximo de um equilíbrio entre o inédito e a iniciativa credível fora o de Thor Heyerdahl, “A expedição de Kon-Tiki”,
Óscar para o melhor documentário no início dos anos cinquenta do século XX, relatando a viagem de jangada em 1947 com uma
câmara de 16mm entre a costa do Peru e as ilhas do Pacífico durante mais de três meses pelo oceano Pacífico, cuja legitimidade e
autenticidade era dominada pelo etnólogo e antropólogo norueguês especialista em migrações de povos antigos antes da colonização
europeia.
Esse tipo de documentários, irritavam a crítica francesa nomeadamente, quanto ao seu questionar sobre o modo como as imagens de
sociedades pré- capitalistas (que remontavam ao isolamento de milhares de anos) eram obtidas. Em especial, sem critérios
minimamente científicos e apenas com base em oportunistas princípios jornalísticos de imediatismo sensacionalista e de opções
meramente comerciáveis muito mais superficialmente folclóricos do que autenticamente etnográficos e sobretudo feitos por equipas
italianas ainda mal libertas da colonização do tempo da guerra da Abissínia. Mas o tempo revelou que, mesmo assim, ambos os filmes sobretudo graças a Enrico Gras que fora um assistente de Emmer, e como tal sensível ao neo-realismo com uma pitada de realismo
fantástico francês - permaneceram com tipicidade documental como registos de viagens de exploração na continuidade do que já havia
sido feito nos anos trinta no continente africano. Sobretudo, numa época em que o cinema directo e a televisão - imberbes de
virgindade e puritanismo paroquial -, propunham a revisitação da infância da humanidade, através da simulação do pensamento
selvagem, com intuitos de abertura ao turismo em sociedades coloniais ou sofrendo de uma descolonização recente, como fora o caso
da Holanda e da independência da Indonésia.
A 14 de Julho de 1961, entre o meio-dia e meia e a uma hora da tarde menos dois minutos, o presidente Kennedy recebeu Celso
Furtado na Casa Branca para discutir o problema sobre o desenvolvimento do Nordeste no Brasil. Uma fotografia oficial de
cumprimentos com ambos de perfil, o presidente Kennedy à esquerda e Celso Furtado à direita acompanha o diário oficial da Casa
Branca. O presidente Kennedy anunciou aos acompanhantes do Dr.Celso Furtado um plano para o desenvolvimento do Nordeste do
Brasil, a que ele apelidou de “uma das mais populosas e pobres regiões da América do Sul”. Por casualidade, nesse mesmo dia, na
secção “more events” do referido diário oficial, o presidente Kennedy pediu ao Departadmento de Estado para enviar um representante
oficial ao presidente do conselho Salazar, para que “Portugal deva sem demora instituir uma reforma básica e alargada aos seus
territórios africanos” (3).
A descrição que Celso Furtado em “A Fantasia Desfeita” (4) fez desse encontro com o presidente Kennedy e do seu novo estilo de
dirigente norte- americano e mundial resume-se nestas impressões perfeitamente enquadradas : “Dava a impressão de grande energia
contida, mas não inibia o interlocutor. Certamente, ia às audiências devidamente preparado para evitar improvisações. Rapidamente
passou das palavras ao que era prático, exequível. Percebera a relevância do que era o problema do Nordeste brasileiro e, como
provavelmente ouvira comentários controversos sobre o que estávamos fazendo, houve por bem formar uma opinião pessoal. Minha
impressão foi de que essa opinião cristalizou nele naquela entrevista, e por isso exigiu dos auxiliares uma fórmula para passar de
imediato à acção”.
Ora o problema do desenvolvimento visto à distância de meio século passado sobre esta busca de apoio, tem a sua razão de ser como
motor hoje reconhecido mundialmente pelas instâncias internacionais sobre se o acento tónico do desenvolvimento deve ser posto em
certas regiões do globo mais na economia do que na ecologia ou mais na ecologia do que na economia, em que o chamado
ecodesenvolvimento é uma “verdadeira economia política da natureza” (5).
NOTAS :
(1) Op. Cit., Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro 1995 (1993), pág. 174.
(2) Gregorio Marañon, “La Medicina y Nuestro Tiempo”, Colección Austral n. 1201, España Calfe S.A, Buenos Aires 1954, págs. 28 a 30
in “La superstición de los conocimientos de última hora”.
(3) John F.Kennedy Presidential Library and Museum, “White House Diary”, 1961, July, 14.
(4) Op. cit, Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro – São Paulo 1989, pág.
114.
(5) Jean-Paul Deléage, “História da Ecologia : uma ciência do homem e da natureza”, Colecção Nova Enciclopédia n.41, Publicações
Dom Quixote, Lisboa 1993 (1991), pág. 250 in “Ciência e Sociedade”.
31 de julho de 2006
CIII
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CIII)
Manuel Carvalheiro
“O sol era escaldante naquela manhã de Abril de 1963. Estávamos, Pedro Rovai e eu, filmando um documentário no meio de uma
enorme clareira na selva amazónica, perto de Pindaré-Mearim, lá onde estão as botas de Judas em pleno Maranhão”. No Maranhão,
um estado subamazónico que havia servido de transplante de populações do semi-árido para o semi-húmido em 1961, durante a fase
agitada das Ligas Camponesas antepassadas do Movimento dos Sem Terra actual. “Filmávamos nesse momento dois caboclos do
local debulhando o arroz a pauladas” (1).
O filme era encomendado pela SUDENE, o órgão que superentendia nove estados onde uma tentativa de coordenação agrária dos
fundos do governo se debatia contra a pressão política dos latifundiários. “Tinham feito a queimada, plantado o arroz para
sobrevivência e agora o estavam batendo de maneira primitiva. Debaixo de uma grade de pau, havia um saco que recolhia o arroz
debulhado, metade se perdia e ficava esparramada no chão”. Estes planos enquadrados cinematograficamente descreviam a acção
dos camponeses pobres deslocados para a floresta subamazónica na fronteira maranhense no Brasil. “De repente, três senhores
vestidos como nós – isto é, com calças e camisas sem remendos e usando sapatos – nos deram sinais de que também não eram do
local. Eles se aproximaram devagar e sem querer interromper a filmagem”. O contraste é flagrante entre os técnicos citadinos e os
rurais descalços ou de sandálias de borracha e sisal.
“Dado o clássico ‘corta!’, Pedro Rovai e eu nos viramos para os visitantes e vimos entre eles a afável figura do Celso Furtado”. Por
acaso apareceu o superintendente da SUDENE, talvez para ver como o documentário estava a decorrer, experiência certamente
menos rotineira naquela região do Nordeste onde as televisões não punham os pés, porque as imagens em si dariam um mau aspecto
do Brasil de “Orfeu Negro” (1958) de Marcel Camus, contrariando o Carnaval carioca com seca e miséria, andrajosos e suados a
trabalhar na fronteira da civilização, num neo-realismo decantado que não agradava a imagem feita de um Brasil mais folclórico e
consumível.
“Explicamos que estávamos filmando um documentário para a Sudene, que ele presidia na época. Ele olhou fixo para mim e comentou:
‘– Eles estão batendo o arroz como faziam os egípcios com o trigo. Só que os egípcios estavam usando o melhor instrumento da sua
época. Essa batedeira deve ter cerca de quatro mil anos...’”. Graça e pedagogia remetendo para o paralelo com o que se passava na
zona do delta no Egipto de Nasser em 1961 com uma reforma agrária apoiada pelos militares.
Mas é o próprio Celso Furtado quem também recorda esses anos, embora não aquele episódio solto, no seu livro “A Fantasia Desfeita”:
“Estávamos convencidos de que, se desenvolvêssemos técnicas de colonização da Amazónia – área florestal que ‘invadia’ o perímetro
de responsabilidade da SUDENE, pois alcançava o rio Mearim, cobrindo toda a bacia do Pindaré e do Gurupi, vale dizer, cerca de
metade do Estado do Maranhão -, teríamos dado um passo decisivo para modificar favoravelmente a relação homem/solos aráveis no
Nordeste. E teríamos aberto a porta à ocupação racional da vasta área amazónica” (2).
Um comentário em 1999 sobre estas migrações de mão-de-obra em excesso no Nordeste refere o risco das contrapartidas que correu
Celso Furtado quando quis aliviar as tensões sociais das Ligas Camponesas que submergiam a Sudene de novos problemas
estreitando aquilo a que se chamava gargalo: “Ao se dedicar a pensar a formação econômica da Amazônia, Celso Furtado considera a
migração nordestina para a região como única solução para a produção da borracha, cuja extração se baseava exclusivamente na
extensão da mão-de-obra e na expansão da área produtiva”. E mais adiante, alertando sobre uma reflexão de 1963, constatava-se
retroactivamente: “É quase invariavelmente na linha do ‘desgaste humano’, apontada por Celso Furtado, que os dados censitários são
constantemente arrolados e a experiência da migração nordestina para a região dos seringais, reduzida” (3).
Em 1966 Michelangelo Antonioni abandonou um projecto de filme de ficção na Amazónia porque subitamente o produtor Carlo Ponti
mudou de ideias sobre o projecto de roteiro “Tecnicamente doce” (publicado em 1978 em Paris pela Albatros) e deu o dito pelo não dito,
mas ficaria anos depois este desabafo nostálgico sobre o projecto: “Selvas e florestas virgens vi bastantes, pois percorri o mundo à
procura da mais assustadora e encontrei-a: a da Amazónia”.
“Na Amazónia Brasileira, por exemplo, a desflorestação anual em proporção declinou do pico de mais de vinte mil quilómetros
quadrados em 1988 para perto de onze mil quilómetros quadrados em 1991. Contudo, recentes dados revelados pelo governo
brasileiro mostra que isso voltou para trás e para mais de vinte e nove mil quilómetros quadrados em 1995 antes de declinar para
dezoito mil e cem quilómetros quadrados em 1996” (4). Este zigzaguear na desflorestação não acompanha a reflorestação, sobretudo
quando pelo uso de satélites se vê a crescente tentativa de fogos feitos pelos fazendeiros para limpar a terra para cultivo e pastagens,
acrescentava a mesma fonte em 1997.
Será isso assim dez anos depois, quando ainda recentemente a BBC World durante dois dias em 18 e 19 de Julho de 2006 alertou com
reportagens para o que de novo se estava a passar na floresta da Amazónia, com perseguição das autoridades a um grupo do
Greenpeace que se pendurou numa ponte para alertar a opinião pública mundial para aquela região do globo, com problemas típicos
que se interrelacionam com o aquecimento global.
Wilson Cano afirmou, num texto recente de 2004, aquilo que desde 1990 tecera sobre o itinerário agrícola de Celso Furtado no
Nordeste brasileiro desde 1959, com uma pequena incursão à própria Amazónia através da fronteira do Maranhão, com a chamada
carteira regional, que ele assim explicou retroactivamente na actividade político-administrativa deste (5): “Face ao temor da perda de
poder pelas várias burocracias que exprimiam a articulação entre os grandes interesses locais e o Governo Federal, justamente os
representantes parlamentares da própria região tentaram impedir a instituição da Sudene no Congresso Nacional. A luta maior,
contudo, seria para a aprovação do Primeiro Plano Diretor da Sudene, só sancionado em 1961, após longa e dura batalha política”.
Mas porque o tempo jurídico e a realidade de facto como sempre haviam andado desfazadas e com uma inércia que favorecia a busca
comunicacional da alegada ilegitimidade, sendo que agora, assim ao invés as coisas clarificavam-se deste modo novo para a época: “A
política de incentivos ao investimento privado seria, em grande medida centrada no subsídio ao capital, através de incentivos fiscais,
cambiais e outros, de início só permitidos às empresas de capital nacional, benefício estendido em 1963, também às de capital
estrangeiro”. Por essa via, entretanto, um factor novo era acrescentado: “A crescente tomada de consciência regionalista, faria com que
política semelhante fosse, a partir de 1963, estendida à Amazônia, diversificando a ‘carteira regional’ de investimentos e beneficiando
também os inversores dos Estados do Centro-Sul, que eram os maiores detentores das isenções fiscais do imposto sobre a renda”.
NOTAS:
(1) Rodolfo Felipe Neder, “Nelson Freire em DVD e Celso Furtado na Amazônia”, Digestivo Cultural, São Paulo 28/12/2004 in
“Pequenas memórias: um encontro em Pindaré-Mearim”.
(2) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro – São Paulo 1989, pág. 112 in “A fronteira maranhense”.
(3) Helenilda Cavalcanti e Isabel Guillen, “Atravessando fronteiras: movimentos migratórios na história do Brasil”, USP 1999/Labi-Nime
2002.
(4) “1998-99 – World Resources: A Guide to the Global Environment”, Environment Change and Human Health, Oxford University
Press, New York – Oxford 1998, pág. 185 in “Critical Trends – Resources at Risk”.
(5) Wilson Cano, “Celso Furtado: brasileiro, servidor público e economista”, Instituto de Economia - Universidade Unicamp (texto
refundido de 1990, 1991 e 1995 e actualizado em 12/2004), ANPEC - 32. Encontro Nacional de Economia, João Pessoa 2004, págs. 12
e 13.
CIV
CIV
“Pois bem, dentro dessa nova concepção é que estamos repondo a ADENE e a ADA. Ao extinguir a SUDENE e a SUDAM, portanto, a
ideia não era acabar com o espírito que a criou, era o contrário”, dizia Fernando Henrique Cardoso em 2002 (1). O que se havia
passado era a substituição das siglas, tendo contudo Cardoso feito um elogio passado ao pioneirismo da SUDENE entre 1959 e 1964,
referindo-se a Celso Furtado e à permanência de ambos no Chile na CEPAL a partir de 1964, nestes termos: “A SUDENE foi um órgão
planejador. Tanto é assim que, não por acaso, Celso Furtado, depois, foi o primeiro-ministro do Planejamento no Brasil. O Celso nunca
concebeu a SUDENE, apenas como um órgão repartidor de recursos”.
O que é certo é que, após a nomeação do presidente Lula, a SUDENE voltou a ter o nome que tinha, querendo isso significar que
Celso Furtado não concordou que se tivesse extinguido a SUDENE chamando-lhe então Adene, apesar dos elogios de que havia sido
alvo em 2002, atendendo ao passado comum mas desfazado na CEPAL em Santiago do Chile e à qualidade oratória e
retrossociológica de Fernando Henrique Cardoso.
Curioso é verificar como a ideia se generalizou também à Amazónia, uma enorme região do globo que merece ainda actualmente muito
maior atenção internacional do que o próprio Nordeste brasileiro. Atendendo ao problema do desmatamento, das madeiras preciosas
extraídas à revelia das normas de protecção ambiental e das queimadas que provocam clareiras e implicam uma política repressiva,
atendendo sobretudo ao aquecimento global. Com a criação de uma agência de desenvolvimento em moldes tais, que a experiência
antiga a que Fernando Henrique Cardoso se referia no seu discurso de elogio a Celso Furtado e ao seu companheirismo no Chile dos
passados anos sessenta do século XX, foi apenas reproduzida em diferido histórico, na reorganização administrativa inspirada no
pioneirismo social do Nordeste entre 1959 e 1964. Pioneirismo esse, logo desvirtuado pela ditadura até 1985, o que havia implicado
erroneamente a sua extinção e transfiguração equívoca em 2002.
Em “Os anos JK”, Lúcia Lippi Oliveira explicara: “A partir de 1964 a Sudene foi incorporada ao novo Ministério do Interior, e sua
autonomia, seus recursos e objetivos foram enfraquecidos e deturpados. A Sudene foi fechada em maio de 2001, a partir de denúncias
de que estava favorecendo clientelas. Órgão criado para diminuir as diferenças entre o Nordeste e o Sul-Sudeste, a Sudene falhou,
segundo a análise do sociólogo Francisco de Oliveira. O número de empregos industriais criado foi insuficiente para resolver os
problemas estruturais da região, os padrões de miséria foram mantidos, e as migrações não cessaram. Em termos de concentração de
renda, nada mudou” (2).
Assim, a 26 de Julho de 2003, na sede do Banco do Nordeste do Brasil em Passaré, um discurso de Celso Furtado referia-se
criticamente ao governo anterior com a sua “visão economicista” e que Lula deveria agora “promover a igualdade social” e, segundo a
mesma reportagem do Ceará, o próprio, emocionado, “questionou se o Brasil teria que passar por uma revolução, como aconteceu no
México, para promover sua igualdade social. ‘Esse é o desafio político que seu governo cabe resolver’, disse” localmente Celso
Furtado, como que avisando da responsabilidade herdada do passado tumultuoso das Ligas Camponesas que tanto haviam
prejudicado o bom funcionamento da SUDENE (3).
Em “Reed: México insurgente” (1973) de Paul Leduc, num tom colorimétrico sépia, a ficção reconstituída como uma imitação
documental da permanência do jovem repórter americano durante a revolução de 1910, fazia do desespero dos camponeses matéria
de reflexão social, como se de uma novela vivida por Jack London fosse o mundo feito. Ainda actualmente, em que o próprio candidato
Manuel Obrador ao perder as eleições em 2006, com a suspeição de fraude e má contagem de votos levantada como denúncia por
este, apesar da sua legitimidade garantida por fiscais dos países da União Europeia e estes mesmos terem garantido a sua legitimidade
democrática até à próxima contra-verificação, pudesse então caso contrário ainda fazer renascer as aspirações frustradas de um país
com problemas estruturais, que inquietam em profundidade todo o continente. Desde que, em 1968, uma revolta estudantil na sua
capital gerou um genocídio durante a presidência de Echevarria, que poria definitivamente o mundo de sobreaviso sobre a incúria
social, meio século então já nessa altura passado sobre aquela revolução camponesa do início do século XX, que tanto viria a marcar a
América Latina.
Mais adiante, a referida reportagem garantia contudo: “Visivelmente emocionado, Celso Furtado pediu licença, em seu discurso, para
fazer referência a fato ocorrido há 44 anos, quando, a pedido do então presidente da República, Juscelino Kubitschek, elaborou um
plano de desenvolvimento da região nordestina, que culminou com a criação da Sudene. O economista lembrou que, naquela época,
sua equipe era pequena e os dados sobre o Nordeste eram praticamente inexistentes. ‘Ao me deparar com o trabalho realizado agora
pelo Ciro e a Tânia Bacelar, vejo que ainda temos poucas informações sobre a região, mas que eles avançaram muito’, reconheceu.
Mesmo assim, o idealizador da Sudene lembrou que é preciso ter cautela para captar as reais necessidades do Nordeste, porque
‘pensar a região é pensar o Brasil como um todo’”.
Um ano passado, em 2004, o comentário de um empresário, dizia a dado passo, no Ceará: “A Sudene está burocraticamente
agonizante. A pompa e as personagens que prestigiaram a solenidade de relançamento fizeram o papel do dragão da cultura chinesa.
Impressionam, mas não assustam. Ou, como todo bom factóide, virou manchete sem acontecer. O dinheiro que financiaria empresas,
empregos e renda foi parar no caixa dos governos estaduais como compensação por perdas de incentivos fiscais. Ou seja, em vez de
financiar desenvolvimento, vai financiar a folha de pagamento dos estados” (4). Este descontentamento empresarial, entre uma crítica à
extinção por parte de Fernando Henrique Cardoso em 2002 e as expectativas goradas da reinauguração da Sudene em 2003, denotam
contudo algum bom senso. Embora parcial, quanto ao andamento que se pressupõe mais efectivo actualmente, em 2006, porventura
capitalizando a atenção dos intervenientes nas próximas eleições de Outubro de 2006 sobre a menina dos olhos de Celso Furtado.
Região nordestina e Sudene essa que no final da sua vida serviu para elogios e contra-elogios, por pessoa interposta num curral de
miséria que persiste, quase meio século depois de ter sido o epicentro da revolta do proletariado agrícola, esfomeado e miserável.
Edgar Morin (5) na reconstrução da civilização e da cidadania mundializada pelas imagens informativas de satélite, relativiza contudo o
impacte do desenvolvimento industrial, que sofreu evolução sociológica desde o tempo de Marx. Evolução essa até para hoje implicar
uma estratégia ecológica profunda no cimentar da satisfação da população e requerer uma baliza mais sólida para o descontentamento
de quem não consegue dessa mesma população atingir o objectivo da existência condigna, sem recorrer à criminalidade ou à revolta
sem sentido e destrutiva. A elevação dos níveis de vida devem ser conformes à qualidade de vida e o sacrifício à competitividade é
ilógico, se os níveis dessa vida sem qualidade não são primeiro assentes condignamente em padrões de convivialidade e de inócuo
serviço gratuito da sobrevivência humana com o prazer da desgraça do vizinho.
NOTAS:
(1) Fernando Henrique Cardoso, “Discurso do presidente da República, no acto de posse dos directores da Agência de
Desenvolvimento do Nordeste, Adene e da Agência de Desenvolvimento da Amazônia, Ada, do Ministério da Integração Nacional –
Palácio do Planalto”, Agência Brasil, 22 de Julho de 2002.
(2) Lúcia Lippi Oliveira, “A criação da Sudene”, “site” O Brasil de JK in “Os anos JK”.
(3) “Lula relança Sudene e pede união pelo Brasil”, Jornal da FIEC, Ano XIII n. 184, Agosto, Ceará 2003.
(4) Alexandre Pereira, “A Sudene e o Dragão”, Presidente do Centro Industrial do Ceará in “Diário do Nordeste”.
(5) Sami Nair e Edgar Morin, “Uma política de civilização”, colecção Economia e Política n.36, Instituto Piaget, Lisboa 1997, pág. 137 in
“Os males de civilização”.
CV
4 de setembro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CV)
“A diferença entre os dois conceitos, é que o crescimento da economia de um país é medido essencialmente pelos indicadores económicos, enquanto o desenvolvimento
pressupõe o avanço dos indicadores sociais”
Manuel Carvalheiro
“Uma das teses que desenvolveu ao longo de seus anos de estudos sobre a economia latino-americana avalia
que o subdesenvolvimento é um processo histórico autónomo, e não uma etapa pela qual tenham,
necessariamente, passado as economias que já alcançaram um grau superior de desenvolvimento”, dizia-se ainda
mesmo então em 2005 num portal do governo da Bahia.
Se isso já não era novidade em 1965, quando Celso Furtado se instalou na vida universitária em Paris e resumiu a
sua actividade passada no ano seguinte, numa série de artigos no jornal “Le Monde”, que fizeram data e
popularizaram a sua teoria até na América Central, quanto mais relembrá-lo quarenta anos depois de que num
país emergente, tal como o é a Tailândia, o Brasil continua com o subdesenvolvimento como uma tenaz etapa
autónoma do desenvolvimento imitativo e carente de articulação, com a matriz do passado colonial disfuncional
em relação ao sistema latifundiário e de indigenato. Mas esse mesmo subdesenvolvimento continua a ser um
processo autónomo com a globalização?
“A diferença entre os dois conceitos, é que o crescimento da economia de um país é medido essencialmente pelos indicadores
económicos, enquanto o desenvolvimento pressupõe o avanço dos indicadores sociais”, continuava mais adiante o texto público baiano
sobre a resenha a respeito de Celso Furtado como insigne figura de nordestino, mundializado pela sua qualidade de economista não
tecnocrático. “Como ministro, apoiou a decisão do presidente José Sarney de proibir a exibição do filme «Je vous salue, Marie», do
franco suíço Jean-Luc Godard. O acto gerou protestos de artistas e jornais” (1). Controversa solidariedade institucional, que quebrou a
unanimidade entre os seus leitores dos anos oitenta quanto à falibilidade contextual, tal como acontecera por exemplo com «La
Réligieuse» (1966) de Jacques Rivette, em 1967, em França, sem que para o caso num e noutro contexto fosse destruída a reputação
de quem estaria momentaneamente no poder governamental.
Em 1954, Curtis Bernhardt realizou «Beau Brummel», um ‘remake’ de 1924, sobre a regência do filho do rei Jorge III, que duraria entre
1811 e 1820 à época do domínio continental de Bonaparte e Josefina, vistos na corte democrática inglesa dos clubes liberais
frequentados então pelo príncipe de Gales e o seu amigo Brummel. Este, auto-exilado depois no continente, recebe um editor francês
que lhe quer publicar as memórias, à vista do seu manuscrito com muito interesse para o público, porque teria muitas descrições sobre
o Water Closet do entretanto actual rei Jorge IV; mas Brummel já meio adoentado num gesto afirma que elas se inseriam numa
recordação mais ampla do amigo e atira o manuscrito para as chamas da lareira na mansarda de luxo diante do editor estupefacto.
Um paradoxo que, no entanto, se pagaria em reputação intelectual. Embora o problema ético associado à moral vigente seja sempre
paradoxal, para se julgar definitivamente no momento histórico, em quaisquer circunstâncias em que não se esteja livre de
compromisso administrativo. Num caso, uma oração banalizada e noutro, um texto de Diderot, sem que ambos os filmes fossem mais
do que epifenómenos de conjuntura cultural, cuja narrativa e contemplação obscureceram o paroquialismo e atiçaram reservas mentais
sem compensação. No entanto, mas também sem grande prejuízo visível para as entidades temporais e os seus cultos tradicionais e
populares sempre demasiado acarinhados eleitoralmente pelos poderes instituídos. Malraux como Furtado em planos diferentes foram
desarmadilhados pelos compromissos e posições ingratas respectivas por um anarquismo etnológico pouco salutar ou pela decepção
espectatorial posterior, mas ficaram ambos com as reputações manchadas a níveis diferentes nos próprios países de respectiva
origem.
“Até sua extinção, a antiga SUDENE possibilitou a instalação de mais de 2.100 empresas no Nordeste com a geração de mais de
470.000 empregos. O IDH do Nordeste cresceu 103% contra 68% da média nacional. Nos últimos cinco anos, o Nordeste recebeu uma
empresa por dia. De 1996 a 1998, o PIB nordestino aumentou 15,5%, enquanto o PIB brasileiro (excluído o Nordeste) cresceu 13%” (2).
Será que conferiu mais tarde esta avaliação com a despromoção da instituição pelo próprio presidente Fernando Henrique Cardo em
2002 quando haveria de dissolver a SUDENE, criando um novo organismo com o nome de Adene? Num país como o Brasil tudo pode
mudar agora de quatro em quatro anos, mas acusar-se de clientelismo a SUDENE com esta precedente avaliação entre 1996 e 1998,
quando como se dizia “nos últimos cinco anos, o Nordeste recebeu uma empresa por dia”, é talvez interrogarmo-nos porque é que em
2003 Celso Furtado acusou o anterior governo do segundo mandato de Fernando Henrique Cardo como eivado de preconceitos
“economicistas” e não ligar tanto ao peso social do conteúdo do desenvolvimento sobre as massas populacionais mais carentes dessa
imensa região brasileira. Uma equação sempre difícil de solução ontem como hoje, porventura também no próximo futuro, cinquenta
anos depois do primeiro alerta institucional de Celso Furtado.
“A mobilização para recuperação da capacidade de investir” (3), segundo uma rubrica de um documento de uma instituição
governamental autónoma, levou a que se constatasse o seguinte: “As informações mais consistentes sobre os investimentos regionais,
nas quatro últimas décadas, mostram que, depois de um período áureo, correspondente aos anos 60 e 70, o Nordeste passou a investir
a taxas muito reduzidas, nas décadas subsequentes”. Isto é, embora com facilidades excessivas que permitiam o desinvestimento
subsequente e o fraco capital de retorno, o saldo do desenvolvimento não parece assim tão frágil ao fim de quatro décadas: “Isso
ocorreu em relação ao investimento privado e ao investimento público. No que se refere a este último, a crise fiscal e financeira do
Estado e as sucessivas políticas macroeconómicas restritivas contribuíram significativamente para a quase estagnação do produto e da
formação de capital”.
Ainda recentemente a TV Record, a 28 de Agosto de 2006 no programa «Caminhos do Brasil», dedicou uma interessante reportagem
sobre os seiscentos mil cortadores de cana-de-açúcar para cachaça fundamentalmente, oriundos do norte de Minas Gerais, do Sergipe
e de Alagoas (o estado ainda com maior taxa de analfabetismo no Brasil, cerca de 27%), da Bahía (o estado politicamente decisivo no
Nordeste, com nove milhões de eleitores) e do Pernambuco e do Piauí e do Maranhão. Mostrando que a sobrevivência humana a um
trabalho que permita ao nordestino um emprego temporário, também tem um reverso social da medalha com a não existência de
contratos e de garantias adquiridas. Para além da palavra de honra e do embarcamento camuflado em camionetas quase
desapercebidamente, para irem para um trabalho em condições semi-escravas e sem qualquer outra garantia senão a alternativa do
banditismo, da droga ou da inanição por fome. “Por isso, uma das directrizes estratégicas para a concretização da Política de
Desenvolvimento Sustentável do Nordeste consiste no tratamento preferencial e diferenciado à Região de menor renda” per capita “e
de menor produtividade média do País, em relação tanto à formação de capital privado, quanto aos investimentos públicos. Somente
através desse esforço de recuperação da capacidade de investir o Nordeste pode ter garantido um ritmo de expansão condizente com
a diminuição das disparidades inter e intra-regionais” (3).
Não foi, assim, por acaso, que numa exposição de homenagem a Celso Furtado ainda em 2000, feita pela Academia Brasileira de
Letras, era então já dito e redito: “Desde seus primeiros escritos, Celso Furtado questionou o modelo económico” essencialmente
agrícola “defendido pela classe dominante. Foi o primeiro a denunciar o agrarismo como causa do nosso atraso” (4).
Recordando ainda mais uma vez o “salto de optimismo” um empresário retomava as “causações circulares”: “Sob os melhores
auspícios, criava-se a Sudene em procura da integração nacional, enquanto o Brasil, potencialmente rico, cooptado pela Aliança para o
Progresso do presidente Kennedy, dava um salto de optimismo e de crescimento económico com as metas de JK : Brasília, Furnas,
indústria automobilística, indústria naval, eletrónica, etc. Mas, não havia desenvolvimento sustentado. O Brasil crescia para o mesmo
lugar sem se libertar das causações circulares decrescentes (Myrdal). Era uma economia de horizontes ilimitados, em que, viu-se
depois, faltava todavia o essencial plano sensato” (5).
E o mesmo, ainda em 2003, avisava evocando ainda a presença de Celso Furtado: “Se externamente é a globalização em vias de
comprometer nossa soberania, aí estão os problemas que agora enfrentamos internamente: insegurança social, crime organizado,
narcotráfico, sequestros, corrupção endémica, os sem-terra e sem tecto em ebulição montada, juros e carga tributária sem par no
mundo ocidental, alto endividamento privado e público, enquanto planejam-se reformas (?) do sector público em geral”. Talvez então a
fazer eco, que três anos depois afligiria o mundo: “Daí a recente advertência de Celso Furtado (Folha de S. Paulo 13/6) no sentido da
imperativa participação da inteligência nacional, no exercício de sua responsabilidade técnica e ética, para salvar o futuro do país,
nessa undécima hora” (5).
NOTAS:
(1) “Celso Furtado, Nordestino, Cidadão do Mundo”, Revista Bahia Invest, Março, v.3, Salvador 2005.
(2) Newton Freitas, “A nova Sudene; 40 anos”, Administrador de Carteira de Valores Mobiliários, Ceará 1999.
(3) “Bases para a recriação da Sudene. Por uma política de desenvolvimento sustentável para o Nordeste”, Org. Tânia Bacelar, Grupo
de trabalho interministerial, Versão final, Junho 2003, pág.43.
(4) “Exposição Celso Furtado: Vocação Brasil”. Programa, Academia Brasileira de Letras 2000.
(5) José Flávio Costa Lima, “A nova Sudene – O papel será cumprido”, Empresário, Jornal O Povo, 5 de Agosto de 2003.
CVI – 11 de setembro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CVI)
Manuel Carvalheiro
A técnica de balanços de uma empresa média, em 1961, tinha possibilidades de ultrapassar qualquer controlo,
graças a uma estrutura em que o capital financeiro internacional se organizava em labirinto não menos complexo
do que um então chamado ordenador electrónico (1), como acontecia na República Dominicana, desgovernada
por um autodenominado pai do povo, hoje esquecido.
Mas que, na altura, constituía o exemplo de medíocre maquiavelismo, herdado desde uma década antes dos
tempos mais heróicos em que Howard Hawks rodara “Ter ou não ter” (1944), reflectindo os jogos de interesse nas
Caraíbas, entre o regime de Vichy como substituto permissível do nacional-socialismo e a liberdade democrática
da era Roosevelt.
“Prisioneros de la tierra” (1939), de Mario Siffici, constituiu um evento cultural de uma certa magnitude no seu
tempo, também premonitório de ulteriores alterações estruturais, sobretudo na Argentina. Após a II Guerra
Mundial, com o advento confuso do fenómeno social da corrente mais democrática do sindicalismo de teor justicialista, quando
previamente aquele mesmo filme havia antecipado, com a plasticidade dramática mais tarde típica do ulterior neo-realismo italiano,
aquele anterior e já então significativo problema social dos trabalhadores agrícolas em conflito com um capataz. Mais propriamente na
área geográfica do cultivo típico de mate, em plantações disputadas na Argentina da transição do primeiro quartel para o final da
primeira metade do século XX.
Carisma, populismo e democracia andavam, infelizmente, ligados com resultados contraditórios social e economicamente na América
Latina turbulenta, sobretudo nos anos cinquenta, como melancolicamente foi enunciado numa ficção musical talentosa de importação
prestigiada norte-americana, tal como mais recentemente se viu em “Evita” (1996) de Alan Parker. Mas, evidentemente, traços aqueles
abrangendo, mesmo assim, tanto os países da América do Sul como os da América Central. A vitrina do populismo brasileiro, em “Os
Herdeiros” (1969) de Cacá Diegues, remetia-nos para a sua variante sombria, com Vargas entre a ditadura do Estado Novo no Brasil e
o seu enamoramento cafeeiro através de Carmen Miranda, em Hollywood, durante as comédias musicais bananeiras, quando
recentemente, em 1992, a variante mais extravagante da presidência de Collor trazia a telenovela quotidiana para o quotidiano
prometido. Um artigo mimeografado escrito por Celso Furtado em Santiago do Chile em 1965, intitulado “Obstáculos políticos ao
desenvolvimento económico do Brasil”, salientava que as condições iniciais da industrialização brasileira em 1930, não permitiam um
“conflito aberto entre os interesses agrícolas e os interesses industriais em formação” (2).
O carisma (3) é, em geral, actualmente uma situação personalista ultrapassada pela democratização da vida pública a todos os níveis
da sociedade aberta contemporânea na Europa ou em última instancia uma ideia falsa que a opinião pública aceita numa primeira
instância como real e verídica. Enquanto asserção de alguém que pode vir a triunfar na carreira política, por insegurança do potencial
eleitorado na escolha entre programas eleitorais, substituídos por afectos programados em demasia e que escamoteiam familiarmente
o fundo da distribuição mais igualitária da propriedade rural nos países periféricos, tais como os da América do Sul e Central, atrasados
um ou dois séculos em relação a lutas camponesas precedentes na Europa e não transponíveis portanto automaticamente como
padrões. Quando o cidadão anónimo invoca essa característica, para dizer que uma dada personalidade pública é competente, talvez
honesta, mas que não teria nenhum carisma adicional para protegê-la desse quase anonimato dos outros, quereria com isso insinuar
que aquela eventual personalidade por timorata e apagada não teria grande potencial magnético: “Não vás sapateiro além da chinela”,
disse o pintor Apeles quando pediu a opinião sobre um retrato que pintara sobre Alexandre (4). Visto transmitir na sua fraca áurea
pessoal a segurança necessária para, em circunstâncias menos vulgares, electrizar as massas populares em termos eleitorais comuns;
e, tradicionalmente aceites como paradigma da democracia representativa, ou, por isso mesmo, pouco participativa para além dos
ciclos periódicos de substituição rotativa no poder instituído, hoje possível de influenciar também por qualquer eleição presidencial na
América Latina.
O populismo está associado a uma capacidade que um dado líder político teria em apelar ao instinto inflamado da emoção capitosa de
um povo facilmente também defraudado como reacção contra as elites parasitárias de estados frágeis. Sobremaneira porém
tradicionalmente demasiado autoritários e imobilistas na solução imediata dos problemas populares e que, por isso mesmo, não
resolveram atempadamente, em anteriores circunstancias no essencial e ao longo de décadas, o problema do subdesenvolvimento
crónico, reprodutível de geração para geração, em maior ou menor escala de agravamento quer acumulado como contínuo entre
consumos prioritários ou de luxo e estilos desiguais.
Contudo, o populismo como receita mágica de realismo imediato invoca a possibilidade de liquidação rápida e quase instantânea de
maleitas e carências sociais, que ao invés levam vários mandatos presidenciais ou mesmo gerações de governações a reduzir o
carácter socialmente pernicioso e enganador do próprio subdesenvolvimento, mais tenaz e evidente no seu desaparecimento ou
extinção.
Acabar com os bairros de lata, as favelas e mesmo até certos cemitérios habitados contra natura por vivos, pode ser um objectivo
político crucial, mas é necessário primeiro construir habitações compartilhadas para a transferência prévia dos flagelados sociais,
atingidos pelas catástrofes naturais sempre em primeiro lugar, quando há deslizamentos de terrenos frequentes, como episodicamente
em muitos locais de diferentes países, sobretudo hispânicos, na América Latina. Devido a chuvas tropicais, periodicamente mais ou
menos intensas, como por vezes acontece mais frequentemente do que se espera, tanto no Peru ou na Colômbia como no Brasil, por
exemplo.
O que é que progrediu na democracia latino-americana no último meio século? Os regimes ditatoriais do grande capital financeiro
deram lugar a um novo tipo de democracia mais socialmente aprofundada, em que os regimes militares não oligárquicos - partilhando
embora a sua influência como estrutura mais disciplinada, face ao permanente e intermitente caos social -, buscam a sua razão de ser,
agora, face aos grupos sociais latino-americanos, em que as populações autóctones se revêem com mais intensidade do que antes
nesse descomprometido pacto, tal como na Venezuela ou na Bolívia contemporâneas.
Mas o Chile, a Argentina e o Uruguai atravessaram alternadamente períodos mais longos e mais curtos, conforme as décadas no
século XX, com um autoritarismo institucionalizado e apoiado na repressão mais selectiva.
Embora, também, simultaneamente soubessem, enquanto países latino-americanos – por vezes com uma história de rivalidades
fronteiriças acumuladas ao longo dos tempos e de utilização chauvinista ou legitimadora, conforme certas épocas mais destacadas (tal
como no caso do Peru e do Equador, na região andina da América do Sul, por exemplo, ou do Haiti e da República Dominicana, quanto
ao Caribe, na América Central), libertar-se, portanto, dessa má fama institucional perante o mundo mais civilizado e mercantil ou excolonizador e culpabilizante, quanto ao passado menos bem assimilado no seu passivo traumático e geográfico.
Para, por isso, também, como então ainda relativamente jovens nações, corrigirem a propensão ao abuso de poder sobre os cidadãos
comuns e indefesos, perante a descaracterização alucinante do sentido do voto democrático e maioritário. Contudo, periodicamente
renovado como esperança (gorada, a maioria das vezes) na alternância de poder, quanto a uma prometida mudança das estruturas
sociais necessária e sempre urgente. Tal a acumulação dos factores não-económicos paralisantes do desenvolvimento social local em
sectores prioritários de cada um desses países para a empregabilidade prometida mas adiada por falta de investimentos públicos e
privados, nesse mítico continente mais mistificado do que esclarecido pelas forças ausentes e condicionadoras do estilo de vida das
elites, na revelia do consumo populacional desmunido e gerador de conflitos, por isso mesmo.
A transitoriedade das políticas económicas nas democracias actuais latino-americanas, ultrapassada a fase da guerrilha camponesa
com excepção da Colômbia, como alternativa para as democracias desgovernadas pela partidocracia rotativa não renovada
atempadamente, também não impede que se instale a preocupação constante para o risco de retrocesso generalizado do estatuto
sempre inovador de uma ilusão acrescida de democracia socialmente mais aprofundada para uma nova matriz tutelada de
autoritarismo, em nome da luta contra a corrupção e que, no entanto, paralisou porém a actividade sindical anterior como estando ela
demasiado equiparada a uma lógica renovadamente patronal e tecnocrática, desde que o fiel da balança social havia por conseguinte
consubstanciado o optimismo de um novo tipo de dirigente eleito, com base exclusiva na origem social dos extractos mais
desfavorecidos e mesmo naturalmente mestiços e indígenas, presentes em maior ou menor proporção nos actuais países da América
do Sul, na sua crescente influência geopolítica a uma escala global numa antes imaginada.
Tudo isso, porém, num contexto súbito gerador de epifenómenos corporativos e por antecipação propiciador a pronunciamentos de
figuras reconfiguradas do seu anterior anonimato ou pacatez e ainda sem muitas provas dadas de anterior cultura política adquirida e
assimilada atempadamente. Numa espécie de relâmpago libertador macaqueando o herói da hora sem o crivo do parlamentarismo
habitual, embora menos patrocinante como hipótese credível de antecipadas e garantidas actividades económicas do sector privado.
Como acontecia, tradicionalmente, também anteriormente nos anos cinquenta e sessenta do século XX, no tempo em que a General
Motors ou a Standard Oil decidiam – por interposta influência - quem poderia vir a governar, com mais “estabilidade” (para os
respectivos interesses prioritários, no contexto da economia de mercado controlada maioritariamente pelo centro exterior), ou não, este
ou aquele país periférico e por alegada inconsequência planeadora, com maior inércia no aproximar dos seus interesses de grupo, por
tão projectadamente falaciosos ou menos que fossem para o já afectado crescimento económico de então. Quase sempre em
descontínuo processo de distribuição de renda, atendendo ao potencial passivo social de uma crise económica anunciada como
possível, como consequência contrária, bloqueando créditos e resistindo ao reinvestimento de lucros em sectores localizados na
economia emprestada ou alugada. O comentário em “voz-off” de uma montagem de actualidades famosa quase trinta anos depois da
guerra civil espanhola, em 1963, sobre uma Espanha ainda sonolenta no seu desenvolvimento sobretudo turístico, começava assim:
“Nesse ano, de 1931, metade da população – doze milhões – é iletrada. Há oito milhões de pobres. Há dois milhões de camponeses
sem terra. Vinte mil pessoas possuem metade da Espanha. Províncias inteiras são propriedade de um só homem. Salário médio dos
trabalhadores: de 1 a 3 pesetas por dia. O quilo de pão vale 1 peseta” (5).
NOTAS:
(1) Hans M. Enzensberger, “Anatomia social do crime”, Morais Editores, Lisboa 1968 (1964 e 1966), págs. 41 e 213 in “Rafael Trujillo:
retrato dum ´pai do povo´”.
(2) Francisco C. Weffort, “O populismo na política brasileira”, in “Brasil: Tempos Modernos”, Celso Furtado coordenador, Paz e Terra,
Rio de Janeiro – São Paulo 1979, págs. 52 e 67.
(3) Jean Touchard, “História das Ideias Políticas”, Vol.7, Publicações Europa-América, Lisboa 1970, pág. 140, in “O ´chefe carismático´”.
(4) Alexandre Dorozywski, “A manipulação dos espíritos e o modo de lhe fazer frente”, Assírio e Alvim, Lisboa 1982, pág. 31, in “Os
limites da obediência”.
(5) Frédéric Rossif/Madeleine Chapsal, “Mourir á Madrid“, Marabout Université
n.40, Gérard et Co, Verviers 1963, págs. 7 e 8.
CVII – 18 setembro
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CVII)
Manuel Carvalheiro
Jean Touchard na sua antologia sobre a “História das Ideias Políticas”(1) referiu-se a dado passo a Max Weber a
respeito da explicação da ideia de carisma como graça do cidadão especial, acrescentando-se em síntese a ideia daquele autor de
ciências sociais anterior a 1920, em que propunha um tríptico entre o chefe tradicional e o chefe racional-legal com o polo de oposição
carimbado pelo novo chefe carismático. Não é por acaso que Imanol Uribe em “El Rey Pasmado” (1990), nos dá uma ficção espelhada
no carisma sem graça de um jovem rei castelhano, que reflectia antes de mais pelo lado fársico uma adaptação literária que visava a
própria Espanha contemporânea e a sua liderança simbólica no universo hispânico actual, que naturalmente inclui a sua autoridade
cultural perante a maioria dos países latino-americanos.
Mas, talvez influenciado pela ascensão da fotografia de reportagem, nomeadamente entre as duas grandes guerras mundiais, de que o
sintoma do ficheiro já era patente nas companhias de seguros contra acidentes industriais, como aquela em que Frantz Kafka como
licenciado em direito e de
formação checo-alemã trabalhara quando em 1914 escrevera “Colónia penitenciária”, divulgado numa única conferência em Munique
nessa época, mas só ulteriormente publicado em 1919.
Como antevisão da crise bolsista um ano antes, o filme de Victor Sjostrom “O Vento” (The Wind, 1928), referia-se a dado passo ao
abrigo subterrâneo em que coloca as suas personagens após a chegada a uma povoação no estado da Virgínia, nos E.U.A., em função
de um ciclone que ameaça aquela região onde o combóio chegava diante de pastagens de pradaria, a East Water. Local do drama com
acentos nórdicos e que, no seu lugar de areia e vento, representa a força da natureza próxima do deserto de Mojave, com um cavalo
branco no céu da tempestade, em sobreimpressão, anunciando o destino daquela família dividida entre o Norte e o Sul. Nos anos trinta
do século XX, no Brasil do presidente Washington Luís, era banal os comícios serem varridos a “pata de cavalo” e a questão social
debatida, ser equiparada a um problema policial (2).
Uma concepção menos demagógica e retórica do carisma, do populismo e da democracia, afirmou-se porém na última década na
América Latina, inclusive no México. Talvez o primeiro país a ter uma revolução social durável na memória dos povos e também o
primeiro, segundo consta, a nacionalizar em 1938 os seus petróleos, num movimento inédito para a época à escala mundial. A América
Latina, porém, desse tempo em que o parlamentarismo estava descaracterizado perante o subdesenvolvimento, mereceu comentários
agrestes na época quanto ao conceito de democracia, tal como a via a corrente mais atenta ao desenvolvimento social (3).
O estatuto tutelar do continente latino-americano por parte dos E.U.A. também a modificou bastante, desde a época em que a
Organização dos Estados Americanos segregava Cuba, por este país afrontar os desígnios então predominantes e de que se
salientava o lema irónico sobre o que então era bom para uma dada companhia como a General Motors, era também provavelmente
muito bom para a política externa do país que, em última instância a representava identicamente, para além do próprio estatuto federal
do seu governo público e não exclusivamente de interesses económicos privados. Actualmente, porém, a General Motors, noutro
contexto da sua própria história, como empresa privada americana outrora fulcral no desenvolvimento económico e industrial no pós-II
Guerra Mundial, sobretudo nos anos cinquenta e sessenta do século XX de expansão financeira hegemonizante, é contudo obrigada a
cortar verbas e a suprimir postos de trabalho aos milhares e a redefinir ou fechar fábricas sucursais, para poder vencer a sua actual
crise de crescimento económico no sector automóvel americano, num quadro democrático quase generalizado neste sector
internacional.
Voltando ainda ao que Hans M. Enzensberger escreveu no seu livro “Anatomia social do crime” (4), a propósito da República
Dominicana em 1961, cabe referir este incómodo ponto da situação, quanto a estudos a respeito da verdadeira implementação do
desenvolvimento: “Assim, era difícil avaliar após a sua morte a fortuna pessoal do benfeitor do povo´da República Dominicana. Para
além do mais as estatísticaslatino-americanas locais na época fugiam a uma ideia de conjunto apesar da precisão dos números, sem
fontes citadas e por vezes até duvidosas, prevalecendo a incerteza da mistura de ímpostos, recenseamentos, estimativas e números
para propaganda”. Portanto, apenas com valor indicativo e sem garantia, sublinhando talvez com alguma picardia e sem fidelidade
absoluta, o seguinte o mesmo autor alemão, tal “como os Bancos europeus fazem com os reconhecimentos de dívida da República
Dominicana”, pela caução acumulada da fortuna pessoal de Rafael Trujillo antes do seu súbito desaparecimento trágico.
Os interesses industriais em 1930 no começo da industrialização do Brasil, como salientou Francisco C.Weffort no seu estudo de 1967,
“O Populismo na Política Brasileira” (5), tinham contudo beneficiado das mudanças políticas da então chamada Aliança Liberal na sua
luta política contra o regime oligárquico que dominava os interesses agrícolas então muito mais importantes no desenvolvimento
económico respectivo. Era, deste modo, porém mais uma “transacção entre alguns grupos urbanos de classe média e alguns sectores
agrários que mantinham uma posição divergente no interior do sistema oligárquico”.
NOTAS:
(1) Op. cit., Vol.7, Publicações Europa-América, Lisboa 1970, pág114 in “O ´chefe carismático´”.
(2) Helena Silveira, “A terra cobre nada”, in “Os Dez Mandamentos”, Colecção Vera Cruz-Literatura Brasileira n.80, Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro 1970, pág. 227 in “VIII - Não levantar falsos testemunhos”.
(3) Régis Debray, “Essais sur l’Amérique Latine”, Collection Cahiers Libres n. 108, François Maspéro, Paris 1969, págs. 192 a 194.
(4) Op. cit., Morais Editores, Lisboa 1968 (1964 e 1966), pág. 41 e 213 in “Rafael Trujillo : retrato dum ´pai do povo´”.
(5) Op. cit., in “Brasil : Tempos Modernos”, coordenação de Celso Furtado, Paz e Terra, Rio de Janeiro - São Paulo 1979, págs. 52 e
67.
CVIII – 25 de setembro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CVIII)
O aprofundamento da nacionalização dos petróleos anunciava-se como razão do aprofundar da crise política na Indonésia com as queixas e obstruções da Royal Dutch
Shell, uma questão que já vinha detrás desde a autonomia a caminho de uma independência em 1946, quando a Holanda havia enviado cem mil militares para pacificar a
guerrilha em vias de se transformar em exército de libertação.
Manuel Carvalheiro
A 7 de Janeiro de 1965 a Indonésia suspendeu a sua participação como estado membro das Nações Unidas e, no
dia seguinte, as suas forças entraram na Malaia. A fome de Lambok, na ilha do mesmo nome a seguir às de Java
e Bali, com crianças escanzeladas sobretudo, é objecto de uma reportagem de um jovem repórter noticioso
australiano, numa cena de “O Ano de Todos os Perigos” (The Year of Living Dangerously, 1982) de Peter Weir,
que revelou a sociedade de então naquele país vizinho da Austrália, durante os três meses que antecederam o
início do enfraquecimento da presidência de Sukarno.
Depois do prestígio deste ter perdido o carisma entre nacionalismo, islamismo e marxismo, desde a sua
participação pouco conhecida na inédita conferência anti-colonial de Bruxelas em 1927; e que o havia conduzido,
muito depois, à independência das Índias Orientais Holandesas, na Insulíndia, obtida da Holanda entre 1945 e
1954, iniciando depois o movimento dos não-alinhados no ano seguinte. Talvez como forma de corporizar enquanto representante de uma evitável “lumpen-burguesia”, no redizer posterior de um famoso economista - um conceito difuso desde
1952, que era o de Terceiro Mundo, criado por Alfred Sauvy, um demógrafo polémico apoiante do natalismo. E, também, por ironia, em
1973, do chamado crescimento zero, isto é, no limite do emprego generalizado para países pobretanas, mas higienizados tanto quanto
possível para desdourar o planeamento natalício, então mal aplicado na Índia pelas implicações eugenistas e contra natura.
No entanto, um manual de administração pública, que foi editado pelas Nações Unidas em 1961, inspirara-se numa resolução textual
de uma comissão de sete individualidades, presidida em 1951 por um holandês e que, a dado passo, referiu-se em 1964 à visita à
Indonésia e ao Sudão de especialistas em regimes fiscais, em missão: “A economia e a celeridade são virtudes altamente desejáveis
para o bem tanto do cidadão como do funcionário. O espectáculo do cidadão arreliado, correndo de um escritório para outro, fazendo
fila de espera, procurando conduzir o seu negócio ao sucesso – importante para ele - não é novo. Não é raro também que um serviço
demore a dar vazão à sua decisão. É assim que num certo país um aldeão deve normalmente dirigir-se oito vezes a quatro escritórios
situados em duas cidades diferentes para conseguir a autorização para pastar o seu gado em terras pertencentes ao Estado. A
situação é análoga em certas regiões mesmo no que diz respeito à cobrança do imposto” (1).
O quadro liberal daquele universo concentracionário, nos últimos tempos de um regime semi-democático e parcialmente ditatorial,
ameaçado por forças políticas contrárias ao nível de um aparelho de estado, que não funcioanava para o mais elementar a 25 de Junho
de 1965 e que não tinha sequer para resolver como prioridade a fome endémica de Lambok, revelava a fragilidade institucional
administrativa e o autoritarismo subjacente de militares em busca de promoção apressada. Extractos privilegiados esses, que levariam
aquele país - naquele contexto paralisado nas decisões imediatas do quotidiano mais atroz - para uma alternativa de guerra civil ou de
carnificina concentrada anti-popular. E a uma nova ditadura em que uma gerontologia militar desenvolveu prioritariamente os seus
negócios, em nome de uma república federalizante e também em nome do que restava de fachada do nacionalismo anterior com raízes
na luta pela independência, tal como havia por exemplo pouco antes acontecido quase mimeticamente na República Democrática do
Congo em 1965 (2).
O aprofundamento da nacionalização dos petróleos, anunciava-se como razão principal do reaprofundar da crise política na Indonésia,
com as queixas e obstruções da Royal Dutch Shell, uma questão que já vinha detrás desde a autonomia a caminho de uma
independência em 1946, quando a Holanda havia enviado cem mil militares para pacificar a guerrilha em vias de se transformar em
exército de libertação (3). Não será concerteza muito útil analisar os ideologemas daquele ano, sobre a reconfiguração imperial anterior
à I Grande Guerra, com a Holanda sobretudo no banco dos réus da opinião pública, no que concerne à Insulíndia (colada ao Industão
britânico e à Indochina francesa), com reinos como o do Sião ou as Filipinas colonizadas pelos norte-americanos - depois destes
afastarem a Espanha da concorrência na soberba colonial e Portugal entretanto ter ficado reduzido ao esquecimento insular e
fragmentado pela habilidade local para o porto franco e o contrabando -, mas o que era descrito no universo daquele filme de ficção
sobre o pré-golpe de estado sangrento de 1965, era o descentrado itinerário expontâneo e revelador de um repórter. Personagem que
pouco tempo prévio teve para se acomodar em demasia à contrafacção da verdade escondida da situação transitória e da sua
revelação a conta-gotas nos seus programas radiofónicos (mais de comentarista do que de noticiarista). O filme não sendo demasiado
esquemático esteve no entanto em débito para com um argumento extraído sobre um livro de recordações romanceadas e sobre o
itinerário quotidiano e vivencial, dir-se-ia existencial até, de um grupo de repórteres e correspondentes estrangeiros. Moldados pela
tradição da imprensa diplomática de contactos individuais no aparelho de estado, como fontes de uma imprensa liberal ou conservadora
ligada ao sector dos negócios ou do sensacionalismo de primeira página do então chamado Mundo Livre, a seguir ao incidente do Golfo
de Tonquim que dera início à Guerra do Vietname. E em que um ulterior posto em Saigão era menos entediante do que continuar na
secagem de espera de notícias frescas, numa Djacarta noctívaga e alucinante de rumores premonitórios de fecho de gabinete
noticioso: a democracia revolucionária desembocara no beco sem saída de uma cidade portuária, onde era esperado um navio de
carga com armamento oriundo de Xangai, pretexto para o correr da perciana; e em que o liberalismo de fachada revelaria a sua
fragilidade institucional, perante a ascensão do belicismo nacionalista de novo tipo, criando uma oligarquia para outro clientelismo
aparentemente neutral e definitivamente corporativo, no ano seguinte de falsa estabilidade. Programas de equilíbrios precários num
estado federal, porém tolerados ainda pela fase intermédia de recolher obrigatório, anterior ao golpe militarista e de isolamento
progressivo – ou, quando muito, de alheamento do próprio presidente Sukarno e da sua comitiva já parcialmente infiltrada –, que
anunciaria o massacre posterior dos apoiantes e conterrâneos de Aidit e Subandrio. Divididos estes, artificialmente, entre a opção
islamista dominante e interclassista e a opção chinesa mais curial na época como base independentista de génese social
desestratificada, como sublinhou recentemente Vera Simone em 2000 no seu livro “The Asian Pacific : Political and Economic
Development in a Global Context” (4).
Celso Furtado assinalara em “Raízes do subdesenvolvimento” (5), que “o método de acção diplomática” fora diluído em influência e
hegemonia, sem uma disciplina internacional da respectiva comunidade de nações, pelo facto da China na época ainda não pertencer
ao Conselho de Segurança das Nações Unidas em 1965.
NOTAS:
(1) «Manuel d’Administration Publique : les conceptions et les pratiques contemporaines et les pays en voie de développement»,
Nations Unies, New York 1964, págs. 29, 30 e 129.
(2) Neville Williams, “Cronologia enciclopédica do mundo moderno - 1960 a 1973”, Círculo de Leitores, Lisboa 1990 (1966, 1969 e
1975), págs. 38 a 42, o anode 1965 in “Entrada dos E.U.A. na Guerra do Vietname”.
(3) “Guia do Terceiro Mundo - 1980”, Tricontinental Editora Lda, Lisboa 1979, Altair Campos editor, págs. 148 e 149 in “Indonésia”.
(4) Op. cit., Longman 2001, New York- San Francisco - Boston - London - Toronto - Tokyo - Singapore - Madrid - Mexico City - Munich Paris - Cape Town - Hong-Kong - Montreal 2001 (Secodn Edition), pág. 235.
(5) Op. cit., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 2003, págs. 17 e 18 in “I - O mito da guerra fria”.
CVIX – 2 de outubro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
“O século XX assiste pois a uma expansão sem precedente das funções do governo. O conceito de Estado fornecedor de serviços está agora quase
universalmente reconhecido. (…)”
Manuel Carvalheiro
“Sob Sukarno a instabilidade do estado é a burguesia nacional para gerar desenvolvimento económico efectivo
deixando aos generais pouca escolha excepto integrar a Indonésia na economia capitalista internacional”, dizia
Vera Simone a dado passo da sua análise de equipa, a propósito do historial sinuoso daquele país entre 1965 e
1998, em “The Asian Pacific - Political and Economic Development in a Global Context” (1). Todo o quadro do
conflito entre forças políticas, legitimava a sublevação contra o “status quo” estagnante, mas indefesa na sua
ascensão organizada a todos os núveis da sociedade federalizante e insular; e, em que um então presidente
legitimador era contudo tratado como um ente supremo e infalível nos destinos do desenvolvimento
macroeconómico, conjunturalmente bloqueado de um país colossal à escala mundial na sua dispersão insular.
Devido, também, ao seu prestígio acumulado desde a Conferência de Bandoeng em 1955, como epicentro dos
países não alinhados, mas demasiado conciliador dez anos depois, entre a influência muçulmana generalizada e a
polémica sobre os destinos do globo. Dilacerada, então, pela apreciação de conjuntura diversificada entre a China e os E.U.A. a
respeito de uma geopolítica regional, integrada ou não, por um belicismo remanescente, após a partilha da Coreia nos anos cinquenta
do século XX.
Factores exógenos esses, que destruíriam o planeamento, possível sem guerra civil, do lastro de miséria, doença e fome, que afligiam
as infraestruturas deixadas pelos holandeses e também da falta delas ou da sua renovação constante, como prioridade na eliminação
urgente das marcas mais tenazes do subdesenvolvimento então de novo crescente.
Porém, desde 1960 que a Indonésia tinha em média um crescimento económico anual de cerca de 3%, mas infelizmente o ano de 1965
revelou contudo um acentuar generalizado das crises de fadiga das elites independentistas, desde o prenúncio da crise de estado na
Argélia, com o lastro do crescimento da corrupção e da governação desarticulada, por excessivo prolongamento das equipas de
liderança sem renovação significativa.
O rearmamento prioritário de frágeis economias de crescimento acelerado, de sua manutenção ou mesmo até de sobrevivência
alimentar ineficaz, face ao paradoxo da sobrepopulação pauperizada e ao excedente de mão-de-obra disponível a preços de força de
trabalho em salários de miséria e o enriquecimento individualista, devido à exploração do trabalho temporário propiciado pelo então
cognominado “neocapitalismo europeu” sobretudo germânico, fizeram o resto do retrato sócio-económico desse ano a meio da década
de sessenta do século XX. Na Indonésia, em Djacarta, vivia-se com uma gratificação de meros cinco dólares dados por um turista nos
bairros de lata, para com eles o seu detentor atingir ao câmbio local da época, talvez o sucesso entre os seus durante um tempo.
O que revelava a dependência cambial em equipamentos, face ao crescente domínio comercial do dólar norte-americano naquela
economia ainda vedada ao comércio livre, num contexto porém suicidário e de pausa estratégica para renovar essas lideranças
acomodadas ao marasmo económico e à corrupção financeira aproveitandoo impasse da baixa de produtividade e a impaciência das
classes médias mais inovadoras e patrióticas, sacrificadas posteriormente como sector laico e progressista da administração pública
pelo choque de civilizações e pela política de saneamento das aldeias estratégicas, cilindrando as relações de produção reivindicativas
contra a carestia de vida e pelo desenvolvimento social mais consentâneo com as prioridades da época : educação, saúde, cultura,
turismo e industrialização.
Porém, no “Manuel d’Administration Publique: les conceptions et les pratiques contemporaines et les pays en voie de développement”,
editado pelas Nações Unidas em 1961 - apoiado na reactualização em 1958 de um texto de 1951 - e revisto em 1963, a síntese de
modalidades de assistência técnica entre estados socializados e estados abertos às empresas privadas, revelava que o sector público
era determinante para o apoio aos assentamentos locais de desenvolvimento: “O século XX assiste pois a uma expansão sem
precedente das funções do governo. O conceito de Estado fornecedor de serviços está agora quase universalmente reconhecido. Os
governos assumiram a responsabilidade de dirigir e de utilizar os recursos humanos, os recursos naturais e a tecnologia em rápido
progresso do mundo moderno com vista a criar condições próprias para favorecer um bem-estar económico e social largamente
generalizado” (2).
Esse mundo moderno, inspirado no espírito mais do que na letra de leis, que apesar de Montesquieu revisitado fora do seu tempo,
ainda não tinha descortinado o que era livre ou oprimente com a clareza bastante ou suficiente - para além do debate sobre dicionários
e terminologia social a respeito de palavras ocas e sem substância aplicável no imediato -, sendo apenas a modernidade pleonástica
um leque de constatações de uma década de equívocos. E de constante reaprendizagem administrativa dos próprios especialistas, na
publicitação do sector público dos países recém independentes nomeadamente, mas guiados pela consciência dos autores do referido
manual registo e fruto de uma época.
Ora, em seguida, o mesmo manual, consubstanciando a experiência acumulada pelas missões de especialistas entre 1951 e 1963,
acrescentava, ainda: “As exigências dos cidadãos para com o seu governo fazem-se insistentes. Eles resignam-se cada vez menos a
uma vida de pobreza, de fome, de doença, de ignorância ou de nada fazer. Cada vez mais e nomeadamente nos países em vias de
desenvolvimento, eles vêem no governo, a instituição própria para satisfazer as suas necessidades urgentes e obrigada a inventar
novas formas de administração pública capazes de preencher as lacunas existindo nos domínios social e económico”. Nada poderia ser
mais claro e evidente, quanto à antevisão de sérios problemas caso os governos não descentralizassem e reformassem periodicamente
a respectiva administração pública. E já desde essa época existia a recomendação de apoio a instituições locais independentes, para
contrabalançar as deficiências históricas da natureza de cada um destes novos estados. Estados estes saídos da colonização com
mais ou menos paralisia, asfixia e peso desmedido burocrático diante do cidadão, em aprendizagem e integração produtica acelerada.
Em 1970-71 a Indonésia teve 133 milhões de dólares ao câmbio da época de rendimentos transferidos para o exterior, resultante de
investimentos privados estrangeiros no seu próprio território. Portanto, mais do que por exemplo o Peru que tivera 104 milhões de
dólares no mesmo ano e menos do que por exemplo a Nigéria com os seus 156 milhões de dólares. Sendo que, por isso, a Ásia do
Sudeste e a Oceania tiveram um total de 812 milhões de dólares de rendimentos transferidos, resultantes de investimentos privados
estrangeiros, no então Ceilão, na Índia, na Indonésia, na Malásia, no Paquistão, nas Filipinas e ainda em diversos outros países da
mesma área; estes últimos, não especificados e com o total parcial de 127 milhões de dólares ao câmbio da época resultantes de
lucros transferidos e não reinvestidos nos próprios locais de anterior investimento respectivo, ainda no mesmo ano financeiro de
1970/71 (3).
Celso Furtado em 1975/76 no seu livro “Prefácio a Nova Economia Política” comentou aquilo que se apelidava na época de “processo
de esfriamento” (4) das economias nacionais. Face às consequências políticas inflacionistas e de desemprego, subsequentes à então
grave crise económica que havia sucedido à hecatombe energética de 1973 para o mundo capitalista com a OPEP/OPEC a entrar na
cena internacional como contra equilíbrio das exigências de alguns sectores poderosos dos países em vias de desenvolvimento no
ocaso da Guerra do Vietname. Devido às então medidas correctivas congeladas por decisão externa a essas economias nacionais e
periféricas, obrigando em contrapartida esses mesmos “países centrais” dominantes a mudarem, mesmo assim, as chamadas regras
do jogo antes por eles sustentadas com ortodoxia financeira inquebrantável desde 1944 à escala internacional dos fluxos financeiros.
Regras financeiras essas que, antes, haviam permitido que “o sector mais duradouro do capitalismo actual” escapasse “aos sistemas
de controle e coordenação existentes”, como na mesma altura salientara Celso Furtado. Um filme de Lino Brocka, “O lírio de Manila”
(Insiang, 1977), retratava o grau mais elevado de violência e corrupção num arrabalde sudasiático, como investimento e rendimento
reflectindo uma classe dominante ligada a uma falsa aristocracia da terra.
“Muitos países têm políticas desenvolvimentistas que tentam dirigir-se para novas procuras criadas pela expansão da concentração
populacional em cidades quando capializaram estas sobre os benefícios da urbanização, tais como o crescimento económico e a
eficiente oferta de serviços. Durante os anos 80, as cidades na Indonésia tiveram uma expansão à taxa de 5,4% anual, alimentada pela
perspectiva de declínio agrícola nas ilhas longínquas e pelos elevados níveis de investimento directo estrangeiro orientando a
exportação de manufacturas na ilha de Java”, conforme relatou o “World resources 1998-99 - A Guide to the Global Environment” (5).
NOTAS:
(1) Op. cit., Second Edition, Longman, New York - Montreal 2001, págs. 237 e 238.
(2) Op. cit., Programme d’Assistance Technique des Nations Unies, Département des affaires économiques et sociales, New York 1964,
pág. 6 in «Partie I - Administration Publique et Développement National».
(3) Pierre Jalée, «Le tiers monde en chiffres», Petite Collection Maspero, François Maspero, Paris 1974, págs. 80 e 173.
(4) Op. cit., Biblioteca Perspectivas do Homem n.5, Dinalivro, Lisboa 1976, pág. 115 in “III - A nova ordem mundial”.
(5) Op. cit., Oxford University Press, New York - Oxford, pág. 147.
CX – 9 de outubro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CX)
Manuel Carvalheiro
Ainda em 1992, a propósito de um estudo preparado sobre “Os Não-Alinhados nos anos 90” para a Conferência
de Djacarta, Celso Furtado insistia com a seguinte e crónica dicotomia, no seu livrinho de 1998, “O Capitalismo
Global”, em que dissertava da seguinte forma a dado passo: “Estudo da Comissão Sul pôs em evidência que os
preços dos produtos manufaturados exportados pelos países do Terceiro Mundo cresceram 12% em termos
nominais (em dólares), nos anos 80. Ora, durante esse mesmo decênio, os preços das manufaturas exportadas
pelos países industrializados cresceram 35%” (1).
Mas, de seguida, concluía que mesmo com o poder de compra renovado, porém se se tivesse em conta os
equipamentos e máquinas importados e os respectivos preços, ter-se-ia de admitir, segundo o economista
brasileiro, que a perda no referido decénio teria sido de 32%. No entanto, essas circunvoluções lógicas serviam
para admitir, que tinha havido um “ganho de espaço” no mercado internacional para as manufacturas oriundas dos
países emergentes e que por tal motivo deviam esses países emergentes lutar para reduzir esse lapso financeiro desenvolvimentista
com o Norte. Está-se, contudo, já um pouco mais longe da época em que Julio Garcia Espinosa havia realizado o documentário
alucinatório sobre a Guerra do Vietname, em que o título agoirento de “Tercer Mundo, Tercera Guerra Mundial” (1970) não dava
tréguas ao desfecho apocalíptico numa região em que era suposto ser-se indecente em pensar o contrário na mesma altura. E
alarmando-nos quanto a qualquer hipótese de acalmia no desenvolvimento económico, tendo em conta as circunstâncias locais de
economia armamentista prioritária.
Curiosamente, Vera Simone em “The Asian Pacific - Political and Economic Development in a Global Context” (2) assinalou, ainda em
2000, que Terceiro Mundo equivalia a subdesenvolvimento - a propósito do ciclo a que não escapavam as Filipinas e Myanmar (ou
Birmânia) em comparação com a nova subclassificação de novos países exportadores (ou os chamados NECs) como a Malásia, a
Tailândia e a Indonésia, mesmo depois da crise financeira asiática de 1997. Numa época em que as palavras-chave já eram integração
económica e modernização. Sendo que, no entanto, raramente a expressão Terceiro Mundo significaria - como naqueles anos setenta
do século XX - exploração e desigualdade na troca comercial, acrescidos de belicismo e armamentismo, a pretexto de hegemonia,
como factores não-económicos, externos àquele continente.
Ora, por exemplo, a produção de chá na Indonésia, durante aquele decénio de 60-70 no século XX, havia decrescido de 60 para 43 mil
toneladas anuais, ao passo que os outros mercados como os do Japão, Ceilão, Índia, Paquistão e de outros países mais da mesma
Ásia mas não especificados, tiveram no entanto um crescimento de produção anual de chá, durante o mesmíssimo decénio de 60-70.
Embora, em outro exemplo, a Indonésia tenha crescido na produção anual de arroz - quando posteriormente, em 1997, atingia os 50
milhões de toneladas, na véspera da crise financeira asiática e, mais recentemente, em 2006, cerca de
54 milhões de toneladas (3) - durante aqueloutro distante decénio de 60-70, passando então de 13,5 milhões de toneladas para cerca
de 17,5 milhões de toneladas, ao passo que comparativamente para a mesma época agora recuada a
Tailândia havia crescido relativamente ainda mais, atingindo e ultrapassando pelo menos a média da Indonésia para o mesmo período
da década de 1960 em diante, revelando desde então a sua emergência concorrencial também em outros sectores agrícolas. Sendo
que, também para a mesma época a Indonésia no sector de pescado vivo reforçara a sua tonelagem anual mais significativamente,
passando de 753 milhares de toneladas para 1250 milhares de toneladas entre 1960 e 1970 de média anual.
O PNB anual da Indonésia, ainda em 1970, provinha 48% da agricultura, pecuária e pesca, mas contudo só ainda 19% dos sectores
industrializados, embora os serviços fornecessem 33% do mesmo, num país em que 80 dólares era a média anual por habitante, isto é,
cerca de seis dólares e meio por mês ao câmbio da época; mas, em 1998, o PNB por habitante na Indonésia em vias de
democratização acelerada, após a crise financeira asiática do ano anterior e depois com a transição política desse ano, mal atingia
ainda os 65 dólares por mês ao câmbio desta nova fase, isto é, mais de trinta anos depois da implantação da ditadura, segundo o
“Atlaseco – Atlas économique mondial 2000” (4).
Ainda a propósito dos anos 80 no século XX, o economista Jagdish Bhagwati referia à passagem numa conferência em 1996, “The
feuds over free trade”, que tinha apelidado naquela época de síndroma do “gigante diminuído” à falta de confiança a propósito do
redemoínho provocado pela destruição competitiva mútua dos chamados oligopólios dos países desenvolvidos, como por exemplo os
dos próprios Estados Unidos. Em especial, no início dessa década, face ao crescimento económico espectacular das quatro nações
asiáticas, ditas “tigres asiáticos” e, em destaque à parte, o Japão considerado inamigavelmente, em certas ocasiões, pelas firmas
concorrentes, como “adversário” número um de
Silicom Valley; e, também, das companhias que eram depois desprotegidas com ameaças de tarifas por este ou aquele pretexto de
incumprimento de objectivos de importação para as firmas norte-americanas.
Embora a sua conferência posterior já nos anos noventa do século XX, apenas historiasse retroactivamente esse momento económico
da década anterior como transitório. Sobretudo, quanto ao ridículo da situação encarada ulteriormente, em 1998, com a calma das
manifestações cívicas a que a OMC seria depois confrontada; e, ironicamente confortada pela falta de aprovação da carta de direitos
sociais, a que se acrescia a previsibilidade os problemas económicos ambientais, subestimados e ainda mal aceites pela pouca
credibilidade junto dos meios financeiros anestesiados pela incúria do passado (5).
NOTAS:
(1) Op.cit., Paz e Terra (4ª edição), São Paulo - Rio de Janeiro 2000 (1998), pág. 43 in “III - Globalização e Identidade Nacional”.
(2) Op. cit., Second Edition, Longman, New York - Montreal 2001, pág. 190.
(3) “Atlaseco 2007 - Guide économique mondial”, Le Nouvel Observateur, Paris 2006, pág. 105 in “Indonésie”.
(4) Op. cit., Les Guides Le Nouvel Observateur, Paris 1999, pág. 95 in «Indonésie»
(5) Op. cit., The Institute of Southeast Asian Studies, Singapore 1997, pág. 29.
CXI – 16 de outubro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
“Inflation” (1927/28) de Hans Richter e “Aventuras de uma nota de dez marcos” (1926) de Berhold Viertel,
reflectiram a seu tempo a fase imediatamente anterior da crise bolsista internacional despertada com a queda
abrupta das acções da bolsa de Nova Iorque em Outubro de 1929, revelando a impreparação das instituições
financeiras para uma política anti-cíclica que prevenisse a amplitude das falências bancárias em todo o mundo.
Friderich Hayek (1902-1992) obtivera o prémio Nobel da economia ex-aequo com Gunnar Myrdal (1898-1987) em 1974, um checo e um
sueco tão diferentes um do outro até na própria actividade da economia política, provenientes também de situações históricas
diferentes. No que diz respeito a Gunnar Myrdal, em “Procès de la Croissance : A contre-courant” (1), este espantava-se ainda em 1972
após a atribuição do prémio Nobel da economia a Simon Kuznets pelo seu trabalho no paralelismo entre o crescimento económico e o
PNB, meritória pesquisa em relação ao ciclo económico e ao dogma da estabilidade “versus” estagnação e instabilidade corrigidos
antes por um modelização de coeficiente de capital, visto que continuava-se a não contemplar o tempo livre do consumidor com o seu
próprio trabalho doméstico na confecção dos produtos de consumo.
Mas, já por exemplo, Hayek, aos 27 anos fora então um fino analista da crise autoritária alemã durante os anos trinta e da sua
influência sobre a república checa, cujo parlamentarismo seria esmagado em 1938 com o pacto de Munique. Nesse período de
recessão e de retoma do emprego na Alemanha por via da sua expansão belicista, Hayek especializou-se nos sintomas de crescimento
económico, devido à aceleração do ciclo, sintonizando “a posteriori” com as lições do recatado mestre de Cambridge, John Maynard
Keynes, que em 1941 viajou pela primeira vez para os E.U.A. via Lisboa, segundo R.L.Heilbroner no seu livro de 1959 “Grandes
Economistas” (2).
A amizade entre Hayek e Keynes era profunda e o ponto comum entre eles era a teoria da moeda. Os receios de Hayek antes da II
Guerra Mundial eram ainda maiores do que o optimismo moderado de Keynes, no que respeitasse a planificação económica estatal, via
servidão dita sovieto-alemã, porém mais alemã que russa no que dizia respeito ao processo económico iniciado de armamentismo com
fins belicistas. O próprio governo americano de Roosevelt e depois a administração Truman e, em seguida, o primeiro mandato de
Eisenhower fizeram dizer ao autor daquele livro o seguinte: “Em 1950 as 250 empresas maiores produziam artigos cujo valor era igual
ao de toda a produção da economia de antes da guerra”, adiantando também um comentário sobre os receios de Hayek, pois na
“última década, a planificação indispensável a uma economia armamentista obrigou o govêrno, em 48 oportunidades, a controlar a
indústria pesada, a fim de que seus planos fossem executados”.
Esse era apenas um dos aspectos do programa de investimentos do governo norte-americano de então no ano do início da Guerra da
Coreia, a coberto da bandeira das Nações Unidas posteriormente finalizada em 1953, mas o crescimento económico “espectacular”
dera-se graças a este motor no sector armamentista, o que levou na época muitos economistas americanos na altura a interrogarem-se
sobre as preocupações anteriores de Alvin Hansen, quanto à ligação entre gastos da administração em investimentos desta natureza e
o crescimento económico sem este avatr guerreiro como justificação em nome do mundo; no entanto, “a resposta aos problemas do dr.
Hansen nos colocam frente a frente com o próprio dr. Hayek”, isto é, o planeamento teria por conseguinte um papel determinante na
expansão do capitalismo, auxilidado pela administração norte-americana, que consubstanciou hegemonicamente o mimetismo
desejado de um governo local como governo mundial.
Embora aquela servidão germânica cuja sombra Hayek antevira até ao Caucaso geo-político herdado da I Grande Guerra fosse a
caricatura total da iniciativa privada, tal como a conheceramos desde o século XVIII. Numa dinâmica mais estagnante entre continentes
diferentes, a América e a Europa, na evolução e revulsão entre abundância e escassêz. como raio de acção limite de planeamentos
opostos e nessa época então aramente complementares, devido a factores exteriores à própria economia do desenvolvimento. Mas que
pesavam sobre esta última, retardando ou acelerando o crescimento económico, contraíndo ou expandindo a troca dos seus produtos,
mercadorias ou fetiches.
O “individualismo metodológico” de Hayek foi perfilhado pelo próprio Karl Popper em três textos que escrevera entre 1944 e 1945,
referidos criticamente por Paul M. Sweezy (1910-2004) no seu livro “Teóricos e Teorias da Economia” (3), sendo que os “todos” e os
“totais” seriam de diferentes perspectivas sociais no que dizia respeito às abordagens feitas de bases de pensamentos essencialmente
diferentes sobre o futuro irresoluto então das ciências sociais como amalgama sofisticada de saberes anteriores de campos
disciplinares heterodoxos e neo-positivistas.
Hayek havia publicado em 1948 “Oindividualismo e a ordem económica” no qual se destacava o seu autodenominado efeito Ricardo,
como homenagem sua ao livro “Principles” do mesmo clássico do século XIX e que consistia no seguinte: “ a celeração do cilo
económico numa sociedade de bem-estar era vista por Hayek com alguma prudência, visto que o mecanismo daquela fora gerado
numa sociedade também por ele concebida como já de pleno empreg ; pois que quando a procura pelos produtos de uma dada
empresa num determinado mercado sem grande taxa de desemprego, conduzia um referido empresário - Hayek é o outro lado de
Schumpeter - ou os accionistas não necessariamente a investir ainda mais em equipamentos, mas antes pelo contrário a até
“desinvestir” nesses meios de produção, embora alargando por essa via a expansão dos bens de produção pela mesmíssima empresa.
Esse efeito Ricardo seria portanto à letra o resultado da alta de salários, que havia conduzido à substituição de mão-de-obra por
maquinaria ou equipamentos, enquanto que uma baixa nos salários conduziria ao inverso; sendo que por conseguinte em seguida uma
nova alta do preço dos produtos referidos dessa empresa levaria por sua vez à quebra tendencialmente descendente dos salários
relativos, acarretando por fim uma decisão determinante a respeito dos mesmos empresários nessa situação antes descrita. “Contudo,
os investimentos que eram ocasionados por alterações ou mudanças no conhecimento técnico”, obedeciam porém a outras leis
económicas, “que não correspondiam ao dito efeito Ricardo”, sgundo Walter Adolf Johr em “Las Fluctuaciones Económicas”, escrito em
1952 em Zurique (4).
Assim como desde 1928 não seria possível uma teoria económica exclusivamente monetária, era no entanto facto assente que o factor
monetário era a “causa decisiva” da conjuntura em movimento, influenciando os consumidores por aspectos só intepenetrados pela
psicologia social do indivíduo num dado contexto do ciclo económico, abstraindo-se a origem de classe e a sua posição na escala social
hierarquizada do aparelho produtivo ou fora dele, como o anónimo sem qualidades especiais e vector arbitrário da opinião pública do
tempo ou época dos primeiros inquéritos quotidianos. A dita “neutralidade” de Wicksell em 1898 era apenas para uma dada economia
natural, onde os preços fossem estáveis perante a teoria monetária onde o dinheiro usado como poder individual ou colectivo de
aquisição e venda, era uma cobertura mais simbólica incluído no então circuito económico da primeira grande crise de estagnação
subsequente`ao apogeu da revolução industrial do século XIX e em que o total da sua quantidade tendia para a invariabilidade. Sendo
que o sentido da variação das expectativas dos empresários para poupar ou ganhar tinha depois a ver com o mecanismo desses
preços em função da produção e do investimento, o que viria a merecer um livro do próprio Hayek muito mais tarde e intitulado “Preço e
produção”.
Porém, desde que se mantivesse a proporção entre investimento na produção de bens produtivos e na produção de meios de
produção, maquinaria e equipamentos, não haveria então necessidade de aumentar a fabricação de moeda para introduzir no circuito.
Em “After hours” (1988) de Martin Scorsese, o indivíduo jovem em processo de alienação social fica siderado enquanto operador de
computadores de folga nocturna com o que lhe acontece à nota de vinte dólares por falta de troco de um taxista, que mais adiante
consegue recuperá-la sem lhe retribuir o troco, numa agitada aceleração fora de horas no circuito doméstico integrado parcialmente no
lazer nocturno como banca de serviços prestados à comunidade desfazada. A partir da teoria do equilíbrio geral segundo Walras,
Wicksell demonstrou que na live-concorrência o lucro tendia a desaparecer, segundo Celso Furtado em “Teoria e Política do
Desenvolvimento Económico” (5).
Notas:
(1) Op. cit., Presses Universitaires de France, Paris 1978, págs. 188 e 189 in «X - ‘Croissance’ et ‘développement’».
(2) Op. cit. Biblioteca de Ciências Sociais n.9, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1959, págs. 259 e 285.
(3) Op. cit., Zahar Editores, Rio de Janeiro 1965, pág. 90.
(4) Op. cit., Libreria “El Aeneo” Editorial, Buenos Aires - Caracas - Lima - Mexico - Montevideo - Rio de Janeiro 1958, págs. 307 a 310 in
“c) El ‘efecto Ricardo’ de Hayek, como intento de invalidacion del principio de acelación” e págs. 491 a 494 in “ a) Neutralidad como
constancia en la cantidad de dinero o como estabilidad del valor del dinero ?”.
(5) Op. cit., Colecção Universidade Moderna n.15, Publicações Dom Quixote,
Lisboa 1976, pág. 81 in “IV - A Teoria do Empresário. A contribuição de
Wicksell”.
CXII
23 de outubro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CXII)
Manuel Carvalheiro
Basílio Teles (1856-1923), em 1905, depois de um exílio em Madrid, subsequente à revolução republicana de 31
de Janeiro de 1891 no Porto, após a influência da república brasileira instaurada pouco mais de um ano antes em
15 de Novembro de 1889, conjecturava sobre a ciência autónoma e livre, na sua relação com o positivismo laico.
Enquanto consciência crítica da ciência administrativa oficial da monarquia portuguesa de D.Luis, numa época que
provinha desde a interdição das Conferências do Casino e da influência da Comuna de Paris no quadro da guerra
franco-prussiana vinte anos antes, até à influência da partilha de África com os prolegómenos da Conferência de
Berlim em 1885, com o ainda mais recente ultimatum inglês sobre a questão do mapa cor-de-rosa que ligaria
Angola a Moçambique, lamentava-se deste modo ainda cinco anos antes da implantação da república em
Portugal: “Conquanto não fosse profunda nem duradoura, a influência da filosofia positiva entre nós, como foi por
exemplo no Brasil para sermos todavia equitativo, forçoso não é reconhecer que a ela se deve a disciplina das
faculdades analíticas de uma fracção da mocidade estudiosa e um papel honroso e brilhante no descrédito que subverteu em Portugal
a filosofia das escolas” (1).
Refereria-se, portanto, ao método analítico como forma de ultrapassar o impasse da escolástica dominante. O mesmo autor noutra
passagem do seu livro interrogava-se em voz alta, abjurando inclusive o socialismo de cátedra já desde então: “Que sabia o povo, que
sabia a Nação, que sabiam até as chamadas classes dirigentes acerca da África, a não ser que era uma terra muito quente para onde
se mandavam degredados, onde se contraíam febres perniciosas, e onde a única ocupação permitida a um homem de fígado resistente
consistia noutros tempos em caçar pretos para os vender no mercado do Brasil?”. Caricatura talvez de uma leitura mais desatenta ao
meandro e complexidade do tráfico de escravos disfarçado de contrato e de trabalhos forçados ainda no final do século XIX como
epifenómeno que a Sociedade das Nações em 1925 condenara o prestígio final da república portuguesa.
Porém, Basílio Teles era um amadurecido e reflectido pensador de alto gabarito, conhecedor do valor dos homens de acção e reflexão
da viragem do século XIX para o XX, ainda actualmente uma referência bastante lúcida diante do caciquismo e do doutrinarismo
democrático de outros contemporâneos seus, quando afirmava ainda o seguinte: “Agitámo-nos uma vez ou outra para servir
mesquinhos interesses de imperantes ou ambições políticas de países estrangeiros, sem entusiasmo nem empenho, fazendo sacrifícios
desproporcionados às nossas forças disponíveis, e dos quais nunca tirámos nem glória nem proveito; e, no intervalo, explorávamos os
‘quintos’ e os diamantes do Brasil, deixando ruiur a pouco e pouco, em nossa casa, a agricultura, a indústria, a marinha e o comércio”.
Gilberto Freyre, em 1933, no seu livro de antropologia sociológica “Casa- grande e senzala”, com o agora mais específico subtítulo de
“Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal”, aquilatava o seguinte a respeito do colonizador português, em
registo canónico assumido através talvez das suas próprias origens familiares aristocratizantes do estado de Pernambuco, apesar de
algo esquemático no seu pulsar de escriba oficioso, inevitavelmente tendo em conta as circunstâncias que o próprio autor brasileiro
vivera, aquando da sua estadia anterior na América do Norte, mais particularmente nos Estados Unidos onde fora discípulo de um
famoso antropólogo: “Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de
resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa- grande e senzala. O senhor de
engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo” (2).
Para mais adiante, Gilberto Freyre ter este quadro da situação de época, arrumando três séculos de capitanias no Brasil antes da
“inconfidência mineira”: “É verdade que para Portugal a política social exigida pela colonização agrária representava esforço acima de
suas possibilidades. Por maior que fosse a elasticidade do português, essas exigências ficavam-lhe superiores aos recursos de gente.
Numa feitoria, o capital humano era um; numa colónia agrícola tinhade ser muito maior, mesmo contando-se com a acção
multiplicadora da poligamia e da miscegenação. E Portugal, desde seus mais remotos tempos históricos, foi um país em crise de
gente”.
No filme de Irving Rapper, “Now, Voyager” (1942), um acidente de automóvel imprevisto feito por um taxista por uma ribanceira abaixo
após a mudança imprevista em montanha de um casal norte-americanoem viagem sentimental a Copacabana, no Rio de Janeiro,
levantou o problema da compreensão da língua, do precário meio-de-transporte e das infra-estruturas não renovadas, para além da
diferença de nível de vida entre novaiorquinos chiques e condições tropicais ilusórias, quanto à pausa necessária na condição de vida
de uma classe média privilegiada durante a indefinição do de curso da II Guerra Mundial em país cuja neutralidade era questionada
pelos Aliados. No filme de Giuseppe de Santis “Arroz amargo” (Riso amaro, 1948), o problema do banditismo social já era almejado
como questão social quando para se roubar o salário das colhedoras contratadas de arroz é sugerida a inundação dos campos de
forma a criar o caos num país já desorganizado em si após o final da II Guerra Mundial.
Em “As férias do senhor Hulot” (1953) de Jacques Tati, a silenciosa comicidade de um carteiro de bicileta revelou o dia-a-dia de uma
comunidade refeita após o final da II Guerra Mundial e que aproveitava o facto da sua sociedade estar voltada não só para a economia
doméstica e familiar, mas para a abertura ao turismo rural, sem que as contradições mais graves não deixassem de aflorar o contexto
daquela passividade rotineira dos seus cidadãos, afeitos à tranquilidade do cemitério e do ciclo geracional na era do automóvel e do
seu abuso, como meio de transporte em circunstâncias não acompanhadas pelas infra-estruturas rurais europeias de então. A cena da
roda do carro de desporto descapotável, que é aproveitada como coroa para depositar no cemitério, enquanto decorre um enterro na
aldeia francesa - no início dos anos cinquenta do século XX -, revelou também o caricato das formas estranhas complementares no
improviso da aceleração de ritmo da vida moderna mesmo na província. Formas essas que se assemelhavamm na civilização industrial
em recuperação após o final recente da II Guerra Mundial, com a sua nova função multi-usos que se adivinharia com a era do plástico e
do petróleo, no seu dealbar fantástico de uma burguesia expresso em férias para breve.
Não é por acaso que, Arthur M. Schlesinger Jr, no seu livro “A Thousand Days - John F.Kennedy in the White House” (3), relatando uma
viagem com Celso Furtado em 1961 ao Nordeste, tem este comentário de relembrança: “Furtado era realista na sua avaliação das
possibilidades. Não vendo nenhuma esperança presente em fazer qualquer coisa na zona do semi-árido, concentrado que estava nas
terras de açúcar. Um programa alimentar de emergência, dizia ele, não faria nada de bom; podia até disturbar mesmo a balança
existente da dieta que conservava o povo marginalizado vivo. ‘Desenvolvimento real’, dizia ele, ‘significa dar aos homens a
possibilidade de serem felizes no seu trabalho. Estas pessoas odeiam o seu trabalho. Eles estão demasiado fracos de qualquer forma
para trabalhar muito mais tempo. Se se lhes der comida e não se fizer nada para modificar o seu estilo de vida, trabalharão ainda
menos’. Enquanto nos conduzíamos através deste desesperado espaço rural, Furtado abordou a questão das mulheres como sendo o
marcador do estádio de desenvolvimento”.
Em 1986, o regime burocrático-autoritário do projecto militar para tecnocratizar a estado brasileiro falharia também, segundo Francis
Hagopian no seu ensaio comparativo com os outros processos de redemocratização superestrutural em outros países da América do
Sul como a Argentina e o Uruguai ou o Peru, em “Traditional Politics and regime change in Brazil” (4), publicado dez anos depois em
1996 portanto, sendo óbvio então que a tentativa de relançamento de um novo sistema político por conseguinte também havia falhado
parcialmente, por força ou antes fraqueza acumulada da sua própria elite dita estratégica quanto à “nova e futura democracia”. Porque
a elite política tradicional soubera igualmente sobreviver à então “rápida modernização económica e social”. Tendo isso como
consequência imediata a continuada e persistente dominação anterior dessa mesma classe e do seu arreigado clientelismo regional ao
nível de cada estado federal em conluio com as anteriores políticas oligárquicas agora refeitas na ocasião, como que restauradas
mesmo depois do regime ter mudado.
Celso Furtado no seu livro “Raízes do subdesenvolvimento” de 1973, republicado em 2003, referiu-se ao “problema básico das
deformações da economia do país”, tendo em conta o “rápido crescimento demográfico”, sublinhando porém uma característica que já
tinha sido diagnosticada por ele cerca de trinta atrás, como seja que “decorrerão ainda muitos anos antes que a agricultura se
transforme numa fonte secundária de emprego” (5). Celso Furtado mantinha a fiabilidade no Censo de 1960, além de que a estrutura
agrária brasileira não se ter modificado no essencial até então, embora “a população urbana” crescesse “quase quatro vezes mais
depressa doque a população empregada na agricultura” Mas uma insuficiência calórica continuava a ser a razão principal da baixa
produtividade do homem do campo.
Contudo, ainda segundo Celso Furtado, não haveria fórmula mágica para resolver o desenvolvimento do sector agrícola, condição no
entanto necessária mas não suficiente para o desenvolvimento global do Brasil no novo milénio. Embora conseguir elevar o nível de
vida do “terço inferior da população rural”, compensando porém “a baixa da renda real ocorrida no sector urbano”. Quanto à
administração desta política local, “imaginar que o mercado, por si só, poderá solucionar esses problemas é irrealismo”, pois há sempre
“o planeamento e a responsabilidade financeira do poder público”, para vencer a irracionalidade agrária que perdura sob novas formas,
mas que no essencial está intacta desde 1960, aquando de um diagnóstico de prioridades sólidas estabelecido pelo Comité
Interamericano de Desenvolvimento Agrícola, em que a produção média e a familiar “eram as formas mais eficazes de organização da
produção” na estrutura agrária brasileira.
NOTAS:
(1) Basílio Teles, “Do Ultimatum ao 31 de Janeiro : esboço de história política”, reedição actualizada e índices temáticos completos de
Costa Dias, Portugália Editora, Lisboa 1968, págs. 31, 32, 65, 66, 156 e 163.
(2) Op. cit., Edição “Livros do Brasil” Lisboa, Lisboa 2001, págs. 240 e 241.
(3) Op. cit., Fawcet World Library, New York 1967 (1965), pág. 171 in “VII - Latin America journey”.
(4) Op. cit., Tufts University, Cambridge University Press, U.S.A. 1996, págs. 253 a 256 in “8 - Continuity in change : Brazilian
authoritarianism and democratization in comparative perspective”.
(5) Op. cit., Editora Civilização Brasileira/Distribuidora Record, Rio de Janeiro 2003, págs. 155-164 in “V - Particularidades do caso
brasileiro”.
CXIII
30 de outubro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
Celso Furtado havia sintetizado a sua ideia de federalismo, não exactamente tal como Proudhon a concebera um
século antes, em que concebera a conciliação entre liberdade e autoridade ou de solidariedade e cooperação sem
compulsão na formação de estados multinacionais, mas ao invés da dele agora recolhendo a sua base de reflexão
para, a propósito de cultura e desenvolvimento inter-regional, sem dissensões étnicas ou religiosas, como na
Europa do século XIX, promover a explicação da actualização desse federalismo (1).
A este propósito, Maquiavel fora citado ou referido por Celso Furtado de uma forma lateral em relação ao
raciocínio principal, que era na ocasião em 1984 - a propósito da situação no Brasil - a relação do Estado tal como
aquele a concebia (“no sentido que se lhe atribui, desde Maquiavel, de um corpo político de funções de controle
social as mais abrangentes”), isto é, inserido na formação dos estados multinacionais, a propósito do conceito de
federalismo: “Na Europa a história do federalismo está directamente ligada à busca de formas de convivência
social de um grupo de nacionalidades ligadas por vínculos históricos, no quadro de uma mesma organização estatal”.
Fernando Henrique Cardoso referiu mais recentemente, dois decénios e meio depois daquela evocação do federalismo no Brasil do
final da autarcia militar para a transição democrática de topo, a contribuição de Celso Furtado sobre a desprotecção em face do grau de
taxação que o ministro da fazenda de então Bresser Pereira teria de aplicar, episódio cultural ocorrido durante um conselho de ministros
presidido por José Sarney e em face da renitência anti-constitucional sobre tarifas excessivas a empresas privadas, mas também a um
outro aspecto de importância teórica a propósito da clivagem provocada por cada uma das guerra mundiais na Europa e em que o
Brasil reduziu as importações aproveitando-se para se voltar para o seu enorme mercado interno e daí resultar a emergência de “novos
grupos sociais” (2).
Mais recentemente, referindo-se à figura simbólica do tratado de Maquiavel sobre o príncipe interpretou-o como sendo para este último
o Estado, a que contudo Gramsci em 1931/32 a partir da prisão em Itália durante o regime de Mussolini considerava como sendo a
estrutura do partido comunista na então clandestinidade, isto é, o órgão colectivo decisório, mas na realidade da época o seu estudo
reflectia-se nas considerações de Benedeto Croce quanto à interpretação vulgar sobre o anti-maquiavelismo, sendo que um Maquiavel
economista seria pouco provável mesmo tendo em conta as observações de contemporâneos da crise financeira de 1929 que por sinal
eram consideradas interessantes mas longínquas da realidade italiana pós-conselhos operários de Turim. Quanto ao tratado em si “O
Príncipe” numa edição anotada por Napoleão Bonaparte, Nicolau Maquiavel fez um paralelo entre ser-se liberal, isto é, pródigo em
gastar, ou ser-se somítico, isto é, avaro e sujeito à lei da usura, virando e revirando com instinto diplomático as duas expressões
referidas como alternativas.
Visto que se se sobrecarregar o povo com impostos, dizia ele, de forma a reunir dinheiro como maneira de remediar a tendência à
magnificência do estado, que anteriormente consumira os seus bens, o mesmo por assim dizer ulteriormente empobrecer-se-ia criando
por esse facto mais desordem. Ora, era então preferível - no quadro da superação dos resquícios feudais pelo ascendente
mercantilismo na viragem dos séculos XV para o XVI - nesse caso parecer o referido estado ser antes somítico se para tal não
sobrecarrega-se o povo ; e, então sim, “graças à sua economia, os seus rendimentos lhe chegam”, de forma que “com o tempo será
gradualmente considerado liberal”.
Mais adiante, Maquiavel dizia ainda: “Deve também encorajar os seus cidadãos a exercer pacificamente os seus ofícios, tanto no
comércio como na lavoura e em qualquer outra ocupação humana, para que o camponês não deixe as suas terras baldias, de medo
que lhas tirem, e o comerciante não queira iniciar novo tráfico, de medo dos impostos” (3). Maquiavel exprimia no seu tempo os limites
da luta contra o feudalismo sobrevivente nas comunidades municipais da república de Florença e a necessidade de equilíbrio entre os
territórios que compunham a Itália da viragem do século XV para o XVI, o período do mercantilismo que precederia os fisiocratas.
Tal como mais tarde o “condottieri” em “As Aventuras de Don Juan” (1948) de Vincent Sherman, quando na cena final a caminho da
fronteira portuguesa para assistir a nova universidade de Lisboa, volta para trás com o seu assessor quando uma passa diante dos
cavalos na estrada uma carruagem com uma aristocrata que lhes pergunta a direcção para Barcelona, caricatura do príncipe tal como
se prolongou no absolutismo de Castela para além do tempo do fim do feudalismo na Itália de mil e quatrocentos e do renascimento.
Nessa medida em “Manuscrito encontrado em Saragoça” (1964) de Wojciech Has, a vinda de um cavaleiro da Valónia descrito por um
autor polaco do período napoleónico, leva o aventureiro bem intencionado a cruzar-se com duas mouriscas cristianizadas e a envolvê-lo
numa temática inquisitorial em que as gavetas fazem de provas do pó da história acumulada durante um período negro na península
Ibérica, reflectindo com sarcasmo a época em que o filme foi feito e no estádio em que a unificação europeia no início do século XIX se
encontrava face à luta entre o racionalismo e a superstição.
Quanto aos países de desenvolvimento retardado face aos países de acumulação acelerada, Celso Furtado ainda em 1980 - e depois
corroborado em 2000 - no seu opúsculo “Introdução ao Desenvolvimento: Enfoque Histórico-Estrutural” (4) referia-se “aos efeitos
perversos entre a racionalidade da empresa privada e os objectivos sociais da política de desenvolvimento”, sendo que a tecnologia crie
incompatibilidades. Por isso, talvez não fosse despropositado reparar na observação crítica de Frances Hagopian em “Traditional
Politics and Regime Change in Brazil”, desta maneira: “Mais significativo, uma vez instalado o sistema de mediação e representação
entre estados e sociedades pode mudar os significados e consequências políticas do desenvolvimento económico, privilegiando
algumas bases para organização societária enquanto desvalorizando outras, e podem elas próprias ser modificadas - fortalecidas,
enfraquecidas ou destruídas - por medidas políticas e económicas que têm impacto directo sobre elas” (5).
NOTAS:
(1) Celso Furtado, “Cultura e desenvolvimento em época de crise”, Paz e Terra - Economia, Coleção Estudos Brasileiros n.80, Rio de
Janeiro 1984, pág. 45 in “5 - Um novo federalismo”.
(2) Fernando Henrique Cardoso, “A Arte da Política -A História que vivi”, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 2006, págs. 114 e 503.
(3) “Nicolau Maquiavel, “O Príncipe”, Livros de Bolso n.24, Publicações Europa-América, Lisboa 1972, págs. 85, 86 e 120.
(4) Op. cit., Paz e Terra, Rio de Janeiro - São Paulo 2000 (1980), pág. 38 in “III - A nova visão do desenvolvimento : influência de alguns
autores”.
(5) Op. cit., Tufts University, Cambridge University Press, U.S.A. 1996, pág. 258 in “State - Society Relations, Regime Strategies and
Political Change”.
6 de novembro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural (CXIV)
Manuel Carvalheiro
O rendimento médio por habitante em Itália antes da I Grande Guerra, um país enquanto tal com pouco mais de
meia centena de anos, era quase nada mais do que metade do alemão, menos de metade do francês, um terço do
inglês e quase um quarto do norte-americano, segundo Frederico Chabod nas suas famosas conferências
universitárias parisienses após a II Guerra Mundial e consubstanciadas em “L’Italia Contemporanea (1918-1948)”.
Mas no essencial chamava-se a atenção comparativa aproximativa sobretudo a propósito de uma época de saldo
entre o primeiro e segundo decénio do século XX, quando os 36 milhões de habitantes da península transalpina
na altura correspondiam talvez a pouco menos de metade da população actual, quando outrora a média calórica
de alimentação por habitante em Itália por habitante local, isto é, 3200 calorias por dia, era mais parecida com
aquelas de países como o Equador, a Colômbia ou o Peru no início dos anos cinquenta, em especial nas zonas
agrárias sujeitas a fomes e a salários de miséria na América Latina atingindo trabalhadores sazonais em particular
em disponibilidade de mão-de-obra.
Em “Novecento” (1975/6) de Bernardo Bertolucci, foi revelada a saga de entre as duas guerras mundiais na península transalpina,
nomeadamente através da estratificação social nos campos, que permitiu um fenómeno como a Marcha sobre Roma em 1922, que
iniciara o colapso do sistema parlamentar substituído por um militarismo de novo tipo com o apoio financeiro dos grandes proprietários
agrários, a partir da questão nacionalista da cidade de Fiume, com a acidulação dos desmobilizados e adversários das anteriores
paralisações laborais nas fábricas de Turim. Nascia assim um desdobramento imprevisto e reagente do que tinha acontecido cinco
anos antes na Rússia dos Sovietes antes da sua república entrar no sistema de federação ainda no final desse mesmo último ano, mas
agora através do financiamento final, após uma crise ministerial e demissão inesperada de todo o governo italiano da época, feito pelos
magnatas da banca e da indústria lombarda e piemontesa (1).
Filippo Turati como chefe parlamentar anterior socialista em Itália havia dado em 20 de Março de 1920 uma entrevista ao “The
Manchester Guardian”, em que a crise no seu país era sintetizada como até então estando na base da inflação desenfreada e
subsequente à dificuldade trazida por uma dívida externa quase insuperável naqueles termos de troca. Sobretudo naquele contexto
agravado com paralisações laborais no sector público como os correios e os caminhos-de-ferro, que os chamados maximalistas como o
jovem engenheiro Bordiga fomentavam, a troco por vezes de meras melhorias económicas conjunturais e insignificantes. Isto, dizia ele,
em vez de se compenetrar na “disciplina do trabalho” necessária à recuperação económica difícil, para trazer um novo clima de “ordem
e prosperidade”, tendo também em conta a irritação da população contra o Tratado de Versalhes de 1918e as recentes negociações
em Londres que haviam acaparado a cidade de Fiume à administração italiana, mercê da incompreensão dos negociadores franceses e
ingleses, nomeadamente (2).
Em Março de 1920, no seguimento da introdução da hora legal em Itália, “os representantes do departamento das indústrias mecânicas
subordinado à Fiat”, pediram que o horário de trabalho continuasse a respeitar o horário solar anterior”, na medida em que o relógio das
fábricas congéneres deviam voltar a respeitar a antiga hora. Porém, os industriais da época subitamente despediram-nos pelo que
haviam considerado como uma insubordinação daqueles, soerguendo de repente a responsabilidade inesperada pelo início de uma
crise social local de todo o tamanho em seguida e de uma forma totalmente imprevista de consequências ulteriores, que foi o facto
inesperado também de cerca de cento e vinte mil empregados similares paralisarem a sua actividade nos próprios locais de
funcionamento laboral e ficando aí irresolutamente (3). Crise essa que ameaçava o desenvolvimento dos acontecimentos lançando
nações contra nações como forças corporativas em ascensão na época pretendiam como pretexto do advento de uma nova forma de
belicismo em gestação, quando a Entente se preocupava agora mais com a Europa central após o esfarelamento do império Austrohúngaro e o fascínio e contágio exercido pelo novo modo de produção soviético.
Modo de produção esse, que pretendia e se encontrava de facto nas circunstâncias reunidas em “situação transitória que permita
intensificar a acumulação e a assimilação do progresso técnico” então disponível (4). Numa espécie de civilização ainda
superficialmente industrial, embora tornando mais cedo o advento social ao desenvolver mais estatalmente em complemento acelerado
as forças produtivas do capital nacional. Sobre o irrealismo, Rosa Luxemburgo desde a revolução de 1905 na Rússia que admitia a
lógica interna das revoluções como leis naturais da história, por que a estagnação e a derrota podiam justificar o determinismo
mecânico, entre momentos ditos de paciência e impaciência das massas e dos seus dirigentes sociais-democratas alemães (5).
NOTAS:
(1) Pietro Nenni, «Vingt ans de fascismes: de Rome à Vichy», Cahiers Libres ns. 12-13, François Maspéro, Paris 1960, pág. 12.
(2) V. Lénine, «La Maladie Infantile du Communisme : Le Gauchisme», Le Monde en 10-18 n.61, Union Générale d’Éditions, Paris 1962,
págs. 171 e 172 in «Compléments».
(3) Giuseppe Fiori, «La vie de Antonio Gramsci», Librairie Arthème Fayard, Paris 1970 (1966), pág. 150 in «13.»
(4) Celso Furtado, «Os ares do mundo», Paz e Terra (2ª edição), São Paulo - Rio de Janeiro 1992 (1991), pág. 289 in «Experiências de
engenharia social, emergência do modo de produção soviético».
(5) Gilbert Badia, “Rosa Luxemburg”, Paris 1975, Éditions Sociales, Paris 1075, págs. 420 e 421 in “7-L’histoire et l’Histoire”.
CXV
13 de novembro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
Celso Furtado fora convidado por Paul Rosestein-Rodan, um economista de origem austríaca radicado em
Boston, para debater sobre a situação da América Latina um ano antes da primeira grande crise petrolífera,
segundo disse em “Os ares do mundo” (1). Face a uma época, que segundo o departamento daquela
universidade norte-americana que o acolhia, que se anunciava pobre de ideias e que então se interrogava – no
início da década de setenta do século XX, atormentada pela Guerra do Vietname – quais seriam por isso os
factores que condicionavam essa ausência de iniciativa das economias periféricas. Ausência face às economias
cêntricas e o seu chamado então “desenvolvimento para fora”, incutido este àquelas pelas vantagens
comparativas. Correspondendo estas ao desenvolvimento retardado pela inerente dependência, num círculo
vicioso que então fazia com que as elites andassem de candeias às avessas subjugadas pelas “ilusões
ptolomaicas”.
A 16ª Conferência Ibero-Americana reuniu-se a 3 de Novembro de 2006 em Montevideo, no Uruguai, apenas com a presença de doze
dos vinte e dois chefes de estado previstos. Centrando-se a sua agenda na questão da migração, quando mais de trinta milhões de
latino-americanos se deslocam anualmente pelas fronteiras do sub-continente e a barreira que os E.U.A. querem colocar oficialmente
na fronteira com o México de cerca de mil e cem quilómetros de comprimento, isto é, tapando apenas cerca de um terço do
comprimento total da referida fronteira entre os dois países. Um outro problema da pretérita agenda relacionava-se em Montevideo com
a presença de Kofi Annan, num dos últimos actos enquanto secretário-geral das Nações Unidas – quando em simultâneo a China se
reunia com cerca de cinquenta países africanos para debater a questão do desenvolvimento e a cooperação entre menos e mais
desenvolvidos no que dizia respeito ao comércio internacional –, secundando o problema da migração no subcontinente americano com
os direitos humanos desfalcados entretanto em todo o mundo e em particular também no que cabe ao espaço luso-hispânico, pelo que
será aberta uma sede da O.N.U. em Valência proximamente.
Por acaso, na 16ª Conferência Ibero-Americana em Montevideo, para além da ausência de chefes de estado como os do Brasil,
Venezuela, Colômbia, Perú, Cuba e Nicarágua por razões de eleições, descanso e de inquietação institucional de última hora, assim
por motivos diversos mas agudos, o presidente da Argentina Nestor Kirchner chegaria já depois da sessão de abertura inaugurada,
revelando o improviso da situação e sendo isso sintoma actual da descaracterização dessa mesma situação continental : sobretudo,
inclusive, quando trezentos mil uruguaios vivem actualmente do outro lado da fronteira, onde também existe uma política ambientalista
acidulada a respeito da construção inadequada de consequ~encias para o ecossistema entre o Uruguai e a Argentina, que obriga a
deslocalizar em interacção o sector empregado em fábricas locais, fulcro então de litígio entre os dois referidos países desde há cinco
anos.
Em 1955, Joan Robinson ironizava a propósito da teoria estática que ocupava a análise económica nos últimos dois séculos e em que a
economia era apenas pretexto dominante desde então para recorrer ao liame tradicional entre a riqueza das nações e a natureza dos
recursos naturais. Sendo agora então já tempo, segundo ela, para reavaliar essa “noiva esquecida” que para ela também era a teoria
do valor, de forma a revitalizar e a reintroduzir de novo essa mesma análise económica transfigurada para uma teoria entretanto
revigorada pela dinâmica. Visto que em caso contrário voltar-se-ia a reactualizar a previsão sardónica de um autor do começo do século
XX como fora longinquamente J.H.Clapham, que em 1922 vaticinara que o então formalismo árido da teoria económica da análise
estática poderia continuar a ser a das “caixas económicas vazias”, isto é, o da fal~encia anunciada como sátira à teimosia do
isolacionismo financeiro, em relação à sociedade e à estagnação das suas forças produtivas. Gerando portanto a crise que já se
anunciava desde a Alemanha de Weimar após o final da I Grande Guerra e que só apenas Keynes praticamente intuíra, criando para
isso um remédio social para o teatro de câmara do monetarismo com a sua nova teoria geral do emprego após a catástrofe de 1929.
Por assim dizer, Joan Robinson tentava à sua maneira após a II Guerra Mundial e o final da época de reconstrução em 1954 com o
início da crise colonial do império britânico em 1952 com a revolta camponesa e tribal Mau-Mau no Quénia, por assim dizer em
Cambridge precaver os seus colegas com ligação ao parlamento em Londres de que era interessante no ano em que se pediu a
criação às Nações Unidas de um Plano de Desenvolvimento aos países em desenvolvimento, perguntando ela porque é que a riqueza
outrora das nações com o final do império à vista implicaria o levar mais em conta a lei do valor que ficara para trás esquecida na
história do desenvolvimento capitalista no século XIX, estando agora de novo à vista a sua utilidade rememoratória face à nova
correcção das desigualdades no comércio internacional de então : “É excessivamente difísil conduzir a análise dos movimentos globais
da economia através dos tempos, envolvendo mudanças na população, na acumulação do capital e na alteração da técnica, ao mesmo
tempo como análise de relações detalhadas entre produção e preços de mercadorias particulares” (2), como o ouro, a prata e a platina
como equivalentes em reserva das instituições financeiras (commodities).
Segundo Jean Lecerf em “L’or et les monnaies : histoire d’une crise” (3), Keynes fora um heterodoxo da teoria clássica “opondo-se aos
clássicos que viam na actividade da empresa privada a fonte de qualquer prosperidade e que por tal reservava pouca actividade ao
papel do Estado”, enveredando por outra concepção na medida em que ensinou por isso aos economistas de entre as duas guerras
mundiais “a pensar à escala nacional por quantidades globais, abrindo a via aos estudos de contabilidade nacional”.
Celso Furtado em 1982 dizia que o “Brasil confronta-se” com “o serviço de sua dívida externa (juros+amortizações)”, que antes seria
inimaginável segundo ele, por que “absorve de 80 por cento da reserva de suas exportações e é três vezes superior ao valor das
reservas de divisas do Banco Central” (4).
Dito isto, convém recordar que já foi no período sintomático de 1974-1982 que por exemplo o Brasil e a Colômbia haviam minorado o
então efeito perverso dos fluxos financeiros internacionais, com o facto de haver assim naqueles dois países latino-americanos e
naquelas circunstâncias menos favoráveis, apesar de tudo menos fugas ilícitas de capitais. Pelo menos, muitíssimo menos do que na
Venezuela de então ou mesmo até no México da mesma altura, por que houvera entretanto o cuidado então de maior atenção
institucional para o controlo mais eficiente sobre os voos maciços de capitais, evitando-se em simultâneo igualmente a sobreavaliação
burocrática das trocas comerciais por grosso, seguindo com efeito um pouco o que para o mesmo período haviam já feito com bastante
sucesso países de outro continente como a Coreia e a Tailândia (5). Por casualidade o sucesso de um “best-seller” levou Sydney
Pollack a “The Firm” (1993), sobre a questão do lado sombrio da prática de uma grande firma prestigiante norte-americana, revelando
as ilegalidades cometidas através das interpretações elásticas do enquadramento legal das suas actividades enquanto firma acima de
qualquer suspeita institucional.
NOTAS:
(1) Op. cit., Paz e Terra (2ª edição), São Paulo - Rio de Janeiro 1992 (1991),
pág. 214 in “Para onde vai a América Latina ?”.
(2) Joan Robinson, “The Accumulation of Capital” (Third Edition), MacMillan St Martin’s Press, London 1971 (1955), pág. v in “Preface”.
(3) Op. cit., Gallimard NRF, collection idées n.186, Paris 1969, pág. 19 in “La guerre, puis la crise”.
(4) Celso Furtado, «A Nova Dependência: dívida externa e monetarismo», Paz e Terra, Rio de Janeiro - São Paulo 1982, págs. 17 e 18.
(5) Stephen Griffith-Jones and Oswald Sunkel, “Debt development crises in Latin America: The end of an illusion”, Clarendon Press Paperbacks, Oxford 1989 (1986), pág. 107.
20 de novembro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CXVI)
O universo indistinto por entre os fura-vidas e os seus cúmplices, de que os arquétipos personalistas dos
mareantes corsários como o comandante Vermelho e o seu ajudante em campo Rã são simbolicamente
emblemáticos dos homens sem nobreza mas aptos a serem cooptados depois como tal na roleta do tirocínio
guerreiro-comercial de longo curso, vagueiam de jangada com o monóculo apontado como na cena final de
eterno retorno entre pelintrice e riqueza ilícita adquirida pelo acaso da luta fraticida, entre os polos
do absolutismo caduco e do liberalismo almejado com o ouro o mar e o encanto feminino.
Manuel Carvalheiro
Em “Os Piratas” (Pirates, 1986) de Roman Polanski, é evocada na Tunísia, ou por outra, numa parte da costa
mediterrânica, as peripécias dos mercadores de ouro, no circuito de navegação imperativo nos séculos XVII e
XVIII. Nessas reminiscências galvanizadoras do assalto a galeões, a caça ao tesouro e as distorções jurídicas numa das cenas mais caricatas corta-se a língua ao juiz, porque sem ela como instrumento de trabalho, enquanto
ente supremo e elo da injusta legalidade dos senhores e dos vassalos, não vale nada para a sociedade de
parasitas institucionalizada no comércio marítimo de então entre
Saint Malo e o resto do mundo - de uma época de mercantilismo desgovernado e de rivalidades imperiais, como
que se evidencia o que pressupôs a acumulação do capital para além das fronteiras da civilização europeia.
O universo indistinto por entre os fura-vidas e os seus cúmplices, de que os arquétipos personalistas dos
mareantes corsários como o comandante Vermelho e o seu ajudante em campo Rã são simbolicamente
emblemáticos dos homens sem nobreza mas aptos a serem cooptados depois como tal na roleta do tirocínio guerreiro-comercial de
longo curso, vagueiam de jangada com o monóculo apontado como na cena final de eterno retorno entre pelintrice e riqueza ilícita
adquirida pelo acaso da luta fraticida, entre os polos do absolutismo caduco e do liberalismo almejado com o ouro o mar e o encanto
feminino. Também fonte de cobiça mais do que contemplação celestial, embora a juzante de uma justiça social para o mundo
descivilizado de então, que o oceano apenas consagrou como ajuda aos náufragos e direito à pilhagem pelas populações costeiras.
A cana de açúcar (e não a beterraba) nos países insulares das Caraíbas serve de mola desenvolvimentista, na sua sobrevivência
produtiva a par do turismo sustentatório como fonte financeira dessas frágeis economias de crescimento mas de recesso de fluxos
financeiros internacionais como paraísos fiscais, dependentes porém das antigas potencias colonizadoras. Sobretudo, na fabricação e
na exportação das chamadas bebidas brancas, após o encontro de comércio internacional em Singapura, em 1996, que permitiu a
liberalização à escala mundial dos álcoois brancos como o gim e a vodca ; e fizera com que então os E.U.A. e a União Europeia, num
quadro mais alargado na época de ambição globalizante de troca por um acesso mais qualificado ao “mercado americano de
tecnologias” (1), pudessem vir a ocasionar por negligência lateral a perda anual para os pequenos países insulares das Caraíbas
avaliada então em cerca de “260 milhões de dólares para os produtores”, como que uma troma de água suplementar para esta região,
após rudes golpes feitos nos últimos anos ao seu sector bananeiro.
Dir-se-ia que premonitoriamente um filme como “Café Baghdad” (Out of
Rosenheim, 1987) de Percy Adlon, enquanto “leitmotiv” da pequena esplanada à beira de uma auto-estrada poeirenta numa região
desértica de um dos estados norte-americanos, nos devolvesse como em várias cenas o “boomerang” lançado à paisagem por um
residente. Pintor de ocasião habitando numa “roulotte” perto, enquanto a calma aparente daquela miscelânea cosmopolita nos não
fizesse esquecer que algo se passava de perturbador em gestação, pela configuração desse objecto e do seu silvar subliminar e
inquietante através do céu.
Em Fevereiro de 1949, um jovem agrónomo (2) retirava algumas ilações com sentido apropirado sob um desastre ocorrido então na
cidade da Praia em Cabo Verde, como seja a queda da parede do refeitório da assistência aos indigentes alimentares durante o próprio
serviço de alimentação, o que havia provocado cerca de trezentas mortes, num elevado número de crianças entre estes. Naquele
contexto, nas ilhas desse arquipélago morriam em média por dia cerca de uma centena de habitantes devido à fome que em
estimativas nunca confirmadas nessa época já haviam desaparecido devido a esse factor cerca de trinta mil habitantes.
Mas aquele desastre, que havia sido noticiado a par da bomba atómica, do pacto do Atlântico e das memórias de Churchill, ou da
guerra civil na China, de tornados e ciclones, no meio de episódios do bloqueio de Berlim com a guerra fria - ou quente, como
sublinhara atrevidamente o jovem licenciado de então -, passara rapidamente para as páginas interiores dos jornais depois de um ponto
final a que se seguira o silenciamento do significado do facto quando o então ministério das colónias fizera publicar uma nota sobre o
sucedido. Do maquiavelismo da situação extraiu o comentarista um desabafo ouvido entretanto e que dizia no essencial que eram pois
então menos trezentos habitantes que já poderiam morrer de fome.
Em “The Front Page” (1974) de Billy Wilder, a acção narrada consubstanciou o problema informativo encarado no quadro de uma
gerência sensacionalista como forma de contrabalançar o desespero da população na América frenética do final dos anos vinte do
século XX, após a crise bolsista e o seu impacte psicológico em Chicago. Contexto que vê com felicidade um cidadão escapar à morte
devido à acção exagerada por sua libertação por parte da acção de um jornal na eregrinação diária em prol da estima popular. Embora
recorrendo à demagogia e ao populismo mais descarado, pela simpatia que canalizava enquanto órgão dos apetites dos
desfavorecidos diante da concentração de riqueza entre os poderosos numa hora de aflição nacional por motivos financeiros e factores
de desemprego e baixa produtividade de amplitude contrária.
Nas regiões mais afastadas do hemisfério norte e da sua industrialização acelerada, um esquecido personagem da colonização
europeia é referenciado no Ceilão do século XVII : “O Capitão Ribeiro chegou a afirmar que os vedas não comem em absoluto carne
fresca, mas cortam-na em pedaços e guardam-na nos ôcos das árvores, não tocando antes de transcrever um ano” (3), parecendo que
a informação através dos livros dos antepassados nos remeteria para a evocação virtual tal como se viu em “Os livros de Próspero”
(Prospero’s Books, 1991) de Peter Greenaway, inspirado numa reconversão cinematográfica da peça “A Tempestade” de Shakespeare,
significativamente anterior à época narrada depois por uma tradução de um abade publicada em françês em Amesterdão em 1719,
como tendo sido um relato ao rei de Portugal em 1685 do comandante naval J. Ribeiro sobre a sua permanência para além da
Trapobana de Camões ou no território de Ceilão que actualmente constitui o Sri Lanka.
Gamani Corea em 2003 foi o primeiro pesquisador mundial na área da economia política do desenvolvimento, antigo secretário-geral da
UNCTAD em 1974-84, a receber o prémio entretanto atribuído com o nome de Celso Furtado (1920-2004), atribuído em Trieste por
uma instituição de apoio às organizações científicas do Terceiro Mundo. O seu trabalho anterior versara entre outros aspectos sobre
política monetária nos mercados financeiros do sudeste asiático e em especial na circulação e valorização dos metais preciosos nas
bolsas e da sua regulamentação no comércio internacional (4). Contudo, a sua actividade, para além da cooperação na independência
política e do desenvolvimento sócio- económico de novos países em desenvolvimento, ajudou também à compreensão da teoria do
desenvolvimento e da sua prática, sobretudo nas relações Sul de que se ocupou em Genebra até essa altura.
Celso Furtado em “Os ares do mundo” (5) recordou como nos momentos mais imprevistos da sua longa pesquisa na América Latina, se
habituou em qualquer momento e em quaisquer circunstâncias a trabalharr onde bem lhe era possível, independentemente da
justificação do modo de viver o idioma e “a dura questão da sobrevivência” fazendo por não enveredar pelo escapismo nem se autoiludir com “pedaços de verdades para construir uma inverdade”.
NOTAS:
(1) Debra Percival, «Coup de punch aux producteurs de rhum des Caraíbes», Le Courrier - Le magazine de la coopération au
développement ACP-UE, n. 198 mai- juin, Bruxelles 2003, págs. 23 a 25.
(2) Amilcar Cabral, “Comentários : 1 - Crise, Assistência e Desastre”, Mensagem n.11 1949, in Antologia - I Volume, ALAC, Lisboa
1996.
(3) George Plekhanov, “Cartas sem enderêço”, Brasiliense, São Paulo 1965, pág. 47.
(4)Gamani Corea, “Taming Commodity Markets”, Manchester University 1992.
(5) Op. cit. Paz e Terra (2ª edição), São Paulo - Rio de Janeiro 1992 (1991), pág. 44 e 45 in “Os vagares do intelectual”.
27 de novembro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
Glyn Daniel nos anos cinquenta do século XX retratou Arthur J. Toynbee de uma forma sagaz a respeito da
polémica entre difusionistas e evolucionistas a respeito ainda de civilizações e da sua correlação com a préhistória. Recorde- se no filme de Alejandro Jodorowsky, “A Montanha Sagrada” (1973), sobre a arquitectura asteca
e maia, vistas por um chileno a partir do México sobretudo e da América Central em especial – diferente do Peru e
do planalto andino dos incas –, como nunca dantes em pirâmides e subterrâneos no meio da inóspita selva em
contraste como a abóbada celeste. Assim, reactivando um potencial evocativo dos enigmas do poder que
representavam para os habitantes que as geraram, como monumentos insondáveis e de uso diferente das
pirâmides egípcias como o difusionismo acerado havia pretendido antes da I Grande Guerra.
Toynbee aparecia como alguém no meio cultural inglês que fizesse com que os cidadãos britânicos olhassem para
o mundo e não apenas para a Europa ocidental: distinguindo civilizações que eram para ele sociedades
complexas com cidades, tecnologias e religiões isoladas do seu passado e das outras civilizações, sendo que a escrita, a vida urbana e
as artes de metalurgia foram inventadas em vários centros constituídos pelo Crescente Fértil, segundo uma designação então aceite.
Assim, a mais velha civilização estaria no Próximo Oriente com a secagem do Sahara, que em contrapartida urgia ser vencido como
evento geológico, sendo que Toynbee arranjou uma sequência de seis acontecimentos entre a seca e o deserto respectivas: 1) tendo
primeiro começado a morrer pessoas; 2) depois outras para escaparem a isso tornaram-se nómadas, adaptando-se em movimento ao
ambiente alterado; 3) enquanto um terceiro grupo foi para o sul, para continuar no oásis perdido de antes e o seu “antigo modo de vida”
(1); 4) ao passo que ainda outro grupo foi para o norte e tornara-se nos primeiros agricultores neolíticos do continente europeu, apesar
da inexistência de cereais nessa rota e não conhecer antes a agricultura; 5) para além ainda de outros que foram miticamente para
Oriente, onde havia pantanos a serem desafiados para se criar então a tal civilização pioneira na Mesopotâmea entre os rios; e, 6)
enquanto, finalmente, outros mais aventureiros atravessaram o Mediterrâneo e acharam-se minóicos ou pré-helénicos. Estes padrões
eram criticados a Toynbee como sendo predestinados e do agrado dos coleccionadores de antiguidades.
Arnold J. Toynbee procedeu a uma teoria da história que renovasse a filosofia da história do século XIX, estudando retroactivamente no
século XX 26 civilizações. Não se preocupando se a história tinha ou não leis, visto ela mesma se repetir. Mas estando atento às
ciências sociais, preocupando-se, no entanto, com o ciclo das civilizações desde a ascensão à extinção das mesmas. Embora não
concordasse que a civilização dita ocidental – contraposta ainda hoje por certos sectores mais supremacistas de ideal e pensamento
único às civilizações orientais, porque detentoras de invenções arcaicas e não tão permeáveis ao monoteísmo cristianizante da
infalibilidade bussolar, desgovernada pela aplicação inusitada de um magnetismo ainda imperante – viesse a desaparecer em tão curto
prazo, como vaticinava a decadência desta proposta por Oswald Spengler antes do nazismo sair do seu apogeu em 1936 com os
Jogos Olímpicos de Berlim.
E em que as raízes do terceiro milénio eram buscadas nas montanhas do Tibete, com um método obscurantista de sociedade secreta
monárquica, que se preocupava com a justificação da origem indo-europeia e o mito da Atlântida. Continente esse perdido no meio de
uma catástrofe diluviana, talvez dez mil anos antes do advento do cristianismo e não tanto três séculos e meio antes segundo uma
interpretação à letra de um curto pensamento de Platão, sem focalização geográfica precisa.
Por sinal, em 17 de Março de 1947, Arnold Joseph Toynbee fora capa da revista Time Magazine e em 1948 publicaria o seu livro
“Civilisation on Trial”. Em 1967, publicaria “Between Maule and Amazon”, tecendo considerações sobre a criação de Brasília, inspirada
mais na tenacidade do então presidente Kubitscheck entre 1956 e 1960 do que na necessidade de elevados custos sujeita a
especulação imobiliária, comparando-a no entanto ao anunciar da era espacial em 1960. Quando, também, Bertrand Russell por esta
altura havia endereçado uma mensagem, aquando do recebimento de um prémio, onde elogiava a erudição de Toynbee. Apesar de
num aspecto o achar imperfeito ou seja subestimar a transformação das civilizações pelo tempo, isto é, a criação da diversidade de
culturas era uma disciplina relativamente moderna e à procura da sua modernidade, que consistia desde a revolução industrial na
cultura científica. Infelizmente, esta mais voltada para a técnica e o seu lado destrutivo, dir-se-ia actualmente, implosivo, tal como um
velho edifício moderno que atingisse o seu prazo de validade tectónica.
De realçar a noção de sonegação do lado obscuro da delapidação patrimonial das civilizações, tal como a otomana e os seus tesouros
turcos evocados num admirável filme de aventuras rodado em Istambul, como o roubo de jóias num museu cuja arquitectura bastante
fotogénica nos daria a superficialidade da paisagem geográfica e civilizacional em “Topkapi” (1964) de Jules Dassin, inserindo-se
actualmente tal tráfico de objectos de arte no panorama mundial da globalização de fluxos de capitais financeiros cujo montante
astronómico ligado à corrupção transnacional ultrapassa os 5% do volume total de fluxo anual de investimentos mundiais em zonas “off
shore” e livres de impostos ou taxas cambiais controladas pelos estados nacionais. Em “Morte no Nilo” (Death on Nile” (1978) de John
Guillermin, a civilização egípcia tal como a entendia o senso comum nos anos trinta do século XX fosse mistério e turbulência
financeira, entre jovens e idosos a bordo de um navio turístico de cruzeiros de tranquilidade burguesa. Só afligida pela citação serôdia
de Karl Marx por um dos passageiros, servindo de pano de fundo para o interrogar do significado dos monumentos de Abu Sinbel fora
do tempo presente.
O outro Arnold Toynbee era tio deste último e viveu no século XIX sobretudo como historiador britânico especializado em economia da
revolução industrial, focado em especial por R.L. Heilbroner no seu livro de 1959 “Grandes economistas” (2), da seguinte maneira : “Em
1840, segundo cálculo de Arnold Toynbee, o salário de um trabalhador comum era de 8 xelins por semana, enquanto as necessidades
da sua família montavam a 14 xelins. Ele conseguia a diferença esmolando, roubando, mandando os filhos trabalhar ou simplesmente
apertando o cinto. Mas em 1875, embora as necessidades tivessem subido para 15 xelins ou um pouco mais, seus salários estavam
quase acima disso”, porque as horas de trabalho se tinham reduzido e a mais-valia igualmente, pois os custos dos salários haviam-se
acrescido de 20% para os proprietários das manufacturas. Sendo que a influência da revolução de 1848 atenuara-se em toda a Europa
nas reivindicações dos então ateliers operários.
Com a substituição de Gladstone por Salisbury na chefia da Downing Street e o advento da doutrina Monroe nos E.U.A. de então, a
propósito de “uma querela de fronteira entre a Venezuela e a Guiana britânica”, um membro da Academia Francesa, André Maurois,
afirmaria em retrospecto um século depois, em “Le déclin du libéralisme” do seu livro “L’Histoire de l’Angleterre” publicado em 1963 :
“Desde há alguns anos um poeta de génio, Rudyard Kipling, colocava de forma inesquecível os sentimentos de tantos ingleses que,
dispersos pelo planeta, esforçavam-se em manter, sob qualquer parte do firmamento, as sólidas qualidades do carácter britânico tal
como o formavam as ‘Public Schools’ desde Arnold”. Arnold Toynbee, o tio do contemporâneo Arnold J.Toynbee ! De reparar que, o
primeiro, fora mais lido do que Adam Smith, Kropotkyn e Marx, segundo um inquérito feito pela Associação de Educação para
Trabalhadores em 1909, a trinta e quatro candidatos à Tutorial Class ; e, o segundo, contava-se entre os citados por alguém que só o
lera entre outros autoresquando atingira a meia idade nos compêndios de história moderna de Cambridge e Oxford, quando antes em
1920 os manuais de história lidos eram os de 1900 ainda com a idolatria imperial moldada na santificação das personagens ilustres
britânicas (3).
Arnold J.Toynbee como filólogo e historiador é indirectamente recordado por Celso Furtado numa passagem do seu livro “Os ares do
mundo” (4) da seguinte maneira e na encruzilhada da sua vida então muito intensa na segunda metade dos anos sessenta do século
XX: “No ano de 1967, foi fundado o Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, sob a orientação de Claudio Véliz, que
acabava de deixar a direção do famoso instituo londrino de igual denominação, mais conhecido como Chatam House, por muito empo
dirigido por Arnold Toynbee”. As peripécias seguintes são interessantes, mas podemos deter-nos aqui no nome de Toynbee, não
interessa deslindar se o segundo ou se o primeiro ou ambos eram referenciados por Celso Furtado. Com efeito, Arnold J.Toynbee dizia
à época sobre a guerra da secessão no Biafra, que alarmava a consciencia mundial para um genocídio na república federativa da
Nigéria, independentemente do contexto político vitimizador por parte de uma certa exacerbação a respeito dos Ibos e da sua situação
étnica no quadro de uma tentativa injustificada de dividir a África independente e com a suspeita de que essa cissiparidade era o
prolongamento de uma situação de avidez petrolífera e que noutros moldes havia três ou quatro anos antes terminado com a secessão
do Catanga e com a sua posterior integração na República Democrática do Congo.
Assim, Arnold J.Toynbee ao ser entrevistado em 22 de Julho de 1968 pelo “Der Spiegel”, com o título “A humanidade continua a não se
arrepender”, teve a dado passo da sua conversação displicente a seguinte afirmação, no meio das suas declarações de amplitude
maior : “Concordo em absoluto com Splenger, que quando se contempla o passado vimos que se repetem muitos acontecimentos
históricos, irregularidades e uniformidades, mas não acredito que possam ser de antemão determinados”.
O determinismo parece ser para Arnold J.Toynbee uma ferida historicista já entretanto fechada no campo de depósito de ideias sem
grande fundamento para a análise de uma nova situação histórica, por mais que sinais semelhantes aparante e apresente com o
passado revivido pela criatividade teórica idealista. Mas essa concepção menos tradicionalista do encadear dos acontecimentos
pretéritos como molde para ver se se repetiam ou ainda podem repetir de novo no presente distante era conduto pura especulação dita
evenemencial, isto é, confundindo a essência com o fenómeno ou a máscara do passado frenético no rosto do presente melancólico.
Assim, mais adiante naquelas mesmas declarações ao público alemão de 1968, Toynbee insistia ainda noutro passo da sua reflexão
sintética de então no quadro agitado da segunda metade dos anos sessenta do século XX com rebeliões estudantis afectando o bom
funcionamento do campo docente - um membro da antiga escola de Frankfurt, como Theodore W. Adorno, num momento de desespero
chamara a polícia a intervir no departamento de sociologia ocupado pelos seus estudantes, paradoxo inominável pouco antes da sua
morte - e com invasão do campo universitário como quase normalidade quotidiana enchendo os noticiários de então: “Até certo grau a
cooperação entre os homens no campo económico”, dizia ele, “é eficaz, mas em especial no campo técnico, e isso tem conduzido a
notáveis resultados”.
Para logo a seguir Toynbee constatar o contrário então nos campos político e social, numa personalidade que havia deixado pouco
tempo antes de ser conselheiro especial do governo de Harold Wilson, contrastando-se mais tarde essa função com a do historiador da
guerra civil de Espanha Hugh Thomas que pouco mais de dez anos depois teria função parecida junto do governo de Margaret
Thatcher. Porém, Arnold J.Toynbee mostrava-se surpreendentemente também desafecto moderadamente a uma impura interpretação
deísta da história passada, considerando isso doutrinarismo tradicionalista talvez a ressumar às teias de aranha das faculdades
administrativas do recente passado mais convicto até então do pseudo-humanismo conservador e mesmo não progressista, o que era
relativamente suspreendente para um até pouco antes conselheiro que dizia não existir genocídio no Vietname.
Marc Ferro, refere-se visivelmente ao primeiro Arnold Toynbee, como sendo do tempo do imperialismo victoriano, no seu livro “História
das Colonizações: das conquistas às independências - sécs. XIII-XX” (5), citado entre outros britãnicos na corrente neo-idealista dita de
Oxford, para quem o universo era um “organismo animado pela sua própria força moral e pela sua própria vontade”. Essa alusão fora
também enunciada indirectamente por Bertrand Russell, desde 1960, com o canto do cisne do império britânico, quando se referira à
cultura científica como um “desenvolvimento inevitável a partir da revolução que tem a sua origem na curiosidade grega acerca do
universo”. Ciência, como cultura técnica essa, que tendia a ultrapassar a prioridade da ciência como conhecimento e por isso a gerar
uma cultura cuja economia e visão militar se sobrepunham como avaliação utilitária na supremacia do globo.
Embora, na civilização europeia, os novos valores de trabalho gerados pela liberdade da mais-valia se tenham sobreposto aos do
antigo divertimento oriental, apoiado na servidão e no despotismo. Faz isto lembrar o espantoso desenho animado como genérico,
reflectindo por caricaturas de época a voracidade belicista dos exércitos imperiais europeus, à cobiça de espaço deixado livre pelo
despedaçar do império otomano às portas da Europa, durante a Guerra da Crimeia, com o cerco a Sebastopol e a batalha de Balaclava
a 25 de Outubro de 1854, em que o exército britânico avaliou mal a situação e o plano foi por água abaixo desonrosamente, fulcro da
reconstituição em “A Carga da Brigada Ligeira” (The Charge of the Light Brigade, 1968) de Tony Richarson.
Em “Cenas de caça na Baixa Baviera” (Jagdszenen aus Niederbayern, 1969) de Peter Fleischmann, quase documental a preto e
branco com a matança do porco numa zona rural alemã contemporânea à sua ficção, dava o tom sobre um assunto prosaico com o
problema da continuada segregação social entre camponeses alemães, que impediam por circunstâncias compulsivas o seu
esclarecimento sobre o papel da juventude tresmalhada, suspeita também de promiscuidade. Agitando antigos fantasmas de
preconceitos rancheiros, resolvidos por conta própria em justiça expedita, que continuava a alucinar essa colectividade impedindo-a de
produzir sem o estímulo do sacrifício animal e por irracionalidade subitamente relevante também do companheiro ser humano como
purga contra o racismo passado.
Mesmo de um ponto de vista académico, o tom conciliador e positivo de Arnold J.Toynbee na época, sobre a separação entre a
cooperação política e social de um lado e de outro a económica e técnica, era mesmo assim sinal de um certo mal estar para um
universitário como ele de renome na época. Acrescida a sua reputação por uma certa abertura então já mediática em excesso, dada
pela sua consciência liberal e não teimosamente abstrusa como era nessa altura mais evidente da parte de outros colegas seus.
Enquanto imagem de uma personalidade já então também muito aberta à multidisciplinaridade, antes desta ser praticamente integrada
depois no sistema de pesquisa das ciências sociais nas universidades europeias sobretudo, como espaço de reflexão científica e
humana no contexto das democracias representativas e em busca de uma nova participação por parte da geração mais actualizada
com os problemas correntes. Debatidos no mundo convulso de então, através, nomeadamente, dos para a época - inovadoramente
considerados - meios de comunicação de massa.
NOTAS:
(1) Glyn Daniel, “Introdução à Pré-História”, Difusão Cultural n.15, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1964 (1962), págs. 134 e 135 in “VII A pré-história e os historiadores”.
(2)Op. cit., Zahar Editores, Rio de Janeiro 1959, pág. 153 in “VII - O mundo vitoriano e o submundo da economia”.
(3) Jonathan Rose, “The Intellectual Life of the British Working Classes”, Yale University Press, New Haven and London 2001, págs 164
e 279 in “Willingly to school : Possibilities of Infinitude” e “The Whole Contention Concerning the Workers’ Educational Association : The
Difficulty about That”.
(4) Op. cit., Paz e Terra (2ª edição), São Paulo - Rio de Janeiro 1992 (1991), pág. 159 in “A arma das idéias e seus adversários”.
(5) Op. cit., Colecção Referência n.17, Editorial Estampa, Lisboa 1996 (1994), pág. 43 in “Civilização e racismo”.
4 de dezembro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
René Thom foi citado por Celso Furtado na sua obra de 1978, revista para a tradução inglesa em 1983,
“Accumulation and Development : The Logic of Industrial Civilization” (1) : “A tentativa mais orginal para introduzir
a causalidade como princípio no interior da abordagem estrutural é possivelmente a ‘teoria das catástrofes’ do
matemático francês René Thom. Usando a abordagem estruturalista, algumas morfologias empíricas são descritas
nos termos de um número de combinações finitas de regras derivadas das morfologias elementares. Isto torna
isso possível para revelar as simetrias implícitas, sem se justificar as proporções básicas usadas para esse fim”.
E, mais adiante ainda, rebate a ideia feita da predeterminação dos factores, sem contudo desleixar o papel do
indivíduo na responsabilidade local pela consequência de uma falta profissional: “Na teoria das catástrofes a
justificação é apresentada como baseada dinamicamente em métodos topológicos. Uma apresentação pictórica
atribui ‘inteligibilidade’ a acontecimentos súbitos - a emergência de um desastre num ambiente contínuo -, sem
introduzir uma teoria causal externa no campo empírico em consideração. Possíveis aplicações da teoria das catástrofes têm dado
origem a consideráveis controvérsias, mas sobre isso pode haver pouca dúvida que isso aconteceu porque se restaurou a prevalência
do princípio de inteligibilidade na formalização”.
Resistência de materiais em causa, infra-estruturas deficientes como efeito pernicioso do desenvolvimento apressado, acidentes de
trabalho como flagelo da acumulação do excedente não distribuído, introdução do papel das companhias de seguros pelo comércio
marítimo em expansão no século XVIII, são certamente tópicos que ainda condicionam uma melhor avaliação do aperfeiçoamento das
instituições privadas entre a sociedade civil.
E os respectivos estados, ainda impreparados para as estatísticas incompletas sobre a evolução dos desastres rodoviários, durante a
fase final da revolução industrial no século XIX de estagnação por falta de ouro como mercadoria das mercadorias na base de
equivalência fiduciária e de reservas de um país industrializado e também das formações sociais que já em pleno século XX.
Como na “Máquina do Tempo” (The Time Machine, 1960) de George Pal, em que um cientista victoriano do tempo de 1900 construíra
um instrumento para voar no tempo de forma a pesquisar e eventualmente conhecer o futuro. Mas descobre, sob cepticismo dos seus
confrades do clube, que se reunia em casa daquele em Londres, que o futuro é partilhado por canibais trogloditas da idade do carvão,
que aprisionam as pessoas nas catacumbas; indefesas perante o imponderável da imprevisibilidade subsequente à tentativa de
inovação tecnológica, numa fantasia que agoirava a guerra nuclear depois da sua congeminação no tempo em que se pensava antes
na construção do canal do Panamá e na guerra de 1898.
Numa descida durante um percurso de caminho de ferro montanhoso, entre Versailles e Paris, dois anos depois da inauguração dessa
via férrea a vapor, a locomotiva soltou-se dos quinze vagões acoplados, no trajecto ao final de uma tarde de domingo, algures perto da
estação de Bellevue num aprazível 8 de Maio de 1842. Segundo interpretação posterior, fora “um destes acidentes que escapam à
previsão humana”, como disse depois a própria companhia proprietária da via férrea. Ao tomar-se também conhecimento do significado
do sinistro, após saber- se que uma das vítimas era um grande homem na definição burguesa da época, isto é, o contra-almirante
Dumont d’Urville, que na época era muito prezado como ilustre personalidade e que havia feito uma campanha de hidrografia de cerca
de quinze mil léguas de costas marítimas à volta do globo (2). E que, igualmente, cerca de vinte anos antes, isto é, por volta de 1822 na altura da independência do Brasil, por exemplo -, havia também feito uma comunicação na Academia das Ciências, em que
anunciava ao mundo culto de então a descoberta da estátua - que havia de ser, célebremente, intitulada Venus Victrix - por um
camponês de Milo.
Estátua essa, descoberta ainda com uma maçã na mão esquerda, soerguida, e com a mão direita baixa, a segurar uma toga na cintura
com perícia delicada, pouco antes de ser depois oferecida ao Museu do Louvre. De resto, essa pose será depois muito glosada pelas
divas do teatro de boulevard - em resquício romântico de época que se prolongará pelo menos até ao ocaso do modernismo em 1925 -,
como disso ainda fora reflexo na pose da heroína russa soberana no planeta Marte e que, por isso, é sujeita a uma revolta proletária
contra o domínio feminino de uma megera, em “Aelita” (1924) de Yacov Protozanov.
Dizia com especulação controlada garantida um conceptualizador de inovada reflexão do alto do seu saber acumulado até o princípio
do século XIX ainda de compreensão absolutista no domínio que era o seu, que “se as florestas da Germania tivessem ainda existido a
revolução francesa não se teria produzido” (3). Mas o vector do progresso fora a humanidade no papel de sujeito privilegiado, segundo
a interpretação que lhe daria Celso Furtado em “Introdução ao Desenvolvimento: Enfoque Histórico-Estrutural” (4),
destranscentralizando-o numa “sociedade mais produtiva e menos alienante” (4). Porém, os legisladores até pelos menos meados do
século XIX eram equiparados aos “indivíduos prejudiciais que colocam obstáculos nas ferrovias” (5), em 1852, segundo um agrimensor
de profissão.
Tal é consubstancializado em “O Mecano da ‘General’” (1925) de Buster Keaton, no contexto da implementação do caminho de ferro
que atravessa zonas de incompatibilidade administrativa por entre montes e vales aquando da Guerra da Secessão norte-americana,
num vai e vem sem fronteira predeterminada pelo menos no fogueiro improvisado que se constitui em sujeito determinado naquele
universo passado. Num caso de acidente de trabalho, numa cena rural e insular numa propriedade durante o final do século XIX, em
que trabalhadores suecos trabalham na Dinamarca do desenvolvimento rural no regime oligárquico regional, em “Pelle o Conquistador”
(1987) de Bille August, o sistema hidráulico de extracção de água, num poço da propriedade em que simultaneamente há a iminência
de uma paralisação de trabalho - com conflito de intervenção superior, exterior à vista da provável confrontação -, é prontamente
desviado no seu impacte social enquanto incidente, para a imprevisão da queda da haste do sistema em madeira, com uma pedra em
contrapeso que se solta e atinge a cabeça do empregado rural, transformando-se o incidente social em acidente de trabalho.
NOTAS:
(1) Op. cit., Martin Robertson, Oxford 1983, pág. 183 in “8 - In search of a global view”.
(2) Remi, “Histoire des cinq siècles de faits divers”, Pont Royal, Paris 1962, págs. 60 e 61 in “Le train fatal”.
(3) G.W. Hegel, «La Raison dans l’Histoire : Introduction à la Philosophie de l’Histoire», Collection 10-18 n. 235-236, Union Générale
d’Éditions, Paris 1965, pág. 241 in «L’Amérique du Nord et son destin».
(4) Op. cit., Paz e Terra (3ªa edição), Rio de Janeiro - São Paulo 2000 (1980), págs. 9 e 10 in «I - O Desenvolvimento : visão global. A
ideia de progresso».
(5) Henry David Thoreau, “A desobediência civil”, Estúdios Cor, Lisboa 1972, pág. 11.
CXIX
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CXIX)
11 de dezembro de 2006
Manuel Carvalheiro
O peso do catastrofismo na economia internacional foi bastante subestimado pelos próprios economistas, até ao
advento nos anos oitenta do século XX das comunicações audiovisuais, sobretudo em rede de cabo e com canais
televisivos por satélite. Utilizando-se ininterruptamente através do gigantismo do mercado comercial de anúncios a
emissão diária noticiosa, interligando a sua influência imediata com as próprias bolsas financeiras de mercado de
valores e de futuros, no mundo então crescentemente mediatizado e cada vez mais antecipadamente globalizado.
Criando inclusive uma frenética busca de informações sobre o dia-a-dia de cada nação, por mais periféricas que
estivessem localizadas, interligando assim eventos de vária natureza. E, por esse modo tecnológico, caucionando
uma variante de estimativa mais aperfeiçoada sobre o dia a seguir, inclusive nas temperaturas locais do ambiente
climático condicionador através do turismo de alterar arbitrariamente os índices bolsistas em função da promessa
não totalmente confirmada da informação de tal ou tal paraíso fiscal cobrindo o ritmo crescente ou decrescente à
escala mundial dos fluxos financeiros mais especulativos e tributários de um desenvolvimento escandaloso. A importância do progresso
como motor idealizado do desenvolvimento económico, consubstancia-se na inovação tecnológica, como foi o caso dos caminhos-deferro e da sua particular construção inicial nos Estados Unidos da América após a Guerra da Secessão. Quando, por exemplo, em
1866, uma cena no início de “Dodge City” (1938) de Michael Curtiz, reproduziu com euforia própria uma corrida no descampado
aerodinâmico da paisagem agreste própria ao avanço da civilização local, entre uma tradicional diligência puxada por cavalos e o
chamado “cavalo de ferro”; cena essa em paralelismo galvanizador e no limiar do território, antes concedido por norma governamental
aos índios antepassados.
Até antes o próprio economista Adam Smith havia passado um ano em Paris com o grupo dos fisiocratas, por volta de 1767, de onde
Mirabeau fora pioneiro ao que se julga na utilização da passagem da expressão “civil” como oposta a criminal, criando a partir de
“civilidade” a nova noção de civilização à roda de 1756. Talvez até como motivo do choque europeu, que havia constituído a catástrofe
do ano anterior com o terramoto em Lisboa e que também havia afectado na sua vaga sísmica a própria cidade de Veneza segundo
constou. Adam Smith depois publicaria o seu livro “A Riqueza das Nações” em 1776, com muitas referências diversificadas àquela
mesma noção de civilização, oposta a barbaridade e sinónima de refinamento educacional e de conduta, por via segundo se acredita
do trabalho de Ferguson. Ferguson que já em 1759 havia deixado em manuscrito o embrião desenvolvido de um tratado sobre
civilidade, de que David Hume em correspondência pessoal da mesma altura assinalara ao mesmo Adam Smith (1). Celso Furtado
ainda no seu livro “Os ares do mundo” (2), referiu “as liberdades fundamentais do cidadão, inclusive a da imprensa” como base da
matriz cultural da passagem da colonização à independência norte-americana. Assim, numa outra cena do filme de Curtiz sobre aquela
turbulenta cidadela na fronteira entre dois modos de produção daquele imenso território em 1866, no seu clímax o chefe dos ganadeiros
da região assalta e queima com o seu bando um vagão do mesmo combóio de ligação, mas agora em desfiladana paisagem em 1872,
subsequente ao interesse pelo chamado progresso da civilização à custa porém muitas vezes do atropelo de outros valores essenciais
da vida durante a época da expansão da revolução industrial. Acto aquele de desespero de causa campestre opressiva, a perder em
favores de popularidade em relação aos oprimidos urbanos carentes do cimentar de uma sociedade tanto quanto possível democrática
naquelas circunstâncias históricas, como além da referida liberdade de imprensa também com a necessária regulamentação do porte
de arma em burgos como aquela Dodge City.
Por outro lado, comparativamente na evolução temporal daquele contexto preciso, a própria distribuição posterior de terras no
Oklahoma, seria depois objecto de uma visão mais céptica sobre a possível integração mais justificada dos próprios povos naturais
anteriores à colonização europeia emigrante nessa mesma última grande partilha colectiva ainda no final do século XIX norteamericano, sob o signo de uma liberdade de imprensa reforçada como valor alternativo de certa força compensatória no quadro de uma
mitigada justiça social de circunstância, como valor estabilizador de conflitos insanáveis de outro modo numa sociedade de acumulação
frenética em relação aos próprios padrões da expansão do capitalismo europeu de matriz desenvolvimentista, como disso foi
demonstração retroactiva no espectáculo revivido em panorâmica social e hierárquica em “Cimarron” (1960) de Anthony Mann, em que
a civilização ocidental resultante da transformação local adaptada ao pioneirismo do novo mundo no final desse ilusivo século XIX da
industrialização acelerada se deparava com contradições insuspeitadas no seu isolacionismo em relação à própria Europa do seu
tempo, porque justificadas pelo optimismo do progresso.
Um jornal de Nova Iorque havia copiado o anúncio de um outro na Califórnia, “O Clarim” de Calaveras, uma pequena povoação onde
habitava o marido cuja mulher fugira do seu domínio para voltar algures para o estado de Kansas por volta de 1850; e fora assim, que
essa esposa revoltada viera a colocar por sua vez outro anúncio no referido jornal, ao tomar conhecimento do conteúdo pela cópia do
outro, que lhe havia mais facilmente em diferido por acaso chegado às mãos. Mostrando isso como a comunicação se podia fazer em
função do progresso da pesquisa do ouro a meio do século XIX no então chamado novo mundo não europeu e americano, narrado por
um autor que viveria nos dois entre 1839 e 1902 (3).
O chefe de empresa com sucesso, já não tinha que ter necessariamente como dado adquirido da sua personalidade como recurso
humano por volta de 1958, tal como antes no século XIX uma instrução onde as formalidades práticas eram só uma parte do seu
espírito. Enquanto no século XX os “rebanhos económicos” (4), já eram assim a sua prioridade discursiva quanto ao discurso adquirido
na sua anterior educação, numa lógica promocional antecipada para conseguir ser - antes ainda de o ser e apenas como competitivo
estímulo -, proximamente futuro director geral da companhia em fantasia prática adquirida antecipadamente no curso anterior à entrada
para a empresa. E em que o diálogo ou reflexão filosófica era coisa do passado longínquo, inútil para a lógica de muita venda e pouca
compra; portanto, inegociável por que inútil como tal, mesmo para o mercado de futuros e de especulação financeira, onde a cartilha
poderia ainda ser de alguma funcionalidade na bolsa de Francforte, por exemplo. Com os alvores da revolução industrial o ferro fundido
apareceu por volta de 1750, sendo que a coluna de ferro numa chaminé de Alcobaça, em Portugal dois anos depois fora talvez a
primeira estrutura do género na Europa, substituindo a pedra e a madeira em construção arquitectónica pioneiramente (5). Mas as
fábricas, sobretudo em Inglaterra, só utilizaram o ferro na construção arquitectónica por volta de 1796, sempre no interior dos edifícios.
O primeiro edifício a utilizar o ferro fundido na fachada fora nos E.U.A., na Pennsylvania, onde um banco de mineiros e agricultores
aceitou o embelezamento do ferro, que assim substituiu o mármore em 1829, já na primeira metade do século XIX como reflexo do
vanguardismo arquitectónico europeu ampliado e desenvolvido com visão mundial.
NOTAS:
(1) Émile Benveniste, “Problèmes de Linguistique Générale - I”, Bibliothèque des Sciences Humaines n.46, NRF-Éditions Gallimard,
Paris 1975 (1966), pág. 342 in “VI - Léxique et Culture ; XXVIII - Civilisation, contribution à l’histoire du mot”.
(2) Op. cit., Paz e Terra (2ª edição), São Paulo - Rio de Janeiro 1992 (1991), pág. 73 in “O molde de uma nova civilização”.
(3) “Histórias de Bret Harte”, Grandes Contistas n.4, Editôra Cultrix, São Paulo 1964, pág. 157 in “A força da impensa”.
(4) Max Horkeimer, “A filosofia como crítica da cultura”, Op. cit., Perspectivas n.25, Editorial Presença, Lisboa 1970, pág.120.
(5) Nikolaus Pevsner, “Os Pioneiros do Desenho Moderno”, Editora Ulisseia, Lisboa - Rio de Janeiro 1962, págs. 107 a 109 in “V - A
engenharia e a arquitectura no século XIX”.
CXX
Celso Furtado e o síndroma cultural (CXX)
18 de dezembro de 2006
Manuel Carvalheiro
Segundo ainda Celso Furtado em 1983, no prefácio à edição original de “Accumulation and Development: The
Logic of Industrial Civilization”, como diálogo de sombras a propósito do então bicentenário da morte de
Rousseau, ele também nos havia remetido para uma visão retrospectiva ou mesmo retroactiva – circular por assim
dizer –, mas sem tónica nem dominante como na linguagem de inspiração rítmica musical como na espiral do
glissando, por exemplo.
Sendo que, mais adiante na sua reflexão de então, perfeitamente actual, havia confirmado ainda a propósito da
aceleração da acumulação de pedras preciosas por parte da Espanha: “Desde a Califórnia ao Chile, uma área de
extensão com 15 mil quilómetros, o terreno fora cuidadosamente atravessado por uma busca intensiva” (1).
Aproveitando-se para o efeito nessa época recuada o desenvolvimento do conhecimento metalúrgico da
população, pouco antes da introdução da técnica da amálgama do mercúrio com a prata. E sempre à procura de
ouro, como anterior opção dominante, reaproveitando-se porém na conjuntura de desbravamento civilizacional a herança daquelas
técnicas locais de pesquisa económica, embora financeiramente interesseira pelo poder autoritário europeu oferecido pela então
potência colonial dominadora, a Espanha.
Em “A Valparaíso” (1963) de Joris Ivens, uma então muito mais pequena cidade portuária no Chile, que havia servido de escala – antes
da inauguração do canal do Panamá em 1914 – para o comércio marítimo entre os oceanos Atlântico e Pacífico, estava arquitectada
entre escadas e ascensores. Numa antologia editada por Eric Fernie, “Arts History and Its Methods” (2), o desenvolvimento também era
sinónimo de um ideal de retrato de um mundo visto pela perspectiva quer tectónica como atectónica, clássica como barroca, aplicandose isso talvez ao dispositivo em forma de socalco e de anfiteatro portuário a essa cidade de Valparaíso, no Chile.
Enquanto aparato do interior desse país empobrecido no passado, pelo pouco benefício da sua população de origem e, também, em
paralelo pelo impulso oriundo simultaneamente do exterior da sua fronteira administrativa, o que simbolicamente produzia na sua
panorâmica plástica de então um efeito turístico também estranho. Já que nessa época a escassez de água potável para os seus
habitantes mais socialmente carentes era notória, porque essa mesma água era porém considerada uma riqueza para quem a detinha
em demasia nos seus terrenos e comerciava com ela perante a necessidade dos outros habitantes da mesma cidade, facto que fora
sublinhado pelo documentário de Joris Ivens em 1963.
O canal do Panamá, entretanto, depois do voto recente do seu alargamento, embora com 56% de abstenção da sua população local,
terá em princípio as suas obras de restauro finalizadas por volta de 2012. Perfazendo, deste modo, quase um século desde a sua
finalização e inauguração no dealbar da I Grande Guerra na Europa. Actualmente tem 82 quilómetros de comprimento e abarca 5% do
comércio mundial, sendo que 80% do P.N.B. do Panamá provem do lucro das tarifas das portagens. A crise de convertibilidade do dólar
em ouro, dera-se por volta de 1963, quando as companhias americanas representadas então por sucursais no exterior, preferiram antes
guardar as suas receitas em bancos no exterior do seu próprio país, situados em particular na Europa. O presidente Johnson
implementou assim aquilo que se chamou logo de “Acto de Igualização de Receitas”, para tentar conseguir impedir a crescente
hemorragia financeira de capitais norte- americanos dos próprios Estados Unidos da América, fortalecendo desse modo a emergência
do câmbio do dólar em moedas estrangeiras e nomeadamente europeias. Tendo porém como contra-medida de resistência institucional
o facto das companhias privadas no estrangeiro, cada vez mais terem a tendência para conservarem os seus chamados “activos
líquidos” quer nos bancos centrais dos chamados países centrais na gíria tecnocrática desde então dominante na linguagem
corporativa emergente, quer nos próprios bancos privados americanos situados no exterior do próprio país.
Contudo, dez anos depois dava-se uma nova crise a partir de 1973 de incidência monetária no quadro financeiro do mercado de divisas
internacional, com a necessidade de desvalorização do dólar, a que se seguir depois da suspensão da conversão em ouro dois anos
antes o que havia provocado a sua flutuação e a desistência do câmbio fixo anterior do mesmíssimo dólar. Crise de especulação essa
que fizera por assim dizer enterrar os activos líquidos dos bancos em activos reais apressadamente. O enfraquecimento das reservas
monetárias norte-americanas após 1970, dera-se a seguir a uma política económica dispendiosa para a segurança dos seus interesses
fora do país com a instalação e reforço do seu sistema militar mundial como garantia do seu enorme sucesso interno. Sobretudo na
década anterior dos anos sessenta do século XX.
Foi assim a partir de 1973 que se deu então a crise de identidade da sua política económica expansionista com a reserva de muitos
países em aceitar o seu anterior papel de centro financeiro mundial. Ao forçarem os bancos centrais dos outros países centrais para o
sistema financeiro internacional aceitar a emissão de novo papel moeda em dólares, constituindo por essa via enormes reservas em
dólares no exterior, que eram depois substituídos na América pelo governo federal como títulos de dívida pública da tesouraria dos
Estados Unidos, inaugurando uma dependência financeira do estado federal norte-americano que desinvestia no sector público e
atrasava o seu próprio desenvolvimento económico e social no seu próprio espaço interno, acarretando uma diminuição da taxa de
crescimento da produtividade média da economia local, como sublinhou Celso Furtado no seu livro “Globalisation et exclusion: le cas du
Brésil” ou “Brasil: construção interrompida” escrito em 1992 (3).
Milton Friedman (1912-2006) entre 1969 e 1974 lutou contra a inflacção, descendo o preço do petróleo para aumentar o consumo,
tendo sido por isso considerado o impulsionador do monetarismo, de hábitos libertinos aplicados no jogo de casino de que era fã e era
também aberto ao feminismo norte-americano como parte integrante da sociedade espectáculo que defendia com o lema “Não há nada
melhor do que um almoço livre”, admitindo porém no final da vida uma clivagem inadmissível entre o económico e aquilo que
considerava o humano, sobretudo quando antes havia visitado a Índia e ficara abismado com as disparidades abissais. Friedman
obteve o prémio Nobel da economia em 1976, depois de ter sido durante o New Deal do presidente Roosevelt promotor de inquéritos
de consumo sobre a situação das famílias, conselheiro económico do presidente Nixon, Pinochet, Thatcher e Reagan, defendendo um
livre mercado e menos estado. E chegando a ter durante a era Reagan nos anos oitenta do século XX um programa de televisão
intitulado “Free to choose” (Livre de escolher).
Angelos Angelopoulos no seu livro “O Terceiro Mundo frente aos Países Ricos” (4), alertava ainda em 1973 quanto à estratégia daquilo
que ele intuitivamente considerava como sendo de um possível e talvez já então inevitável “desenvolvimento global”, nos seus próprios
termos e expressões combinadas com sabor antecipativo, com vista enquanto objectivo “assegurar trabalho” em itálico ao que ele
apelidava também de “imenso reservatório de população activa” e que segundo ele aumentaria no decurso do decénio 1970-80, por
isso tendo tendência desde essa altura a cada vez mais inflacionar as populações dos países economicamente mais atrasados na sua
provável industrialização retardada pelo subdesenvolvimento persistente, o que seria o “cerne do problema” à escala mundial
reactivando-se um certo neomalthusianismo, não fora o problema da alimentação ter sido entretanto mais cuidado à escala
internacional desde o século XIX.
Por exemplo, a Amazónia era considerada em 1898, aproximadamente, como tendo uma superfície equivalente a metade da Europa,
quando já antes em 1839 Nelson Goodyear a dera a conhecer ao mundo dos negócios porque misturou latex extraído da borracha do
novo ciclo económico da Amazónia com enxofre e descobriu o “cautchouc”. Esse mesmo latex havia sido já também antes considerado
intuitivamente como produto impermeável pelos próprios seringueiros locais, que haviam emigrado do Nordeste brasileiro para aquelas
terras inóspitas com a finalidade de arranjarem trabalho temporário devido ao crescimento do interesse pelas plantações de
borracha(5). Como região do globo actualmente prioritária para o século XXI, a Amazónia é objecto de atenção redobrada. Tanto mais
que 40% do seu actual território, 16 milhões de hectares com nove áreas de conservação equivalendo ao tamanho de Portugal, da
Dinamarca e da Suiça, é objecto de atenção como área legal agora protegida pelo estado do Pará, no Brasil, de forma a garantir o
impedimento da sua desflorestação contínua. Com a traficância de madeiras preciosas e os incêndios de origem ilícita, que destruíram
anteriormente desde 1970 até à actualidade recente um espaço de 600 mil quilómetros quadrados, equivalente por exemplo à geografia
de um país como a França. Amazónia essa vítima também de acidentes involuntários de lesa biosfera, até provocados pelo desleixado
aquecimento global, conforme noticiou o EuroNews recentemente a 5 de Dezembro de 2006.
Recentemente, em Monterey, no México, a 4 de Outubro de 2006, durante um encontro internacional de ministros do ambiente, uma
equívoca frase do ministro britânico trabalhista permitiu erguer o véu sobre a Amazónia, quando aquele segeriu talvez ironicamente a
privatização do seu imenso território. A TV Record referiu-se então a esse quase incidente diplomático involuntário com uma
reportagem curta em que era explicado que a Amazónia pertencia a nove países sul-americanos. Sendo que a maior parte do seu
território florestal pertencia ao Brasil, cujo espaço controlado pelas instituições estatais ocupava 45%, ao passo que o sector privado só
teria até então 25%, pois que os restantes 30% eram destinados a reservas dos índios locais protegidos governamentalmente pelas
instituições federais.
NOTAS:
(1) Op. cit, Martin Robertson, Oxford 1983 (1978), pág. 147 in “7 - A retrospective view”.
(2) Heinrich Wolfflin, “Principles of Art History” (1915), Op. cit., Phaidon Press Limited, Hong Kong 1996 (1995), pág. 145 in “The Why of
the Development”.
(3) Op. cit., Éditions Publisud, Paris 1995, pág. 68 “III - Retour à la vision de Prébisch”.
(4) Op. cit., Edição Livros do Brasil, Lisboa 1974 (1973), pág. 22.
(5) Louis Saurel, “Les luttes économiques”, in “Histoire vivante du XXème
siècle», sous la direction de Henri Azeau, «1/L’annonce du siècle (avant 1900)», Robert Laffont, Paris 1965, págs. 82 e 83.
CXXI
26 de dezembro de 2006
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
Charles Chaplin perguntou uma vez ao próprio John Maynard Keynes, sentado a seu lado como que por acaso
durante um banquete oferecido em Londres, na primeira visita que o artista do ecrã mudo fizera por volta de 1931
- aquando da estreia desse fenómeno insólito de popularidade que foi o filme mudo já em pleno sonoro “Luzes da
cidade” (City Lights, 1931) -, portanto, como é que aquele sábio das finanças tinha liquidado os empréstimos
solicitados ao Banco de Inglaterra, então uma empresa privada autónoma do governo britânico, que porém
anteriormente os havia solicitado durante a I Grande Guerra. Já que, como sólida instituição de crédito mundial, as
suas reservas de ouro nessa mesma época haviam sido como que aspiradas. Talvez indevidamente, segundo os
não respeitados padrões de débito, tendo ficado para trás apenas cerca de quatrocentos milhões de libras, então
pertencentes a garantias estrangeiras aí depositadas. E que aquando, contudo, do pedido referido de empréstimo
feito pelo próprio governo pouco depois, numa quantia que orçava para essa época uns enormes 500 milhões de
libras ao câmbio da altura, esse mesmo prestigiado banco apenas fizera sair o que restava das garantias. Isto é, apenas as arejando
por rotina, para quem quisesse ou pudesse circunstancial e veladamente olhá-las por breves instantes no segredo dos deuses e de
imediato quase depois voltaria a guardá-las de novo no mesmo local anterior, nas referidas catacumbas onde se situavam os cofres.
Numa manobra de evidente simulação financeira de resgate institucional fiduciário e convencional, como que banalmente aquela fosse
de transporte contabilístico abstracto entre departamentos na mesma lógica empresarial. Fazendo-se, no entanto, assim, magicamente
a simulação da liquidação temporária do empréstimo pretendido. E essa mesma inédita para a época acção simulada, também por
várias vezes havia sido do mesmo modo repetida, para espanto até dos entendidos em truques de caixa bancária, como que numa
inovadora e estranha transacção consentida pela legislação vigente, segundo o que apurara Chaplin e dissera a Keynes, pedindo-lhe a
confirmação do feito transaccional – por lembrança retroactiva feita a partir da Suiça em 1964 na sua “My Autobiography”, capítulo XXII,
publicada em Londres pela The Bodley Head –, por ter lido numa revista da especialidade que se atrevera a contar a polémica
renovação do funcionamento do crédito, por essa provecta instituição chamada Banco de Inglaterra.
Por fim, Keynes, abanando a cabeça de cima para baixo para Chaplin, como que anuindo em sinal de acordo com tudo o que ouvira em
chamada linguagem de “economês” da boca deste a esse respeito, respondera que fora isso que se havia exactamente passado:
pagando, então, o governo britânico dessa anterior altura ao Banco de Inglaterra o empréstimo antecipado, precisamente com o mesmo
dinheiro fiduciário. Mais tarde, Chaplin, reunindo informalmente com Churchill em casa deste último, quando o 1º ministro MacDonald
dessa mais recente altura ainda andava às voltas com o orçamento, até a hipótese de um imposto de consumo sobre o chá chegaria a
ser ponderado: como havia perguntado o cómico e não totalmente descartado pelo seu admirador, fora do governo nessa época.
Mais tarde, a balança do mesmo poder entre as duas guerras mundiais havia levado o próprio Toynbee, na Chatham House, a tomar a
defesa de uma opinião a favor da necessidade de se elevar mundialmente os níveis de vida de uma parte menos protegida da
humanidade. De notar que um filme como “Brazil” (1985) de Terry Gilliam, mais não fez do que antecipar o maquinismo da sociedade
em regime de alienação com a sátira ao automatismo e à reinvenção utópica. Face à despersonalização crescente dos seus
consumidores obrigatórios da prática computacional, sem que o Brasil do título se refira implicitamente ao país do mesmo nome, mas
mais ao caos selvático do retorno a um capitalismo anterior à crise de 1929, embora projectada esta mais no século XXI de crescentes
problemas ambientais no centro das preocupações mundiais, não na unidade do estado-nação mas na distopia de um governo mundial.
Dessa maneira, Toynbee pensara então em como até atribuir-se mesmo grandes poderes a uma espécie de – para a sua época –
antevisão da Organização Mundial do Trabalho. E, até pelo menos 1943, mantendo-se com a sua equipa de 177 pessoas na defesa da
ideia quanto à eventualidade prioritária da criação de um banco para o desenvolvimento nos Balcãs, Portugal e Itália (1), que seria
abandonado como projecto em substituição do Banco Mundial no após II Guerra Mundial. Porque, também, a ideia de Toynbee e de um
co-pesquisador, estampada num documento interno da Chatham House sobre a proposta de uma monarquia espanhola que levasse
em conta um programa agrário de reforma social e regional como substituição do regime de Franco, fora ainda antes do final dessa
mesma guerra mundial protelado pelo então ministro britânico Anthony Eden, que o lera e o mandara arquivar por considerá-lo
precipitado.
Em “Belle Époque” (1993) de Fernando Trueba, a relação peninsular na Ibéria dividida ainda pela problemática do século XIX
estampada no curso histórico do século XX, faz vir após o advento em 1931 da república em Espanha um jovem preocupado com a
situação em Portugal, reflectindo-se sobre a disjunção entre os dois países naquela época após o impacte da crise de 1929. Mesmo
mais tarde no universo de Pau, uma cidade próxima dos Pirinéus, um antigo republicano pensa em atravessar a fronteira para ajustar
contas com o adversário, em “Behold a Pale Horse” (1963) de Fred Zinnemann, que revela a confrontação prolongada que constituiu a
impunidade dos oligarcas locais, quanto à luta fraticida cuja penumbra e nevoeiro ensombravam ainda a Espanha, numa época em que
o turismo do Mercado Comum tentava abrir brechas na economia de barricada proteccionista e de fortaleza paliçada.
Quanto a Keynes, sintetizando o seu itinerário teórico um professor de Bordéus (2) aquilatou já nos anos de monetarismo displicente e
de rivalidade entre os bancos centrais dos países mais industrializados, face à tentativa então de hegemonia mundial do dólar como
moeda universal de câmbio: “Na base, o que diferencia a abordagem keynesiana da clássica é o quadro de análise ao qual ela se
refere: já não se trata, com efeito, de explicar uma situação de equilíbrio da produção e do emprego, mas sim do seu processo de
variação. O resultado final é a contestação da existência de mecanismos automáticos de regulação da actividade económica e a
afirmação da necessidade da intervenção do Estado com vista a corrigir os desequilíbrios permanentes, dos quais o subemprego é a
manifestação mais visível”.
O papel de um guarda de gado que suspeitava de um médico alcoólico numa América em construção, restabelecendo a ordem em OK
Corral, na cidadela de Tombstone, depois que a índia Chihuahua o convenceu do contrário, em “A Paixão dos Fortes” (My darling
Clementine, 1946) de John Ford, revelou-nos o mundo perdido do multiculturalismo ascendente nas raízes da colonização do
continente americano. E, desde então, na tentativa da predominância dos valores anglo-saxónicos à escala mundial, sobretudo naquela
produção cultural fílmica, também miticamente após o final da II Guerra Mundial, que com a iniciativa imperial e de ajuda à reconstrução
por analogia do Plano Marshall universalizou a facilidade e a premência do domínio agrário sobre o gentio e o malfeitor na fronteira da
civilização mecânica à custa do desenvolvimento urbano sobrepondo-se à estagnação rural e à sua exploração primitiva.
Raul Prebisch fora autor de uma “Introdução a Keynes” em 1947, mercê da sua experiência à frente do Banco Central argentino nos
anos trinta. E de também ter sido depois ministro da fazenda nos anos quarenta, pouco antes de passar a dirigir a CEPAL em 1948 em
Santiago do Chile. Como pequeno organismo das Nações Unidas para apoio técnico aos jovens economistas latino-americanos, no seu
esforço de industrialização possível nos respectivos países, por via governamental e institucional no quadro, inquieto e pioneiro, dos
anos cinquenta na América Latina.
Celso Furtado, em “A Fantasia Organizada” (3), sintetizou o alcance do trabalho dos economistas, quando reafirmou sempre o contexto
a propósito da eficácia de Keynes sobre a teoria da procura efectiva, negando que esta exista com um abanão social como o provocado
pela crise de 1929, que levou parte da população mundial ao desaparecimento biológico, nomeadamente dos países mais afectados
pela desregulação da economia mais industrializada. Já que, referindo-se a Keynes e sempre ao seu contexto de então, a sua
intervenção teórica dessa altura crítica advinha exactamente porque os seus postulados financeiros surgiram para dar resposta à
economia paralizada, cujas perguntas precisas estavam relacionadas com situações que se apresentaram “dentro de certo contexto
histórico, e por isso logo são superadas”. A escala planetária do tempo de Keynes era mesmo assim delimitada, pois que o peso da
herança cultural em que estava inserido – e o fez agir como tal –, era o do estertor da Inglaterra victoriana. Mas já uma geração depois
de esta ter começado a desaparecer em hábitos e costumes então característicos.
A teoria geral de Keynes, acessória ao ciclo de negócios, continha instrumentos de análise para a construção de vários modelos
posteriores da economia de mercado, com a sua evolução prevenida face às crises de superprodução e brutal desemprego.
Apontando, assim, a tempo, as causas antes da catástrofe financeira antevista, de maneira à intervenção do Estado para impedir ou
atenuar a eventual recessão. Intervenção essa, “não somente no sentido de dar remédio às crises, mas ainda no de impedir que elas
estalem” (4).
A teoria da procura agregada de Keynes havia estabelecido que o total da procura de mercadorias no mercado, num dado contexto
histórico da sociedade de classes da revolução industrial inglesa em crise e nessa economia política clássica, ajudava a determinar o
nível de produção de mercadorias e o seu respectivo crescimento; mas se a procura e o consumo eram estimadas em baixa
conjuntural, por exemplo com cortes prévios nos salários, o total da economia global do então império britânico, compreendendo
também o mundo anglo-saxónico das antigas colónias em autonomia e mesmo já independentes entretanto seria por consequência
muito mais reduzido. Conforme estabelecera por intuição e férrea convicção - na sua experiência contabilística e comercial sobre as
transacções com a Índia colonizada de então - o seu autor em 1936, no seu consagrado “The General Theory of Employment, Interest
and Money” publicado em Nova Iorque.
Em “Esplendor na relva” (Splendor in the grass, 1961) de Elia Kazan, o clima de depressão económica é bem retratado
psicologicamente com o suicídio do pai de um dos protagonistas e a alienação da jovem namorada numa América do Norte em situação
local pior que a região mais privilegiada da Rússia doze anos depois da revolução e da guerra civil, fazendo a crise recuar os mercados
atingidos a índices de 1914 de antes da I Grande Guerra. No caso de “Lucros ilícitos: Gold e Companhia” (1923) de George Pallu,
anunciava-se através de uma historieta romântica a falência do cinema mudo e por incrível a substituição do padrão ouro. Como base
de equivalência fiduciária da reserva das nações e das suas instituições financeiras no mercado europeu, a partir da zona agrária mais
a ocidente nesse continente. Tudo isso havia resultado numa “situação de estagnação na qual a economia estava num equilíbrio
‘económico’ perfeito, muito embora padecesse as dores da agonia social” (5), comentaria R.L. Heilbroner em “Grandes Economistas”.
A escala planetária económica e social do tempo de Keynes era mesmo assim muito mais delimitada do que é na actualidade desde
1991, sobretudo com o fim do Apartheid na África do Sul. Tendo em conta o fundo de recursos mineiros deste último país à escala
global, conforme se poderia imaginar já desde a ficção documental de “Come Back Africa” (1960) de Lionel Rogosin, sobre a cidadela
multiracial de Sophiatown nos arredores de Joanesburgo por volta de 1957, antes de ser destruída. E que explicou a luta contra os
passes entre fronteiras invisíveis de várias comunidades, antes do impacte seguinte do massacre citadino de Sharpeville, que
condicionaria inclusive a limitação do livre comércio com um dos antigos países colonizadores como a própria Grã-Bretanha, sempre
invejável na defesa do liberalismo económico mas já não a esse ponto de clamoroso desafio aos direitos humanos dos mineiros e do
trabalho forçado migrante, por exemplo, para os batustões.
Pois que o peso da herança cultural em que estava inserido Keynes e o fizera agir no seu tempo era o do estertor da Inglaterra
victoriana uma geração depois de esta ter começado a desaparecer, com a lenta desagregação do império britânico a partir de 1900 e
da guerra dos Boers. Com a passagem do século XIX para o XX, salvar-se-ia o desenvolvimento capitalista, apesar da pressão
contrária das classes desfavorecidas da grande metrópole insular, sobretudo com a nova intervenção monopolizadora do Estado,
através de uma classe privilegiada e sonolenta até então. Mas que se impôs a si própria em ser lúcida, por conveniência da nova
situação crítica nunca antes vivida com a amplitude do desemprego e da potencial rebelião, como no tempo de Cromwell em meados
do século XVII, com a luta dos niveladores na situação agrária descrita tal e qual em “Winstanley” (1976) de Kewin Brownlow.
A boa consciência dos neoclássicos com a revelação do capitalismo nas suas mazelas marginais ruíra; e a falência, a paralisação e a
estagnação do circuito distributivo económico então vigente, levava os desempregados à fome e os proprietários e empresários à
destruição de produtos em “stock” ou ao desaparecimento de outros do mercado, pela interrupção parcial da cadeia de produção,
sector a sector na sociedade pré-consumista. Ainda não eficazmente generalizada pela passagem ao mecanismo automático e ao
trabalho em cadeia na fábrica electrificada. Em “Cristo parou em Eboli” (Cristo si è fermato a Eboli, 1978) de Francesco Rosi, transmitiuse o paradoxo em 1935 de uma Itália que se expandiria para a Abissínia, contra o parecer da Sociedade das Nações em Genebra,
quando a sua administração autoritária e imperativa desde 1922 queria que os comboios chegassem à hora no seu próprio território
nacional. Porém, ainda subdesenvolvido e agrário, onde um médico pouco depois conviveu em deportação com a causa desse atraso
industrial na própria Europa meridional, dividida entre uma precária civilização local e a Idade Média persistente.
NOTAS:
(1) Christhopher Brewin, “Arnold Toynbee, Chatham House, and Research in a Global Context”, in “Thinkers of the Twenty Years Crisis:
Inter-war Idealism Reassessed”, Edited by David Long and Peter Wilson, Clarendon Press, Oxford 1997, pág. 290.
(2) Pierre Delfaud, “Keynes e o keynesianismo”, Colecção Saber n.132, Publicações Europa-América, Lisboa 1977, pág. 40 in “1 – O
princípio da procura efectiva”.
(3) Op. Cit., Paz e Terra (5ª edição), São Paulo – Rio de Janeiro 1985, pág. 224 e 226 in “XIV – A Ceia de Natal”.
(4) Henri Denis, “História do Pensamento Económico - II Vol.”, Círculo de Leitores, Lisboa 1978, pág. 279 in “1 - A investigação de um
modelo matemático do ciclo dos negócios”.
(5) Op. cit., Biblioteca de Ciências Sociais n.9, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1959, pág. 246 in “IX - O mundo enfêrmo de John
Maynard Keynes”.
CXXII
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CXXII)
Ora, a prioridade do capital fixo, oriundo de prévias acumulações, dizia-nos Keynes em subentendido, como que reflectindo ele em voz alta para aquele tipo de empresários
que constituíam talvez o alvo prioritário dos seus pensamentos na época na Europa, sobretudo em especial situados fora da Inglaterra e ainda não maioritários quanto a
uma imperiosa disciplinada consciência da poupança pessoal, face à tentação de dispersão de mais-valias em maneiras de viver demasiado desafogadas, típicas também
então da época e anunciantes de escândalos financeiros e privados
Manuel Carvalheiro
Em 1919, com trinta e seis anos, Keynes, descontente com a sua estadia em Paris, durante a preparação dos
acordos de paz de indemnização alemã à responsabilidade material da I Grande Guerra, teceu considerações
sobre a geopolítica do mundo de então - em que aproveitara também por sorte sua para se casar com uma
magnífica bailarina do “ballet” Diaghilev e sua mulher até ao final dos seus dias -, com uma opinião impressiva
mas balizada e muito colorida, com o seu estilo próprio de precoce filho de letrados : “As acumulações imensas de
capital fixo que, para o grande benefício da humanidade, se juntaram cada vez mais durante cerca de meio século
antes da última guerra, talvez nunca pudessem ter vindo à luz numa sociedade onde a riqueza fosse dividida
equitativamente” (1).
Ora, a prioridade do capital fixo, oriundo de prévias acumulações, dizia-nos Keynes em subentendido, como que
reflectindo ele em voz alta para aquele tipo de empresários que constituíam talvez o alvo prioritário dos seus
pensamentos na época na Europa, sobretudo em especial situados fora da Inglaterra e ainda não maioritários quanto a uma imperiosa
disciplinada consciência da poupança pessoal, face à tentação de dispersão de mais-valias em maneiras de viver demasiado
desafogadas, típicas também então da época e anunciantes de escândalos financeiros e privados. Mais tarde, com o advento da
expansão alemã - estilhaçada a república de Weimar e desautorizado o pacifismo do presidente Woodrow Wilson em 1920 aquando da
criação da Sociedade das Nações vetada porém pelo congresso norte-americano - espicaçada no orgulho pela humilhação excessiva
daquele tratado na Europa, inclusive de carácter político-criminal, como seria ainda mais tarde em França usual e na medida
emblemática em 1934, com um universo de especulação financeira sem provas dadas de segurança de solubilidade bancária, como foi
reconstituído num universo de fim antecipado de república com alguma emoção em, por exemplo, um belo filme sobre o estertor dos
anos loucos de repercussão europeia da crise bolsista de 1929, como “L’Affaire Stavisky” (1974) de Alain Resnais.
Porém, Keynes, no passo seguinte do seu raciocínio, fazia-nos recuar até às origens do ciclo marshalliano, no último quartel do século
XIX : “Os caminhos-de-ferro do mundo, que esta nossa era construiu como um monumento para a posteridade, foram, não menos do
que as pirâmides do Egipto, o trabalho da labuta que não ficara livre para consumo em divertimento imediato como completo
equivalente do seu esforço colectivo” (1). Uma frase enigmática q.b., de impecável estilo epopeico, não de elogio fácil aos cavaleiros da
indústria, mas de apelo à utilidade da sua existência no quadro da economia desenvolvimentista. Tendo em conta o imenso espaço de
influência simbólica do polémico império britânico, que havia levado o próprio dois anos à Índia entre 1906 e 1908.
Tal como um missionário do tesouro britânico, em propedêutica funcional, para o regresso mais experimentado em negócios de
transferências financeiras coloniais; que lhe deram, então, pouco depois no regresso da Índia, um lugar de destaque na direcção dos
serviços de tesouraria dos governos britânicos da época, conforme mais tarde o próprio Joseph Schumpeter, que o conheceria em 1927
em Cambridge pessoalmente, lhe retrataria com minúcia o seu itinerário profissional e académico menos analisado e comentado de um
ponto de vista eminentemente progressivo e autêntico - porque se tratava de um colega a revelar os segredos implícitos de um inovador
e sofisticado universalista de um capitalismo pós-marxiano no seu livro “Dez grandes economistas – De Marx a Keynes”, que este
economista austríaco deixaria para a posteridade como um divertimento insólito numa área em que se dividiam as especificidades e os
curriculum, isto é, Keynes sabia matemática e era pioneiro de estudos de econometria.
Assim pensava Keynes em 1919 e o “the work of labour” dizia tudo sobre a sua angustia naquela fase de sensibilidade paradoxal à
exploração necessária, antes da distribuição da riqueza, como forma de acumulações de capitais para o desenvolvimento capitalista de
que ele estabelecera um antes e depois de 1870. Data da sublevação do proletariado de Paris e por inerência recordada, porque era de
novo de Versailles que se tratava. Pois, um filme recente de Kenneth Branagh, “A Flauta Mágica” (2004), deu-nos a recriação de uma
ópera no meio da batalha de Somme numa trincheira nocturna algures durante uma fase crucial de carnificina entre os estados-maiores
alemão e franco-britânico na I Grande Guerra, desalucinando a inutilidade daquela ferocidade, particularmente numa cena com
enfermeiras equipadas de capacetes militares como os homens mas em que se haviam instalado pequenas lanternas como os
mineiros, socorrendo Papageno que alegremente as acolhe como se fosse algo normal na sua actividade de camaradagem entre os
“poilu” cheios de piolhos e comichão.
Paul Sweezy (1910-2004), com metade da idade do patrono britânico, fez um elogio necrológico norte-americano, quando Keynes
faleceu em 1946 aos 62 anos. Situou-o na história da economia inglesa, corrigindo, porém, talvez o óbvio para o círculo apertado dos
especialistas locais de Cambridge, mas não para os meios universitário mais alargados da economia política mundial da sua época. Na
medida em que, aquilo que então estabelecia a diferença na caracterização dos chamados clássicos em relação à expressão
“neoclássicos”, era que estes eram considerados os ortodoxos como tais. Ora, em economia política burguesa chamava-se então
clássicos pelo menos a três grandes economistas britânicos: Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill; os neoclássicos seriam,
pois, também ainda britânicos como aqueles pioneiros, mas rodeando a figura tutelar de Marshall, um economista do final do século
XIX, imperante como detentor do talismã da primeira trindade.
Keynes, que ainda lhes pertencia, tinha porém posto em dúvida a eficácia da chamada lei de Say, que já antes Karl Marx, um emigrado
alemão para todos eles e sem direito a cidadania britânica, no seu tempo havia pura e simplesmente desprezado, porque a cada época
e geração os seus mestres. Porém, havia sido David Ricardo que promovera Say, contudo também fora contornado: na tal asserção, de
que era a procura que condicionava a produção; e, por conseguinte, de que nunca alguma vez pudesse ter havido uma escassez de
procura no mercado.
Tabu ortodoxo dos neoclássicos ou dogma tirânico desmentido por Keynes, que embora defensor da universalidade do sistema
capitalista - com base na revolução industrial de que a Inglaterra detivera o apogeu no século XVIII e XIX -, tivera a sensatez de dizer
face à realidade monstruosa da crise de 1929, que esta última era porventura dali para a frente mais a norma do que a excepção, com
a correlativa depressão periódica a que não adiantava pôr a peneira à frente do Sol. Sweezy, em “Teóricos e Teorias da Economia” (2),
sintetizou muito bem o papel de Keynes: “Sua missão foi a de reformar a Economia neoclássica, trazê-la de volta ao contacto com o
mundo real do qual se afastara cada vez mais desde o rompimento com a tradição clássica no século XIX ; e precisamente porque era
um deles, e não um estranho, é que Keynes pôde exercer uma influência tão profunda sobre seus colegas”.
Em “Jogador de xadrez” (1977) de Satyajit Ray, ingleses em 1856 às portas de destronar um soberano local, que se opõe ao rolo
compressor da unificação colonial, fechando-se no seu palácio, enquanto dois aristocratas desse reino insubmisso no Punjab,
esquecidos da urgência na mudança do tempo histórico pela anexação, desinteressam-se da iminência dos acontecimentos militares de
cerco aos seus domínios. Enquanto apaixonadamente jogam o seu destino simbólico e pacífico num tabuleiro, com a paciência
inusitada de estrategas distraídos com a sua sorte e disponibilidade. Impávida perante o ocaso do seu modo feudal e cortês de
deslocar as peças do jogo, enquanto decorrem movimentos de tropas que não encontram alguma resistência local daqueles senhores.
Afinal cúmplices face à nova situação de propriedade administrativa, apesar da indiferença que lhes manifestam ao preferirem o
simulacro de batalha num tabuleiro de jogo aprazível, numa lógica oriental que desconcertou certamente os novos dominadores
europeus.
Gandhi dissera a Chaplin em 1931, a propósito da sua alegada rejeição da maquinaria britânica, que a Índia colonial importava
enquanto aquele lutava com greves de fome e paralizações pacíficas diante das linhas de caminhos-de-ferro da altura, tal como se viu
numa cena em “Bowana Junction” (1956) de George Cukor, que bloqueavam a vida económica do seu país então numa nova fase de
reconhecimento da sua luta pela independência dezasseis anos antes desta se efectuar quase em simultâneo com a do Paquistão:
“Maquinaria no passado fez-nos dependentes da Inglaterra e a única maneira de nos livrarmos dessa dependência é boicotar todas as
mercadorias feitas com esse equipamento. Isso é a razão por que fizemos disso uma obrigação patriótica para cada indiano poder girar
o seu próprio algodão e tear o vestuário que usa”. E Gandhi acrescentara ainda a um Chaplin estarrecido, segundo a recordação
transmitida em 1964 na autobiografia deste último: “Esta é a nossa maneira de atacar uma nação poderosa como a Inglaterra -, e, claro,
há ainda outras razões. A Índia tem um clima diferente da Inglaterra ; e os seus hábitos e quereres são diferentes. Em Inglaterra o clima
frio necessita de uma árdua indústria e de uma economia envolvida. Vocês precisam de uma indústria de faqueiros; nós usamos os
nossos dedos. E então isso traduz-se em redobradas diferenças”.
Em “Salaam Bombaím!” (1988) de Mira Nair, no entanto, o problema do subdesenvolvimento e o abandono de crianças feitas adultas
antes do tempo numa luta pela sobrevivência em grupos destemidos onde reinava o maior darwinismo social inconcebível, mostrou-nos
como o sistema de castas anterior à colonização britânica perduraria nos hábitos e costumes citadinos com a conexão entre busca de
meninas adolescentes em casas de apoio à miséria por parte de doadores interessados no jogo sentimental de afectos.
É o próprio Keynes quem, entre 1935 e 1936, dizia que a falha da sociedade económica que era então a sua Grã-Bretanha, que estava
à beira de assistir a uma catástrofe bélica bem perto do outro lado do canal da Mancha e depois a pactuar com uma falsa isenção
diplomática, por causa da iminência de uma guerra civil latina numa parte da Europa dominantemente voltada para a indústria
armamentista, era que não se soubera precaver plenamente a tempo para lutar contra o desemprego e a sua arbitrária e não equitável
distribuição de riqueza e receitas. Sendo que, segundo ele, a teoria clássica tinha dado pouco interesse ao primeiro aspecto e a teoria
neoclássica ainda menos ao segundo aspecto, pelo que seriam necessárias novas taxas aos mais poderosos.
Por fim, dizia ele, desabafando, que “para o campo da filosofia económica e política não há muitos que sejam influenciados por novas
teorias antes destas terem vinte e cinco ou trinta anos de existência, por isso as ideias que servidores públicos e políticos de profissão e
mesmo agitadores aplicam aos acontecimentos correntes não são provavelmente as mais recentes. Mas, cedo ou tarde, são as ideias,
não vetustos interesses, que são perigosas tanto para o bem como para o mal” (3).
Desde 1954 que o texto “Capital Formation and Economic Development” escrito por Celso Furtado em 1952, como exame crítico das
seis conferências que Nurkse fizera no Brasil em 1951, tomara depois na tradução inglesa da revista n.4 da Associação Internacional
de Economistas a divulgação que se lhe conheceu ainda mais ulteriormente e onde o jovem autor brasileiro já recorria àquilo que
chamava de “abordagem keynesiana”, que segundo Celso Furtado dava grande importância ao facto de que os motivos psicológicos do
que poupava eram diferentes dos do investidor: “Mas, se mudarmos em sentido inverso a nossa atenção para o problema do
crescimento da capacidade produtiva, será então claro que é quase tão importante distinguir entre os motivos psicológicos do investidor
e do consumidor. Quando um processo de desenvolvimento começou numa economia de empresa livre, o investidor recebe um maior
incentivo do que o consumidor”.
Para Celso Furtado, a análise de Keynes funcionou como uma espécie de “terapêutica” para ultrapassar a ilusão neoclássica de que o
mercado se auto-corrigia e vencia por si a crise do desemprego, conforme voltou a compendiar em “Transformação e crise na economia
mundial” (4): os modelos que pretendia seriam em seguida criados caso a caso, em função de cada “projecto de economia nacional”,
com uma tipologia específica: tendo em conta o consumo, a poupança, o investimento, a exportação, a importação, a recolha de
impostos, sendo que os centros de decisão controlariam o comportamento dos intervenientes económicos. E também tendo em conta
que Keynes sempre dera ênfase prioritária ao equilíbrio interno antes do externo, talvez por vir de Inglaterra; mas isso anunciava em si
a planificação indicativa e a necessidade de um controle das relações comerciais externas, que porém devido ao exacerbamento dos
nacionalismos, com a colisão dos projectos nacionais, seria protelada “sine die”.
Em 2000, Celso Furtado receava aquilo que se chamava de “equilíbrio de subdesenvolvimento” e a sua perpetuação por fraqueza
inactiva de um “choque de Estado”, sendo que a teoria da coordenação subjacente à análise macroeconómica keynesiana na luta
contra o desemprego e a superação do subdesenvolvimento resvalará sempre para um paliativo de inércia caso o projecto políticoeconómico no quadro eleitoral de um programa prévio não seja respeitado. Pelo que se poderia inferir uma tendência ao cepticismo
vigilante caso a caso na sua própria reapreciação aos termos em que escrevera o seu livrinho sobre a “Pequena introdução ao
desenvolvimento” numa época ainda de ditadura vinte anos antes e do início do processo laboral de luta dita do ABC, em que o
sindicalismo brasileiro contribuiu para um exame posterior às chamadas modificações estruturais da sociedade após o acordo de
Helsínquia em 1975 de troca de ideias e de mercadorias num espaço universal de comércio entre nações com sistemas políticos
diferentes, para não ter de se voltar à época do Rei Sol na Sala de Espelhos em Versailles como numa cena elucidativa em “A Tomada
de Poder por Luis XIV” (1966) de Roberto Rosselini.
Talvez um mundo mais justo, setenta anos depois das declarações mais proféticas de Keynes, ainda requeira para os seus seis biliões
de habitantes - o triplo dos que existiam na época entre as duas grandes guerras mundiais, subsequente à crise financeira de 1929 -,
uma renda básica generalizada ao mais elevado nível sustentável e a “implementação universal de um princípio de territorialidade
linguística” (5).
NOTAS:
(1) John Maynard Keynes, “The Economic Consequences of the Peace”, 1919 in “Chapter 2: Europe before the war – III: The
Psychology of Society”.
(2) Op. Cit., Divulgação Cultural – Economia, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1965 (1953), pág. 12 in “I – Pensadores e Teorias: 1 –
John Maynard Keynes (1946)”.
(3) John Maynard Keynes, “The General Theory of Employment, Interest, and Money”, 1935/6 in “24 – Concluding notes on the social
philosophy towards which the general theory might lead : 1. and 5.”.
(4) Op. cit., Paz e Terra, Rio de Janeiro – São Paulo 1987, págs. 62 e 186 (1976 e 1982).
(5) Philippe Van Parijs (Ed.), “Cultural Diversity versus Economic Solidarity”, de boeck, Bruxelles 2004, pág. 395.
CXXIII
8 de janeiro de 2007
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
Em “Le fabuleux destin d’ Amélie Poulain” (2001) de Jean-Pierre Jeunet, por exemplo, encontram-se os extractos
da população francesa desde pelo menos 1900 a 2000, onde a arquitectura estilo Império até à pirâmide em vidro
transparente imitando um diamante gigante no pátio do renovado Louvre nos anos oitenta do século XX, servem
para guarnecer o itinerário labiríntico e quotidiano de uma jovem local numa situação de emprego precário.
Reflectindo, de certo modo, as conquistas sociais da liberdade existencial, constantes da tradição personalista e
católica irrequieta ou interclassista nas quatro estações das colinas de uma Paris, tal como se vira em “Um
americano em Paris” (An American in Paris, 1951) de Vincente Minnelli, com a publicidade inicial no após II Guerra
Mundial e a famosa cena nocturna num cais do Sena, atmosfera difusa sobrevivente também do miserabilismo
secular herdeiro do horizonte de montanha de um Victor Hugo no exílio inglês e insular. Numa crónica de
costumes, que se interroga sobre a sobrevivência da espécie humana na civilização industrial, perene e sem as
promessas cumpridas do seu optimismo adiado, no ciclo dos vegetais no mercado de alimentos e da taça de vinho ou de cerveja na
cervejaria da esquina ou na leitaria da outra esquina para assinalar os esquemas de cumplicidade activa de uma pequena burguesia
próxima de um proletariado em extinção.
Em finais de Maio de 1968, em Paris, decorreram - aquilo que depois se convencionou chamar para a história - os encontros de
Grenelle. Encontros esses, informais para o início da troca de ideias entre os diversos representantes dos sindicatos franceses e o
então imperante embora conjunturalmente bastante enfraquecido patronato (antes dessa crise de civilização, inédita, promotor da
chancela dita da Participação). Mas que tentava, como gerência atenta ao evoluir dos acontecimentos assombrosos, reconciliar o
passivo administrativo nos conflitos de trabalho. Até à explosão grevista, nunca antes vista na França do após II Guerra Mundial e,
naquela época, na fronteira do caos: com o risco de guerra civil, em pano de fundo, caso a revolução avançasse para a confrontação
generalizada na província e a substituição do regime de propriedade como assunção directiva da conjunção alternativa à pulverização
dos poderes vigentes.
O encontro de Grenelle fora a forma perspicaz de o governo francês chegar a um acordo salarial e, naquelas circunstâncias quase
insurreccionais, pôr um fim aos acontecimentos reivindicativos que tinham colocado então o país à beira da paralisação social e
económica, com repercussões pelo menos de imediato para o conjunto dos países da Europa, não só do Mercado Comum dos cinco de
então, mas também geo-política do Atlântico aos Urais, isto é, da EFTA dos países nórdicos e latinos ao Comecon dos países do centro
e leste do mesmo continente.
A finalidade transitória à crise em vias de ser debelada era o receio do patronato francês no seu conjunto de se ver crescentemente
ultrapassado pelas paralisações, ocupações de fábricas, ateliers e outros espaços urbanos de trabalho; e que, por sinal, essa mesma
crise política e civilizacional, já até então entretanto demasiado prolongada pela amplitude posterior que lhe dera a participação popular,
não se viesse ainda a deteriorar mais.
Aproveitando esse mesmo patronato, mais flexível por fim aos acontecimentos imprevisíveis, também a hipótese de negociar num
terreno social em que havia diferenças nas bases de apoio dos três principais sindicatos franceses; para além das greves espontâneas
e da desordem crescente, como força colateral ao rumo indeciso e não controlada por ninguém naquele contexto sombrio, devido à
também burocracia inoperante do próprio Estado, balançando entre a ditadura militar e a anarquia pura e simples da tradicional história
passada no século XIX.
E, posteriormente, mesmo vitimizando - enquanto grupo social restrito e de poder e saber adquiridos na evolução financeira -, pela
prática insubmissa de se fazerem reféns entre os quadros administrativos de gestão corrente, por vezes por rotina adquirida e
desactualizada, também mais renitentes à mudança de mentalidade em curso, tal como se viu reconstituído numa cena em “Tout va
bien” (1972) de Jean-Luc Godard, que evocava o delírio persecutório daquele tempo de relações de produção conturbadas entre
proprietários e operários.
Numa atmosfera de fusão entre liberdade de expressão ou reunião repostas e de anarquia de produção na fábrica ou na empresa, por
falhas de reenquadramento salarial e de horários mais compatíveis com a necessidade de funcionamento laboral. Tudo isso em regime
acelerado de automatização, então uma novidade com prática generalizada consolidada anteriormente nas sociedades de consumo,
nomeadamente em meados dos anos sessenta do século XX de tipo americano, britânico ou alemão.
O idealismo da solução provisória da co-gestão empresarial - com ou sem anuência dos sócios e accionistas - como forma de cumprir o
plano de produção corrente e de suprir algumas desigualdades na hierarquia interna e de competência e eficiência mais rentáveis para
todos, não obtivera a unanimidade entre os líderes sindicais da época dada a diferença de participação nos diversos grandezas, tipos e
escalas de empresa e fábricas, mescladas pelos interesses privados feitos públicos ou vice-versa o mais das vezes. E o movimento
estudantil de então desgastado pela continuada contestação a
costumes e hábitos ou rotinas demasiado tradicionalistas e desactualizados em relação às prioridades do “stress” cada vez mais
competitivo da sociedade de consumo dominante progressivamente desde uma década atrás com o início da era espacial e de
miniaturização instrumental. Sociedade essa impregnada de necessidades novas para a renovação e simplificação da eficiência do
sector público, que não contribuiu para o projecto económico consolidado e alternativo ao autoritarismo crescente de um estado
democrático em crise, cuja função repressiva anterior tinha sido ultrapassada nas suas funções no sector educativo das novas
gerações da sociedade particularmente francesa dessa altura. Provocando esse contexto social o desabar de um modelo social, que se
havia preparado para o ritmo de vida trepidante e para o emprego temporário; com o sistema universitário, porém, moldado ainda
apenas na reactualização periódica e burocrática da reforma laica, outrora feita por Jules Ferry (1832-1893).
Entretanto, através do conselho económico e social em 1968, como instituição já existente naquela sociedade francesa afeita ao
espectáculo de rua e de exposição inabitual de lazeres (como fetichismo constante de um mercantilismo cosmopolita), almejou-se entre grupos sociais rivais e mesmo antagónicos - uma ideia de concertação conjuntural. Dado o perigo de involução produtiva e de
bloqueio dos circuitos financeiros mais vitais de sobrevivência colectiva: para maior atenção à necessária promoção nas carreiras
profissionais dos envolvidos, sobretudo os mais prejudicados pela situação anterior; e, também, para a reforma de estruturas
existentes, na tentativa pioneira de não se perder o contacto com os líderes sindicais mais sensíveis
à negociação salarial. Quando, por essa época, na fábrica Renault-Billancourt a massa dos trabalhadores queria, antes de mais, ajustar
contas em atraso pela actualização aprofundada dos salários (1).
Sintetizando o núcleo desta questão social, de magnitude antes impensada na história do sindicalismo mundial, desde o século XIX na
Europa, Celso Furtado em “Os ares do mundo” recorda o evento com parcimónia fleugmática.
Visto ter sido um convidado do país de asilo académico e a sua posição ética ser por isso algo vulnerável em relação à eventual
ingerência nos acontecimentos académicos. Evitando ele, por isso, retroactivamente na sua memória preservada desse tempo vivido, a
posição do professor agitador e especialista encartado em subversão institucional ou em planeamento de incidentes administrativos de
apelo controlado, como no labéu dos vinhos de marca que davam à França um prestígio culinário na restauração alimentar dos turistas
de emoções fortes, nesse tempo mais de curiosidade do que de participação: “As barricadas foram enfrentadas com mangueiras de
bombeiros e bastonadas, como se se tratasse de um conflito familiar em que um pai intolerante tivesse sua autoridade posta em
cheque” (2).
No entanto as ideias de Taylor, em 1911, sobre o estudo dos gestos e das pausas nos tempos para aumentar a produtividade em
abono da melhoria financeira na troca de dinheiro para o operário contabilizando o seu esforço quer à hora como à peça, constituiu
para a América dos emigrantes e da mecanização uma escola de novos hábitos na fábrica. Em Maio de 1968, a renovação procedeu-se
pela quebra da proibição anterior dos próprios operários através do sindicato poderem participar na “análise das suas próprias
condições de trabalho” na empresa (3), coisa que segundo a crítica política de Castoriadis já tinha começado por acontecer em Itália
antes de Maio de 1968.
De resto, um universo de pesadelo é surpreendentemente revisitado em “A classe operária vai para o paraíso” (La classe operaia va in
paradiso, 1972) de Elio Petri, significativamente Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1972, sublinhando o desespero de um
operário brutamontes e um pouco estúpido, interpretado por Gian-Maria Volontè, que perde um dedo num acidente de trabalho na
cadeia maquínica da fábrica. Na qual porém labora a automatização mais moderna e simultaneamente o barulho rotineiro mais antihigiénico e irracional, sem condições de convívio, repouso e alimentação condigna, sendo aquele despedido por ter infringido as regras
de boa conduta, maneiras adequadas à colaboração hierárquica vigente. E sem intervenção externa do sindicalismo perturbador das
relações entre o patronato tecnocrático e humano e os trabalhadores submissos e agradecidos pelas obras sociais concedidas por
caridade e anestesia social.
O “novo ciclo na evolução social da França”, como Celso Furtado recordou, deu-se com os acordos de Grenelle impedindo a rotura da
fractura da sociedade e o “filme surrealista” acabou então com o anfiteatro universitário já quase vazio por cansaço da plateia jovem
fora do seu curso habitual e com a matéria disciplinar desprogramada para outro lado. Wilhelm Reich em 1929, aquando da crise
financeira mundial e, já depois em 1934, após a dissolução do parlamentarismo na Alemanha por um movimento de massas - apoiado
também em desempregados, desmobilizados e desesperados, guiados por archotes conduzidos por candidatos a incendiários -,
reflectira sobre a atracção dos corpos humanos em esforço físico e mental, fora do comum e em época de tumulto generalizado dos
últimos tempos de Weimar, de que “A quem pertence o mundo?” (Kuhle Wamp, 1932) de Slatan Dudow, fora o epitáfio como filme
social analisando o
Impacte do desemprego, do subemprego e do emprego no ciclo da crise de contracção e expansão mercantil e a luta pela carestia de
vida numa Berlim caótica.
Apelando Wilhelm Reich, como terapeuta social, a uma crítica à então psicologia clássica, nomeadamente reexaminando os impasses
da tradição terapêutica germânica de inserção na ordem estabelecida do trabalho. Moldado ainda nos cânones de desigualdade de
género e idade oriundos do século XIX e no quadro corporativo, também, porém, crescentemente dominante. Dizia Wilhelm Reich em
“Materialismo dialéctico e psicanálise” no capítulo “A teoria psicanalítica das pulsões”, num instante de lucidez no meio do holofote
iluminando as trevas do conflito civil da sociedade ritualista, que se impunha a olhos vistos na sua disciplina, ainda contudo não
degenerada de imediato: “Por adaptação à realidade entende-se simplesmente a adaptação à sociedade, o que na pedagogia como na
terapêutica das nevroses, constitui inegavelmente uma formulação conservadora. Concretamente: o princípio da realidade na época
capitalista impõe ao proletário uma extrema limitação das suas necessidades, não sem invocar para este fim as obrigações religiosas
de humildade e de modéstia”.
Não foi de resto para estranhar que uma recitação fílmica, tal como a veríamos depois em “Os Mistérios do Organismo” (1972) de
Dusan Makavejev, incendiasse os corações rarefeitos de generosidade saudosista “a posteriori”, quanto às teorias do orgónio
improvisadas com a duplicidade da Fundação Ford nos anos cinquenta de “maccarthismo” nos E.U.A., aonde Wilhelm Reich acabaria
por se tornar no reverso de si próprio. Tendo em conta o inquérito sério, que havia sido o relatório sobre a sexualidade da condição
feminina americana, feito por uma equipa de cientistas liderada pelo Dr. Kinsey, que mereceria uma década depois a improvisação
cénica meritória, numa sociedade mercantil doente de erotomania em “O relatório Chapman” (The Chapman Report, 1962) de George
Cukor, que em factura clássica enunciara a denúncia da desigualdade de géneros, no quadro de uma sociedade democrática que
herdaria a tradição romana dos patrícios e das etruscas após o banquete.
Não é que ocorra a parcimónia com que se apresentou “A Sexta Parte do Mundo” (1926) de Dziga Vertov, um imenso fresco a preto e
branco que recorria pela primeira vez à junção do ocidente com o oriente. No quadro de uma sociedade com vários tipos de formações
sociais na era da sua industrialização acelerada, reflectindo um desafio territorial de libertação das forças produtivas, com o optimismo
que restava após a tempestade da inaudita revolução em Petrogrado. Num óbvio desfazamento com o que decorria na Europa
civilizada de então, onde a libertação da mulher estava, no entanto, também - mas por outros motivos -, na ordem do dia: burguesas e
trabalhadoras tinham assim o direito, tal como as pioneiras aristocratas do estilo “Isadora” (1968) de Karel Reizs, de combater a
prevalência do autoritarismo masculino: tanto quanto fosse possível, até como dançarina amante do poeta Essenine; numa Rússia
Soviética esfomeada e paralizada por um contexto de invernos atrozes agudizando a intervenção em abono da guerra civil; e sem
fontes de energia ainda por explorar, condignas com a sua imensidão comunicacional por preencher, igualmente ainda com uma
política económica de construção de barragens e de vias de caminhos de ferro.
O professor fascinado pela jovem dançarina e cantora, numa mistura de indignidade masculina e de altivez feminina, remeteu-nos, em
“O Anjo Azul” (Die Blau Angel, 1930) de Joseph von Sternberg, para o quadro sintomático de crise social num contexto de alienação.
Anunciando-se, por essa via, a necessidade da reforma das instituições para a igualdade de géneros e de trabalho assalariado na
sociedade de consumo que dilui o privado no público. No entanto, seria mais justo o retrato que se deu à jovem britânica, em conflito de
mutismo com os pais na sua incompreensão recíproca geracional, em “Family Life” (1972) de Kenneth Loach, em que a anestesia
social provocada pela programação da vida juvenil desde o lar de origem, havia entretanto produzido uma tendência para a desinserção
social da juventude desorientada com a puberdade precoce. E para o refúgio em si próprio, tendo em conta o desafio brutal que a vida
civil fora do casulo familiar constituía para a sobrevivência em dignidade assumida, sem recorrer à prostituição encoberta nem ao
arrivismo empresarial, através da troca da beleza pessoal por promoção automática sem qualificação outra.
Havia bairros operários, nos arredores de Paris, em que os seus locatários viviam às escuras, por lhes ter sido cortada a luz eléctrica
por falta de pagamento anterior. Era natural, assim, que como sindicalizados alguns deles lutassem por actualizações salariais
compatíveis com o aumento do custo de vida, antes da crise de Maio de 1968 se ter desenvolvido. Embora por outros motivos
exteriores à condição daquela classe social, que já não era exactamente da mesma geração da de antes da II Guerra Mundial, como a
dos seus companheiros alemães esfomeados e explorados.
No entanto, uma socióloga diagnosticou o problema do alojamento dos estudantes, que de resto estivera na origem da crise de Maio de
1968 em Nanterre, mas ainda em 1967, cerca de mais de um ano antes, nos arredores de Paris; e, em condições tais de separação de
sexos e visita conjunta regulada em excesso de limitação de horário, em que a mistura com estudantes de proveniência mais
conservadora havia, por isso, radicalizado a aspiração contrária daqueles dos seus colegas mais sensíveis - por motivo óbvio de
miscigenação escolar e confraternização provinciana - aos problemas de maior e melhor igualdade de oportunidades no terreno
universitário, como laboratório de uma sociedade execrável como futuro sombrio quanto ao emprego e prazer de exercer o diploma final
no quadro competitivo e sem cooperação possível depois: “Entre estes problemas, o do alojamento coloca-se de forma imperiosa.
Insere-se no problema geral do alojamento de gente só com recursos modestos, mas revestindo-se de uma importância especialmente
particular para o jovem intelectual obrigado a passar em casa infinitamente mais tempo do que aquele que vai para o escritório ou para
a fábrica” (4).
Um estudante alemão, reportando a origem da crise mundial da educação universitária dessa época, no seu então considerado salto
qualitativo face à novidade da automação crescente da industrialização acelerada dessa mesma altura, levou à busca de autonomia
democrática no espaço universitário de pesquisa social sobre o imediato futuro da produção, distribuição e consumo.
Reforçando-se uma crítica de controle, baseado no autoritarismo do anterior direito doméstico (5), ainda em 1965. Ano esse, também,
do salto qualitativo do progresso tecnológico na Alemanha; e do início, algures no mundo, dos bombardeamentos com desfolhantes
químicos no Vietname, na zona dita desmilitarizada.
NOTAS:
(1) Adrien Dansette, “25-27 Mai, rue de Grenelle: la négociation”, Miroir
de l’Histoire n. T276, in “Mai 68: un printemps explosif”, Paris 1973, págs.
102 a 108.
(2) Op.. cit., Paz e Terra (2ª edição) São Paulo - Rio de Janeiro 1992
(1991), pág. 165 in “A Revolução Branca”.
(3) Renaud Sainsaulieu, “Sociologie de l’entreprise: Organisation, culture
et développement”, Collection Amphitéâtre n.15, Presses de Sciences Po et
Dalloz, Paris 1997, págs. 58 e 59 in “L’organisation scientifique et bureaucratiqueD: Critique du modèle rationnel”.
(4) Catherine Valabrégue, “La condition étudiante”, Petite Bibliothèque Payot n.149, Éditions Payot, Paris 1970, pág. 87 in “6 - Le
logement”.
(5) Uwe Bergmann, “En guise d’introduction” in “La révolte des étudiants
allemands”, idées actuelles n.172 nrf-Gallimard, Paris 1968, pág. 32.
CXXIV 15 de janeiro de 2007
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CXXIV)
A Itália foi certamente o país que motivou Celso Furtado para a abertura à civilização europeia, mercê da sua incorporação na força expedicionária brasileira, e para a qual
acabou por optar ser mobilizado quase no final da guerra, em 1945 (embora desde 1944 a F.E.B. estivesse lá quando ocorreram as maiores e significativas perdas humanas,
pouco ventiladas ao longo das últimas décadas), para em quatro ou cinco meses contribuir para obrigar o nazi-fascismo a capitular em áreas desfalcadas pela chamada de
tropas desde o desembarque na Normandia. A permanência de Celso Furtado nesses cinco a seis meses na península transalpina nunca foi muito esclarecida
posteriormente, talvez também porque nos seus vinte e quatro a vinte e cinco anos, após um desastre de viação no exército de ligação com os norte-americanos, a guerra
tenha de certa e forma e por pudor acabado antes de ter começado para ele
Manuel Carvalheiro
A Itália foi certamente o país que motivou Celso Furtado para a abertura à civilização europeia, mercê da sua
incorporação na força expedicionária brasileira, e para a qual acabou por optar ser mobilizado quase no final da
guerra, em 1945 (embora desde 1944 a F.E.B. estivesse lá quando ocorreram as maiores e significativas perdas
humanas, pouco ventiladas ao longo das últimas décadas), para em quatro ou cinco meses contribuir para obrigar
o nazi-fascismo a capitular em áreas desfalcadas pela chamada de tropas desde o desembarque na Normandia.
A permanência de Celso Furtado nesses cinco a seis meses na península transalpina nunca foi muito esclarecida
posteriormente, talvez também porque nos seus vinte e quatro a vinte e cinco anos, após um desastre de viação
no exército de ligação com os norte-americanos, a guerra tenha de certa e forma e por pudor acabado antes de ter
começado para ele: caiu de uma ribanceira abaixo, bateu com a cabeça numa pedra e sobreviveu porém dentro
do milésimo da estatística de óbitos, ficando hospitalizado uma parte do tempo. É assim que a cena foi descrita,
sem um local mais preciso para o evento, talvez sob escrutínio militar antigo: “Um bombardeio destruiu uma estrada momentos antes
de passar o jipe em que ele se encontrava, no banco traseiro. O carro, sem capota, perdeu o controle e ele foi lançado em um barranco,
onde bateu com a cabeça em uma pedra. ‘O motorista se agarrou ao volante, enquanto eu, pego de surpresa, fui atirado para fora do
veículo, despenquei colina abaixo e perdi os sentidos’, lembrava. ‘Só voltei a mim no hospital de campanha norte-americano, onde
fiquei vários dias até me recuperar das fortes pancadas na cabeça e nas pernas.’” (1).
Provavelmente, já teria o hábito então de tomar notas e esse material impressivo de uma sociedade destruída pela guerra e pelo
fascismo, para além de uma ocupação nazi, uma intervenção libertadora militar norte-americana em 1944, através da ilha Sicília e do
Mezzagiorno - pontuada pela luta dos “partiggiani” na região de Emilia-Romana -, tenham-lhe dado o estímulo para escrever “in vivo” os
dez admiráveis contos, talhados na realidade imediata de um leito de hospital e no navio de regresso. E, posteriormente, editados em
livrinho por um editor que faliu com a escassa tiragem ainda em 1946, já no Brasil. Depois de haver feito uma pausa em Lisboa, durante
o repatriamento oriundo de Nápoles e provavelmente no navio de marinha de guerra brasileira “Duque de Caxias”. O primeiro conto,
“Dois cigarros” (2), descreve os últimos dias da guerra, perto de Modena, na Emilia-Romagna, escrito em meras cinco páginas, numa
economia narrativa que contudo evitava já a secura do pequeno relatório ou a redacção da crónica, está ainda condensado nele a
reconstrução quase imediata com fineza trabalhada e discreta do apelo a um evasivo tempo histórico de absurdo e de sem sentido
social, perante o indizível da crueldade e medo vividos por quantos descreve enquanto personagens confrontados perante a dureza do
ciclo da prova de fogo no nevoeiro e na acalmia súbita enganadora numa logística em que o planeamento se impõe. No entanto, de
redescoberta do contacto humano fraternal de jovens não guerreiros, mas enquanto meros parteiros da conciliação entre culturas
latinas, a brasileira e a italiana, parecendo desenrolar-se a sua escrita nos outros contos como quadros íntimos da vida quotidiana
durante o Renascimento, o Risorgimento e a passagem fantasmática para a crença do final da contenda, então ainda em curso. E em
que a música, oca e distante, das salvas das armas metralhadoras soam, como que com espanto e choque perante uma espécie de
banal simulação imprevista de uma caçada de patos selvagens, nos pântanos das planícies de arrozais, enquanto decorreria uma
insólita festa campestre de morteiros e foguetes em abono de algum santo feirense, como em “Libertação” (Paisà, 1946) de Roberto
Rossellini. Porventura, com um estilo híbrido involuntário dos autóctones da miséria descritos por Mario Tobino, Italo Calvino, Elio
Vittorini, Cesare Pavese e Vasco Pratolini, que foram certamente da mesma geração italiana de contistas do imediato.
Transubstanciado em dramas de montes e vales, porque era a mesma realidade visitada e vivida em despedida constante da vida e da
morte, miticamente por vezes acontecida no anonimato das forças civis combatentes em grupos dispersos nos montes Abruzzi ou na
chamada linha Gótica, que os soldados alemães guarneciam em torno de Bolonha até às últimas e perante a pressão crescente das
forças contrárias aliadas.
Naquele conto inaugural de Celso Furtado, ainda se sente que o jovem narrador estava já contaminado pela ideia de história universal,
que o acompanhou também enquanto escritor precocemente amadurecido. Mas já com um gosto literário apurado e um realismo
meditativo ou algo introspectivo, que denotava certamente o hábito de leitura. E já, então, mais consciente, em zénite retrospectivo, dos
enigmas do subconsciente criativo e da imaginação, esta sempre necessária; tanto mais que, depois, muito mais tarde, o autor nunca
largaria como posterior atributo principal da aplicação prática da sua compreensão do subdesenvolvimento no Nordeste brasileiro.
Fenómeno que havia reconhecido, também, nas paragens do seu itinerário, como militar auxiliar do corpo de oficiais de ligação em
Itália, durante o final da II Guerra Mundial e de capitulação das forças alemãs perante o avanço norte-americano. No entanto, em “A
Noite de São Lourenço” (La notte di San Lorenzo, 1982) dos irmãos Taviani, a compreensão da luta campesina face ao avanço norteamericano, também a dado instante fora reconhecida por uma família italiana em diáspora, por montes e vales ainda nas mãos da
opressão local que os havia manietado, oprimido e deportado ou fuzilado, porque a ponta de um cigarro fora, entretanto, encontrada
por um deles.
A importância dos cigarros para os militares, como simbologia da espera angustiosa face a um inimigo que se esconde na bruma, mas
que pode como eles ser seu irmão em idade e desejos, é no conto de Celso Furtado estigma para descorticar um fenómeno insólito de
roubo entre colegas de acantonamento. Quando um soldado alemão se introduz na casa particular, algures perto da estrada, onde o
narrador está abrigado a dormitar: e de quem, pé-ante-pé, aquele se aproxima e sonegaria os seus dois últimos cigarros, ainda perto da
cama do mal adormecido. Numa transe encalorada na penumbra da noite, em que se antevê a temática mexicana de “Les Orgueilleux”
(1952) de Marc Allégret, sobre o tema do médico que combate uma epidemia e é vencido por esta, contaminado que também acabaria
por ficar. Quando depois, lá fora, perto de um poço, vai o mesmo alemão fumar os cigarros, sem se dar conta de que o vulto que por ele
passara não era o de um colega abusivo mas o de um pleno desconhecido e adversário irredutível no contexto da época, porém
repensando o brasileiro estremunhado que se trata de um colega de armas cuja sombra num ápice se afastou sem o assustar,
adormecendo por isso de novo, para só vir a saber parte da verdade quando tempos depois acorda e descobre que se tratava de um
alemão que se suicidara. Antes, escorraçado, na floresta pelos seus próprios companheiros em debandada fratricida, perante a derrota
militar iminente e a fragmentação em bandos deserdados, como consequência da desagregação belicista. Capazes, porém, como tal
ainda de poderem ser nocivos, pelo fanatismo do desespero tanto dos visados como dos vencedores. Morreriam cerca de quatrocentos
e cinquenta soldados, sargentos e sub-oficiais brasileiros entre 1944 e 1945 em Itália, conforme uma lista intitulada curiosamente,
fazendo eco ao conto de Celso Furtado, “...e o cobra fumou”.
Mas, um documento de 1973, esclarece-nos melhor a fase em que provavelmente se insere o conto referido de Celso Furtado escrito e
revivido cristalinamente em 1945: “A quarta fase, com o inimigo já batido e em desabalada fuga, deu-se ao Sul do rio Pó”. Mais adiante,
é ainda esclarecido: “Combateu-se durante toda a noite de 27/28 Abril”. Depois de um curto impasse em que a negociação é proposta
arcaicamente: “Amanhecia o dia 30 Abril, quando surgiu o grosso da Divisão e remanescentes das 90ª Divisão Panzer Granadier e
Bersaglieri Itália, ao comando do General Otto Fretter Pico, acompanhado de 31 oficiais de seu Estado-Maior”. Finalmente, as coisas
são ainda um pouco mais complicadas pelo peso das circunstâncias: “A perseguição e limpeza do vale do rio Pó foram aceleradas. A
30 Abril, foi ocupada a região da Alexandria e feita junção com a 92ª Divisão do Exército Norte-Americano”. Entretanto, a F.E.B.
consegue a iniciativa militar no seu quinhão de território: “A 1º Maio, após ultrapassar a cidade de Turim, outra junção é realizada com
tropas francesas em Susa”. Concluindo: “Daí para frente, tivemos os trabalhos de ocupação, até 3 de Junho de 1945, quando a tropa
se deslocou para o sul de Itália, onde aguardaria seu regresso ao Brasil”, onde muito depois chegaria a 22 de Agosto (3). O absurdo do
conto de Celso Furtado, refere-se ao facto do narrador ter tido a hipótese de ser - como brasileiro - eliminado fisicamente durante o
sono por um “tedesco”: expressão coloquial que o então jovem escritor usou na gíria romana, no seu próprio texto efabulado como
referência auto-biográfica; mas que lhe poderia ter sido contada no local, por um compatriota seu na base e sobre outras ocorrências
que transitariam de boca a boca entre os jovens mobilizados sul-americanos.
Certamente, que o ambiente mais próximo desse universo irrequieto e de sinais contrários de amor ou ódio, é o da adaptação
cinematográfica das peripécias mais horríveis das banalidades da guerra segundo Curzio Malaparte, de outro modo presumidamente
não autorizada de divulgação por qualquer estado-maior da época, tal como em “A Pele” (La Pelle, 1981) de Liliana Cavani, cuja
realidade confusa de sentimentos e de disciplina estava em movimento acelerado entre ordens desconexas para destruição,
solidariedade e esperança.
É sintomático, assim, que tenha sido o modelo de desenvolvimento para a Sicília, um dos constituintes da teoria do desenvolvimento
para o Nordeste em 1959, quando o presidente Kubitscheck ordenou ao coronel Ramagem o relatório que autorizaria a posterior
“Operação Nordeste”, que o próprio Celso Furtado recordou em 1988 aquando da publicação de “A Fantasia Desfeita” (4). Conduzindo
esse acto importante à criação depois da instituição chamada SUDENE, de coordenação entre nove estados quanto às verbas a serem
destinadas pelo governo central ao problema - não já apenas da seca mas do reforço industrial e alimentar - dessa imensa área quase
do tamanho do Sahara africano. Stefan Robock, sociólogo à época a trabalhar para as Nações Unidas, escreveria depois que o
Nordeste brasileiro era “um caldeirão prestes a rebentar” (5), embora esse estudo só fosse muito depois publicado em equipa em 1963.
NOTAS:
(1) “Celso Furtado”, Agência Carta Maior - I volume, Leituras cotidianas n.102, 23 de novembro de 2004.
(2) Celso Furtado, “Contos da Vida Expedicionária”, in “Obra Autobiográfica”, Tomo 1, Paz e Terra, Rio de Janeiro - São Paulo 1997,
págs. 21 a 27 in “Dois cigarros”.
(3) Manoel Soriano Neto, “A atuação da FEB na Itália”, Centro Documentação do
Exército, Brasil 1973.
(4) Op. Cit., Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro - São Paulo, 1989, págs. 36 e 40 in “Terceira Parte - A Operação Nordeste .
Prolegômenos”.
(5) Tânia Bacelar de Araújo, “Revisitando a questão regional”, in Cadernos do
Desenvolvimento, Ano 1 n.1, BNDES, Rio de Janeiro 2006, pág. 62.
CXXV
22 de janeiro de 2007
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
Manuel Carvalheiro
Certamente, que enquanto máxima da interpretação sagrada da família em formação num local inabitado, um
filme mexicano como “La Red” (1953) de Emilio Fernandez, no espaço isolado da praia e do mar com três seres
humanos numa pausa de trabalho – uma bela jovem, estimulando pela sua atracção natural de lavadeira, com
movimentos lentos em ritmo semelhante ao de vagas marinhas, enquanto a maré vai mudando e dois homens
rivalizam até à morte para obter a prioridade da sua atenção –, representaria a disputa contraditória entre a
existência sensual de um corpo jovem, embalado no quotidiano monótono da faina da rede de pesca e a reflexão
sobre a utilidade da vida miserável mas salutar, pela omnipresença do oceano com silêncios orquestrados e
dominantes. Fora, também, no quadro comercial artístico de então, como obra criativa apelando à força da
natureza, o reflexo da luta pela sobrevivência dos subdesenvolvidos pescadores do Golfo do México; utilizando-se
como instrumento de trabalho a rede de pesca numa faina, que apenas indiciava a industrialização do sector.
Enquanto apêndice do abastecimento em alimentos do mercado interno, porém com falta de comunicação entre produtores e consumo;
e, onde a lei da oferta e da procura sofria o chamado gargalo, que bloqueava o crescimento apesar da existência de economias de
escala viradas para a exportação.
“Em outras palavras, para absorver o excedente de população numa região escassa de terras, exige-se capital em quantidades
crescentes” (1), tese esta que Celso Furtado já também havia formulado aquando da réplica, em 1952, em estudo de análise às seis
conferências que Ragnard Nurkse havia feito no Brasil e que haviam provocado uma certa polémica. Devido às características de
desenvolvimento exportado teoricamente, que na altura vigorava inclusive entre os sectores mais credíveis dos economistas
interessados no desenvolvimento industrial da América Latina, mas sob o condicionado padrão aconselhador dos Estados Unidos e da
sua experiência interna. Também, então, mais moldada nos documentos das Nações Unidas, inspirados em apreciações de
Kindleberger e Arthur Lewis nomeadamente, que se baseava na lógica de John Stuart Mill. “O crescimento demográfico de uma região
com escassez de terras terá de ser absorvido fora da agricultura, e exige paralelamente um aumento de rendimento das terras
utilizadas para atender ao aumento de consumo de alimentos”, dizia ainda Celso Furtado na mesma série de conferências no Banco
Nacional para o Desenvolvimento Económico, o então BNDE, em 1957, no Rio de Janeiro, pouco antes de seguir para Cambridge, em
Inglaterra. Não sem fazer uma escala no México, em que a dominante da sua anterior actividade na CEPAL lhe impunha uma estratégia
de industrialização planeada. Estratégia económica e financeira essa, que vigorara como ideia progressiva possível de aplicação, por
experiência também anterior e adoptada caso a caso nos países da América Latina durante os anos cinquenta.
“Quando se trata de uma região pobre, com baixíssimo nível de renda por habitante, a questão assume aspectos de extrema gravidade.
O problema é o mesmo da Índia, com a diferença de que a população desse país cresce em proporção que corresponde à metade do
crescimento da do Nordeste brasileiro”, dizia ainda Celso Furtado numa das suas conferências no BNDE em 1957. A Índia era, de facto,
dez anos depois da sua independência, o modelo de democracia económica para os países em vias de desenvolvimento; e, muitas
coisas em comum tinha com o Nordeste brasileiro, assim como o Brasil com o Haiti: as fomes, secas, excedente ilimitado e mobilidade
de mão-de-obra, além de escassez de alimentos, para uma população que crescia e não obedecia a planos familiares; porque, ou estes
ainda não existiam, ou apenas estavam divulgados em economias desenvolvidas e neutrais, sem necessidade de reconstrução após o
final da II Guerra Mundial, como a Suécia que em índices de ajuda à maternidade se encontrava desde 1947 não só à cabeça dos
países nórdicos, como a Noruega, a Dinamarca e a Finlândia, mas em todo o mundo como farol da assistência social à família.
“Celso Furtado conta ainda deliciosas histórias políticas sobre a sua permanência à frente da Sudene em governos tão distintos como
os de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. ‘Nunca tinha visto o Jânio e o achava irresponsável, imaturo para presidir o
país. Tanto assim que fechei minha gaveta e fui para a Índia”. Teria ido em turismo visitar o Taj Mahal, como contou no seu livro “A
Fantasia Desfeita” (2). De resto, uma alegoria como “Savages” (1972) de James Ivory, fazia dizer num palacete instalado em New
Jersey a um benfeitor, que havia provavelmente enriquecido com o comércio internacional no oriente colonial antes da independência
da Índia em 1947, a respeito da insubordinação de uma jovem “hippie” que criticava o capitalismo selvagem da civilização
contemporânea (contemporânea da Guerra do Vietname nessa altura), para não criticar aqueles que lhe permitiam a ela o acesso
desfrutador aos seus bens comuns e maneiras de viver acolhedoras (“não diga que isto é uma selva quando aqui somos a floresta que
a acolheu”, dizia o cavalheiro da indústria Nuse na recepção àquele grupo ou seita jovem de teatro ambulante), que eram um luxo de
que ela partilhava sem se sentir por isso desumanizada: numa mansão de gente acolhedora de fantasias teatrais, com tendências
aristocráticas de “grande sociedade” e onde se augurava um espaço de meditação democrática, tal como talvez a havia concebido
Alexis de Toqueville.
“Quando voltei, o José Aparecido de Oliveira, chefe de gabinete do Jânio, disse que o presidente queria me ver o mais rapidamente
possível”. Trata-se do mesmo que depois como diplomata em Lisboa nos anos oitenta daria a ideia da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa constituída por Portugal, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, S.Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Timor-Leste,
com assento nas Nações Unidas como entidade observadora sem direito a voto. “Mais tarde, me contou o que Jânio lhe havia
perguntado: ‘E esse Celso Furtado?’ respondeu o Aparecido: ‘Ah, esse aí, você não vai ter a colaboração dele muito facilmente não; ele
tem convite do mundo inteiro, está na Índia agora’. Parece que o Jânio ficou enciumado e mandou me chamar.” (3).
Uma pesquisa recente em 2006, revelou novos detalhes sobre um processo de intenção carregado pela conjuntura da época no
Nordeste brasileiro, entre 1959 e 1964, isto é, abarcando o tempo em que Celso Furtado coordenou a Sudene, atravessando três
presidências, a de Juscelino Kubitscheck (1956-1960), a de Jânio Quadros (1961 até Agosto) e a de João Goulart (desde Setembro de
1961 a Março de 1964, sem acabar o mandato em 1965 por via de um golpe militar e constitucional): “Em Outubro de 1961 o
economista e diplomata norte-americano Merwin Bohan desembarcou no Recife com uma missão do presidente dos Estados Unidos,
John Kennedy. Deveria elaborar um plano de desenvolvimento para o Nordeste”. Isto deve-se ao encontro oficial entre Celso Furtado e
o presidente Kennedy a 14 de Julho de 1961. “Comandando uma equipe de três dezenas de especialistas em áreas diversas, Bohan
concluiu o trabalho em cerca de quatro meses. Em Fevereiro de 1962 o relatório - intitulado Northeast Brazil Survey
Team Report, “Missão de Estudos sobre o Nordeste do Brasil” - chegou às mãos de Kennedy. Pela primeira vez o governo dos EUA
preparava um plano específico de desenvolvimento para uma região sub-nacional. A partir de então o Nordeste tornou-se área
prioritária no mais ambicioso programa dos EUA para a América Latina, em toda a história: a Aliança para o Progresso, que pretendia
num prazo de 10 anos e com um investimento de US$ 20 bilhões elevar o padrão de vida nos países latino-americanos a índices
comparáveis aos do mundo desenvolvido”.
É sabido que Celso Furtado em 1963 abandonou a sua função de ministro do Planeamento e dedicou-se a partir daí exclusivamente à
Sudene com sede em Recife, no estado de Pernambuco, sem conseguir ser professor universitário no seu próprio país mesmo durante
esta fase de liberdade consentida e exasperada. Referindo-se a 2006 : “O programa faz neste mês de Agosto exactos 45 anos, mas
sem nenhuma celebração, porque fracassou” (4). A única coisa que restou de útil, foi o facto de Sargent Shriver ter sido depois
embaixador norte-americano em Paris e por essa via Celso Furtado ter conseguido ensinar temporariamente nos E.U.A. a partir de
1972, quando o seu país atravessava o momento mais difícil com a presidência de Garrastazu Medici atentatória dos direitos humanos
e civis.
Por essa altura, na Colômbia, Carlos Alvarez iniciava um percurso documental recorrendo ao aspecto didáctico e panfletário dado pelos
próprios acontecimentos, de que o dossier audiovisual “Que ès la democracia ?” (1971) nos dava um esboço a preto e branco no
quadro negro da história convulsa e maniqueísta dos herdeiros do desenvolvimento periférico. Quadro negro visto esse, como o mesmo
faria depois mais aperfeiçoadamente na Alemanha, com um menos prosélito “Los Hijos del Subdesarrollo” (1975), secando no entanto a
expressão deste meio de comunicação, por via do impacto fugaz das imagens de pedagogia para oprimidos camponeses quase
analfabetos. E, para quem, no contexto de então, democracia e eleições significavam, dominantemente, corrupção e fraude, atendendo
ao largo cadastro atentatório das liberdades cívicas, tolerado pela elite na altura como a também mais representativa da democracia
parlamentar convulsa, desde o final trágico de Gaetan na segunda metade dos anos quarenta em Bogotá. Mas, por exemplo, no quadro
da produção mercantil normal, Leopoldo Torre-Nilson como realizador argentino faria para as Nações Unidas “Once upon a tractor” (Era
uma vez um tractor, 1965), que em estrutura média enunciava a solução imediata com a cooperação voluntária de actores não latinoamericanos em abono de uma nova saga agrícola na base do remédio social da miséria do mundo e em particular do progresso da
América Latina. Certamente um estímulo que porém não passou do circuito universitário norte-americano.
“Há um traço de ser português que aqui, na Europa, nos escapa e apenas se apreende em contacto com a realidade brasileira.
Lembrei-me disto ao saber da morte do economista brasileiro Celso Furtado. É que eu aprendi muito sobre Portugal lendo a sua obra
clássica ‘A Formação Económica do Brasil’”, lembrou o economista Sarsfield Cabral em finais de 2004. E acrescentava na sua síntese
evocativa: “Aquilo que se ensina entre nós sobre o Brasil pouco vai além do ouro, que afluiu a Portugal no séc. XVIII mas rapidamente
se dissipou. Ora, por exemplo, Celso Furtado mostra como o cultivo do açúcar, iniciado pelos portugueses em terra brasileira logo no
séc. XVI, foi um empreendimento agrícola pioneiro nas Américas. Enquanto os espanhóis procuravam ouro e prata nas suas colónias
americanas, Portugal promovia a colonização agrícola do Brasil”. Essa fase elástica remete-nos para “A Última Ceia” (La última cena,
1976) de Tomàs Gutierrez Alea, que se referiu à reconstituição de uma revolta negra nas Caraíbas, algures no final do século XVIII,
durante a Páscoa numa plantação de açúcar e à caça feita aos seus revoltosos negros, um por um; mas, excepto o último, que
consegue iludir os perseguidores e salvar-se, atingindo a liberdade sem grilhetas. Sarsfield Cabral remete os portugueses seus
contemporâneos para uma lacuna imperdoável: a edição adaptada, na ortografia corrente em Portugal, do clássico “Formação
Económica do Brasil” de Celso Furtado, escrito em 1957/8 em Cambridge e publicado em 1959. Quanto à colonização agrícola,
Sarsfield Cabral comentou ainda, com isenção histórica, o seguinte: “Esta teve, também, o seu lado negativo: a importação de escravos
de África, que então começou. Um triste tráfico, em que os portugueses estiveram muito envolvidos e que iria ser determinante para a
cultura do algodão nos Estados Unidos”. Parecia ainda tabu falar-se em contracto, pleonasmo africano para significar o trabalho forçado
ainda nos anos cinquenta em Angola, o que motivaria um inquérito local na primeira metade dessa década, feito por alguém como Basil
Davidson em “Na African awakening” (Um acordar africano) e que serviu de alerta a tempo quanto ao que se iria passar menos de cinco
a seis anos depois.
E, Sarsfield Cabral concluía, de sua justiça, a sua avaliação da obra e da figura de Celso Furtado, no contexto do seu falecimento em
2004: “E se o conhecimento da nossa identidade histórica não dispensa o que se passou no Brasil, o mesmo acontece com Espanha,
cuja história largamente ignoramos. Mas como entender a revolução de 1640 sem saber o que se passou então na Catalunha? Ou
perceber o nosso movimento liberal da primeira metade do séc. XIX sem conhecer a Constituição de Cádis de 1812? Ou, ainda,
analisar o salazarismo sem olhar para o franquismo?” (5).
O puritanismo como antípoda da teoria da conspiração de exilados em Vera Cruz, em “Virgen de la lujuria” (2002) de Arturo Ripstein,
onde o epicentro dos contactos é um café nocturno cujo proprietário é amigo da França: relata-se o curto período de desorientação
após o final da guerra civil em Espanha e os primórdios da ocupação alemã da França, em que exilados e perseguidores do novo
regime se corroem mutuamente em território mexicano neutro; porém, sem se darem conta que já não são do tempo da colonização e
que não podem dar ordens em terra alheia, sem antes adquirirem a nova nacionalidade; o momento de verdade vem, quando um
fotógrafo exibe paisagens típicas da ruralidade do deserto mexicano, com a tradição dos peões desmunidos de propriedade da terra e
contrastando com a realidade de cactos, que contudo lhes fornece a água para a sua travessia. Em “Del rosa al amarillo” (1963) de
Manuel Summers, os amores cruzados e impossíveis entre dois adolescentes e dois velhotes, servem de retrato possível sobre a
atmosfera de interditos vivenciais na Espanha dessa época. E por truncagem reflexiva de uma cena, onde um garoto faz a sua
redacção enquanto a mãe está ausente da sala doméstica, enquadram-nos o possível quanto à comunicação visual e o imediato de
umas férias, onde se incute o ideal guerreiro da luta pela vida como se de banda desenhada se tratasse a alternativa pedagógica aos
valores opressivos: da família de vigília ao subterfúgio juvenil da gaveta, onde se guardam os sonhos de evasão àquela realidade
truncada e dada à futura geração, que voltaria a conhecer a liberdade sem a coacção instante daquela época. Em contraste, a
transacção comercial de venda de automóveis de luxo em segunda mão, serviria de pretexto em “O Rolls-Royce Amarelo” (The Yellow
Rolls-Royce, 1964) de Anthony Asquith, para evocar a história europeia do século XX, em quatro episódios que nos remetiam para o
objecto de ferro-velho guardado numa garagem esquecida à espera de trespasse e restauro patrimonial. Quando tal veículo teria
servido para travessias de fronteiras, com problemas aduaneiros inultrapassáveis sem o recurso à habilidade e à convicção. Por vezes,
mesmo ao mercado negro e à pressão diplomática, face a um proteccionismo nacionalista então generalizado. E apenas tolerante para
com a iniciativa privada do caixeiro-viajante, quando o liberalismo económico pressupunha corrupção, falsificação de documentos e
ardis típicos do contrabando também generalizado, entre concepções monárquicas absolutistas e republicanismo esvaziado da sua
orgânica democrática.
Desde o final da guerra de Espanha, de que “Soldados” (1978) de Alfonso Ungria reconstituiu o trânsito de fuga de três milicianos,
antigos civis pertencendo a extractos sociais diferentes, que as barreiras geográficas entre os países viriam a constituir
simultaneamente uma protecção de sobrevivência populacional em migração forçada, como reflexo de uma economia de montanha
voltada depois para o turismo e o desenvolvimento de zonas anteriormente de economia estagnada na Europa de entre as duas
grandes guerras, com a transição para uma economia de força de trabalho deslocada e de retorno mais qualificado devido à
desigualdade de padrões de vida.
NOTAS:
(1) “Dossiê Celso Furtado – Perspectivas da Economia Brasileira” (1957/8), in Cadernos do Desenvolvimento, ano 1 n.2, Dezembro,
BNDES, Rio de Janeiro 2006, pág. 213 in “7 – O problema das disparidades regionais”.
(2) Op. Cit, Paz e Terra (3ª edição), Rio de Janeiro – São Paulo 1989, pág. 100 in “Auto-sucessão na SUDENE”.
(3) Mair Pena Neto, “Celso Furtado: a seca tem solução” in Senadores na Mídia 12/11/1998.
(4) Vandeck Santiago, “O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste”, Mistura Digital Sexta-feira, Setembro 15, 2006.
(5) Sarsfield Cabral, “Tentar Perceber”, História, Diário de Notícias, 25 de Novembro, Lisboa 2004.
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual (CXXVI)
(29 jan. 2007)
Em “Caliche Sangriento” (1969) de Helvio Soto, a confrontação entre países sul-americanos da zona andina por meras questões nacionais de fronteiras no deserto de
Atacama, mal desenhadas no tempo da guerra do Pacífico com o Peru e a Bolívia entre 1879 e 1883, havia motivado uma engrenagem parlamentar camuflada e absolutista
oriunda do poder paralelo dominante no tempo da colonização. Estrutura essa que fizera com que as elites militares do Chile permanecessem desde então, embora num
quadro democrático quase ininterrupto, como o fiel da balança nas questões de justiça de repartição de propriedade, dado o caso da influência dominante da oligarquia
chilena na formação do seu país.
Manuel Carvalheiro
Nos anos cinquenta do século XX, a sociedade norte-americana tinha obtido uma taxa de crescimento respeitável,
devido em especial ao facto de o seu espaço territorial, apesar de conter tensões incomensuráveis, ter apesar de
tudo sido objecto de um progresso económico suficientemente estável para se falar a partir daí numa sociedade
de abundância. Isto é, para se retomar a pretérita expressão, preconizada antes pelo economista John Kenneth
Galbraith, que a propósito havia antes escrito um livro em que havia amadurecido a defesa do sistema capitalista
numa perspectiva mais social e no quadro de um liberalismo democrático, interligado no entanto à alternativa
mundial da economia planificada.
Sobre a desigualdade, Galbraith havia feito uma rápida retrospectiva a partir das ideias de David Ricardo – e da
sua teoria das vantagens comparativas da primeira metade do século XIX, cuja actualização pelos neo-clássicos
era oriunda da competição entre impérios coloniais na segunda metade do século XIX -, o pomo da discórdia
consentida quanto à apreciação histórica e económica da ideia de impossibilidade táctica de uma igualdade utópica e plena no
comércio internacional. Sobretudo, tendo em conta o desenvolvimento financeiro da economia de mercado em cima de estruturas
feudais como economias de escala ou no quadro de ditaduras oligárquicas como monopólios ou conglomerados empresariais. Tendo
em conta o passivo no passado entre ricos e pobres: sobretudo, com o despertar dos povos colonizados para a autonomia e para a
questão nacional, num quadro de integração primeiro e de auto-determinação sem acordo prévio depois, opondo e subestimando os
ciclos económicos à construção de uma sociedade de raiz. Passando por cima da fase, que havia durado três séculos, pelo menos, nos
países industrializados europeus.
Em “Caliche Sangriento” (1969) de Helvio Soto, a confrontação entre países sul-americanos da zona andina por meras questões
nacionais de fronteiras no deserto de Atacama, mal desenhadas no tempo da guerra do Pacífico com o Peru e a Bolívia entre 1879 e
1883, havia motivado uma engrenagem parlamentar camuflada e absolutista oriunda do poder paralelo dominante no tempo da
colonização. Estrutura essa que fizera com que as elites militares do Chile permanecessem desde então, embora num quadro
democrático quase ininterrupto, como o fiel da balança nas questões de justiça
de repartição de propriedade, dado o caso da influência dominante da oligarquia chilena na formação do seu país. Em 1978, decorrera
um incidente de fronteira no estreito de Beagle na Patagónia, entre o Chile e a Argentina, onde um lama nas pampas - devido à sua
configuração do pescoço e da cabeça em constante rotação para a direita e para a esquerda - era confundido à distância, e devido à
irregularidade do terreno, com um periscópio de trincheira; por parte da outra, em face na terra de ninguém, numa cena de “Mi mejor
enemigo/ Mi inimigo intimo” (2004) de Alex Bowen, revelando pelo absurdo do convívio impossível, numa zona descampada sem uma
linha divisória clara a marcar essa ilusória fronteira, a hipótese do desencadear de uma contenda entre adversários: na época, sem
outros valores mais produtivos para competirem entre eles, para além do brio nacionalista na máquina de guerra, encravada ou levada
à letra do manual para principiantes em escola da vida.
Noutro contexto, a partir da deslocação do centro de desenvolvimento da Inglaterra para a América do Norte desde a crise de 1929,
J.K.Galbraith havia por isso comentado em profundidade, em 1958, sobre a desigualdade potencial na sociedade de abundância, que
era a sua América de adopção e que no segundo mandato do presidente Eisenhower se extasiava perante o consumo de massas e o
endividamento controlado parcimoniosamente, com a plastificação ao serviço do progresso e do lixo aparentemente controlado na
cidadela, não fosse o trauma racial sublimado pela música por enquanto: “A igualdade exagerada conduz à uniformidade cultural e à
monotonia. Sem homens ricos, não haverá quem subsidie a educação e as artes” (1). Mas mais adiante, noutro passo da sua
compendiada reflexão – mais panorâmica do que sua propriamente -, Galbraith tranquilizava os cépticos quanto ao tendencial
conservador da implicação daquele pensamento: “Não convém exagerar os perigos culturais atribuíveis ao excesso de igualdade”.
Tinha havido um entendimento entre gerações, localmente espoliadas pelos grandes interesses económicos, que dividiam os seus
habitantes em extractos sociais apesar de tudo, em que o espírito democrático daquela sociedade era baseado: uma das narrativas
dramáticas mais sólidas sobre o ambiente de frágil classe média vivido numa pequena cidade norte-americana foi-nos transmitido em
“Picnic” (1955) de Joshua Logan, decorrido no dia 1 de Maio como festa aceite pela comunidade local; a felicidade aparente da sua
auto-satisfação não deixava de produzir um sentimento de nostalgia em relação à fase anterior de desenvolvimento económico; quando
a solidariedade mais empenhada vencera os anos de depressão e de desemprego pela estagnação - o que deixaria marcas, no
entanto, nas opções possíveis ainda uma geração depois, como se viu também em “Marty” (1955) de Delbert Mann, naquela sociedade
de abundância mal repartida, não só nas regiões como também inclusive numa megalópolis como Nova Iorque. Celso Furtado, em «Os
ares do mundo» (2), a propósito da sua estadia em 1964 aquando da reeleição do presidente Johnson, atribuiu equivalência entre a
“sociedade afluente” de Galbraith e a “grande sociedade” prometida pelo consenso controlado daquele atormentado presidente.
Mesmo as camadas mais favorecidas na Argentina aproveitavam essa menor desigualdade entre nações do norte e do sul do mesmo
continente americano, para uma abstinência no processo de enriquecimento, que lhes dava contudo a primazia em usufruírem no
quadro democrático de uma economia liberal, assente na desigualdade mais evidente por força das suas raízes oligárquicas e de
controle inadequado da distribuição de terras entre a sua população, para fazer uma pausa de reflexão quanto ao progresso que cabia
no crescimento económico insensato, com uma tácita convalescença, objecto de uma narrativa traumática em “Piel de Verano” (1961)
de Leopoldo Torre-Nilsson.
Em “Actéon” (1967) de Jorge Grau, uma densa trama envolve um pescador que abriga uma estrangeira em Espanha para depois se
envolver no mistério da sua presa, envolta nas malhas de uma falsa solidariedade. Perante a ignorância instituída na diferenciação
classista, fantasticamente parada no tempo do sonambulismo político e corporativo de uma ditadura turística, com falhas no aparelho
judicial que impelem à clássica tragédia grega na noite e no cinzento das almas penadas. País que se revia no refluxo cultural da
Grécia e do seu passado, que seria emoldurado por contraste em “A Viagem dos Comediantes” (O Thiassos, 1975) de Theo
Angelopoulos, embora como disso fora meta imponderável antes o ambiente talvez que o precedeu havia sido galvanizado pelo folclore
e pela geografia humana em “Zorba, o grego” (1963) de Michael Cacoyannis, sensibilizando preferencialmente em concorrência de
agências de viagens a insularidade no contexto europeu para o turismo, a arquitectura, a música e a dança.
Na Venezuela dos anos cinquenta do século XX de acesso ao petróleo, como fonte de energia mais barata para as necessidades
incomensuráveis dos E.U.A., na sua época de uma sociedade de abundância - e em que a palavra “marketing” aparecera pela primeira
vez no vocabulário dos caixeiros viajantes -, mas de controle externo do câmbio, os empréstimos feitos a esse país latino-americano
acabariam por enredá-lo numa espiral crescente de dívidas. Como foi, recentemente, assinalado como experiência fiscalizadora de um
contexto, outrora generalizado na América Latina, sempre que um país atingia a possibilidade de mudanças estruturais na distribuição
de riqueza, isto é, de alterações no dispêndio de subsídios públicos para um diversificado programa de desenvolvimento, tendo em
conta as carências da maioria da sua população afligindo a urbe sem fixação laboral nos locais de origem, devido a um súbito
incremento na produção e exportação fora de comum dos seus recursos naturais e mercê de possibilidades democráticas sucedendo a
um estrangulamento cívico das liberdades democráticas (3). Em “Mayami nuestro” (1981), um documentário de Carlos Oteyza, a elite
venezuelana mais privilegiada reexportava na época os petrodólares para umas férias demoradas na Flórida, entrando depois numa
descentralizada alienação cultural pelo complexo de culpa democrático do subdesenvolvimento e desindustrialização deixadas para
trás pelos vencidos da vida austera e vencedores da morte lenta.
Pensamento de Galbraith que independentemente das vantagens comparativas se terem pouco a pouco transformado mais em
vantagens competitivas do que em desvantagens cooperativas, no entanto, mesmo assim o distinguia pelo seu liberalismo político
contrário ao autoritarismo oligárquico imperante na sucessão do “New Deal” - mas de controle de preços centralizado como o fizera
durante a II Guerra Mundial durante a presidência de Roosevelt, sobretudo para o mercado interno -, do potencial autoritarismo
conservador no quadro económico do capitalismo desenvolvido que não era já o do seu paliativo de democratização federal com
primazia ao serviço público em relação aos instantes interesses privados asfixiantes de um modelo mais consensual nessa época, mas
o de Milton Friedman e de parte da escola de Chicago: com a teoria da “soberania do consumidor” de produtos de luxo, em desabono por vasos comunicantes - com os cortes implícitos à segurança social e ao bem-estar da sociedade democrática; numa contradição
infindável no contexto de então, como no da dita “cultura da satisfação” (4), que Galbraith delineou posteriormente em 1992, com uma
consciência crítica com retroactivos à década de presidências como as de Reagan e Bush, nomeadamente dos anos oitenta do século
XX.
Distinguindo-se a curiosidade pela gestão do seu próprio dinheiro, segundo a propalada política monetária do momento, que o cliente
de um dado banco tinha como assumido mistério de um especulativo optimismo da crença pública, para o qual os economistas dessa
época pouco fizeram para o esclarecer, afiançava então Galbraith; e que, segundo ele, o dito “monetarismo” (expressão diferente da
confusão comum que dela se faz com a “política monetária” de qualquer governo, seja ele qual for naquele quadro específico norteamericano em especial), quase havia levado nos anos oitenta do século XX a uma nova depressão económica como em 1929; já que,
no entender de Galbraith, para aquele monetarismo de moda, era como tal considerado o total de dinheiro em circulação, mas
firmemente controlado por uma dada política monetária de conjuntura e na assunção de que só era permitido fazer crescer por parte da
política monetária de então o total do dinheiro em circulação, desde apenas a fase em que a economia se expandisse, pelo que os
preços tinham de ser estáveis. Um filme como “Sexo, Mentiras e vídeo” (Sex, lies and videotape, 1988) de Steven Soderbergh, deu-nos
precisamente a ideia do jovem casal “yuppie” no contexto de especulação imobiliária e de arrivismo empresarial numa região antes
controversa como o sul dos Estados Unidos.
Para que, independentemente da sua própria força, pudesse a economia em geral portar-se bem, processo automático para a
sociedade da satisfação preconizada por Milton Friedman, no entender do mesmo Galbraith. Porém, infelizmente, entretanto com a
pressão da subida dos preços e mesmo vergando-se os sindicatos, a política financeira do excessivo controle da moeda em circulação,
afectaria também a solvência dos empregadores: o que acabaria por relegar para a sombra, na expressão do próprio Galbraith em
análise retroactiva em 1992, o efeito prático desse tipo de monetarismo e a quebra de confiança da inatingível sociedade espectáculo,
de contentamento e de conforto, com o seu corolário de massas em vias de consumo generalizado para sua satisfação, que afinal
apenas era endividamento cada vez maior por parte dos clientes dos bancos de crédito indiscriminadamente demagógico.
Mais tarde, “Crash” (1996), de David Cronenberg, remeteria essa jovem classe de negócios com avioneta à mão de semear, num
Canadá afeito a cumprir a legislação rodoviária no quadro dos melhores serviços hospitalares para acidentes, à crise de valores que
para ela constituiu a riqueza acumulada em tão rápido lapso de tempo económico. Uma narrativa suíça ancorada na realidade da
sociedade dos contentores, “Les Clandestins” (1997) de Nicolas Wadimoff e Denis Chominard, referiu a fuga dentro de um deles de seis
emigrantes, duas mulheres, dois homens e dois adolescentes de nacionalidades sortidas e reproduzindo o esquema de Pirandello num
navio rumo ao Canadá, que no entanto acaba por ter uma avaria no alto-mar, cinco dias depois de uma escala em Liverpool.
Curioso observar como em “Quatro casamentos e um funeral” (Four Weddings and a Funeral, 1994) de Mike Newell, a pluralidade de
sentimentos e situações de classe, nos remeteria para essa insatisfação crítica de uma sociedade que poderia viver acima das suas
posses bancárias desde que exportasse a guerra para a fronteira dos seus antigos domínios, mas que não poderia passar nunca sem
“O Tio da América” (Mon oncle d’Amérique, 1980) de Alain Resnais, extensão da solidariedade financeira perdida com o Império e com
a robustez dos investimentos recíprocos, mas de que restaria a biologia e a sociedade de pesquisa como aval da inovação e da
descoberta, de que a humanidade poderia vir a ser colonizada por ratos feitos homens por uma distracção recriativa de laboratório
talvez espacial. Um problema de dieta, de consumo alimentar racional, de exercício físico e de sentimentos controlados pelas enzimas
darão certamente resposta indirecta aos problemas civilizacionais vistos e revistos na perspectiva da célula familiar, hereditária e
clonável, antes do dinheiro o ser em moeda única europeia. Os choques nesse sistema eram então de outra natureza diferente da do
apogeu do “boom” financeiro de 1927-1928, não sendo portanto sintoma de uma crise de superprodução como a de 1929, mas de
alterações no sistema de crédito (5).
NOTAS:
(1) John Kenneth Galbraith, “ A Sociedade da Abundância”, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa 1963, pág. 67 in “VII – A
Desigualdade”.
(2) Op. Cit., Paz e Terra (2ª edição), Rio de Janeiro – São Paulo 1992 (1991), pág. 100 in “O Fastígio do Poder Americano”.
(3) Carlos Aguiar de Medeiros, “Celso Furtado e a economia política da abundância de divisas”, in “Celso Furtado e o Século XXI”
(orgs.), Editora Manole Lda., Rio de Janeiro 2007, pág.81.
(4) John Kenneth Galbraith, “The Culture of Contentment”, Houghton Mifflin Company, Boston, New York, London 1992, págs. 89 e 90
in “7 – The Economic Accomodation, I”.
(5) François Chesnais, “A Mundialização Financeira: Génese, custos e apostas”, Colecção Economia e Política n.42, Instituto Piaget,
Lisboa 1998 (1996), pág. 340 in “Mundialização Financeira e Vulnerabilidade Sistémica”.
5 de fevereiro de 2007
Celso Furtado e o síndroma cultural do desenvolvimento desigual
CXXVII
Manuel Carvalheiro
“Nicholas Nickelby” (1946) de Alberto Cavalcanti, reproduziu quase no final da reconstituição sombria do universo
de 1837, em Inglaterra, a perversidade do tio do protagonista. Agora, até compensada pela desforra do próprio
mordomo, que depois de uma vida de amargura ao serviço de tal ente doentio, lhe diz o que nele estava soterrado
de angústia pela forçada dedicação. Para além do tolerável, no quadro de uma sociedade cuja hierarquia
prestigiosa repousava no trespasse de títulos por via, finalmente, quase contabilística e o mais interesseira
possível, diante dos ascendentes cavaleiros da indústria. Essa adaptação feita do texto romanesco de Dickens,
quase também uma autobiografia disfarçada da sua própria juventude geracional. Mas projectada e depois distorcida no protagonista,
que o narrador situa na mesquinhez então dominante, para conseguir honestamente ascender na vida, repetindo-se em crise no
universo inglês do após II Guerra Mundial, como seria de calcular até com alguma ênfase, dadas as características de mundivivência do
autor brasileiro consagrado. “Terra e liberdade” (Land and freedom, 1996) de Kenneth Loach, relatou na Catalunha, numa dada cena, a
efémera tentativa de cooperativismo sindical, no quadro instável de uma situação social de camponeses jovens. Mobilizados,
precocemente, para uma discussão sobre a partilha da terra, em terreno entretanto ocupado ao proprietário local. Na inépcia de um
regime de anormal concentração de renda, sem aval do então estado social, renovado atribuladamente desde o fim do reino espanhol,
cinco anos antes, em 1931, porém agora subsequente a eleições demasiado precoces para terem servido de elemento de coesão
suficiente para impedir a catástrofe humana no panorama do risco de fragmentação nacional, então vivido em acelerado movimento
histórico. Em “A Tia Tula” (Tia Tula, 1964) de Miguel Picazo, a geração de 1898 à qual pertenceu Miguel Unamuno induziu-nos, através
do seu drama, a antevisão da libertação da mulher ibérica no quadro de um aprisionamento mental e de quintal, que sobreviveu a todos
os centralismos institucionais. Pouco antes, a Campanha do Trigo em Portugal, em 1934, que tinha como objectivo a auto-suficiência
daquele cereal para o país, inspirada em “medidas semelhantes tomadas em Itália” (1), tinha também para o efeito, naquele ano, sido
então um sucesso da governação corporativa já muito centralizante de então. Apesar de se ter constatado que os compradores não
estavam muito contentes com a qualidade do trigo vendido como excedente de produção. Ora, desde 1929, subsequente à crise
bolsista de Nova Iorque, que uma federação estatal adquiria o trigo a preço único decretado, graças a empréstimos a muito baixos juros
e aos subsídios governamentais ao cultivo do trigo, de forma a impedir a destruição maciça do mesmo, tal como no Brasil em relação
ao café. Tendo, porém, os lavradores, a partir daí, bucolicamente arrancado azinheiras para alargar o seu terreno de cultivo destinado
ao trigo: isto, porque a terra anteriormente arável era-o com outros produtos agrícolas, sujeitos porém antes mais habitualmente à
rotação temporal de solos e à pausa da cultura. Mas, neste caso, encurtaram-se os prazos de rotação para semear trigo e até as terras
comunais de cada freguesia, isto é, cerca de sessenta hectares destinados antes a pastagens, foram entretanto também utilizadas
anteriormente, já desde 1914, para a intensificação da fase final da campanha de 1934. Sendo que, contudo já em 1932 o trigo fora
semeado em vez da aveia, como era antes habitual na prática de rotação de culturas, porque no ano anterior o preço daquele já era
maior que o desta, o que constituiu um factor que o sindicato controlado pelo governo atribuía como estímulo para os proprietários das
terras semearem mais 15% de trigo também. Esse abuso foi detectado pelo governo que aprovou legislação em 1935 para se voltar à
periódica rotação de culturas nos solos aráveis e férteis e em 1936 as associações de lavradores corroboraram o aviso. Mas as
recomendações não foram respeitadas, o que levou muito mais tarde, em 1951, um grupo de peritos a constatar o empobrecimento dos
solos e que a produção se revelava pouco económica devido à erosão das terras agora menos férteis, por não se ter anos antes
quando teria sido eficiente respeitado os prazos de rotação de solos e o ecossistema na sua pausa, para que a natureza com as suas
condições climáticas enriquecesse o terreno. Os latifundiários, apenas, só por volta de 1965, se mostraram, em retroactivo, bem mais
receptivos às antigas recomendações, anteriores; e, contudo, sendo que mesmo assim, só quase metade deles havia declarado a sua
então provável produção de trigo ao respectivo grémio dessa época. A adaptação do romance de Fernando Namora, “O trigo e o joio”
(1965), de Manuel Guimarães, serviria pois de referência contextual sobre a decadência da lavra do trigo na courela, por falta de um
animal asinino do género feminino, que o dinheiro de um dado pequeno lavrador com certeza permitiria obter, se não tivesse sido gasto
antes numa feira do Baixo Alentejo por indisciplina foliona. Onde, porém, nos montes dessa planície, os outros trabalhadores ceifavam
pela conquista do alimento quotidiano, enquanto o pequeno lavrador perdia alento com o clima abrasador da temporada estival. E a
inconsequente falta notória de sombras, como estímulo prometido ao propalado desenvolvimento então necessário, tardaria contudo
até nos mais insignificantes apoios institucionais; o que teria levado aquele a ser, por isso, ainda mais irrealista e supérfluo gastador de
ninharias, em vez de ter adquirido a burra que tanta falta lhe fazia à falta de equipamento e maquinaria. Por essa altura, os problemas
ambientalistas estavam em gestação, em relação à opinião pública internacional, que no entanto assistia impávida à cada vez maior
poluição sobretudo marinha. Por isso, o impacte em refracção dos objectos perdidos no oceano, através do escafandro autónomo com
iluminação especial, revigorava o arco-íris de matizes colorimétricas entre água, ar e terra. Para além do fogo das furnas subaquáticas,
em previsão de descoberta posterior já nos anos setenta e oitenta, de que “Mundo sem sol” (Le monde sans soleil, 1964) de JacquesYves Cousteau, apenas tivera a suposição e já que repetira mais e melhor mas sem o mesmo maravilhamento inicial do feito anterior
de dar uma vistoria pelo fundo do mar, desta vez no Mar Vermelho, no sentido de reabilitar os recursos inclusive minerais desse espólio
ainda um pouco subestimado no futuro anterior. René Dumont dizia, em 1970, que a realidade era difícil de abarcar na sua infinita
complexidade, entre a catástrofe anunciada pelas fontes norte- americanas oficiosas de então e o entusiasmo eufórico que as
publicações nacionais atribuíam à mesmíssima safra agrícola resultante do corte de cana-de-açúcar em Cuba. Safra a que desde 1954
uma série de especialistas havia fixado uma fasquia abaixo da pretendida depois, mas como sendo a respeitável medida de esforço
necessário, enquanto objectivo razoável para dali a dezasseis anos, isto é, no início dos anos setenta do século XX. Por contraste, a
passagem da adolescência precoce à juventude sem causa fora dissecada pela via mais disponível e cómica, mesmo à revelia da
intenção no filme peruano “Hombrecitos” (1972), uma média-metragem de ficção andina sobre os adolescentes das classes favorecidas
locais na sua educação sentimental dúbia. No qual podia-se aferir aquele contraste entre a vocação de parasitismo social, a que são
votados uma parte dos jovens adolescentes da pequena, média e alta burguesia e a realidade atroz da miséria mais negra, com outros
jovens delinquentes, por força das circunstancias de anarquia da produção e de instabilidade política cíclica. Tendo, entretanto, em
conta, pelo comentário avaliador e amadurecido de Dumont, que poderiam perder a oportunidade de venda no Inverno seguinte na
Europa - nomeadamente do Mercado Comum de então -, para por essa estreita via terem obtido divisas, que de outro modo faziam falta
a Cuba para obter material ou equipamentos recentes. Quando se sabia, também então, previamente, que um produto como o níquel
estava cada vez mais caro no contexto dessa época. Sobretudo, à medida que se reconhecia haver perdido demasiado tempo em
prolongar essa mesma safra. No entanto, já no quadro de uma renovada e sobreaquecida economia planificada, à custa de mobilização
guerreira em ambiente pacífico, segundo fontes canadiana

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