A leitura do Decameron por Pier Paolo Pasolini

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A leitura do Decameron por Pier Paolo Pasolini
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA –
LITERATURA NO CINEMA e
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema
A leitura do Decameron por Píer Paolo Pasolini
BETELLA, Gabriela Kvacek (UNIFAI)
RESUMO: Il Decameron (O Decamerão, 1971) de Pasolini integra a chamada “trilogia da
vida” com I racconti di Canterbury (Os contos de Canterbury, de 1972) e Il fiore delle mille e
una notte (As Mil e Uma Noites, de 1974). Além de manter a coerência com as ideias expostas
no famoso ensaio “O cinema de poesia”, o cineasta utiliza a mediação poética da cultura
popular, salvaguardando a vitalidade desta. Ao transpor estratégias do texto para o discurso
fílmico, o resultado permite enxergar nos procedimentos da visualização do mundo objetivo o
código de uma vivência interior, subjetiva. Este trabalho investiga a estrutura da adaptação da
obra fundamental de Giovanni Boccaccio e da vertigem criativa dos episódios que entrelaçam
situações, pontos de vista e tipos. Além de dialogar com outros setores artísticos, a
organicidade do filme se baseia na seleção de dez episódios capazes de compor uma profusão
atualizada, um diagnóstico do presente. Tal perspectiva fundamenta duas partes cheias de
sentido: na primeira, o afunilamento de percurso das personagens e sua condição humana
apoiada no grotesco convivem com o sucesso dos golpes dos espertos sobre os mais fracos de
raciocínio; na segunda metade do filme, a poesia da criação parece traduzir-se em amplitude
de horizontes, ao mesmo tempo em que o fingimento e a esperteza aparecem como situações a
serem examinadas como atos humanos prenhes de intenções.
PALAVRAS-CHAVE: Pasolini; Decameron; intertextualidades.
ABSTRACT: Il Decameron (The Decameron, 1971) by Pasolini is part of the so-called
“trilogy of life” with I racconti di Canterbury (The Canterbury Tales from 1972) and Il fiore
delle mille e una notte (Arabian Nights from 1974). Besides keeping the coherence with the
ideas expounded in his famous essay “A cinema of poetry”, the filmmaker uses the poetic
mediation of the popular culture, safeguarding the latter’s vitality. By transposing text
strategies to the filmic discourse, the result enables us to see in the procedures of the
visualization of the objective world the code of an inner grasp of life, i.e. a subjective one.
The present paper examines the structure of the adaptation of Giovanni Boccaccio’s
fundamental work and of the creative giddiness of the episodes that intertwine situations,
points of view and kinds. Besides dialoging with other artistic sectors, the organicity of the
film is based on the selection of ten episodes which are capable of composing an up-to-date
profusion, a diagnosis of the present. Such a perspective supports two parts full of meaning: in
the first, the tapering of the characters’ journey and their human condition, dependent on the
grotesque, live together with the success of the deceits perpetrated by the mischievous against
the naïves; in the second half of the film, the poetry of creation seems to translate itself into
the widening of horizons, at the same time that deception and cunning appear as situations to
be perused as human acts full of intentions.
KEY WORDS: Pasolini, The Decameron, intertextualities.
1. PALAVRA ESCRITA
Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X
Páginas 356-367
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Il Decameron de Pasolini é da temporada 1970-71 e constitui a primeira parte de uma trilogia
(dita “trilogia da vida”), cujos outros filmes são I racconti di Canterbury, de 1971-72 e Il
fiore delle mille e una Notte, de 1973-74. Em 1975, Pasolini dirigiu Salò o le 120 giornate di
Sodoma (Saló). Em 2 de novembro desse ano, morreu brutalmente assassinado, deixando pelo
menos duas filmagens em planos: San Paolo e Porno-Teo-Kolossal. Com seu último filme
renegou a trilogia, conforme o que escreveria no famoso texto “Abiura della ‘Trilogia della
vita’” (“Abjuração da ‘Trilogia da vida’”), publicado no volume que reúne os roteiros dos três
filmes e em 9 de novembro de 1975 no Corriere della Sera, para sair novamente em Lettere
luterane (1976) e em outras coletâneas. Após celebrar a liberdade e a alegria nos filmes da
trilogia, Pasolini sentiu “a instrumentalização por parte do poder e da sua cultura” de
dominação sobre a necessidade e a sinceridade do seu feito artístico, que deveria ser forma de
representação, assim como símbolo de direito à expressão e de liberação sexual (PASOLINI,
1990, pp. 199-200). Se a luta pela democratização e pela liberalização sexual foi superada por
“decisão do poder consumista” em “conceder uma vasta (tanto quanto falsa) tolerância”, tanto
a “’realidade’ dos corpos inocentes foi violada, manipulada, lesada” por esse poder
consumista, como também as “vidas sexuais privadas” (como a de Pasolini) traumatizaram-se
com a “falsa tolerância” e a “degradação corporal”, perfazendo o triste caminho do que “nas
fantasias sexuais era dor e alegria”, transformado “em desilusão suicida, em informe letargia.”
(PASOLINI, 1990, p. 200) Não trataremos aqui das conclusões elaboradas pelo cineasta em
sua renúncia de parte da própria obra, nem da manipulação, da degeneração dos valores
relativos à tolerância social visualizadas por ele naquele 1975. Também não pretendemos
discutir neste momento as relações entre a trilogia e Salò, concebido como uma parábola clara
sobre a violência das forças do Poder7. Mesmo correndo o risco de isolar um elemento de um
projeto artístico incomum, vivenciando na análise o que o próprio Pasolini chamou de
“adaptação à degradação”, examinamos aqui a transposição visual de dez histórias
selecionadas da obra-prima de Boccaccio. Chamamos a atenção para dois aspectos em nossa
análise: o modo de transposição dos procedimentos novelescos e o ponto de vista da seleção
de Pasolini.
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Uma excelente análise do último filme de Pasolini e sua relação com o momento histórico em que foi
idealizado e produzido é feita por FABRIS, Mariarosaria. Réquiem para uma república. Anais do XVIII Encontro
Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. CdRom.
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Os filmes da trilogia são leituras de obras literárias difundidas no século IX (origens
do anônimo As mil e uma noites), século XIV (Decameron, escrito por Giovanni Boccaccio
entre 1348 e 1353) e século XV (The Canterbury Tales, de Geoffrey Chaucer, obra
incompleta de 1400). O ponto em comum é o fato de serem reuniões de pequenas narrativas e,
de certo modo, as três obras constituem o que se pode chamar de “pedra fundamental” da
narrativa curta, ou seja, formam uma espécie de alicerce da novelística moderna, muito
embora seus locais de criação sejam tão diferentes – respectivamente, Oriente, Itália e
Inglaterra – e os estilos reflitam visões de mundo e épocas distantes uns dos outros.
Em meio à vertiginosa criatividade, as três obras reúnem contos retirados da tradição
oral e/ou literária, revisitados de uma maneira “puramente livresca”, segundo a concepção de
Victor Chklovski (1976, p. 221). O formalista russo distingue esse tipo de narrativa da
narrativa oral pelos procedimentos específicos para estabelecer elos entre as histórias ou
episódios; em poucas palavras, a narrativa livresca possui métodos cuja utilização é
impensável na oralidade, pois só um leitor saberá percebê-los. Ao mesmo tempo em que
garantem e autenticam a narrativa escrita, esses fatores ganham importância ao diferenciar as
categorias de narrativas curtas quanto à sua complexidade e rigor estilístico. No caso do
Decameron, Chklovski aponta sua filiação na literatura européia descendente das compilações
de origem oriental, cuja contribuição foi juntar os relatos estrangeiros às novelas “nacionais”,
possibilitando a criação de modos de enquadrar as novelas, mantendo-as distintas do romance
na posteridade literária. Tendo a narração como um fim em si mesma, os personagens do
Decameron não ligam os episódios particulares, nos quais a ação concentra as atenções.
Para desenvolver algo sobre o termo “Trilogia da vida”, é conveniente buscar as
intenções literárias das obras nas quais se baseia Pier Paolo Pasolini. Há, de fato, uma
“vertigem criativa” nas três coletâneas, expressa na diversidade de situações, nos diferentes
pontos de vista, na profusão de tipos, bem como na capacidade discursiva de entrelaçar
episódios, situações e narradores. São estratégias que conduzem o leitor ao deleite da
dimensão quase absurda das narrativas. Ao mesmo tempo em que somos levados ao prazer do
entretenimento e, portanto, ao domínio de Eros, deus do prazer, ficamos também presos
através de um fio de realidade tecido pela representatividade das histórias, capazes de
atravessar o tempo.
Sabemos que a divisão do instinto humano entre o princípio do prazer e o princípio
da realidade foi amplamente discutida por Freud no início do século XX, e, posteriormente,
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por Marcuse na década de 1960. Ainda que familiarizados com os conceitos, vale relembrar o
fato de o chamado “instinto de vida” (termo freudiano para o princípio do prazer) estar
relacionado à satisfação imediata, ao júbilo da atividade lúdica, à gratuidade da vida, à
ausência de repressão. Essas características compõem a essência da representatividade das
fontes literárias da trilogia de Pasolini. Por outro lado, a cultura civilizada moderna trouxe,
grosso modo, o fim das concessões ou das gratificações sobre o instinto de vida. A marcha
civilizatória e suas instituições imprimem sobretudo o controle do prazer. Assim, as emoções
não são mais satisfeitas integralmente, e o princípio do prazer é encoberto pela satisfação
controlada, pelas relações de trabalho, pela produtividade, pela segurança, etc. Freud chamou
de “instinto de morte” o princípio da realidade, explicando que ele tenta se impor sobre o
suposto poder “destrutivo” de Eros, do instinto de vida. Desde então, este é o preço que o
homem civilizado paga: ele precisa oscilar entre os dois princípios (FREUD, 1975 e 1978).
Na conhecida interpretação de Marcuse, para o pai da psicanálise a história do homem como
história da sua repressão pode ser ao mesmo tempo acusação e defesa da civilização: a coação
sobre a existência é precondição do progresso.
Importa ressaltar que Il Decameron de Pasolini tenta resgatar a essência deleitosa das
novelas de Boccaccio para os tempos atormentados do início da década de 1970. Assim como
o Decameron do século XIV, escrito sob condições devastadoras impostas pela peste, a
empreitada cinematográfica acontece sob uma situação-limite. Pasolini adapta dez das cem
histórias boccaccescas em tempos de projeções fascinantes para a vida material (devidas,
especialmente, ao consumismo que se alastrava pelas diversas culturas no mundo) e pouco
rendimento verdadeiro de felicidade. É justo concluir que a adaptação não quis recriar o
universo das personagens medievais no século XX. Noutras palavras, embora retrate o
passado medieval, o filme tem em vista as novas formas de relações sociais nos “anos
loucos”, provavelmente indagando sobre os lugares da burla, do triunfo dos mais espertos, da
realização sexual, da fé e da hipocrisia religiosa, da luta de classes, dos sentidos da arte. As
novelas, cuja composição no tempo de Boccaccio já sentia o embate entre forças lúdicas e
pragmáticas, entre certo prazer literário e uma exemplaridade moral, foram reacomodadas de
modo a perfazer dois blocos emoldurados por duas dessas histórias. Várias modificações
significativas levam ao seu entrelaçamento no filme, mas as sutis alterações de espaço e de
condições de personagens revelam intenções diferentes das de Boccaccio no que diz respeito à
adesão do ponto de vista aos destinos dos protagonistas.
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2. IMAGENS DAS PALAVRAS
Sabemos que o Decameron de Boccaccio é dividido em dez dias (giornate) que
comportam ao todo cem novelas, dez em cada giornata, contadas por dez jovens narradores
(fugitivos da peste para o local agradável da colina) que se revezam na tarefa prazerosa; cada
giornata é governada por um rei ou rainha que estabelece o tema e a sucessão de narradores.
Essa é a história-moldura, a cornice narrativa do Decameron, desdobrada nas finas ligações
entre uma jornada e outra, bem como nos elos entre as novelas – um “narrador principal”,
estranho aos dez jovens, aparece ao fim de cada dia para encerrar os trabalhos e iniciar uma
nova dezena de narrativas. Essa mesma voz principal pode fazer uma breve introdução a cada
novela, assinalando um gancho narrativo providencial ao narrador ou narradora seguinte.
Este, por sua vez, poderá fazer a sua pequena introdução (que, geralmente, comenta a novela
anterior) com um provérbio ou, pelo menos, com o tom proverbial no mote da novela. A
moldura oferece ao leitor mais desavisado, portanto, a medida do tempo, bem como a noção
da existência dos dez narradores, chamando-o à realidade.
O Decameron de Pasolini utiliza elementos que conseguem prender a atenção do
espectador com sucesso, no sentido de a narrativa fílmica promover ligações entre os
episódios sem diminuir o valor pictórico de muitas cenas para a leitura de uma época,
conferindo excelente acabamento e considerável organicidade ao produto final. E isso só
acontece graças à adaptação do procedimento livresco para o cinema, como pode ser visto a
partir da estrutura central da composição, que também pode servir como um resumo parcial.
A primeira cena é um fragmento da história que costura a primeira metade do filme. A fonte
dessa narrativa que aparece aos pedaços é a primeira novela da primeira jornada do
Decameron de Boccaccio, na qual Cepperello (ou Ciappelletto, conforme as variações
explicadas pela interseção com a língua francesa), um mau-caráter, termina santificado graças
à confissão teatralmente mentirosa que faz ao morrer. A história conta a saga de um
verdadeiro facínora que, após uma sucessão de ardis e perversões se traveste de homem bom e
contrito. O episódio é entrecortado por outros, assim o espectador se mantém atento ao
movimento narrativo instaurado.
Na primeira cena do filme, Ciappelletto mata violentamente um homem, livra-se do
corpo e cospe (a propósito, esse gesto de descaso pontua o filme, partindo também de outras
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personagens, como uma amostra de caráter). As primeiras ações passam-se sob um cenário
noturno ou de penumbra, próprio para os marginais. Há muitas passagens estreitas e frestas
que a personagem central, interpretada por Franco Citti, atravessa, como se o movimento no
espaço sugerisse a astúcia. A cenografia de toda a primeira metade do filme será exatamente
assim, promovendo a ligação entre os episódios.
Em seguida, a história de Andreuccio (baseada na quinta novela da segunda jornada)
é uma sucessão de golpes baixos. Até o protagonista (levado ao filme por Ninetto Davoli)
aprende a ludibriar após ter sofrido o golpe da falsa irmã. Ciappelletto retorna após essa
aventura, e está na rua, corrompendo meninos. Pasolini resolve com imagens muita coisa que
a prosa do Trecento deixava para o leitor descobrir e desenvolver na sua imaginação: o caráter
de Ciappelletto é fornecido pelas ações mostradas no filme, porém há nestas tomadas uma
indiscutível economia, graças à imediatez do discurso, que promove a interseção entre as
histórias trazidas para a cena. Enquanto Ciappelletto seduz meninos, numa das vielas um
velho está contando uma história correspondente à segunda novela da nona jornada do
Decameron, envolvendo sexo, fingimento, corrupção, autoridade, punição e ridicularização
no cenário de um convento: é a história da abadessa que endossa as calças de um padre, seu
amante, ao correr para surpreender uma das freiras acusada de estar com um homem. É
curioso observar que o velho começa a narrar para um grande grupo de pessoas lendo uma
frase do livro que está aos seus pés e, logo em seguida, diz que irá explicar em napolitano o
que aconteceu naquele convento. Assim, mesmo desfrutando da forma escrita através da
leitura, o narrador não se convence e opta pela espontaneidade da forma oral em consonância
com o gestual que acompanha a narrativa - fusão que, segundo o próprio Pasolini, a palavra
deve assumir. Ao abrir mão da leitura, o velho põe ao alcance de seus ouvintes uma das
histórias “desmascaradoras” do Decameron, alterando o ponto de vista original, passando-o
da classe privilegiada (e do registro “oficial” do idioma) para o povo da rua (e para o registro
no dialeto meridional).
A novela emparelha-se pelo tema com o episódio seguinte, de Masetto da
Lamporecchio no convento (retirado da primeira novela da terceira jornada), com o mesmo
tipo de corrupção da mesma categoria de pessoas, ou seja, trata da volúpia sexual das freiras.
Ambas as histórias terminam com a conciliação das transgressões (ou dos pecados) com a
vida santificada dos ambientes em que acontecem.
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Antes de conhecermos o final da história de Ciappelletto, assistimos ao adultério de
Peronella, correspondente à segunda novela da sétima jornada (nesse dia, o tema para as
novelas deveria tratar das beffe de que as esposas se utilizam para enganar os maridos, seja
pelo amante ou para se safar). Além de refletir o que poderia ser considerado “desvio de
regras”, a história também se insere na temática do engano, do fingimento, do mau-caratismo
que vinha se desenvolvendo no filme, sempre aproveitando as facetas do enganador e do
enganado. Em outros termos, poderíamos dizer que o eixo da primeira metade do filme está
baseado no triunfo da astúcia que não mede os prejuízos de terceiros, bem como na inversão
de algumas “regras” ou convenções (a mulher, por exemplo, pode parecer passiva, porém
possui um substrato de astúcia invejável). Esse eixo vai se definindo em complexidade à
medida que cada quadro fornece um dos possíveis cenários da corrupção. Ciappelletto tem
desenlace semelhante em dramaticidade à novela de Boccaccio – a contrição exagerada e
embusteira do pecador o transforma em santo. Contudo, a história se prolonga, e Pasolini
revela a manipulação dessa santidade pelos interesses pré-capitalistas, incluindo os religiosos,
tão ou mais degenerados que a pior corja do populacho medieval. Desse modo, vemos que
estrutura e significado atualizam o entrelaçamento dos episódios no filme.
3. IMAGEM DAS IMAGENS
A segunda parte do Decameron é ainda mais ousada, pois a história que costura os
episódios é praticamente recriada a partir da quinta novela da sexta jornada sem utilizá-la por
inteiro. Pasolini interpreta um discípulo de Giotto (1267-1337), e não o artista do Trecento
que figura na novela de Boccaccio, sem encenar a battuta final que teria colocado o
interlocutor de Giotto (o Sr. Forese da Rabatta) em seu devido lugar. Na versão de Boccaccio,
surpreendidos pela chuva os dois se abrigam e cobrem-se com velhas capas e chapéus
emprestados de camponeses, tornando-se irreconhecivelmente feios. Forese da Rabatta brinca
com o mestre, dizendo que um estranho jamais poderia imaginar que o outro era o melhor
pintor do mundo, debaixo daquela indumentária, ao que Giotto responde: “Messere, credo
Che egli il crederebbe allora che, guardando voi, egli crederebbe che voi sapeste l’abbicì.”
(BOCCACCIO, 1980, p. 542) [“– Senhor, penso que ele o acreditaria, desde que, olhando
para você, imaginasse que você conhece o á-bê-cê.” (BOCCACCIO, s. d., p. 329)]
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Pasolini livra o aluno de Giotto dessa espirituosidade. O pintor no filme é
absolutamente concentrado e dedicado, a ponto de se comunicar pouco com palavras. Em
compensação, este personagem oferece a sua medida da representação para um artista, na
cena em que seu olhar capta o cotidiano da gente comum em Nápoles, cenário de boa parte do
filme. Durante a história do discípulo de Giotto, na cena rodada na lateral externa da igreja de
Santa Chiara, as imagens são selecionadas “preferencialmente através de primeiros planos,
graças a um gesto de enquadramento que remete ao olho da câmara e que une numa mesma
dimensão pintura e cinema” (FABRIS, 1993, p. 116). São tomadas muito próximas da
perspectiva utilizada por Giotto. O olho do pintor (quase um cineasta) percebe de perto o
movimento, as cores, as atitudes e as proporções, repensadas pelo engenho incansável e até
perturbado transpondo para a ideia de um grande painel cenas e rostos da realidade tomada a
partir do contato direto que chega a emocionar o pintor – é inevitável pensar na humanização
do artista através da interpretação de Pasolini. Curiosamente, o título em português da obra de
Giotto – Giudizio Universale ou Juízo Final – soa estranho para o afresco do discípulo no
filme, que prefere o sonho da criação à “finalização” da pintura.
Vale também lembrar que a pintura real, considerada por muitos a maior obra de
Giotto, foi realizada durante a primeira década de 1300, em Pádua, na Capella degli Scrovegni
(que foi conhecida como Capela di Santa Maria dell’Arena, pois foi construída sobre as ruínas
de um anfiteatro romano), fartamente decorada pelo artista florentino – são trinta e sete cenas
cobrindo acontecimentos desde os anteriores ao nascimento da Virgem Maria até a
ressurreição de Jesus, nos quais os recursos realistas permitem visualizar muitos efeitos, entre
os quais a emoção, a devoção, a humildade e a pureza com medida, a ponto de oferecer
dimensão nobre a argumentos e conteúdos de histórias populares. Por outro lado, o Giudizio
Universale, a despeito de remeter a diversas fontes pictóricas, a histórias de santos, ao
Evangelho (Mateus, 25 e Apocalipse de S. João), é a única pintura na capela com
características fantásticas, como a retratar mais o produto da imaginação do pintor que a
observação da realidade, razão pela qual o resultado nos conduz para um plano metafísico,
dividido em subplanos hierárquicos com a figura do Redentor no centro. O pintor interpretado
por Pasolini em seu filme idealiza um painel vivo, em que figuras familiares aos espectadores
(porque já vistas em cenas anteriores) aparecem quase encenando a pintura, com Nossa
Senhora (Silvana Mangano) na moldura central. O resultado inacabado no filme também é um
produto da imaginação do artista, porém o discípulo de Giotto não leva a cabo sua idealização
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nem transfigura as convenções metafísicas como a distribuição das figuras nos planos
superiores e inferiores, de acordo com a composição equilibrada entre virtudes e vícios. Ao
representar um artista que aproveita o mestre sem copiá-lo, alterando o que supomos ser o
modelo, Pasolini parece definir uma personalização do processo de influência.
As atitudes do pintor condensam o processo de pesquisa, de representação, de
assimilação de influências e de contemplação. A figura de Pasolini, artista que recusa as
alturas de um determinado ponto de vista para apresentar as classes menos privilegiadas,
associa-se ao leitor da novela de Boccaccio e admirador de Giotto, definido por Boccaccio
como portador de “uno ingegno di tanta eccellenzia” (1980, p. 540), fundador de uma
concepção de arte capaz de nos fazer julgar “objeto real o que, na verdade, somente está
pintado” (s. d., p. 328). O filme sobrepõe ao realismo de Giotto “um artista visionário que, no
sonho, cria uma aparição que não ousará materializar” (FABRIS, 1993, p. 116) e representa o
cineasta cuja capacidade de reescritura dos mestres pode incluir a reverência e a sensatez na
superação.
Na primeira parte de seu filme, Pasolini evidencia o fechamento ou afunilamento no
percurso das personagens, ao mesmo tempo em que favorece o grotesco da condição humana
(principalmente através dos rostos expressivos que aparecem em profusão) e o sucesso da
esperteza, distribuída por todos os estratos humanos, como se estes pudessem transmitir todas
as máculas e primores da sociedade. A segunda parte traz a poesia da criação segundo
Pasolini, traduzindo o prazer da criação artística marcadamente através da história da
execução de uma obra – o mural pintado pelo discípulo de Giotto com ritualismo, ansiedade,
sensibilidade, diversão, sonho, incompletude, diga-se de passagem, fatores essenciais da
criação segundo Pasolini. Ao lado disso, a segunda parte também aperfeiçoa as intenções da
primeira e ainda transita pelo terreno da esperteza e do fingimento, porém faz incursões na
área da intencionalidade dos atos humanos, na vida e na arte.
Embora seja normal aceitar que a segunda metade do Medioevo conheceu uma época
de declínio das instituições e, em contrapartida, a nova classe burguesa triunfava com astúcia,
é sempre bom lembrar que esse tempo conheceu a multiplicidade de formas, o lado mais
pitoresco do mundo e as várias filosofias, as várias condutas de vida coexistentes para o
futuro abandonar o homem a si mesmo. Surgida nesse clima, a obra de Boccaccio antecipa
algumas situações para o cotidiano das novelas do Decameron. Um bom exemplo é a novela
de Ricciardo e Caterina, quarta novela da quinta jornada, que está na segunda parte do filme
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de Pasolini, imediatamente antes da quinta novela da quarta jornada (curiosamente, numa
combinação de elementos invertidos), em que um jovem casal de amantes (Elisabetta e
Lorenzo) é cruelmente separado. Há, em ambas as narrativas, a explicitação de subterfúgios
característicos de classe através das reações das famílias das moças, e a leitura de Pasolini
traça um parecer. Boccaccio separa as histórias em jornadas diferentes provavelmente porque
as punições pela violação da honra virginal são distintas em função da condição dos rapazes.
Lorenzo, empregado da família de Elisabetta, é morto sem que a moça saiba, restando a ela
somente o consolo de trazer a cabeça do amado para casa, após ele aparecer em sonho para
contar o que acontecera. Para compensar o peso desse final triste, a novela sobre os jovens
amantes na jornada seguinte termina bem. Ricciardo trazia vantagens para a família de
Caterina, então os pais dela concordam com o casamento como solução. Pasolini inverte a
ordem de aparição das novelas para destacar a hipocrisia e a crueldade nas duas histórias
quase lidas como uma só. Nesse sentido, leva ao exagero o cinismo dos pais de Caterina na
transposição da cena do noivado em pleno flagrante dos amantes, para enfatizar a atitude
tipicamente burguesa da fase inicial do capitalismo. Lorenzo, que não tinha atributos para a
união com uma família rica e precisava ser eliminado, a marca do dialeto do sul na
interpretação do ator deixa óbvia a intenção de destacar a condição inferior da personagem. A
escolha e a disposição das duas novelas no filme sugerem a intenção de reforçar a visão de
classes, conforme assinala Ben Lawton (1977). Mais que isso, através das duas histórias em
espelho, o filme revisita em tempos de capitalismo desmedido as forças de dominação
burguesas (e, por extensão, as forças do poder) sobre a louvação da juventude e do prazer (e
da liberdade, da igualdade).
Outra novela também aproveitada por Pasolini que dá a dimensão de alcance do
significado do Decameron é a décima novela da sétima jornada, na qual dois homens
libertam-se, cada um à sua maneira, do peso de uma ideia que lhes fora incutida
principalmente pelo hábito da religiosidade. A libertação de Meuccio no filme é, de fato,
eufórica e triunfante, compensando as dúvidas que o companheiro e ele próprio tiveram
durante a vida toda. Novamente Pasolini opta pelo exagero para destacar os elos entre uma
realidade aparentemente distante e um tempo carente de libertações pessoais e espirituais.
4. ALMA, OLHAR E MÃO DA ESCRITA E DA IMAGEM
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Os episódios do filme são distribuídos por dois feixes dispostos a absorver e
ultrapassar a narrativa original. Não se trata de proporcionar mais universalidade ou de
atualizar a obra do Trecento, pois o filme aproveita quadros narrativos para uma montagem
ou, melhor dizendo, para a “arquitetura” de uma segunda narrativa cuja independência do
texto que lhe serviu de inspiração pode ser reconhecida. Afinal, tanto o cineasta quanto o
escritor “narram” do próprio ponto de vista, a atualidade de cada um. Não há baralhamento de
autorias, pois ambos partem de seus universos e são igualmente autores.
Boccaccio utilizou procedimentos livrescos (técnicas apuradas dos Fabliaux, das
crônicas contemporâneas, do romance medieval e do folclore popular) com intenções de
explorar possibilidades narrativas mantendo fixo o enfoque erudito que, embora distribuído
entre dez jovens, ainda se mantém na mesma posição social em toda a moldura. Pasolini faz
uso pleno de recursos visuais que atualizam formas e conteúdos para um ponto de vista que
democratiza torpezas e problematiza a ligação entre realidade e criação, procedimentos
impossíveis para um artista do tempo de Boccaccio. A coerência com alguns postulados da
estética pasoliniana é quase óbvia.
Para Pasolini, o mundo não se confessa na tela; o cineasta deve assumir a função de
“dizer”, de intervir. Sendo assim, poderá utilizar-se de um procedimento análogo ao dos
ficcionistas: com a mão por trás da narrativa, escritor e cineasta tanto podem nomear
narradores e livrar-se da responsabilidade sobre a apresentação dos fatos, como também
podem fazer digressões no decorrer da narrativa, e voltar ao fio principal. As molduras
narrativas podem ajudar a cumprir essas funções. Na adaptação para o cinema, a obra literária
sofre intervenções que naturalmente fazem dela instrumento da expressão do cineasta.
Pasolini estabeleceu uma interessante analogia entre a montagem cinematográfica e a
morte: esta faz um balanço rápido da vida, seleciona passagens mitificando-as inclusive, para
extrair delas um proveito; a montagem “corta o fluxo contínuo da imagem em movimento e
transforma a combinação dos fragmentos em discurso” (apud XAVIER, 1993, p. 105) - ela
“mortifica” o registro, mas dá um significado à sucessão, instaura uma perspectiva, objetivo
que toda narrativa deve almejar, segundo Pasolini. Cada filme seu é a invenção de um modo
de narrar (montar) para produzir sentido, fazer um diagnóstico do presente, mesmo com
aparência de falar sobre o passado.
O patamar de criação atingido pelo que Pasolini chamou “cinema de poesia” trouxe
complexidade ao processo narrativo fílmico, o que representa um desafio ao espectador que
Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X
Páginas 356-367
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA –
LITERATURA NO CINEMA e
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema
precisa estar atento ao modo pelo qual os procedimentos técnicos (montagem, movimentos de
câmera, enquadramentos, cenografia, fotografia, etc.) presentes na visualização do mundo
objetivo oferecem o código de uma vivência interior, subjetiva (apud XAVIER, 1993, p. 107).
E assim como o espectador, o leitor da narrativa cuidadosamente elaborada que está livre e, ao
mesmo tempo, de acordo com as regras estéticas (como as de Boccaccio, por exemplo) é
educado pelo discurso que se preocupa com o desenvolvimento do detalhe, com a paciência
na narrativa que não dispensa em hipótese alguma a concisão. Ao final da leitura, espectador e
leitor poderão perceber o significado do detalhe ou, pelo menos, desconfiar dele. Afinal, nada
aparece ao acaso na narrativa que se liberta (e liberta o leitor) de convenções formais e morais
taxativas e presas a uma estética de época. Concomitantemente, esse procedimento narrativo
põe em prática a lição da experiência, da narrativa oral, da leitura dos antecessores, da
observação das tintas e das nuances da realidade à sua volta.
REFERÊNCIAS
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Livro, s. d.
_____. Decameron. 5. ed. Milano: Garzanti, 1980.
CHKLOVSKI, Victor. A construção da novela e do romance. In: EIKHENBAUM, B. e
outros. Teoria da literatura. Formalistas russos. Trad. Ana Mariza Ribeiro Filipouski e
outros. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1976.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Os Pensadores. Trad. Durval Marcondes et
al. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 129-194.
_____. Mais além do princípio do prazer. In: Pequena Coleção das Obras de Freud. Trad.
Christiano Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1975. Vol. 13.
LAWTON, Ben. Boccaccio and Pasolini. A Contemporary interpretation of the Decameron.
In: BOCCACCIO, Giovanni. The Decameron. Trad. Mark Musa and Peter Bondanella. New
York: W. W. Norton, 1977, pp. 306-322.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de
Freud. Trad. Álvaro Cabral. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, s. d.
PASOLINI, Pier Paolo. Abjuração da “Trilogia da vida”. In: LAHUD, Michel (org.) Os
Jovens Infelizes. Antologia de Ensaios Corsários. Trad. Michel Lahud e Maria Betânia
Amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 199-204.
XAVIER, Ismail. O cinema moderno segundo Pasolini. Revista de Italianística. São Paulo:
ano I, nº 1, 1993, pp. 101-109.
Andrea Camilleri: o roteirista, o diretor e o autor
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