Antonio Gomes de Jesus Neto

Transcrição

Antonio Gomes de Jesus Neto
http://6cieta.org
São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.
ISBN: 978-85-7506-232-6
O BANCO MUNDIAL E OS TRANSPORTES EM
MOÇAMBIQUE
Antonio Gomes de Jesus Neto
Universidade de São Paulo (USP)
[email protected]
INTRODUÇÃO
Diversas vezes, quando o tema das finanças é abordado na ciência geográfica, se
coloca em questão a relevância atual do espaço geográfico (principalmente do seu conteúdo
material) na composição do universo financeiro: a aparente virtualidade dos fluxos
financeiros – invisíveis, transmitidos quase instantaneamente e acessíveis de praticamente
qualquer lugar do mundo – muitas vezes induz a uma análise que considera o espaço
geográfico cada vez menos relevante na organização do sistema econômico mundial (como
na famosa hipótese do “fim da geografia” de Richard O’Brien, 1992).
É exatamente dessa importância subestimada do espaço geográfico nas finanças
mundiais que tentaremos nos aproximar neste trabalho, focando nossas atenções no
interesse do Banco Mundial na reestruturação do sistema de transportes de Moçambique.
Cercaremos o tema a partir de três abordagens distintas: uma teórica, uma histórica e uma
empírica.
Na abordagem inicial, teórica, pretendemos elaborar uma pequena discussão
através de diferentes autores sobre o sistema financeiro mundial e a chamada
“globalização”. Achamos importante a inserção desses debates para situar as condições
desse sistema financeiro mundial que permitem ao Banco Mundial agir em Moçambique
hoje.
Dadas essas condições, partimos então para uma periodização do assunto em
questão. Pretendemos nesse item organizar cronologicamente a trajetória do Banco
Mundial que o levou a atuar em Moçambique, simultaneamente a uma cronologia do
sistema econômico moçambicano que culminou com o ajustamento às políticas do Banco
Mundial na década de 1980.
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A partir desse encontro entre ambos chegamos ao último item do presente
trabalho, que trata empiricamente dos recentes investimentos do Banco Mundial no sistema
de transportes de Moçambique. Destacando a articulação entre a circulação financeira e a
circulação de bens e pessoas, nosso intuito final é analisar os projetos do Banco Mundial no
setor de transportes do país, com base nos documentos e dados disponíveis na internet na
seção de Moçambique no site do Banco Mundial.
SISTEMA FINANCEIRO, BANCO MUNDIAL E CIRCULAÇÃO
Como explicitado no título e na introdução deste trabalho, pretendemos
demonstrar aqui a articulação existente entre a circulação financeira e a circulação de bens
e pessoas. Mais especificamente, a articulação entre o Banco Mundial e o sistema de
transportes de Moçambique. Em um mundo regido pelas finanças, como afirmam CHESNAIS
(1998) e SANTOS (2000), entendemos que os conteúdos normativos da relação entre o
Banco Mundial e o Estado moçambicano são ditados pelo primeiro, e por isso achamos
importante uma breve contextualização do sistema financeiro mundial contemporâneo que
possibilita essa relação.
De acordo com MARTIN (1999), o sistema financeiro mundial passa
atualmente por três processos de transformação que se interpenetram, criando um novo
mapa das finanças mundiais: a desregulação, a inovação tecnológica e a globalização. A
desregulação, segundo o autor, teve início em 1973, com o abandono dos preceitos de
Bretton Woods (onde o livre comércio dependia de uma certa regulação e autonomia dos
Estados nacionais) e o início de uma sucessão de medidas que tiravam o poder dos Estados
nacionais com relação às finanças:
“Restrições no movimento de capitais foram relaxadas ou abolidas, bolsas de
valores foram desreguladas, o mercado financeiro e fronteiras fiscais de
produtos foram desmantelados, controles sobre operações bancárias e outras
instituições financeiras foram removidas, e grande parte das atividades estatais
privatizadas (MARTIN, 1999, p. 13)” 1
Em suma, as “fronteiras regulatórias do sistema financeiro foram redesenhadas”
(MARTIN, 1999, p. 13) 2. Paralelamente a esse processo de desregulação, a inovação
1
Tradução nossa. No original: “Restrictions on capital movements were relaxed or abolished, stock markets were
deregulated, financial market and product boundaries were dismantled, controls on the operation of banks and other
financial institutions were removed, and large sections of state owned activities were sold off (privatised)”.
2
Tradução nossa. No original: “(...) regulatory boundaries of financial systems have been redrawn (...)”.
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tecnológica vem também transformando a geografia do sistema financeiro mundial, através
das novas formas de dinheiro “imaterial”, das transferências financeiras quase instantâneas
e dos novos produtos financeiros advindos dessas atualizações tecnológicas. Esses dois
processos acabam por promover um terceiro citado pelo autor, que define o atual mapa
financeiro mundial: a globalização.
Segundo o autor, a globalização remete a uma crescente integração e
convergência de relações econômico-espaciais em detrimento das fronteiras e instituições
nacionais, e é na esfera financeira que esse processo é mais avançado. Por mais que
concorde com o fato do sistema financeiro ser o grande articulador da globalização, SANTOS
(2000) alerta para o caráter ideológico desse processo, onde mais do que uma integração
entre os territórios, os atores da globalização buscam uma homogeneização dos costumes e
do consumo mundiais, reforçando assim o poder desse sistema financeiro. A consciência
desse domínio da esfera financeira levou CHESNAIS (1998) a cunhar o termo “mundialização
financeira”, que o autor descreve da seguinte maneira:
“A expressão ‘mundialização financeira’ designa as estreitas interligações entre
os sistemas monetários e os mercados financeiros nacionais, resultantes da
liberalização e desregulamentação adotadas inicialmente pelos Estados Unidos e
pelo Reino Unido, entre 1979 e 1987, e nos anos seguintes pelos demais países
industrializados. A abertura, externa e interna, dos sistemas nacionais,
anteriormente fechados e compartimentados, proporcionou a emergência de
um espaço financeiro mundial” (p. 12)
Assim como SANTOS (2000), porém, o autor também ressalva que esse espaço
financeiro mundial não é um espaço homogêneo (por mais que se esforce por uma
homogeneização), tampouco horizontalmente dirigido. Pelo contrário, ele é fortemente
hierarquizado, polarizado pelo sistema financeiro norte-americano, e carente de instâncias
de supervisão e controle. Nas palavras de CHESNAIS (1998, p. 12),
“A integração internacional dos mercados financeiros nacionais tornou-se
possível a partir de sua abertura regulamentar e de sua interligação em tempo
real. Mas o efetivo contexto dessa integração decorre, de forma concreta, das
decisões tomadas e das operações efetuadas pelos gestores das carteiras mais
importantes e mais internacionalizadas”
Esse controle do espaço financeiro mundial, no entanto, não se dá diretamente
pelo governo norte-americano, mas por sua influência sobre instituições que se dizem
internacionais e que não são vinculadas diretamente a um Estado nacional. A aparente
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desvinculação territorial dessas instituições levou SANTOS (1999) a falar de um “dinheiro
global” que se sobrepõe ao Estado, “um dinheiro sustentado por um sistema ideológico” (p.
10) composto, segundo o autor, por duas lógicas de funcionamento - uma individual (das
empresas), e uma que seria a inteligência geral:
“Essa inteligência geral não pode ser confiada aos Estados porque estes podem
decidir atender aos reclames das populações. Então são esses governos globais,
representados pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial, pelos
bancos internacionais regionais, como o BID, pelo consenso de Washington,
pelas Universidades centrais produtoras de idéias de globalização e pelas
Universidades subalternas que aceitam reproduzi-las” (SANTOS, 1999, p. 11).
O Banco Mundial aparece, portanto, como um dos atores determinantes e
reguladores das políticas estatais do mundo todo relacionadas às finanças. O surgimento,
direcionamento ideológico e atuação dessa instituição serão discutidos no próximo item
desse
trabalho,
bem
como
sua
trajetória
até
o
encontro
com
Moçambique.
Perguntamos-nos agora, porém, os motivos que levam o Banco Mundial a investir na
reestruturação dos transportes em Moçambique. Em outras palavras, qual o interesse de
uma instituição financeira mundial em melhorar as condições de circulação material em um
Estado nacional?
CHESNAIS (1998) fala, com cautela, de certa autonomia da esfera financeira em
relação à esfera produtiva atualmente. O funcionamento do mercado financeiro chegou a
tal ponto que grande parte das transações financeiras acontece no plano imaterial, em
operações que não necessitam de uma contrapartida em mercadorias ou serviços – elas
começam e terminam virtualmente. Entretanto, por mais autônoma que pareça a esfera
financeira em relação ao mundo material,
“...isso não significa que não existam vínculos muito fortes, e sobretudo de
grande alcance econômico e social, entre a esfera da produção e comércio
internacional e das finanças. A esfera financeira alimenta-se da riqueza criada
pelo investimento e pela mobilização de certa força de trabalho de múltiplas
qualificações” (CHESNAIS, 1998, p. 15)
Assim, ao investir nos transportes em Moçambique, o Banco Mundial entende
que existe uma articulação importante entre a circulação financeira, a qual ele é um dos
principais agentes mundiais atualmente, e a circulação de mercadorias, mesmo em um
Estado periférico e frágil financeiramente como Moçambique. Além disso, não só a
circulação de mercadorias em Moçambique põe em movimento o capital financeiro mundial,
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como as próprias obras de reestruturação dos transportes, de custos elevados como
veremos mais à frente, colocam muito dinheiro em circulação.
Importante dizer, o setor de transportes é apenas um dos setores onde o Banco
Mundial investe em Moçambique. Infra-estruturas ligadas aos setores de energia, água,
saneamento e comunicação vão sendo construídas e re-construídas com auxílio do Banco
Mundial, bem como projetos de desenvolvimento agrícola e industrial. Da mesma forma
como foi dito anteriormente, esses investimentos refletem a consciência do Banco Mundial
sobre a articulação entre a esfera produtiva e a esfera financeira, e o setor de transportes é
o que garante a circulação em ambas. No próximo item, traçaremos as histórias paralelas do
Banco Mundial e de Moçambique que culminaram no encontro entre as duas instituições
em 1984.
O ENCONTRO ENTRE BANCO MUNDIAL E MOÇAMBIQUE
Antes de fazer um paralelo entre os caminhos de Moçambique e do Banco
Mundial até o início das relações entre ambos, nos parece importante uma breve introdução
sobre a composição e a organização institucional do que chamamos de Banco Mundial.
Existe uma diferença entre o “Banco Mundial” e o “Grupo Banco Mundial”. O
Grupo Banco Mundial é composto por 5 organizações diferentes, porém complementares: o
Banco
Internacional
para
Reconstrução
e
Desenvolvimento
(BIRD),
a
Associação
Internacional de Desenvolvimento (AID), a Corporação Financeira Internacional (CFI), a
Agência Multilateral de Garantias de Investimentos (AMGI) e o Centro Internacional para
Conciliação de Divergências em Investimentos (CICDI) 3. Aquilo que chamamos por Banco
Mundial é a junção do BIRD e da AID, cujas funções e modos de funcionamento são
explicados por PEREIRA (2013, p. 378-379):
“O BIRD concede empréstimos a países de renda média e de baixa renda
solventes, captando recursos em mercados de capital e emprestando a seus
clientes em condições próximas às do mercado financeiro internacional (hard
loans). O lastro das suas operações denomina-se ‘capital geral’, e é aportado
pelos Estados-membros, em proporções desiguais, e só pode ser aumentado
após negociações entre eles. Já a AID efetua empréstimo de longo prazo e com
baixas taxas de juros (soft loans) a países pobres com pouca ou nenhuma
3
Para mais informações sobre a função específica de cada uma dessas organizações, ver ISMI (2004) e o site do Banco
Mundial (www.worldbank.org). PEREIRA (2013) inclui ainda dentre essas organizações o Instituto do Banco Mundial
(IBM) e o Painel de Inspeção, mas como tanto ISMI (2004) como o próprio Grupo Banco Mundial vêem a existência de
apenas 5 organizações internas, ficamos com esse arranjo.
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capacidade de tomar emprestado nas condições de mercado. A AID tem três
fontes de financiamento: contribuições do BIRD, pagamento com juros dos
empréstimos que realiza e, a mais importante, contribuições voluntarias
negociadas entre países doadores a cada três anos”.
Assim, quando falamos dos investimentos do Banco Mundial na reestruturação
do sistema de transporte de Moçambique, nos referimos basicamente ao BIRD e à AID.
Ainda que as outras organizações do Grupo Banco Mundial também atuem em território
moçambicano, elas não possuem essa função de investir diretamente em infra-estruturas
como o chamado Banco Mundial.
O BIRD foi a primeira a surgir dentre essas organizações. Criado após a
Conferência de Bretton Woods, em 1944, mas como resultado de negociações anteriores
principalmente entre o governo norte-americano e o britânico, o Banco Internacional para
Reconstrução e Desenvolvimento era na verdade uma organização financeira multi-lateral
concebida e levada adiante pelos Estados Unidos e, portanto, expressava a visão
norte-americana acerca da economia mundial. Sua missão primordial “consistia em prover
garantias e empréstimos para a reconstrução dos países-membros afetados pela guerra
(PEREIRA, 2012, p. 396)”, sempre visando os interesses de seu principal acionista, os Estados
Unidos. A própria localização geográfica do BIRD deixava claro sua subordinação a esse
Estado: “As decisões sobre a localização do BIRD e o papel dos diretores executivos provocaram
efeitos duradouros sobre as suas operações, facilitando a interação cotidiana com o governo
norte-americano (PEREIRA, 2012, p. 397)”.
O BIRD, porém, não tinha recursos suficientes para sua missão de reconstruir a
Europa arrasada pela guerra, e estava caminhando para um grande fracasso poucos anos
após sua abertura. Como o governo norte-americano, principal provedor de recursos do
banco, estava voltando sua política externa à contenção da ameaça comunista na Europa
(com o início da Guerra Fria), o BIRD começou a se aproximar de Wall Street na tentativa de
angariar fundos para seus objetivos, ainda que fortemente supervisionado e com
interferência direta do governo norte-americano. Os banqueiros, por sua vez, tinham
interesse em investimentos seguros, e grande parte dos investimentos do BIRD eram
voltados aos países capitalistas mais industrializados, onde o retorno era garantindo.
Mesmo assim, o banco voltava suas atenções também às colônias européias na África, mas
em proporções muito menores do que à Europa:
“Além disso, parte desses empréstimos foi destinada ao financiamento de
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projetos em áreas coloniais de interesse das suas respectivas metrópoles,
contribuindo para provê-las de matérias-primas ou, simplesmente, abrir ou
expandir frentes de exploração econômica a empresas metropolitanas. [...]
Desse modo, o BIRD contribuiu para que a Bélgica, a Inglaterra e a França
prosseguissem com a sua dominação colonial, bem como aplainassem o terreno
para a dependência econômica pós-colonial. Em casos assim, os recursos
emprestados foram gastos, quase que integralmente, na importação de bens e
serviços de empresas metropolitanas, com o agravante de que as dívidas
contraídas pelas metrópoles foram depois transferidas aos novos Estados
(PEREIRA, 2012, p. 407)”.
Quando da formação desses novos Estados o BIRD não via essas instituições
pós-coloniais como elegíveis ao recebimento de créditos, fechando quase totalmente o
acesso desses Estados ao Banco. A inclinação política dos Estados pós-coloniais, porém,
fizeram o BIRD passar a se preocupar mais seriamente com o continente africano:
“Aos poucos foram se avolumando os governos inclinados à adoção de políticas
econômicas voltadas para o mercado interno e a industrialização por
substituição de importações. Em certos casos, tais políticas eram acompanhadas
da nacionalização de empresas e ativos patrimoniais e financeiros estrangeiros.
O fracasso da dominação colonial sobre o Congo Belga e a Argélia aumentou o
temor de que nacionalismo e socialismo convergissem e contagiassem todo o
continente africano (PEREIRA, 2012, p. 414).”
Somada a essa ameaça comunista, o fato do BIRD não se mostrar um banco de
desenvolvimento e a criação de um fundo das Nações Unidas para o desenvolvimento (o
SUNFED), levaram o governo norte-americano a criar uma nova instituição financeira,
vinculada ao BIRD e voltada ao auxílio dos países menos favorecidos economicamente, mas
que eram importantes geopoliticamente para os Estados Unidos: a Associação Internacional
de Desenvolvimento (AID), fundada em 1960.
Moçambique, porém, não fazia parte dos planos dessas duas organizações até
então. Quando da criação do banco, o país era ainda colônia portuguesa, e foi só a partir do
final da II Guerra Mundial que Portugal viu sua colônia como um recurso para reconstruir
sua economia pós-guerra. Até ali, Moçambique era puro fornecedor de matéria-prima para
a metrópole, mas os Planos de Fomento do governo português instituídos a partir de 1953
mudaram a posição da colônia. Com o intuito de promover o desenvolvimento industrial de
Moçambique, esses planos basicamente se constituíam em investimentos para construção
de infra-estruturas de transportes que possibilitassem a conexão entre a produção e a
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exportação tanto agrícola (explorada desde muito tempo) quanto das novas indústrias.
Ainda que esses investimentos não tenham vindo diretamente do BIRD, foi o início das
relações de Moçambique (através de Portugal) com os Estados Unidos. Nas palavras de
BELLUCCI (2007):
“A valorização das colônias não poderia se fazer sem uma política de
investimentos. Assim, a utilização dos capitais na ajuda norte-americana à
Europa – o Plano Marshall – era vista como a única maneira de Portugal
ultrapassar sua incapacidade de estender as transformações políticas às
colônias. [...] Em Moçambique, a ajuda americana serviu, sobretudo, para as
ferrovias, para o porto da Beira e para a produção de energia elétrica, ou seja,
reforçando a economia de trânsito. (p. 111)”
Esses investimentos, porém, não vinham apenas do governo norte-americano.
Para construir uma ferrovia que ligava Lourenço Marques (atual Maputo, capital
moçambicana) à fronteira com a Rodésia do Sul (atual Zimbabwe), o governo português
contou com o investimento de um banco situado nos Estados Unidos. Segundo SERRA
(2000),
“Com a ajuda diplomática britânica, Portugal obteve um empréstimo de 17
milhões de dólares do Banco de Importações e Exportações, sediado nos E.U.A.,
que pagava cerca de 80 por cento das despesas de construção, e que constituiu
cerca de 36 por cento do total das despesas do I Plano de Fomento (p. 164)”
Dessa forma, fica claro que o interesse norte-americano no sistema de
transportes de Moçambique, que culmina com os atuais investimentos do Banco Mundial no
setor, é de longa data. Esse interesse, porém, sofreu uma grave ruptura na década de 70.
Os processos de independência das colônias africanas começaram a despontar
com a independência de Gana, em 1958. Uma a uma, diversas colônias foram angariando
sua libertação perante as potências européias ao longo de toda a década de 60. As colônias
portuguesas, porém, não conseguiam negociar suas independências pacificamente, e se
viram obrigadas a organizar movimentos armados que deram origem às guerras de
libertação. Assim, por mais que o governo português não medisse esforços para garantir
seu poder sobre Moçambique, em 1975 a ex-colônia se tornou um Estado independente e,
para frustração dos investidores norte-americanos, de orientação socialista.
A desaprovação das potências capitalistas, lideradas pelos Estados Unidos, em
relação à opção socialista não foi apenas ideológica. A proposta do governo moçambicano
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independente era de ruptura com todas as diretrizes coloniais, o que incluía a
nacionalização dos sistemas de produção e circulação, que agora seriam voltados ao
desenvolvimento interno do Estado e do processo de industrialização. Como os países
capitalistas tinham muito interesse no continente africano como fornecedor de
matéria-prima e mercado para seus produtos industrializados, o fechamento de
Moçambique ao mercado externo os deixou preocupados. Desde muito tempo,
Moçambique funcionava como território de escoamento da produção das colônias
britânicas, devido aos seus 2.795 km de costa marítima, onde se situam importantes portos
da África Austral. É nesse contexto que os governos da Rodésia do Sul (atual Zimbabwe) e da
África do Sul, ainda com os brancos no poder e sob influência econômica dos britânicos e
norte-americanos, passaram a investir e incentivar ataques às infra-estruturas de transporte
moçambicanas, visando desestabilizar o projeto socialista e impossibilitando praticamente
toda a circulação de fluxos materiais (de todas as naturezas) em Moçambique, dando
origem à chamada “guerra de desestabilização”.
Durante os anos da guerra de desestabilização, a situação econômica interna do
país se deteriorou a um nível insustentável, de maneira que o governo moçambicano não
encontrou outra opção senão recorrer à ajuda estrangeira, aumentando exponencialmente
sua dívida externa
4
. Na tentativa de negociar essas dívidas, em 1984 o governo
moçambicano aderiu ao FMI e ao Banco Mundial, marcando a entrada do país na lógica
neo-liberal. Essa adesão de Moçambique, porém, não foi um fato isolado no continente
africano, fazendo parte de um grande projeto do Banco Mundial para os Estados
pós-coloniais da África na década de 80, chamado Programa de Ajustamento Estrutural
(PAE).
No final da década de 70, com a subida ao poder de Margareth Thatcher no
Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos, as orientações políticas resultantes da
conferência de Bretton Woods são duramente criticadas, principalmente o papel importante
do Estado nacional na regulação econômica e financeira. Nesse contexto, o Banco Mundial
passa a ser contestado dentro dos Estados Unidos, seu principal acionista, sendo acusado
de promover o desenvolvimento do setor público dos seus Estados clientes (PEREIRA, 2013).
Pressionado pelo governo norte-americano, o Banco Mundial publica, em 1981, um relatório
acerca das razões da deterioração dos indicadores econômicos e sociais do continente
4
Segundo BELLUCCI (2007, p. 186), “Em 1983, a dívida externa de Moçambique girava em torno de 1,4 bilhões de
dólares e vinha sendo paga com reservas e empréstimos variados”.
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africano na década de 70, e as políticas necessárias para reverter a situação – o chamado
relatório Berg 5. De acordo com PEREIRA (2013, p. 361-362),
“A sua mensagem central era a de que o Estado pós-colonial tornara-se
excessivamente grande, ineficiente e intervencionista. O corolário implícito era o
de que a estratégia de substituição de importações havia fracassado. Sem
mencionar em nome de quais interesses tal trajetória havia sido seguida, o
informe indicava como alternativa uma redução significativa do tamanho do
Estado, a adoção da ‘recuperação de custos’ (cobrança de taxas) em serviços
públicos antes gratuitos e o aumento do controle privado sobre a economia em
geral. [...]Recomendava-se o aumento da assistência econômica externa a região
como forma de alavancar as reformas e catalisar fluxos de capital externo, desde
que os governos preparassem os ajustes preconizados pelo Banco e pelo FMI.”
Ao mesmo tempo em que o Banco Mundial agia de acordo os interesses
norte-americanos
de
liberalização
da
economia
mundial,
e
conseqüentemente
enfraquecendo o poder dos Estados pós-coloniais africanos recém-constituídos, esses
mesmos Estados viam sua dívida externa, contraída desde os tempos coloniais, aumentar
exponencialmente. Com níveis de produção insuficientes para cobrir essas dívidas,
elaboraram um mecanismo de pagamento que complicava ainda mais sua situação,
explicitava por PEREIRA (2013, p. 368):
“A partir de 1982, parte importante dos recursos recebidos a titulo de ajuda
bilateral ao desenvolvimento e de empréstimos contraídos com a AID passou a
ser utilizada para o pagamento do serviço da divida dos países africanos com o
FMI e o Banco Mundial. Em meados da década, dois de cada três dólares
facilitados pela AID retornavam aos cofres do Banco sob a forma de pagamento
de créditos anteriores, ao passo que a maior parte do dólar restante se
destinava ao FMI para a mesma finalidade.”
Em suma, os países africanos estavam seriamente endividados e os Estados
pós-coloniais não conseguiam manter um ritmo de produção (agrícola e industrial)
minimamente suficiente para equilibrar suas finanças. Ainda que Moçambique não fosse
cliente do Banco Mundial até o momento, a opção pelo socialismo e a conseqüente guerra
de desestabilização levou-o indiretamente ao mesmo enquadramento dos países africanos
que já contavam com investimentos dessa organização. Foi essa convergência de interesses
entre o Banco Mundial, que via no continente africano uma grande oportunidade de
5
BANCO MUNDIAL. Accelerated development in Sub-Saharan Africa: an agenda for action. 1.ed. Washington (DC): Oxford
University Press, 1981.
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negócios, e Moçambique, endividado e destruído pela guerra, que levou ao encontro entre
ambos em 1984.
A liberalização econômica de Moçambique, como em todos os outros Estados
africanos inseridos no Programa de Ajustamento Estrutural, pressupõe uma capacidade de
fazer circular no território nacional a maior quantidade possível de produtos e mercadorias
visando o mercado externo. Por esse motivo, não é de se estranhar o fato da maior parte
dos recursos disponibilizados pelo Banco Mundial
6
setor de transportes, como mostra o gráfico a seguir:
7
para Moçambique ser destinado ao
Fonte: BANCO MUNDIAL. Grupo Banco Mundial em Moçambique. (disponível em
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/cd_ppi/pastas/governacao/geral/artigos_cientificos_imprensa/moz_brochur
es.pdf)
Esses investimentos no setor de transportes são divididos em projetos
específicos, direcionados à construção e/ou reestruturação de sistemas técnicos de
circulação relacionados aos diferentes modais de transporte no país. A análise desses
6
Em Moçambique, devido à sua classificação para o Banco Mundial de país “pobre”, a maior parte dos recursos é
provida pela AID, ainda que existam projetos financiados pelo BIRD.
7
No gráfico, onde se lê “IDA”, entenda-se “AID”. IDA é a sigla em inglês para “International Development Association’,
que no presente trabalho vem sendo apresentada com a sigla em português AID, “Associação Internacional para o
Desenvolvimento”.
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projetos é o escopo do próximo item do presente trabalho.
OS PROJETOS DO BANCO MUNDIAL PARA O SETOR DE TRANSPORTES DE
MOÇAMBIQUE
Detemo-nos, no item anterior, a uma análise da construção histórica da relação
entre Moçambique e o Banco Mundial, não tendo dado muito atenção ao caráter
geográficos desse processo. Conforme foi dito logo na introdução desse trabalho, nossa
intenção aqui é mostrar a relevância que o espaço geográfico ainda possui na organização
do sistema econômico-financeiro mundial, no qual aparentemente ele perde sentido. Na
presente discussão sobre a ação do Banco Mundial em Moçambique, podemos destacar
pelo menos dois elementos eminentemente geográficos que regem essa relação: os
conteúdos normativos do espaço geográfico e a localização geo-estratégica dos projetos de
investimento do Banco Mundial.
Do ponto de vista normativo, é clara a mudança de paradigma existente em
Moçambique a partir da independência. Se após o fim do colonialismo a regulação do
território moçambicano se dava integralmente pelo Estado nacional, a adesão à lógica
neo-liberal transferiu essa regulação às políticas do Banco Mundial. O uso do território
passou
a
ser
condicionado
pelos
interesses
dessa
instituição
financeira
e,
conseqüentemente, pela visão norte-americana acerca do uso do território. Em outras
palavras, a autonomia do Estado sobre o território pretendida com a conquista da
independência foi substituída pela inserção de Moçambique na lógica territorial do
capitalismo, onde cabe ao país um papel passivo, mas crucial, para o funcionamento dessa
lógica. A existência de espaços periféricos pouco modernizados é fundamental para garantir
a centralização do poder financeiro e a vazão de seus fluxos de capital.
O outro aspecto importante que remete à Geografia é a localização
geo-estratégica dos projetos do Banco Mundial no setor de transportes em Moçambique.
Essa localização, inclusive, é resultado da mudança dos conteúdos normativos do território
moçambicano e dos interesses econômicos advindos dessa mudança. Mais do que garantir
a circulação de pessoas e mercadorias moçambicanas, a reestruturação dos transportes
levada a cabo pelo Banco Mundial visa garantir a circulação da produção direcionada à
economia capitalista. Com base nisso, discorreremos nesse último item sobre as
características principais desses projetos.
No total, são 5 os projetos de investimento do Banco Mundial no setor de
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transporte em Moçambique, existindo mais outros 4 que são fases posteriores ou novos
financiamentos desses 5 principais. Todos os projetos do setor de transporte são
financiados pela AID, e apenas um deles ainda está ativo (com dois novos financiamentos),
estando todos os outros concluídos. Organizamos essas informações de maneira sintética
na tabela a seguir:
Projeto
Status
Data de
Aprovação
Financiador Investimento
(em milhões)
Beira Transport Corridor Project
Concluído
14/9/1989
AID
40
First Roads and Costal Shipping Project
Concluído
2/6/1992
AID
74.3
Second Roads and Coastal Shipping Project
Concluído
7/4/1994
AID
188
Railways & Ports Restructuring Project
Concluído 14/10/1999
AID
100
Roads and Bridges Management and Maitenance
Project - Phase I
Concluído
19/7/2001
AID
162
Beira Railway Project
Concluído 14/10/2004
AID
110
Roads and Bridges Management and Maitenance
Project - Phase II
Ativo
23/5/2007
AID
100
Roads and Bridges Management and Maitenance
Project - Phase II - Additional Financing
Ativo
7/4/2011
AID
41
Roads and Bridges Management and Maitenance
Project - Phase II - Additional Financing
Ativo
13/12/2013
AID
39.4
Fonte: Adaptado do Banco Mundial (http://www.worldbank.org/en/country/mozambique/projects)
Todas as informações contidas nos próximos parágrafos foram retiradas dos
documentos de avaliação dos projetos, disponíveis no site do Banco Mundial em
www.worldbank.org/en/country/mozambique/projects.
O primeiro investimento do Banco Mundial no setor de transportes em
Moçambique foi no ano de 1989, ou seja, ainda durante a guerra de desestabilização. Esse
projeto, denominado “Beira Transport Corridor Project”, consistia no desenvolvimento do
chamado “corredor da Beira”. Para fins de planejamento, o governo moçambicano divide o
país nos chamados “corredores de desenvolvimento”: os corredores de Maputo, da Beira, e
de Nacala. Esses corredores de desenvolvimento nada mais são do que um conjunto de
sistemas técnicos de transporte complementares (portos, ferrovias, estradas) que têm como
ponto inicial um porto importante do território moçambicano, e como destino final os países
vizinhos de Moçambique no interior do continente: África do Sul, Swazilândia e Zimbabwe
para o porto de Maputo; Zimbabwe para o porto da Beira; e Malawi para o porto de Nacala.
Dessa forma, o corredor da Beira permitiria a retomada da circulação entre Moçambique e o
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Zimbabwe, interrompida por muitos anos pela destruição dos sistemas técnicos de
transporte na região em virtude da guerra, e pelo bloqueio imposto por Moçambique à
Rodésia do Sul, que durou até o ano de 1980 – ano em que a colônia conseguiu a
independência e passou a se chamar Zimbabwe 8. O projeto consistia basicamente em uma
reestruturação organizacional dos portos e ferrovias, com assistência técnica operacional a
e treinamento de pessoal para trabalhar nas novas estruturas, além de reabilitação e
compra de antigas locomotivas.
A partir do sucesso do primeiro projeto, e com o fim da guerra de
desestabilização em 1992, Moçambique passou a ser considerado um país seguro para se
investir, e no mesmo ano o Banco Mundial iniciou seu segundo projeto no setor de
transportes: o “Roads and Coastal Shipping Project”. Dividido em duas fases, e com
investimentos muito maiores do que o primeiro projeto, a proposta desse projeto era o de
reabilitar
as
rodovias
do
país,
também
gravemente
prejudicadas
pela
guerra
recém-terminada, além de melhorar as condições de embarque nos portos moçambicanos.
Assim como no projeto do corredor da Beira, foi disponibilizado suporte institucional aos
departamentos responsáveis por esses modais de transporte, bem como treinamento de
pessoal, para finalmente seguir-se com os investimentos em infra-estrutura – reabilitação e
construção de um grande número de estradas pavimentadas e modernização dos portos.
Mais uma vez, o interesse do Banco Mundial era o de melhorar as condições de circulação
do país para inseri-lo no sistema econômico do capitalismo mundial, além de fazer circular o
capital proveniente da instituição.
Tendo investido no corredor da Beira, e incrementado a fluidez rodoviária e
capacidade dos portos, o Banco Mundial iniciou um grande projeto de reestruturação do
sistema de portos e ferrovias moçambicanos, chamado “Railways & Ports Restructuring
Project”, intervindo dessa vez não apenas no corredor da Beira, mas também nos outros
dois principais corredores de desenvolvimento do país: o de Maputo e o de Nacala. Mais do
que investimentos em infra-estruturas, como a reabilitação da linha ferroviária de Ressano
Garcia-Limpopo (que liga Maputo à Johannesburgo, na África do Sul), o grande objetivo do
Banco Mundial era promover uma reestruturação organizacional do sistema ferro-portuário
de Moçambique, incentivando o regime de concessões na administração dessas estruturas.
Claramente, o Banco Mundial estava alterando os conteúdos normativos do espaço
8
Com uma extensão litorânea considerável e distâncias relativamente curtas entre a costa e seus limites territoriais,
Moçambique é a saída mais próxima para o mar para todos os países do hinterland com quem faz fronteira:
Swazilândia, Zimbabwe, Zâmbia e Malawi.
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geográfico, tirando o controle do setor de transportes do Estado e colocando-o à cargo de
empresas capitalistas. Nesse contexto, foi em 1998 a primeira experiência de concessão de
terminais do CFM 9, no porto da Beira, a investidores estrangeiros, nesse caso ao capital
holandês da Cornelder de Moçambique (SAÚTE, 2010). Em meados dos anos 2000, outros
consórcios de capital estrangeiro (como britânicos, suecos, portugueses e indianos)
passaram a atuar nos portos e ferrovias moçambicanos, reconstruindo e modernizando os
sistemas técnicos antigos, e gerando uma onda de privatizações no sistema de circulação de
Moçambique (SAÚTE, 2010).
Em 2001, o banco iniciou mais um grande projeto, dividido em duas fases (e que
hoje já conta com dois financiamentos adicionais), que consiste na reabilitação e
manutenção de estradas e pontes do território moçambicano: é o “Roads and Bridges
Management and Maintenance Project”. Com investimentos vultosos, o projeto consiste na
manutenção periódica de 525 km de estradas primárias nas províncias de Maputo, Gaza,
Inhambane, Sofala e Manica e na reabilitação de 313 km de estradas primárias em Maputo e
Inhambane e 412 km de estradas rurais nas províncias de Gaza, Nampula e Tete. Com a
circulação ferro-portuária reestruturada, o projeto volta suas atenções aos sistemas técnicos
rodoviários, ainda extremamente deficientes no país, e é o único projeto do setor de
transportes que continua ativo no país: tem previsão de conclusão em 2016.
Todos os projetos indicados até agora tiveram, em sua avaliação pelo Banco
Mundial, resultados satisfatórios, com exceção de um: o “Beira Railway Project”, iniciado em
2004 e já encerrado. Esse projeto consistia na reabilitação de alguns trechos ferroviários que
ligavam o interior do país e os países do hinterland ao porto da Beira, como a linha de Sena
(que liga a cidade à Moatize, onde se localizam extensas minas de carvão mineral), a linha de
Machipanda (que vai em direção à Harare, capital do Zimbabwe), e os trechos que ligam
essas linhas ao Malawi e à Zâmbia. Apesar da linha de Sena ter sido reabilitada, objetivo de
aumentar o tráfico de passageiros não foi atingido, e o tráfego internacional entre
Moçambique e Zimbabwe pela linha de Machipanda não foi incrementado como o
esperado. Além disso, a ligação ferroviária com o Malawi não foi implementada, tendo sido
reabilitado apenas o trecho que liga Moatize à Zâmbia. Mesmo com o relativo fracasso do
Banco Mundial na reabilitação das ferrovias da região, os investimentos estrangeiros não
cessaram, e hoje a companhia brasileira Vale além de explorar as minas de carvão mineral
de Moatize também trabalha na reconstrução das ferrovias regionais.
9
Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique, que são administrados conjuntamente.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão sobre o legado do Banco Mundial no continente africano tem
basicamente dois pontos de vista: um é o do próprio banco, que admite um longo caminho
ainda a se percorrer para o desenvolvimento econômico da África, mas que vê em si mesmo
a única saída possível para os Estados africanos se enquadrarem no sistema econômico
mundial; o outro é aquele de acadêmicos como CHOSSUDOVSKY (1997) e ISMI (2004) que,
contrariamente ao Banco Mundial, vêem a organização como a principal causadora da atual
situação de pobreza do continente (e não uma provedora de soluções). Para esses autores,
os programas de ajustamento estrutural serviram para aumentar as desigualdades
econômicas internas dos países africanos, enriquecendo as elites políticas e econômicas e
deixando grande parte da população mais pobre e sem acesso ao mundo dito globalizado.
Além disso, a ação do Banco Mundial em Moçambique demonstra que o espaço
financeiro mundial, encabeçado por essa organização, não é um espaço homogêneo e
democrático. Pelo contrário, esse espaço financeiro mundial é controlado por uma
instituição financeira intimamente ligada a um território nacional, o norte-americano, que
através dessa ligação coloca a serviço de seu interesse na liberalização econômica e
financeira mundial todo o continente africano, deixando Moçambique sem autonomia sobre
seu próprio território.
Essa regulação do Banco Mundial sobre o território moçambicano gera uma das
conseqüências mais graves desses altos investimentos da organização no sistema de
transportes de Moçambique: a inorganicidade resultante dessa relação. A circulação de um
território deve responder aos interesses dos cidadãos desse território, àqueles que
produzem, vivem e se identificam nele. Quando uma organização estrangeira vem impor
seus interesses a despeito do governo e da população de Moçambique, priva os
moçambicanos do acesso ao seu próprio território. Não são eles que utilizam os sistemas
técnicos avançados construídos pelo Banco Mundial, eles no máximo vendem sua produção
por um valor baixíssimo para uma grande empresa que, compactuando com os interesses
do Banco Mundial, acabam por utilizar as ferrovias, rodovias e portos modernizados. Como
argumentou SANTOS (1999, p.13),
“Em última análise é esse o resultado da influência do dinheiro em estado puro
sobre o território. A finança tornada internacional como norma contraria as
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estruturas vigentes e impõe outras. E quando tem uma existência autônoma,
isto é, não necessita consultar ninguém para se instalar, ela funciona a despeito
dos outros atores, e acarreta para o lugar uma existência sem autonomia.”
Por fim, parece-nos claro que a articulação existente entre a circulação financeira
e circulação material é fundamental para a ação do Banco Mundial. Do contrário, a
instituição não investiria grandes quantidades de capital no desenvolvimento do sistema de
transportes de Moçambique, mesmo sendo o país um dos mais pobres e sem acesso ao
capital financeiro mundial. Enquanto o governo moçambicano aceitar politicamente a
intervenção do Banco Mundial na estruturação de seu território, a circulação em
Moçambique será cada vez menos moçambicana.
REFERÊNCIAS
BELLUCCI, Beluce. Economia contemporânea em
Moçambique: sociedade linhageira, colonialismo,
socialismo, liberalismo. Rio de Janeiro : Educam,
2007.
CHESNAIS, François. A mundialização financeira.
Gênese, custos e riscos. São Paulo : Xamã
Editorial, 1998
CHOSSUDOVSKY, Michel. A globalização da pobreza:
impactos das reformas do FMI e do Banco
Mundial. São Paulo : Moderna, 1999.
ISMI, Asad. “Impoverishing a continent: the World
Bank and the IMF in Africa”. Canadian Centre
for Policy Alternatives. Ottawa : Halifax Initiative
Coalition, 2004.
MARTIN, Ron. “The new economic geography of
money” In MARTIN, Ron (ed.). Money and space
economy. Sussex : John Willey and Sons, 1999.
PEREIRA, João Márcio Mendes. “O Banco Mundial e
a construção política dos programas de
ajustamento estrutural nos anos 1980”. Rev.
Bras. Hist. [online]. 2013, vol.33, n.65, pp.
359-381.
__________________________.
“Banco
Mundial:
concepção,
criação
e
primeiros
anos
(1942-60”). Varia hist. [online]. 2012, vol.28,
n.47, pp. 391-419.
SANTOS, Milton. “O Dinheiro e o território”. In
Geographia. Revista da Pós-Graduação em
Geografia da UFF. Ano 1, No. 1. 1999. pp. 7-13.
______________. Por uma outra globalização: do
pensamento único à consciência universal. Rio de
Janeiro : Record, 2000.
SAÚTE, Nelson. Crônica de uma integração
imperfeita: o caso da privatização da gestão dos
Portos e Caminhos de Ferro em Moçambique
(2000-2005).
Dissertação
de
Mestrado,
Departamento de Sociologia, FFLCH/USP, 2010.
SERRA, Carlos (org.). História de Moçambique:
Moçambique
no
auge
do
colonialismo
(1930-1961) – Volume 2. Maputo : Livraria
Universitária (UEM), 2000.
Sites consultados
BANCO
MUNDIAL
EM
MOÇAMBIQUE
–
www.worldbank.org/pt/country/mozambique
(acessado pela última vez em 20/01/2014).
1803
http://6cieta.org
São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.
ISBN: 978-85-7506-232-6
O BANCO MUNDIAL E OS TRANSPORTES EM MOÇAMBIQUE
EIXO 1 – Transformações territoriais em perspectiva histórica: processos, escalas e contradições
RESUMO
Dentre todos os investimentos realizados pelo Banco Mundial no território moçambicano, aqueles
destinados ao setor de transporte são os mais volumosos. No intuito de entender o porquê dessa
preocupação da instituição com a circulação em Moçambique, o presente trabalho tenta observar
a articulação existente entre a esfera da circulação e a esfera financeira, partindo da compreensão
do atual processo de mundialização do capital, e do papel das instituições de Bretton Woods em
tal movimento, e desembocando nos diferentes projetos no setor de transportes que o Banco
Mundial leva a cabo no país. Tal relação seria impossível de ser encontrada sem levar em
consideração também a convergência de trajetórias entre ambos, ou seja, do Banco Mundial em
seu caminho rumo à África, e da economia moçambicana em direção à instituição financeira, de
maneira que uma abordagem histórica se fez igualmente necessária. De maneira geral, a proposta
final desse trabalho é verificar que tipo de consequências pode ter para o território moçambicano
a intervenção de uma instituição financeira internacional em seu setor de transportes.
Palavras-chave: Moçambique; Banco Mundial; transportes.
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