Santo Antônio de Jesus Dezembro/2010
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Santo Antônio de Jesus Dezembro/2010
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL Santo Antônio de Jesus Dezembro/2010 Camila Barreto Santos Avelino NOVOS CIDADÃOS: Trajetórias, Sociabilidade e Trabalho em Sergipe após abolição. (Cotinguiba 1888-1910) Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia/UNEB, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre, sob a orientação do Professor Doutor Walter Fraga Filho. Santo Antônio de Jesus Dezembro/2010 A948 Avelino, Camila Barreto Santos. Novos Cidadãos: trajetórias, sociabilidade e trabalho em Sergipe após a abolição (Cotinguiba 1888-1910). / Camila Barreto Santos Avelino 2010. 160 f.: il. Orientador: Prof. Dr. Walter Fraga Filho. Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa de PósGraduação em História Regional e Local, 2010. 1. Abolição da Escravatura. 2. Sergipe – História. 4. Negros – Sergipe – História I. Fraga Filho, Walter. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local. CDD: 981.41 Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396. Camila Barreto Santos Avelino NOVOS CIDADÃOS: Trajetórias, Sociabilidade e Trabalho em Sergipe após abolição. (Cotinguiba 1888-1910) BANCA EXAMINADORA: _____________________________________________ Prof. Dr. Walter Fraga Filho (Orientador) _____________________________________________ Prof. Dr. Antônio Liberac Cardoso Simões Pires (UFRB) _____________________________________________ Prof.ª. Dar. Isabel Cristina Ferreira dos Reis (UFRB) _____________________________________________ Prof. Dr. Aldrin Armstrong Silva Castellucci (Suplente) _____________________________________________ Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho (Suplente) Santo Antônio de Jesus Dezembro/2010 As minhas origens, Cicero e Rivania, Aos negros e negras sergipanos que me permitiram, Narrar um pouco de suas vidas e história. 6 AGRADECIMENTO “O coração agradecido comunica-se com Deus”. (Mokiti Okada) Ao Supremo Deus, minha sincera gratidão por ter conseguido cumprir mais essa etapa de minha missão. O caminho da busca e aprimoramento espiritualista me deu a força necessária para superar os obstáculos, as incertezas, as necessidades que não foram maiores e nem mais forte que meu desejo de superá-las. O caminho do profissionalismo acadêmico é muitas vezes uma trilha solitária, mais que com certeza não seria cumprida se ao longo do trajeto fossem surgindo pessoas que nos encorajariam a seguir adiante. Ao meu orientador, Walter Fraga Filho, meu sincero agradecimento pela colaboração no direcionamento das pesquisas, nas leituras atenta dos textos produzido ao longo desses dois anos, enfim, esse também trabalho é fruto de sua paciência e competência como profissional e amigo. A minha amiga-irmã Soanne Cristino, que me acompanhou em todos os momentos nesses dois anos de minha vida. Alegrias, tristezas, realizações, frustações, você foi o melhor presente que Deus me concedeu nessa fase de busca e realizações, por isso dedico esse trabalho a você, que foi a maior incentivadora nos momentos em que eu pensei em recuar. A minha família, Cicero e Rivania meus pais, que forneceram toda base e amor para seguir tranquilo nesse desafio. As minhas irmãs, Virginia, Caroline e Joyce desculpe as ausências e obrigada pelo amor incondicional de vocês. A lembrança de ter família e poder estar segura em seu seio me enche de vigor sempre. Especialmente, meus agradecimentos a Carol, que dividiu comigo angustias, incertezas, vibrações e me encorajou a superar os obstáculos no momento mais difícil de minha vida, serei eternamente grata. Amo vocês. Aos amigos de turma e de convivência: Kleberson, Carol, Wanderson, Thethê, Rejane, Cristiane, Taiane, Daiane, Jacó, Igor Fonseca, Jean, César, Isaias, Monique e os demais, que me auxiliaram em meu crescimento profissional, nas discursões acadêmicas e com certeza nas experiências de vida. Em especial a Leandro Bulhões que me ensinou uma das mais belas lições: viva cada dia como se fosse único, se permite, porque a vida é um mundo de possibilidades! 7 Ao programa de Pós-Graduação em História Regional e Local, aos coordenadores, docentes e as secretarias Anne e Consuelo que sempre estivem prontas a nos auxiliar nas tarefas mais burocráticas, muito obrigada. A Alan Costa Oliveira e família, que me acolheram nesses dois anos como um familiar. Pelo amor doado, pela convivência sofrida, pelos sorrisos e abraços, que Deus retribua em dobro a todos vocês. Aos que aqui não foi possível mensurar, mas, levo em meu coração o desejo e ensejo que a vida proporcione muito mais a cada um que direta ou indiretamente contribuiu para o meu crescimento pessoal e profissional. 8 Encontrei minhas origens Em velhos arquivos Livros Encontrei Em malditos objetos Troncos e grilhetas Encontrei minhas origens No leste No mar em imundos tumbeiros Encontrei Em doces palavras Cantos Em furiosos tambores Ritos Encontrei minhas origens Na cor de minha pele Nos lanhos de minha alma Em mim Em minha gente escura Em meus heróis altivos Encontrei Encontrei-as, enfim Me encontrei. * Antologia dos poetas negros (Oliveira Silveira) (*) O professor, poeta e pesquisador gaúcho Oliveira Ferreira da Silveira foi o idealizador do Dia da Consciência Negra. 9 RESUMO Esse estudo analisa as trajetórias, as redes de sociabilidade e as relações de trabalho no pós-abolição das populações afro-brasileiras em Sergipe, especificamente na Região do Cotinguiba, entre os anos de 1888 a 1910. Por meio da análise de fontes diversificadas, tais como fontes primárias, processos crimes, correspondências, relatórios, jornais, a Revista Agrícola de Sergipe e etc. Buscamos entender como a abolição da escravatura se processou nessa sociedade e como os significados da liberdade alterou a vida cotidiana dessa população. No discorrer desse trabalho, objetivamos compreender o processo de inserção social das “populações de cor” egressas da escravidão, elucidando as suas trajetórias coletivas e individuais e as novas relações de trabalho livre no limiar do novo regime político – a República. PALAVRAS-CHAVE: Abolição, trajetórias, trabalho livre, Sergipe. 10 ABSTRACT This study examines the trajectories, networks of social and labor relations in the postabolition African-Brazilian populations in Sergipe, specifically in Region Cotinguiba between the years 1888 to 1910. Through analysis of different sources, such as primary sources, criminal cases, correspondence, reports, newspaper and journal Agricultural and Sergipe etc., we understand how the abolition of slavery took place in this society and how the meaning of freedom changed everyday life this population. In discoursing of this study, we aimed to understand the process of integration of "people of color" who returned from slavery, elucidating their individual and collective trajectories and the new relations of free labor at the dawn of the new political regime - the Republic. KEYWORDS: Abolition, trajectories, free labor, Sergipe. 11 LISTA DE MAPAS, IMAGENS, FOTOGRAFIAS E TABELAS. MAPA 1 - Mapa da Região do Cotinguiba - Principais rios século XIX.......................27 MAPA 2 – Mapa de Sergipe com destaque da Região do Cotinguiba com principais rios, cidades e vilas no século XIX..........................,,..................................................28 FOTO 1: Foto do Mercado Municipal de Laranjeiras no século XIX...........................30 FOTO 2: Foto do Engenho Pedras em Maruim............................................................. 32 TABELA 1: Distribuição da População livre e escrava do Cotinguiba......................35 TABELA 2 - Variação da população livre e escrava de Sergipe e do Cotinguiba 1851 e 1873.................................................................................................................................36 MAPA 3: Roteiros e datas oficiais do aparecimento da Cólera Morbus em Sergipe. Set 1855 – Jan 1856..........................................................................................................38 TABELA 3: Estrutura ocupacional da População escrava em Sergipe 1873 e 1887..............................................................................................................................30 TABELA 4: Participação dos principais produtos sergipanos no valor percentual das exportações..................................................................................................................40 TABELA 5: Quadro dos Presidentes da Província de Sergipe 1889 a 1911........... ......53 TABELA 6: Quadro do Corpo policial de Sergipe 1880 a 1910....................................76 FIGURA 1: Genealogia da família Dias Rollemberg até a 3ª geração...........................85 FOTO 3: Vista parcial da Usina Escurial e dos trabalhadores livres......................... 86 12 FOTO 4:Vista da Casa Grande do Engenho Escurial...................................................87 FOTO 5: Vista lateral das casas dos trabalhadores livres da Usina Escurial (antiga senzala)........................................................................................................................87 FOTO 6: Vista Frontal da Capela da casa grande do Engenho Escurial.......................88 FOTO 7: Vista frontal da Capela da Senzala do Engenho Escurial..............................88 FOTO 8: Fotografia de Homero de Oliveira...............................................................98 FIGURA 2: Capa da Edição especial da Revista Agrícola de 1906.............................102 TABELA 7: Migração líquida interna e internacional de estrangeiros em Sergipe...................................................................................................................... 137 TABELA 8: Modelo questionário agrícola – Cotinguiba 1910 a 1912........................140 TABELA 9: Situação agrícola e de trabalho do Cotinguiba (1910-1912)...................141 TABELA 10: Tabela da faixa de salários pagos na Região do Cotinguiba (19101912)...........................................................................................................................143 13 LISTA DE ABREVIATURAS ACMA– Arquivo Público da Cúria Metropolitana de Aracaju AJES – Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe AJES – Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe APA – Arquivo Público de Aracaju APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia APES- Arquivo Público de Sergipe BPN – Biblioteca Nacional BPED – Biblioteca Pública Ephifâneo Dórea IHGS – Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe IISA – Imperial Instituto Sergipano de Agricultura SSA – Sociedade Sergipana de Agricultura 14 SUMÁRIO LISTA DE MAPAS, IMAGENS, FOTOGRAFIAS E TABELAS........................... 11 LISTA DE ABREVIATURAS..................................................................................... 13 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 16 Capítulo I - Entre o cativeiro e a liberdade: economia, população e sociedade. .... 26 1.2 Os escravos: a força de trabalho do Cotinguiba e a Crise da Lavoura. ............ 33 1.3 A festa e o silenciamento da abolição - O 13 de maio em Sergipe. ..................... 41 1.4 Sergipe no limiar da República: Um olhar sobre sua evolução no final do século XIX ................................................................................................................................. 50 Capítulo II - Os Reflexos da Liberdade: cotidiano, cidadania e sociabilidade. ...... 56 2.1 Novos Cidadãos: “Lei da própria Vontade” ........................................................ 57 2.2 A “tragédia” da Vila do Rosário ........................................................................... 63 2.3 De vadios a Soldados: o recrutamento policial como forma de conter a desordem no pós-emancipação. ................................................................................... 68 2. 4 “Dê instrução ao negro submisso e estúpido e ele tornar-se-á cidadão”: a educação como medida de “civilizar” os libertos. ..................................................... 80 Capítulo III- Nas fronteiras da liberdade: a organização do trabalho livre em Sergipe. .......................................................................................................................... 91 3.1 A Revista Agrícola – A serviço da lavoura, comércio e indústria em Sergipe............................................................................................................................93 15 3.2 O combate ao ócio: a direção do olhar das elites sergipanas sobre as “populações de cor”, livre e pobre...........................................................................105 3.3 Pelas vozes dos outros: “organização do trabalho” após a abolição na Revista Agrícola de Sergipe. .................................................................................................... 109 Capítulo IV - Os códigos e suas (im)posturas: o Código Rural em Sergipe.......... 123 4. 1 – Os destinos da liberdade: “a sedução dos nossos pretos”. ............................ 132 4. 2 - A situação Agrícola em Sergipe: notas sobre o Questionário Agrícola na Região do Cotinguiba. ................................................................................................ 139 16 INTRODUÇÃO O processo de abolição da escravatura e seus desdobramentos vêm sendo a algumas décadas alvo de estudos em diversos países e também em várias regiões do Brasil. A partir das abordagens da nova historiografia da escravidão tem-se problematizado os significados da liberdade e suas inferências no cotidiano das relações entre brancos e negros nos anos posteriores a emancipação. É fato, que no Brasil, a abolição gradual do trabalho escravo já vinha se processando no decorrer do século XIX. Mais precisamente a partir de meados dos oitocentos, entretanto, no dia 13 de maio de 1888, todo território nacional se viu no mais completo burilamento. Seja pelas comemorações da abolição, seja pelo descontentamento dos proprietários rurais, que traduziram esse acontecimento como deletério para suas vidas e riquezas. Atualmente no Brasil, há uma diversidade de estudos que abordam as peculiaridades da escravidão e do pós-abolição de forma sistematizada. No decorrer de minha vida acadêmica, busquei estudar as trajetórias de populações afro-brasileiras egressas da escravidão. Optei então por pesquisar a região açucareira do Estado de Sergipe, composta por onze municípios situados na Região do Cotinguiba, até então pouco explorado no tocante os estudos sobre a abolição da escravatura. Meu objetivo inicial era conseguir rastrear os “fios” das histórias que envolviam esses “novos cidadãos” após a emancipação, através das fontes, pude perceber que era possível ir mais além. Durante a graduação, no trabalho de conclusão de curso, desenvolvi um estudo sobre as trajetórias de ex-escravos que eram tidos como vadios, ladrões e defloradores.1 Foi justamente rastreando as historias de vida desses personagens, que me deparei com uma documentação abundante onde frequentemente era utilizados esses termos pejorativos para caracterizar a vida errante de muitos libertos. Foi através dessa representação do liberto como “marginal” que me impulsionou a analisar mais profundamente as trajetórias de vidas dessas pessoas. Ao longo desse processo, consegui localizar diversas outras histórias envolvendo as “populações de cor”, mas, por outro ângulo, construindo famílias, ampliando suas redes de sociabilidades, 1 AVELINO, Camila Barreto Santos. “O olhar branco sobre o preto”: Vadios, ladrões e defloradores, o negro na sociedade sergipana pós-abolicionista. (1888-1890). Trabalho de Conclusão de Curso, Aracaju, Unit, 2007. 17 estabelecendo e negociando novas relações de trabalho, em confronto a uma sociedade ainda marcada profundamente pela escravidão. Foram a diversidades dessas novas fontes que me fizeram percorrer o caminho trilhado até aqui. As fontes e as histórias que surgem ao longo desse trabalho foram coletadas em diversos momentos de pesquisas. Surgem, ora entrelaçadas com outras fontes para desse cruzamento poder ser possível abordá-las, ora uma única fonte aparece de forma ampla e permite que narremos os acontecimentos do início ao fim. Desse modo, objetivamos com esse trabalho, analisar as trajetórias das populações afro-brasileiras em Sergipe, mais especificamente a Região do Cotinguiba, entre os anos de 1888 a 1910. Buscando compreender como a Lei Áurea e a emancipação definitiva se processou na sociedade sergipana e como ex-senhores e libertos significaram a liberdade em suas trajetórias de vidas. A escolha da temática em análise e o interesse no processo de realização desse trabalho é fruto da inquietação pessoal e do compartilhamento de momentos em que foram questionados os posicionamentos e as ocupações das “pessoas de cor” no cenário social brasileiro e sergipano. Suscitei novos questionamentos e ampliei as problematizações, na tentativa de compreender o processo de reestruturação social em Sergipe após a abolição e a inserção das “populações de cor” nessa sociedade, elucidando entre esses acontecimentos as trajetórias coletivas ou individuais e as relações de trabalho no limiar do novo regime político – a República. Ao realizar uma incursão historiográfica sobre essa temática foi possível perceber que a literatura sobre a escravidão é vastíssima. Uma breve leitura da produção historiográfica sobre escravidão e liberdade nos últimos anos, permite visualizarmos o avanço desses estudos, principalmente, no tocante as representações sociais e culturais das populações afro-brasileiras. Desse modo, fiz um levantamento bibliográfico sobre Escravidão, resistência e abolição em Sergipe. Dediquei-me a estudar a historiografia produzida até então, que dissertassem sobre as populações afro-brasileiras e através dessa pesquisa obtive uma análise parcial sobre como o negro era visto e representado pelos intelectuais sergipanos, muitas vezes em traços destoantes. A partir da década de 70, encontramos trabalhos significativos sobre a escravidão em Sergipe. Ariosvaldo Figueiredo 2; José 2 FIGUEIREDO, Ariosvaldo. O Negro e a Violência do Branco - o negro em Sergipe, Rio de Janeiro, J. Álvaro Editor, 1977. 18 Mário Resende 3; Maria da Glória Almeida 4; Luiz Mott 5 e Maria Nely Santos 6 foram autores pioneiros em suas abordagens, sobre a sociedade sergipana e a representação dos escravos nesse universo. Várias contribuições foram trazidas por esses autores, suas obras são referências no que concerne ao levantamento de fontes e pesquisas sobre a historiografia da escravidão em Sergipe. Porém, muitos desses estudos, influenciados teórico e metodologicamente pela historiografia de sua época (em sua grande maioria produzida na década de oitenta), mostram-se desatualizados, frente às novas abordagens realizadas por estudos mais contemporâneos. Trabalhos mais recentes, frutos de dissertações de mestrado e teses de doutorados, muitos ainda não publicados, vêm contribuindo bastante para o um maior conhecimento sobre a História de Sergipe. Entretanto, se comparado a outras regiões do Brasil, ainda é pouco estudado no que concerne à temática em questão. Josué Modesto dos Passos Subrinho em sua tese de doutorado, Reordenamento do Trabalho escravo para o trabalho no Nordeste açucareiro: Sergipe (185-1930) 7 estudou o reordenamento do trabalho após a abolição no Nordeste, evidenciando as peculiaridades da economia sergipana, que conforme o autor, até as vésperas da abolição possuía por sua principal base econômico a produção açucareira atrelada ao trabalho escravo e, não havendo imigração maciça a “passagem” do trabalho escravo para o trabalho livre em Sergipe se deu muitas vezes por “arranjos” de trabalhos entre proprietários rurais e libertos. 8 Joceneide Cunha Santos e Igor Fonseca de Oliveira, em suas respectivas dissertações de mestrado, se propuseram a estudar a escravidão e resistência em Sergipe em meados do Século XIX, analisando aspectos do cotidiano da escravidão sergipana em regiões diferenciadas. Joceneide Cunha priorizou estudar o agreste-sertão sergipano 3 RESENDE, José Mário. “Entre Campos e Veredas da Cotinguiba: o espaço agrário de Laranjeiras: 1850- 1888”, Dissertação de Mestrado em Geografia, UFS, 2003. 4 ALMEIDA, Maria da Glória. Nordeste Açucareiro (1840-1875) - desafios num processo do vir-a-ser capitalista, Aracaju, UFS/SEPLAN, 1993; "Uma unidade açucareira em Sergipe: o Engenho Pedras" In: Simpósio da ANPUH, vol.2, São Paulo, 1976. 5 MOTT, Luiz. Sergipe d’El Rey - população, economia e sociedade, Aracaju, Fundesc, 1986; Sergipe Colonial e Imperial: Religião, família, escravidão e sociedade. São Cristóvão, UFS, programa editorial da UFS; Aracaju: fundação Oviêdo Teixeira, 2008. 6 SANTOS, Maria Nely. A Sociedade Libertadora "Cabana do Pai Thomaz"- Francisco Alves- uma história de vida e outras histórias, Aracaju, Gráfica J. Andrade, 1997. 7 PASSOS SUBRINHO, Josué Modesto. Reordenamento do Trabalho - Trabalho Escravo e Trabalho Livre no Nordeste Açucareiro: Sergipe, 1850-1930, Aracaju, Funcaju, 2000. 8 Segundo a “Historiografia tradicional”, Subrinho cita os trabalhos de FURTADO, Celso, Formação Econômica do Brasil, São Paulo, Ed. Nacional, 1969; EISEMBERG, Peter, Modernização sem Mudança, Rio de Janeiro, Paz e Terra/Unicamp, 1977 e CONRAD, Robert, Os Últimos Anos da Escravidão no Brasil (1850- 1888), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978. 19 no trabalho intitulado “Entre Farinhadas, Procissões e Famílias: a vida de homens e mulheres escravos em Lagarto, 1850-1888” 9, onde a autora aborda temas ligados à cultura, famílias escravas, trabalho e relações sócias entre escravos e senhores em Lagarto, município localizado no agreste sergipano e um dos maiores produtores de farinha de mandioca do Estado. Igor Oliveira em sua dissertação de mestrado defendida recentemente, “Os Negros dos Matos”: Trajetórias de quilombolas em Sergipe Del Rey (1871-1888) 10 traz uma nova abordagem sobre as experiências cotidianas dos escravos fugidos em Sergipe e sobre os quilombos sergipanos, muitos deles localizados nos arredores das matas pertencentes aos engenhos do Cotinguiba, dando ênfase a recorrência de escravos fujões nessa região, principalmente, a partir a promulgação da lei do Ventre Livre em 28 de setembro de 1871. Outro trabalho recente é a tese de doutorado de Sharyse Amaral, Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba (1860-1888).11 Nesse estudo a autora busca compreender o comportamento dos escravos e libertos nas últimas décadas da escravidão na Região do Cotinguiba. A autora discute as transformações sociais, as motivações e as expectativas dos diferentes sujeitos históricos frente ao novo mundo que se formava observando: as estratégias utilizadas para a obtenção da alforria; as relações estabelecidas com os senhores; as redes de solidariedade e identidade entre as “populações de cor”, os significados da liberdade e relações de trabalho. Esses trabalhos foram influenciados pelas novas abordagens da História social da escravidão. Que desde a década de oitenta da centúria passada, emergiram as primeiras obras dessa nova corrente historiográfica. 12 Sob a ótica desse renovador viés teórico iniciado com estudos desenvolvidos por conta do centenário da abolição, as obras produzidas têm priorizado retratar o escravo em seu universo social. 13 Nesse contexto, as relações sociais entre escravos, senhores e libertos, durante e após a abolição, tornaram-se alvo de estudos e pesquisas em diversas regiões do Brasil. 9 SANTOS, Joceneide Cunha, “Entre Farinhadas, Procissões e Famílias: a vida de homens e mulheres escravos em Lagarto, 1850-1888”, Dissertação de Mestrado em História, UFBA, 2004. 10 OLIVEIRA, Igor Fonseca de. “Os Negros dos Matos”: Trajetórias de quilombolas em Sergipe Del Rey (1871-1888). Dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Regional e Local – UNEB, 2010. 11 AMARAL, Sharyse Piroupo do. Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba (18601888). Tese de doutorado, UFBA, Ano de Obtenção: 2007. 12 Entre os autores destacam-se: João José Reis, Maria Odila Leite dias, Robert W. Slenes, Silva Hunold Lara, Sidney Chalhoub, Hebe Maria Matos, Maria Helena Machado, dentre outros, cujas obras serão abordadas no decorrer desse trabalho. Esses intelectuais buscaram retratar os escravos como agentes históricos e possibilitaram a emergências de estudos sobre a mulher, família escrava e os significados da liberdade e as estratégias para consegui-la, além de outras temáticas. 13 MACHADO, Maria Helena. Crime e escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 13. 20 Intelectuais de diversas áreas: historiadores, antropólogos, sociólogos e etc. Em especial, os historiadores buscaram explicitar as experiências do cativeiro e da liberdade para as “populações de cor” dando ênfase as memórias, o cotidiano, as relações de sociabilidade, de trabalho, de compadrio, de barganhas, dentre outros fatores, tão importantes para a historiografia brasileira e que anteriormente era subalternizada em relação ao grande numero de estudos sobre os grupos hegemônicos. Alguns historiadores dessa corrente historiográfica tiveram como principal influência teórica as obras Edward P. Thompson. Empregando em seus estudos os conceitos de experiência 14 e também lutas de classes 15 presentes no trabalho desse autor. Para a historiografia da escravidão, as obras Senhores e Caçadores, A formação da Classe Operária Inglesa, A miséria da Teoria e Costumes em Comum16 representa um novo viés teórico para o embasamento da construção historiográfica sobre a escravidão no Brasil. Para Silva Lara, os intelectuais brasileiros, inspirados pelos desdobramentos teóricos e políticos dos conceitos thompsonianas, começaram a insistir na necessidade de incluir a experiência escrava na História da escravidão. A “inclusão dos excluídos” possibilitou o surgimento de novas abordagens nas análises sobre as experiências entre senhor-escravo, assim, as relações históricas são construídas por homens e mulheres num movimento constante, tecidas através de lutas, conflitos, resistências e acomodações, cheias de ambuiguidades. 17 Um dos pontos de distinção entre as correntes historiográficas mais antigas e as novas correntes, diz respeito à utilização das fontes históricas. 14 18 Os primeiros Thompson mostra que algumas explicações acerca do funcionamento da sociedade, principalmente nas teorias de Althusser, foram excluídas as experiências cotidianas de homens e mulheres. Tais como, análises sobre como essas pessoas viveram algumas situações, as relações produtivas, os antagonismos provenientes dela e etc. Sobre o referido assunto consultar: THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros, uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1981. p. 180-200. 15 Segundo Thompson, as pessoas possuem relações numa sociedade estruturada; incluídas as relações de produção baseadas na exploração e na necessidade de manter o poder sobre os dominados. As pessoas identificam pontos de interesses antagônicos e, por isso, começam a se confrontar. Nesse processo se veem como classe; a chamada consciência de classe surge nesse momento. Por isso, o conceito chave para entender a classe é o de luta de classes, pois é através do ultimo que se forma o primeiro. E o processo de formação de classe pode se definir como uma formação cultural. Conferir: THOMPSON, E. P. Tradición, Revuelta y Consciencia de classe. Estudios sobre la crisis de la sociedad preinsdutrial. Barcelona: Editora Crítica, 1979. p. 13-71. 16 THOMPSON, E. P. A formação da Classe Operaria Inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; Senhores e Caçadores: a origem da lei negra, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987 e Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. 17 LARA, Silvia Hunold. Blowin in the Wind: E.P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Projeto História, São Paulo, N 12, 1995. p. 43-75. 18 MACHADO, Maria Helena. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da escravidão. Revista brasileira de História, São Paulo, v. 8 N 16, 1988. p 143-160. 21 utilizaram, principalmente, relatórios oficiais, relatos, crônicas de viajantes, dentre outros. Os estudos mais atuais inovaram principalmente no tocante as pesquisas, os adeptos da nova historiografia social da escravidão ampliaram o leque de fontes. Esse fato ocorreu no Brasil, sobretudo, na década de setenta, quando houve uma maior profissionalização dos historiadores, com a criação e consolidação dos cursos de pósgraduação. Desarte registra-se uma proliferação das pesquisas, também na área da escravidão. 19 O pós-abolição surgiu como problema histórico nesse contexto. No primeiro momento, os inúmeros trabalhos sobre o pós-abolição se dedicaram a estudar os interesses das elites a respeito dos libertos e da utilização dos chamados “nacionais livres” como mão-de-obra. Detalhes sobre diagnósticos e projetos de construção nacional, pensados e planejados pelas elites invariavelmente conservadoras, pautaram por muito tempo a discussão historiográfica sobre o período pós-emancipação. Melhor dizendo, o pós-abolição como questão específica se diluía na discussão sobre o que fazer com o “povo brasileiro” e a famosa “questão social”. 20 Enfatizamos que é importante a análise dos projetos dominantes, que são vários e multifacetados, pois eles nos ajudam a compreender o pensamento das classes dominantes e o surgimento dos projetos de “Brasil-Nação” em debate no cenário político no final do século XIX, a partir da perspectiva do fim da escravidão. Nesse estudo, em uma abordagem regional, discutiremos como as elites sergipanas, a partir da Sociedade Sergipana de Agricultura pensaram e projetaram através da Revista Agrícola um discurso de “civilização” e inclusão das “populações de cor” egressas da escravidão. Entretanto, nossa intenção nesse trabalho é demonstrar até que ponto esses projetos pensados pelas classes elitistas sergipanas, estiveram formados por um conhecimento pragmático das elites agrárias sobre as expectativas dos libertos e de que maneira interagiram com as atitudes e opções adotadas por eles após o fim da 19 Acerca desse tema, houve durante algum tempo, a ideia de não existirem documentos para pesquisar sobre a escravidão, por conta das ordens de Ruy Barbosa que mandou queimar boa parte dos acervos. Consultar, SLENES, Robert. “O que Ruy Barbosa não queimou. Novas fontes para os estudos da escravidão no século XIX”. Estudos econômicos, 13, N 1, 1983. p 117-150. 20 Sobre os estudos que abordam a temática de consolidação do Estado brasileiro e a formulação de uma identidade nacional no inicio do século XX, consultar, MATOS, Hebe. “Racialização e cidadania no Império do Brasil”. In: José Murilo de Carvalho e Lucia Bastos Pereira das Neves (org.). Repensando o Brasil do Oitocentos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009; RIBEIRO, Gladys Sabina. "'Ser português' ou 'ser brasileiro'?". In: A Liberdade em Construção. Rio de Janeiro: Relume-DumaráFAPERJ, 2002; GUIMARÃES, Manoel Salgado. "Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional". Estudos Históricos, n.1, 1988. Rio de Janeiro, FGV e CARVALHO, José Murilo. "Os Partidos Políticos Imperiais: composição e ideologia". In: A Construção da Ordem, Rio de Janeiro: Vértice, 1988. 22 escravidão. O campo aberto para os estudos do pós-abolição passou assim a incluir variáveis e preocupações múltiplas. O papel do estado, dos ex-senhores, as condições em que eram exercidas as atividades que empregavam os escravos às vésperas do fim da escravidão, a existência ou não de possibilidades alternativas de recrutamento de mãode-obra (imigração) etc. Incluiu também a contextualização de conceitos como cidadania e liberdade e seus possíveis significados para os diversos atores sociais. José Murilo de Carvalho tem sido um dos intelectuais que mais tem pesquisado e escrito sobre cidadania no Brasil, principalmente, nos anos iniciais da República. Esse autor propôs que a cidadania seja entendida a partir de dois eixos: de baixo para cima e de cima para baixo. Exemplos de cidadania construída de baixo para cima são as experiências históricas marcadas pela luta por direitos civis e políticos, afinal conquistados, no Estado absolutista; exemplos desse movimento em direção oposta são os países em que o Estado manteve a iniciativa da mudança e foi incorporando aos poucos os cidadãos, à medida que ia abrindo o guarda-chuva de direitos, exemplo esse que se aplica no caso do Brasil. 21 Nas análises de Hebe Matos e Ana Rios, em suas pesquisas sobre o pós-abolição no Brasil, as autoras inferem que essa temática tem sido bastante analisada nas duas últimas décadas. Nesses novos estudos, as características específicas da escravidão e da população escrava passaram a ser analisadas para apreender aquilo que se tornou um diferencial marcante nos modernos estudos do pós-abolição: os projetos dos libertos, sua “visão” do que seria a liberdade, os significados deste conceito para a população que iria, finalmente, vivenciá-la, e não apenas para os que o definiram-nos diferentes momentos do processo de emancipação. Em termos concretos, a liberdade alcançada com o fim legal da escravidão teve significados diferentes para ex-escravos urbanos e rurais, com habilitações profissionais ou “de roça”, homens ou mulheres. 22 Este trabalho irá tecer do dialogo realizado com esses autores, inferências para o que acreditamos caracterizar as relações sociais em Sergipe após a abolição e se estenderá cronologicamente as primeiras décadas do século XX da política Republicana, com a ressalva de se ater prioritariamente às relações de sociabilidade, trajetória, cidadania e trabalho. A abordagem adotada nesse estudo procura se aproximar das 21 CARVALHO, José Murilo de. “Cidadania: Tipos e Percursos”, Estudos Históricos, vol. 9, n. 18, 1995, p. 338-339. 22 RIOS, Ana Maria e MATOS, Hebe. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. TOPOI, v. 5, n. 8, jan.-jun. p. 170-198, 2004. p. 174. 23 pesquisas dessas novas correntes historiográfica, incluindo ao longo do texto, os conceitos utilizados por seus autores. Buscando aprofundar o conhecimento sobre a abolição e as trajetórias de homens e mulheres que experimentaram a escravidão e a liberdade, realizei vasta pesquisa documental nos arquivos sergipanos e pude constatar uma abundância de fontes pouco exploradas. No Arquivo Público do Estado de Sergipe (APES), trabalhamos com as sessões do Acervo Geral, da Secretária de Segurança Pública e Seção de Agricultura. Desses fundos, analisamos atas, correspondências recebidas e expedidas, ofícios, relatórios e mensagens dos presidentes provinciais, coleções de leis e decretos, auto de denúncias e de perguntas. Focamos nossas pesquisas entre os anos de 1880 a 1910, mais especificamente, sobre documentos que faziam referencias a Região do Cotinguiba, porém, como é precioso ao pesquisador cuidado criterioso com as fontes, também coletamos documentos relacionados à temática abordada que pertence aos demais municípios. No Arquivo Judiciário do Estado de Sergipe (AJES), nos dedicamos à coleta de inventários sobre o Cotinguiba entre os anos de 1880-1910, concernente a (cinco) municípios dentre os onze que compõe essa região, os quais foram listados nas referências documentais desse trabalho, o tempo escasso para pesquisa nos restringiu em suas análises em consequência do grande acervo documental, os quais pretenderam nos dedicar atenciosamente em pesquisas posterior. No Arquivo Eclesiástico da Cúria Metropolitana de Aracaju, coletamos registros de óbito, batizado e casamento, datado entre os anos de 1800 a 1910, esses dados nos permitiu através do cruzamento com outras fontes, seguir as trajetórias dos escravos para a liberdade, bem como rastrear os laços familiares e de compadrio. Na Biblioteca Pública Ephifâneo Dórea (BPED), exploramos o seu rico acervo em periódicos. Lá encontramos diversos jornais de circulação nacional e local, além dos (noventa e seis) exemplares completos da Revista Agrícola de Sergipe no período de circulação entre os anos de 1905 a 1908. Essa fonte foi de grande importância para o desenvolvimento desse trabalho e, se constitui fonte crucial para entendermos as relações sociais e a organização do de trabalho livre em Sergipe após a emancipação. No Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGS), nos surpreendemos com o acervo de documentos raros sobre a sociedade sergipana. Nesse acervo encontramos dados sobre as genealogias do baronato sergipano, como também obras raras de intelectuais sergipanos, produzidas entre os séculos XIX e XX; o Estatuto de Fundação 24 da Sociedade Sergipana de Agricultura de 1902 e o Questionário Agrícola de Sergipe de 1910 permitiu compreendermos melhor a situação agrícola e de trabalho dessa região nos anos iniciais de Sergipe República. Os documentos aqui listados, dentre outros, se apresenta distribuído entre os quatros capítulos que compõem esse trabalho. No primeiro capítulo, buscamos descrever as características da Região do Cotinguiba destacando sua importância econômica e social para o Estado de Sergipe durante o século XIX. Enfatizando as suas riquezas, população e sociedade, tentando compreender como a abolição se processou nesse espaço fortemente marcado pelas relações escravistas. E ainda, como as comemorações do 13 de maio e as ações dos libertos alteraram o cotidiano da sociedade sergipana no limiar da República. No segundo capítulo, deslocamos nossa atenção para os reflexos da liberdade na vida de brancos e negros, objetivando vislumbrar como essas populações significaram a igualdade de direitos em suas trajetórias coletivas e individuais. Nesse processo, avaliamos o posicionamento tanto das “populações de cor” quanto das elites sergipanas, no que concerne a efetiva cidadania dos libertos. A partir dessas relações, ora de conflitos, ora de solidariedade, analisamos as estratégias de inserção social “coercitiva” tais como o recrutamento forçado de libertos como soldados para suprias as demandas policiais e também o trabalho compulsório nas lavouras; e de controle “moral” a partir do discurso civilizatório, avultando dessas relações possíveis impasses e conflitos na efetiva cidadania dos libertos. O terceiro capítulo propõe analisar como se processou a “Organização do Trabalho” em Sergipe nos anos seguintes a abolição da escravatura. Utilizamos como recurso norteador das nossas discussões, os artigos da Revista Agrícola de Sergipe que versavam sobre essa temática, entre os anos de 1905 a 1908. Os debates em torno do trabalho livre, nesse periódico, surgiram com o intuito de sobrepujar a crise da lavoura e a desorganização do trabalho livre que, após a abolição da escravatura, na visão dos articulistas da revista, polarizava e refletia os desequilíbrios existentes tanto na economia sergipana quanto nos demais escalões dessa sociedade. Desse modo, damos ênfase aos discursos elitista sobre como se processou a inserção da “população de cor” egressa da escravidão nas diversas esferas do trabalho em Sergipe, buscando perceber através desses discursos as ações dos libertos em burlarem as vontades dos proprietários rurais e agirem sobre os próprios desígnios. Por último, avaliamos as medidas adotadas pelo governo sergipano, boa parte estimulada e pressionados pelos proprietários rurais, para contornar a questão 25 econômica e do trabalho agrícola no Estado. A partir de uma pesquisa minuciosa das leis e decretos que regiam as questões civis e trabalhistas entre os anos de 1880 a 1920, tais como: os códigos de Posturas Municipais, o Código Rural e o Questionário Agrícola servem como balizadores das nossas reflexões no tocante a situação agrícola e de trabalho livre após a abolição em Sergipe. A aplicação de leis coercitivas que possuíam por finalidade, dentre outros objetivos, obrigar o trabalhador livre a empregarem-se na lavoura, foi possível perceber as muitas estratégias utilizadas pelos libertos para contravir a vontade dos proprietários rurais. Especificamente, na questão da mobilidade social das “populações de cor”, é possível inferir que essa era uma ação contínua de defesa dos direitos de autonomia sobre suas vidas e de seus familiares. 26 I – Capítulo Entre o cativeiro e a liberdade: economia, população e sociedade. Sergipe Del Rey, a menor Província do Brasil, quando se separou da Bahia, em 1820, dispunha de um território de 21.994 km², regados por seis bacias hidrográficas situadas do Sul ao Norte do estado: a do Rio Real, que separa Sergipe da Bahia; a do Rio Vaza-Barris, que banha São Cristóvão (antiga capital da província); a dos Rios Sergipe e Cotinguiba, que banham Riachuelo, Laranjeiras e Aracaju; a do Rio Japaratuba, que deságua no mar, passando pelo Município de mesmo nome; a do Rio Piauí, que banha o município de Estância e a do Rio São Francisco, limite com a Província de Alagoas. 23 O grande número de bacias hidrográficas bem distribuídas pela província facilitava a rede de transportes fluviais, o que era bastante favorável para o comércio agroexportador. A Província sergipana, durante todo o século XIX, foi sustentada pela agricultura e, mais especificamente, pelos engenhos de açúcar situados nas terras dos massapés, nos vales férteis do Piauí-Piauitinga, do Vaza-Barris e, principalmente, do Sergipe-Cotinguiba e Japaratuba. Essa produção açucareira impulsionou o surgimento e o crescimento de povoações e de vilas, estabelecendo um movimentado comércio a partir da instalação de estruturas portuárias e trapiches, fazendo florescer a economia açucareira sergipana. Em seu estudo, Sharyse Amaral considera que o auge da economia açucareira em Sergipe, ocorrera por volta de 1850, momento de alta no preço do açúcar no cenário nacional. A região do Cotinguiba, tal como o Recôncavo baiano, possuía os solos de massapé, argilosos, escuros e pesados, que retinham bem a umidade e eram preferidos para o cultivo da cana-de-açúcar, a cultura mais rentável no período colonial. A região tinha o transporte facilitado pela navegação dos grandes rios e de seus numerosos afluentes durante a maré cheia. Numa época em que existiam poucas estradas - e as que existiam frequentemente eram alvo de assaltos ou causas de acidentes, devido ao péssimo estado -, o transporte fluvial constituía importante fator de produção. A união desses três elementos - solo, clima e rios navegáveis - fez com que a Cotinguiba 24 se tornasse o principal núcleo produtor de açúcar em Sergipe. 23 Para uma análise mais sistemática sobre a região do Cotinguiba consultar, AMARAL, Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe, 2007. p. 28. 24 Ibid. AMARAL, 2007, p. 28. 27 MAPA DA REGIÃO DO COTINGUIBA - PRINCIPAIS RIOS NO SÉCULO XIX. MAPA 1 - Mapa da Região do Cotinguiba - Principais rios século XIX. FONTE: AMARAL, Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe, 2007. p. 29. Nesse espaço, a região do Cotinguiba se destacava tanto por sua riqueza natural abundante em solos massapés e rios navegáveis, quanto por sua riqueza econômica, obtida com a alta produtividade agrícola açucareira. Por isso, essa região também concentrava o maior número de escravos da Província, conforme consta nos dados da matrícula de escravos de 1872. Sergipe possuía 32.974 cativos, destes, 15.206 habitavam a região do Cotinguiba, representando aproximadamente 41,35% do percentual total dos escravos sergipanos. 25 A região era composta por onze sedes de municípios e, na segunda metade do século XIX, apenas quatro deles gozavam do estatuto de cidades: a capital Aracaju (1855), Capela (1835), Laranjeiras (1832) e Maruim (1835), estes dois últimos foram as 25 . Conferir em PASSOS SUBRINHO, Josué Modesto. Os classificados da escravidão. Aracaju: Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, 2008. p. 8-9 28 principais forças econômicas sergipanas do período analisado. Constituía também a região: as vilas de Divina Pastora (1836), Japaratuba (1835), Nossa Senhora do Socorro (1835), Riachuelo (1878), Rosário do Catete (1835), Santo Amaro das Brotas (1899) e Siriri (1835). Apesar de algumas dessas vilas serem menores em termos territoriais, econômico e populacional em relação a Laranjeiras e Maruim, nem por isso eram menos importantes. MAPA SERGIPE COM DESTAQUE DA REGIÃO DO COTINGUIBA COM PRINCIPAIS RIOS, CIDADES E VILAS NO SÉCULO XIX. MAPA 2 – Mapa de Sergipe com destaque da Região do Cotinguiba com principais rios, cidades e vilas no século XIX. FONTE: OLIVEIRA, Igor da Fonseca. “Os negros dos matos”, 2010, p. 24. 29 Os núcleos urbanos da região da Cotinguiba que mais se destacavam eram Laranjeiras e Maruim, as duas mais populosas e importantes cidades da região. Por seus portos escoavam o açúcar, bem como saíam e entravam alimentos e outras mercadorias, fortalecendo o comércio interno e externo. Além disso, era local de residência preferido dos políticos, comerciantes e intelectuais sergipanos. 26 Felisbelo Freire discorreu sobre a criação e ascensão de Laranjeiras ao posto de Vila traçando uma definição do seu limite territorial: Freguesia do S. S. Coração de Jesus de Laranjeiras foi criada pela lei de seis de fevereiro de 1835, desmembrada da freguesia de Socorro, pela divisão do termo de Villa. A lei de 24 de fevereiro de 1840 traçou os seguintes limites a esse município: seguirá pelo Rio Sergipe acima (conforme atual demarcação) até a barra do Rio Jacaracica e por este acima até a barra do riacho do Salobro, e daí pelo mesmo riacho até sua nascença, e desta seguirá sua 27 mesma divisão que atualmente tem o termo. A localização geográfica de Laranjeiras e a abundância de solo massapé em seu território lhe permitiram grande desenvolvimento agrícola e comercial. Possuía 11.350 habitantes, conforme os dados do censo de 1890 28 , e dispunha de economia sólida e receita elevada, decorrentes, sobretudo, da produção dos seus engenhos de açúcar, que era exportado pelo seu porto fluvial aonde também chegavam diversos produtos estrangeiros. O comércio de Laranjeiras era bastante movimentado e em suas feiras era possível encontrar variados produtos e especiarias, no mercado municipal (ver foto abaixo) eram comercializados produtos vindos de todos os cantos da província. 29 No relatório de Francisco Pimenta Bueno, que visitou Cotinguiba em 1881 a serviço do Governo Imperial, as cidades de Laranjeiras e Maruim são apontadas por notória prosperidade e urbanização em relação às outras vilas que compunham a região do Cotinguiba, despontando até mais do que a capital Aracaju, naquele período. Consta em suas descrições que: “Laranjeiras possuía doze trapiches, seis na cidade e seis em seu termo. Por eles haviam escoado, entre 1880 e 1881, 128.147 sacos de açúcar, 14.440 26 AMARAL, Escravidão, resistência e liberdade em Sergipe, 2007. p 33. FREIRE, Felisbelo, História de Sergipe, [1891], Petrópolis, Vozes / Aracaju, Governo de Estado de Sergipe, 1977.p. 339. 28 Consultar, Anuário estatístico do Brasil. Rio de Janeiro, Fundação IBGE, 1967. p 35-36. 29 NUNES, Maria Théthis. Sergipe Provincial II (1840-1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006. p 220. 27 30 fardos de algodão e 1.209 de couros, provenientes de Laranjeiras, mas também de Riachuelo e Divina Pastora, municípios limítrofes”. 30 FOTO 1: Foto do Mercado Municipal de Laranjeiras no século XIX. FONTE: Irineu Silva Fontes. Disponível em: http://cafehistoria.ning.com/profile/IrineuSilvaFontesJunior Com a expansão da indústria açucareira, essa região apresentou rápido progresso, atiçando a cobiça de muitos imigrantes, principalmente dos portugueses, a fim de estabelecerem casas comercias. Nos dados do questionário agrícola de 1910, consta que não havia agricultores estrangeiros no Cotinguiba, o que inferimos o fato dos estrangeiros que viviam em Laranjeiras, terem se dedicado exclusivamente ao comércio.31 Durante o século XIX, esses imigrantes fomentavam a economia e as exportações no Cotinguiba, segundo Sharyse Amaral: Se constituindo em uma nova fronteira agrícola para a cana-de-açúcar, bem como para os negócios que esta podia envolver, Maruim e Laranjeiras 30 Pimenta Bueno, foi o engenheiro responsável por fazer um estudo para implantação de duas linhas férreas na Província de Sergipe. Conferir: BUENO, Francisco A. Pimenta. Relatório apresentado ao Exmº. Sr. Conselheiro Pedro Luiz Pereira de Souza. Rio de Janeiro, typ. Nacional, 1881. p. 8. 31 IHGS, Acervo Sergipano, nº 3690. Questionário sobre as condições agrícolas dos municípios do Estado de Sergipe, 1910, p. 57. 31 atraíram alguns negociantes estrangeiros. Segundo o censo de 1872, eram eles 79 portugueses, além de 17 italianos, 08 alemães, 02 ingleses e, até mesmo, 03 paraguaios (...). Em sua maior parte, eram pequenos negociantes, 32 donos de estabelecimentos de secos e molhados. O setor de serviços era bastante qualificado. Entre seus profissionais constavam advogados, professores e médicos. 33 A educação era, depois da capital Aracaju, a que mais possuía cadeiras de ensino (17).34 Era um dos maiores centros culturais, rivalizando com a capital. Possuía tradição na música, no teatro e na pintura. Suas diversas igrejas, também se constituíam importante patrimônio cultural, semelhante às de São Cristóvão, antiga capital. 35 Por representar um dos grandes centros sócio-econômico-cultural, lá circulavam também, muitos jornais. Como explicita Maria Thétis Nunes, “o crescimento das atividades mercantis sergipanas nas primeiras décadas do Segundo Império trouxe consequências positivas para a vida de Laranjeiras, então o principal empório comercial da província. Os jornais e as atividades culturais se multiplicaram registrando-se até 1889”. 36 Centro irradiador da pregação republicana e abolicionista foi nos seus salões e ruas que se destacaram muitas das lideranças que ascenderiam ao poder republicano. 37 Desse modo, Laranjeiras se apresentava como um dos mais importantes municípios sergipanos durante o século XIX, movido pela fase áurea do ouro branco: o açúcar. Maruim também era um dos centros econômicos mais importantes de Sergipe, embora sua população fosse bem menor do que a de Laranjeiras, sua economia era mais elevada. Contava com 7.851 habitantes, em 1890.38 No meio rural havia vários engenhos. Segundo Orlando Vieira Dantas, em “Vida Patriarcal de Sergipe” Maruim, possuía 317 (trezentos e dezessete) engenhos, dentre eles, o Engenho Pedras, que além da plantação da cana-de-açúcar, apresentava também a cultura da mandioca e do algodão. Era um engenho de grande produção e funcionava com as mais desenvolvidas 32 AMARAL, Escravidão, resistência e liberdade em Sergipe, 2007. p 34. CURVELO, Manoel. Um phase de laranjeiras, in Almanak Sergipano para o ano de 1899. Aracaju, Tipografia Comercial, 1899. Apud, SOUZA, Terezinha Alves de Oliva. Impasses do federalismo brasileiro (Sergipe e a Revolta de Fausto Cardoso). Rio de Janeiro, Paz e Terra, UFS, 1985. p. 54. 34 DANTAS, Ibarê. História de Sergipe República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 18. 35 LISBOA, L.C. Silva. Chorographia do Estado de Sergipe. Aracaju, Imprensa Oficial, 1897. 36 NUNES, Sergipe Provincial II, 2006. p 222. 37 Sobre a província sergipana e a política republicana consultar ob. Cit. DANTAS, História de Sergipe República, 2004. Conferir também os jornais O Republicano e O Laranjeirense, principais periódicos disseminadores dos ideários republicanos que circulavam na Capital Aracaju e em Laranjeiras. 38 C. f. Anuário estatístico do Brasil, 1967. p 35-36. 33 32 técnicas agrícolas, sua arquitetura em estilo neoclássico demonstra a ostentação da sociedade patriarcal maruinense no século XIX. 39 FOTO 2: Foto do Engenho Pedras em Maruim. FONTE: Acervo Particular. Na arquitetura das casas mostrava-se a opulência dos seus proprietários, a exemplo do Engenho Pedras na figura acima. A cidade possuía ruas largas e algumas calçadas. Possuía vida cultural pujante, editando seus jornais e eventos, as famílias estrangeiras, principalmente os alemães, cultivavam o hábito da leitura e eram bastante interessadas pela literatura que circulava na época, o que não era comum a nível geral, mesmo no meio mais abastardo, e, assim, estavam sempre bem atualizados com as discussões que ocorriam tanto no Brasil quanto no exterior, como podemos constatar pelas cartas da senhora Adolphine Scharmm que se correspondia com seus familiares na Alemanha e noticiava copiosamente a vida maruinense. 40 Seu gabinete de leitura era popularmente conhecido e o mais importante de Sergipe. 41 39 DANTAS, Orlando. Vida patriarcal em Sergipe. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. Adolphine Scharmm, esposa do comerciante alemão Ernest Scharmm, residentes em Maruim e um dos mais importantes comerciantes locais, dono da casa Scharmm & Co. Consultar, ALBUQUERQUE, Samuel B. de Medeiros. Memórias de Dona Sinhá, Aracaju, Typografia Editorial/ Scortecci Editora, 2005. 41 AGUIAR. Joel. Traços da História de Maruim. Aracaju, Unigráfica, 1987. AZEVEDO, Dênio, S. Esfera Pública e Sociabilidade: Grandeza e Decadência do Gabinete de Leitura de Meruim/SE. 40 33 Na cidade, a movimentação do porto era superior ao de Laranjeiras. Sua receita uma das mais expressivas do Estado era resultado dos inúmeros estabelecimentos industriais e comerciais, como a casa comercial dos alemães Scharmm & Co, de grande importância para o desenvolvimento econômico do Cotinguiba. Também no relatório de Pimenta Bueno, consta que: “Maruim possuía dez trapiches que, no mesmo período, guardaram a produção de 187.476 sacos de açúcar e 2.525 fardos de algodão. Destes, a altíssima proporção de 93,6% foi exportada pela casa Scharmm, enquanto o restante foi exportado pela casa do Sr. Joaquim Rodrigues da Cruz, negociante português”. 42 A riqueza econômica do Cotinguiba, também foi objeto de estudo e pesquisa de vários outros autores sergipanos, tais como Maria Théthis Nunes, Josué Modesto dos Passos Subrinho, Maria da Glória Almeida e Luiz Mott que, dentre outras temáticas, buscaram analisar as características econômicas dessa região na tentativa de elucidar os principais fatores que contribuíam e/ou fomentavam sua riqueza. 43 A base da economia do Cotinguiba, no século XIX, era a cana de açúcar; mas, no decorrer desse século, foram introduzidos aos poucos outros produtos no rol das exportações, tais como, como o algodão, couro, farinha de mandioca, sal, carnes e cereais. 44 A produção desses gêneros sempre esteve atrelada à mão-de-obra escrava, que permaneceu forte até às vésperas da abolição definitiva, em 1888. 1.2 Os escravos: a força de trabalho do Cotinguiba e a Crise da Lavoura. Em Sergipe, como em todo Brasil, a utilização da mão-de-obra escrava se difundiu por todas as regiões e atividades econômicas. Porém, essa atividade não ocorreu de forma homogênea. 45 Através dos censos, matrículas e diversos outros dados foi possível perceber que houve utilização do braço escravo em todas as microrregiões sergipanas. Todavia, devido às diferentes características geográficas do Cotinguiba, da Dissertação de Mestrado. Mestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal de Sergipe, ano de obtenção, 2005. 42 BUENO, apud AMARAL, Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe, 2007, p. 35. 43 Conferir: NUNES, Maria Théthis, Sergipe Colonial I, Aracaju, Universidade Federal de Sergipe; Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989. “O escravo negro e as culturas de subsistência na Capitania de Sergipe d’ El Rey”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, n.33 (2000/2002), p. 199-208; ob. cit. SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2000; ALMEIDA, Nordeste Açucareiro, 1993 e MOTT, Luiz. Sergipe Del Rey, 1986. 44 Ibid. 2007, p. 36. Sobre o incentivo a produção de novos produtos na agricultura sergipana, consultar a Revista Agrícola de Sergipe entre os anos de 1905 a 1908. 45 SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2000. pp 76 – 78. 34 Mata-Sul e do Agreste-sertão, como apontado no item anterior, essa concentração vai oscilar em virtude de diversos fatores determinantes, tais como, o clima, o solo, a economia, a população, etc. Neste estudo, daremos ênfase à força de trabalho do Cotinguiba durante o século XIX e início do século XX, prioritariamente às “populações de cor”, trabalhadores livres ou escravos. Procuraremos apontar as características e especificidades no que se refere à média de escravos por engenhos, sua distribuição, estrutura ocupacional e decréscimo dessa população nas últimas décadas do século XIX. Em 1850, a população livre em Sergipe era de 163.696 habitantes, o Cotinguiba representava 24,4% dessa população; a Mata Sul, 29,1%; o Agreste-sertão Sul, 15,8%; o Agreste-sertão do São Francisco, 22,9%; e o Agreste-sertão de Itabaiana 8,5%. A população escrava era de 55.944 pessoas e, estavam assim distribuídos: 39% na Região do Cotinguiba, 22,6% na Mata sul e 38,3% no Agreste-sertão. Os escravos estavam em sua maioria concentrados na Zona da Mata, composta pelas Regiões do Cotinguiba e da Zona da Mata Sul, que juntos apresentavam um percentual de 61,6% da população escrava. 46 Como já apontamos, a Região do Cotinguiba destacava-se quanto à distribuição da propriedade escrava por possuir melhores condições de solo, clima e rios navegáveis, para o desenvolvimento da agroindústria açucareira, que demandava um grande número de trabalhadores, acentuado assim, a utilização do trabalho escravo. Segundo relatório de Pimenta Bueno foi contabilizado 819 engenhos, em Sergipe. Destes, 88,4 % estavam envolvidos com a cultura da cana-de-açúcar. Do montante, 49,1% estariam instalados no Vale do Cotinguiba: 22 em Socorro; 23 em Maruim; 43 em Japaratuba; 66 em Divina Pastora; 97 em Laranjeiras; 10 em Santo Amaro; 82 em Capela e 43 em Rosário. 47 Nessa região, em 1850, a relação população escrava/população livre era de 0,54, ou seja, havia 54 escravos para cada 100 habitantes livres, o maior índice da província, em função das suas atividades econômicas estarem totalmente voltadas para a produção do açúcar, que demandava número elevado de cativos para o desenvolvimento do seu complexo modo de produção. 48 46 SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2004. pp 77. Ver: BUENO. Reconhecimento e Estudos na Província de Sergipe, 1881, p. 2. 48 Ver modo de produção do açúcar em Sergipe em AMARAL, Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe, 2007, p.29. 47 35 Distritos Escravos % Livres % Escravos/livres Socorro 2.811 2.998 0,94 Santo Amaro 748 3.559 0,21 Maruim 1.167 3.456 0,34 Laranjeiras 5.054 9.039 0,56 Rosário 2.204 6.133 0,77 Capela 5.155 13.132 0,39 Divina Pastora 2.204 1.770 1,24 Cotinguiba 21.687 39, 09 40.088 24,49 0,54 Total Sergipe 55.944 100% 163.696 100% 0,34 TABELA 1 - Distribuição da População livre e escrava do Cotinguiba – 1850. FONTE: Falas do presidente da Província em 11.01.1851, Apud, PASSOS SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2004. p 76. O número médio de escravos nos engenhos oscilava entre 5 e 32,5 em Santa Luzia (Mata Sul) e 32 em Laranjeiras (Cotinguiba). O número em geral para a província, normalmente, girava em torno de 20 escravos por engenho. 49 Esse número era relativamente pequeno, se comparado a outras províncias do Brasil, principalmente, correlacionadas a outras regiões do Nordeste açucareiro. Como o Recôncavo Baiano, por exemplo, que segundo Schwartz apresenta uma média de 65,5 escravos por engenho. 50 Segundo Subrinho, esses dados são questionáveis, pois, as informações não são totalmente detalhadas em todas as regiões e em alguns casos, chegou-se ao número médio de escravos por engenho, simplesmente dividindo o número da população escrava pelo número de engenhos. Para esse autor, a média de 20 escravos por engenho, na primeira metade do século XIX, parece ter sido comum para as províncias do Nordeste, já que, as características da agroindústria açucareira remontavam ao século XVIII, ou seja, com um aparato bastante rudimentar. 51 Segundo Luiz Mott, os engenhos de Sergipe, se comparados com os da Bahia e mesmo os de Pernambuco, não passavam de banguês. Em meados do século passado, numa amostra de 58% dos engenhos existentes em Sergipe cerca de (447 unidades), a média foi de 20 escravos por propriedade. Nesse sentido, Maria Almeida, afirma que, os engenhos banguês se caracterizam como: “de pequena dimensão; instrumentos agrícolas e manufatureiros rudimentares, gerando baixa produtividade; maioria da força de 49 ALMEIDA Nordeste Açucareiro, 1993. p. 205-206 Estudos apontam para o Recôncavo Baiano um número maior de escravos por engenhos. Ver, SCHART, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo, Companhia das letras, 1988. p. 356 – 371. 51 PASSOS SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2004. p. 96. 50 36 trabalho compulsória, aplicando métodos de trabalhos rotineiros e oferecendo reduzidas margens de lucros”. 52 Na segunda metade do século XIX, Sergipe experimentou a expansão dos seus engenhos, o que não significou diretamente um aumento no número percentual de escravos por engenho. Segundo Josué Subrinho, “os primeiros anos da década de 1850 assistiram ao clímax do movimento de expansão dos engenhos na província. Em 1838, haveria 445 engenhos em Sergipe e, em 1858, já seriam 769, ou seja, em vinte anos 324 novos engenhos estavam em atividade. A população escrava não cresceu no mesmo ritmo”. 53 Dentre os principais motivos do não crescimento dessa população a despeito do aumento de engenhos em Sergipe consta: a interrupção do tráfico internacional de escravos a partir da Lei de 185054, que fez secar uma fonte tradicional de abastecimento, a concorrência para a aquisição de estoques remanescentes de escravos revitalizando o tráfico interno, representando desvantagens para a economia açucareira, que não conseguiu competir em condições de igualdade com as economias cafeeiras. 55 Em diversas regiões do Nordeste, assim como, em Sergipe, essa situação se agravou com as epidemias, principalmente da Cólera-morbus que dizimou parte da população escrava entre os anos de 1850-60. 56 Localidade Ano Pop. Livre % Pop. Escrava % Pop. Total Sergipe 1851 166.426 74,6 56.564 25,4 222.990 Sergipe 1872 153.620 87,2 22.623 12,8 176.243 Sergipe 1873 224.635* 87,2 32.974 12,8* 257.609* Cotinguiba 1851 40.623 64,6 22.214 35,4 62.837 Cotinguiba 1872 46.879 82,1 10.234 17,9 57.113 Cotinguiba 1873 69.743* 82,1 15.206 17,9 84.949* TABELA 2 - Variação da população livre e escrava de Sergipe e do Cotinguiba 1851 e 1873. FONTE: Mapas estatísticos de 1851, Censo de 1872 e Matrícula de escravos de 1873. Apud AMARAL, Escravidão Liberdade e Resistência em Sergipe, 2007. p. 43. * dados estimados. 52 ALMEIDA, Nordeste açucareiro, 1993, p. 299. Ibid. SUBRINHO, Reordenamento do trabalho, 2004. p. 99. 54 Emília Viotti observou que o impacto do tráfico foi sentido, sobretudo na década de sessenta. Ver, COSTA, Emília Viotti da. Da senzala a Colônia. 4ª ed. São Paulo, Unesp. 1997. 55 Consultar, CASTRO, Hebe Maria Matos de, Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil, século XIX. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1998. 56 Consultar ob. cit. MOTT, Sergipe Del Rey, 1986, p. 136-138; ALMEIDA, Nordeste açucareiro, 1993, p. 109. 53 37 Em Sergipe, a diminuição do número de escravos entre os anos de 1851-73, como se pode observar na tabela, teve como principal motivo às mortes por consequência da epidemia da Cólera morbus, já que nos anos anteriores com o fim do tráfico de escravos, Sergipe não apresentava números relativamente altos para a entrada de escravos, principalmente do sexo masculino, que era característico do mercado internacional e preferido pelos senhores de engenhos. Segundo Amâncio Cardoso, em 1855, a Folha Oficial da província publicou circulares pedindo providências às autoridades sanitárias, dentre elas, o provedor da saúde pública, para sanar as epidemias que alastravam por todo o Estado, principalmente de Cólera Morbus, que assolava a província. Estabeleceram-se quarentenas nos portos e foram dadas instruções sanitárias às paróquias. Diversos municípios da Região do Cotinguiba foram vitimados, conforme dados em Geografia da Peste entre os anos de 1855-1856, formulada por Amâncio Cardoso. 57 (ver quadro na próxima página) Segundo dados do mesmo autor, foi na cidade de Laranjeiras que a epidemia ceifou o maior número de almas; num curto espaço de tempo, padeceram cerca de 3.500 pessoas. 58 Quanto à perda de escravos, pelos senhores da cidade muitos eram os dados, entretanto, confusos para se precisar. Segundo consta, o Brigadeiro Horta perdeu 20 escravos, mas, o Dr. Manoel de Freitas “tem perdido muitos”. 59 A falta de exatidão nos relatos dos proprietários de escravos torna difícil analisar com precisão o número de mortes entre essa população. Para constatar dados mais precisos sobre o número de escravos que foram a óbito, vítimas da epidemia na região do Cotinguiba, seria necessário um estudo mais detalhado sobre os registros de óbitos dessa região, presentes no acervo da Cúria Metropolitana, que possivelmente será foco de estudo posterior a esse trabalho. 60 57 SANTOS NETO, Amâncio Cardoso. Sob o signo da peste: Sergipe no tempo da Cholera. (855-1856). Dissertação de mestrado, Campinas, SP, 2001. p 66. 58 Ibid. SANTOS NETO, 2001. p. 77. 59 APES – Fundo CM¹, vol. 43. Oficio do presidente da Câmara, Agostinho José Ribeiro Guimarães, ao Barão de Maruim, Laranjeiras, 05 de Novembro de 1855. Ob. Cit., 2001, p. 77. 60 Acervo da Cúria Metropolitana de Aracaju. Cd – 004 – 36/37. Registro de óbito e casamentos, Laranjeiras, 1844 a 124. 38 ROTEIROS DO APARECIMENTO DA CÓLERA MORBUS EM SERGIPE MAPA 3: Roteiros e Datas oficiais do aparecimento da Cólera Morbus em Sergipe. Set 1855 – Jan 1856. FONTE: MELO João Gomes de. Relatório com que foi entregue a província. Aracaju, Typografia Oficial, 1856. (BPED -1437). In: SANTOS NETO. Sob o signo da Peste. p 67. Com a sensível diminuição da população cativa, os senhores de engenhos buscaram algumas realizar melhorias na produção agrícola, de forma a diminuir o impacto causado pelas perdas. Sharyse Amaral aponta algumas dessas transformações, principalmente, as que ocorreram na área tecnológica, tais como, a modernização dos engenhos a vapor, que foram bastante significativas e etc. 61 Houve transformações também na área administrativa, sobretudo, no que se refere às modificações estruturais, quando os senhores de engenho passaram a aperfeiçoar o uso dos diferentes espaços, do maquinário e também da mão-de-obra. 62 As transformações na área tecnológica e administrativa, aparentemente bastante simples, favoreceram a manutenção da produção com base no trabalho escravo até a 61 62 AMARAL, Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe, 2007, pp 43. ALMEIDA, Nordeste açucareiro, 1993, p. 168. 39 abolição da escravidão, concentrados basicamente no trabalho da lavoura açucareira, que na passagem do trabalho da mão-de-obra escrava para a livre 63 , os proprietários agrícolas buscaram de várias outras formas legitimar seu domínio, seja pela coerção moral, policial e/ou até mesmo “civilizatória”, gerando, com isso, novos embates e conflitos em torno da organização do trabalho livre. Profissões 1873 % 1887 % Agricultores 28.065 85,11 15.387 91,18 Artistas 2.976 9,02 1067 6,32 Jornaleiros 1.146 3, 47 353 2,09 Serviços domésticos 214 0,65 0 0,00 Sem profissão 573 1,74 68 0,40 Total 32.974 100% 16.875 100% TABELA 3 - Estrutura ocupacional da População escrava em Sergipe 1873 e 1887. FONTE: Matrículas de escravos 1873 – Diretoria geral de estatísticas. Relatório anexo ao Ministério dos Negócios do Império, de 1875. 1887 – APES, G¹ vol. 818. Apud SUBRINHO, pp. 85. Até às vésperas da abolição, como podemos observar nos dados da tabela, a estrutura ocupacional da população escrava permaneceu atrelada à agricultura. Nas análises de Josué Modesto, possivelmente há uma subestimação desses números, principalmente no que concerne aos serviços domésticos, que pode ter sido baixo devido às alforrias que eram mais frequentes nessa estrutura ocupacional. 64 Porém, muito relevantes são os percentuais apontados para o trabalho agrícola, 85,11%, em 1873 e 91,18%, em 1887, diferentemente das outras profissões, que sofreram quedas percentuais entre os anos abordados. Para o trabalho da lavoura, o aumento foi significativo, quando, com o declínio gradativo da escravidão a partir de leis sancionadas na segunda metade do século XIX 65 e das agitações do movimento abolicionista, esse setor agro econômico esteve apoiado fortemente no trabalho dos braços escravos. 63 Sobre a “passagem” do trabalho escravo para o trabalho livre na perspectiva dos escravos como agentes sociais, abordagem presente nos novos estudos sobre a escravidão iniciados na década de 80, consultar, ob. Cit. CHALHOUB, Sidney. Introdução e Negócios da escravidão. In: Visões da liberdade, 1990, p. 13-22 e 29-93; LARA, Sílvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História. São Paulo, 16:25-38, fev. 1998 e REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista da USP Dossiê Brasil/África. São Paulo, 18:07-29, jun./jul./ago. 1993. 64 PASSOS SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2004, p.89. 65 Sobre as leis que garantiram o declínio gradativo da escravidão consultar, PENNA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial: Jurisconduto e Escravidão no Brasil do século XIX, Campinas, SP, 1998. 40 Para os proprietários rurais todas as conjecturas da crise da lavoura estavam fortemente ancoradas em problemas locais. Dentre eles, a rotina, a falta de braços livres, escassez de capitais, obstáculos nos transportes de gêneros, entre outros. 66 Esses motivos eram veementemente taxados regionalmente como os elementos da crise econômica que arruinava as finanças pública e também particular, embora a lavoura do açúcar sergipano sofresse dos mesmos impactos econômicos ocorridos em âmbito nacional, decorrentes da queda dos preços do açúcar brasileiro, e também na esfera internacional, gerados pelo aumento da oferta dos produtos provenientes do açúcar da beterraba, produzido em Cuba e na Europa. 67 A queda dos preços internacionais do produto, gerados pela concorrência e a diminuição das exportações brasileiras, foram fatores duradouros e que explicam a diminuta exportação entre os anos 1881-90, longe do patamar que atingira nos anos anteriores. Assim como em outras regiões do Nordeste açucareiro68, em Sergipe, esses fatores ainda foram agravados com as secas que prejudicaram as safras da cana. Os dados de então, apontam que nos anos de 1881 a 1887 a média anual produzida foi de 41.590 toneladas; em 1889, foi reduzida para 24.424 toneladas, atingindo número ainda menor em 1890, com a marca de 12.051 toneladas, nível que jamais atingiu os valores da produção açucareira na segunda metade do século XIX. 69 ANOS ACÚÇAR ALGODÃO TECIDOS 1891-1895 0,61 0,16 0,01 1896-1900 0,76 0,12 0,02 1901-1905 0,54 0,34 0,02 1906-1910 0,54 0,28 0,07 1911-1916 0,49 0,07 0,24 1916-1920 0,62 0,04 0,18 TABELA 4 - Participação dos principais produtos sergipanos no valor percentual das exportações. FONTE: Dados obtidos a partir dos valores em conto de réis das exportações dos principais produtos sergipanos entre os anos de 1891-1920. PASSOS SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2004. p. 434. 66 IHGB – CD 004 SISDOC – 002. Relatório do vice-presidente de Província José da Trindade Prado, em 27 de novembro de 1868, p.28. 67 SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2004. p 207. 68 Estudos recentes apontam que a Bahia, mais especificamente o Recôncavo Baiano – em 1889, aumentou o número de pedintes e mendigos nas cidades de Cachoeira e São Félix em consequência da seca que atingia a região. Para o contexto baiano consultar, SOUZA, Jacó dos Santos. Vozes da abolição: Escravidão e liberdade na imprensa abolicionista cachoeirana (1887 – 1889). Dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Regional e Local– UNEB, 2010. 69 Ibid., 2004. p 207. 41 A manutenção da participação do açúcar oscilando entre 0,49 a 0,76, no valor total das exportações entre os anos de 1891 a 1920, teve consequências drásticas para a economia sergipana. Conforme a tabela, outra parte da explicação se deve à dificuldade de produzir outros bens que fossem competitivos nos mercados nacionais e estrangeiros, embora, conforme dados desse mesmo autor, em relação ao período 1891-1920, não houve sucesso na diversificação da pauta de exportações. Produtos como o arroz, milho, farinha de mandioca, sal, couros, cocos, aguardente e o algodão, tiveram importância regionalmente localizada em alguns anos específicos, não sendo, contudo, capaz de afetar significativamente o volume total das exportações. 70 1.3 A festa e o silenciamento da abolição - O 13 de maio em Sergipe. As comemorações da abolição ocorreram em todo país. Nos arquivos da Biblioteca Pública Nacional, há notas de diversos jornais de circulação nacional: Gazeta de Noticias, O carbonário, O paiz que propagaram a popularidade dos festejos abolicionistas nas mais diversas regiões do Brasil, destacando a grande comoção popular em torno da liberdade. O jornal Gazeta de Noticias, que circulava na Corte do Rio de Janeiro, de 15 de maio, dois dias após a abolição noticiou: Continuavam ontem com extraordinária animação os festejos populares. Ondas de povo percorriam a Rua do Ouvidor e outras ruas e praças em todas as direções, manifestando por explosões, do mais vivo contentamento o seu entusiasmo pela promulgação da gloriosa Lei (grifo nosso) que, extinguindo o elemento servil, assinalou o começo de uma nova era de grandeza, de paz e de prosperidade para o império brasileiro. (...) Em cada frase pronunciada acerca do faustoso acontecimento traduzia-se o mais alto sentimento patriótico, e parecia que vinha ela do coração, reverberações 71 de luz. A nota expressa a animação dos festejos, ressaltando a grande participação popular evidenciando que a abolição era ansiada por diversas classes sociais. Na Bahia estudos recentes sobre os festejos da abolição mostram o caráter popular das comemorações, com grandes passeatas, participações de pelotões militares, batuques à noite, além de missas e saraus. Na capital baiana, o Jornal Diário do povo noticiou que as comemorações duraram uma semana entre os dias 11 e 18 de maio. Wlamyra 70 71 Ibid,2004. p. 434. Ver Biblioteca Nacional. Setor de Microfilmes. Jornal Gazeta de Notícias, de 15 de maio de 1888. 42 Albuquerque aponta que o ápice dos festejos foi o desfile dos libertos com o carro alegórico da Cabocla e do Caboclo, figuras que faziam parte das comemorações cívicas oficiais do Dois de Julho, na Bahia.72 O desfile da libertação se transformou na visão de muitos escravocratas descontentes com as festividades, em uma típica comemoração do Dois de julho misturado a Carnaval. Walter Fraga, afirma que tanto na capital quanto no interior, os festejos transformaram-se em manifestações populares com participação de “grande massa”. Segundo o próprio autor, o grande número de entusiastas da abolição e a participação maciça dos egressos do cativeiro nos festejos abolicionistas representaram na visão dos ex-senhores ameaças à ordem pública. 73 Em Sergipe, assim como em outras regiões do Brasil, a abolição da escravatura foi comemorada ou repugnada pelos seus mais distintos cidadãos, sejam eles brancos ou negros. Nos diversos municípios sergipanos a euforia por causa das comemorações da abolição não foi diferente do restante do país. Embora o discurso oficial relate o processo abolicionista de forma pacífica e simplória, a fala do Presidente revela conotações importantes, que pretendemos decifrar no decorrer desse capítulo. Consta no relatório: A Lei 3.353 de 13 de maio próximo findo declarou extinta a escravidão no Império, desde a mesma data recebendo participação telegráfica do governo imperial, sobre promulgação da dita Lei, que começou logo a vigorar, expedi nesse sentido comunicações a todos os chefes de repartições públicas, juízes de direito municipais e promotores, e em geral a todas às autoridades da província, recomendado a pronta e imediata execução da Lei que trato. A maioria dos escravos ficaram na propriedade de seus antigos senhores, mediante a pagamento de salários e estou convencido que o trabalho da lavoura não sofrerá com a medida adotada, nem decrescerá em sua produção. Há, porém, necessidade de medidas que são de necessária urgência, como seja a organização do trabalho escravo para o trabalho livre e a 74 aquisição de capitais de que necessita a lavoura. (grifo nosso) No relatório de Olympio M. do Campo Vital, predomina a parcimônia em relação ao processo de transição da escravidão em Sergipe, pois consta em suas palavras que tudo transcorreu na mais perfeita paz e, “felizmente a solução dada a tão importante 72 Sobre as comemorações da abolição na Bahia seus símbolos e significados, ver a obra de ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da dissimulação: Abolição e Cidadania Negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 126-133. 73 Para uma análise mais completa sobre os festejos da abolição no Recôncavo baiano, ver a obra de FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia. (18701910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006. p. 123-163. 74 APES - AG1 cx 05 – Relatório do Presidente Olympio M. do Campo Vital em 13 de Julho de 1888. 43 problema não perturbou a ordem pública nesta Província”.75 Apesar do tom conciliador é fundamental salientar que tão importante processo histórico não passou despercebido para a sociedade sergipana. Conforme mencionado, logo após o recebimento da notícia da abolição, os escravos foram declarados livres e a permanência dos libertos na propriedade de seus antigos senhores não desorganizou o cotidiano do trabalho. A veracidade desses argumentos é totalmente questionável, já que, a principal reclamação dos proprietários rurais após a abolição foi à escassez de mão-de-obra para o trabalho da lavoura, queixa recorrente nos Relatórios dos Presidentes da Província, nos jornais locais e em vários exemplares da Revista Agrícola, evidenciando que os libertos não permaneceram em sua grande maioria, trabalhando para os seus ex-senhores como citado pelo então presidente. No capítulo seguinte, veremos que, a desorganização do trabalho e a crise da lavoura foram os assuntos mais repetitivos nos acalorados debates em torno das consequências da abolição, considerando que, para muitos ex-senhores a Lei Áurea havia provocado verdadeira ruína econômica e em alguns casos até levado a falência de algumas propriedades agrícolas. 76 Retornemos às comemorações do 13 de maio em Sergipe. Seguindo os diversos relatos que discorrem sobre o período, é possível perceber o quanto foi diversificada a forma como os contemporâneos viram aquele acontecimento. Nas memórias sobre a recepção da notícia da abolição registrada por Aurélia Rollemberg, mais conhecida como D. Sinhá, as comemorações do “treze de maio” possuem significados bem diferentes dos que aparecem no relatório do Presidente Dr. Olympio Vital.77 A referida senhora era descendente do baronato sergipano e sua família era composta pelos Barões de Itaporanga: Domingos Dias Coelho e Melo seu avô; pelo Barão de Estância, Antônio Dias Coelho e Melo seu pai e, pelo Barão de Japaratuba, Manoel Rollemberg de Menezes, genitor do deputado Gonçalo de Faro Rollemberg, seu esposo, todos os 75 Ver no IHGS – Relatórios dos Presidentes da Província (1869 – 1918). CD – 004 SISDOC – 002. Foram analisados os Relatórios dos Presidentes da Província entre os anos de 1880 a 1910; cerca de 120 exemplares da Revista Agrícola entre os anos de 1905 a 1908; e os Jornais sergipanos da metade do século XIX e início do XIX. Segundo o Relatório do Presidente da Província de 1859, a escassez da mãode-obra para o trabalho da lavoura é citada como um dos impasses no desenvolvimento da lavoura de cana de açúcar no Estado. Esse argumento, porém, refere-se nessa década a trabalhadores livres, que exerciam funções temporárias na produção açucareira. Com a abolição os proprietários rurais, esse problema se agravou, visto que, eram os escravos que realizavam quase todas as tarefas na produção do açúcar. 77 Ver ALBUQUERQUE, Memórias de Dona Sinhá, 2005, p. 27-28. Trata-se da transcrição do diário de Aurélia Rollemberg, acompanhado de um ensaio do autor sobre o estudo da genealogia da família Rollemberg. 76 44 proprietários rurais e donos de engenhos. 78 Ao descrever como foi recebida a dita lei pelos seus familiares e pelos escravos pertencentes à família, ela menciona: No dia 13 de maio foi à extinção da escravidão. Foi um alvoroço grande, minha sogra chamou os escravos e comunicou a eles, foi uma revolução. Todos ficaram fora de si, davam vivas, dançaram e não atendiam mais a pressão nenhuma Felizmente minhas amas ficaram sossegadas. Houve missas cantadas, bailes e grande alvoroço, muitos falaram em mudar-se, 79 outros ficaram. O mês todo não se teve sossego. (Grifo nosso). Através desses relatos podemos constatar que a sociedade sergipana, assim como em todo território nacional, a população aderiu às comemorações do 13 de maio, nas missas, bailes e batuques, houve a participação maciça da população livre e liberta. Entretanto, não foi com a mesma simpatia que os ex-senhores receberam a notícia da abolição. Caracteriza bem o descontentamento das classes elitistas as queixas da referida d. Sinhá que, incomodada com a desordem das comemorações e desapontada por já não poder manter o governo da casa, desabafou: “não é essa a casa que sempre desejara”, ou seja, sem elemento servil suficiente para a manutenção do nível de conforto com o qual as sinhazinhas estavam acostumadas a conviver, visto que nas casas-grandes era comum um grande número de escravos domésticos, demostrando poder e riqueza das classes mais abastardas. Para d. Sinhá, a preocupação predominante era reestruturar a sua dinâmica familiar, o que nos permitiu visualizarmos melhor os significados da abolição para alguns ex-senhores. Os significados das comemorações do treze de maio vivenciados por ela e sua família estavam carregados de outras preocupações. Sendo mulher, a desarticulação da dinâmica doméstica trazia-lhe grande desapontamento, pois que haveria de garantir a continuidade dos serviços prestados por seus antigos escravos? Embora a mesma relate que suas amas permaneceram em sua companhia, o mesmo não se aplicou à sua cozinheira. Segundo ela: “Eu fiquei muito triste e só, pois a casa que tanto desejei foi outra. Fiquei com duas amas e comecei a lutar com a cozinheira (Grifo nosso), mas a minha já não queria empregar-se. Felizmente Gonçalinho era estimado pelos 80 escravos. Esse ano eu não fui ao Escurial”. 78 Consultar, IHGS, Pac 26, cx 41. Genealogia da família Rollemberg. Descendência de Aurélia Rollemberg. 79 ALBUQUERQUE, Memórias de Dona Sinhá, 2005, p. 132-133. 80 Ibid. ALBUQUERQUE, 2005, p. 133. 45 Esses relatos demonstram que muitos foram os que optaram por não permanecer nos antigos engenhos, os quais residiam, mesmo quando seu senhor era tido como um “bom patrão”. Nas memórias de Aurélia Rollemberg, estão implícitas as preocupações com relação aos caminhos e descaminhos da liberdade para libertos e seus antigos senhores. Mesmo considerando a estima dos seus ex-escravos por seu marido, Gonçalo Rollemberg, o “protecionismo” não foi mais forte que o desejo de liberdade e nem mais atrativo que a oportunidade de se desvencilhar de seus antigos trabalhos/senhores e talvez de todas as representações que a permanência nos antigos engenhos simbolizava.81 Para alguns libertos, o fim do cativeiro possibilitou optar por “outros meio de vida”. 82 Através dessas duas fontes, tornou-se possível compreender melhor sobre as peculiaridades da abolição em Sergipe. Confrontando as informações do Relatório do Dr. Olympio Campos e o outro memorialístico narrado por D. Sinhá, uma típica representante das classes e das famílias senhorias sergipana, essas falas retratam o olhar diferenciado das elites locais. A predominância da ideia de naturalidade do processo abolicionista nos relatos do Presidente Dr. Olympio Campos Vital foi intencionalmente produzido. O discurso de parcimônia, também foi percebido por Wlamyra Albuquerque para o contexto baiano: “Nos relatos do presidente da província, Manoel do Nascimento Machado Portela, a abolição provocou fatos mais ou menos graves, mas que não comprometiam a ordem pública, pois eram ofensivos apenas à segurança individual”. 83 Proclamar a paz e a ordem em tempos de turbulência social e política eram, sem sombra de dúvidas, uma sábia decisão. O movimento republicano se expandia e Sergipe, com a abolição, a cada dia ganhava mais adesões por parte dos escravocratas, motivados principalmente pelo descontentamento com a Monarquia, pois se sentiam traídos e usurpados pela perda de suas propriedades humanas. 84 Tanto na capital quanto no interior, a ordem pública foi alterada com as comemorações da abolição. Sharyse Amaral, ao analisar o programa de comemorações 81 Analisando a região Sul dos Estados Unidos entre os anos de (1865-1877) após-emancipação, Eric Foner discute os significados da liberdade para os negros emancipados. Ver FONER, Eric, Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília, 1988. Ver também do autor, Os Significados da liberdade. In: Revista Brasileira de História. Escravidão. ANPUH, marco zero v. 8, n° 16. São Paulo. 1987. 82 Para analisar libertos que optaram por outras vias de trabalho na Bahia, consultar os autores Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga em suas obras supracitadas. Consultar o caso do escravo do Barão de viçosa. 83 ALBURQUERQUE, O Jogo da dissimulação, 2009. p. 99 84 Para uma análise panorâmica sobre as peculiaridades da Proclamação da República em Sergipe e uma maior discussão sobre os partidos políticos e suas cisões e adesões, ver o ob. cit., DANTAS, História de Sergipe República, 2004. pp. 15-57. 46 da abolição na região açucareira do Cotinguiba, destaca a “passeata das luzes” na cidade de Laranjeiras, noticiada no jornal O Laranjeirense, de 20 de maio de 1888. Esse evento demonstra a grandiosidade das comemorações no interior do estado. Segundo a autora, para tal evento, as ruas da cidade estavam “belamente arborizadas”, as “casas particulares” ostentavam “rica iluminação” e os “conhecidos oradores” declamariam “brilhantes poesias”. Comunicava o jornal, que a passeata teria início no paço da municipalidade, onde uma “girândola de foguetes” anunciaria a concentração do “povo”. O trajeto da marché incluía as principais praças e ruas; por último, as ruas do Porto dos Oiteiro, Poeira e Cangaleixo, onde se concentravam o maior número de africanos e crioulos libertos da cidade.85 Essas ruas constituíam o típico “campo negro” de que fala, ao estudar o Rio de Janeiro, Flávio Gomes. Em tais lugares, solidariedades, negociações e também competições e conflitos marcavam o dia-a-dia de comunidades formadas em torno da pequena agricultura e do pequeno comércio.86 A ordem do povo na passeata seguia a mesma lógica da escolha do trajeto. Dividia-se em duas alas: primeiramente, os “cavalheiros”, tendo à frente banda com maestro; por último, a banda dos barbeiros, seguida pelos “exescravos”. O exercício da profissão de barbeiro por africanos era comum em diversos locais do Brasil, assim como o padrão dos barbeiros possuírem uma banda de música. Vemos, portanto, que os organizadores da festa pretendiam separar o povo em duas alas, através de uma linha de cor, renda e título. Se por um lado o programa evidencia o lugar social que as elites reservavam para a ala preta do povo, por outro, ele também tinha o objetivo de limitar as 87 manifestações daquela. Portanto, a escolha do trajeto foi proposital. A “ordem do povo” na grande passeata das luzes também estabelecia significados e conexões com o que pensavam as elites locais. Os “donos da festa” foram nas últimas posições do cortejo por medo e/ou temor das elites locais, pois, receava-se a aglomeração de libertos e populares. ****** As festividades de hoje comemoram a catástrofe feliz do poema de lágrimas da escravidão. D‟essa brusca tragédia de horrores selvagens, que n‟um momento vimos convertidos em cataratas de flores. A fraternidade dos brasileiros, decretada por lei, está solidamente feita. O governo provisório 85 Para uma análise sistemática das comemorações da abolição em Sergipe, ver ob. cit., AMARAL, Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe, 2007. 86 Ver, GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 87 AMARAL, Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe, 2007, p.257. 47 consagrou-lhe um dia fastos nacionais; é o que se escreve com a data áurea que hoje passa - 13 de maio. Nós a saudamos radiante: porque o dia do bem é 88 sempre auspicioso, traz a proteção das boas fadas . A epígrafe foi publicada no Jornal O Republicano em treze de maio de 1890. A nota faz menção às comemorações dos dois anos da abolição da escravatura e, conforme a palavra do articulista havia convertido as “lágrimas da escravidão” em cataratas de flores alusão ao poema Navio Negreiro 89 do poeta e abolicionista Castro Alves, que versava sobre as amarguras da alma dos “homens e mulheres de cor” arrancados de sua pátria e submetidos aos suplícios da escravidão. O Jornal pertencia ao Senhor Josino de Menezes 90 e circulava diariamente na capital da província sergipana e nas principais vilas do interior. O Jornal noticiava atos oficiais do governo, além de artigos que defendiam ideários republicanos. Dois anos depois da Lei Áurea, o tom é ufanista e solene ao se referir às “cataratas de flores” e à “proteção das boas fadas”. Importante observar que a nota comemorativa faz menção “às dádivas” 91 advindas da liberdade, ainda que não se deixe claro, quais mudanças haviam ocorrido no seio dessa sociedade. Se as comemorações do 13 de maio de 1888, propiciaram uma grande festança em nome da liberdade, em Sergipe, nos anos seguintes, a data foi tratada com indiferentismo pelos jornais. Como se observa na nota do Jornal Gazeta de Sergipe de 22 de maio de 1890, apenas dois anos após a abolição. Dia 13. Era dia de... “folga do negro “branco não vem cá”, Entretanto passou-se no mais detestável indiferentismo! Nem mesmo aqueles que a áurea Lei redimiu souberam saudar o aniversário do reconhecimento de seus direitos de homem! 88 Jornal O Republicano 13/05/1890. Consultar na Biblioteca Pública Ephifâneo Dórea, n° 61, Janeiro a Junho de 1890. 89 Os poemas de Castro Alves são marcados pelo combate à escravidão, motivo pelo qual é conhecido como "Poeta dos Escravos". A poesia Navio Negreiro foi publicada em 1869. Existem outros poemas do autor que versa sobre as atrocidades da escravidão, posteriormente essa coletânea foi publicada na coleção Os escravos. 90 Josino de Menezes era farmacêutico ativista do movimento republicano. Também era dono do jornal O Laranjeirense que circulava em Aracaju e adjacências. Atuou como Secretário geral do governo do Monsenhor Olympio de Souza Campos (1899 a 1902), conhecia a pequena burocracia e relacionava-se bem com os adversários e correligionários. Com a República, devido às alianças estabelecidas no governo anterior, foi indicado pelo Monsenhor e governou a província sergipana nos anos de (1902 a 1905). 91 Para ver de forma panorâmica os significados da liberdade e “os males da dádiva” e as ambiguidades no processo da abolição brasileira consultar a autora SCHAWARCZ, Lilia Moritz. In: Quase Cidadão: Histórias e antropologias do pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro, Editora FGV, 2007. pp 23 a 54. 48 Que eu me metesse em casa a folgar com os filhinhos, procurando esquecer as misérias deste mundo... Vá lá; porque esta república me traz enjoado; mas os libertos! Só muita ingratidão! (áurea lei - a redenção dos cativos benemérita lei) Ass. Dr. Olyntho Dantas e Alfredo Montes.92 A ênfase na ausência dos libertos citada pelo articulista do jornal, revela importante reflexão sobre os silêncios e esquecimentos acerca das comemorações do 13 de maio, em Sergipe. O artigo silencia sobre a festa e seus participantes. A citação evidencia que “era dia de folga do negro, branco não vem cá”, ou seja, dois anos após as comemorações da abolição, a data não foi celebrada com a participação dos brancos, principalmente a dos proprietários rurais, que estavam bastante descontentes com a abolição. Possivelmente a suposta “ausência dos libertos” aponta que as comemorações da abolição em Sergipe certamente sofreram represálias por parte das elites e de autoridades locais, visto que os discursos que imperavam nesse momento era o de que as “populações de cor” libertadas pela abolição se encontravam no mais profundo imobilismo, propenso a batuques, desordens e a vadiagem. 93 Nesse contexto, a figura da princesa Isabel não foi esquecida. Se não há indícios de seu engrandecimento no calor das comemorações da abolição em Sergipe, como foi o caso de diversos lugares do Brasil, onde a princesa Isabel foi representada como a “Redentora” e o ato da abolição transformado em mérito de “dono único” 94 após a abolição muitos foram os anúncios em jornais, divulgando celebrações de missas em agradecimento aos membros da monarquia, como forma de retribuição e lembrança da liberdade. Conforme a nota do Jornal Gazeta de Sergipe: Missa para D. Tereza Cristina Os libertos, Plácido Penna e Manoel Vieira da Costa, saudando o glorioso dia 13 de maio, que relembra a redenção dos cativos, mandam celebrar uma missa pelo eterno repouso da alma da e- imperatriz do Brasil, D. Tereza Cristina Maria e pediu a todos que souberem apreciar as virtudes da excelsa senhora, o caridoso obséquio de assistirem aquele ato de religião, que é 95 também uma lembrança da liberdade. Faz hoje 5 anos que se promulgou: A grande Lei de 13 de Maio, libertadora da raça escrava. 92 BPED, Jornal Correio sergipense – ano I, n° 80 de 15.05.1891. Consultar, Relatórios dos Presidentes da Província de Sergipe. (1888 a 1890) 94 SCHWARCZ, Quase-cidadão, 2007. p. 25. 95 Jornal Gazeta de Sergipe em 13 de maio de 1890. 93 49 Hoje às 7 horas da manhã na matriz desta cidade celebra-se uma missa para a alma de D. Tereza Cristina, ex-imperatriz do Brasil. 96 As homenagens dos libertos mandando celebrar missas em comemoração ao dia 13 de maio revelam que embora as elites locais quisessem lançar no esquecimento as celebrações em torno da libertação dos escravos, para eles (os libertos), a participação em atos públicos como missas e passeatas com bandas de músicas, que ocorriam tradicionalmente em Laranjeiras, demonstram que os significados de liberdade estavam marcados em suas memórias e, consequentemente, também a figura de seus benfeitores. A memória da liberdade enquanto dádiva da Princesa Isabel, não omite, portanto, as narrativas dos enfrentamentos que determinaram cada um daqueles contextos. Muito embora, os republicanos disseminassem em seus ideários mais acesso aos direitos políticos, igualdade e cidadania, o rígido controle do governo nos anos iniciais da República, visando “manter a ordem”, principalmente das populações de cor, nos anos posteriores à abolição, vigiando e punindo os libertos tidos como ociosos, levaram a aumentar a simpatia dos ex-escravos pela família real em detrimento às arbitrariedades dos governantes republicanos. 97 O debate em torno do engajamento da mão-de-obra livre e liberta após a emancipação aumentou os descontentamentos das “populações de cor” no tocante a garantia de usufruírem plenamente a liberdade. Diversos tipos de penalidades eram aplicados àqueles que fossem pegos em atos de vadiagem, tais como, perambular sem destino, praticando atos duvidosos como jogos, bebedeiras e sem engajamento laboral, sendo obrigado a assinar o termo de bem viver, que sujeitos a dentre outras punições, deveriam prestar serviços públicos durante um mês e em caso recorrente seriam engajados em alguma atividade produtiva obrigatória. 98 Tais iniciativas, mesmo que não fosse exclusividade do período republicano, pois, o termo de bem viver já era aplicado décadas antes da abolição. Foi nos dias seguintes a esta, que se intensificaram a adoção de tais medidas, procurando garantir a continuidade dos trabalhos da lavoura. Entretanto, para os libertos, tais medidas limitavam sua autonomia e seus direitos de cidadãos livres, causando maior rejeição destes “novos cidadãos” à política republicana. A “ausência” dos libertos na festa da abolição não significava indiferentismo dos mesmos em relação à comemoração da liberdade, como noticiado pelo Jornal sergipano. 96 BPED, Jornal Correio de Sergipe- ano I, n° 79 de 13.05.1893. Sobre esse aspecto ver MATOS, memórias do cativeiro, 2005. P. 54 a 59. 98 Consultar APES, Sp1, Vol. 491. 97 50 Comungamos com a ideia de João China, para quem a festa talvez passasse a ser celebrada numa perspectiva mais particular: “Algumas iluminações, música na rua, no largo da liberdade e também brincadeira particular, traduziram o sentimento de um povo.” 99 Possivelmente, em Sergipe as celebrações da abolição, assim como nas grandes capitais brasileiras, ganharam características mais particulares e nem por isso, menos importantes. 1.4 Sergipe no limiar da República: Um olhar sobre sua evolução no final do século XIX Dez dúzias de casebres remendados Seis becos com mentrastos entupidos Trinta soldados rotos e despidos Cinco igrejas, dez frades, três letrados. Seis curados sem cura amancebados Um juiz com bigodes sem ouvidos Doze presos de piolhos carcomidos E dois meirinhos por comer cansados. Mulatas com capote de baetas Palmilha de tamanco, como frades Saia de chita, cintas de raquetas. Muito feijão que faz ventosidade Muito enredo, trapaça, embuste, treta 100 De Sergipe Del Rey é a cidade. O retrato poético, e nada enaltecedor, da província de Sergipe Del Rey é de autoria de Gonçalo Soares. Segundo Luiz Mott, que analisa este e mais dois sonetos sobre Sergipe, um deles atribuído a Gregório de Mattos, poeta brasileiro, mais conhecido como “boca do inferno” 99 101 , este soneto caracteriza de forma pitoresca os Ibid., 2007, p. 7. Descrição de Sergipe Del Rey, de Gonçalo Soares. Encontrado na Biblioteca de Évora, no Códice n.29 do armário 1, que traz no título: Poesias do século XVII coligidas na Bahia. In SILVEIRA, Luís. “Documentos para a História Literária da Bahia”. Revista Brasília, Faculdades de Letras da Universidade de Coimbra, Volume 1, 1942. p 561-562. 101 O soneto de Gregório de Mattos intitulado “descrição da Cidade de Sergipe Del Rei”, foi divulgado por Afrânio Peixoto no primeiro volume das obras do poeta publicado pela Academia Brasileira de Letras em 1923-1933. Para uma análise mais minuciosa sobre esses sonetos consultar: MOTT, Luiz. Sergipe Colonial e Imperial: Religião, família, escravidão e sociedade. (1591 – 1882). São Cristóvão: Editora da UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008. p 119-136. 100 51 municípios sergipanos e sua sociedade, revelando a precariedade dos primeiros séculos, se tornando motivo de escárnio por muitos dos seus contemporâneos e estudiosos. A mudança desse quadro e sua evolução foram vagarosamente processadas no início do século XIX, em meio às tensões e conflitos por maior autonomia desta província, até então tutelada pela Bahia. Os maiores impasses para sua independência estavam atrelados às disputas por sua extensão territorial e pela produção econômica. 102 As desavenças provocaram o desligamento de Sergipe da Bahia, em 1820, que em muitos aspectos, saiu em desvantagens, principalmente no tocante às terras. No decorrer dos oitocentos, ocorreram diversas outras transformações econômicas e sociais em Sergipe. A mudança da capital de São Cristóvão para Aracaju, em 1855, resultou em algumas mudanças na urbanização, buscando dar ares de “progresso” e civilidade à nova capital, que antes não passava da pequena Vila de Santo Antônio do Aracaju. A abolição da escravatura em 1888, o declínio do açúcar e a proclamação da República 1889, também provocaram significativas mudanças em Sergipe. Não obstante, sua história ter sido marcada por vários períodos importantes, foi na fase republicana que ocorreram as maiores modificações na vida de seu povo. Em Sergipe, a pregação dos republicanos falava em muitas vantagens, entre as quais, maior compatibilidade da República com a democracia. Seus defensores prometiam maior participação popular, descentralização administrativa e moralização política. 103 Mas, a materialização desses avanços tenderia a encontrar fortes resistências diante da realidade subjacente. Conforme o censo de 1890, a população era composta por 310.926 habitantes, dos quais 48% eram considerados mestiços, 30% brancos, 15% pretos e 7% caboclos.104 A maior parte dessa população concentrava-se no campo, envolvida em atividades de subsistência e/ou em economia agroexportadora na qual o açúcar era o produto predominante. Para o cientista político Ibarê Dantas especialista em História sobre Sergipe República,105 a sociedade nesse momento de ruptura estava dividida entre 102 Ver ob. cit., NUNES, Sergipe Provincial II, 2006. BPED, Jornais O Laranjeirense(1887) e O Republicano(1888/1889). 104 Consultar, Anuário estatístico do Brasil. Rio de Janeiro, Fundação IBGE, 1967. pp 35/36. 105 O Cientista político é autor de diversos livros, artigos em jornais, revistas e anais que dissertam sobre o Estado de Sergipe com ênfase em sua História Política. Entre suas principais obras sobre a temática estudada consultar: DANTAS, Ibarê. O tenentismo em Sergipe (Da revolta de 1924 á revolução de 1930). Petrópolis/RJ, editora vozes, 1974; A Revolução de 1930 em Sergipe: dos tenentes aos coronéis. São Paulo, Cortez Editora, 1983; Coronelismo e Dominação. Aracaju, Diploma/UFS, 1987; Os partidos 103 52 senhores proprietários e trabalhadores despossuídos. Ou seja, no final dos oitocentos, Sergipe estava bem longe da ordem que asseguraria igualdade de oportunidades a todos os seus cidadãos. No cenário político, o poder local, ainda estremecido com as transformações ocorridas com a queda da Monarquia, buscava de uma forma ainda incipiente se ajustar aos moldes da República. Para Ibarê Dantas, o governo republicano trouxe importantes transformações: “em primeiro lugar, o poder executivo passava a ser ocupado pelos próprios políticos da terra, com a perspectiva de serem eleitos pelo voto popular. Essa alteração inaugurava ritual bem diferente dos tempos da província, quando o Imperador indicava os governantes”. 106 O Estado, que era predominantemente rural, urbanizou-se, estruturou-se e construiu sua base industrial, um grande setor de serviços para atender às demandas cada vez mais amplas de seus cidadãos que atravessavam as oscilações dos diversos regimes políticos sempre repercutindo nas relações sociais. Na esfera econômica, o quadro era bastante desfavorável. 107 Com a abolição da escravatura, houve uma queda considerável da produção agrícola. A produção anual exportada apresentou a pior média entre quase três décadas. Para os ex-senhores, isso era consequência da abolição. 108 Como podemos observar, A primeira safra de açúcar no pós-abolição rendeu 29% da média anual exportada no período 1871/1888. Num estado que dependia, sobretudo, das exportações da produção rural, o impacto foi enorme. O patronato em grande parte se endividou ou faliu, os comerciantes entraram em dificuldades, a arrecadação diminuiu e o governo passou a atrasar o pagamento dos 109 funcionários públicos. A precária maquina pública se deteriorava. Era fraca a atuação do poder público que no alvorecer da República se encontrava bastante dividido entre as oligarquias locais. A construção de governos locais com a participação dos quadros de políticos da terra exigia ajustes. Ibarê Dantas afirma que, “ao fim da primeira década computavam-se cerca de vinte e dois indivíduos que estiveram no cargo do Executivo, participando de juntas provisórias ou governando políticos em Sergipe (1889-1964). Rio de Janeiro, Tempo brasileiro, 1989 e História de Sergipe República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. 106 DANTAS, História Sergipe República, 2004. p. 16. 107 IHGS - Documento do Gabinete do Conselho do Estado de 02/10/1889, citando correspondência do Presidente de Sergipe de 15/07/1889, referindo-se a sérias dificuldades do tesouro da Província. Apud, DANTAS, História Sergipe república, 2004. p. 17. 108 Para uma análise sistemática sobre economia, trabalho e sociedade sergipana entre o final do século XIX e inicio do século XX, consultar SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2000. 109 Ibid., 2004, p. 17 53 isoladamente. Foi uma rotatividade elevada e permeada por várias questões desgastantes”. 110 PRESIDENTES DA PROVÍNCIA DE SERGIPE 1889 A 1911 NOME Thomaz Rodrigues da Cruz Antônio Diniz Dantas Melo Jose Siqueira de Menezes Antônio Siqueira Horta Vicente Luiz de Oliveira Ribeiro Baltasar de Araújo Góis Jose Siqueira de Menezes Baltasar de Araújo Góis Jose Siqueira de Menezes Felisbelo Firmo de Oliveira Freire Augusto César da Silva Lourenço Freire de Mesquita Dantas Luís Mendes de Morais Vicente Luís de Oliveira Ribeiro Leandro Ribeiro Siqueira de Menezes Marcelino José Jorge Olindo Rodrigues Dantas José de Calazans João Vieira Leite Manoel Prisciliano de O. Valadão Antônio Leonardo da Silveira Dantas Martinho César da Silveira Garcez José Joaquim Pereira Lobo Martinho César da Silveira Garcez Daniel de Campos Martinho César da Silveira Garcez Apulcro Motta Olimpio de Souza Campos Josino Menezes Guilherme de Souza Campos João Maria Loureiro Tavares Guilherme de Souza Campos José Rodrigues da Costa Dória Manoel Batista Itajaí José Rodrigues da Costa Dória PROFISSÃO Empresário Militar Militar Por. Rural Prop. Rural Professor Militar Professor Militar Médico Militar Juiz Militar Prop. Rural Advogado Militar Médico Militar Médico Militar Padre Advogado Militar Advogado Médico Advogado Jornalista Padre Farmacêutico Desembargador Desembargador Desembargador Médico Médico Médico PERÍODO DE GOVERNO 15.11.1889 a 17.11.1889 17.11.1889 a 18.11.1889 18.11.1889 a 02.12.1889 02.12.1890 a 13.12.1890 13.12.1889 a 17.08.1890 17.08.1890 a 04.11.1890 04.11.1890 a 26.01.1891 26.01.1891 a 28.05.1891 28.05.1891 a 24.11.1891 27.11.1891 a 18.05.1892 18.05.1892 a 11.09.1894 11.09.1894 a 24.10.1894 24.10.1894 a 27.07.1896 27.07.1896 a 24.10.1896 24.10.1896 a 11.10.1897 11.10.1897 a 20.03.1898 20.03.1898 a 08.04.1898 08.04.1898 a 24.07.1898 24.07.1898 a 14.08.1899 14.08.1898 a 24.10.1899 24.10.1899 a 24.10.1902 24.10.1902 a 24.10.1905 24.10.1905 a 10.08.1906 10.08.1906 a 28.08.1906 28.08.1906 a 24.10.1908 24.10.1908 a 10.07.1909 10.07.1909 a 13.11.1909 13.11.1909 a 24.10.1911 TABELA 5 - Presidentes da Província de Sergipe 1889 a 1911. FONTE: DANTAS, História de Sergipe República, 2004, p. 305. (Anexos) As disputas entre republicanos e monarquistas contribuíram para tornar o quadro político bastante instável, marcado pela descontinuidade das administrações, o que afetava severamente as finanças públicas. Por esses motivos, os políticos sergipanos se dividiram formando dois grupos políticos, sendo um deles denominado de Pebas, os que ficaram na Capital e os Cabaús, que se concentraram no interior. A acirrada disputa pelo poder culminou na morte de dois importantes políticos locais, Fausto Cardoso (1906), e monsenhor Olympio de Souza Campos (1906). O primeiro era reputado como republicano austero que veio do Rio de Janeiro na tentativa de desarticular o grupo olimpista e garantir que a República fosse de fato instaurada. O segundo era o principal 110 Ibid., 2004, p. 28. 54 líder de oposição, que governou a província entre os anos de (1899 a 1902) e articulado com o Presidente Campos Sales e com lideranças do congresso, passou a controlar a política sergipana por vários anos. 111 Entre os principais objetivos da maioria dos governantes republicanos em Sergipe, estava, além da organização política, o objetivo de urbanização e saneamento da Capital, que mesmo sendo toda projetada, apresentava uma estrutura muito precária no que se refere à salubridade. As epidemias eram frequentes, os surtos de Varíola, Peste Bubônica e Tuberculose tornavam ainda mais vulnerável à vida de seus cidadãos.112 No alvorecer da República, a nova capital ainda era uma pequena cidade com o total de 16.336 habitantes, segundo o censo de 1890.113 Como centro políticoadministrativo, sua maior importância era garantir o funcionamento das repartições públicas, pois a força econômica ainda se concentrava no interior, prioritariamente em Laranjeiras e Maruim. Em seu porto, ancoravam anualmente cerca de 200 navios, trazendo passageiros e grande variedade de mercadorias que abasteciam o comércio. 114 A grande quantidade de bacias hidrográficas (seis), bem distribuídas ao Sul e ao Norte do estado, facilitava as navegações entre os diversos municípios e alimentava intenso intercâmbio de produtos nas feiras locais. 115 Na Capital, as feiras localizavam-se no primeiro trecho da Rua de Laranjeiras, adjacentes à Rua da Aurora (popularmente conhecida como a Rua da Frente, nas proximidades da Ponte do Imperador) e aconteciam às segundas-feiras. Essa feira logo passou a ser alvo dos mais diversos ataques da imprensa e das elites locais, por conta da “desordem” das ganhadeiras, da sujeira e da falta de “civilidade” de seus frequentadores e vendedores. 116 Segundo Maria Nely Santos, “a feira era o local do comércio dos pobres. A feira era considerada local de barulho e balburdia. A população 111 Ver, OLIVA, Terezinha de Souza. Impasses do federalismo brasileiro: Sergipe e a Revolta de Fausto Cardoso. Rio de Janeiro, Paz e Terra, UFS, 1985. pp. 190-201. 112 Sobre as epidemias em Aracaju ver: SANTANA, Antônio Samarone de. As febres do Aracaju (Dos miasmas aos micróbios). Dissertação apresentada ao núcleo de ciências sociais da UFS. 1997. p 91; SANTOS NETO, Sob o signo da peste, 2001. 113 Consultar, Anuário estatístico do Brasil. Rio de Janeiro, Fundação IBGE, 1967. pp 35/36. 114 C.f. Monsenhor Olympio de Souza Campos. Mensagem apresentada a Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe em 1902. Aracaju, Empresa de “O Estado de Sergipe”. pp. 22/24. 115 Consultar CAMPOS, Josefina Leite. Geografia de Sergipe. Aracaju, L. Regina, 1967. 116 BPED, ver o jornal Folha de Sergipe 12.05.1907. Que traz em seu artigo principal uma critica as feiras ocorridas na capital, na visão dos articulistas do jornal não propiciavam ares de civilidade a capital. 55 encontrava todo tipo de mercadoria vinda dos locais mais diversos da província. E a disputa não era pouca monta”. 117 A vida cultural era restrita, mas circulavam vários jornais (oito) e alguns periódicos como a Revista Literária, Revista Agrícola, Revista do Brasil, Revista do Instituto Histórico e geográfico, etc. 118 Havia um teatro, o São José, uma biblioteca pública e na educação possuía o maior número de cadeiras de ensino do estado, no total de 22, sendo 14 (catorze) para o ensino do primeiro grau e 8 (oito) para o segundo. 119 A indústria estava em expansão, havia uma fundição a vapor, que auxiliava a lavoura no preparo e consertos de máquinas; uma fábrica de óleos inaugurada em 1883, situada nas margens do Rio São Francisco, no município de Vila Nova (atual Neópolis); duas fábricas de sabão, uma na Capital e a outra no município de Estância, ambas funcionando a vapor; e também possuía uma grande unidade têxtil, a Sergipe Industrial, fábrica de tecidos inaugurada em abril de 1884, onde trabalhavam cerca de 170 operários. 120 As jornadas de trabalho ficavam ao árbitro dos patrões, assim como a assistência em acidentes de trabalho e na velhice, “que nem sempre eram de fato garantidos”, como denunciou a folha trabalhista121que circulava no município de Estância (onde surgiram as primeiras indústrias do Estado). Buscando garantir melhor assistência e direitos trabalhistas, começaram também a surgir, ainda na década de 80, sociedades beneficentes, como a União operária com sede na Capital. 122 Depois de dois séculos de escravidão, tanto os senhores quanto os ex-escravos, encontravam-se diante do desafio de assimilar a nova estrutura social, onde todos passaram à condição de cidadãos, formalmente iguais em direito. Esse era um processo de aprendizagem que demandava tempo. A seguir analisaremos como o fim do escravismo favoreceu, desarticulou ou engendrou essas relações sociais. 117 SANTOS, Maria Nely. Aracaju: um olhar sobre sua evolução. Aracaju: Triunfo, 2008. pp 75. Atualmente muitos exemplares dessas revistas estão acessíveis no acervo da Biblioteca Pública Ephifâneo Dória na Hemeroteca ou na Seção de Obras raras. Muitas dessas revistas foram compiladas em “miscelâneas” nos acervos de particulares que foram doados a BPED. 119 DANTAS, História de Sergipe República, 2004. p. 18. 120 Relatório do Presidente da Província de 07/1888, p. 30. 121 Consultar Jornais Sergipanos. Folha Trabalhista. Clarim do P.T.B propriedade e direção de Francisco Araújo Macedo de Circulação mensal no Município de Estância. 122 Ibid., DANTAS, História de Sergipe República, 2004. p 17. 118 56 II – Capítulo Os Reflexos da Liberdade: cotidiano, cidadania e sociabilidade. “O preto era mais sacrificado do mundo, a cor preta era escravejada, ninguém gostava, tinha racismo, o preto não tinha valor pra nada. A coisa era triste mesmo, era triste lá uns tempos atrás. Depois que acabou o cativeiro ficou uns quarenta, cinquenta anos naquela escravidão ainda, que nem onça... já não havia mais coro... mas às vezes ainda batiam em 123 algum, até matava mesmo. Mesmo depois da escravidão”. As trajetórias coletivas ou individuais das populações de cor, livre ou liberta, e suas experiências nos anos seguintes à abolição apresentam-se muitas vezes entrelaçadas em memórias que perpassam o conceito dúbio entre escravidão e liberdade. Assim como na citação, depoimento de Seu Julião, que nasceu “ventre livre”, descendente de escravos, o “cativeiro”, mesmo após a abolição, continuava impregnado na cor preta,124 não importando em muitos casos, sua condição jurídica de cidadão livre. O próprio conceito de cidadania é por si só complexo. Nesse trabalho, a ênfase da cidadania é posta no cidadão como titular de direitos, sobretudo dos direitos que o garantem contra a opressão (civis) e lhe dão controle sobre o Estado (políticos). É uma cidadania marcada por seu caráter ativo, ou como bem definiu José Murilo de Carvalho, pode se dizer que é a cidadania de baixo para cima. 125 As falas de Seu Julião revelam cenas do cotidiano na vida dos “novos cidadãos” em que, mesmo décadas depois da abolição, as relações sociais entre brancos e negros permaneceram marcadas pela discriminação por seu passado escravista, ainda que, essas não fossem regra. Nesse contexto de “passagem” entre escravidão e liberdade, as vivências daqueles que presenciaram ambos os processos e de seus descendentes, foram tecidas muitas vezes por conflitos e tensões. No desenrolar dessas relações no pós-emancipação em Sergipe, nos confrontamos com casos que se assemelham às descrições feitas por Seu Julião, onde “o preto era o mais sacrificado do mundo, a cor preta era escravejada, 123 Labhoi – catalogo do acervo oral Memórias do cativeiro. Acesso em www.história.uff.labhoi. Falas do depoimento de seu Julião, Rio de Janeiro, 81 anos, em 27/10/1995. RIOS, Ana Maria Lugão e Hebe Maria Mattos. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. pp 121 – 122. 124 Hebe Mattos ao estudar os termos “negro” e “preto” infere que durante o século XIX, os mesmos foram exclusivamente utilizados para designar escravos e forros. Assim, seus descendentes ficavam marcados, era a própria expressão da “mancha de sangue”, que acreditamos se inserir a discriminação relatada por Seu Julião. Consultar, MATOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. pp 17 -18. 125 Sobre o conceito de cidadania consultar, CARVALHO, José Murilo de. Cidadania, estadania e apatia. Publicado no Jornal do Brasil em 24 de junho de 2001, p. 8. 57 ninguém gostava, tinha racismo, o preto não tinha valor pra nada”. Esse trabalho irá analisar as relações sociais nos anos seguintes à abolição em Sergipe, nas quais procuraremos retratar os processos de inclusão dessas populações em uma sociedade ainda marcada pelas memórias da escravidão. O cotidiano de discriminação racial e social foram cenas corriqueiras na vida de “homens e mulheres de cor” após a abolição. Açoitamentos, violência, maus tratos, conflitos de trabalho e mortes marcaram as relações entre ex-senhores e ex-escravos, numa disputa contínua após o cativeiro em definir poder, espaço e autonomia. Porém, no bojo dessas transformações, também foram fortalecidas e estabelecidas redes de sociabilidade, solidariedade, religiosidade e principalmente família, entre as populações de cor ou não, que garantiram segurança, proteção e continuidade de resistência na busca por direitos e cidadania plena. 2.1 Novos Cidadãos: “Lei da própria Vontade” “Somos brasileiros e irmãos, o céu ilumina-se para nós que, de hoje em diante teremos os mesmos sofrimentos e as mesmas venturas. O sol da liberdade nos envia seu dourados raios, espera-nos uma obra gigantesca, o despotismo, ainda existe nessa terra, que já chora tantos mártires; ainda somos escravos, mas cada um de nós tem diante de si a trilha traçada que conduzirá ao futuro cheio de promessas”. 126 A epígrafe acima é parte de artigo publicado no jornal O Republicano em comemoração aos dois anos da abolição da escravatura. O articulista do jornal faz menção a “uma obra gigantesca” que a esperança na República e na liberdade realizaria no porvir. Mesmo dando ênfase à igualdade de cidadania que o “sol da liberdade” havia propiciado a partir da Lei Áurea a todos os cidadãos de cor ou não, o articulista deixa evidente que, “ainda somos escravos”, ou seja, em Sergipe, mesmo com a proclamação da República a realidade social ainda era excludente, o direito a igualdade estava implícito na lei, mas, negado cotidianamente na prática. Entretanto, o discurso republicano pautava suas expectativas e esperanças no “futuro cheio de promessas”. Desse modo, direcionaremos nossas atenções tanto para o cotidiano de marginalização, quanto para as estratégias de sobrevivências utilizadas pelas “populações de cor” nos anos que se seguiram à abolição. Antes de nos debruçarmos sobre as lutas em torno dos direitos de cidadania nas 126 BPED, Jornal O Republicano. 13/05/1890. 58 trajetórias desses novos cidadãos, faz-se necessário definirmos o conceito de cidadania nos anos iniciais da República, bem como avaliar os direitos aplicáveis às reivindicações dessa parcela da população, nos anos iniciais da República. O autor José Murilo de Carvalho tem sido um dos autores que mais tem escrito e refletido sobre cidadania no Brasil. Suas discussões partem principalmente da análise do conceito de cidadania de T. P. Marshall,127 propondo que a cidadania seja entendida a partir de dois eixos (de baixo para cima e de cima para baixo). Exemplos de cidadania construída de baixo para cima são as experiências históricas marcadas pela luta por direitos civis e políticos, afinal conquistados, no Estado absolutista. Exemplos de movimento na direção oposta são os países em que o Estado manteve a iniciativa da mudança e foi incorporando aos poucos os cidadãos à medida que ia abrindo o guarda-chuva de direitos. 128 Para Marshall, os direitos civis eram compostos “dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça”. 129 José Murilo tem clara inspiração no conceito desse autor, no seu livro Os bestializados da República, 130 apontam quatro visões da cidadania no Brasil no início do século XX: a republicana, a positivista, a anarquista e aquela que partia da visão dos socialistas democráticos. Por esse reconhecimento de projetos diferenciados sobre a cidadania, brotando dos movimentos organizados e/ou da resistência popular ao Estado, bem como pela possibilidade de novas percepções sobre a construção da cidadania, pensamos ser fundamental esquadrinhar novas formas de lutas pela cidadania. Assim, em fins do século XIX, os cidadãos buscariam o Estado para atendimento dos interesses privados ou tinham ações reativas “contra as iniciativas do governo, que buscavam racionalizar, burocratizar e secularizar as relações sociais”. Dentro desse conceito amplo de cidadania, buscamos canalizar os anseios das “populações de cor”, egressos da escravidão, no sentido de garantirem seus “direitos de cidadãos”. 127 T. H. Marshall, Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967, p. 63-64. 128 José Murilo de Carvalho, “Cidadania: Tipos e Percursos”, Estudos Históricos, vol. 9, n. 18, 1995, p. 338-339. 129 Ibid. 1967, p. 63-64. 130 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados da República, São Paulo, Companhia das Letras, 2004. 59 O autor Sidney Chalhoub, em sua obra Machado de Assis historiador, 131 também traz um debate esclarecedor sobre alfabetização e cidadania ainda no tempo da escravidão e sua importância na visão de abolicionistas e membros das classes elitistas para a completa “civilização” do liberto. Para o autor, alfabetização e cidadania caminhavam juntas e o debate em torno da educação dos “ingênuos” a partir da Lei do Vente Livre de 1871, se intensificou nos anos posteriores à abolição; pois, logo esses cidadãos estariam em pleno gozo dos seus direitos políticos. Chalhoub infere que a crença geral era que a alfabetização melhorava a qualidade da cidadania. 132 A educação abria para o liberto as portas da civilização, discurso esse que tempos depois foi (re)significado pelos proprietários rurais sergipanos na tentativa de doutrinarem os libertos ao trabalho da lavoura, trabalharemos melhor esse assunto nas páginas a seguir. O autor Flavio Gomes, discute a formação da cidadania dos ex-escravos na mentalidade de senhores e libertos na pós-emancipação, ressaltando a dificuldade de se estabelecer os direitos dos mesmos num contexto ainda marcado pelas antigas relações escravistas, sendo a liberdade e seus significados constantemente redefinidos e valores como cidadania e igualdade cotidianamente contestados. Em muitos casos, a liberdade não significou o avesso à escravidão. Em outros, a sujeição, a subordinação e a desumanização, que davam inteligibilidade à experiência do cativeiro, foram requalificadas num contexto posterior ao término formal da escravidão, no qual relações de trabalho, de hierarquia e de poder abrigaram identidades sociais, se não idênticas, similares àquelas, que determinada historiografia qualificou como exclusivas ou características das relações senhor – escravo. 133 Em diversos momentos, através da análise dos documentos, nos deparamos com histórias que em muitos aspectos se assemelham com as ocorridas durante o período escravagista. Se para os ex-senhores e para as elites sergipanas, a luta dos ex-escravos por melhores salários e mais direitos de usufruírem por um tempo maior a própria liberdade levavam a classificá-los como cidadãos atípicos aos anseios sociais, para os escravos, preservarem esses direitos de liberdade possuíam outros significados, ou seja, era vista sobre outra perspectiva - a lei de sua própria vontade. 131 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. Ibid. 2003, p. 281. 133 GOMES, Flávio e Olívia Maria (org.), Quase-cidadão: histórias e antropologia da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2007. p. 11. 132 60 Direcionar suas vidas e trajetórias a partir de suas escolhas, significava para os ex-escravos maior autonomia e exercício de sua cidadania. Analisado essas relações Walter Fraga, definiu que: Para os ex-escravos, a liberdade significava acesso a terra, direito de escolher livremente onde trabalhar, de circular livremente pelas cidades sem precisar de autorização de outra pessoa, de não ser importunado pela polícia, de cultuar seus deuses africanos, ou venerar a sua maneira os santos católicos e, sobretudo, direito de cidadania. 134 (grifo nosso) Para os ex-escravos, a liberdade trouxe consigo um leque de oportunidades de decidir sobre outros “meios de vida”, tal como fizeram as cozinheiras de Dona Sinhá e alguns dos seus ex-escravos do Engenho Topo e do Escurial, pertencentes ao seu marido, Gonçalo Rollemberg, que após a abolição migraram para outros destinos na esperança de reconstruírem suas vidas longe dos engenhos e das representações do cativeiro. 135 O que não foi bem assimilado pelos ex-senhores, era que essa “desleal” liberdade de escolha, não representava aversão ao trabalho ou propensão à vadiagem, como se disseminava nos artigos da Revista Agrícola, nos jornais e Relatórios provinciais, mas, a possibilidade de decidir os rumos de sua própria vida. Refazer a vida no tempo de hostilidade e incertezas, não seria tarefa fácil. Nos muitos processos existentes nos arquivos sergipanos encontramos diversos casos que retratam a insubordinação tanto de ex-escravos quantos de ex-senhores, o que exigia trabalho redobrado das forças públicas, que, muitas vezes, pela fúria desenfreada dos senhores, ensandecidos com a perda de suas “propriedades humanas” realizavam por iniciativa particular, “acertos de contas” e tentavam a todo custo restabelecer a ordem às chibatadas. Vários casos podem ilustrar bem essas conflituosas relações. Foi o caso que resultou no indiciamento de Antônio da Cunha Machado, dono de engenho e do seu filho, Alípio da Cunha Machado, além dos cabras, Juvenal dos Nunes dos Reis, Júlio Caboclo, Constantino de tal, José Firmino e Antero de tal, todos moradores na Vila do Espírito Santo, termo de Santa Luzia, Comarca de Estância. Na noite do dia 13 para 14 134 FRAGA FILHO, Encruzilhadas da Liberdade, 2006, p. 348. O autor Walter Fraga apresenta trajetórias de ex-escravos do Recôncavo baiano demonstrando as diversas atitudes por eles assumidas depois da abolição. Ver ob. Cit., 2006, especialmente os capítulos 7, 8 e 9. ALBURQUERQUE, O Jogo da Dissimulação, 2009, p. 106. Também faz referências a decisões dos ex-escravos ao optarem por “outros meios de vida”. Em ambos os autores consultar, o caso do exescravo do Barão de Vila Viçosa. 135 61 de março do ano de 1890, o dito senhor Antônio da Cunha mandou os indivíduos citados, prender o cidadão de nome Nazário, ex-escravo de seu engenho, o qual havia lhe afrontado. Preso, Nazário foi conduzido para o engenho onde fora castigado severamente com bolos, depois amarrado com corda e onde permaneceu detido por toda noite. Consta no processo, conforme as palavras do representante de Nazário, Francisco Armindo de Andrade, que o réu não possuía queixa nem pronunciamento, sendo a atitude do Coronel totalmente arbitrária. Conforme os autos: Não estando o dito Nazário pronunciado, nem consta que cometeu crime algum. E quando tivesse pronunciado, não tinha autoridade nenhuma o dito Antônio da Cunha Machado para prender Cidadão qualquer, salvo do caso único de ser encontrado cometendo algum delito. (grifo nosso) Convém mencionar que o castigo corporal foi deflagrado pelo próprio Antônio da Cunha Machado. 136 O caso ainda foi testemunhado por outros moradores que certamente indignados com tal ato, se prontificaram a relatar o caso à polícia. Eram eles: José Lins, Eduardo (ex-soldado), Domingues de Mello, Francisca Theodesia, Salvador Pereira, Pastora Hemeteria Alves Junqueira, Maria da Conceição e José Francisco de Andrade, todos residentes na Vila e vizinhos de Nazário. Este caso ilustra bem que após a abolição perpetuava-se a violência do cativeiro como forma de coerção. Hebe de Castro Mattos ao analisar tais relações afirma: “Foi gradativo o esgotamento do recurso da violência como forma de subordinação, entretanto tais mecanismos de tortura foram insistentemente utilizados por ex-senhores dias depois da abolição”. 137 É interessante frisar que o representante de Nazário fez questão de acentuar em seu texto que, “O dito Antônio Machado, não tinha autoridade nenhuma para prender qualquer cidadão”, muito menos aplicar-lhe “com as próprias mãos” os castigos impetrados no tempo da escravidão. Este documento traz informações importantes para o entendimento da lógica senhorial, da vítima e da justiça. Na visão senhorial, a perda do domínio sobre seus antigos escravos também se constituía uma perda de identidade. 136 138 Era a afirmação da APES, Sp1, Auto de denúncia, cx 491. CASTRO, Hebe Maria Mattos. Das cores do silêncio – os significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 166. 138 Wlamyra Albuquerque sinaliza que na mentalidade dos senhores de engenho, o fim da escravidão não representou apenas a perda de propriedade, mas, das referências fundamentais na constituição da identidade dos proprietários de terras e escravos. A certeza de que o mundo social não poderia mais ser definido pela oposição entre senhores e escravos comprometia vínculos pessoais e referências de autoridade. ALBUQUERQUE, O Jogo da Dissimulação, 2009, p. 125. 137 62 continuidade do poder senhorial que o castigo com as “próprias mãos” simbolizava para o antigo senhor, porque, mesmo acompanhado de diversos “capangas” ele mesmo desferiu os castigos no ex-escravo na presença de muitos moradores, na intenção provavelmente de demonstrar seu poder junto àquela população. Não consta nos autos, que o agressor tenha sido punido. A justiça ou a força policial, em muitos casos, era omissa e demonstrava postura ambígua, no tocante às atrocidades cometidas pelos exsenhores. A hora exigia cautela tanto para com os libertos quanto para com os exsenhores. Outro ponto importante que observamos foi a linguagem das cartas que referenciada aos ex-escravos. Segundo José Murilo de Carvalho, a linguagem do tratamento usada na correspondência não tem merecido a atenção dos estudiosos, porém, as análises dos mesmos também trazem revelações muito importantes. 139 Em Sergipe, a utilização do termo “cidadão” após 1888 passou a ser constante para nomear a nova condição social dos libertos. No documento citado e, em outros documentos da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Sergipe o desígnio “cidadão” antes de 1888, aparece como referência a pessoas de status importante. O termo era utilizado sempre acompanhado da prerrogativa “ilustre” para fazer referência a algumas autoridades, como juízes, desembargadores, chefes de policia, etc. Com a abolição, o termo passou a ser usado para enfatizar a igualdade de direitos dos “novos cidadãos”. 140 Valendo-se da sua nova condição jurídica, encontramos várias petições de presos ex-escravos, requerendo audiência com os respectivos delegados de suas comarcas, a fim de negociarem sua liberdade, questões familiares ou quantias a serem pagas por dias trabalhados sem a justa renumeração. Serve-nos como exemplo, o pedido do preto Joaquim Martins do Nascimento, em 1891, Ilustre Dr. Chefe de Polícia O preso, preto, pobre, Joaquim Martins do Nascimento recolhido à casa de prisão dessa capital, necessitando fazer uma reclamação a bem dos seus direitos de cidadão (grifo nosso) a V. Ex.ª e não podendo fazer por petição 139 CARVALHO, José Murilo de. Rui Barbosa e a razão clientelista. Dados v. 43 n. 1 Rio de Janeiro 2000. p. 17. O autor neste artigo realiza uma análise sobre as correspondências de Rui Barbosa. Faz referência a utilização do termo cidadão para designar tratamento a pessoas de distinção e prestigio social. 140 Hebe Mattos, também faz referência à utilização sistemática do termo “cidadão” como designador de status social. No caso, abordado pela autora, o termo que antes era utilizado somente por cidadãos (proprietários, comerciantes, autoridades) com a abolição passa ser utilizado enfaticamente para designar o liberto. MATOS, Hebe de Castro. Para além das senzalas: campesinato, política e trabalho rural no Rio de Janeiro. In, Quase Cidadãos, 2007, p. 62. 63 em via de sua pobreza, vem ante a V. Ex.ª pedir que se digne fosse justiça de conceder- lhe 1 hora de audiência para que possa o suplicante fazer sua queixa de forma que possa ser atendido. Confiando na justiça reta que tanto tem honrado os atos de V. Ex.ª , o preso. P. Benigno deferimento.141 A petição ressalta a nova condição jurídica de cidadão que passou a usufruir o liberto. A ênfase no direito de cidadania garantido com a abolição passou a ser recorrente em diversas petições, o pedido que versava “a bem dos seus direitos de cidadãos” foi prontamente respondido. O delegado concedeu ao peticionário o direito de audiência tal qual como solicitado. Infelizmente não foi possível localizar o processo que condenou Joaquim, mas, o seu requerimento traz à tona uma discussão plausível para compreensão dos significados da liberdade e de cidadania para a “população de cor”. Mesmo que os direitos na forma da lei, não fossem severamente aplicados de forma justa entre seus cidadãos, para Joaquim a ênfase em sua nova condição a qual poderia usufruir o “direito de cidadão”, significava ao menos a oportunidade de ser ouvido, mesmo que sua solicitação não fosse atendida e a sua condição pouco se alterasse. Era a confiança na liberdade que criara a expectativa na “justiça reta” e na equidade da lei, que o mesmo se sente esperançoso em ser atendido como qualquer outro cidadão. Nesse contexto, a imprensa baiana, poucos dias após a abolição, se colocava à disposição dos libertos, oferecendo as páginas dos periódicos abolicionistas para publicar qualquer queixa contra ex-senhores que cerceassem as liberdades ou os submetia a castigos físicos. 142 Desse modo, a imprensa também foi um dos recursos bastante empregado para dar notoriedade aos atos de violência cometidos contra os libertos, ora, aumentando o descontentamento dos ex-senhores, ora, atiçando a manifestação popular, causando balbúrdia na pequena província sergipana, como no episódio que narraremos a seguir. 2.2 A “tragédia” da Vila do Rosário No dia 10 do corrente mês [outubro de 1909] o Jornal de Sergipe desta capital, deu notas de um verdadeiro escândalo, deu notícia de um caso sensacional, com as mais vivas cores de uma tragédia, representada e epilogada na Vila do Rosário com “A prisão de um homem considerado até como inofensivo". 141 142 APES, Sp1, Correspondência recebida, cx 475. ALBUQUERQUE, O jogo da Dissimulação, 2009, p. 118. 64 O presente relato poderia ser considerado apenas como uma notícia sensacionalista com “as mais vivas cores de uma tragédia”, se a mesma não tivesse repercussão escandalosa para a sociedade sergipana na primeira década do século XX. Esta citação é trecho do relatório oficial da Secretaria de Segurança Pública de Sergipe, referente a noticia publicada no Jornal de Sergipe sobre uma denúncia de “abuso de poder” por parte da autoridade policial daquela localidade, mais especificamente da Vila de Rosário do Catete pertencente à Região do Cotinguiba. A nota faz menção à prisão de um “homem de cor”, conhecido como José Capela, ex-escravo de Sebastião Gaspar de Almeida Boto. O ex-escravo foi identificado como pessoa de muita aptidão, moralidade, boa índole, pai de quatro filhos e casado com Micaela, ex-escrava do mesmo Senhor. 143 O jornal, ao noticiar o caso, anunciando prisão e morte da vítima, o faz em tom de mais grave denúncia e indignação, não poupando nem se esquecendo de mencionar detalhes sobre as barbaridades do fato ocorrido. Como consta, A prisão foi realmente efetuada no dia 27 de setembro, e o preso foi realmente espancado. Mas, pela madrugada do dia 28, a vítima exalava o último suspiro, a vítima desgraçada da barbaridade policial e vítima cuja morte não há de ter ao menos nem um simulacro de punição. Um horror! O cadáver do assassinado foi dado à sepultura no dia 29 de setembro, todo retalhado de golpes de facão. Apresentando no ventre profunda abertura de onde caíam os intestinos. 144 A ênfase na violência está presente em toda a narrativa. Certamente o articulista do jornal já estava prevendo a impunidade do caso. O apelo jornalístico ao mencionar a “punição” o fez em tom de desdém, pois, era corriqueira a omissão e impunidade nos casos que envolviam violência contra “homens e mulheres de cor”. Entretanto, dessa vez o sensacionalismo jornalístico surtiu efeito, e a repercussão da notícia tornou-se motivo de preocupação por parte das autoridades, que com o quadro policial debilitado e não gozando de prestígios no que diz respeito à manutenção da ordem pública, se ateve a investigar o caso e calar os comentários da imprensa local que há muitos dias vinham propalando e incomodando as autoridades superiores do governo estadual e da Secretaria de Segurança Pública. Nas palavras de João Maynard, “O crime nefando e 143 Ver, PASSOS SUBRINHO, Josué Modesto dos. Os classificados da escravidão, (ORG). Aracaju, IHGS, 2008. p 263. 144 BPED, Jornal de Sergipe em 10.10.1909. 65 horrendo por tais cores narrados constituiu nota predominante e sensacionalista por muitos dias”. 145 A investigação do caso citado foi apresentada no Relatório do Chefe de polícia e Bacharel João Maynard exposto ao Dr. José Rodrigues da Costa Dória, presidente do Estado indexado na seção da Secretaria de Segurança Pública intitulado: O caso da Vila do Rosário. O fato é notificado às autoridades superiores por sua repercussão tanto na imprensa sergipana, quanto nas correspondências policiais, que frente às pressões e burburinhos populares, exigiam das autoridades publicas, providências para a tragédia que resultou na morte de José Capela. A vítima até então, era um homem conhecido por sua boa índole e considerado inofensivo. Foi assassinado brutalmente por policiais através de luta corporal travada quando o mesmo foi surpreendido às 10 horas da noite, na residência de amigos, acusado pelo crime de roubo à casa de farinha do comerciante Manoel Leobino de Menezes. Como consta nos autos: O delegado de polícia em exercício João Derizans, mandando efetuar a prisão de um homem de cor preta, de nome José Capela, prisão feita a pedido de Manoel Leobino de Menezes, o qual se queixara de o mesmo haver arrombado a casa de farinha de sua propriedade e dali subtraído quase todos os utensílios. Sendo a queixa dada às 10hs da noite do dia 27 de setembro nessa mesma hora mandou o dito delegado chamar o sargento Marcilio Manoel Ribeiro e os dois soldados Manoel Theodoro dos Santos e Vicente Bispo dos Santos que se dirigiram à rua Barro Vermelho, a fim de capturar José Capela, que estava na casa de Maria de Sebastião. Então o delegado de polícia às 10hs do dia 27 mandou os soldados prendê-lo. José Capela percebendo que só havia um policial na porta dos fundos, arma-se de faca e cacete e agride o policial, em luta corporal da vítima com os policias, Capela saiu bastante ferido. Conduzido ao quartel, às 8hs do dia 28 a vitima faleceu. O delegado mandou notificar os peritos não profissionais, Guilhermino Ribeiro e José Soares para fazerem exame cadavérico e os mesmos deram a causa do falecimento por ferimentos ou lesão cardíaca, dando as determinações para o corpo ser sepultado às 2hs da tarde, no dia 29 no cemitério público. 146 Aparentemente o texto notifica mais um caso corriqueiro num período marcado pelas constantes tensões sociais. A crescente marginalidade era notória para toda sociedade e as soluções adotadas pelas autoridades não representavam grandes melhorias para as constantes desordens ocorridas no cenário social sergipano. O incômodo causado por causa do direito a liberdade desses “novos cidadãos”, principalmente no que concerne a permissão de ir e vir, foi constantemente discutido 145 146 APES, cx 09, vol. 05, p. 43. APES, Cx 09 vol. 05. p. 43. 66 nos relatórios policiais, que denunciavam o aumento da vadiagem entre as “populações de cor” e concomitantemente o crescimento da criminalidade. O fator que mais é surpreendente na história de José Capela é repercussão deste caso tanto na sociedade e imprensa, quanto nos bastidores jurídicos, por causa das contradições entre a visão popular e dos jornais, contra a versão apresentada pelo delegado de polícia em exercício, João Derizans. A principal dúvida consistia na causa mortis, por isso, foi solicitadas investigações do Bacharel João Maynard, que logo pediu uma nova perícia com exumação do corpo da vítima na tentativa de elucidar a veracidade dos fatos. Nos autos consta: Havendo dúvida dos resultados mandou chamar José Fernandes Vila Verde e Helvécio de Andrade doutores formados, no dia 15 [outubro de 1909] ás 12horas, que deram a causa da morte peritonite traumática em decorrência de uma perfuração oval e estreita a 3 (três) cm a direita da cicatriz umbilical. 147 A vítima do bárbaro caso da Vila do Rosário foi violentamente assassinada por policiais e enterrada “às pressas” no cemitério público do Estado e o novo laudo realizado pelos legistas profissionais José Fernandes Vila Verde e Helvécio de Andrade, contestou a primeira versão apresentada pelo Delegado João Derizans, que havia averiguado morte por causas naturais. Conforme os laudos dos médicos: O cadáver estava envolvido em mortalhas simples, branca e descansava no chão da cova, em posição horizontal, dorso para baixo, braços estendidos ao longo do corpo, não guardado em caixão. Sexo masculino, raça negra a natureza das lesões intra-abdominais produzidas por instrumentos vulnerantes. Morte não natural, violenta. 148 A nova pericia confirmou a causa da morte como não natural, contradizendo a versão anterior, o que gerou ainda mais suspeitas do crime de abuso de poder. Várias testemunhas que presenciaram o delito em seus relatos garantiram a idoneidade da vítima e não esconderam o sentimento de indignação ao afirmar que a José Capela não havia sido pronunciado, sendo a denúncia feita apenas por suposição do comerciante, que a fez talvez motivado por rixas antigas e/ou discriminação por sua antiga condição social. Na citação de João Maynard, designado para investigar o caso, os três envolvidos: o sargento Marcilio Manoel Ribeiro e os dois soldados Manoel Theodoro dos Santos e Vicente Bispo dos Santos, são declarados culpados. Como explicitado no julgamento feito por João Maynard, 147 148 APES, Cx 09 vol. 05. p. 44 Ibid. p. 46. 67 Testemunhas afirmam que não existia mandato de prisão preventiva, que José Capela não estava pronunciado e a prisão foi feita por simples queixa dada verbalmente e por isso é declarado, ilegal e praticado o crime de abuso de poder (...) De todo processado não consta quem foi o autor do golpe que vitimou José Capela; mas está provado que este foi ferido durante a luta. Pelo nosso código são os três coautores do delito. Os três agrediram a vítima. Pelo exposto bem ver que se trata de dois crimes. Um de responsabilidade e o outro comum, crimes esses conexos. Mandei notificar sem perda de tempo o Promotor público da Comarca pelo Doutor juiz de direito da mesma. 149 O caso foi julgado criminoso pela justiça sergipana e resultou no afastamento do delegado em exercício, sendo decretada a exoneração dos envolvidos no crime classificado pela Secretaria de Segurança pública como “abuso de poder”. O que realmente nos chama a atenção no caso estudado é o posicionamento das testemunhas frente a “uma aparente injustiça” contra um “homem de cor” e da punição de membros da autoridade policial. A participação da sociedade no testemunho da conduta de José Capela é também um dos fatores decisivos para a “condenação” do delegado Derizans e dos soldados envolvidos. Supomos que estes depoentes, sendo pessoas do convívio de José eram também “pessoas de cor”, isso se torna uma amostra contundente da mobilidade social frente à reivindicação dos seus direitos como cidadãos. A indignação pela morte de José reflete a busca por igualdade de justiça e de direitos. Mais de um século após a extinção formal da escravidão no Brasil, à indignação popular contra o “abuso de poder” por parte da autoridade policial nos chama a atenção para os significados dessa indignação no cotidiano da “população de cor” ao fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Para desvendar os desdobramentos desse caso, a primeira tarefa talvez seja investigar os vários significados atribuídos à experiência de liberdade que concede e permite um novo estatuto social a homens e mulheres de cor no país no final do século XIX. Interessa-nos entender como e por quais operações discursivas, processos sociais e históricos, homens e mulheres cujo estatuto social estava condicionado à combinação de sua condição jurídica, origem social e aparência física passam a ser vistos e a ver a si próprios como “iguais”. 150 Casos como o de José Capela servem para exemplificar as tensões e disputas em torno da liberdade no cotidiano das relações entre ex-senhores e ex-escravos em 149 Ibid. p 49. Para Flávio Gomes o que se imagina ruptura ou corte entre estatutos sociais distintos – o do escravo e o do cidadão – constitui uma rede de temporalidades diversas, porém internamente conectadas GOMES, Quase-cidadão, 2007. p. 10. 150 68 Sergipe. No alvorecer do século XX ocorreram muitos conflitos, decorrentes das mudanças econômicas e das alterações nas relações sociais e políticas. 151 Para a sociedade sergipana, a Lei Áurea já tinha cumprido seu papel perante a população cativa, concedendo-lhes a liberdade, preferindo principalmente os governantes, não problematizarem a situação deplorável das “populações de cor” egressas da escravidão, que atravessam as oscilações financeiras e as epidemias que aumentavam ainda mais a morbidade entre essa população,152 além das secas, que se alastravam pelo agreste sergipano. Nos discursos policiais, senhorial e muitas vezes da própria imprensa sergipana, imperava a ideia de incapacidade dos libertos em gerirem suas próprias vidas de forma ordeira e civilizada. Desse modo, frequentemente os exescravos foram considerados pela sociedade sergipana e até referidos nos autos policiais como vadios, ladrões e ociosos. 2.3 De vadios a Soldados: o recrutamento policial como forma de conter a desordem no pós-emancipação. No Brasil, décadas antes da abolição a liberdade era alcançada algumas vezes através de redes de favores e relações, e, em muitos casos, o liberto não se tornava livre plenamente, continuava ligado e dependente dos seus ex-senhores. 153 Assim os proprietários de escravos se condicionaram a pensar a liberdade como símbolo de gratidão que deveria ligar os libertos pelos favores infindáveis e lealdades pessoais. A abolição da escravidão que concedeu a essa parcela da população a liberdade irrestrita, colocou em suspeitas antigas relações sociais de favorecimento e paternalismo, gerando conflitos em torno dos significados da liberdade tanto para os ex-senhores quanto para os libertos. Eric Foner explicita a dificuldade de moldar as relações de sociedade e cidadania na pós-emancipação, principalmente, nas regiões agrícolas onde a escravidão vigorou com mais intensidade, como é o caso do Nordeste brasileiro. 151 FERREIRA JÚNIOR, Fernando Afonso. Derramando os mantos purpúreos e as negras sotainas. (Sergipe Del Rey e as crises do Antigo sistema Colonial – 1763-1823). Campinas, 2003. Dissertação de mestrado. Instituto de economia UNICAMP. Ver também NUNES, Maria Thétis. Ob. Cit. 2004. 152 SANTANA. As febres do Aracaju. 1997. p. 91; Sobre os obituários por insalubridade na Capital sergipana, consultar: ob. Cit. SANTOS, Aracaju: Um Olhar sobre sua evolução 2008. p. 45-49. 153 CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros. Os escravos, os libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985. p 33. 69 Toda sociedade caracterizada pela grande lavoura experimentou, ao passar por um processo de emancipação, um amargo conflito em torno do controle da mão-de-obra ou, como pode ser mais bem descrito, da formação de classes – ou seja, a definição dos direitos, privilégios e papel social de uma nova classe, a dos libertos. 154 Para o autor Foner, os negros de fato trouxeram da escravidão uma compreensão da sua nova condição social pautada tanto por sua experiência como escravos quanto pela observação da sociedade livre ao seu redor. No bojo dessas transformações, as vivências do período de escravidão permaneciam profundamente gravadas na memória coletiva dos negros. Desse modo, ao analisar as relações entre negros e brancos na pósemancipação no Sul dos Estados Unidos, o mesmo infere que ao tomar posse de sua cidadania, os libertos logo trataram de “livrar-se” dos signos e símbolos que representavam alguma semelhança com a sua condição de outrora, tais como, o trabalho no eito, as vestimentas, as relações familiares, etc. Como podemos observar, Os escravos recém-libertados procuraram de inúmeras formas “livrar-se da marca da escravidão” a fim de destruir a autoridade real e simbólica que os brancos haviam exercido sobre todos os aspectos de suas vidas. Alguns adotaram novos nomes, que refletiam as profundas esperanças inspiradas pela emancipação. 155 Buscando “outros meios de vida” em Sergipe, os ex-escravos passaram a ser alvos de atenção e preocupação policial, principalmente os que tinham “vida livre” ou conduta recriminável, dentre eles, bêbados, jogadores, desordeiros, prostitutas, insanos, indigentes e todos aqueles que podiam ser enquadrados no conceito amplo e ambíguo de vadiagem, acusados de fomentadores e agentes da desordem social. 156 Dentro desta problemática, Sergipe não era um caso isolado. Para o contexto baiano, Walter Fraga aponta que “muitos ex-senhores de escravos defenderam a utilização dos braços nacionais, atrelada a adoção de leis punitivas à vadiagem157”. Wlamyra Albuquerque, também enfatiza que denominados de vadios no vocabulário policial, os que traduziram liberdade por mobilidade e autonomia foram alvos frequentes da desconfiança das 154 FONER, Nada além da liberdade, 1988, p. 26. Ibid,1988, p. 70. 156 Ver Relatório do Presidente da Província do Dr. Chrorophilo Fernandes dos Santos em 1881, Anexos, p 7. Como medida adotada para a punição e coerção a vadiagem em Sergipe o chefe de polícia Francisco da Costa Ramos expede uma circular em 28 de agosto de 1879, onde estabelece a aplicação do “termo de bem viver” que deveria ser assinado por todos aqueles que fossem encontrados em estado de ociosidade, mendicância e vadiagem, devendo o mesmo ser atualizado mensalmente pelas forças policiais. 157 FRAGA FILHO, Encruzilhadas da Liberdade, 2006, p. 214. 155 70 autoridades. 158 Sidney Chalhoub, ao analisar os discursos sobre a vadiagem no Brasil, sinaliza que as elites nacionais construíram a ideia de que o negro possuía uma tendência natural ao alcoolismo, à marginalidade e à recusa ao trabalho. O negro, por esse discurso, era visto como incapaz de estabelecer laços familiares, era um desagregado, e oscilava constantemente entre a apatia e a violência, atributos necessários para ser representado como um criminoso em potencial.159 O que talvez não tenha sido bem assimilado pelos ex-senhores nos momentos seguintes à abolição é que para os homens e mulheres egressos da escravidão, a liberdade possuía outros significados para além do trabalho da lavoura, além de renumeração, estes libertos desejavam usufruir mais “tempo livre”. Contrapondo às expectativas da abolição entre essas duas classes; para os ex-escravos, o “tempo livre” representava um espaço social a ser protegido e, se possível, expandido. Na visão dos antigos senhores, o “tempo livre” representava uma forte inclinação à ociosidade. Os artigos da Revista Agrícola apontam que nos discursos dos proprietários rurais sergipanos eram considerados ociosos todos aqueles que não exercessem trabalhos regulares, principalmente, os trabalhos da lavoura e vadios os que desperdiçassem tempo em jogos, bebedeiras ou desordens e que obtivessem qualquer outra forma de subsistência que não fosse o trabalho lícito. Os estudos de Sharyse Amaral e Josué Modesto, muito contribuem para compreensão dessa lógica senhorial sergipana nos momentos seguintes a emancipação dos escravos. Estudando as “propostas de engajamento da população livre” em Sergipe durante a crise do escravismo, Josué Subrinho revela que antes da abolição do trabalho forçado, apesar da grande oferta de mão-de-obra livre, esta era vista apenas como “complementar ao trabalho escravo na produção de açúcar”. Para a população pobre e de cor além do trabalho da lavoura, atividade considerada rude, existiam varias outras opções de acúmulo pecúlio fora do domínio da propriedade açucareira: ocupando terras desvalorizadas, agregando-se a propriedades não açucareiras e subsistindo da apropriação de elementos da natureza. Essas atividades faziam com que essa população fosse uma fonte insegura e, por vezes, relutante de oferta de força de trabalho. 160 Segundo Amaral, na mentalidade dos senhores sergipanos: 158 ALBUQUERQUE, O jogo da Dissimulação, 2009, p 108. Ver CHALHOUB, Visões da Liberdade, 1990. pp 80 – 141. 160 Consultar, AMARAL, Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe, 2007. Capítulo V – Senhores das próprias vidas: da liberdade e da autonomia. pp. 208 a 217; PASSOS SUBRINHO, Reordenamento do trabalho, 2000, p. 198. 159 71 A liberdade era compreendida como não trabalho e daí ser necessário um período de “transição” para que os egressos do cativeiro se “adaptassem” ao trabalho livre. Como forma de incentivar e de tornar mais curta essa adaptação, os senhores pediam leis que obrigassem os libertos a assinar contrato de trabalho, na condição de pagarem pena de serem presos por vadiagem. Para os senhores, no mundo que se criava, a polícia substituiria os feitores. 161 Na ampla lista de restrições, estava contido caçar, pescar e coletar frutos, ações com punições previstas nas Posturas Municipais e regido pelo Código Rural,162 além de atos de mendicância, desordem, prostituição, jogos de azar e bebedeiras, também proibidos pelo Termo de bem viver.163 Para Amaral, “o que estava em jogo eram os limites do conceito de liberdade, que os senhores buscavam restringir, ao passo em que os escravos e libertos buscavam ampliar”. 164 Nos inúmeros artigos da Revista Agrícola, nos jornais e nos Relatórios presidenciais, disseminava-se o descontentamento dos exsenhores com a abolição imediata, Pensamos sempre que para amenizar o golpe desfechado sobre a lavoura, com a perda dos escravos sem posterior indenização, curasse ao menos o governo de publicar uma lei de locação de serviços (grifo nosso) que viesse remediar o mal causado (...) não seria certamente uma lei que oferece opções genéricas para o estabelecimento de contrato entre partes igualmente livres, mas antes a locação de restrições sobre a liberdade de vender a sua força de trabalho, obtida pela população livre. O trabalho livre não teve uma orientação racional; não se criou um freio para conter os ímpetos, os desmandos de todos aqueles que passaram a receber salários de mãos particulares. 165 Diante do exposto, voltaremos nossa atenção para as inúmeras solicitações de antigos senhores que temerosos pelos efeitos da liberdade no comportamento dos egressos da escravidão, gozando de mais “tempo livre”, em suas palavras, estavam cotidianamente incitados à vadiagem e ociosidade. Os proprietários rurais, em nome dos “bons costumes” clamavam a Secretaria de Segurança Pública sergipana proteção para as suas propriedades e familiares, cobrando eficiência frente ao caos instaurado com a abolição. Buscando analisar algumas medidas adotadas pelo governo provincial como forma de contenção da suposta desordem e inclusão social dos ex-escravos, dentre elas, 161 Ibid. 2007. p. 211. APES - Leis e decretos, Cx 07. Código Rural de 1905, p. 79. 163 APES – Sp¹, pac. 491. 164 Ibid., p. 213. 165 BEPD, Jornal Folha de Sergipe, 14/12/1890. 162 72 o recrutamento da população pobre e de cor, buscaremos seguir os fios que nortearam as trajetórias dessa população, que viram da noite para o dia suas vidas trilharem caminhos opostos, do crime para a lei. Muitos eram os motivos das queixas dos proprietários rurais contra os libertos. Nos ofícios e correspondências que circulava entre as delegacias municipais e a Secretaria de Segurança pública, são abundantes os pedidos de reforços e proteção policial. As reclamações mais recorrentes eram furtos, defloramentos, incêndios, invasões a antigos engenhos e agressões aos seus proprietários e familiares, assassinatos de antigos feitores, arrombamentos a casas comerciais, casa de farinha, roubo de gado, e etc. 166 Durante o cativeiro, furtos, roubos e desvios da produção eram vistos como algo legítimo para os escravos, como uma espécie de direito pelo seu trabalho. 167 No cotidiano das casas-grandes era corriqueiro, alguns escravos cometerem pequenos furtos, sendo frequentemente acusados de desobediência. Os escravos sergipanos não eram exceção. Encontramos nas cartas de Adolphine Scharmm, relatos sobre pequenos furtos cometidos pelos seus escravos domésticos, contando a mesma que só se sentiu tranquila com o serviço escravo, após a chegada de duas empregadas “brancas” vindo de sua terra natal (a Alemanha), as quais coordenariam os trabalhos dos escravos domésticos, pois, para ela as “populações de cor” possuíam caráter sempre duvidoso, mesmo quando estes eram considerados como bons serviçais. Observemos sua narrativa: Agora me sinto segura com os trabalhos das pretas e das mulatas, a minha felicidade de contar com duas empregadas alemãs (...). Madame Winter tem uma babá de quinze anos, especialmente cuidadosa para os padrões locais. Com cabelos lisos e cacheados, uma mistura de índio com mulatos. Porém masca tabaco, cospe no chão, rouba cigarros para fumar escondido e é extravagante. Madame Winter tem fortes suspeitas que já surrupiou muitas velas, rendas e dinheiro... Temos sorte com os nossos escravos, roubar e mentir é óbvio todos eles o fazem, em nossa casa, contundo, nunca o são espancados. 168 A tranquilidade da senhora Scharmm, se baseava na confiança de que as empregadas “brancas” não cultivavam os “maus hábitos” da população negra, mesmo 166 APES, ver Sp9, pacotilhas, 05, 12, 15 e 16 – Processos crimes e auto de denúncias. MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão. Crime, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888. São Paulo, Brasiliense, 1987. 168 SCHRAMM, Cartas de Maruim, 1991, p.15-32. 167 73 que em posição subalterna. Com a abolição, essas corriqueiras ações de “gatunagem” 169 praticados pelas “populações de cor” continuaram, mas, com outra significação além do acumulo de pecúlio ou satisfação, passaram a ser percebida pelos libertos como uma forma de compensação por todo o tempo que trabalharam na condição de cativos, usurpados dos seus direitos a renumeração. Para Silvia Hunold Lara, a experiência escrava certamente moldou as relações e reivindicações dos libertos após a abolição. 170 O recrutamento de ex-escravos para compor o quadro de soldados do Corpo Policial após a abolição foi uma das medidas adotadas pelo governo Provincial, objetivando resolver os conflitos gerados principalmente pela escassez de soldados e o aumento de solicitações para policiamento em função da desorganização do trabalho. Diversas correspondências entre os chefes de polícia tanto da capital, quanto do interior, embasam nossas argumentações. Da delegacia de Itabaiana, em 12 de janeiro 1889, Antônio Araújo Lobos envia correspondência a Licurgo de Albuquerque chefe de polícia de Sergipe: “Ponho a disposição de V. Ex.ª os recrutas de nomes Elias de tal e Victor de tal, verdadeiros vagabundos, turbulentos, que anteriormente quis o primeiro assassinar sua ex-senhores. A vista disso os considero bastante aptos para o serviço”. 171 Delegacia de polícia de Simão Dias, em 7 de janeiro de 1889, Antônio Joaquim da Motta envia correspondência a mesmo delegado: Seguiram devidamente escoltados para serem apresentados a V. senhoria os recrutas Balbiano de tal, conhecido por Balbiano Piancó, Severino de tal e Honório de tal, ex-escravos, os quais tendo sido recrutados na noite do dia 2 do corrente mês, não apresentaram documentos que os isentasse do serviço do exército não obstante se haver esgotado o prazo de 48 horas que foi concedida a cada um dos mesmos recrutas, os quais são todos aptos para o serviço, acrescentando que todos eles não se dão a ocupação devida, sendo todos desordeiros e provocadores de conflito. 172 Como podemos observar o recrutamento dos ex-escravos, nesse contexto, ocorre em função dos mesmos serem considerados como vadios, sem ocupação e desordeiros. Dentre outros documentos, achamos entre as correspondências policiais, a carta de solicitação de alistamento voluntario do “preto”, Higino Pereira da Silva, que sai diretamente da prisão, após ter cumprido pena, para o alistamento no 26º batalhão a fim de ser integrado ao corpo de praças da polícia provincial. Na Correspondência consta, 169 Sobre a gatunagem dos escravos em anúncios de jornais sergipanos consultar: MOTT, Ob. Cit. 2008. p. 95 a 118. 170 LARA, Silva Hunold. Escravidão, Cidadania e História do trabalho no Brasil. Projeto História, 16 (1998). p. 36 171 APES, Sp1 – Correspondência Recebida - Cx 05, vol. 10. 172 Ibid., APES, Cx 05, vol. 10. 74 Ilustríssimo Senhor Chefe de policia, Higino Pereira da Silva, preto, preso pobre, recolhido a cadeia pública dessa capital, achando preso por ordem de V. Ex. desde o dia 10 de maio do corrente ano, vindo recrutado da Vila de São Paulo, recrutado pelo alferes delegado de polícia, João R. de Mendonça, vem muito respeitosamente mandar alistar o suplicante como soldado do corpo de polícia do Estado, a fim de ser de V. Ex. um soldado fiel e criado. Nestes termos pede deferimento. Cadeia publica da capital, 27 de setembro de 1896. Manoel Costa dos Santos. 173 Talvez para Higino, o atendimento de sua solicitação representasse um passe para a ascensão social. Entretanto, ao encaminhar o requerimento do recrutamento voluntário do ex-detento, o delegado não observou atentamente e/ou ignorou o regulamento da força pública que versava sobre os requisitos necessários para o exercício da atividade: “ser brasileiro, maior de dezoito anos e menor que quarenta com a precisa robustez verificada em rigorosa inspeção de saúde e provada moralidade”.174 A boa moralidade nesse caso, foi subjugada, talvez fosse melhor mantê-lo na lei do que contra ela, visto que o recruta já tinha outras passagens pela polícia. O recrutamento de tais “desordeiros e vadios”, ao certo, fazia parte de um jogo de interesses tanto do chefe da polícia local quanto da força pública em geral. Certamente, o que motivava os delegados municipais a encaminharem esses cidadãos ao Secretário de segurança do Estado, não estava pautado somente na boa intenção de inserir esses novos cidadãos no seio social, era também uma forma de livrar-se dessa parcela da população, geralmente composta de pobres pretos, que incomodava a população branca, rica e inconformada com a abolição. O recrutamento de libertos era uma boa alternativa para sanar dois problemas de uma só vez: inibir a vadiagem e uma forma eficiente de aumentar o alistamento obrigatório que vigorava desde a lei de nº 2453 de 24 de setembro de 1874, mas, conforme os relatos do presidente Manoel de Araújo Góes vinha sendo constantemente negligenciados pelas autoridades policiais. 175 Conforme o relatório do Presidente da província Theophilo Fernandes dos Santos, apontou-se a necessidade de aparelhar a polícia, que desde 1880, carecia de 173 APES, Sp1 - Correspondência Recebida, pac. 491. APES, Leis e Decreto, cx 07– Regulamento da Força Pública. Imprensa Oficial, 1896. Capítulo II, art. 5, § 2. p. 4. 175 APES, Falas do Dr. Manoel de Araújo Góes. 1ª sessão da 27 Legislatura em 15 de fevereiro de 1886. p 26. 174 75 melhorias na organização e principalmente, no aumento dos funcionários, o chefe de polícia Francisco da Costa Ramos relatou: “O serviço policial está reduzido a cento e cinquenta praças, e é de primeira intuição não ser possível com tão diminuto quadro, policiar toda Província”.176 Certamente tal intuição em insuficiência do policialmente, foi balizada pelas agitações sociais que nos anos iniciais da década de 80, já representava ameaças pelo crescente movimento abolicionista e pelas constantes fugas quilombolas. Desde a vigência do Ato Adicional (1834) que a polícia vinha acumulando diversos serviços ao nível municipal. Dentre estes, sem dúvida, o que mais ocupava as milícias locais era coibir qualquer movimento insubordinado que pudesse alterar tenazmente a ordem pública e privado. Neste sentido, as décadas de 1870 e 1880, segundo Igor Fonseca, impuseram grandes desafios a essa instituição devido aos muitos atos impetrados pelos escravos fujões. Em Sergipe, os quilombos estariam no centro das discussões sobre a falta de segurança pública e privada, e destruir tais movimentos para as autoridades policiais era imperativo. 177 Em 1888, o quadro do corpo policial contava com o dobro do número de praças, ainda assim, o contingente era insuficiente para suprir as demandas que se amontoavam com a abolição. Além de esta em baixa, o quadro policial também se encontrava sucateado, como observamos através dos relatos do então chefe de polícia: “Contamos com 375 praças, número insuficiente para atender todas as exigências do serviço policial, espalhado pela província, e a que fica na capital não satisfaz as necessidades, além de fardamentos precários”. 178 Contando com número de soldados reduzido para suprir as demandas e para o devido policiamento, o recrutamento de ex-escravos, considerados como desordeiros e vadios foi providencial. Cruzando os dados dos relatórios dos delegados de polícia municipais em anexo aos Relatórios dos presidentes da província entre os anos de 1880 a 1910, foi possível avaliarmos a situação do quadro de soldados do corpo policial e realizarmos uma estatística do número de praças entre as décadas de 80 e 90, o que inferimos ser bastante ínfimo para suprir o policiamento e todas as demandas da capital e do interior. 176 Falas do chefe de polícia Francisco da Costa Ramos. Relatório do presidente da Província do Dr. Theophilo Fernandes dos Santos 1880, Anexos, p. 7. 177 OLIVEIRA, “os negros dos matos”, 2010, p. 50. 178 APES, cx 05, vol. 09. Chefe de policia interino Antônio Victor de Sá Barreto ao coronel Manoel P. Oliveira Valadão. Em 20 de agosto de 1895. 76 QUADRO POLICIAL 188O - 1910 500 Nº Soldados 410 375 282 225 150 1880 298 392 398 1903 1904 1910 389 282 270 201 158 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1888 1895 1896 1900 TABELA 6 – Quadro do Corpo policial de Sergipe 1880 – 1910. FONTE: Relatórios dos Presidentes da Província de Sergipe de 1880 – 1910. Conforme podemos observar nos dados da tabela acima, o ano de 1880 apresentou o menor índice no número de soldados, assim como em 1900, tais números, ainda que insuficientes, foram justificados, devido ao baixo orçamento público. 179 Após a abolição o quadro policial em Sergipe sofreu alterações. Entre os anos de 1880 a 1888, o número de soldados duplicou e, e 1896 o número de soldados alcançou o maior índice do período analisado. Entre os anos de 1896 – 1900, o corpo policial sofreu drástica redução em função da crise das finanças públicas e conforme relatório do Presidente da Província de 1900, o número de soldados foi novamente reduzido na tentativa de conter os gastos do orçamento público. Ciente da carência do número de soldados para o devido policiamento tanto na capital, quanto no interior, o presidente Theophilo Fernandes dos Santos enfatiza que para suprir tais demandas, havia permitido a contratação de apenados, ou seja, réus condenados a cumprirem suas penas na prestação de serviços público, o que significava mão de obra não remunerada. Entretanto, com a abolição o aumento do quadro policial passou a ser constantemente solicitado tanto na capital quanto no interior, o que forçava os delegados municipais, a requisitarem constantemente a Secretária de segurança pública o aumento do número de soldados. Pelo decreto de nº 420 de 29 de dezembro do ano findo, reduzi o corpo policial a 282 praças e 15 oficiais. Dispensei os oficiais e praças excedentes desse plano. Não é suficiente o número de praças para o serviço da capital e do interior, atenta a necessidade de manter destacamento em todas as localidades. Para suprir a falta de praças, tenho mandado contratar apenados. Não proponho aumento de força, porque não me animo a fazer qualquer 179 IHGS, Relatório do Presidente da Província Theophilo Fernandes dos Santos em 01 de março de 1880. p 10. 77 despesa adiável, nas atuais circunstâncias em que ainda não estão equilibradas a receita e as despesas. 180 Muito antes da abolição, as fragilidades das forças policiais eram conhecidas por todos, embora, imperasse uma dissimulada parcimônia em relação à ordem pública frequente nos relatórios dos presidentes provinciais. 181 Oliveira, ao analisar a atuação da Guarda Nacional na captura de quilombolas em Sergipe, aponta que tais marchas dispendiam grande número de recrutas, que adentravam as matas durantes dias, tornando os trabalhos bastante desgastantes. As dificuldades dessas diligências faziam com que os soldados da Guarda Nacional invariavelmente se recusassem a participar das capturas “alegando perigo” de vida, passando essa instituição ao descredito da população. 182 No relatório do presidente Francisco José Cardoso Júnior de 1871, consta que a Guarda Nacional, era uma instituição completamente falida, só existindo nominalmente, e que, até mesmo na capital – onde ficava estacionada – nenhum serviço digno prestava.183 Em 1873, o então presidente Cypriano de Almeida Sebrão repudiava a falta de disciplina da corporação lamentando o fato da “briosa e valente Guarda Nacional de Sergipe, cujos importantes serviços foram provados nos campos do Paraguai”, não possuir a “instrução compatível” e a “disciplina” de onde tirava “o guarda nacional sua força, respeito e admiração dos seus cidadãos”. 184 180 IHGS, CD – 004 SISDOC – 002. Mensagem apresentada a Assembleia Legislativa de Sergipe pelo Monsenhor Olympio Campos em sete de setembro de 1900. p 16. 181 Analisamos os relatórios dos Presidentes da Província entre os anos de 1880 a 1910, sem exceções, reproduzia-se a frase “conserva-se sem alteração a ordem e a tranquilidade pública” mesmo nos anos posteriores à abolição os relatos dos chefes de policia e delegados municipais pediam constantemente reforços policiais, aparelhamento e aumento do corpo de praças. Mata Iacy, Os treze de maio, exsenhores, libertos e a polícia na Bahia pós-abolição (1888-1889). Dissertação de Mestrado, UFBA, 2002.p. 66. Colabora para compreensão da atuação da polícia na Bahia nos anos seguintes à abolição. 182 OLIVEIRA, “os negros dos matos”, 2010, p. 50. 183 IHGS, CD – 004 SISDOC – 002. Relatório com que o Exmo. Senhor Tenente Coronel Francisco José Cardoso Junior abriu a 2° sessão da 20° legislatura da Assembleia Provincial de Sergipe no dia 3 de março de 1871, p. 30. 184 IHGS, CD – 004 SISDOC – 002. Relatório com que o Exmo. Senhor Doutor Cypriano d'Almeida Sebrão, 1° vice-presidente, abriu a Assembleia Legislativa Provincial de Sergipe no dia 1° de março de 1873, p. 16. Segundo Adilson Almeida, desde o ano de 1873, ou seja, após a segunda reforma da Instituição, que a Guarda Nacional passou a vivenciar um processo de enfraquecimento, tanto político como militarmente. “Sua atuação cotidiana, procedimento ao menos formalmente mantido até então, foi suspenso, estabelecendo-se que seus componentes só se reuniriam para serviços militares, e mesmo administrativos, quando convocados pelo governo. Foi também neste período, que a Guarda Nacional perderia o prestígio que ostentava até a Guerra do Paraguai, realidade que se agravaria com a instalação do Regime Republicano, em 1889. “Uniformes da Guarda Nacional”, 1831-1852. Neste sentido, ver: ALMEIDA, Adilson José de. A indumentária na organização e funcionamento de uma associação armada”, Anais do Museu Paulista, Universidade de São Paulo, vol. 8/9, n° 9, 2000/2001, p. 80. 78 A abolição colocou na ordem do dia, as necessidades de reformas na polícia. Para Iacy Maia Mata, nesse momento de reordenação, onde a organização social se estruturava em novas bases, cujas antigas hierarquias haviam sido varridas com a aprovação da lei da abolição, a polícia ocupou um papel fundamental: “A polícia tão desprivilegiada nos anos anteriores à abolição, não por acaso, voltou com força às agendas dos debates políticos e aos jornais”. 185 Para os delegados municipais, nos anos seguintes à abolição, as reformas eram imprescindíveis, principalmente, no que diz respeito aos salários, armamentos e fardamentos dos praças. Como se observa, Secretaria de Polícia O bem público, os interesses da justiça e a conveniência do serviço estão a exigir reformas do corpo de polícia. Dentre os quais a de indeclinável necessidade do argumento da força. Não me deteria em pedir ao corpo legislativo a decretação da lei que aumentasse o pessoal da polícia do Estado, ao mesmo tempo, melhorasse as condições dos oficiais e praças, (grifo nosso) fazendo retribuir os seus valiosos serviços de modo até mais compatível com a decência a que são obrigados e as dificuldades oriundas da crise financeira que atravessam todas as classes subjugadas pela excessiva carestia da vida. 186 Diante das necessidades de melhoria, José Joaquim Pereira Lobo, vicepresidente, ao passar a administração de Sergipe ao presidente eleito, Martinho César da Silveira Garcez, em 1896, faz questão de frisar que as mudanças mais urgentes deveriam começar por melhorias salariais do quadro pessoal dos policiais. É importante considerar que o serviço policial em Sergipe, não era bem remunerado e não desfrutava de privilégios, os soldos mensais dos soldados correspondiam em 24$000 contos de réis mensais em 1891, e 45$000 contos de réis mensais em 1906, 187 valores relativamente baixos se comparados a outras profissões, tal como trabalhadores rurais, que ganhavam entre 45$000 a 60$000 contos de réis mensais 188 e menores ainda se comparados aos salários de carpinteiros 75$00 a 90$000 contos de réis mensais, o dobro do valor dos salários dos soldados. 185 MATA Iacy Maia. Os treze de maio, 2002. p. 67. APES, cx 05, vol. 05. Relatório apresentado por Dr. José Joaquim Pereira Lobo vice-presidente ao passar a administração do Estado de Sergipe ao presidente eleito Dr. Martinho César da Silveira Garcez em 1896. 187 APES, Leis e Decreto, cx 07. Regulamentos da Força Pública. Imprensa Oficial, 1891 a 1906. 188 IHGS, acervo sergipano, cx 3690. Questionário sobre as condições da agricultura nos municípios do Estado de Sergipe. Rio de Janeiro, Typogaphia do serviço de estatísticas. 1913. Os valores são referentes aos dados sobre salários nos municípios do Cotinguiba, os questionários foram realizados entre os anos 1909 a 1912. 186 79 Conforme relatório do chefe de polícia provincial, os soldados, apesar de fazerem parte do quadro administrativo do funcionalismo público, que nesse período gozam de “alguns privilégios”, além de mal remunerados e desprovidos de materiais necessários para o trabalho, eram constantemente lesados. Em 1895, os praças, foram os únicos não beneficiados pelo governo provincial com melhorias salariais, Os vencimentos designados para cada um dos praças, porém, penso serem demasiadamente exíguos. Peço-vos, assim, soliciteis, por serem eles os únicos empregados que não foram contemplados, quando se beneficiou a condição geral dos funcionários públicos. 189 A exclusão do benefício dos soldados não foi por mero acaso. O corpo de polícia era composto em sua grande maioria pela população pobre e de cor, 190 o que despertava insegurança também quanto à moral e a eficiência dos serviços prestados por esses cidadãos.191 Em Sergipe, muitos “desordeiros” foram recrutados após a abolição, na tentativa de submeter os libertos ao trabalho compulsório. Para os ex-senhores, tais medidas possuíam a intenção de direcionar as “populações de cor” ao caminho que mais dignificava o homem - o trabalho. Segundo Iacy Maia Mata, a atuação das forças policiais na segunda metade do século XIX, caracterizou-se na ambiguidade no trato existente entre senhores e escravos. A abolição marcou o fim do caráter ambíguo das forças policiais. Se no período imediato, posterior à aprovação da lei, a polícia agiu no sentido de impedir que os libertos fossem alvo de violência por parte dos ex-senhores, nos anos seguintes à abolição, o recrutamento dos libertos serviu como auxílio, para serenar as constantes reivindicações por parte dos proprietários rurais, que julgavam ser vadiagem dos libertos, toda forma de trabalho que não fosse o trabalho da lavoura. No bojo dessas transformações no campo do trabalho é que tentaremos no capítulo a seguir recompor as tensões em Sergipe, que permeavam as múltiplas relações de inserção da “população de cor” no mundo do trabalho livre, colocando em foco, a disseminação dos discursos de repressão à vadiagem na reorganização do trabalho na pós-emancipação. 189 APES, cx 05, vol. 09. Chefe de policia interino Antônio Victor de Sá Barreto ao Coronel Manoel P. Oliveira Valadão. Em 20 de agosto de 1895. 190 Sobre o perfil dos recrutas brasileiros, consultar KRAAY, Hendrik. “‟O abrigo da farda: o Exército brasileiro e os escravos fugidos, 1800-1880”, Revista Áfro-Ásia, n° 17, 1996, pp. 29-56. 191 Wlamyra Albuquerque, ao analisar as peculiaridades do corpo policial na Bahia, infere que, na perspectiva dos políticos conservadores e dos proprietários rurais, a polícia deveria ser capaz de empreender uma política de coerção e vigilância das atividades que envolviam a “população de cor”. Ob. Cit. 2009, p. 110-111. 80 2. 4 “Dê instrução ao negro submisso e estúpido e ele tornar-se-á cidadão”: a educação como medida de “civilizar” os libertos. Essa ignorância que lavra como uma chaga, esse analfabetismo que ergue o colo como uma hidra, explicam o atraso de Sergipe, em todos os ramos da sua vida social e política, dão a razão de ser esse ódio que se apoderou dos corações, e que separam os ânimos em manifestações de intolerância que plantam a desconfiança em todos e em tudo. 192 Durante todo processo de abolição no Brasil, os debates em torno das leis emancipacionistas giravam basicamente em volta da autonomia dos libertos e em sua capacidade de gerirem suas próprias vidas após a emancipação. Antes de qualquer coisa, o ex-escravo deveria pautar sua liberdade pelo trabalho, como vimos, em Sergipe esse processo não foi diferente. A regulação do reordenamento do trabalho devia dar continuidade principalmente aos trabalhos da lavoura, pois, na mentalidade dos antigos senhores, somente a produção agrícola asseguraria a continuidade da prosperidade tanto particular, quanto pública. Esperava-se dos libertos a “lealdade” que preservaria as antigas relações paternalistas e que o mesmo continuasse a trabalhar para seus antigos senhores. 193 Era preciso disciplinar a mão-de-obra livre, tendo em vista as novas relações de cidadania que se abriria com o fim da escravidão. Para os escravocratas, acostumados com as relações de “liberdade tutelada” pela proteção “paternalista”, a liberdade incondicional dos ex-escravos representava uma situação de desamparo, pois o negro não estava preparado para agir socialmente igual ao branco. 194 Sobre este aspecto, a proteção se traduzia em diversos signos coercitivos, como controle e restrição ao uso da liberdade e formas de medidas disciplinares que compelissem os libertos ao trabalho, preferencialmente ao trabalho agrícola. Era preciso descobrir outros meios de exercer o controle e a dominação sobre essa população. Frustradas as expectativas quanto à recompensa e a “generosidade” de última hora, seria preciso acionar novos recursos de poder. Esses atos de generosidades, que transformavam os senhores de engenho em “abolicionistas de última hora” visavam 192 Homero de Oliveira, Revista Agrícola, nº 5, de 15/03/1905. p. 451. MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. A lei de 1885 e os caminhos da liberdade. Dissertação de mestrado, UNICAMP, 1995. p. 41-42 194 Ibid,1995, p. 43. Sobre o declínio do paternalismo pós-1871, ver CHALHOUB, Visões da Liberdade, 1990. 193 81 converter a imagem do Senhor em benfeitor, quando fosse de fato extinta a escravidão que, como já era do conhecimento das elites, não demoraria muito a acontecer. Muitos foram os casos de adesão ao abolicionismo nos últimos anos da escravidão. Em Sergipe, o Deputado Coelho e Campos, talvez pressionado pelos conterrâneos, justifica seu posicionamento a favor da emancipação; na visão dele, era questão apenas de tempo para que a abolição fosse fato consumado. Seu voto a favor da lei abolicionista objetivava contribuir para o restabelecimento da ordem pública e do trabalho, em função disto o mesmo relata que se posicionou a favor da liberdade no calor dos acontecimentos: “não pretendo glória, que não me compete. Fui abolicionista de undécima hora”. 195 As alforrias coletivas também foram um dos recursos muito utilizado pelos senhores de engenho quando souberam da irreversibilidade da abolição. Tais atos eram realizados solenemente ganhando notoriedade pública ao serem noticiados pela imprensa como “atos generoso e humanitário”. 196 Essa alternativa foi a principal estratégia dos proprietários rurais às vésperas da abolição, que almejavam tentar preservar a continuidade das relações de submissão dos libertos, muitos acreditavam que se adiantassem a alforria de seus escravos, conquistariam a gratidão e sujeição dos seus cativos. 197 Em determinadas regiões do país, assim como em Sergipe, após o 13 de maio, adotou-se a medida de coerção policial pelos discursos como forma de conter a suposta desordem e a vadiagem dos libertos. Outro recuso utilizado, foi à “coerção moral” que consistia no discurso formar e disciplinar o liberto através das escolas agrícolas para a vida em liberdade, perpassando a imagem de que o liberto era despreparado para viver como cidadão livre. A figura do liberto associado à vadiagem surgiu nesse contexto, como aquele que confundia liberdade com ociosidade. 198 Mesmo antes da abolição, abolicionistas defendiam a instrução dos libertos, pois, a educação era vista como o caminho mais apropriado para preparar os exescravos para viver em liberdade. Jacó Souza aponta que no Recôncavo baiano, após a 195 IHGS, CD – 004 SISDOC – 002. Falas de Coelho e Campos, Anais da Câmara no Senado, Sessão de 02/07/1888. p. 461. 196 FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, 2006. p.117. 197 Lilia Moritz também aponta que em São Paulo, vários jornais publicaram notas de engrandecimento aos senhores de engenhos, que concediam alforrias em massa a seus escravos. Para essa autora, assim com para Walter Fraga, a intenção era assegurar a continuidade dos trabalhadores nas suas fazendas. Ver, SCHAWRCZ, Quase cidadão, 2007. p.27. 198 Essa estratégia de “moldar” a imagem do liberto com despreparado para a vida e o trabalho livre, também foi notado e analisado pela autora Hebe Castro nos jornais do sudoeste Brasileiro. C.f. CASTRO, Das Cores do Silêncio, 1998.p. 315. 82 abolição, os jornais cachoeiranos defendiam a instrução como forma de inserção dos libertos na sociedade. A instrução defendida pela gazeta não estava limitada ao aprendizado da escrita e leitura, mas tinha uma conotação moral e normatizadora da vida em liberdade. Buscava-se construir o perfil do homem livre apoiado na ideia de sobriedade e devotamento ao trabalho. 199 Embora não mensuramos se realmente alguma medida nesse sentido foi adotada em escala nacional, muitos eram os intelectuais brasileiros que defendiam a educação para escravos e libertos. Entre outros, o Conselheiro Rebouças, que esteve por Sergipe no início do século XIX,200 defendia que a instrução deveria ser oferecida aos exescravos como forma de livrarem-se dos “defeitos morais resultados da longa vivência da escravidão”. O Conselheiro também defendia a democratização do acesso ao ensino como caminho efetivo para a emancipação social, através do engajamento em organizações civis que se comprometia a promovê-la, como a Sociedade dos Amantes da Instrução e a Maçonaria. 201 O debate suscitado por Rebouças surgiu no contexto de discussão sobre os direitos civis e políticos dos libertos no tocante às ambiguidades da constituição, no que se refere aos direitos políticos dos “ingênuos”. Para Rebouças, uma vez liberto, o ex-escravo nascido no Brasil, automaticamente, tornava-se cidadão brasileiro com todas as suas prerrogativas civis e políticas. 202 Comungando com as ideias abolicionistas disseminadas por todo o país, em Sergipe, o abolicionista Francisco José Alves, fundou em 1881 na capital a Associação Libertadora cabana do Pai Thomaz, abriu nessa Associação, salas de aulas que eram ministradas por sua filha Maria dos Prazeres Siqueira Alves, professora formada e poetisa, e por sua sobrinha, Etelvina Amália, com o intuito de promover a instrução de ingênuos, anos antes da abolição, desde que os mesmos fossem filhos de libertos. 199 203 SOUZA, Vozes da abolição, 2010, p. 135. Antônio Pereira Rebouças, provisionado para advogar na Bahia em 1821, envolveu-se diretamente nas lutas de independência, recebendo o titulo de cavaleiro da Ordem do Cruzeiro, em 1823, sendo nomeado Secretário da Província de Sergipe em 1824. Sobre suas Recordações do tempo que viveu em Sergipe, Rebouças destaca que não era bem quisto pelos seus inimigos políticos, que o chamavam de “miserável neto da rainha Jinga”, numa alusão a rainha africana que se destacou no processo de ocupação portuguesa em Angola. MATOS, Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico, 2004. p.56-57. 201 Ver, PESSANHA, Andréa Santos da Silva. Da abolição da escravatura a abolição da miséria: a vida e as ideias de André Rebouças. Rio de janeiro: Quartet; Belford Roxo: UNIABEU, 2005. p. 135; MATOS, Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. 2004. p.57-57. 202 MATOS, Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico, 2004. p. 43. 203 Sobre a biografia e militância de Francisco José Alves em Sergipe consultar, SANTOS, Maria Nely. A sociedade libertadora: “Cabana do Pai Thomaz”, Francisco José Alves, uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997. p 105; e FIGUERÔA, Meirevandra Soares. “’Matéria 200 83 Para José Alves, de nada adiantava ajudar os escravos a adquirirem a liberdade, se não lhes fossem garantido viver em igualdade. Percebe-se através de suas palavras: A instrução é a base em que se firma a liberdade. Promovendo eu a liberdade do mísero escravo, nessa Província, não posso esquecer-me da educação de seus filhos; por essa razão resolvi abrir uma sala de aula de ensino primário, em casa da minha residência, na rua Capela, para ensinar aos ingênuos de ambos os sexos, cujas mães já gozem de sua liberdade. 204 Distante das boas intenções do abolicionista José Alves, após a abolição, muitos ex-senhores adotaram o discurso de que era preciso civilizar o liberto, como forma de garantir, através desse meio, trazerem os negros para a “civilização” com ordem e tutela. 205 Assim, em vários engenhos sergipanos foram fundadas as Escolas Agrícolas, que servia tanto para instruir os libertos e dessa forma prepará-lo a vida em igualdade, quanto para o aprimoramento do ensino do trabalho agrícola. Periódico representante das classes elitistas do estado, a Revista Agrícola, se tornou a principal disseminadora das ideias da utilização do ensino agrícola como recurso disciplinador do para os libertos, intencionando também educá-lo ao trabalho. A revista incentiva os proprietários rurais sergipanos a criarem as escolas agrícolas em seus engenhos, como meio de “civilizar” os libertos, apresentando-lhe as luzes do ABC. Costa Filho, articulista da revista, enobrece a Escola de Primeiras Letras da Usina Escurial, pertencente à família Rollemberg, como forma exemplar de “preparar” o liberto tanto para a vida em liberdade quanto para o trabalho. Conforme documentado no artigo: Ainda um apreciável e belo exemplo se impõe ao espírito observador que tenha a dita de visitar a modelar propriedade agrícola sergipana: é o bom exemplo da educação que ali se cultiva a todo propósito. Sempre com a mesma irrevogável superioridade administrativa, a mesma severidade, (grifo nosso) simpatia e serena, a mesma dedicação abnegada a tudo que é útil e digno, o generoso e ilustre Coronel Adolpho Rollemberg cura sem tréguas de estender o mais possível à educação das pessoas e das coisas (grifo nosso) que vivem sob seu mais pacífico e liberal domínio. Este exemplo inestimável, bem podia servir de norma a tantos ricos senhores de engenho, que nunca se lembram de que, no silêncio deletério das senzalas, também existem almas que tem sede das luminosas letras do ABC. Eduquese as senzalas e elas se tornarão cidades; dê instrução ao negro submisso e estúpido que vegeta sobre as bagaceiras imundas e ele tornar-se-á cidadão (grifo nosso) e viverá a vida intensa e brilhante da sociedade odienta. Está resolvido o nefando problema da escravatura odienta, agora livre... espírito livre para pensar’: um estudo das práticas abolicionistas em prol da instrução e educação de ingênuos na capital da província sergipana (1881-1884)”. Dissertação de Mestrado. São Cristóvão, UFS, 2007. 204 . BEPD, Jornal O libertador 14/12/1882. p 2. 205 SCHAWRCZ, Quase cidadão, 2007. p. 29. 84 falta resolver outro problema não menos importante: o da educação relativa d‟esses desventurados seres de cor preta, que também são humanos e também possuem um espírito e um cérebro. É preciso educá-los. 206 O artigo, óbvio, serviu dentre outros aspectos, para enaltecer a imagem de benfeitor do Coronel Rollemberg na sociedade sergipana. O articulista buscava dar notoriedade a nobre ação do Coronel, o que nos leva a inferir, talvez essa fosse a principal intenção do artigo. Narrando as características da situação deplorável em que se encontravam as “população de cor” após a abolição, o articulista nos leva a penetrar os meandros da vida dessas pessoas nos anos posteriores à emancipação. Na primeira estrofe, ele fala da exemplar administração do Engenho Escurial que geria: “sempre com a mesma irrevogável superioridade administrativa, a mesma severidade”. O que o articulista não percebeu, ou se utilizou desse recurso propositalmente, foi representar que embora a atitude em torno da criação da escola seja louvável, a administração do engenho e as relações sociais e de trabalho ainda estavam atreladas à “superioridade” e “severidade” de outrora. As palavras do articulista da revista em sua visão enobrecedora, tanto do engenho Escurial quanto dos representantes da Família Rollemberg, nos instigou a analisarmos a importância dessa família para a sociedade sergipana. A família Dias Rollemberg era uma típica representante das elites brasileiras do século XIX. Composta por membros do baronato sergipano, a riqueza e a posição social foi crescendo à medida que seus descendentes foram realizando enlaces matrimoniais com membro de sua própria família ou de baronatos próximos. Adolpho Rollemberg, citado como precursor da boa moral aos libertos que trabalhavam em suas fazendas, possuía parentesco com a já citada D. Sinhá, cujo marido Gonçalinho era estimado pelos escravos. 206 Revista Agrícola nº 75, de 01/02/1908. p. 716. 85 GENEALOGIA DA FAMÍLIA DIAS ROLLEMBERG Antônio Dias Coelho e Melo (Barão de Estância) Lourença Dantas de Mello (1ª Esposa) Aurélia Dias Rollemberg (D. sinhá) Anna Dias Bittencourt Pedro Dantas de Mello Amélia Dias Rollemberg Lourença de Almeida Dias Mello (2ªEsposa) Pedro Dantas de Mello Anna Luiza Botto Dias Amélia Dias Rollemberg José de Faro Rollemberg (Filho do Barão de Japaratuba) Anna Dias Bittencourt José Correia Bittencourt Aurélia Dias Rollemberg Gonçalo de Faro Rolemberg (Neto Barão de Japaratuba Adolpho de Faro Rollemberg Natalia Bittencourt Ester Bittencourt FIGURA 1: Genealogia da família Dias Rollemberg até a 3ª geração. FONTE: IHGS, Genealogia da Família Rollemberg, Cx 41. 207 Com a morte do Barão de Estância em 1904, foi legado a seu neto, Adolpho de Faro Rollemberg, filho de Amélia e José de Faro, como vimos, o engenho Escurial, cabendo-lhe a responsabilidade de manutenção de uma propriedade que já figurava como uma das mais eficazes e modernas no fabrico do açúcar. Adolpho estudou humanidades na Bahia e fez curso preparatório no Rio de Janeiro, mas, retornou a Sergipe para assumir o engenho, o qual tratou logo de modernizar, convertendo-o em meia usina, em 1903, e, posteriormente, em uma usina completa, em 1909, adquirida na 207 IHGS, Genealogia da Família Rollemberg, cx 41. Genealogia e descendência de Aurélia Rollemberg, cx 025-026; Descendência do Barão de Japaratuba, cx 026, nº 058; Descendência do Barão de Itaporanga, cx 028. Bisnetos do Barão de Estância, cx 026, nº 027. 86 Inglaterra. Logo as inovações administrativas o qualificaram como um dos mais arrojados empresários sergipanos daquele momento. 208 FOTO 3: Vista parcial da Usina Escurial e dos trabalhadores livres. FONTE: Acervo Rosa Faria s/d. In: ROCHA, 2004, p. 107. As figuras a seguir mostram a dimensão da grandeza do Escurial e as discrepâncias nas habitações das elites e dos trabalhadores livres. Entretanto, o mais importante nessas ilustrações é perceber que no Escurial as “populações de cor” possuíam seu espaço demarcado, seja nas devoções, no trabalho ou nas habitações. O que nos leva a inferir que tais espaços eram importantes para assegurar aos libertos ambientes de sociabilidade entre seus semelhantes. Pela organização do Escurial e de seu administrador, o artigo da revista nos leva a instigar que em tais espaços estava localizada a Escola do Escurial, onde eram ministradas as aulas às populações de cor. 208 ROCHA, Renaldo Ribeiro. O engenho sergipano em sua materialidade: Escurial, um estudo de caso (1850-1930). (Dissertação de mestrado em geografia), São Cristóvão, 2004. 87 FOTO 4:Vista da Casa Grande do Escurial. FONTE:ROCHA, 2004, p. 105. FIGURA 5: Vista lateral da Casa dos trabalhadores livres da antiga Usina Escurial. FONTE: ROCHA, 2004, p. 110. 88 FOTOS 6 e 7: Vista Frontal da Capela da casa grande (à esquerda). Vista frontal da Capela da Senzala (à direita). FONTE: ROCHA, 2004, p.107. Recordemos o Engenho Escurial e o Engenho Topo pertencentes à família Rollemberg, segundo as memórias de D. Sinhá, foi palco em 1888, da evasão de muitos escravos, apesar da suposta “benevolência” de seus proprietários. E nos momentos posteriores, a própria D. Sinhá evidencia que para essa “generosa família” restou à desordem no trabalho e a posterior solidão pelo abandono dos seus empregados. Ela declarou: “Eu fiquei muito triste e só, pois a casa que tanto desejei foi outra. Fiquei com duas amas e comecei a lutar com a cozinheira, mas, a minha já não queria empregar-se. Felizmente Gonçalinho era estimado pelos escravos. Esse ano eu não fui ao Escurial”. 209 Percebemos a dificuldade em manter intactas as relações entre ex-senhores e exescravos, mesmo quando o antigo Senhor era estimado. Enunciado, “esse ano eu não fui ao Escurial” evidencia a desestruturação das antigas estruturas sociais desse engenho, nos momentos seguintes à abolição. A família certamente ficou impedida de ir ao Escurial, onde passavam as férias juntos, porque, assim como o outro engenho da família, esse tinha ficado com pouco ou quase nenhum elemento servil. Portanto, notamos no argumento do articulista da Revista Agrícola a tentativa de reproduzir uma imagem benemérita do Coronel Rollemberg, talvez para destituí-lo da sua antiga representação, como um severo escravocrata. Lilia Moritz destaca que em São Paulo, 209 ALBURQUERQUE, Memórias de Dona Sinhá, 2005. p. 133. 89 notícias das benfeitorias senhorias nos momentos anteriores e posteriores à abolição foi uma constante. Em maio de 1888, no município de Capivari, o jornal Província de São Paulo, publicou uma matéria enobrecendo as atitudes do barão de Almeida Lima, que havia a poucos dias inaugurado uma escola para educação de ingênuos e à noite, pelos adultos. 210 Segundo essa autora, Ao noticiar esses fatos, a intenção era ressaltar a dicotomia de lados absolutamente desiguais. Em uma parte está o barão benfeitor, construtor de escolas, um libertador em potencial e, sobretudo, aquele que traz civilização aos “míseros escravos”. Na outra, estão os cativos – elementos por certo inferiores – que só se assenhorando do conhecimento dos brancos, e portanto negando o que “era seu”, podiam viver com a libertação. 211 Nos trechos seguintes do artigo, o autor enfatiza que somente pela educação o negro se tornará efetivamente cidadão, suas palavras estão marcadas pela ambiguidade nas definições da cidadania dos libertos, visto que, pela Constituição os ex-escravos já eram cidadãos, mas, para as elites sergipanas faltava-lhes ainda o requisito básico para a civilização, a educação: “Eduque-se as senzalas e elas se tornarão cidades; dê instrução aos negros submissos e estúpidos que vegetam sobre as bagaceiras imundas e eles tornarão cidadãos e viverão a vida intensa e brilhante da sociedade odienta”. É importante observarmos que, mesmo após a abolição, a representação do mundo das populações de cor, ainda era marcada pela escravidão, quando o articulista cita as senzalas o faz em tons críticos, caracterizando que a situação do negro persistia submersa em desigualdades. Senzalas-cidades, submissão-cidadão, esses termos utilizados nos abrem um leque de interpretações sobre as associações que se faziam da vida cotidiana do negro, frente às mudanças processadas em sua condição civil. O artigo é datado do ano de 1908, duas décadas após a abolição e, mesmo assim, as caracterizações e semelhanças sobre as “populações de cor” egressas da escravidão ainda estão atreladas à subalternização dos mesmos. Era no cotidiano das relações que podíamos perceber que, se a Constituição havia se alterado e todos gozavam do igual direito de cidadãos, no diaa-dia reafirmava-se a desigualdade imposta pelas elites, seja pela dominação ou pela cor. Na edição seguinte da Revista Agrícola outro artigo sobre a Usina Escurial, intitulado O produto, versava sobre a qualidade e importância da produção açucareira 210 211 SCHAWRCZ, Quase cidadão, 2007. p. 28 Ibid., 2007, p. 28 90 dessa usina. Torna-se interessante correlacionar esses dois artigos que parecem, a princípio, tratarem de coisas opostas. Buscamos através dessa análise, elucidar a relação de “coerção moral” implícita no discurso da Revista Agrícola, para a qual a educação possuía uma finalidade de “doutrinação” para a manutenção dos trabalhos da lavoura. Nesse artigo, há referência à excelente qualidade do açúcar do Escurial, que para o articulista é o melhor do Estado. Como consta, Aqui no Estado, não vejo açúcar que ganhe vantagem sobre o açúcar do Escurial; tanto que segundo entendo, ele pode ser justamente classificado, como o rei dos nossos açúcares. (...) Não padece a mais significante dúvida, que o ilustre Senhor Coronel Adolpho Rollemberg conseguiu estabelecer no meio da nossa barbaria agrícola uma usina modelo, desde a disciplina absoluta do pessoal (grifo nosso), que é a princípio a base de tudo, até o produto, que é o fator, o fim212. O artigo explicita que a qualidade de produção açucareira do Escurial só é possível graças à Usina Modelo implantada pelo Coronel Rollemberg em meio à barbárie costumeira das produções agrícolas, era a “civilidade” da escola do Escurial, que garantia a “disciplina absoluta do pessoal” e consequentemente resultava no excelente açúcar produzido. Era o discurso de “coerção moral”, através da educação, que garantiria devoção ao trabalho. Para os principais articuladores da “organização do trabalho” após a abolição, o que estava implícito como pano de fundo, nesse e em vários outros artigos difundidos pela Revista Agrícola, era que “os fins sempre justificam os meios”. Entretanto, para as populações de cor, participar dessa educação talvez possuísse outros significados, as luzes do ABC carregavam as promessas de um caminho mais iluminado, permitindo o acesso à cidadania e aos direitos civis e políticos, os quais lhes eram negados, com a prerrogativa de sem educação o negro não podia fazer parte do mundo civilizado. 212 Revista Agrícola nº 76 de15/02/1908. p. 726. 91 III – Capítulo Nas fronteiras da liberdade: a organização do trabalho livre em Sergipe. As primeiras décadas do regime republicano foram marcadas por agitações urbanas e por grandes transformações nas relações de trabalho no país. Podemos afirmar que nessa época se construiu uma nova ideologia do trabalho que tinha como objetivo uma mudança radical no conceito deste. Verifica-se a partir de então, uma valoração positiva em que o trabalho formal se transformou no princípio regulador da sociedade. 213 Nesse contexto de tensão e crise econômica, vieram à baila, vários problemas que encorpavam a lista de reclamações das elites sergipanas e principalmente, dos proprietários rurais. Com a abolição, os motivos das dificuldades financeiras passaram a ter cor e nome: trabalhadores livres, pretos e pobres. Proliferam-se queixas e reivindicações dos ex-senhores sobre a má conduta do liberto e sua propensão natural à ociosidade e a vadiagem. Pela dificuldade de encontrar uma documentação produzida por estes sujeitos, que retrate seu cotidiano e suas estratégias de sobrevivência, tendo em vista que a grande maioria não dominavam os códigos da escrita, nesse capítulo utilizamos documentação oficial (relatórios dos presidentes da província, processos crimes, cíveis, atas, códigos de posturas, leis e decretos código rural e registros de ocorrências), além de jornais e os inúmeros artigos da Revista Agrícola para rastrear as histórias que envolvem essa população. Essas fontes, embora produzidas em muitos casos pelas classes elitistas, se constitui documentação crucial para entendermos a sociedade sergipana nos anos iniciais do século XX. Por meio de uma leitura a contrapelo das fontes oficiais foi possível evidenciar as experiências de trabalho das “populações de cor” pobre, sobretudo negra, no período pós-emancipação em Sergipe. Através do cruzamento de diversas fontes podemos identificar o comportamento, salários, a luta pela sobrevivência e as condições de vida dos trabalhadores livres em Sergipe. A prática desses novos enfoques metodológicos vem se desenvolvendo na atualidade, a partir da contribuição oferecida por vários autores da nova historiografia social da escravidão214 que através do “filtro” do olhar 213 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2. ed. São Paulo: UNICAMP, 2001. 214 Ob. cit., MATOS, Hebe e LUGÃO, Ana Rios. TOPOI, v. 5, n. 8, Jan.-jun. 2004, pp. 170-198. 92 senhorial,215 possibilita abrir caminhos para novas abordagens, identificando novos personagens e situações vivenciadas pelas pessoas que tiveram suas vidas marcadas pela escravidão, tendo em vista que estes sujeitos históricos, nas suas diferentes condições sociais e de trabalho, foram excluídos em muitos aspectos dos espaços de poder. Este capítulo tem por objetivo compreender como egressos da escravidão e seus descendentes constituíram suas experiências de vida, luta e trabalho em Sergipe, buscando garantir condições de cidadania no contexto de formação e consolidação do Estado republicano brasileiro. Lavradores, jornaleiros, meeiro, carpinteiros, “alugado” e etc. Foram algumas das principais funções ocupadas pelos ex-escravos e seus descendentes na tentativa de garantir moradia e sobrevivência em propriedades rurais, às quais, na maioria das vezes, pertenciam aos ex-senhores de terras e escravos. Em meio às tensões e negociações que caracterizaram as relações sociais do pósabolição, a alternativa de permanecer no trabalho rural, em muitos casos, na própria fazenda do tempo de cativeiro, tornou-se inevitável tanto para os ex-escravos como para os ex-senhores que não puderam contar com a substituição da mão-de-obra por imigrantes, já que, além de garantir a continuidade das atividades nas fazendas, possibilitava aos novos sujeitos livres, driblar as dificuldades de inserção em outros espaços de trabalho bem como a ausência de uma política de integração destes no Estado republicano que se constituía. É fato que em um primeiro momento, a liberdade possibilitou aos negros o afastamento do lugar da memória do cativeiro e muitos trabalhadores livres migraram na tentativa de refazerem suas vidas e acumular pecúlio longe das terras sergipanas, porém, poucos foram aqueles que conseguiram se colocar em novos espaços, como “um pedaço de terra próprio”, ou a ocupação de um “ofício” nas vilas e cidades. Portanto, significativas parcelas de libertos voltaram às fazendas e refizeram as relações de trabalho, experiências de vida e de luta pela cidadania. Certamente, o fato de Sergipe ter seu povoamento ligado à existência de médias propriedades senhoriais, favoreceu os laços de dependência e as práticas de sociabilidades desenvolvidas entre sitiantes, lavradores, meeiros, jornaleiros, carpinteiros e etc., nas primeiras décadas da República.216 Nesse contexto de solidariedades e conflitos, debateremos a representação 215 Conforme Hebe Matos e Ana Rios, através da visão senhorial, presente em abundância nos registros, policiais, processos crime, correspondências e etc., é possível percebemos a atuação dos libertos nos anos seguintes a abolição. MATOS, Hebe e RIOS, Ana. Quase Cidadãos, 2007. 216 FRAGA, Encruzilhadas da liberdade, 2007. Ao examinar a abolição e seus desdobramentos no Recôncavo Baiano reconhece que os embates dos últimos momentos da escravidão marcaram tensões e 93 do liberto no pós-abolição, a luz das discursões sobre essa temática nos artigos da Revista Agrícola pautadas na “organização do trabalho” e no engajamento da população livre ao trabalho da lavoura. 3.1 A Revista Agrícola – A serviço da lavoura, comércio e indústria em Sergipe. “A Revista Agrícola, dedica-se à causa das classes conservadoras do Estado, 217 representadas pela Lavoura, pelo Comércio e pelas Indústrias”. A Revista Agrícola periódico que se autointitulado defensor das “classes conservadoras” 218 do Estado, era um periódico pertencente à Sociedade Sergipana de Agricultura, fundada em 1902, composta pelos principais proprietários rurais sergipanos. Ao todo, no ano de sua fundação a sociedade contava com cento e trinta e dois membros, divididos entre a capital e o interior. Aracaju (15), entre os ilustres sócios desse grupo estavam, o então Presidente de Sergipe, Monsenhor Olympio Campos, padre e politico influente, principal articulador das oligarquias locais e o médico Coronel José Rodrigues Bastos Coelho, que foi diretor do departamento de saúde pública do Estado de Sergipe em 1931. Laranjeira (58) foi o município que mais teve membros associados, o que traduzimos ser em razão de sua grande produção agrícola, entre seus sócios estavam vários representantes da família Curvello Mendonça, sendo eles: Antônio Curvello de Mendonça, Ricardo Curvello de Mendonça, Alcino Curvello de Mendonça, Gabriel Curvello e também apresentava as duas únicas mulheres a compor essa sociedade, D. Anna de Telles Menezes e D. Josepha Maria Nascimento mãe de Theodureto Nascimento, certamente proprietárias rurais viúvas. São Paulo (2); Maruim (5), dentre eles Gonçalo Rollemberg; Riachuelo (15); Divina Pastora (5); Rosário (6); Capela (1); Simão Dias (5); Boquim (4); Riachão (1); Itaporanga (13), dentre eles, Adolpho Rollemberg dono da Usina Escurial e neto dos Barões de projetos de liberdade e que para muitos ex-escravos a permanência nas antigas propriedades poderia se configurar em possibilidades de conservar e até mesmo ampliar certas conquistas alcançadas no período do cativeiro. 217 Homero Nascimento, Revista Agrícola de nº 73 de 01/01/1908, p. 693. No acervo da Biblioteca Pública Ephifâneo Dórea se encontra as edições dessa revista referente aos anos de 1905 a 1908, somando um total de 96 exemplares da revista, compiladas anualmente. 218 Entende-se por classes conservadoras não em seu sentido político no conceito contemporâneo, mas, no sentido de ser representantes das forças econômicas que sustentavam as finanças do estado no período citado. 94 Japaratuba e de Estância e Theodureto Nascimento, médico, Inspetor sanitarista do Estado, presidente e um dos principais porta-vozes da Revista Agrícola. 219 O presidente da Sociedade sergipana de Agricultura no ano de sua fundação era Evangelino José de Faro, Desembargador, filho de Alexandre José de Faro e D. Josefa Isabel da Silveira Faro. Nasceu no engenho S. Felix, município de Laranjeiras. Estudou e formou-se na Faculdade de Direito do Recife em novembro de 1886, passando logo depois a atuar como promotor municipal. Como presidente da Sociedade Sergipana de Agricultura escreveu dois importantes documentos: o Memorandum de 1902, e assinava os Relatórios, sessão da revista, que discorria sobre a agricultura sergipana, sendo publicada nos números de 1 a 15 de fevereiro e de 1 a 15 de março de 1906, da Revista Agrícola. 220 No ato da fundação da sociedade, o então presidente, enunciava o objetivo de sua criação: “é uma agremiação de lavradores, comerciantes e industriais e seus adeptos, e tem por fim reunir esforços em favor da agricultura sergipana, ocupando-se de todos os assuntos que possam concorrer para o progresso agrícola, comercial e industrial”. 221 Entre as atribuições a sociedade promoveria: § 1 - Criação de sindicatos agrícolas, comerciais e industriais de caixa de credito rural, cooperativas e demais formas de mutualidade agrícola; § 2 - Fundação de campos de experiências e escolas práticas de agricultura; § 3 – Promoveria o aperfeiçoamento dos trabalhos rurais do estado tanto sobre o ponto de vista prático e a luz dos novos métodos de cultura, quanto em relação à regulamentação do trabalho da caça e da pesca, incentivaria a instituição da Polícia Rural, meios indispensáveis de aproveitamento do trabalhador indisciplinado e insuficiente que temos. A criação dessa sociedade possuía por principal finalidade fortalecer os laços entre os proprietários rurais e os empresários na tentativa de sanar os problemas financeiros do Estado e recuperar a produtividade agrícola. Momentos depois de sua fundação, a sociedade se posicionou frente às autoridades governamentais, buscando a adoção de medidas que os beneficiassem, visto que para os proprietários rurais os governantes republicanos eram omissos no combate aos fatores agravantes da crise econômica que o Estado atravessava, principalmente, no tocante aos créditos agrícolas e a leis que regulamentassem o trabalho, assunto que debateremos mais adiante. 219 IHGS - Acervo sergipano SS 2215. Estatuto da Sociedade Sergipana de Agricultura – aprovado na sessão da Assembleia Geral em 7 de setembro de 1902. Imprensa Industrial – Recife, 1902. p. 15-19. 220 GUARANÁ, Armindo. Dicionário bio-bliográfico sergipano. Rio de Janeiro, Ponjeti, 1921. p. 149. 221 IHGS - Acervo sergipano SS 2215. Estatuto da Sociedade Sergipana de Agricultura, 1902, apêndices, p. 23. 95 A visão dos membros da Sociedade Sergipana era de que somente unidos, essa classe seria capaz de conquistar seus objetivos e promover o progresso de Sergipe. Como se observa nas palavras de Evangelino de Faro: Meus Senhores, somos uma força, um poder, uma grandeza, considerados companheiros unidos, de mãos dadas, para conquista de qualquer desideratum [desejo]. Pregoeiros da prosperidade da lavoura ecoa bem alto (...) aqui se reuniu toda lavoura do estado. Perdurar na indiferença era nossa morte, nosso aniquilamento completo, esse coro de lamentações que ouvimos a todo o instante produzido pela mais tremenda das crises, em que se debatem não somente a lavoura, porém, todas as classes ativas e produtoras de riquezas. 222 No ato solene de fundação, imperava o tom de “a união faz a força” e sob o discurso inflamado do presidente, segue relatados as características deploráveis em que se encontrava o Estado e os agricultores locais, visto que muitos haviam perdido boa parte de suas riquezas e se achavam praticamente falidos, o presidente coloca em seu discurso a Sociedade como farol que iluminaria o caminho para prosperidade: Assim é Sergipe, estado puro e simplesmente agrícola (...) a lavoura incipiente e atrasada, não conta com um só auxilio do seu senhor e continua a mercê da natureza, deixando que a evolução se opere espontaneamente. A Sociedade Sergipana de Agricultura será o farol que nos há de guiar na rota que temos que seguir a cota do engrandecimento geral do Estado. Será interprete do sentimento comum dos seus associados. O nosso papel será lutar!223 (grifo nosso) A sociedade ainda estava incumbida de realizar: “publicação dos interesses dos agricultores na imprensa diária, manter um órgão de sua propriedade de imprensa e propaganda dos seus interesses, realizar congressos e exposições agrícolas, distribuir semente224, realizar correspondência com associações congêneres do país e exterior, criar escolas práticas de agricultura, dentre outros”. 225 Três anos após a fundação da sociedade surge então a Revista Agrícola vociferando aos quatros cantos os interesses 222 Ibid., 1902, p. 23. IHGS - Acervo sergipano SS 2215. Estatuto da Sociedade Sergipana de Agricultura, 1902, p. 25. 224 Em todos os números da Revista Agrícola analisado, encontramos anúncios referentes a distribuições de sementes. A iniciativa da Sociedade Sergipana de Agricultura era de promover o incentivo de produção de novas culturas, a fim de diversificar a produção agrícola do Estado. Os produtos eram os mais diversos tais como: o algodão do Maranhão, beterraba amarela, cânhamo comum, cebolas variadas, eucaliptos variados, fumo variados, maniçoba Jequié, maniçoba do Piauí e etc. Ver Revista Agrícola de nº 79 de 1/04/1908. p.760. 225 IHGS - Acervo sergipano SS 2215. Estatuto da Sociedade Sergipana de Agricultura, 1902. p. 6. 223 96 das classes produtoras do Estado e o descontentamento dos agricultores com a falta de braços para o trabalho agrícola. Defender os interesses da Lavoura, Indústria e Comércio era o assunto principal da Revista Agrícola de Sergipe. Fundada em quinze de Janeiro de 1905, a revista era de periodicidade quinzenal e a assinatura anual custava cerca 12.000 para a capital e 15.000 réis para o interior. Para os membros da Sociedade Sergipana de Agricultura a distribuição era gratuita. 226 A Revista Agrícola possuía entre dez e doze páginas, na contracapa havia anúncios comerciais variados, como estabelecimentos de secos e molhados, indústrias têxteis, loterias populares, créditos concedidos pelo Banco do Estado, escritórios de miudezas, consultórios médicos, tipografias, dentre outros. As páginas iniciais sempre traziam um artigo de destaque, que versava sobre temáticas diversas relacionadas à lavoura, indústria e comércio. Algumas desses artigos serão discutidas neste trabalho tais como, “Organização do trabalho”, “Imigração e emigração”, “Situação agrícola do Estado”, “A cana de açúcar”, “Finanças do Estado” “sindicatos rurais” “credito agrícola” e etc. A revista era composta de três colunas principais; a primeira dedicava-se a Vida Rural, apresentava algumas alternativas para as dificuldades do cotidiano do campo, tais como as pestes que assolavam as plantações, as doenças que dizimavam os animais, informações sobre novas culturas agrícolas como o cacau, a borracha, batatas inglesas e etc. Sempre voltada ao incentivo da lavoura para produção de novas culturas e sugerindo a adoção de medidas para sanar pragas e pestes, dentre outros fatores que assolavam a agricultura sergipana; a segunda seção intitulada Notícias Diversas, trazia informações variadas pertinentes à agricultura, ao comércio e a indústria, sobre as experiências estadual, nacional e estrangeira. E ainda publicava leis que beneficiavam a agricultura, dentre elas, o Código Rural, imigração, sindicatos e cooperativas, e também propagava variados assuntos de interesse da classe. A terceira denominada Sessão Comercial apresentava os valores do câmbio, dos gêneros de exportação e importação e as cotações dos produtos sergipanos como, açúcar (mascavo, mascavinho, branco cristal), algodão, farinha, feijão e etc., citando seus respectivos valores na Praça do Rio de Janeiro. Além das três colunas, por último, apresentava as correspondências e telegramas recebidos, dos mais distintos lugares do país, além de contar também com correspondentes do exterior. 226 Sobre a crise da lavoura sergipana em meados do século XIX, consultar ob. Cit. MOTT, Sergipe Del Rey, população, economia e sociedade, 1986. p 153. 97 A direção contava com dois ilustres cidadãos que assinavam a maioria dos artigos principais da Revista Agrícola, o Dr. Theodureto Nascimento e do Desembargador Homero de Oliveira. 227 O médico Theodureto arcanjo do Nascimento, Filho de Miguel Arcanjo do Nascimento e D. Josefa Maria do Nascimento, nasceu na cidade do Lagarto a 18 de setembro de 1886. Matriculou-se na Faculdade de Medicina da Bahia, recebendo o grau a 18 de dezembro de 1886. Domiciliado em Riachuelo, ali serviu em comissão por ocasião da epidemia de febres em 1887; fez parte de uma sociedade em Laranjeiras de conferências públicas sobre assuntos sociais de instrução e política de que eram membros Fausto Cardoso, Felisbelo Freire, Josino Meneses, Baltazar Góes e outros, em favor da propaganda republicana de Sergipe, e exerceu até 1888 o cargo de Delegado de Higiene daquela cidade. Transportando-se para o Estado de S. Paulo, foi em 1889 nomeado para combater a epidemia da febre amarela em Limeira; extinta esta, voltou para a Capital onde se matriculou em Direito, fazendo o seu primeiro ano em 1890. Ali exerceu a clínica, foi delegado de higiene e médico adjunto do Exército. Em 1891 foi nomeado delegado de higiene na capital de S. Paulo e mandado em comissão chefiada pelo Dr. Domingos Freire para a Europa, (Berlim) a fim de estudar o tratamento da tuberculose de Kock e em 1892, foi chefe de clínica nas epidemias de febre amarela em MogiMirim (S. Paulo) e em 1897 foi nomeado pelo Presidente de Sergipe, Dr. Martinho Garcez, para estudar no Ceará a cultura da maniçoba. Voltando a Sergipe, foi nomeado pelo Presidente, Dr. Josino Meneses, Diretor de Higiene, conservando-se neste lugar até 1901, quando foi escolhido pela 2ª conferência Açucareira do Recife para estudar no Egito, Índia, Java e Ceilão os processos de cultura da cana de açúcar, volvendo ao Brasil em janeiro de 1905 de sua viagem ao Oriente. Theodureto também escrevia para vários jornais do país e sergipanos (O paiz, Cosmos, Jornal do comércio, O Estado de Sergipe), principalmente 227 Theodoreto Arcanjo Nascimento era médico e atuou como inspetor de higiene de Sergipe em 1903. Realizou importante campanha sanitarista na capital que padecia de diversas epidemias e mais especificamente nesse período no controle da peste bubônica. Consultar ob. Cit. SAMARONE. Homero de Oliveira era desembargador em Sergipe, conhecido por sua excelente oratória, também era famoso na capital por suas poesias e artigos publicados no jornal Correio de Aracaju. Ambos são membros da Sociedade Sergipana de Agricultura e figuras importantes no cenário politico e social de Sergipe. Os artigos desse periódico durante o período estudado 1905 a 1908 são em sua grande maioria de autoria dos mesmos, sendo que os artigos que versavam sobre a política sergipana, são prioristicamente de autoria de Homero de Oliveira, o que pressupomos ser em função da sua posição jurídica. 98 no tocante as questões de salubridade, visando diminuir as mortes por epidemias que assolavam o Estado e principalmente a capital. 228 O Desembargador Homero de Oliveira era membro da grande e importante família sergipana Oliveira Ribeiro, de Laranjeiras, nasceu, por acaso, no Recife, em 14 de abril de 1858. Filho do bacharel Domingos de Oliveira Ribeiro e Helena de Freitas Oliveira Ribeiro, os primeiros anos de vida passou no Recife, mudando-se com os pais para Laranjeiras, onde Domingos de Oliveira Ribeiro exerceu a Promotoria Pública e a advocacia. Bacharelou-se em Direito no Recife, na turma de 1879, tendo convivido com vários sergipanos, que viriam a ser em Sergipe seus amigos e na magistratura seus colegas. José de Aguiar Boto de Barros era da mesma turma de 1879, enquanto José Sotero Vieira de Melo e João Ferreira da Silva saíram da Faculdade um ano antes, em 1878, e Cândido de Oliveira Ribeiro e Melquisedec Matusalém Cardoso. 229 FOTO 8 - Foto de Homero de Oliveira. s/d FONTE: Desembargadores sergipanos, 2008. p.3. Em início de 1891, o então Deputado Homero de Oliveira passou a integrar a Comissão eleita para apreciar a Constituição, sendo designado Relator e apresentou um Parecer, onde justifica o papel dos constituintes, dizendo: 228 GUARANÁ, Dicionário bio-bliográfico sergipano, 1921. p. 501. Sobre essas personalidades sergipanas consultar, GUARANÁ, Dicionário bio-bibliográfico sergipano, 1921. 229 99 Obedecendo aos princípios democráticos plantados no solo brasileiro com a revolução de 15 de novembro de 1889, acatando o regime de Governo, posto em prática pela Constituição da União, solenemente proclamada a 23 de fevereiro de 1891, o Projeto de Constituição do Estado de Sergipe, esforçouse em consagrar o regime Federativo, garantindo, em suas disposições, as liberdades públicas, e assegurando ao Povo Sergipano, um presente de ordem e de paz, elementos indispensáveis a um futuro próximo de progresso e desenvolvimento constantes. 230 No mesmo ano de 1891, Homero de Oliveira ingressou na magistratura do Estado de Sergipe, assumindo como Juiz de Direito a Comarca do Rio Real, sendo removido, em 1896 para Gararu, prestando compromisso em 29 de janeiro daquele ano, sendo removido, pelo Secreto nº 205, da Comarca de Gararu para a Comarca de Capela, passando depois pelas Comarcas de Laranjeiras (1897) e de Maruim (1898), para ser, nomeado desembargador, em 1899. De logo foi nomeado Procurador Geral do Estado, tomando posse em 11 de dezembro de 1900. Homero de Oliveira foi eleito Presidente do Tribunal de Relação, em sessão de 9 de junho do mesmo ano de 1908, sendo reeleito em 5 de fevereiro de 1909, permanecendo no cargo até a sua morte, aos 52 anos, em 17 de dezembro de 1910. Homero de Oliveira fez da poesia uma expressão de sua literatura. Publicou sonetos e poemas de forma fixa em vários jornais sergipanos e pernambucanos, sendo mais tarde incluído entre os poetas que compõem a Antologia de Poetas Sergipanos 231, organizada por Serafim Vieira de Andrade. “Eterna aspiração” é um dos textos: Estremece tua alma às vibrações da luz, Sob o pálio do amor que o coração encerra, E vives a sonhar atravessando a terra, Buscando nela o céu que ao teu olhar reluz; Mas olha, escuta bem, só a ilusão conduz, A alma cujo aroma em sonhos se descerra; A verdade só está na dor que nos aterra, E ao término da vida ao nada se reduz. Que importa? Dizes tu: - inteira a natureza Recebe da sentença o fulminante olhar, Ou brilho na virtude, ou fulja na riqueza, E a natureza inteira se vê, sempre, a marchar: Do antro da penúria ao solio da riqueza, Aspira a alma viver, o coração amar. 232 230 Ver, Biografias dos Desembargadores Presidentes do Poder Judiciário do Estado de Sergipe (18922008). Tribunal de Justiça de Sergipe, Aracaju, 2008. Biografia de Homero de Oliveira, p. 4. 231 ANDRADE, Serafim Vieira. Antologia de Poetas Sergipanos São Paulo: Tipografia Cupolo, 1939. 232 Ibid. 2008, p. 11. 100 A presença de Homero de Oliveira como Juiz de Direito de Maruim responde pela sua entrada, como Orador, na Diretoria do Gabinete de Leitura de Maruim, para o biênio 1900-1901, substituindo o poeta João Pereira Barreto. Homero de Oliveira fez sua estreia na tribuna do Gabinete de Leitura em 1889, aumentando a sua fama de Orador em todo o Estado. Segundo Joel Macieira Aguiar, nas seguintes palavras: “Homero de Oliveira, o assombroso tribuno, o impoluto magistrado que herdou da Providência um intelecto de extasiar multidões, dominaram (referindo-se também a outros oradores) de sobre esta tribuna a nossa plebe com seus inflamados discursos”. 233 Além da Revista Agrícola, na qual assinava os artigos mais polêmicos e principalmente os que versavam sobre política, o que acreditamos ser em função de sua condição de Desembargador, também publicava em diversos jornais, em 1881, estava como redator do Agricultor sergipano, órgão exclusivo da agricultura e do comércio, publicação semanal, iniciada em maio daquele ano e impresso nas oficinas gráficas da Gazeta de Aracaju, ligado ao padre Olímpio Campos e a Pelino Nobre, e que tinha como redatores Brício e Severiano Cardoso. Foi, contudo, no Correio de Aracaju, desde o seu número inaugural, datado de 24 de outubro de 1906, prestando, assim, preito de homenagem a Sergipe emancipado, e até a sua morte, em 1910. Homero de Oliveira esmerou-se na literatura e poesia no Correio de Aracaju, onde publicou muitos dos seus poemas e artigos, com os quais segundo seus admiradores, mostrava todo o seu preparo, inspiração e erudição. 234 Ambos os presidentes e articulistas da Revista Agrícola, como citamos, eram pessoas de grande notoriedade pública no cenário social sergipano, além de pertencerem a famílias donas de grandes propriedades rurais. Theodureto Nascimento era membro desde a fundação da Sociedade Sergipana de Agricultura, entretanto, Homero de Oliveira, torna-se membro no ano de fundação da revista, o que supomos que talvez fosse à sua função de magistrado, tendo galgado prestigio social como um dos mais eloquentes oradores do Estado, o que ao certo daria maior crédito aos artigos de sua assinatura. 233 234 Desembargadores sergipanos, 2008. p. 12. Ibid. 2008. p.13. 101 ****** Por ocasião da visita a Sergipe do recém-eleito presidente da República Afonso Penna, que estava visitando os estados brasileiros para conhecer a sua real situação, os integrantes da Sociedade Sergipana de Agricultura aproveitaram o ensejo, para relatar a situação da crise econômica na qual se encontrava as finanças sergipanas, que dia-a-dia ampliava-se, devido às dificuldades nos transportes, a escassez do elemento servil para as lavouras e falta de crédito agrícola, logo trataram de organizar e publicar uma edição especial da revista, com todas as solicitações das quais reclamavam a lavoura do Estado, além de um relato descritivo das atuais condições das “classes conservadoras” a lavoura, a indústria e o comércio. Como consta na edição especial da revista: Em Sergipe, instalado pela mais urgente e inadiável solução: não temos um metro sequer de Estrada de ferro e somos o único Estado do Brasil que isso acontece (...). Precisamos obter fácil saída para os nossos produtos que se acham onerados de despesas e fretes incomputáveis. Essa condição se agrava com a exclusão de nossos portos das escalas do Lloyd, o que também é uma exceção injusta a qual somos o único Estado a sofrer. Até um rebocador falta aos nossos portos, de modo que somos evitados pelos navios de velas, que de algum modo viriam contribuir para a barateação dos nossos transportes (...). Não temos braços para o trabalho, o que além de insuficiente, é caro, irregular e indisciplinado, de modo que só um pouco de imigração para estimulo do trabalhador nacional, poderá melhorar a nossa gravíssima situação nesse particular (...). Não temos credito agrícola, o Banco do Estado, criado à custa do mais patriótico esforço do governo do Estado. Subscritor de quase todo capital, alias insuficiente, não resolveu absolutamente a questão.235 Vislumbrando conquistar solução para tais problemas, a Sociedade Sergipana de Agricultura publicou um número especial formalizando os pedidos ao então eleito presidente do Brasil, noticiando seu comprometimento com a sociedade sergipana. Além do artigo principal, escrito por Homero de Oliveira, dando boas vindas ao presidente, esse exemplar da revista, traz um segundo artigo intitulado “Lavoura sergipana” – necessidade dela, que como supracitado, relatou os principais impasses para o desenvolvimento da lavoura sergipana. Afonso Penna, buscando não se comprometer demasiadamente, visto que, os problemas agrícolas se alastravam por outras províncias do Nordeste, em seu discurso se compromete a acudir os reclames 235 Revista Agrícola nº 33 de 25/05/1906. p. 313. 102 da lavoura, facilitando o crédito agrícola e fortalecendo a criação de sindicatos e associações cooperativas, pelas quais eram concedidos os créditos agrícolas, desse modo, delegava a terceiros o compromisso de sanar os problemas financeiros do Estado. 236 FIGURA 2 - Capa da edição especial da Revista Agrícola em homenagem a visita de Augusto Penna. FONTE: BPED, Revista Agrícola de nº 33 em 1906. Acervo pessoal. Digitalizado por Camila Barreto Santos Avelino. No corpo da revista, as páginas iniciais eram destinadas aos artigos principais, a crise da lavoura, era o assunto mais recorrente, tal era a importância desse fato que justificava, sobretudo, a criação da mesma. Dentre os 96 exemplares da revista entre os anos 1905 a 1908, que coletamos 90% dos seus artigos, os principais versavam sobre a situação das dificuldades econômica da lavoura e 236 Ibid., 1906. Pp 315. 103 apresentavam medidas que na visão dos seus membros, solucionariam tais problemas. No artigo de inauguração, a revista fez uma retrospectiva das iniciativas dos proprietários rurais sergipanos que somando esforços com o Imperador, criou o Instituto Imperial Sergipano de Agricultura. 237 Mostrando que, desde meado dos oitocentos que as elites sergipanas se comprometiam no desenvolvimento da Lavoura, embora tivesse malogrado as medidas anteriormente adotadas. Quem não sabe que todas as tentativas no sentido de movimentar a lavoura e reuni-la em favor da defesa dos seus interesses tem todos fracassados em Sergipe? a primeira d‟elas e a mais esperançosa foi a criação do Instituto Agrícola Sergipano, criado em 1860 por sua Majestade, e por ele logo dotado com a quantia de 10 contos de réis, imediatamente elevada a 25 contos de réis, por força da boa vontade Imperial, exercida sobre os ânimos dos lavradores, que eram então fidalgos da terra e não fizeram questão do 238 dinheiro. O Instituto Agrícola Sergipano foi criado em 20 de Janeiro de 1860, por ocasião da visita do Imperador D. Pedro II. Quando visitou a capital Aracaju, ele tinha como finalidade modernizar o aparato tecnológico da agricultura e dar tons plausíveis aos debates a respeito da “passagem” do trabalho escravo para o trabalho livre. Embora o IISA professasse compactuar com as ideologias do progresso formuladas pelas elites nacionais, trazendo a pauta de suas discursões assuntos como igualdade política e de cidadania, defendendo a industrialização e a abolição gradual e moderada, 239 as suas ideias não passaram do papel, pois, o instituto não logrou o êxito esperado. As ideias “progressistas” das elites sergipanas dessa época vieram à tona anos mais tarde, nos debates da Sociedade Sergipana de Agricultura, na qual acreditamos, ter se filiado muitos membros do antigo IISA e possivelmente seus herdeiros, os quais já partilhavam desde moços das discursões e dos ideários das elites sergipanas. Como cita Theodureto Nascimento, os fidalgos da terra não fizeram questão do dinheiro oferecido pelo Imperador D. Pedro II e, após ter sido retirado 4$800 237 APES, A¹ 01 – Atas do Imperial Instituto Sergipano de Agricultura. O ISA – Instituto Agrícola Sergipano, foi objeto de estudo do autor Luiz Mott, que através dos Livros de atas e sessões da Assembleia Geral deste instituto entre os anos de 1860-81, traça um perfil dessa instituição e importância de sua atuação no estado de Sergipe. Consultar, MOTT, Sergipe Del Rey, população, economia e sociedade, 1986. p. 152. 238 Revista Agrícola nº 01 de 15/01/1905. p. 01. 239 Ver, discurso proferido por Thomas Alves Junior, presidente do Estado e do Instituto Imperial Agrícola Sergipano. APES, A¹ 01 – Atas do Imperial Instituto Sergipano de Agricultura. p. 11. 104 contos de réis, para compra da sede do Instituto, os outros 20$000 contos de réis restantes foram emprestados e utilizados pelo governo. Para o articulista, tais medidas não foram proveitosas, pois, apesar de terem adquirido uma sede, abdicaram do recurso financeiro doado pelo Imperador. Também não foram capazes de gerir o dinheiro da Coroa nem os recursos próprios como fez a Província da Bahia que utilizou esse mesmo recurso para a fundação da Escola Agrícola de São Bento das Lages, que muito contribuiu para o conhecimento e desenvolvimento de novas técnicas agrícolas e que ironicamente, serviu para educar muitos sergipanos, filhos dos proprietários rurais que outrora haviam menosprezado tais ideias. 240 A segunda medida adotada foi a criação do Comércio Agrícola Sergipense, fundado por Dr. Felismino Muniz Barreto, cujos serviços de informações foram valiosíssimos para a lavoura e que resultou na criação do Jornal “O agricultor”, um jornal de propaganda que demonstrava o espírito moderno dos seus organizadores, nas palavras de Theodureto Nascimento. O redator principal do jornal como não é de se admirar, também foi um dos articulistas da Revista Agrícola, Homero de Oliveira, entretanto, essa associação também não logrou êxito e logo foi extinta. 241 No interior da Província, mais precisamente em Laranjeiras, foi criado a União Agrícola de Laranjeiras, órgão dos comerciários, que nasceu com a finalidade de fornecer capitais aos agricultores com o intuito de incrementarem os serviços e as produções da lavoura. Mediante a tantas tentativas fracassadas, a quarta e última medida adotada, foi a centralização dos esforços em prol da lavoura com a criação da Sociedade Sergipana de Agricultura que, dentre outros benefícios, resultou na criação da Revista Agrícola .242 As atuações desses órgãos ganharam importância no cenário agrícola sergipano por serem representantes das classes mais abastardas, geralmente compostas por políticos, intelectuais, doutores, comerciantes, grandes produtores agrícolas e etc., que, em vários momentos distintos dos embates em torno da recuperação da economia e da lavoura sergipana durante o século XIX, vão ser as vozes determinantes das medidas governamentais para manter a ordem e sanar os problemas socioeconômicos que, para esta classe alta, se agravaram com a abolição da escravatura. 240 Revista Agrícola nº 01 de 15/01/ 1905. p. 02. Ibid., Revista Agrícola nº 01 de 15/01/1905. p. 02. 242 Ibid., 1905. p. 02. 241 105 A abolição para esses senhores tinha legado dois grandes problemas: a escassez da mão-de-obra, que se constituiu o principal motivo da crise e da decadência econômica, bem como o agravamento dos problemas sociais, principalmente os concernentes ao domínio senhorial. Lilia Moritz sobre esse aspecto infere que, na visão dos ex-senhores a abolição deveria ser entendida e absorvida como uma dádiva, um belo presente que merecia troco e devolução. No tocante a mão-de-obra para os proprietários rurais interessava assegurar a continuidade da prestação de serviços243, o que não se processou conforme as expectativas dos proprietários rurais. Muitos ex-escravos optaram por trabalhar fora das lavouras, causando transtornos e descontentamento. Desse modo, em Sergipe, esse assunto passará então a ser um “motivo legítimo” causador da crise econômica e, portanto passa a ser a queixa mais frequente nos artigos da Revista Agrícola, além de documentos oficiais e jornais como veremos a seguir. 3.2 O combate ao ócio: a direção do olhar das elites sergipanas sobre as “populações de cor”, livre e pobre. Dizer para que se saiba fora das nossas fronteiras, que é o negro boçal, o caboclo indolente, ou o mestiço sem ambição, todos fracos, mal alimentados, sem interesses ligados ao solo, nômades, maltrapilhos, ignorantes e adoentados na maior parte pelo abuso do álcool, pelo impaludismo e mesmo pelo efeito da vida errante que levam de fazenda em fazenda, a procura de melhor ganho. 244 (grifo nosso) Os trabalhadores de cor, livre e pobre, como citado na epígrafe, nas páginas da Revista Agrícola eram caracterizados de forma bastante pejorativa pelas elites sergipanas. Para os proprietários rurais, a inconstância desses trabalhadores representava o verdadeiro motivo para os prejuízos da agricultura. O que estava em pauta era como utilizar a grande massa de trabalhadores livres ou que havia se libertado em favor da lavoura, visto que muitos deles se recusavam ao trabalho do eito, problemas gerados com a escassez da mão-de-obra livre representavam os motivos da crise para a elite senhorial, registradas em diversos artigos publicados na Revista Agrícola. A questão da “falta de braços para a lavoura” passou a representar o núcleo das preocupações socioeconômicas para essa classe. 243 244 SCHWARCZ, Quase-cidadão, 2007. p. 28. Revista Agrícola, nº 8 de 26/04/1905. p. 67. 106 Além da Revista Agrícola diversos jornais publicavam notas, reiterando os discursos dos proprietários rurais, muitos desses periódicos pertenciam aos membros das elites rurais. O Progresso, de Maruim, ressalta essas preocupações ao afirmar que “a falta do braço em Sergipe é o centro sobre o qual convergem todas as decepções da fortuna particular”. 245 Com a abolição, esse discurso aumentou, visto que para os ex- senhores a continuidade do trabalho estava sendo posta em risco, “os muitos braços válidos que possui, tem uma existência verdadeiramente negativa, porque já não são propriedades do fazendeiro (...) justa é essa objeção que sem medo de erro, se pode afirmar que não temos braços suficientes para a manipulação do trabalho”. 246 Nesse contexto, a abolição da escravidão, enquanto explicação das dificuldades econômicas de Sergipe vai recebendo um peso crescente. Foi publicado no Jornal O Republicano: Até a extinção do elemento servil, que foi a mais devastadora entre todos, visto que o governo que a promulgou, adormeceu a sombra dos louros, esquecendo-se que acabara de arrancar a milhares de famílias o único meio de subsistência, e que lhes abrira a porta da miséria, não curando de um auxílio que atenuasse, senão todo, ao menos em parte, o mal que lhe causara 247 para a gloria da nação . A partir da Abolição, em 13 de maio de 1888, e da República, em 15 de novembro de 1889, a preocupação em obter e manter o controle social sobre a mão-deobra ganhou centralidade para os republicanos e também para os proprietários rurais. Isso quer dizer que, a mobilidade atribuída ao liberto, por meio da qual, buscava maior autonomia, passou a ser vista como algo a ser combatido pelo Estado. Fixar o liberto nas propriedades rurais e compeli-lo ao trabalho regular e disciplinado eram prioridades, especialmente nas regiões para as quais não houve imigração em massa, a exemplo de Sergipe. Analisando a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre no Nordeste, Josué Subrinho estudando as “propostas de engajamento da população livre” sergipana durante a crise do escravismo, esse autor revela que, apesar da grande oferta de mão-deobra livre, esta era vista apenas como “complementar ao trabalho escravo na produção de açúcar”. 248 245 BEPD, Jornal O Progresso de 20/10/1895. BEPD, Jornal O Republicano de 28/06/1890. 247 BEPB, Jornal O Republicano de 12/03/1891. 248 SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho. 2004, p 198. 246 107 A grande população livre e pobre que se recusava ao trabalho da lavoura, fossem eles de cor ou não, já era motivo de discussão entre as elites sergipanas desde o final da década de 1850, ganhando força entre as décadas 1860-70. 249 Uma década antes da abolição, o chefe de polícia Francisco da Costa Ramos, inferia: “a falta de braços de braços” para os trabalhos da lavoura, era consequência da ociosidade de grande parte da população livre, que sem ter atividade laboral entregava-se a desordem e a vadiagem, prejudicando assim a ordem e a boa moral da sociedade sergipana. 250 Como medida pra conter a desordem, em 1879, o então chefe policial expediu aos delegados municipais circular comunicando a necessidade de aplicação do termo de bem viver para obrigar essa população ao trabalho e a aplicar punição aqueles que se recusassem a exercer alguma atividade, Convido combater a ociosidade, que tão fatalmente reina nesta província, onde a lavoura definha à falta de braços ativos, e sendo por isso do maior interesse obrigar os vadios ao trabalho, que sendo a primeira condição de moralidade, é também o primeiro elemento de prosperidade, quer para o indivíduo, quer para a sociedade, ordeno a V. M. que, em seu município, exerça a sua atribuição [...], fazendo-os assinar termo de bem viver, marcando-lhes o prazo de 30 dias, para que nele se mostrem perante a polícia aplicados a uma ocupação útil, com a cominação nas penas estabelecidas no §3 do citado artigo 12 do mencionado código.251 Desse modo, os argumentos de que a crise da lavoura após a abolição se deu em virtude da extinção da mão-de-obra escrava eram bastante incongruentes, já que em sua grande maioria, boa parte da “população de cor” gozava do estatuto de homens livres antes da Lei Áurea, beneficiados por leis, que no decorrer do século XIX, garantiram, dentre outros mecanismos, o direito a liberdade pelo fundo de emancipação, acúmulo de pecúlio para compra de alforrias, o ventre livre e a liberdade dos sexagenários. 252 Na realidade, a questão que os proprietários rurais chamavam de “falta de braços” era mais precisamente a insatisfação das novas condições de obtenção da força de trabalho, pois, no período escravista já se reclamava das condições da força de 249 Consultar, Propostas de engajamento da população livre em SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho. 2004, pp. 168-199. 250 IHGS, CD – 004 SISDOC – 002. Relatório com que o Exmo. senhor presidente doutor Theophilo Fernandes dos Santos abriu a 1° sessão da 23° legislatura da Assembleia da Província de Sergipe no dia 1° de março de 1880, p. 6-7. 251 Ibid. p. 6-7. 252 Sobre as referidas leis, consultar: PENA, Eduardo S., Pajens da Casa Imperial – jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871, Campinas, Ed. Unicamp, 2001; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes, Entre a Mão e os Anéis – a Lei dos Sexagenários e os caminhos da Abolição no Brasil, Campinas, Editora da Unicamp/FAPESP/CECULT, 1999. 108 trabalho livre, e as soluções apresentadas para tal problema passavam sempre pela adoção de medidas coercitivas. 253 Sharyse Amaral analisando a proporção da área agrícola plantada e o número de indivíduos – mão-de-obra escrava e livre – envolvidos na produção de nove engenhos localizados no Cotinguiba em (1881) especula que a média de tarefa trabalhada individualmente nessas propriedades era de 5,7. Uma cifra, segundo a autora, bastante alta e que provavelmente se elevaria entre 4,7 e 6,9 tarefas por braço escravo, realidade suficiente para que o trabalhador livre relutasse em dividir essas atividades do eito com a mão-de-obra cativa, esta última sujeita a um elevado “grau de exploração”. 254 Comungando com as ideias propagadas pela Revista Agrícola e formuladas pelos membros da Associação Sergipana de Agricultura, o Presidente do estado, em sua Mensagem à Assembleia Legislativa, reitera o pedido de adoção de medidas legais sugerida pela sociedade. Entretanto, ao analisar a questão da escassez de mão-de-obra, o presidente conclui: “não há falta de braços para o trabalho em Sergipe; o que tem havido é uma grande imprevidência da parte dos poderes públicos em orientar os desocupados, em bloquear a vadiagem, batendo-as em todos os redutos, evitando a deserção da vida útil e produtiva”. 255 Em 1890, o jornal Folha de Sergipe defendendo a “causa” dos proprietários rurais, assinalou a Lei de locação de serviços, como medida legal que poderia sanar o problema da escassez de mão-de-obra: Pensamos sempre que para amenizar o golpe desfechado sobre a lavoura, com a perda dos escravos sem posterior indenização, curasse ao menos o governo de publicar uma lei de locação de serviços (grifo nosso) que viesse remediar o mal causado (...) não seria certamente uma lei que oferece opções genéricas para o estabelecimento de contrato entre partes igualmente livres, mas antes a locação de restrições sobre a liberdade de vender a sua força de trabalho, obtida pela população livre. O trabalho livre não teve uma orientação racional; não se criou um freio para conter os ímpetos, os desmandos de todos aqueles que passaram a receber salários de mãos particulares. 256 (grifo nosso) Os objetivos das elites sergipanas ao disseminarem o discurso de deficiência na mão-de-obra livre e liberta, era, sobretudo, conseguir controlar o trabalho livre, visto que, a experiência do trabalho forçado havia moldado as relações de poder entre os 253 Ibid., SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2004, p 297. AMARAL, Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe, 2007, p. 65. 255 Mensagem apresentada a Assembleia Legislativa pelo Presidente do Estado Josino de Menezes em 07/09/1903. 256 Jornal Folha de Sergipe, 14/12/1890. 254 109 proprietários rurais e os trabalhadores. Para os ex-escravos, a liberdade significava a oportunidade de optarem por outros meios de vida e, sobretudo, de escolherem livremente suas atividades laborais. Segundo Walter Fraga as vivências no cativeiro serviram de parâmetro para que os ex-escravos definissem o que era “justo” e aceitável na relação com os antigos senhores, incluindo estabelecer condições de trabalho que achavam compatíveis com a nova condição. 257 Foi nesses termos que os libertos rejeitaram a continuidade de práticas ligadas ao passado escravista ou que ensejassem maior controle sobre suas vidas. Ao reclamarem da “desorganização do trabalho” nas lavouras após a abolição, os ex-senhores estavam se referindo também à recusa dos ex-escravos em se submeteram a velha disciplina do cativeiro, especialmente às longas jornadas de trabalho. 258 3.3 Pelas vozes dos outros: “organização do trabalho” após a abolição na Revista Agrícola de Sergipe. O trabalho glorifica o homem. Jamais conquista alguma foi realizada no mundo sem o emprego do trabalho. A civilização é produto seu. A riqueza é o seu fim. Enquanto o trabalho encontra apologias e tão largas atenções, a ociosidade seu oposto, encontra destratações e desdéns. Enquanto trabalho levanta o homem, a ociosidade é sua perdição. 259 (grifo nosso) O enaltecimento do trabalho, na epígrafe, serve para ilustrar a ideia de liberdade, formulado pelas elites sergipanas para os egressos da escravidão. Dignidade, civilização e riqueza, só seriam alcançadas por essas populações se as mesmas mantivessem suas expectativas de riqueza e crescimento pessoal atrelado ao trabalho e para os proprietários rurais, preferencialmente, os libertos deveriam se dedicar aos trabalhos da lavoura. Segundo os ex-senhores cabia à população branca e “civilizada” ensinar ao negro “saber o seu lugar”. 260 257 FRAGA FILHO, Encruzilhadas da Liberdade, 2006. p. 214. Para um estudo sobre os libertos, ver OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O liberto: o seu mundo e os outros, São Paulo, Corrupio, 1988; XAVIER, Regina Célia Lima. A conquista da liberdade: Libertos em Campinas na 2ª metade do século XIX, Campinas, Centro de Memória da UNICAMP, 1996; CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros. Os escravos libertos e sua volta à África, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985. Para o período pós-abolição, consultar a obra já citada de FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, 2006. 259 Revista Agrícola nº 75 de 01/02/1908. p. 712. 260 Conforme Wlamyra Albuquerque “saber o seu lugar” é um dessas expressões capazes de traduzir regras de sociabilidade hierarquizadas que, sendo referendadas ou contestadas, atualizam-se cotidianamente. É construindo e conhecendo tais “lugares” que as pessoas estabelecem relações, 258 110 Em 13 maios de 1888, a Lei Áurea extinguiu definitivamente a escravidão no Brasil. Em Sergipe, essa lei colocou em liberdade 16.888 homens e mulheres “de cor”. A população total nesse mesmo ano era de 283.112 habitantes, portanto a população escrava representava cerca de 5,6 %, margem relativamente pequena se comparada à população total261. A escassez da mão-de-obra servil em consequência da abolição tornou-se a queixa mais recorrente entre os proprietários rurais, as autoridades e membros da elite sergipana. Abria-se, um período de incertezas e de busca de mecanismos de subordinação dos trabalhadores livres e libertos por meio da coerção extraeconômica. Tendo em vista a magnitude do problema, buscou-se a atuação direta do Estado no encaminhamento da organização do trabalho. Alguns proprietários, descontentes com a atuação governamental, utilizaram mecanismos violentos, ainda que muitas vezes não fossem extralegais. Analisando o reordenamento do trabalho em Sergipe, Josué Subrinho sinaliza que, no período posterior à Primeira República, as elites deram mostras claras de inconformismo com as consequências da abolição incondicional da escravidão. Se esse era um fato consumado, o apelo ao retorno de uma estratégia de coerção extra econômica para o fornecimento de força de trabalho ressurgiu com toda força. 262 Pautaremos boa parte das nossas discussões sobre a “organização do trabalho” no dialogo com os discursos produzidos pelos membros da Sociedade Sergipana de agricultura e publicados nesse periódico entre os anos de 1905 a 1908. Além dos artigos da revista, buscaremos nos relatórios presidenciais bem como em fontes primárias, nas notícias jornalísticas e na bibliografia existente elucidar a problemática que envolve o tema no caso sergipano. No artigo da Revista Agrícola intitulado: Organização do Trabalho, podemos destacar as características atribuídas à crise da lavoura em Sergipe, através das palavras do articulista desse periódico. A escassez da mão-de-obra era posta como cerne da questão, como abordado no item anterior, buscava-se através desse discurso, dentre outros objetivos, introduzir medidas que regulassem o trabalho livre. Como podemos observar em trechos desse artigo: reconhecendo formas de pertencimento e estruturam disputas próprias ao jogo social. C.f. ALBUQUERQUE, O jogo da Dissimulação, 2009, p. 118. 261 IHGS, CD – 004 SISDOC – 002. Dados segundo o Relatório do Presidente da Província Olímpio M. dos Santos Vital de Julho de 1888. 262 SUBRINHO, Reordenamento do Trabalho, 2004, p. 295. 111 A mais grave, e mais inadiável necessidade, que reclama a lavoura entre outras, é a organização do trabalho, sobre as bases que a tornem perdurável e prolifera. Não se pode compreender como ela, já se tem, atravessado esse longo período, que decorre da abolição imediata, até hoje, ao meio da desorganização completa, da anarquia quase absoluta que nela imprime a vontade caprichosa e sem freio do trabalhador habituado a indolência, e animado pelo interesse de quem se contenta com quase nada para se viver, de quem não se ambiciona o mais diminuto pecúlio para amparar a prole e garantir o dia de amanhã. 263 Na visão da classe senhorial, o trabalhador livre era a principal causa da crise da lavoura. Nas palavras do articulista da revista, era “a vida errante e despretensiosa dos libertos que representava um impasse para o progresso da lavoura” e, por isso devia ser severamente combatido pelo governo que até então, na visão dos proprietários de engenho estava no seu mais profundo imobilismo: Causa do e pena, lastima-se o ali pelo que se contempla e vê, se observa e estuda, não há contratos porque não há lei; nem execução que os estabeleça e regule, não há, portanto trabalhadores ligados e presos às fazendas por curto período de tempo que seja o proprietário fazendeiro não sabe com quem conta qual a força que possui para atender aos seus serviços, e mover a toda larga complexidades de trabalhos que se vê forçosamente tem que se dedicar. Os trabalhadores em Sergipe são indivíduos sem pousada certa, sem teto firme, atravessam isolados ou em pequenos grupos, que percorrem as inúmeras estradas, maltrapilhos, enfraquecidos pelas moléstias, adquiridas nessa vida errante, no mal passar contínuo, chegam aos engenhos nos quais trabalham às vezes um dia, dois ou até mesmo horas, nunca quase passando de uma semana, e que logo, abandonam em busca de outro, onde reproduzem a mesma vida de antes, prejudiciais e quase inúteis. 264 A descontinuidade do trabalho, marcado pela indolência do trabalhador, como citado, traduzia a frustação dos ex-senhores em manterem ao menos parcialmente o domínio sobre os libertos. A postura que se esperava dos ex-escravos, era certamente de trabalhadores humildes, que deviam se submeter à tutela dos antigos senhores por “lealdade e gratidão”. 265 A inconstância dos trabalhadores, para além da visão dos proprietários rurais, pode significar a recusa desses em permanecerem e/ou aceitarem as antigas condições que moldavam as relações de trabalho ainda no tempo da escravidão. Essas relações se tornavam ainda mais conflituosas nas regiões agrícolas, onde a definição dos direitos, privilégios e condição social dos libertos estavam marcadas pela experiência do 263 Revista Agrícola nº 5 de 15/03/1905. p 33. Ibid., 1905, p. 34. 265 SCHWARCZ, Quase cidadão, 2007, p. 32. 264 112 cativeiro. Eric Foner argumenta que, “Toda sociedade caracterizada pela grande lavoura experimentou, ao passar por um processo de emancipação, um amargo conflito em torno do controle da mão-de-obra ou, como pode ser mais bem descrito, da formação de classes”. 266 A ausência de contratos que regulassem o trabalho após a abolição dificultava a continuidade do exercício do poder senhorial sobre os trabalhadores. Para Henrique Espada, “o vagabundo e o indigente no mercado de trabalho “livre” não são figuras periféricas, revelam o cerne da nova condição do trabalhador: “trata-se de uma indigência que não é devida à ausência de trabalho, mas, sim, à nova organização do trabalho, isto é, ao trabalho „liberado””. 267 Um dos aspectos centrais na passagem do trabalho escravo para trabalho livre foi à promoção de uma modalidade de trabalho que havia sido não apenas marginal e sufocada pelo regime de tutelas, mas que era considerada então propriamente degradante: a condição do assalariado. O que estava em jogo, portanto, era a própria viabilidade da coesão social e da sociedade em última instância. 268 Em torno dos significados dessa “liberdade” após a abolição se estabeleceu um campo de lutas de enorme complexidade e extensão. Sua realidade empírica traduziu-se em configurações que variaram desde a situação ideal-típica do trabalhador independente assalariado até uma miríade de arranjos de trabalho que recombinavam graus diversos de “liberdade” e compensação financeira pelo trabalho, com elementos de coerção (física e pecuniária), tutela, trabalho compulsório e contratado, e ainda formas análogas à escravidão, como a servidão por dívida. Como resultado dos conflitos em torno do seu significado e alcance, nos anos posteriores à abolição o “trabalho livre” construiu-se como uma realidade ambígua. 269 A mobilidade espacial do trabalhador livre, migrando em muitos casos entre fazendas próximas, traduzia a esperança de talvez alcançar melhores condições de trabalho e oportunidade de conquistarem suas próprias terras. Para os proprietários rurais, essa mobilidade representava o desejo de rompimento dos libertos com as lembranças do seu passado escravista, 266 FONER, Nada além da liberdade, 1988, p. 26 Ibid., 2005, p. 284. 268 Ibid., 2005, p. 292. 269 LIMA, Sob o Domínio da precariedade, 2005, p. 295. 267 113 Raros, muitos foram os trabalhadores que a abolição deixou nos engenhos, a estes ligados pelos hábitos do trabalho ou pelo amor ao lugar em que nasceram. Como era natural, já quase, a todos, repulsa a aquilo tudo que lhe lembrava do passado de cativeiro humilhante. Já pelo sôfrego desejo e pela ânsia legitima de gozar a liberdade há tanto tempo ambicionada, e afinal, alcançada, abandonaram as fazendas onde parecia que as vidas a seguir, seria a continuação da mesma fruída até ali e as deixaram no estado lastimável em que permanecem até hoje, a mercê das flutuações dos trabalhadores de um dia, que passaram sem firmar raízes, nem deixarem proveitos. E, com esse sistema, os proprietários no tempo das plantações, lutam com as maiores dificuldades, em face mais do que a escassez de braços para o trabalho, da incerteza de contar com esses mesmos, no dia de amanha para estender as suas plantações desenvolvendo-as e melhorá-las270. (Grifo nosso) Cientes de que para o liberto o trabalho da lavoura representava empecilhos para a sua sobrevivência, logo os ex-senhores, colocavam-se no papel de vítimas nesse enredo social, buscando que as autoridades republicanas adotassem medidas que os beneficiassem. É possível perceber, através dos argumentos dos articulistas da revista que por trás do lamento sobre a escassez da mão-de-obra, tanto ex-senhores e libertos estavam conscientes que as relações de trabalho, já não se processariam conforme a vontade de uma única parte, como era de praxes a predominância da vontade senhorial. Nesse contexto, para os libertos, migrarem para outras regiões, ou até mesmo, para fazendas vizinhas, significava “livrar-se das marcas da escravidão”, a fim de destruir a autoridade real e simbólica que os brancos haviam exercido sobre todos os aspectos de suas vidas. 271 Essas ações eram também entendidas pelas elites, como um, anseio natural, já o trabalho do eito lhes lembrava do passado de cativeiro humilhante. Conduzir suas vidas, pautada em suas escolhas, significava para os ex-escravos maior autonomia e também exercício de sua cidadania. 272 Para os articulistas da revista, restava aos agricultores buscarem a via mais conhecida por essa classe, a coerção, visando o engajamento da população livre ao trabalho da lavoura. Sob essa perspectiva, a liberdade vinha repleta de obrigações. A preocupação com a mão-de-obra expressava-se, portanto, na tentativa de guiar os libertos para as zonas agrícolas e obrigá-los ao trabalho. Esse era o espaço que a libertação dos brancos permitia e previa para os ex-escravos. 273 Em favor das elites sergipanas, a Lei Estadual de nº 98, de 23 de Novembro de 1894 passou a regulamentar a Locação de Serviços. Entretanto, os agricultores não se 270 Revista Agrícola de nº 5 de 15/03/ 1905. p 34. Ibid., 1988, p. 70. 272 FRAGA FILHO, Encruzilhadas da Liberdade, 2006, p. 348. 273 SCHWARCZ, Quase cidadão, 2007, p. 37. 271 114 sentiram contemplados em seus anseios, afirmando que a lei não inibia alternativas dos libertos para obterem subsistência. Segundo a Sociedade Sergipana de Agricultura era necessário adoção de outras medidas que a complementassem. 274 Em 1902, a Sociedade Sergipana de Agricultura, apresentou ao governador Josino de Menezes, um Memorandum que reunia as ideias divulgadas tanto pela imprensa quanto por autoridades locais, sugerindo medidas concretas para a organização do trabalho livre no estado. Para a Sociedade Sergipana de Agricultura a Lei de Locação de Serviços de 1894, pouco auxiliou na organização do trabalho, principalmente, no tocante as restrições de atividades de subsistência, levando seus membros a criticá-la no Memorandum que dentre outros objetivos, buscava descrever as autoridades governamentais as suas reais necessidades para organização do trabalho livre. 275 Entre os principais dispositivos desse documento, estava à regulamentação da caça e da pesca, visando à restrição das condições de subsistência da população rural. Ambas as atividades eram tidas como fonte de sustento à margem do mercado de trabalho e no entender dos proprietários agrícolas contribuíam para a desorganização do trabalho agrícola. Sobre a lei de nº 98 de 23 de novembro de 1894, jamais se executou (...) assim sendo, deveis indicar a Assembleia para legislar especialmente sobre a caça e a pesca, pequenas explorações em que se nutre a mais abusiva ociosidade, em detrimento geral da ordem e da regulamentação do trabalho, além das consequências desastradas que do uso absoluto desse meio de vida decorrem contra os fazendeiros. 276 Segundo a revista, a situação agrícola em Sergipe se encontrava: “ao meio da desorganização completa, da anarquia quase absoluta, que nela imprime a vontade caprichosa e sem freio do trabalhador habituado a indolência, e animada pelo interesse de quem se contenta com quase nada para se viver de quem não se ambiciona o mais diminuto pecúlio para amparar a prole e garantir o dia de amanhã”. 277 Essas circunstâncias deploráveis ganhou notoriedade nas páginas do Memorandum, 274 Sobre a referida Lei consultar: APES , Compilação das Leis, Decretos e Regulamentos do Estado de Sergipe. Volume III. 1894 a 1896. Aracaju Typografia do Estado de Sergipe, 1902. 275 IGHS – Acervo Sergipano. Nº 3683 – Memorandum 1902, p. 16. 276 Ibid. Memorandum 1902, p. 16. 277 Revista Agrícola nº 8 de 26/04/1905. p 68. 115 Os estragos das culturas, as destruição de matos, os incêndios de campos, e tantos outros prejuízos que sabemos nos atropelam, tem por base o abuso dessa liberdade de que se servem esses malandros e preguiçosos, que preferem a migalha da caça e da pesca ao salário abençoado e contínuo.278 (grifo nosso) O direito de optar por outros meios de subsistência pelos libertos, era traduzido na visão dos ex-senhores como “liberdade demasiada”. Além dos conflitos em torno das relações de trabalho, o documento manifesta as reclamações dos proprietários rurais, referente a outros prejuízos, decorrente da arruaça contra suas propriedades, por parte do “vandalismo” dos ex-escravos. As queixas de incêndios e roubo de gado eram constantes. 279 Conforme o Memorandum, em Sergipe muitos eram os prejuízos que agravavam as finanças dos senhores, como consta na citação. No Brasil, a destruição e incêndio de campos e roças era uma estratégia utilizada pelos escravos, desde os tempos da escravidão, constituía uma forma significativa de protesto. Desde a escravidão, a queima de canaviais ou matas era uma forma de sabotagem bastante utilizada pelos escravos. A destruição das rocas pelo gado e a repressão aos que se recusavam a trabalhar nos canaviais criaram uma atmosfera de ressentimento e contribuíram para elevar as tensões sociais a um nível perigosamente explosivo. 280 Outra questão abordada no Memorandum foi a existência de terras devolutas irregularmente utilizadas pelos libertos, o que nos dá a certeza de que as “populações de cor” em Sergipe se apossaram dessas terras como alternativa para o cultivo de pequenas roças de subsistência e possivelmente fonte de renda, através da vendagem de sua produção excedente. Não seria ocioso lembrar-vos que concorre muito poderosamente para a ordem anárquica das coisas nesse Estado, no que diz respeito à organização do trabalho, o abandono em que se acham as terras devolutas, usufruídas abusivamente por indivíduos sem ocupação certa, que a pretexto de possuírem aqui e ali, uma habitação, entregam-se a meios de vida duvidosos, com prejuízos manifesto dos vizinhos laboriosos e ativos. 281 (grifo nosso) 278 APES, AG¹ pac 285 e 416. Sessão Agricultura. Sociedade Sergipana de Agricultura. Memorandum apresentado ao Presidente do Estado de Sergipe Josino de Menezes em Aracaju 21/11/1902. Walter Fraga mostra que nos anos posteriores à abolição intensificaram-se as queixas em relação aos incêndios de canaviais. Para os proprietários rurais tais atos possuíam estreita ligação com a lei de 13 de maio. Em suas conclusões, o autor infere que parte desses incêndios decorria dos conflitos que estavam ocorrendo nos engenhos do Recôncavo baiano. FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, 2006, p 152/155. 279 Conferir APES – Sp9 – Secretaria de Segurança Pública do Estado. 280 FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, 2006, p 155. 281 Ibid., Memorandum 1902, p. 17. 116 Ao analisar a faixa de riqueza das “populações de cor” em Sergipe, Sharyse Amaral utilizou inventários da Região do Cotinguiba que possuíam posses até mil contos de réis. Avaliando Laranjeiras, Maruim e Nossa Senhora do Socorro, a autora constatou que os inventariados em geral possuíam pequena propriedade, que custavam em torno de 80 a 500 mil réis. Nessas terras, além de casas de morar, haviam plantações de cereais e coqueiros, casa de farinha, arvores frutíferas e outros. Segundo a autora nesses inventários não ficaram evidentes a regulação das posses dessas terras, se havia contrato de arrendamento ou de meação. Estando presentes diversas posses em terras devolutas. 282 A mesma autora aponta que a utilização dessas terras, proveniente de aldeamentos indígenas, desde 1867 já vinham sendo aproveitadas por pessoas “sem título algum”, o que acarretava prejuízos para o Estado. 283 Analisando as três comarcas conjuntamente, temos que 41,4% dos inventariados possuíam sítios em terras próprias. Número bastante elevado para a menor faixa de riqueza. Ao que parece, estas pessoas aceitavam trabalhar em terras alheias, mas, assim que conseguiam juntar algum dinheiro, o investiam em seus próprios sítios, ou em salinas, ou, no caso das cidades, em outros bens, como casas e canoas de aluguel. Dentre estes, 41% não foram contabilizadas as “posses de terras”, nem as “terras devolutas” que muitos, inclusive vários donos de sítios em “chãos próprios”, disseram também possuir. Contrariando o discurso da Sociedade Sergipana de Agricultura, em que, essas terras eram utilizadas de forma improdutiva, pode-se observar que além, das casas de morar, nesses pequenos espaços de terra, era produzido frutas, cereais e farinha de mandioca a base alimentícia da população mais pobre desse período. A declaração de posse de terras pelos inventariados do Cotinguiba, expressa à participação ativa do liberto no mundo rural, mas, aplicando seu trabalho no desenvolvimento de produções particulares, que de fato concorriam com as produções de seus vizinhos, levando-os a terem prejuízos, como citado no Memorandum. A autora Hebe Matos, aponta que grandes partes dessas terras eram cultivadas com o auxilio exclusivo de mão-de-obra familiar, plantava-se além do necessário para o consumo, comercializava-se o excedente da produção nas casas atacadistas ou em feiras locais. 284 282 AMARAL, Escravidão, liberdade e resistência em Sergipe, 2007, p. 220. Ibid. p. 223. 284 MATOS, Quase Cidadãos, 2007, p. 67. 283 117 A Sociedade Sergipana de agricultura tinha em vista a possibilidade das terras devolutas serem empregadas no estímulo à formação de corrente imigratória de estrangeiros, já que para eles: “a melhor forma de aproveitá-las, é dividi-las em lotes regulares e distribuí-las (...) a imigrantes estrangeiros que podeis introduzir no Estado, na firme crença que assim procedendo tereis marcado na história de Sergipe a mais ilustre página em que se inspirarão as gerações futuras”. 285 Segundo Josué Subrinho, a questão de terras devolutas em Sergipe sempre esteve sujeita a controvérsias e manifestações de interesses divergentes. No período monárquico, quando deveriam ter sido registradas as terras públicas, de acordo com a Lei de Terras de 1850, e de seus regulamentos, várias Câmaras Municipais afirmaram não existir terras em semelhante situação. 286 Por último, o Memorandum sugeria a criação de uma Colônia Correcional e a formação da Policia Rural que atuaria, especificamente, a mando de particulares. Constava no documento: “se organizardes o trabalho, ou para dizer melhor, se determinardes a execução da lei de organização do trabalho, imprescindível se torna a criação de uma colônia correcional, onde cumpriram as penas correspondentes aos seus delitos, os trabalhadores que se tornarem delinquentes”. 287 A polícia rural surgia nesse contexto como importante instrumento de coerção e regulamentação do trabalho, medida aplicada com êxito em outras províncias do Nordeste. Na revista de nº 3, foram publicadas na sessão Movimento agrícolas, várias resoluções bem sucedidas, adotadas por províncias vizinhas para conter a desordem nas lavouras, dentre elas a regulamentação da polícia rural de Pernambuco. Assim rege o regulamento, Art. 1º - Ao dono ou rendeiro de proprietário agrícola assiste a faculdade de nomear um ou mais vigias para a segurança e policiamento de seus campos, lavouras ou fabricas. Art. 2º a nomeação deve recair sobre pessoas de bons costumes e que estejam na posse de seus direitos civis, Art. 3º Ao vigia será permitido o uso de armas de defesa no exercício de suas funções. Art. 5º Os vigias terão as seguintes atribuições, I – O policiamento e segurança dos campos, lavouras e fábricas da propriedade agrícola, não podendo policiar além dos limites destas, salvo no 285 C. f CARVALHO, José Murilo de. O teatro das sombras: A política imperial. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ / Relume-Dumará, 1996. p. 301. 286 Conforme Subrinho, no momento em que o Presidente da Província estava analisando o Memorandum, isto, é 1903, essas terras estavam em situação "pro-indivisu”, pelo menos quanto ao seu aspecto legal. Nesse sentido, além de ser totalmente ilegal, ao menos desde 1854, quando foi regulamentada a Lei de Terras de 1850, essa posse não registrada de terras as tornava devolutas e, portanto, de acordo com a Constituição da Primeira República, Patrimônio do Estado de Sergipe. pp 305/306. 287 Ibid., Memorandum, 1902. 118 caso de encontrar algum contraventor, podendo nesse caso, pedir auxilio do policiamento da propriedade vizinha, II – A prisão dos desordeiros ou malfeitores serão apresentados ao proprietário ou rendeiro ou a quem substituir, para que seja o preso remetido para o posto policial mais próximo com ofício, para que indiquem as testemunhas e os motivos da prisão. 288 O poder da Polícia Rural, mesmo que restrito aos limites das propriedades agrícolas, descentralizava o poder policial da administração pública e os colocava à mercê de particulares. Com esse “poder” de coerção em mãos os ex-senhores poderiam o exerceram de forma arbitrária. Será que esses “policiais rurais” seriam os mesmo que antes da abolição desempenhavam a função de “capitão de campo”? Segundo Igor Oliveira, esses capitães dedicavam suas vidas a prender escravos fugidos mediante a recompensa dos senhores destes. 289 Lourenço Bezerra Cavalcanti Bravo, que já possuía o titulo de “capitão do campo” adquirido através de solicitação na Secretaria de Segurança Pública do Estado, foi responsável pela captura do negro fugido Januário no povoado do Sítio do Meio, município de Propriá. Lourenço exigiu “por esta captura” um soldo entre “30 mil réis e 40 mil réis”. 290 A diferença entre os “capitães de campo” e os aventureiros “capitães do mato” tão já conhecidos pela historiografia da escravidão, consistia que os “capitães do campo” possuíam função normativa vinculada ao governo, ou seja, assim como a polícia rural, os “capitães de campo” trabalhavam para os proprietários rurais em defesa de suas propriedades. Oliveira em seu estudo, também revela ter encontrado em várias correspondências solicitações do título junto aos delegados municipais: Em 1877, o senhor Francisco José de Santana se dirigiu até a delegacia de polícia do termo de Capela “a fim de obter o título de Capitão de Campo”. (grifo nosso) Como não era atribuição do delegado fazer tal concessão, este expediu um ofício ao chefe de policia informando o seguinte: O portador do presente ofício é o senhor Francisco José de Santana, morador neste termo, que a muito me pede uma informação V. S. a fim de obter um título de Capitão de Campo, ou que esta Delegacia o fizesse, porém não tendo essas atribuições passo a informar a V. S. que o dito [...] tem se dedicado a este ofício de capturar escravos fugidos, e outros negócios, de quem tem sido encarregado, a tudo isto tem se prestado com prontidão [Sic.] 291 288 Revista Agrícola nº 3 de 15/02/1905. “Movimento Agrícola”, p. 21. OLIVEIRA, Os negros do mato, 20101, p. 54. 290 APES. Fundo: SP¹, pacotilha: 705. Ofício do 1º suplente do delegado de polícia de Capela, Antônio Pereira Resende, ao chefe de polícia da província de Sergipe, em 4 de janeiro de 1872. 291 APES. Fundo: SP¹, pacotilha: 08.Ofício do delegado de Capela, Ângelo Pereira de Andrade, ao chefe de polícia da província de Sergipe, em 9 de outubro de 1877. 289 119 Nos tempos da escravidão era uma prática comum os proprietários rurais recorrerem aos trabalhos de feitores, “capitães do mato” e até “capitães de campo”, após abolição, para a Sociedade Sergipana de Agricultura a Polícia rural desempenharia a função de “vigiar e punir” os trabalhadores que desafiassem a autoridade patronal, ao menos nos limites do espaço privado. Em outro artigo, intitulado “O trabalho agrícola em Sergipe”, a Revista Agrícola volta a discutir a questão da organização do trabalho enfatizando a ociosidade dos libertos, sobretudo os caboclos e mestiços: Dizer para que se saiba fora das nossas fronteiras, que é o negro boçal, o caboclo indolente, ou o mestiço sem ambição, todos fracos, mal alimentados, sem interesses ligados ao solo, nômades, maltrapilhos, ignorantes e adoentados na maior parte pelo abuso do álcool, pelo impaludismo e mesmo pelo efeito da vida errante que levam de fazenda em fazenda, a procura de melhor ganho, isto é, do proprietário mais aflito pela urgência do serviço, (grifo nosso) dizer que essa gente nos tem a discrição nos impõe seus preços e modo e quando quer fazer o trabalho, e acrescentar que vivemos satisfeitos com isso, porque ainda tentamos contra, é, não há de negar cobrir-nos de vergonha, para não confessarmos incapazes da nossa missão e muito abaixo da confiança comercial do conceito social de que temos não obstante gozado.292 Além das queixas dos antigos senhores, como destacado na citação acima, podemos visualizar outros aspectos importantes desse momento. É interessante observar que os libertos não permaneceram apenas como figurantes. Pelo contrário, eles em muitos aspectos se aproveitaram da situação onde se deslocavam “de fazenda em fazenda, a procura de melhor ganho, isto é, do proprietário mais aflito pela urgência do serviço”. Os ex-escravos aparecem nesse contexto, agindo estrategicamente, contrariando os discursos dos que acreditavam que eles não possuíam consciência de direitos, ou que, necessitavam de auxílio dos brancos para fazer valer de fato sua liberdade. Hebe Matos infere que a competição pelo trabalhador liberto, acirrou-se ainda mais após a abolição. Nos meses seguintes a abolição o governo imperial chegou a publicar portarias concedendo passagens ferroviárias a grupo de trabalhadores que apresentassem contratos de trabalhos nas zonas rurais, contrariando o acordo que estabelecia a exigência de carta de recomendação dos libertos que deixassem as fazendas de seus ex-senhores dentro da mesma freguesia. 293 292 293 Revista Agrícola, nº 8 de 26/04/1905. p 67. MATOS, Quase Cidadãos, 2007, p. 59 120 Fica evidente nos artigos da Revista Agrícola que esses senhores manipulavam os discursos que eram produzidos, a fim de conquistarem a aplicação de medidas que os beneficiassem. Esses discursos revelam cenas do cotidiano entre ex-senhores e libertos, também caracterizam a representação do liberto, pelas elites no pós-abolição que em muitos aspectos destoavam da realidade. Ao reproduzirem o “seu olhar” sobre a realidade, acabavam também por criá-la nas formas simbólicas que elegiam. Afinal, sua retórica não parecia fazer sentido só para eles mesmos, uma vez que, a revista circulava pelos principais municípios sergipanos, sendo exposto numa comunidade de significação que alcançavam aqueles que ouviam e reconheciam seus próprios interesses. Diante de tal “desordem”, provocada pela vida errante das “populações de cor” livre e liberta, o articulista aponta três alternativas para solucionar o problema: primeiro, a inovação tecnológica com a modernização dos engenhos; segundo, adoção do trabalho livre do imigrante e; por último, a regulamentação do trabalho através de leis que garantissem a continuidade do serviço da lavoura. Nos anos anteriores à abolição, como já mencionamos, a multiplicação e modernização dos engenhos foram medidas adotadas sem muito sucesso na busca de reanimar a lavoura, como aborda a Revista Agrícola. Assim, a segunda opção seria a imigração, opção vista como inviável pelas elites sergipanas, justificados pela crise econômica. Desse modo, as leis reguladoras do trabalho se tornaram a principal elemento no combate à ociosidade e vadiagem, como se percebe no artigo: Qual o remédio, porém? Ou multiplicamos esses poucos braços e mãos, por aparelhos e máquinas custosas, o que não é fácil pela deficiência dos nossos capitais, ou substituímo-los pelos colonos europeus para o que também nos falta o dinheiro, o preparo e a propaganda dos recursos do nosso Estado, desconhecido nos estrangeiro, ou teremos que nos servir dessa mesma gente, até melhores tempos, mas será preciso regulamentar o seu trabalho, interessála ao solo e fixá-la, estabelecendo relações duráveis de direitos e deveres entre trabalhadores e proprietários de modo a vivermos cercados de verdadeiros auxiliadores em nossas fazendas. 294 A ideia dominante é que após a abolição uma crise estrutural deixou os exsenhores a mercê dos caprichos dos trabalhadores rurais, ou até mesmo escravo de suas próprias fazendas, como cita a revista agrícola: “O fazendeiro sergipano é um escravo ligado à fazenda da qual não pode sair um só instante, com a certeza que o prejuízo é 294 Revista Agrícola nº 8 de 26/04/1905. p 67. 121 inevitável”. 295 Para as elites, era preciso reprimir a crescente ociosidade e combater os meios possíveis de subsistência que não fossem adquiridos com os salários das lavouras. No Brasil, em torno da década de 20, as demandas por leis de compulsão ao trabalho foram abandonadas. Em 1926, foi aprovada a emenda constitucional autorizando o Congresso Nacional a legislar sobre o trabalho, tornando-se anacrônicas as demandas por medidas de compulsão ao trabalho. Nesse processo, a liberdade, para os ex-escravos, esteve dotada de muitos significados: a possibilidade de movimentar-se sem a necessidade de autorização do exsenhores; o fim dos castigos corporais; a escolha de como e em que tempo trabalhar. 296 Ser livre, para os libertos, como afirma Silvia Lara, parecia estar longe de significar o ideal de “vender a força de trabalho em troca de um salário” 297 , como desejavam os membros da Associação Sergipana de agricultura. O que parecia importar para os libertos era a necessidade de afastar qualquer reminiscência dos tempos da escravidão, por isso o alto índice de rejeição aos trabalhos na grande lavoura. Para alguns ex-escravos no Brasil, a liberdade parece ter assumido diversas formas e sentidos culturais. Vários comportamentos e ações de libertos eram marcados pelo desafio à autoridade senhorial. Suas atitudes muitas vezes caminharam no sentido de destruir qualquer autoridade real ou simbólica que o ex-senhores tentasse ainda impor. Neste sentido, não se diferiam dos libertos nos Estados Unidos. 298 Pelas suas próprias características intrínsecas, a implantação de um mercado de trabalho “livre” não se deu de modo homogêneo e inconteste em lugar algum, prova disso são as constantes reclamações das elites sergipanas em torno das diferenças da vida de regalias dos proprietários rurais do Sul do país em relação aos do Nordeste. Conforme a Revista Agrícola: Diante desse quadro, que é real o seu acumulo de cores, o fazendeiro sergipano é um escravo ligado à fazenda da qual não pode sair um só instante, com a certeza que o prejuízo é inevitável, e quando não da paralisação, da perturbação de todo o trabalho, em contraposição das fazendas de São Paulo que reside nas grandes cidades, passeia, diverte-se, certo de que sua fazenda tudo marcha com a regularidade precisa e proveito constante299. 295 IBID. p 68. MATA, Os libertos do treze de maio, 2007, p. 182. 297 LARA, Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil, 1998. 298 FONER, “Os significados da liberdade”, 1998, p. 19. 299 Revista Agrícola nº 5 de 15/03/1905. 296 122 A verdade é que, como já foi apontado, “definir escravidão e liberdade” provocou e provoca “angústias políticas e conceituais”. O conceito de trabalho livre é prova disso. A organização do trabalho livre mostrou ser um eixo fundamental de debate e disputa porque colocava em jogo não apenas questões econômicas sobre a organização e distribuição da força de trabalho, mas especialmente porque foi capaz de mobilizar, do mesmo modo, temas como o do direito ao trabalho, a dignidade do trabalho e o acesso aos direitos políticos que a “liberdade” implicava ou poderia implicar. 300 Após a abolição da escravidão, tanto no âmbito nacional quanto regional, no caso em Sergipe, para os libertos a ideia de “liberdade” adquire um significado novo: passa a carregar a promessa, absolutamente nova, de acesso a direitos universais, que implicavam outra forma de pertencimento que não passaria mais pela subordinação, mas pela ideia de filiar-se a uma comunidade de direitos e de deveres cívicos. Entre eles, o direito ao trabalho, mas também à propriedade, à remuneração digna, ao sustento próprio, ao futuro. Do mesmo modo, o direito de escolher a quais redes de sociabilidade e interdependência, a quais relações de solidariedade, a quais vínculos de sentimento pertencer. Liberdade poderia significar, enfim, poder dar um sentido autônomo a esse novo pertencimento. 300 Ibid. 2005, p. 308. 123 IV – Capítulo Os códigos e suas (im)posturas: o Código Rural em Sergipe. O discurso de completa desordem econômica e social após a abolição foi em grande parte retorica das classes elitistas sergipana, buscando ao longo do processo de reestruturação social após a emancipação preservar benefícios garantidos no “tempo da escravidão”, tal como, o poder sobre a regulamentação do trabalho. A Revista Agrícola, principal arma na defesa dos interesses das classes dominantes colacionada a outras fontes, deixou revelar que seus artigos, produzidos de forma manipuladora, conseguiam atingir boa parte da população e principalmente das autoridades governamentais que a mercê das vontades dos proprietários rurais, donos de boa parte das riquezas do Estado, acabavam cedendo as pressões, adotando medidas coercitivas que regulassem o trabalho e também os trabalhadores livres, numa perspectiva muitas vezes mais tendenciosa ao favorecimento dos ex-senhores. Nesse capítulo, buscaremos avaliar tais medidas como as Posturas Municipais e o Código Rural que refletiam em seus regulamentos a vontade expressa dos proprietários rurais em submeterem as “populações de cor” em Sergipe ao trabalho compulsório. É importante salientar que se já não havia o direito de propriedade que durante o regime escravista permitia aos senhores de escravos dominarem o trabalho de suas “propriedades humanas”, após a abolição, foi preciso muito contorcionismo intelectual para conseguir que a liberdade fosse de fato cumprida. Desse modo, analisaremos como tais medidas alteraram as relações de trabalho em Sergipe a partir de um viés regulador, a própria lei. Na Região do Cotinguiba cinco municípios adotaram posturas municipais que tinham como objetivo principal regular o trabalho. A formulação dos códigos visava atender às especificidades de cada município, entretanto, todos se assemelhavam especialmente nos dispositivos referentes à repressão da vagabundagem. 301 O código de posturas do Município de São Cristóvão era um dos mais rígidos. Além da proibição da caça, aplicava multa de 5$000 (cinco mil conto de réis) ou quatro dias de prisão para quem fosse encontrado, sem motivo justo, dentro de roças ou 301 Além de São Cristóvão e Laranjeiras, o Código de postura também foi adotado pelos Municípios de Siriri, publicado no Jornal O Republicano de 11/02/1891; Nª Senhora das Dores, publicado no Jornal O Republicano de 12/03/1890; Maruim, publicado no Jornal Gazeta de Sergipe de 07/11/1893 e da Vila de Japaratuba, publicado no Jornal O Republicano de 14/03/1890. 124 pomares. Versava especificamente sobre a vagabundagem, os artigos 81 e 88 que diziam: “o individuo que, morando nos subúrbios desta cidade não mostrar uma ou mais tarefas de terra plantada, mostrando assim ter ocupação, pagará multa de 50$000 ou sofrerá dois dias de prisão. Os policiais devem velar com todo escrúpulo sobre a vadiagem (...), as pessoas que forem encontradas pelas ruas sem ocupação (sem reserva de sexo) será obrigada pelo fiscal obrigada a limpar as ruas, se desobedecer sofrerá 24 horas de Prisão”. 302 No código do município de Laranjeiras, a principal medida era o trabalho compulsório. Incorporando em seus dispositivos parte da declaração de direitos do projeto da Constituição Estadual, que estabelecia a obrigatoriedade do trabalho lícito. Consta em seu artigo 1º: É proibido nesse município a permanência de qualquer indivíduo válido, tanto do sexo masculino, como do sexo feminino que não mostre exercer indústria útil ao lugar. §1º Todo aquele que não tiver ocupação lícita, será internado para os estabelecimentos agrícolas, onde terá o salário correspondente ao seu trabalho, ficando sujeito a uma vigilância escrupulosa e incessante. §2º Recusando-se ao trabalho qualquer indivíduo que nessas condições se ache, ou retirando-se temporariamente da ocupação em que estiver, no intuito de continuar na indolência, incorrerá na pena de dez dias de prisão que será 303 repetida tantas vezes quantas na mesma reincidir. Mesmo os não que aprovavam em tese as medidas de repressão à vadiagem e à ociosidade, eram muitas vezes coniventes com os abusos por parte das autoridades investidas de tais dispositivos legais. Alguns jornais colocaram em evidência a discussão os direitos civis, denúncias de castigos corporais aplicados aos trabalhadores, o que comprometia para eles, tanto o Estado quanto à República. 304 Ignácio, jornaleiro, trabalhava ao preço de mil e duzentos réis o dia para o Coronel Felisbelo Firmo de Oliveira Freire, às cinco horas da tarde (provavelmente horário de término do dia de trabalho) Ignácio mudava de dez em dez toras (de madeira) de um lugar para o outro, o dito Coronel mandou que o mesmo carregasse mais de dez de cada vez, alegando não ter forças para tal, Ignácio foi espancado e preso a cordas pelo Coronel que se sentiu ofendido com tal resposta. 305 302 BEPD, Código de Posturas do Município de São Cristóvão. Publicada no Jornal Gazeta de Sergipe de 20/08/1893. 303 BEPD, Locação de Serviços do Município de Laranjeiras. Publicada no Jornal Gazeta de Sergipe de 10/10/1891. 304 BEPD, Jornal O Paiz de 04.03.1898. 305 APES, Sp9 volume 12. Auto de Perguntas. 1898. 125 Segundo o Jornal O Paiz em vários pontos do Estado, ainda vigorava a prática de castigos corporais aplicados aos trabalhadores. “Pessoa Fidedigna nos informa que no termo de Capela o cidadão Manoel Barbosa que é suplente da autoridade policial, tem no engenho denominado Quemdera tronco, palmatória, e etc, para aplicar castigos em seus trabalhadores”. Segue afirmando que tais medidas bárbaras eram incongruentes com a República. 306 Sergipe não foi a única região a experimentar a violência contra ex-escravos após a abolição. Esse foi um recurso muito utilizado também em outras regiões do Nordeste açucareiro. Estudos apontam que na Bahia, por exemplo, alguns exsenhores, descontentes e indignados com a lei, usaram o dispositivo da força imprimindo, na relação de trabalho livre, aspectos e marcas que caracterizaram a escravidão. Tentavam não perder a autoridade e os “direitos” advindos da posição senhorial. 307 No Rio de Janeiro e no sul de Minas, surgiram denúncias de manutenção do cativeiro em várias fazendas. 308 No sul dos Estados Unidos, as ações violentas contra os libertos se deram a partir da tentativa dessa população de viverem fora do controle dos seus ex-senhores. Lá, alguns libertos foram espancados e assassinados por “tentar deixar as fazendas, discutir ajustes contratuais, ou seja, não “trabalhar do modo desejado” e alguns casos resistirem aos açoites”. 309 Entretanto, para os proprietários rurais era preciso sancionar um código que legislasse sobre todo o Estado. Com a finalidade de suprir tais demandas em 1905, o Código Rural passou a vigorar em Sergipe. 310 Formulado pela Sociedade Sergipana de Agricultura, entre os principais objetivos estavam: regulamentação das propriedades e indústrias agrícolas e pastoris; conservação e reconstituição de florestas, regulamentação sobre fontes de utilidade pública, vias de comunicação terrestre e fluvial, a caça e a pesca, a higiene e a salubridade nas propriedades rurais e povoações; a repressão à vadiagem e mendicidade e por fim, a organização do trabalho rural. 311 Ou seja, uma continuidade de repressão ao direito do Liberto de exercerem de forma autônoma suas atividades. Esse código traduzia em síntese dos os anseios dos 306 BEPD, Jornal O Paiz de 04.03.1898. MATA, Iacy Maia. Libertos de Treze de Maio. Ex-senhores na Bahia e conflitos no pós-abolição. Afro-Ásia de nº 35, 2007, 163-198. p. 176. 308 CASTRO, Das cores do silêncio, 1995, p. 311. 309 FONER, “O significado da liberdade”, 1998, p. 73. 310 Decreto de nº 537 de 21 de agosto de 1905, foi estabelecido o Código Rural em Sergipe, que compreendia 195 artigos, distribuídos em 21 capítulos. Publicado na publicado na Revista Agrícola nos exemplares de nº 17, 18 e 19. Ano 1905. 311 APES - Coleção de Leis e Decretos de Sergipe 1904/1905. 307 126 proprietários rurais em regulamentar o trabalho da lavoura, desejo não logrado nas leis anteriores, tal como a Lei de locação de serviços de 1894, as Posturas Municipais do final do século XIX, e do Memorandum de 1902. O código estabelecia e consagrava o direito à liberdade das pessoas e propriedades rurais; as restrições aquelas com vistas ao bem de terceiros e ao bem comum; as prescrições referentes ao solo das propriedades rurais públicas e particulares, e também as disposições concernentes à Polícia rural. 312 No tocante ao atendimento das reivindicações da Associação Sergipana de Agricultura, o Capítulo XI - dos Contratos rurais - versava sobre as finalidades do contrato rural e definia as atuações de patrões e empregados. O trabalhador rural poderia ser Jornaleiro, empregado por mês ou ano, ou colono. O jornaleiro seria o trabalhador rural que vende seu serviço por dia, o empregado, o que vende seu serviço por mês ou ano; e o colono, o que isoladamente ou com a família toma a seu encargo o cultivo de uma área de terra, onde se instala mediante contrato previamente estabelecido. Os contratos com os colonos poderiam ser: de empreitadas, com salários no final o serviço; parceria, cujo pagamento corresponderia à parte da lavoura ou renda; por parte da terra, que seria pago em moeda corrente ou produtos, um percentual dos bens produzidos. Além dessas classificações, os trabalhadores agrícolas poderiam ser agregados, os quais seriam moradores sem contrato, limitando-se em geral à vigilância dos sítios onde se achassem instalados e, eventualmente a prestação de outros serviços de caráter transitório. O código ainda estabelecia que para ter acesso a direitos e vantagens nele previstos, tanto proprietários quanto os trabalhadores deveriam, no prazo máximo de um ano após sua publicação, possuir contratos por escrito e de acordo com suas disposições. 313 Os acordos poderiam ser rescindidos pelos seguintes motivos: impontualidade do patrão no pagamento, mau trato ou violência física imposta pelo patrão ao empregado, descumprimento das cláusulas do acordo, desobediência a ordens expressas e não exorbitantes do contratador, ato repetido de turbulência ou desacato por parte do contratado, vício contumaz. E em qualquer hipótese poderia ser rescindido por decisão amigável entre as partes ou por decisão judicial. 314 312 Revista Agrícola de nº 18 de 30/09/1905. p. 159 a 168. Ibid. nº 18, 1905. 314 Revista Agrícola nº 19 de 15/10/1905. Código Rural, Capítulo XVIII, p. 171. 313 127 No art. 110, consta que, a não ser de acordo com os recursos legais dados pelo código nenhum proprietário poderia obrigar por meios violentos seus trabalhadores ao serviço, mesmo previsto em contrato, incorrendo em pena especificada no art. 204 do Código penal. Com o propósito de viabilizar a aplicação do código e da legislação Federal, Estadual e Municipal, no Capítulo XVIII previa-se a organização da Polícia Rural nos seguintes termos: Art. 177 . À Polícia Rural cabe assegurar, de acordo com as leis da União e do Estado e as resoluções e posturas municipais, a manutenção da ordem e da segurança pública, a proteção dos direitos das pessoas e das propriedades rurais, prevenindo, vigiando e auxiliando com eficácia as autoridades judiciárias e municipais na execução das leis, resoluções e posturas do que 315 dispõe esse Código. A Superintendência da Polícia Rural seria exercida nos municípios pelo poder executivo e pela “polícia particular”, quando organizada com a autorização do governo, como citamos anteriormente, formada por antigos “capitães do campo”. Incorporava dispositivos do Código penal e fiscalizava as seguintes contravenções: Jogos de azar, embriaguez, vadiagem, mendicidade exercida por indivíduos aptos para o trabalho, exercícios contrários à boa ordem e segurança pública e conservação em estado de liberdade de animais ou pessoas que, por sua natureza ou estado particular, pudessem causar danos a outrem. 316 Em 1906, ano seguinte ao da publicação do Código Rural, mais uma vez a expectativa dos proprietários parece não ter sido atendida. Na voz de Theodureto Nascimento as reivindicações dessa classe prosseguiam nas páginas da Revista Agrícola: É irrisório mais é verdade. E porque assim abrimos a porta nós mesmos, a invasão e destruição das nossas propriedades, nada mais ali é respeitado: o roubo dos canaviais e das roças, onde se encontram cereais ou fruto comestíveis os incêndios muitas vezes proposital e a vagabundagem provocante de gente que não precisa trabalhar (...) Este ano então o fato atinge proporções de verdadeira calamidade. Estou informado que todo o Estado se encontra carbonizado; os pescadores incendeiam as margens dos rios e os caçadores as matas e os campos com cercas e plantações (...) O que fazer se, porém não temos no Código Rural em execução, leis regulando a caça e a pesca, a repressão à vagabundagem nos campos e as indispensáveis regulamentações do trabalho agrícola? E se leis existe em 315 316 Revista Agrícola nº 19 de 15/10/1905. Código Rural, Capítulo XVIII, p. 171. Revista Agrícola nº19 de 15/10/1905. Código Rural, Capítulo XIX, p. 172. 128 perfeita e completa, quem se interessaria por elas, ou quem prestaria a 317 executá-la? . (grifo nosso) Para os proprietários rurais, as restrições à caça e à pesca e coleta de produtos silvestres, que eram utilizadas como forma de subsistência por parte da população rural, nas disposições do Código não atenderam as expectativas. O capítulo que versava sobre essas atividades rege-as com base nos regulamentos federais e define que pesca marítima é livre nos mares e rios do Estado. Quanto à coleta de frutos e à caça é proibida em áreas publicas, salvo se concedido licença prévia, estabelecidas pelas posturas municipais. 318 Na visão dos articulistas da revista, o Código Rural não representou grande mudança, uma vez que, a proibição dessas atividades em áreas públicas e particulares dependia de uma fiscalização eficaz que para os proprietários rurais não havia sido contemplada. A Polícia Rural que era o objeto de maior esperança no combate a essas atividades, não chegou a ser regulamentada. O contingente policial era limitado e a criação de um corpo policial especializado, esbarrava nas restrições orçamentárias do Estado. O desejo de boa parte dos proprietários rurais era que toda população pobre e sem vínculos, fosse considerada vadia e, portanto sujeitas a penalidades legais. O que na prática não era possível, pois a vadiagem estava definida no Código Penal e havia um arcabouço constitucional e federal que limitava o campo de atuação e o aprofundamento da Legislação Estadual. Na Bahia, o Código Rural, não passou do papel. O projeto foi alvo de protesto pelos trabalhadores baiano, quanto ainda tramitava na Assembleia Legislativa319. O líder operário Domingos Silva declarava, que o chamado projeto nº 65 feria de modo vigoroso não apenas as liberdades e garantias constitucionais dos trabalhadores, mas também as de suas famílias. Por fim, o capitão da Guarda Nacional Domingos, consignava que a finalidade da Assembleia que convocara era a de usar os “meios legais 317 Revista Agrícola nº 27 de 15/02/1906. A praga dos Incêndios. pp 253 e 254. Revista Agrícola nº 19 de 15/10/1905. Código Rural, Capítulo XVI, p. 170. 319 CASTELLUCCI, Aldrin. A experiência da escravidão e a constituição de uma identidade operária na Bahia da Primeira República. In: XXIV Simpósio Nacional de História, São Leopoldo. Comunicação. São Leopoldo: ANPUH, 15 a 20 jul. 2007. O autor faz uma análise sobre a repercussão do projeto do Código Rural na Bahia. Apontando que, o mesmo foi alvo de vários protestos, sendo o mais importante deles realizado em 25 de maio de 1893, quando o operário da construção civil Domingos Francisco da Silva fez uma convocação dirigida à classe operária baiana para uma reunião às 11 horas da manhã de domingo, 28 de maio, na sede do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, com o objetivo de protestar contra o Projeto de Código Rural, o qual tramitava na Assembleia Legislativa do Estado. 318 129 e pacíficos” que lhes eram garantidos para exigir que os “patrióticos” deputados baianos fizessem desaparecer o referido projeto. 320 Em suas palavras, o operário afirmava que, “sob o pretexto de “repressão da vagabundagem” e de “proteção à lavoura”, o que se pretendia era impor um regime de “disfarçada escravidão dos fracos sob o jugo dos fortes”. 321 Para o historiador Aldrin Castellucci, o principal receio desses operários era a restrição a sua autonomia. O Projeto de Código Rural dava motivos para que parte significativa da classe operária baiana temesse uma tentativa de re-escravização, principalmente se considerarmos que ela era fundamentalmente formada por um enorme contingente de negros e mestiços nascidos na vigência do regime escravista, derrubado há apenas cinco anos. 322 O projeto estabelecia que todo trabalhador, urbano ou rural, deveria portar uma “papeleta” na qual deveriam constar seus dados e referências patronais. O cidadão que fosse encontrado nas ruas sem a devida “papeleta” deveria pagar multa e na falta de recurso, poderia ser detido e forçado ao trabalho de comuna por até 30 dias. Tais dispositivos desagradavam em muitos aspectos os trabalhadores baianos, motivando-os a se posicionarem contra a aprovação do projeto. 323 Aldrin Castellucci, acredita que o projeto do Código Rural baiano, seja um desdobramento dos trabalhos de uma comissão formada por ato do então Governador Manoel Victorino Pereira (1854-1903), em 21 de fevereiro de 1890, que tinha por objetivos declarados “estudar e apresentar projetos de um código e polícia rurais e de uma legislação florestal e de terras” 324. Walter Fraga aponta que em outubro de 1890, o periódico baiano Jornal de Notícias, comemorava a conclusão do Código Rural, que prestaria um grande beneficio aos lavradores, atuando como “remédio” para a suposta vadiagem do trabalhador rural, principalmente os egressos da escravidão. 325 O projeto do Código Rural surgiu num contexto de crise, onde a principal finalidade era ao menos acalmar os ânimos dos proprietários rurais. Em Sergipe a imprensa, principalmente a Revista Agrícola, veiculava as exigências dos proprietários 320 Jornal de Notícias, Salvador, 26 mai. 1893, p. 2. Apud, CASTELLUCCI, 2007, p. 1. Ibid, 2007, p. 2. 322 Ibid, 2007. p 2. 323 Ibid., 2007. p 3. 324 APEB, Seção Republicana, Documentos da Secretaria de Governo, Caixa 1760, Doc. 1753 (Atos de 1890), p. 14. Os membros da comissão eram os seguintes: Desembargador Thomaz Garcez Paranhos Montenegro, Dr. José Marcelino de Souza, Dr. José Gonçalves da Silva, Dr. Francisco Muniz Barreto de Aragão e Dr. Antônio de Cerqueira Lima. Apud, CASTELLUCCI, 2007. p 4. 325 FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, 2006, pp. 158-159. 321 130 rurais em favor da edição do Código Rural, Aldrin Castellucci assinala que o mesmo aconteceu na Bahia, O Jornal de Notícias publicou um editorial no qual lhe fazia elogios ao governo por estarem elaborando um “código rural” por meio do qual prestaria “grande serviço aos lavradores”, já que por meio dele a “ordem” no trabalho seria mantida e a “indolência” seria combatida. Segundo o editorial, o “código rural” seria uma “força modificadora” dos “vícios de herança” e dos “defeitos de educação” que pesavam sobre os trabalhadores 326 brasileiros . Mas, para esse autor, o caráter explosivo da situação política, a complexidade do tema e o amplo e contraditório conjunto de interesses envolvidos tornaram impossível a execução do projeto na Bahia. De todo modo, o que é importante assinalar é que a simples apresentação de um documento com tal conteúdo e a reação operária imediatamente organizada contra ele, é significativa para analisarmos o pensamento das elites baianas e como a experiência da escravidão marcou profundamente os trabalhadores e o próprio processo de constituição da identidade operária. 327 Em Sergipe, o Código Rural conseguiu ser estabelecido quase duas décadas depois de sua projeção na Bahia. As viagens entre esses dois territórios e a presença de vários estudantes sergipanos, filhos de importantes proprietários rurais, talvez tenha permitido e inspirado os membros da Sociedade Sergipana de Agricultura a participarem das discursões sobre a formulação do Código Rural na Bahia. Em Sergipe não encontramos documentos que comprovem oposição ao código por parte de trabalhadores, o que inferimos ser em função da tardia formação de uma classe operária sergipana organizada em sindicados, visto que a industrialização do Estado ocorreu somente nas décadas iniciais do século XX. Depois da edição do Código Rural, houve arrefecimento na campanha pela “organização do trabalho”, por parte dos integrantes da Sociedade Sergipana de Agricultura, porém, ela não foi suprimida. Nos relatórios de alguns delegados do Estado podemos observar as dificuldades por parte das autoridades públicas em fazerem vigorar a lei, principalmente no tocante à vadiagem. Consta no relatório do delegado regional de Laranjeiras: É verdade que naquela vila encontram-se algumas pessoas desocupadas, como costuma existir nessas localidades do interior do Estado. Entretanto não 326 327 Jornal de Notícias, Salvador, 11 out. 1890, p. 1. Apud, CASTELLUCCI, 2007. p. 4. Ibid. 2007. p 4. 131 encontrei nenhuma que por seu procedimento se tornasse perigosa à sociedade. (...) São apenas pessoas que não tendo trabalho constante e certo, ora estão ocupadas ora vadiando. As famílias residentes na Vila não se 328 queixam de nenhuma alteração da ordem. O delegado prossegue expondo que também não encontrou casa de jogos e, portanto, não existiam jogadores profissionais na Vila. Tendo procurado dois dos principais proprietários rurais da localidade, coronel Adolpho Rollemberg do Escurial e coronel Felisberto do Belém, o delegado ouviu deles as mesmas queixas sobre a falta de trabalhadores. Nas palavras dos coronéis: “existem muitas pessoas que ficam em suas casas em vez de ir trabalhar, quando não fazem questão de salário”. 329 Na visão do delegado, bem diferente das dos Coronéis, o que os proprietários rurais desejam era que o povo se entregasse com mais ardor ao trabalho, o que de fato não acontecia. Muitos optavam por meios alternativos de garantirem sua subsistência sem precisarem dos trabalhos da lavoura, nem por isso, o delegado, como se observa em suas palavras, poderia os classificar como vadios, visto que exerciam alguma atividade, mas, em favor próprio. Nas conclusões do delegado podemos ver claramente a ambiguidade das leis coercitivas no tocante a sua aplicação: Mas para ser executada semelhante medida (trabalho compulsório), seria preciso que em cada termo existisse uma grande força policial a percorrer diariamente as casas das pessoas que vivessem desse trabalho (caça e pesca), para, as encontrando algum em casa a preguiçar, obrigá-los a seguir para o trabalho (da lavoura). Poderia ser isto? Por outro lado não creio muito em grande preguiça do povo, devido à facilidade que eles encontram para sua subsistência, como lhes informaram algumas pessoas do Estado. Não me consta, por exemplo, que em nenhum engenho grande ou pequeno daquele 330 termo, deixassem de moer devido à falta de trabalhadores. O que fica evidente nas palavras do delegado é que, em muitos casos essa população livre considerada ociosa, ao dedicar-se a outras atividades para além dos trabalhos da lavoura, estava constantemente desafiando a ordem social. Também eram esses desafios que davam sentido às lutas políticas dos trabalhadores para conquistarem o direito à liberdade nos seus próprios termos. Após a abolição, para os libertos, antes de qualquer coisa, em termos ideais, o mundo do trabalho livre representava: liberdade de escolha; ausência de coerção para o trabalho; capacidade de mobilidade dos trabalhadores; impessoalidade na relação patrão/empregado; mas também oferta de 328 APES, Sp¹ 214. Relatório da Vila de Itaporanga em 30/12/1914. Ibid. Sp¹ 214. 330 Ibid., Sp¹ 214. 329 132 oportunidades de trabalho e possibilidades de acesso a elas por parte dos trabalhadores.···. 4. 1 – Os destinos da liberdade: “a sedução dos nossos pretos”. Não é certo, o trabalhador de Sergipe nos impõe além do preço, serviços feitos com uma enxada estritamente deitada, em ângulo agudíssimo, os quais não afrouxam o terreno e apenas podam o mato, quando não é somente machucado e dolosamente coberto? Não é verdade que a chuva de inverno, o sol ardente do verão, ou simples orvalho das nossas manhãs de primavera, constituem os obstáculos aos nossos serviços dando-nos lavouras doentias, sem rendimentos, e muitas vezes produtos enfezados e sempre 331 depreciados? Como citado na epígrafe, vários eram os questionamentos em torno da crise da lavoura em Sergipe, porém, o principal argumento presente nos artigos publicados na Revista Agrícola era a deficiência da mão-de-obra. Nesse contexto, o segundo ponto debatido constituía a emigração dos trabalhadores livres para regiões mais prósperas do país nos anos posteriores à abolição. A mobilidade espacial de grande parte dos libertos era outro ponto crucial, sempre presente nos discursos das elites sergipanas. Fato que nos instigou a inquirirmos quais os destinos dessa população? Quais os anseios que os moviam? Prevalecia entre os proprietários rurais a visão de que as “populações de cor” prejudicavam a marcha de civilização e progresso que as elites pensavam para os estados brasileiros no limiar da República, então porque o incomodo dessa classe com a saída desses “marginais”? A ênfase na emigração ressaltava os interesses dos agricultores sergipanos em buscar meios de atrair novos braços para a lavoura. Pois, via-se na imigração a solução para os problemas do trabalho. Em relação a outros estados, para os proprietários rurais “era vergonhosa a falta de iniciativa em Sergipe”, 332 apesar dessa peculiaridade não ser exclusiva dessa região. Outras províncias do nordeste, tais como, Bahia e Pernambuco também não receberam grandes levas de imigrantes. O sul do país, no tocante à imigração, apresentava benéfico resultado para a agricultura o que chamava a atenção dos proprietários rurais sergipanos, porém, quase vinte anos após a abolição, para Sergipe, esse não parecia ser o caminho mais viável, pois o mesmo atravessava rígida 331 332 Revista Agrícola nº 8 de 26/04/1905. p 67. Revista Agrícola de nº 5 de 15/03/1905. p 35. 133 dificuldade econômica. Conforme a Revista Agrícola era o exemplo bem sucedido da substituição do trabalho livre ocorrido nos estados do Sul, que deveria inspirar a imigração como solução econômica para Sergipe: Não há, portanto, receio, de como os Estados do Sul, que pela organização do trabalho e larga corrente de imigração sucedeu a superprodução do café, Sergipe contribua para a superprodução do açúcar. Mais isto, que quanto a nós, honra o adiantamento, o progresso e a energia do Sul, envergonha e humilha as instituições dos progressos sergipanos. Trabalhar em obras de construção civil, principalmente grandes obras públicas, como ferrovias, portos, obras de saneamento espalhadas por todo o território nacional, nos seringais da Amazônia, nas lavouras de Café paulistas, nas plantações de Cacau do Sul da Bahia, procurar um lugar no mercado de trabalho urbano das cidades que cresciam nas nascentes indústrias, nas forças armadas e nas policias estaduais, onde estavam protegidos da concorrência dos imigrantes estrangeiros, era algumas das possibilidades ofertadas pelos empregadores e demandas pelos trabalhadores sergipanos. 333 Parte dessa população avistava na emigração uma alternativa mais viável de subsistência ou de melhoria de seu padrão de vida. Nos artigos da Revista Agrícola “Imposto de sangue” e “Venda de Homens”, para os articulistas, a escassez de mão-deobra para o trabalho da lavoura estava acoplado ao aliciamento indiscriminado dos trabalhadores sergipanos para outros estados, como noticiado pelos jornais locais. As elites chegaram a comparar Sergipe a uma “África brasileira”, enfatizando que tais atitudes acarretavam ainda mais prejuízos para as finanças do Estado: Os nossos ilustres colegas do “estado de Sergipe” já tem noticiado nos precisos termos esses fatos revoltantes que há dois anos ocorrem em nosso estado, sem que tenha até agora levantado contra ele o necessário protesto. Aliciar patrícios nossos fazendo antever nas inóspitas plagas do Amazonas, onde são considerados como qualquer mercadoria um eldorado de indizíveis grandezas, explorarem assim a índole aventureira de nossa gente que já pagou com grande número de vidas tão humilhante negócio para nossa civilização, tem sido a especialidade indústria de um português de nome Guilhermino quem tem percorrido o centro do nosso Estado onde atualmente se acha em plena atividade (...) Cumpre mandar o português Guilhermino a outra parte, ou melhor a seu país onde há movimento emigratório favorável ao seu comércio, sem que isso cause ao Estado prejuízos e danos que aqui 334 ocasiona entre nós. 333 334 SUBRINHO, Reordenamento do trabalho, 2004, p 387. Revista Agrícola nº 8 de 1/05/1905. “Venda de Homens”. p. 67 134 Por correspondência, Theodureto Nascimento, recebe do interior do Estado uma carta do proprietário do Engenho Tabuia em Divina Pastora de Francisco Lucindo Prado, denunciando o abuso do aliciador português Guilhermino: Há cerca de dois anos chegou aqui dos seringais da Amazônia um português de nome Guilhermino de tal, arrebanhando certo número de trabalhadores, para ali conduzidos. E agora ei-lo de volta aliciando em larga escala os nossos aventureiros patrícios para uma nova leva aquela inóspita região, para não dizer, açougue humano. E não obstante tendo falecido um grande número dos que tem ido e de sofrerem outros brutais tratamentos e rigorosa escravidão das pessoas que foram consignadas, com raras exceções, com grande êxodo esta preparado para acompanhar a seguir muito breve aquele audaz aliciador. Vê pois V.S quão prejudicial será para nossa lavoura que se resistirá de falta de braços se assim continuar o estado das causas. E com 335 subida estima e consideração subscrevo-me. . Nesses artigos a revista denunciava que a escassez de mão-de-obra, era agravada por consequência do aliciamento de sergipanos, trabalhadores que iam fazer prosperar as riquezas alheias, sendo estes fatores, ainda mais agravados pelo engajamento indiscriminado de homens aptos ao trabalho nas fileiras do Exército. Queremos nos referir a levas e levas de trabalhadores, que aqui têm sido aliciados para o Amazonas, S. Paulo, E. Santo e Bahia, onde muitas vezes são negociados como quaisquer mercadorias e onde por sem trabalho, vão multiplicar a riqueza alheia enquanto nossas fazendas desertas de suas atividades mergulham na ruína nossa desolada lavoura, cada vez mais depauperada e desprotegida. Referimos ainda com o pesadíssimo contingente a que contribuímos para as fileiras do nosso exercito territorial e marítimo, que não satisfeitos com o que espontaneamente lhe damos, aqui não cessa de mandar comissários a engajar gente, facilitando a sensível e já ruinosa 336 despovoação do Estado . Nas estimativas apontadas pelo Jornal Correio de Aracaju, destinando-se a Amazônia ou ao Sul “aproximadamente quinze por cento do provável meio milhão de habitantes que vivem dentro do nosso Estado, demandam anualmente o exterior dele”.337 Para Subrinho, houve uma superestimação do número de emigrantes sergipanos, na ânsia de chamar a atenção das autoridades e da opinião pública para o problema. 338 Do ponto de vista dos proprietários rurais e das elites, o núcleo da questão consistia em que uma forte emigração para outras regiões com o crescimento econômico acelerado além de prejudicar economicamente o Estado, que sofria com a escassez de 335 Revista Agrícola nº 8 de 1/05/1905. “Venda de Homens”. p. 67 Revista Agrícola nº 36 de 15/07/1906. “Imposto de Sangue”. p. 344. 337 BEPD, Jornal Correio de Aracaju, de 19/07/1911. 338 SUBRINHO, Reordenamento do trabalho, 2004, p. 385. 336 135 braços para o trabalho, colocaria dificuldades adicionais no processo de reordenamento do trabalho livre. Para eles, o motivo dessa forte perda dos trabalhadores sergipanos era o espírito aventureiro, desgarrado, inconstante do povo, combinado com os aliciadores de força de trabalho, tal como o português Guilhermino. 339 Para os proprietários rurais a solução seria a utilização da mão-de-obra estrangeira. Assunto que passou a ser discutido como medida plausível, pois, as elites viam no trabalhador europeu uma antítese do indolente trabalhador de cor. Ansiava-se que o trabalhador imigrante reabilitasse o trabalho e que sua atividade não só regenerasse, mas, que imprimisse característica civilizatória ao trabalho. Como mencionado anteriormente, a Sociedade Sergipana de Agricultura tinha em vista a possibilidade da utilização das terras devolutas do Estado para o estímulo à formação de corrente imigratória de estrangeiros. Assim: A melhor forma de aproveitá-las [terras devolutas], é dividi-las em lotes regulares e distribuí-las não aos mesmos ociosos e indolentes antigos habitantes, porém, às imigrantes estrangeiros que podeis introduzir no Estado, na firme crença que assim procedendo tereis marcado na história de 340 Sergipe a mais ilustre página em que se inspirarão as gerações futuras. A discussão em torno da passagem do trabalho escravo para o trabalho livre pautado na substituição por imigrantes europeus, apontados nos argumentos dos integrantes da Revista Agrícola fazem parte da noção de “civilização e progresso” gestado pelas elites brasileiras. Mesmo em áreas em que a imigração não logrou êxito como o caso sergipano, a mão-de-obra livre branca de ascendência europeia era em meio ao caos, a medida mais valorizada pelas elites locais. A Nação estava em jogo e a substituição do escravo pelo trabalhador livre seria menos uma questão de cálculo, prejuízo e lucro, quando não se desejava qualquer tipo de trabalhador livre, mas sim o imigrante, o branco europeu, considerado capaz de garantir a civilização e o progresso do Brasil. 341 A Revista Agrícola redigida pelas elites conservadoras do Estado compactuava com as ideias de Civilização e progresso projetadas nacionalmente, defendendo a imigração estrangeira como solução para a organização do trabalho em Sergipe. 339 Ibid., 1906, p. 344. C.f. CARVALHO, José Murilo de. O teatro das sombras, 1996. p. 301. 341 C.f. AZEVEDO, Célia Maria de. (1987), Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Apud, NEGRO, Antônio Luigi e GOMES, Flavio dos Santos. Além de Senzalas e fábricas: Uma história social do trabalho. Tempo Social, Revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1. p. 221. 340 136 Visando promover essa medida, a revista publicou dois artigos intitulados: “Imigração e Emigração I e II”. 342 Em ambos os artigos defendiam-se a necessidade de povoamento do solo brasileiro, que na visão do articulista, é muito vasto e pouco povoado. A ocupação do solo pelos imigrantes estrangeiros seria feito prioritariamente, via utilização das terras devolutas. Segundo o autor dos artigos, essa era uma solução que o governo republicano havia deixado a cargo dos Estados em função de estarem comprometidos com as questões da política interna e mais preocupados com a situação financeira. O governo da União, a braços periodicamente com as agitações da política interna e preocupados com as dificuldades financeiras a despertar apreensões sobre o credito público, e tantos outros preciosos assuntos q que se tem ligados com preciosas atenção esqueceu que não devia abandonar tão meticuloso e grave problema, intimamente preso, aos interesses imediatos da Nação. Dai, entregando pelo pacto federal, todas as terras devolutas ao domínio dos Estados, entregando-os na posse delas, ficasse firmado que os Estados mais intimamente, ficasse a pertencer à resolução da espécie, que a eles o primordial e mais saliente papel na obra final da imigração que se reduz ao povoamento do solo (...) se assim somos levados a crer, em face da disposição de quase imobilidade da União em tudo que se diz respeito ao 343 movimento imigratório, pertencem aos estados o dever de agirem. Desse modo, para os proprietários rurais, Sergipe não poderia permanecer imóvel ao movimento de incentivo à imigração, que mesmo antes da abolição, como é o caso da região Sul do Brasil, foi utilizado como alternativa para a substituição da mãode-obra escrava. Para o caso de Sergipe, a propaganda do Estado deveria ser estimulada, como recurso, tendendo a atrair os imigrantes estrangeiros, como ressalta a revista: Sergipe não pode, portanto, permanecer quedo, em face da agitação que vai pondo em movimento todos os outros Estados. Promover os meios de imigração e com ela estabelecer a colonização ampliando-a o mais possível, até onde possa comportar os recursos do Estado, tal é o fim. Fazer lá fora nos países estrangeiros à propaganda, dando conhecimento da natureza dos nossos terrenos, da uberdade deles, da variedade dos nossos produtos, da amenidade do nosso clima, da riqueza do nosso solo, da facilidade das nossas comunicações, da simplicidade dos nossos hábitos e costumes, da candura da nossa índole, (grifo nosso) do grão do nosso adiantamento, do estado de prosperidade que se acham todos os estrangeiros, talvez, sem exceção de um só, que demandaram nosso Estado, franceses, alemães, ingleses, italianos, portugueses, que se dediquem a lavoura, ao comércio ou as indústrias, tais são os meios a empregar e a por em prática. 344 342 Revista Agrícola nº 09 de 13/05/1905 e nº 10 de 01/06/1905. Revista Agrícola nº 09, 1905. p. 70. 344 Ibid., 1905, p. 71. 343 137 O objetivo era divulgar o Estado internacionalmente, propendendo atrair os imigrantes para o trabalho da lavoura. Além das riquezas naturais, a Revista Agrícola, buscou também, ressaltar a qualidade de vida e a ascensão econômica dos imigrantes estrangeiros que já residiam em Sergipe. Grande parte do que era propagado, obviamente era superestimado, pois, embora Sergipe possuísse solo bastante produtivo e clima agradável, certamente não foram alocados no trabalho da lavoura que os estrangeiros que aqui residiam conseguiram consubstanciar suas riquezas. Em sua grande maioria, os estrangeiros que aqui conviviam, estavam empregados no trabalho do comércio e muitos deles já possuíam considerável fortuna, quando vieram para Sergipe, buscando ampliar suas riquezas. Como é o caso dos alemães da família Scharmm, um dos mais importantes comerciantes do Estado. Para Subrinho, os projetos de imigração estrangeira em Sergipe não passaram do papel. Entre os anos de 1872 e 1920, o Estado apresentou uma fração ínfima de migração líquida interna e internacional de estrangeiros. O quadro abaixo ilustra os dados apontados pelo autor: PERÍODO TOTAL 1872-1890 1.536 1890-1900 107 1900-1920 291 TABELA 7 – Migração líquida interna e internacional de estrangeiros em Sergipe FONTE: Graham & Holanda Filho, 1971. p. 34 3 36. Apud SUBRINHO, Reordenamento do trabalho, 2004, p. 400. Segundo Subrinho, estima-se, conforme a tabela, que entre os anos 1872-90 Sergipe apresentou uma pequena emigração líquida de estrangeiros. Nos períodos seguintes, constatou-se uma imigração liquida de estrangeiros, porém, em número muito reduzido. Portanto, do ponto de vista do suprimento de força de trabalho, a imigração de estrangeiros pode ser desconsiderada. 345 Para esse mesmo autor, o crescente discurso em busca de sanar os problemas da escassez de mão-de-obra para as lavouras sergipanas, via imigração estrangeira, havia sido induzida pela propagação das supostas qualidades dos trabalhadores asiáticos, principalmente os chineses, os que mais despertaram o interesse dos proprietários rurais pela constante propaganda veiculada na imprensa local, em que eram ressaltados a docilidade, o afinco e persistência ao trabalho e pequenas exigências quanto aos 345 SUBRINHO, Reordenamento do trabalho, 2004, p. 401. 138 salários. 346 Exaltavam-se as características de brandura e dedicação ao trabalho dessa população, em oposição às dos trabalhadores “de cor”, principalmente aqueles egressos da escravidão. 347 Mas, a preferência pelos imigrantes asiáticos, colocava em pauta outro questionamento, a suposta incompatibilidade dessa imigração para a “civilização”, pois, essa população representava a para as elites, a ideia de inferioridade cultural e incapacidade de se construir uma sociedade civilizada. Conforme artigo da Revista Agrícola, as oportunidades de trabalho em Sergipe estavam abertas principalmente para os imigrantes: “franceses, alemães, ingleses, italianos, portugueses, que se dediquem a lavoura, ao comércio ou as indústrias”,348 ou seja, se por um lado a utilização da imigração asiática era defendida, por outro, a mesma era vista apenas como solução da escassez da mão-de-obra, o que na prática não sanaria as questões relacionadas à “civilidade” dos trabalhadores. Assim, no entender de Subrinho, não obstante a defesa da necessidade da imigração asiática como forma de resolver os problemas de “organização do trabalho”, após a abolição da escravidão, a adoção de algumas medidas legais pela Assembleia Legislativa Estadual estimulando a imigração para Sergipe não conseguiu atrair qualquer corrente imigratória de estrangeiros. Como alardeado pelos membros da Sociedade Sergipana de agricultura, parte desse insucesso na atração de imigrantes foi originada pela concorrência desproporcional em termos financeiros com outras regiões do país, a estagnação econômica reduzia sua capacidade de concorrer com outras economias regionais na atração e contratação de imigrantes estrangeiros. 349 Subrinho ainda enfatiza que de certa forma foi à realidade palpável da emigração dos sergipanos para outros Estados que, como vimos, tornou-se o tormento dos proprietários rurais para quem não bastasse o golpe da abolição, que os destituiu de suas “propriedades humanas”, o aliciamento indiscriminado dos trabalhadores havia se transformado num golpe fatal tanto para a lavoura quanto para a economia sergipana. Esses motivos acabaram empurrando essa questão para o centro dos debates e fez praticamente desaparecerem as propostas de imigração estrangeira. 350 346 Sobre a propaganda em incentivo a imigração em Sergipe ver os seguintes jornais: O dia, “Imigração Chinesa” em 20/12/1892, “Imigração Japonesa” em 04/01/1895; Gazeta de Sergipe, “Imigração Chinesa” em 12/11/1892, “Inércia” em 05/02/1893 e “A lavoura e a Imigração” em 19/02/1893. 347 Ibid., 2004, p. 403. 348 Revista Agrícola nº 09, 1905. p. 70. 349 SUBRINHO, Reordenamento do trabalho, 2004, p. 405. 350 Ibid., 2004, p. 405. 139 4. 2 - A situação Agrícola em Sergipe: notas sobre o Questionário Agrícola na Região do Cotinguiba. Negociar coletivamente com os libertos parece à luz das fontes citadas anteriormente, ter sido uma situação para quais os ex-senhores se mostravam profundamente despreparados. Mas, esbracejavam a partir dos seus interesses, soluções para o problema da agricultura sergipana. Buscando avaliar a real situação dessa crise, lançamos o olhar sobre outras fontes, que nos permitissem avaliar a situação agrícola em Sergipe, mais especificamente no Cotinguiba. Utilizamos para essa finalidade, os dados do Questionário Agrícola referente à Sergipe, entre os anos de 1910 a 1912, respectivo aos onze municípios que compõem essa região. Como reiterava o diretor de serviços e inspeção agrícola, Dias Martins, o objetivo do questionário aplicado a nível nacional era de: “conhecer melhor a nossa agricultura, como a tudo que lhe diz respeito, a fim de habilitarmos com informações verídicas sobre a situação agrícola do país, tão mal julgadas e tão pouco conhecidas”.351 Buscavam conhecer as terras, as aguas, as aéreas cultivadas e incultas, as culturas e as colheitas, os animais e as pastagens, as construções e os maquinários, os veículos e os transportes, o sistema de trabalho e os salários, as receitas e as despesas. A aplicação do questionário foi iniciativa do Ministério da Agricultura, Comércio e Indústria, a fim de defender os interesses da agricultura do Brasil e em Sergipe foi aplicado em (trinta e quatro) municípios. 352 O questionário era composto de (trinta e nove) perguntas e um espaço em aberto para notas, que versavam sobre assuntos variados, tais como: as produções agrícolas, condições de trabalho naturais e climáticas, condições de transportes, créditos agrícola, escolas, alimentação, salários e etc. Buscando melhor avaliar a situação agrícola do Cotinguiba, reduzimos as perguntas desse questionário para (onze) questões e um quadro de notas, a fim de visualizarmos entre esses dados às condições agrícolas e de trabalho em Sergipe nos anos posteriores a abolição. 351 IHGS, Acervo Sergipano nº 3690. Questionário sobre a situação agrícola dos municípios. Estado de Sergipe. Tipografia dos serviços de estatísticas, Rio de Janeiro, 1913. p. 3. 352 Ibid. 140 MODELO QUESTIONÁRIO APLICADO NESSE ESTUDO 1. AGRICULTORES: Condições econômica Agricultores impostos: Agricultores a maior queixa: Agricultores estrangeiros: 2. COOPERATIVAS: 3. ESTRADAS E PONTES: 4. EXPORTAÇÃO E IMPORTAÇÃO: 5. ESCOLAS: 6. FÁBRICAS: 7. INSTRUMENTOS AGRÍCOLAS: 8. OPEROSIDADE DA POPULAÇÃO: 9. SISTEMAS DE TRABALHO DE PESSOAL AGRÍCOLA: 10. SALÁRIOS: Trabalhador rural: Administrador de fazenda: Escrivães de fazenda: Cozinheiro: Carpinteiro: Lavadeira: 11. TRANSPORTES: Notas TABELA 8 – Questionário agrícola – Cotinguiba. 1910 a 1912. FONTE: IHGS Acervo Sergipano nº 3690. Questionário sobre a situação agrícola dos municípios. Estado de Sergipe. 1910 a 1912. Com base nos dados do questionário referente à Região do Cotinguiba podemos ter dois referencias de observação. Em um primeiro momento, buscamos avaliar a situação agrícola dividido e cinco itens: 1, situação agrícola e a principal queixa dos proprietários rurais do Cotinguiba; 2, a situação dos transporte para produções agrícolas; 3, os principais itens de exportação e importação; 4, quais os instrumentos agrícolas eram utilizados; 5, a operosidade de trabalho da população. Os dados apresentados foram os seguintes: 141 SITUAÇÃO AGRÍCOLA E DE TRABALHO DO COTINGUIBA (1910-1912) Municípios Situação Agrícola Transportes Exportação e importação Instrumentos agrícolas Aracaju Precária F. de mão-de-obra e crédito agrícola Regular Ruins Exp.: Açúcar, Farinha, algodão. Imp. Tecidos, ferragens e alimentos Enxadas, machados e foices. Péssimos Ruins Enxadas, machados, foices e arados. Enxadas, machados, foices e arados. Laboriosos Japaratuba Precária F. de mão-de-obra e crédito agrícola Regular Enxadas, machados, foices e arados. Há muitos desocupados. Laranjeiras Péssima Ruins Enxadas, machados, foices e arados. Há muitos desocupados. Maruim Precária F. de mão-de-obra e crédito agrícola Precária F. de mão-de-obra e crédito agrícola Precária F. de mão-de-obra e crédito agrícola Regular Ruins Exp.: açúcar, farinha e algodão Imp.: tecidos, ferragens e alimentos. Exp.: açúcar, algodão, aguardente e cereais. Imp.: alimentos Exp. Farinha, algodão, açúcar e cerais. Imp.: Ferragens. Exp.: açúcar, farinha, algodão e aguardente e sal. Imp.: tecidos, ferragens e miudezas. Exp.: Açúcar, farinha e algodão. Imp.: tecidos e ferragens. Enxadas, machados, foices e arados. Há muitos desocupados. Enxadas, machados e foices. Há muitos desocupados. Enxadas, machados, foices e arados. Há muitos desocupados. Péssimos Enxadas, machados, foices e arados. Enxadas, machados, foices e arados. Laboriosos Precária F. de mão-de-obra e crédito agrícola Precária F. de mão-de-obra e crédito agrícola Exp.: açúcar, aguardente, algodão e farinha. Imp.: tecidos, ferragens e miudezas Exp.: açúcar, aguardente, algodão e farinha. Imp.: tecidos e ferragens. Exp.: açúcar, farinha e algodão. Imp.: alimentos e miudezas. Não consta Exp.: Coco. Imp. Tecidos, miudezas e ferragens. Enxadas, machados e foices. Há muitos desocupados. Capela Divina pastora Riachuelo Rosário Siriri Socorro Santo Amaro Ruins Ruins Ruins Péssimos Péssimos OPEROSIDAD E DA POPULAÇÃO: Há muitos desocupados. Há muitos desocupados. Há muitos desocupados. TABELA 9 - Situação agrícola e de trabalho do Cotinguiba (1910-1912). FONTE: IHGS Acervo Sergipano nº 3690. Questionário sobre a situação agrícola dos municípios. Estado de Sergipe. Região do Cotinguiba. Aplicados em Aracaju – 1 de Junho de 1910; Capela – 23 de outubro de 1912; Divina Pastora – 3 de janeiro de 1912; Japaratuba – 23 de outubro de 1912; Laranjeiras – 12 de fevereiro de 1912; Maruim – 12 de dezembro de 1911; Riachuelo – 3 de novembro de 1911; Rosário – 16 de fevereiro de 1912; Siriri – 27 de outubro de 1912; Socorro – 29 de janeiro de 1912; Santo Amaro – 20 de dezembro de 1912. Esses dados, se confrontados com a operosidade de trabalho da população, somente os três municípios que apresentaram situação agrícola favorável, responderam que a sua população era laboriosa. É importante o cruzamento desses dados, pois, nos discursos apresentados pelos proprietários rurais, os prejuízos da agricultura eram provenientes da falta de mão-de-obra. Forjando-se a imagem de que era a ociosidade do trabalhador livre, que de fato trazia prejuízos para a agricultura. Outro ponto importante a observar é que mesmo em situações agrícolas precárias, somente (dois) desses municípios, Santo Amaro e Socorro (o qual não constava os dados, o que talvez não signifique que esse município não era agroexportador), nos demais entre os itens de exportação, o açúcar era predominante, 142 seguido da farinha de mandioca e do algodão. Dado que demonstra que mesmo, em meio à crise esses agricultores garantiram a produção do açúcar, produto que demandava bastante trabalho em sua produção. Então com que mão-de-obra era produzidos tais culturas? Se realmente havia falta de braços para lavoura, com porque esses municípios, mesmo em meio à crise não deixaram de produzir e exportar? Não seria talvez o discurso de falta de mão-de-obra apenas retórica das classes elitistas para submeter os trabalhadores livres ao trabalho compulsório? Nos itens de importação, predominavam a importação de gêneros alimentícios, tecidos e ferragens. O alto índice de importação de gêneros alimentícios se explica por ser essa região voltada a produção agroexportadora, onde caracteristicamente a produção de alimento de subsistência era feita em escala menor. Com isso, acreditamos que pequenas “roças” cultivadas pelos libertos após a abolição se tornavam fonte bastante rentável, o que permitia a essa população acúmulo de pecúlio, além do provimento de sua subsistência. E em alguns outros municípios, a importação de miudezas, o que acreditamos ser para comercialização, visto que muitos desses municípios possuíam mercados e feiras. Referente aos transportes e aos instrumentos agrícolas, no primeiro era unanimidade que os transportes em Sergipe era precários. Tanto marítimo, dificultado pelos altos preços das embarcações que faziam o escoamento do açúcar e dos produtos de exportação, 353 quanto o terrestre, com estradas mal curadas e pontes destruídas; em relação a estradas de ferros havia uma em construção, ligando Timbó a Própria, mas, que até esse momento não apresentava benefícios para os agricultores sergipanos. Quanto aos instrumentos agrícolas, era predominante o uso das Enxadas, machados e foices, com exceção de alguns municípios que também já adotavam o uso dos arados para facilitar os trabalhos da lavoura. Entretanto, esses instrumentos ainda eram bastante rudimentar, o que reforçava a ideia dos membros da Sociedade Sergipana de Agricultura que era preciso modernizar os instrumentos agrícolas.354 Com base nos dado da tabela, inferimos que as respostas fornecidas pelos proprietários agrícolas sergipanos no questionário agrícola de 1910, refletem em suma, os mesmos discursos presentes nos artigos da Revista Agrícola, onde a precariedade dos transportes, a falta de braços para o trabalho e a ausência de créditos agrícolas, consistia na trilogia que sufocava e arruinava ainda mais o agricultor sergipano. 353 354 Sobre a questão do transporte em Sergipe ver a Revista Agrícola de nº 33 de 25/05/1906. p. 313. Ibid. 143 Em Sergipe, instalado pela mais urgente e inadiável solução: não temos um metro sequer de Estrada de ferro e somos o único Estado do Brasil que isso acontece (...).Não temos braços para o trabalho, o que além de insuficiente, é caro, irregular e indisciplinado, de modo que só um pouco de imigração para estimulo do trabalhador nacional, poderá melhorar a nossa gravíssima situação nesse particular (...). Não temos credito agrícola, o Banco do Estado, criado à custa do mais patriótico esforço do governo do Estado. Subscritor de quase todo capital, alias insuficiente, não resolveu absolutamente a 355 questão. Em um segundo momento, usamos o Questionário Agrícola, para também avaliarmos as principais atividades laborais dessa região e as faixas salariais pagas pelos proprietários rurais aos seus funcionários. Os salários eram pagos de (três) formas: diário, mensal e anual; as funções eram reguladas de (quatro) formas: Jornal, Meação, Contratos e Salários. Entre as atividades citadas constam: trabalhadores rurais, administradores de fazenda, escrivães de fazenda, carpinteiro, cozinheiro e lavadeira. FAIXA DE SALÁRIOS PAGOS NA REGIÃO DO COTINGUIBA (1901-1912) Municípios Aracaju Capela Divina pastora Trabalhador Administrador Escrivães rural de fazenda fazenda 1$000 a 1$500 d.i * 1$000 a 1$200 dia 1$000 dia Não há. de Cozinheiro Carpinteiro Lavadeira Não há. 4$000 d.i 15$000 mês 100$00 mês** Não há. 3$000 dia 6$000 a 10$00 mês 6$000 a 10$00 mês 6$000 mês 60$00 mês Não há. 2$500 a 3$000 dia Japaratuba 1$500 dia 100$00 mês Não há. 3$000 dia Laranjeiras 1$000 dia Não há. 3$000 dia Maruim Não há. 3$000 dia Riachuelo 1$000 a 1$200 dia 1$000 dia 30$00 a 60$00 mês 60$00 mês Não há. Rosário 1$000 dia Não há. 2$500 a 3$000 dia 2$500 dia Siriri 1$000 a 1$500 dia 1$000 dia 1$000 dia 30$00 a 60$00 mês 30$00 a 60$00 mês 30$00 a 50$00 mês 1:000$00 ano*** 50$00 mês Não há. Não há. Não há. Socorro Santo Amaro 8$000 mês 10$00 a 15$00 mês 8$000 a 12$00 mês 10$00 mês 10$00 mês 8$000 mês 10$00 a 15$00 mês 10$00 mês 8$000 mês 10$00 mês 8$000 mês 2$500 dia 8$000 mês 8$000 mês 3$000 dia 3$000 dia 10$00 mês 10$00 mês 6$000 mês 6$000 mês 8$000 mês TABELA 10 – Faixa de salários pagos na Região do Cotinguiba (1910-1912). FONTE: IHGS Acervo Sergipano nº 3690. Questionário sobre a situação agrícola dos municípios. Estado de Sergipe. Região do Cotinguiba. Como podemos observar na tabela, convertendo todos os dados em valores mensais, os menores salários eram pagos aos carpinteiros que ganhavam 6$000 a 15$00 355 Revista Agrícola nº 33 de 25/05/1906. p. 313. 144 contos de réis e as lavadeiras que recebiam entre 6$000 a 10$00 contos de réis mensais, variando de forma equilibrada os valores pagos a esses trabalhadores em todos os municípios da Região do Cotinguiba. Dentre os salários pagos nesse território o que mais causa surpresa é a profissão de cozinheiro, que se somados as variantes diárias de 2$500 a 4$000 contos de reis a valores mensais, respectivamente teríamos uma variação entre 75$00 a 120$00 contos de réis mensais, soma bastante alta, se comparados a outras profissões tais como, os administradores de fazendas que recebiam cerca de 30$00 a 100$00 contos de réis mensais, que a nosso ver eram profissionais mais valorizados que os cozinheiros, visto que em sua maioria essa função era exercida por ex-escravos ou “pessoas de cor”. Se compararmos os valores pagos à profissão de cozinheiro aos valores salarias que os trabalhadores rurais recebiam, cerca de 30$00 a 45$00 contos de réis mensais, constatamos que os trabalhadores rurais ganhavam apenas ½ dos salários mensais pagos aos cozinheiros. Diante desses valores, ficamos a indagar, quais os motivos que levavam a esse grupo de trabalhadores obterem vantagens salariais acima dos trabalhadores rurais, forças propulsoras da economia agrícola e até mesmo dos administradores de fazendas? Talvez sirva para tentarmos entender esses dados, as memórias de d. Sinhá, quando no momento da abolição viu-se a beira do desespero sem suas cozinheiras que já não queria empregar-se. 356 Quiçá, a abolição tenha propiciado que os cozinheiros (as), que aqui preferimos opinar que em sua grande maioria essa atividade era exercida por mulheres, tenham preferido dedicar-se as suas próprias famílias, que anteriormente eram colocadas em segundo plano nos cuidados domésticos por causa de sua condição de cativa, ou até mesmo por rejeição de seus conjugues que cientes dos maus costumes dos seus antigos senhores em violentarem sexualmente as escravas domesticas, preferiam mesmo com a possibilidade de bons ganhos, manter longe dos ex-senhores suas esposas. Se por questões, sociais, culturais ou familiares às cozinheiras já não mais queria servir suas antigas sinhás, a apreciação dessa fonte além de nos revelar os valores correspondentes às faixas salarias pagas aos trabalhadores da Região do Cotinguiba, nos permitiu analisar as possibilidades de acúmulos de pecúlios e de riquezas por parte das “populações de cor” em Sergipe. 356 Ver, ALBUQUERQUE, Memórias de Dona Sinhá, 2005. pp 133. 145 As observações realizadas ao longo desse capítulo, feita através de fontes oficiais e em muitos casos, produzidos pelas elites, nos permitiu acessar o mundo das relações entre essas classes antagônicas, onde em muitos aspectos as “populações de cor” representavam os alvos de insatisfação dos discursos produzidos. Porém, nas entrelinhas ou através do “filtro” do olhar do senhor, podemos perceber como e de que forma essas populações livres e libertas atuaram como protagonistas de suas próprias histórias, agindo como bem definiu Thompson, sujeitos históricos em constante movimento e participantes ativos de experiências sócias tecidas numa vasta rede de relações pessoais de dominação e exploração. 357 357 Conferir: THOMPSON, E. P. Tradición, Revuelta y Consciencia de classe. Estudios sobre la crisis de la sociedad preinsdutrial. Barcelona: Editora Crítica, 1979. Pp. 13-71. 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nas décadas posteriores a abolição do trabalho escravo, o debate em torno da igualdade de cidadania dos libertos, esteve muitas vezes subjugada aos interesses das elites sergipanas. Passado as algazarras das comemorações, as lembranças do ato da liberdade em Sergipe se transformaram em pequenas notas nas seções de jornais locais. Para a sociedade sergipana, a Lei Áurea já tinha cumprido todo papel perante a população cativa. Nos anos iniciais da República, as preocupações giravam em torno das dificuldades econômicas e a necessidade de reorganização do trabalho livre, principais reclamações das classes elitistas. Onde estão os anúncios sobre os esforços governamentais na tentativa de garantir a equidade social? Qual a seção que fala da regulamentação do trabalho visando garantir também maiores benefícios aos trabalhadores? Os debates em torno do ressarcimento com terras? Certamente esses anúncios não foram publicados, porque não estavam na pauta das discussões dos proprietários rurais, priorizavam-se os interesses das classes dominantes sergipanas. Na Revista Agrícola os debates centrais giravam em torno da economia, da agricultura, dos ressarcimentos dos senhores, da punição da vadiagem, da organização do trabalho, da restrição da liberdade dos ex-escravos e etc. Ou seja, prevalecia o favorecimento das elites rurais que se sentiam usurpados pelas perdas de suas “propriedades”. Com a promulgação da Lei Áurea esse sentimento de prejuízo por parte dos ex-senhores se agravaram. É fato, que desde as vésperas da abolição, já se discutia os rumos da consolidação do Brasil como Nação, a extinção da escravidão se intensificaram nesse contexto, as conjunturas desse embate foram cruciais para definir os rumos da abolição no Brasil. Desse modo, este trabalho buscou demonstrar os reflexos da liberdade na sociedade sergipana num momento marcado por tensões e os conflitos gerados, principalmente, após a abolição da escravidão. Procuramos adentrar o universo das relações entre ex-escravos e ex-senhores, diante de uma nova realidade, a igualdade de cidadania. Como foi possível perceber, os conceitos de liberdade foram vista e vivenciadas de forma completamente discrepantes entre essas classes e as relações de dominação e poder considerada sobre um novo ângulo. Se para os libertos, a abolição representava o poder de escolha sobre os rumos de suas vidas e poder optar por maior autonomia, principalmente, em relação ao trabalho, 147 para os ex-senhores, a liberdade representava desordem e ruína. Para estes, a liberdade deveria estar pautada na continuidade das antigas relações do cativeiro, ou seja, tutelada. Nesse contexto, os artigos da Revista Agrícola dizem muito. As narrativas cunhadas nos artigos revelam os significados da liberdade para as elites sergipanas e evidenciam as alterações na dinâmica das relações entre proprietários rurais e trabalhadores livres. Nas páginas desse periódico, muitas linhas foram escritas buscando satisfazer a ambição dos ex-senhores, muitos ainda impulsionados pelo desejo de exercerem o domínio sobre as vidas dos seus trabalhadores. As constantes discussões por causa da urgência na “organização do trabalho” em torno da escassez da mão-deobra representavam o anseio dos ex-senhores em poder delimitar a autonomia dos libertos em suas trajetórias. Dessa forma, a revista desempenhou um papel estratégico para as classes elitistas, pois, era através da repercussão de seus artigos, que as classes dominantes conseguiam pressionar as autoridades governamentais a adotarem medidas que os beneficiasse. Os libertos na contravenção dos interesses dos proprietários rurais, procuraram exercer constantemente seu direito de autonomia, caçando, pescando, coletando frutos, provendo sua subsistência, resistindo a não trabalharem nos árduos serviços da lavoura. Muitas vezes tirando proveito dos desentendimentos entre fazendeiros vizinhos, negociando com outros patrões melhores pagamentos e condições de trabalho. Resistindo a deixar limitar-se, migrando para outras regiões do país em ascensão econômica, mostrando que ao contrário do que se propagava que os libertos eram incapazes de gerirem suas próprias vidas, a realidade era que, a abolição significava para os egressos da escravidão a possibilidade de direcionarem suas vidas em um único caminho: rumo cada vez mais à liberdade. 148 REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS ARQUIVOS E FONTES ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SERGIPE A¹ 01. Atas do Imperial Instituto Sergipano de Agricultura. AG1, Cx 05 – Relatório do Presidente Olympio M. do Campo Vital em 13 de Julho de 1888. AG¹, pac 285 e 416. Sessão Agricultura. Sociedade Sergipana de Agricultura. AG1, vol. 818. Matricula de escravos 1873 – diretoria geral de estatística AG1, vol. 818. Relatório do Ministério dos Negócios do Império 1875 e 1887. Coleção de Leis e Decretos de Sergipe 1904/1905. Cx, 05 vol. 05. Relatórios do Vice-Presidente da Província Dr. José Joaquim Pereira Lobo ao passar a administração do Estado de Sergipe ao presidente eleito Dr. Martinho César da Silveira Garcez em 1896. Cx 05, vol. 09. Chefe de policia interino Antônio Victor de Sá Barreto ao coronel Manoel P. Oliveira Valadão. Em 20 de agosto de 1895. Cx 09 v 05. Relatório apresentado ao Presidente Dr. José Rodrigues da Costa Dórea pelo bacharel João Maynard chefe de polícia. 21/10/1910 Fundo CM¹, vol. 43. Oficio do presidente da Câmara, Agostinho José Ribeiro Guimarães, ao Barão de Maruim, Laranjeiras, 05 de Novembro de 1855. Fundo: SP¹, pacotilha 08. Ofício do delegado de Capela, Ângelo Pereira de Andrade, ao chefe de polícia da província de Sergipe, em 9 de outubro de 1877. Fundo: SP¹, pacotilha: 705. Ofício do 1º suplente do delegado de polícia de Capela, Antônio Pereira Resende, ao chefe de polícia da província de Sergipe, em 4 de janeiro de 1872. Leis e Decreto, Cx 07– Regulamento da Força Pública. Imprensa Oficial, 1896. Capítulo II, art. 5, § 2. p. 4. Leis e Decreto, Cx 07. Regulamentos da Força Pública. Imprensa Oficial, 1891 a 1906. Leis e decretos, Cg 07. Código Rural de 1905, p. 79. Leis, Decretos e Regulamentos do Estado de Sergipe. Volume III 1894-1896. 149 Memorandum apresentado ao Presidente do Estado de Sergipe Josino de Meneses em Aracaju 21 de novembro de 1902 Sp1 – Auto de denúncia Cx 491. Sp1 – Correspondência Recebida - Cx 05, vol. 10. Sp1 – correspondência recebida cx 05 v 10 Sp1 – correspondência recebida cx 475 Sp1 - Correspondência Recebida, pac. 491. Sp1 – cx 214 – Relatório da Vila de Itaporanga 30/12/1914 Sp¹ 214. Relatório da Vila de Itaporanga em 30/12/1914. Sp1, Auto de denúncia, cx 491. Sp1, Correspondência recebida, cx 475. Sp9 volume 12. Auto de Perguntas. 1898. Sp9, pacotilhas, 05, 12, 15 e 16 – Processos crimes e auto de denúncias. ARQUIVO JUDICIÁRIO DO ESTADO DE SERGIPE Cx 14. Inventários do Município de Laranjeiras 1880 – 1910. Inventários do Município de Riachuelo 1880 – 1910. Inventários do Município de Santos Amaro1880 – 1910. Inventários do Município Rosário 1880 – 1910. ARQUIVO ECLESIÁSTICO DE SERGIPE – CÚRIA METROPOLITANA DE ARACAJU Acervo da Cúria Metropolitana de Aracaju. Cd – 004 – 36/37. Registros de batizados, casamentos e óbitos do Cotinguiba de 1800-1910. 150 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA Seção Republicana, Documentos da Secretaria de Governo, Caixa 1760, doc. 1753 (Atos de 1890). BIBLIOTECA PÚBLICA NACIONAL Gazeta de Notícias, de 15/05/1888. O libertador 14/12/1882. O Progresso de 20/10/1895. O Republicano de 12/03/1891. O Republicano de 28/06/1890. 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