Parecer SMMP PPL 77-XII _Alteração do CPP

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Parecer SMMP PPL 77-XII _Alteração do CPP
PARECER DO SMMP
RELATIVO À PROPOSTA DE LEI N.º 77/XII
DE ALTERAÇÃO DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
1. Introdução
Aprovou o Governo uma Proposta de Lei que visa alterar pontualmente o Código de Processo
Penal, com vista à adequação entre, por um lado, a necessidade de eficácia no combate ao crime e
defesa da sociedade, e, por outro, a garantia dos direitos de defesa do arguido.
As modificações propostas incidem sobre:
1. o regime dos autos e da transcrição;
2. o regime das notificações do despacho de arquivamento quando o inquérito correu termos
contra pessoa não determinada;
3. o regime das notificações do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, do
assistente e das partes civis;
4. o regime das perícias;
5. o âmbito do poder jurisdicional na aplicação de medidas de coacção durante o inquérito;
6. o regime da extinção da medida de coacção de termo de identidade e residência;
7. a suspensão provisória do processo: para crimes dolosos puníveis com pena acessória de
proibição de conduzir veículos motorizados e no âmbito do processo sumário;
8. a possibilidade de, salvaguardados os direitos de defesa do arguido, designadamente o
direito ao silêncio, as declarações que o arguido presta nas fases preliminares do processo
serem susceptíveis de utilização na fase de julgamento (com alterações ao nível dos
direitos e deveres do arguido e do formalismo dos interrogatórios de arguido perante
autoridade judiciária);
9. a possibilidade de leitura/reprodução e valoração em julgamento das declarações que as
testemunhas prestaram nas fases preliminares do processo (com alterações ao nível do
formalismo das inquirições);
10. o regime da admissão de novas provas durante o julgamento;
11. o regime do processo sumário e a competência do tribunal colectivo;
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12. o regime dos recursos (incluindo o momento em que é proferido o despacho de
recebimento e a admissibilidade de interposição de recursos para o Supremo Tribunal de
Justiça).
O SMMP constata com agrado que alguns dos reparos e sugestões que fez aos anteprojectos
mereceram a atenção do Ministério da Justiça.
Faremos a análise e comentário pontuais da Proposta de Lei, propondo, sempre que tal se afigure
necessário e pertinente, outras alterações.
2. Do registo e transcrição dos autos – artigos 99.º e 101.º
a. Proposta
Na Proposta de Lei ora apresentada, altera-se o regime respeitante ao registo e transcrição dos
autos, designadamente os que contenham a produção de prova declarativa – do arguido ou das
testemunhas –, com a nova redacção dada ao artigo 99.º, n.º 3, alínea c), e à quase totalidade do
artigo 101.º.
Quanto ao artigo 99.º, n.º 3, alínea c), a redacção proposta é a seguinte (a parte nova é a que está
a negrito):
Descrição especificada das operações praticadas, da intervenção de cada um dos participantes
processuais, das declarações prestadas, do modo como o foram e das circunstâncias em que o
foram, incluindo, quando houver lugar a registo áudio ou áudio visual, à consignação do início e
termo de cada declaração, dos documentos apresentados ou recebidos e dos resultados
alcançados, de modo a garantir a genuína expressão da ocorrência;
São mais substanciais as alterações ao artigo 101.º:
1 - O funcionário referido no n.º 1 do artigo anterior pode redigir o auto utilizando os meios
estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como, nos casos
legalmente previstos, proceder à gravação áudio ou áudio visual da tomada de declarações e
decisões verbalmente proferidas.
2 - Quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros meios técnicos
diferentes da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido faz a transcrição no prazo
mais curto possível, devendo a entidade que presidiu ao ato certificar-se da conformidade da
transcrição, antes da assinatura.
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3 - [Anterior n.º 4].
4 - Sempre que for utilizado registo áudio ou áudio vídeo não há lugar a transcrição e o
funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo
máximo de quarenta e oito horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem
como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior.
5 - Em caso de recurso, quando for absolutamente indispensável para a boa decisão da causa, o
relator, por despacho fundamentado, pode solicitar ao tribunal recorrido a transcrição de toda ou
parte da sentença.
O n.º 1 parece limitar o registo das declarações por gravação áudio ou áudio visual aos casos
legalmente previstos. Tais casos, após esta alteração legislativa, serão, quanto às declarações, o
primeiro interrogatório judicial do arguido (artigo 141.º, n.º 7), os interrogatórios do arguido
perante o Ministério Público ou órgãos de polícia criminal durante o inquérito (artigo 144.º, n.ºs 1
e 2), a reconstituição do facto (artigo 150.º, n.º 2), as diligências de instrução (artigo 296.º, n.º 1),
as declarações para memória futura (artigo 371.º, n.º 6) e as declarações prestadas em audiência
de discussão e julgamento (artigo 364.º, n.º 1). Ficam de fora, assim, as inquirições de testemunhas
ou tomada de declarações aos assistentes durante o inquérito (o artigo 138.º não o prevê). Quanto
às decisões verbalmente proferidas, serão todos os despachos proferidos durante os actos (artigo
96.º, n.º 4) e todas as sentenças em processo sumário e abreviado (artigos 389.º-A, n.º 1, e 391.ºF).
No n.º 2 a única diferença reside na introdução da expressão “meios técnicos” por referência aos
meios diferentes da escrita comum (ou outros meios técnicos diferentes da escrita comum).
O n.º 4 determina agora que quando for utilizado registo áudio ou áudio vídeo (o que, nos termos
do n.º 1, só é possível para o registo das declarações e decisões) não há lugar a transcrição e o
funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo
máximo de quarenta e oito horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem
como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior.
O n.º 5 estabelece que, em caso de recurso, quando for absolutamente indispensável para a boa
decisão da causa, o relator, por despacho fundamentado, pode solicitar ao tribunal recorrido a
transcrição de toda ou parte da sentença.
b. Apreciação
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b.1. Concorda-se com o fomento da utilização da gravação áudio e áudio-visual das declarações
prestadas, que parte da concepção de base de sedimentação e ampliação conformativa do
Princípio da Oralidade, na sua conjugação com a proposta leitura/reprodução em audiência de
julgamento das declarações prestadas pelo arguido e por testemunhas nas fases anteriores do
processo.
No entanto, cabe recordar que são hoje manifestamente insuficientes (em termos quantitativos e
qualitativos) os meios técnicos adequados à gravação das diligências de inquérito,
designadamente nos serviços do Ministério Público (poucos são aqueles em que tais meios
técnicos se encontram disponíveis) e nas instalações dos órgãos de polícia criminal, para além da
inadequação, em muitos casos, das próprias instalações físicas para a sua instalação, problemas
que apenas poderão ser resolvidos mediante investimento público.
b.2. No que diz respeito ao concreto regime processual proposto, merecem séria reserva os
seguintes aspectos:
a) a impossibilidade de, durante o inquérito, proceder ao registo das declarações das
testemunhas por gravação áudio ou áudio visual;
b) a proibição absoluta de proceder à transcrição das declarações do arguido durante o
inquérito;
c) a proibição de proceder à transcrição de todas as decisões que forem proferidas
verbalmente.
Vejamos com detalhe.
b.2.a. Impossibilidade de, durante o inquérito, proceder ao registo das declarações das
testemunhas por gravação áudio ou áudio visual
Ainda que não pretendamos a criação da obrigatoriedade de, durante o inquérito, se proceder ao
registo áudio ou áudio visual das declarações das testemunhas (por sabermos que não existem
condições práticas para tal), entendemos que a lei não deve impedir que tal se faça. Em verdade,
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se existirem (ou quando existirem) condições técnicas para tal, não há razões para que tal não se
faça.
Note-se ainda que o proposto artigo 356.º, n.º 4, prevê a possibilidade de reprodução das
declarações antes prestadas perante autoridade judiciária, o que naturalmente só será possível se
antes forem registadas.
b2.b. Proibição absoluta de proceder à transcrição das declarações do arguido durante o
inquérito e de proceder à transcrição de todas as decisões que forem proferidas verbalmente.
O SMMP discorda totalmente de tal proibição.
Em primeiro lugar, note-se que o artigo 99.º, n.º 1, continuará a determinar que o auto é “o
instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais
a cuja documentação a lei obrigar (…) bem como a recolher as declarações (…) e actos decisórios
orais que tiverem ocorrido perante aquele”.
Refere a exposição de motivos que “a documentação através de meios técnicos, traduz-se em
ganhos substanciais para a investigação, uma vez que sem a mediação que implica a redução a
escrito das declarações, não só se economiza tempo aos agentes da investigação, como se potencia
a fidedignidade do que foi dito”. No entanto, e mesmo nesta acepção, a formulação e
concretização normativa da intenção legislativa parece-nos desadequada.
Com efeito, sendo meritória para a fidedignidade da produção da prova declarativa, em geral, não
corresponde à verdade que a exclusiva documentação através de meios técnicos se traduza em
ganhos substanciais para a investigação, economizando tempo aos seus agentes. Ainda que no
momento da realização da diligência assim seja, não o é se olharmos para o processo na sua
globalidade e para o tempo que órgãos de polícia criminal, magistrados do Ministério Público e
juízes nele vão despender até que o mesmo seja dado como findo.
Durante o inquérito, são proferidos inúmeros despachos que obrigam a uma análise e ponderação
cautelosa da prova entretanto recolhida, mormente quanto ao seu sentido e alcance, cuja análise
exclusiva através da audição/visualização de uma gravação implica um gasto de tempo
consideravelmente superior ao da percepção da palavra escrita. Atento o volume processual que é
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cometido diariamente ao magistrado, concatenado com as diligências em que tem de estar
presente, tornar-se-ia em muitos casos difícil a audição de todos os interrogatórios dos arguidos
(muitos efectuados perante entidade diversa, os órgãos de polícia criminal ou o próprio juiz de
instrução, durante longas horas, ainda que o seu resultado – as declarações do arguido – muitas
vezes se traduza numa ou duas páginas) a fim de formular um despacho, frustrando-se assim a
intenção de celeridade processual imanente à exposição de motivos: a audição dos interrogatórios
demorará tanto tempo quanto os mesmos demoraram, enquanto a leitura do auto com as
declarações poderá ser feita em minutos.
Mesmo já na fase de julgamento, será muito difícil a juízes, magistrados do Ministério Público e
advogados terem presente tudo aquilo que, durante o inquérito ou instrução, os arguidos
declararam, o que, face ao que agora se propõe para permitir a leitura/reprodução dessas
declarações, será muito importante. Na prática, cada um deles acabaria por ter de fazer súmula do
gravado em cada acto.
Daí que, durante o inquérito e a instrução, nos casos em que for utilizado registo áudio ou áudio
vídeo das declarações, deverá ser lavrado no auto respectivo uma súmula das mesmas, acto este
que em si mesmo não contende com a celeridade, aproveitando-se para este efeito o regime
constante do n.º 2 do artigo 100.º do Código de Processo Penal.
Mais difícil de aceitar é o que se prevê para a não transcrição das decisões orais. Estas, como
enunciamos, podem ser as sentenças em processo sumário e abreviado (artigos 389.º-A, n.º 1, e
391.º-F), mas também todos os despachos proferidos durante os actos (artigo 96.º, n.º 4).
Quanto às primeiras, nenhum se problema se levanta pois a lei expressamente já prevê que o
dispositivo fique a constar da acta. Ou seja, há uma norma especial que afasta a geral em termos
satisfatórios (do dispositivo consta tudo o que é necessário para os posteriores termos do
processo).
Porém, quanto às demais decisões – que podem ser as mais variadas1, desde a aplicação de
qualquer medida de coacção (o artigo 194.º não tem qualquer norma sobre a forma escrita da
1
É impossível elencar todos os tipos de despacho que podem ser proferidos pelo Ministério Público ou pelo juiz durante um
acto.
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decisão ou a sua inclusão na acta) até à admissibilidade de meios de prova em julgamento (artigo
340.º) – não há qualquer norma especial, pelo que delas nada ficará a constar dos autos.
Não esquecemos que o artigo 96.º, n.º 4, continuará a dispor que os despachos e sentenças
proferidos oralmente são consignados em auto. Porém, o novo 101.º, n.º 4, será norma especial
(para os casos em que o registo do despacho ou sentença foi feito com gravação áudio ou áudio
visual) em relação a esta, pelo que prevalecerá. Essa norma não oferece, pois, solução para o
problema.
Não parece desejável, nem terá sido essa a intenção do governo (que, talvez, tenha pensado
apenas nas sentenças), que os despachos não fiquem a constar dos autos: os processos tornar-seão sequências de actos e termos ininteligíveis, a não ser que, a cada momento, se proceda à
reprodução de todos as gravações que o mesmo integra, o que é absurdo. Pelo menos a parte
decisória dos despachos deverá constar sempre do auto.
c. Proposta SMMP
Nestes termos, o SMMP entende que o artigo 101.º proposto deverá ser alterado, a fim de
esclarecer o seu sentido e alcance e obviar às questões práticas acima formuladas, no sentido
seguinte:
1 - O funcionário referido no n.º 1 do artigo anterior pode redigir o auto utilizando os meios
estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como proceder à
gravação áudio ou áudio visual da tomada de declarações e decisões verbalmente proferidas.
2 - Quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros meios técnicos
diferentes da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido faz a transcrição no prazo
mais curto possível, devendo a entidade que presidiu ao ato certificar-se da conformidade da
transcrição, antes da assinatura.
3 - [Anterior n.º 4].
4 - Sempre que for utilizado registo áudio ou áudio vídeo, não há lugar a transcrição das
declarações, excepto no inquérito e na instrução, em que deverá ser feita súmula das mesmas, nos
termos do n.º 2 do artigo anterior; o funcionário entrega, no prazo máximo de quarenta e oito
horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso,
procede ao envio de cópia ao tribunal superior
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5 - Em caso de recurso, quando for absolutamente indispensável para a boa decisão da causa, o
relator, por despacho fundamentado, pode solicitar ao tribunal recorrido a transcrição de toda ou
parte da sentença.
3. O regime das notificações do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, do
assistente e das partes civis – artigo 145.º
a. Proposta
Propõe o Governo alterar o artigo 145.º nos seguintes termos:
Artigo 145.º
[…]
1-
[…].
2-
[…].
3-
[…].
4-
[…].
5Para os efeitos de serem notificados por via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo
113.º, o denunciante com a faculdade de se constituir assistente, o assistente e as partes civis indicam a sua
residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.
6A indicação de local para efeitos de notificação, nos termos do número anterior, é acompanhada da
advertência de que as posteriores notificações serão feitas para a morada indicada no número anterior, excepto se
for comunicada outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os
autos se encontrem a correr nesse momento.
Tal alteração significará que, em moldes semelhantes ao que sucede com os arguidos, também os
denunciantes com a faculdade de se constituírem assistentes, os assistentes e as partes civis terão
de indicar uma morada onde passarão a ser notificados por via postal simples.
b. Apreciação
O SMMP concorda em absoluto com esta alteração.
Em verdade, tais sujeitos processuais têm um particular interesse no célere desenvolvimento do
processo, pelo que lhes é exigível que mantenham a sua morada actualizada no processo e que,
assim, possam presumir-se notificados com a mera prova de depósito da carta na sua caixa postal.
Se tal é possível para os arguidos, por maioria de razão também o deverá ser para estes sujeitos
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processuais. Só com a responsabilização de todos os sujeitos processuais é possível ter um
processo penal mais célere e eficiente.
4. O regime da notificação do despacho de arquivamento ao denunciante quando o inquérito não
correu termos contra pessoa determinada – artigo 113.º
a. Proposta
Propõe o Governo a introdução de um novo número no artigo 113.º, determinando que:
Ressalva-se do disposto nos n.ºs 3 e 4 as notificações por via postal simples a que alude a alínea d) do n.º 4 do
artigo 277.º, que são expedidas sem prova de depósito, devendo o funcionário lavrar uma cota no processo com
a indicação da data de expedição e considerando-se a notificação efetuada no 5.º dia útil posterior à data de
expedição.
b. Apreciação
O SMMP nada tem a opor ao proposto.
Efectivamente, quando o inquérito não correu termos contra pessoa determinada é menor o grau
de certeza que se tem de ter quanto à notificação do denunciante. Após tais notificações,
raramente é praticado qualquer acto pelo denunciante, nomeadamente abertura de instrução ou
reclamação hierárquica. Muitas das vezes, nesses casos a denúncia só foi apresentada para
obtenção de um elemento de prova a apresentar junto de uma companhia de seguros.
Quando a actual redacção do artigo 277.º, n.º 3, foi introduzida em 1998, o legislador terá tido
intenção semelhante. Se assim não fosse, e prevendo já as alíneas a) e c) do n.º 3 do artigo 277.º a
notificação do denunciante por via postal simples, a alínea d) seria absolutamente redundante e
por isso desnecessária. No entanto, não tendo explicitado a forma concreta como esta notificação
mais simples seria feita, a notificação por via postal simples acabou por ser idêntica às demais, ou
seja, exigindo prova de depósito – artigo 113.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Até à alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15.XII (complementada pela
Portaria 1178-A/200, de 15.XII), na notificação por via postal simples não existia qualquer tipo de
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prova de recepção ou de entrega, ou seja, qualquer documento a preencher pelo distribuidor
postal e a devolver às secretarias judiciais. Assim, quando este diploma transformou a notificação
por via postal simples numa notificação com prova de depósito, a notificação por via postal simples
que estava prevista no artigo 277.º, n.º 3, alínea d), para os casos em que o inquérito não correu
termos contra pessoa determinada, que se pretendia mais simples, acabou por ter de assumir igual
formalismo.
Recorde-se que estão nessas circunstâncias cerca de 40% dos inquéritos findos anualmente, ou
seja, cerca de 220 mil. A alteração ora proposta permitirá uma substancial redução com os custos
dessas notificações (a cerca de um décimo do custo actual) e uma considerável libertação de meios
humanos.
5. Regime das perícias – artigos 154.º a 156.º, 172.º e 269.º
a. Proposta
Resulta da Exposição de Motivos que o Governo pretende introduzidar regras que impõem a
delimitação do objecto da perícia, a formulação de quesitos e a obrigação de transmissão de toda a
informação relevante, bem como a sua actualização superveniente, sempre que eventuais
alterações processuais modifiquem a pertinência do pedido, com isso visando a otimização da
resposta por parte das entidades encarregues das perícias.
As alterações propostas são as seguintes:
Artigo 154º
Despacho que ordena a perícia
1 - A perícia é ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho da autoridade judiciária contendo a
indicação do objecto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder, bem como a indicação da
instituição, laboratório ou o nome dos peritos que realizarão a perícia.
2 - A autoridade judiciária deve transmitir à instituição, ao laboratório ou aos peritos, consoante os casos, toda a
informação relevante à realização da perícia, bem como a sua atualização superveniente, sempre que eventuais
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alterações processuais modifiquem a pertinência do pedido ou o objeto da perícia, aplicando-se neste último caso o
disposto no número anterior quanto à formulação de quesitos.
3 - [Anterior n.º 2].
4 - [Anterior n.º 3].
5 - [Anterior n.º 4]
Artigo 155.º
[…]
1 - […].
2 - […].
3 - Se o consultor técnico for designado após a realização da perícia, pode, salvo no caso previsto na alínea a) do n.º
5 do artigo anterior, tomar conhecimento do relatório.
4 - […].
Artigo 156º
[…]
1 - (…)
2 - (…)
3 - Se os peritos carecerem de quaisquer diligências ou esclarecimentos, requerem que essas diligências se
pratiquem ou esses esclarecimentos lhes sejam fornecidos, podendo, com essa finalidade, ter acesso a quaisquer
atos ou documentos do processo.
4 - Sempre que o despacho que ordena a perícia não contiver os elementos a que alude o n.º 1 do artigo 154.º, os
peritos devem obrigatoriamente requerer as diligências ou esclarecimentos, que devem ser praticadas ou
fornecidos, consoante os casos, no prazo máximo de 5 dias.
5 - [Anterior n.º 4].
6 - As perícias referidas no n.º 3 do artigo 154.º são realizadas por médico ou outra pessoa legalmente autorizada e
não podem criar perigo para a saúde do visado.
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b. Apreciação
b.1. Antes de mais, importa lembrar que a perícia configura um meio de prova, que terá lugar
sempre que a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos,
científicos ou artísticos, de acordo com a formulação do artigo 151.º do Código de Processo Penal,
o que implica em processo penal um valor acrescido na sua valoração, pois que o juízo técnico,
científico ou artístico inerente à referida prova se presume subtraído à livre apreciação do julgador
– artigo 163.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Em relação a este meio de prova, a prática judiciária não tem evidenciado com especial
pertinência problemas de maior na aplicação do regime processual vigente.
b.2. Artigo 154.º
Ainda assim, propõe o Governo, em primeiro lugar, uma alteração aos requisitos do despacho que
ordena a perícia, com a proposta de novos números 1 e 2 do artigo 154.º do Código de Processo
Penal. Diversamente do que se encontra consagrado no actual regime, exige-se agora no proposto
n.º 1 do artigo 154.º uma indicação do objecto da perícia e dos quesitos, suprimindo-se a
possibilidade de indicação de objecto sumário da perícia (curiosamente, igualmente se suprime a
exigência de, caso fosse possível, ser indicada a data e hora da sua realização, pese embora se
mantenha a exigência de notificação com antecedência prévia mínima de 3 dias, atenta a não
alteração do n.º 3 do referido preceito legal, passando apenas a ser o n.º 4 do artigo proposto).
Nesta parte, as alterações propostas são de pormenor e não alteram substancialmente o regime
actual, sendo que, por regra, nos despachos que ordenam perícias em processo penal, são sempre
indicados os quesitos a responder, pelo que é entendimento do SMMP que inexiste qualquer
necessidade prática de proceder a alterações ao regime actual, designadamente quanto aos
requisitos do despacho que ordena a perícia.
Por outro lado, impõe-se uma obrigação para a autoridade judiciária competente que ordenar a
perícia de transmitir ao perito, lato sensu, toda a informação relevante à realização da perícia.
Assim, propõem-se alterações às regras de produção da prova pericial, designadamente ao teor do
despacho que ordena a sua realização, em sentido que, na prática forense, era já aplicado.
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b.3. Artigo 155.º
Há apenas a correcção decorrente da alteração de numeração do artigo 154.º
b.4. Artigo 156.º
Neste artigo, propõe-se a alteração do n.º 3 e a introdução de um novo número 4 (a alteração ao
n.º 6 é apenas a correcção decorrente da alteração de numeração do artigo 154.º).
b.4.1. Quanto ao número 3, a alteração traduz-se na substituição da frase “para tanto lhes
podendo ser mostrados quaisquer actos ou documentos do processo” pela frase “podendo, com
essa finalidade, ter acesso a quaisquer atos ou documentos do processo”. A mudança de texto
não é grande, mas tem grande significado. Actualmente, o titular do processo (magistrado do
Ministério Público ou juiz, consoante as fases) pode mostrar aos peritos quaisquer actos ou
documentos do processo que julgue necessários ao esclarecimento destes; com a alteração
proposta, os peritos passaram a ter o direito de acesso a quaisquer actos ou documentos do
processo que julguem necessários ao seu esclarecimento.
Parece-nos manifesto que esta proposta não pode vingar. A decisão de permissão de acesso ao
processo terá de ser sempre do seu titular, nunca de qualquer perito. Se assim não for, poderá o
perito ter acesso integral ao processo, aceder a dados em segredo de justiça ou de outra natureza
(v.g., bancário ou de telecomunicações), mesmo que completamente irrelevantes para o objecto
da perícia de que ficou encarregado. Os peritos só devem ter acesso aos dados do processo
estritamente necessários à realização da perícia e isso deve ser determinado pela autoridade
judiciária que ordena a perícia.
O SMMP recusa, pois, esta proposta, defendendo que o artigo 156.º, n.º 3, se deve manter como
está.
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b.4.2. O número 4 tem uma redacção dúbia, podendo ser interpretado no sentido de que, sempre
que o despacho que ordena a perícia não contiver os elementos a que alude o n.º 1 do artigo 154.º:
- os peritos, no prazo máximo de 5 dias, devem obrigatoriamente requerer as diligências
ou esclarecimentos que devem ser praticadas ou fornecidos;
- os peritos devem obrigatoriamente requerer as diligências ou esclarecimentos, devendo
a autoridade que ordenou a perícia praticar essas diligências ou fornecer essas
informações no prazo máximo de 5 dias.
No primeiro sentido, concordamos com a intenção da norma, pois obviará a que, depois de
ordenada a perícia, a mesma fique “parada” durante largo tempo e, mais tarde, quando o perito
lhe “pega”, constata que faltam elementos, elementos esses que poderiam ter sido solicitados
antes.
No segundo, ainda que compreendamos a intenção do Governo de aumentar a celeridade na
conclusão das perícias, a proposta em causa pouco mais é do que uma declaração de intenções. Em
verdade, tal prazo, naturalmente apenas ordenador, poderá ser impossível de cumprir. Se se tratar
de uma informação que já consta dos autos, não haverá qualquer problema em fornecê-la em 5
dias; porém, se se tratar de ordenar uma qualquer diligência cujo resultado seja necessário para a
realização da perícia – pense-se, v.g., na necessidade de realizar exames médicos complementares
de especialidade nos hospitais (radiografia, ecografia, TAC, análises sanguíneas).
Nestes termos, há que clarificar a redacção da norma em análise.
O problema na demora na conclusão das perícias está essencialmente na carência de meios
técnicos e/ou humanos. Quanto a isso, não é necessário alterar qualquer lei, mas apenas fazer o
necessário investimento.
Significativamente, não são alterados os prazos para entrega do relatório previstos no artigo 157.º,
n.º 3.
6. O âmbito do poder jurisdicional na aplicação de medidas de coacção durante o inquérito – artigo
194.º
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a. Proposta
Alterando o regime consagrado na reforma de 2007, pretende o Governo modificar o artigo 194.º
do Código de Processo Penal de modo a que, durante o inquérito, o juiz de instrução possa aplicar
medida de coacção mais grave, quanto à sua natureza, medida ou modalidade de execução, do que
a requerida pelo Ministério Público, mas apenas com fundamento nas alíneas a) e c) do artigo 204;
se o fundamento for o da alínea b), o juiz de instrução já não pode aplicar medida de coacção
diversa, quanto à sua natureza, medida ou modalidade de execução, da requerida pelo Ministério
Público.
b. Apreciação
b.1. Quanto a esta proposta, o SMMP defende que, sendo o Ministério Público o órgão titular do
exercício da acção penal e a autoridade judiciária competente para o inquérito, nos termos da
previsão constante do artigo 219.º da Lei Fundamental, e tendo o nosso processo penal estrutura
acusatória, igualmente consagrada nessa lei, é, durante o inquérito, tal órgão que se encontra em
melhor posição para ponderar, no estrito cumprimento da legalidade democrática, qual a medida
de coacção mais gravosa aplicável em concreto em função das exigências processuais de natureza
cautelar cometidas ao caso concreto, não devendo tal caber ao juiz de instrução.
Mesmo antes da reforma de 2007, que introduziu o princípio que agora se pretende alterar, era já
posição defendida por grande parte da nossa doutrina que, durante o inquérito, o juiz de instrução
tinha natureza monofuncional – como juiz de garantia dos direitos do visado pela investigação e de
controlo da actividade do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal que o coadjuvam
quando estes usam ou pretendem usar meios de obtenção de prova que de forma mais grave
podem ofender os direitos fundamentais daquele, não tendo nem devendo por isso ter qualquer
interesse nos interesses em conflito, não tomando parte activa na investigação, não dominando o
seu impulso, o seu objecto ou o seu resultado – e assim não poderia aplicar medida de coacção
mais gravosa do que a requerida pelo Ministério Público. Assim o defendiam, por exemplo,
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Figueiredo Dias, Costa Andrade, Germano Marques da Silva, Maria João Antunes e Paulo Dá
Mesquita.
Na Proposta de Lei em apreço, quer-se alterar este paradigma no sentido de, quando esteja em
causa a necessidade de salvaguardar as exigências cautelares referentes aos perigos de fuga, de
continuação da actividade delitual ou de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas,
ceda o princípio de vinculação do juiz de instrução à medida de coacção proposta pelo Ministério
Público, como limite inultrapassável para a escolha da concreta medida de coacção aplicável em
concreto.
A proposta apresentada para a alteração do paradigma referido é justificada, de acordo com a
exposição de motivos, pela circunstância de se considerar que, em tais casos, o Ministério Público
não detém posição de privilégio quanto à ponderação e necessidade de protecção de tais valores,
visando as medidas de coacção finalidades de natureza pública.
Porém, e de forma incoerente com o princípio que a proposta defende, continua a manter-se no
n.º 1 deste artigo 194.º a norma que determina que, durante o inquérito, o juiz de instrução só
aplica medidas de coacção quando o Ministério Público o requer. Os fundamentos (alíneas a) e c)
do artigo 204.º) são tão importantes para o interesse público que justificam que se contamine a
imparcialidade do juiz de instrução com a obrigação de ser o principal garante desses interesses,
mas continua a impedir-se o juiz de instrução de aplicar oficiosamente qualquer medida de
coacção, ficando sempre na dependência do impulso do Ministério Público. No mínimo,
contraditório.
No mesmo sentido, questiona-se: como se pode atribuir ao juiz de instrução a tutela do interesse
público quando estão em causa os perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa ou de
grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas e permitir-se que o mesmo continue
vinculado aos factos que o Ministério Público entende deverem ser imputados ao arguido e às
provas que sustentam essa imputação (cfr. artigo 141.º, n.º 1 e n.º 4, alíneas c) e d))? Poderá o juiz
de instrução imputar ao arguido factos que o Ministério Público não imputa? Ou seja, passará o juiz
de instrução a ter o poder de conformar o objecto do inquérito?
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Entendemos, pois, que se está a abrir a porta à subversão da estrutura acusatória do processo e
à direcção do inquérito pelo Ministério Público.
Sendo que, no quadro actual de definição constitucional da magistratura do Ministério Público, lhe
incumbe, em primeira linha, a protecção dos interesses cautelares existentes no processo (da
vítima e de toda a sociedade), bem como a direcção do inquérito criminal e, tendo em conta as
suas atribuições legais, maxime no que diz respeito à observância do princípio da legalidade, não se
vislumbra qualquer necessidade de operar a referida alteração, pois que a limitação actualmente
existente não provém de qualquer posição de privilégio do Ministério Público, mas sim da
consagração legal do seu estatuto enquanto magistratura autónoma, nas vertentes acima
referidas, e, essencialmente, de um sistema acusatório em que o papel do juiz de instrução é de tal
forma importante que este não pode nunca perder a sua imparcialidade. O juiz não pode, ao
mesmo tempo, representar o interesse público na repressão e prevenção criminal e ser um
terceiro imparcial, pois são interesses incompatíveis.
Por outro lado, a limitação actualmente existente não pode ser considerada como uma preterição
da independência e capacidade de decisão do juiz de instrução (como se pode intuir do teor da
alteração proposta), pois que a este incumbe, e muito bem, o papel de defensor de direitos,
liberdades e garantias constitucional e legalmente protegidos, mas não qualquer papel de direcção
da investigação criminal, a qual incumbe ao Ministério Público, no quadro acima exposto.
b.2. Tendo em conta a manutenção do princípio da vinculação nos casos em que se esteja perante
necessidades cautelares referentes aos perigos de perturbação do inquérito (alínea b) do artigo
204.º) ou quanto à aplicação de medidas de garantia patrimonial, existe pelo menos alguma lógica
sistemática na proposta apresentada, salvaguardando-se ao mínimo a posição do Ministério
Público nas vertentes acima assinaladas.
b.3. Diga-se, ainda, que o SMMP verifica, com agrado, que na redacção proposta para a norma
contida no n.º 3 do artigo 194.º se esclarece, de forma exemplar, o sentido e alcance da limitação
ao pedido do Ministério Público, ao referir-se que o juiz não pode aplicar medida de coacção
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diversa, quanto à sua natureza, medida ou modalidade de execução, esclarecimento este que
cessará com as divergências interpretativas na aplicação, designadamente, das medidas de coacção
previstas nos artigos 198.º, 199.º e 200.º do Código de Processo Penal.
7. O regime da extinção da medida de coacção de termo de identidade e residência – artigos 196.º
e 214.º
a. Proposta
A Proposta de Lei pretende alterar o regime da extinção da medida de coacção de termo de
identidade e residência de modo a que, em caso de condenação, tal só suceda com a extinção da
pena. Por um lado, tal ficará expresso no artigo 214.º, n.º 1, alínea d); por outro, obrigar-se-á no
artigo 196.º a que o arguido disso seja alertado.
b. Apreciação
Há muito que o SMMP defende esta alteração, pelo que a mesma tem a sua concordância.
O que acontece hoje é que, com o trânsito em julgado, mesmo se a sentença é condenatória, se
extinguem todas as medidas de coacção, inclusivamente o termo de identidade e residência. Se há
razões para tal suceder quanto às demais medidas de coacção (pois a partir do trânsito caberá às
penas aplicadas atingir a generalidade dos objectivos que as medidas de coacção visavam
acautelar, como, por exemplo, a protecção da vítima, impedindo a continuação da actividade
criminosa), o mesmo não sucede com o termo de identidade e residência, pois o conteúdo de tal
medida tem âmbito e finalidades exclusivamente processuais:
obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição
dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado;
obrigação de comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado, caso
mude de residência ou dela se ausente por mais de cinco dias;
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notificação por via postal simples para a morada que indicar;
representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o
dever de estar presente.
Ora, em caso de condenação, o processo continuará para execução da pena e pelo menos até que
esta seja declarada extinta. Assim sendo, devem permanecer para o arguido os mesmos deveres
que tinha até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.
Não é isso que sucede hoje: com o trânsito, cessa o termo de identidade e residência e torna-se
muito difícil notificar os arguidos por via postal das inúmeras decisões que há no âmbito da
execução de penas: não é possível a via postal simples (com mera prova de depósito) e a via postal
registada é normalmente inviável, pois o arguido ou não está em casa e depois não vai ao posto de
correios levantar a carta, ou nem sequer abre a porta ao distribuidor postal. Leva isto a que exista a
necessidade de constantes diligências para apurar o paradeiro dos arguidos (com ofícios para
inúmeras entidades públicas e privadas para tentar descobrir qual a morada do arguido) e, quando
se descobre esta (ou julga-se que assim sucede), se tenha de recorrer às entidades policiais para as
notificações, nisso envolvendo, em todo o país, centenas de indivíduos que poderiam e deveriam
estar a exercer outras funções na prevenção e repressão de crimes. Devido ao facto de não se
conseguir notificar os arguidos, é depois muito difícil ou mesmo impossível executar as penas (v.g.,
penas de multa), levando à sua prescrição e, assim, à completa frustração das suas finalidades.
Concordamos, pois, que, havendo condenação, as obrigações decorrentes do termo de identidade
e residência (alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo 196.º) devem manter-se até à extinção da pena:
parece-nos absolutamente razoável que, não tendo ainda cumprido a pena, o arguido mantenha a
obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela
sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado (pense-se, v.g., na Direcção-Geral
de Reinserção Social, imprescindível quando é aplicado regime de prova), a obrigação de indicar
nova morada, e continue a ser notificado por via postal simples, tal como acontece, aliás, com o
próprio assistente ou denunciante com a faculdade de como tal se constituir.
Parece-nos igualmente positivo que fique expresso que do termo a entregar ao arguido no
momento em que presta essa medida de coacção deva constar que, em caso de condenação, as
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obrigações só cessarão com a extinção da pena, para que ao mesmo não se levantem dúvidas
sobre tais obrigações e suas consequências.
Estas alterações, aparentemente tão simples, permitirão incomensuráveis economias de meios
humanos e financeiros e, essencialmente, eliminarão uma disfunção que, nos casos em que os
arguidos não se encontram em cumprimento de pena de prisão, impedia que muitas penas
atingissem as suas finalidades, ou seja, que os objectivos dos próprios processos fossem realizados.
8. A suspensão provisória do processo2: para crimes dolosos puníveis com pena acessória de
proibição de conduzir veículos motorizados – artigo 281.º
a. Proposta
Mais cirúrgica é a alteração que inviabiliza a opção do Ministério Público pela suspensão
provisória do processo nos casos de crime de condução de veículo em estado de embriaguez –
preferencialmente a serem julgados em processo sumário –, sustentando a opção no seguinte
conjunto de considerandos:
2
Recorda-se aqui que, nas propostas para correcção das principais distorções do processo penal, que apresentou no seu X
Congresso, disponíveis em http://nonocongresso.smmp.pt/wp-content/uploads/2012/03/Processo-Penal-Propostas-SMMP.pdf,
relativamente à suspensão provisória do processo o SMMP defendeu três mudanças:
a. o alargamento da mesma à fase de julgamento no processo comum, até ao início da audiência (pois não se alcança
a razão de ser de a suspensão provisória do processo não ser utilizada com as virtualidades que lhe são reconhecidas
pela doutrina e pela prática forense processual penal, nesse momento. Não são raros os casos em que, após a
acusação ou o despacho de pronúncia, se verifica uma alteração de circunstâncias que passa a justificar a suspensão
provisória do processo);
b. que, na fase de inquérito, passe a ser determinada pelo Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do
Arguido ou do Assistente, sem necessidade de intervenção do juiz de instrução. Salvo melhor opinião, a benefício
de celeridade e até numa correcta perspectivação do papel do juiz de instrução criminal em sede de inquérito (um
verdadeiro juiz das garantias), não se antevê a ratio da necessária obtenção de concordância por parte do Juiz de
Instrução. Com efeito, a suspensão provisória do processo em sede de inquérito deve, originariamente, resultar de
requerimento do Arguido ou do Assistente, ou da iniciativa do Ministério Público. E quem deve ser ouvido acerca de
tal desfecho do inquérito são os directamente interessados nisso: o arguido, o assistente e o próprio titular da acção
penal. Assim que, em caso de acordo entre estes três sujeitos processuais, a remessa ao Juiz de Instrução só teria
sentido numa perspectiva homologatória, se não fosse o Ministério Público o dominus dessa fase processual. Razão
pela qual a intervenção do Juiz de Instrução na tramitação de uma suspensão provisória de processo não devia
existir. Acompanhamos, pois, João Conde Correia, em Concordância judicial à suspensão do processo: equívocos que
persistem, RMP, n.º 117, pp. 43-83.
c. a possibilidade de aplicação quando há concurso de infracções, desde que cada um dos crimes não seja punível
com pena de prisão de máximo superior a cinco anos.
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A condução de veículos em estado de embriaguez constitui um dos factores com maior peso na sinistralidade
rodoviária.
Esta constatação, a par da substituição do regime de notificação para comparecimento em processo sumário pela
manutenção da detenção em flagrante delito até à apresentação do arguido em juízo, justificam que se introduzam
também alterações no regime da suspensão provisória do processo.
A condução sob o feito do álcool é sancionada não apenas com pena de prisão ou multa, mas também com a pena
acessória de inibição de condução, uma vez que o exercício da condução neste contexto se revela especialmente
censurável.
A pena acessória de inibição de condução encontra fundamento material na grave censura que merece o exercício
da condução em certas condições, cumprindo um importante papel relativamente às necessidades quer de
prevenção especial, quer de prevenção geral de intimidação que contribui, em medida significativa, para a
consciência cívica dos condutores.
Importava, assim, alterar o regime vigente, determinando que não pode ter lugar a suspensão provisória do
processo relativamente a crimes dolosos para o qual esteja legalmente prevista a pena acessória de inibição de
conduzir veículos com motor.
A alteração proposta tem a seguinte formulação:
Artigo 281.º
Suspensão provisória do processo
1 - […]:
a) […];
b) […];
c) […],
d) […];
e) Não se tratar de crime doloso para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir
veículos com motor;
f) [Anterior alínea e)];
g) [Anterior alínea f)].
b. Apreciação
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A opção de política criminal assumida pelo Governo e que está subjacente à exclusão da
suspensão provisória do processo nos casos em que está prevista a aplicação de pena acessória
de proibição de conduzir veículos com motor para o crime em causa, mesmo que a pena
aplicável não seja superior a 5 anos de prisão (pequena e média criminalidade), não é uma
opção que seja criticável, antes pelo contrário, embora pareça inaugurar um contraciclo à
expansão do consenso e da oportunidade como solução processual para a criminalidade de
massa, dentro de uma lógica de gestão do escoamento de processos e de concentração de
poderes processuais no Ministério Público para o efeito.
Em termos político-criminais, a opção é pela subtracção ao consenso e oportunidade dos casos
que estão na base ou constituem eles mesmos factores de peso na sinistralidade rodoviária,
como é o caso da condução de veículos em estado de embriaguez, a que se alia a relevância da
pena acessória de proibição de condução como modo de efectivar objectivos de prevenção
especial e de prevenção geral de intimidação.
Nada há a desaprovar quanto a essa opção, que parece ser racional e fundamentada3.
De facto, se necessidades de prevenção geral de intimidação existem, ou mesmo de prevenção
especial consoante os casos, uma suspensão provisória do processo teria sempre que reflectir
nas injunções o juízo de gravidade inerente à conduta, pelo que, na prática, o Ministério Público
se estaria a substituir ao Juiz de julgamento e a aplicar injunções que seriam substancial ou
dissimuladamente penas acessórias, o que é de todo em todo de censurar por suspeitas sérias
de inconstitucionalidade – violação da reserva de função jurisdicional (artigo 202.º, n.º 1 e 2, da
Constituição da República Portuguesa).
Daí também, porventura, a compreensão da prudência em considerar certos limites na opção (?)
pela suspensão provisória do processo em caso de condução de veículos em estado de
embriaguez, que foram ponderados na recente circular da PGR n.º 6/2012, na qual se firmaram
orientações opostas às agora consideradas na proposta do Governo.
3
Por exemplo, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 28-10-2007, relatado pelo Desembargador Anselmo Lopes, no processo n.º
1540/07-2, levou em consideração os aspectos agora salientados na proposta do Governo e relativos à prevenção geral: «não se pode
afirmar que a SPP não possa ser aplicada a situações de crime de condução sob o efeito do álcool, mas a verdade é que isso se antolha
como bastante difícil, pois se trata de crimes que alarmam a sociedade em geral e relativamente aos quais, de facto, se potenciam
elevadas necessidades de prevenção» [a consultar no sítio www.dgsi.pt].
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Há que atentar, porém, a uma alteração que se não justifica de todo e que inverteu o sentido
que a inicial proposta do Governo tinha (aspecto que iremos salientar mais adiante) e que foi
oportuna e positivamente assinalada pelo SMMP.
Dizia a inicial proposta do Governo que:
Artigo 281º
Suspensão provisória do processo
1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente de
prisão, o Ministério Público oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente determina,
com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de
injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Não estar legalmente previsto, para o crime em causa, pena acessória de proibição de condução
de veículos com motor;
A qual estava justificada na seguinte ordem de razões:
A condução de veículos em estado de embriaguez constitui um dos factores com maior peso na
sinistralidade rodoviária.
Esta constatação, a par da substituição do regime de notificação para comparecimento em processo
sumário pela manutenção da detenção em flagrante delito até à apresentação do arguido em juízo,
justificam que se introduzam também alterações no regime da suspensão provisória do processo.
A condução sob o feito do álcool é sancionada não apenas com pena de prisão ou multa, mas também
com a pena acessória de inibição de condução, uma vez que o exercício da condução neste contexto se
revela especialmente censurável.
A pena acessória de inibição de condução encontra fundamento material na grave censura que merece o
exercício da condução em certas condições, cumprindo um importante papel relativamente às
necessidades quer de prevenção especial, quer de prevenção geral de intimidação que contribui, em
medida significativa, para a consciência cívica dos condutores.
A possibilidade legal de suspensão provisória do processo relativamente a este tipo de ilícitos tem
esvaziado de conteúdo útil a função da pena acessória de inibição de condução.
Em caso de suspensão provisória, nenhuma injunção, ou regra de conduta, nem mesmo a obrigação
de não conduzir veículos durante determinado período temporal, pode cumprir essa função, atenta a
impossibilidade prática da sua efetiva fiscalização.
Determina‐se, assim, que sempre que o crime for punível com pena acessória de proibição de
condução de veículos com motor não seja possível a suspensão provisória do processo.
Tanto então, como agora, a forma como a proposta do Governo consagra, na norma em apreço,
essa opção e esses fundamentos, ultrapassa a intenção expressa.
Quer a anterior alínea a) do inicial projecto, quer a actual alínea e) do artigo 281º da Proposta de
Lei de alteração do Código de Processo Penal, não parece ser exclusivamente aplicável ao crime
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de condução de veículos em estado de embriaguez. Também o crime de condução perigosa de
veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º do Código Penal está necessariamente
incluído no âmbito de aplicação da norma, assim como todos os crimes a que se refere o artigo
69.º, n.º 1, alíneas b) e c), desde que puníveis com pena de prisão não superior a 5 anos ou com
sanção diferente de prisão, bem como os crimes de resultado de dano a que alude a proposta de
alteração da alínea a) do nº 1 do artigo 69º do Código Penal, segundo a Proposta de Lei 75/XII.
Não nos parece defensável uma interpretação restritiva que corrija a letra da norma em face da
intenção legislativa, pelo que uma reponderação dos considerandos da exposição de motivos,
neste específico âmbito, se justificaria, tal como defendemos no inicial parecer.
Em todo o caso, com ou sem reponderação, as razões de política criminal subjacentes à opção
legislativa são igualmente válidas tanto para a condução em estado de embriaguez como para os
demais tipos de crime considerados no artigo 69.º do Código Penal.
Em termos jurídico-dogmáticos, a definição por via legislativa da não elegibilidade para
suspensão provisória do processo nos crimes em que à pena principal acresce pena acessória de
proibição de conduzir veículos com motor, corresponde, a nosso ver, a uma opção correcta.
De facto, na suspensão provisória do processo há injunções e não penas, pelo que, mesmo com
a ficção de nome diverso, não faria sentido aplicar uma pena acessória de proibição de conduzir
veículos com motor quando se não pode falar na aplicação ou se não aplica uma pena principal.
Acresce que a inserção dessa «pena» acessória, porventura aplicada em suspensão provisória do
processo (solução muito discutível e que não era justificada suficientemente por quem a seguia)
não era, nem é, passível de inserção no Registo Individual de Condutor (cf. Decreto-Lei n.º
130/2009 de 1 de Junho que altera e republica o Decreto -Lei n.º 317/94, de 24 de Dezembro), o
que contribuiria (se é que já não contribuiu) para criar impunidades, por via da impossibilidade
prática da respectiva fiscalização.
Essa impunidade não resultava apenas da dificuldade prática de fiscalização da proibição de
conduzir veículo com motor aplicada como injunção em suspensão provisória do processo. Ela
também resultava do facto de a conduta violadora da proibição (caso aquela fiscalização fosse
possível e eficaz) se não integrar na previsão da incriminação (enquanto injunção) pelo crime
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previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal, acentuando sobremaneira a suspeita de
desigualdade de tratamento, já de si inerente, enquanto juízo crítico, aos institutos de
oportunidade e consenso, como é o caso da suspensão provisória do processo.
Mesmo a revogação da suspensão provisória do processo por via do não cumprimento das
injunções, que com outro nome substituíssem a pena acessória a que nos estamos referindo,
não reduziria significativamente a desigualdade acima citada, assim como a não reduziria a
revogação da suspensão provisória do processo por via da notícia do cometimento de crime da
mesma natureza, sobretudo porque essa revogação se apresenta problemática em razão das
condições a que a lei a sujeitou – artigo 282.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal: a
necessidade de condenação (que parece significar condenação com trânsito em julgado) por
crime da mesma natureza cometido durante o prazo da suspensão provisória do processo.
Também uma aplicação analógica do regime dos artigos 55.º e 56.º do Código Penal (falta de
cumprimento das condições de suspensão ou revogação da suspensão da pena de prisão) não
estava isenta de dificuldades (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87) se assumida como
forma de superar as condicionantes apontadas ao nº 4, alínea b), do artigo 282.º do Código de
Processo Penal.
Aliás, o juízo de desigualdade seria manifesto, na eventualidade de se acolher a suspensão
provisória do processo em crimes que admitem pena acessória de proibição de conduzir veículos
com motor, quando o facto constituísse crime e contra-ordenação. Como se sabe, na grande
maioria desses casos, a contra-ordenação é sancionada com a inibição de conduzir. Porém, no
caso de se optar por uma SPP quanto ao crime – e sendo consequente com a posição que aqui
se segue - não seria possível sancionar o crime com a pena acessória correspondente, resultado
que se deve qualificar como intolerável, além de incongruente com a tendencial unidade e
coerência do sistema sancionatório penal.
Para acentuar o acerto jurídico e lógico da solução legislativa agora proposta, ainda se pode
agregar o facto de a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor poder ter uma
duração de 3 meses a 3 anos, enquanto a suspensão provisória do processo apenas pode ir até 2
anos (n.º 1 do artigo 282.º do Código de Processo Penal; fora dos casos do n.º 5 do artigo 282.º
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do Código de Processo Penal), o que constitui factor de incongruência ou dissonância acrescido
e dá consistência aos argumentos da proposta do Governo.
Ou, ainda, juntar a observação de que em caso de concurso de crime e contra-ordenação que
seja punível com sanção acessória (centremo-nos no caso da condução em estado de
embriaguez) a aplicação da sanção acessória estar legalmente reservada ao juiz de julgamento
(cf. artigo 39.º do RGCO), razão pela qual a solução proposta pelo Governo de transferir para
julgamento em processo sumário os casos de crimes que importem punição com pena acessória
de proibição de conduzir veículos a motor, subtraindo-os a soluções de consenso como a
suspensão provisória do processo, é, por mais este argumento, juridicamente sustentável e
concordante com a tendencial unidade, harmonia e coerência do sistema sancionatório penal
acima referido.
Por fim, uma consideração algo extravagante, mas a propósito ainda do tema:
A par da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista pelo artigo 69.º
do Código Penal, sempre uma praxis observadora das boas regras de aplicação do direito penal
teria que levar em consideração, numa correcta perspectiva funcional da actuação do Ministério
Público enquanto titular da acção penal, que a acusação de um arguido por crime punível com
pena acessória de proibição de condução de veículos com motor deveria ter sempre em
consideração, a par da imputação dessa pena acessória, a possibilidade, em alternativa, da
aplicação de uma medida de segurança consistente na cassação do título e interdição da
concessão do titulo de condução de veículo com motor, previsto pelo artigo 101.º do Código
Penal, necessariamente sempre conjugável com o artigo 69.º (cf. o respectivo n.º 7) do mesmo
Código. À imputação expressa do tipo de crime cometido e da pena acessória correspondente
deverá sempre acrescer, em alternativa, a imputação da medida de segurança não privativa de
liberdade prevista no artigo 101.º do Código Penal; imputação que deve figurar na acusação do
Ministério Público.
Ora, a sufragar-se essa praxis – que consideramos juridicamente fundamentada - uma medida
de segurança nunca seria passível de ser aplicada por via de uma suspensão provisória do
processo, onde estaria subtraída ao poder exclusivamente jurisdicional da sua aplicação, uma
vez que o juízo de perigosidade que lhe é inerente não pode ser subtraído à reserva
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jurisdicional: não seria adequado julgar a perigosidade numa suspensão provisória do processo,
onde a actuação do juiz (um juiz de instrução e não de julgamento!) é de mera concordância e
validação. A medida de segurança é uma verdadeira sanção penal, com a mesma natureza
jurídica da pena, embora com propósitos diferenciados e valem quanto a elas as mesmas
garantias, designadamente a reserva jurisdicional da sua aplicação – cf. artigo 91.º e 100.º e ss.
do Código Penal. Decididamente, a suspensão provisória do processo não é juridicamente
sustentável em crimes para os quais esteja legalmente prevista a pena acessória de proibição de
conduzir veículos a motor, atendendo a que a par da pena acessória não se deverá nunca excluir
da ponderação sancionatória a medida de segurança de cassação do título e interdição da
concessão do título de condução de veículo com motor prevista no artigo 101.º do Código Penal
e essa ponderação não pode ser escamoteada ao julgamento.
Aspecto que a nova proposta de lei vem alterar, face à inicial, a qual, se mereceu todo o nosso
aplauso, não o pode merecer agora, prende-se com o facto de apenas serem os crimes dolosos,
para os quais esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos a
motor, aqueles a que não é aplicável a suspensão provisória do processo.
Aqui, há que lembrar que a condução perigosa de veículo poder ter no seu aparecimento um
juízo de imputação subjectiva na forma negligente, em particular nas modalidades de dolo de
acção e negligência de perigo (artigo 291.º, n.º 3 do Código Penal) ou de mera e simples
negligência de acção (artigo 291.º, n.º 4, do Código Penal); e que o crime de condução em
estado de embriaguez ou sob influência de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 292º
do Código Penal, estar previsto e ser punível de igual forma e em igual medida abstracta, tanto
na forma dolosa, como na negligente. Ainda, que o artigo 69.º, n.º 1, quer na redacção actual,
quer na que é objecto de alteração por via da Proposta de Lei 75/XII, não distinguir a forma do
aparecimento ou cometimento dos crimes a que quer ver aplicável a pena acessória de
proibição de conduzir veículos com motor, que tanto podem ser negligentes, como dolosos.
Assim, aparentemente há uma incongruência manifesta – ainda passível de correcção – entre a
(1)proposta de alteração para o artigo 69.º, n.º 1, do Código Penal e a (2)proposta de alteração
para o artigo 281.º do Código de Processo Penal:
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(1) Aquela visa alargar a pena acessória a todos os crime de resultado de dano (homicídio
e ofensa à integridade física) cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com
violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º, o que
inclui tanto a comissão dolosa de tais crimes, como a forma negligente do seu cometimento.
(2) Esta limita aos crimes dolosos puníveis com pena acessória de proibição de conduzir
veículos com motor (todos os atrás referidos e eventualmente outros) a inviabilidade da
suspensão provisória do processo, permitindo que a mesma suspensão provisória do processo
seja aplicável aos mesmos crimes, se cometidos por negligência.
Significa isto que a impunidade que a alteração ao n.º 1 do artigo 69.º visa corrigir – acentuando
a punibilidade por via do juízo crítico sobre o desvalor do resultado - é «mantida» por via da
solução de diversão e oportunidade que a suspensão provisória do processo representa – e
onde o juízo critico de diferenciação das soluções processuais acentua sobretudo o desvalor da
acção – ao ser aberta a possibilidade de aplicar uma suspensão provisória do processo quando
todos os crimes referidos no artigo 69.º, n.º 1, da Proposta de lei 75/XII ou eventualmente
outros forem cometidos na forma negligente.
Esta é a incongruência e esta é a contradição, que enfraquecem e esvaziam o discurso em que
assenta a proposta de lei, segundo o qual “A pena acessória de inibição de condução encontra
fundamento material na grave censura que merece o exercício da condução em certas condições,
cumprindo um importante papel relativamente às necessidades quer de prevenção especial, quer
de prevenção geral de intimidação que contribui, em medida significativa, para a consciência
cívica dos condutores. A possibilidade legal de suspensão provisória do processo relativamente a
este tipo de ilícitos tem esvaziado de conteúdo útil a função da pena acessória de inibição de
condução”
É pois aqui que assenta aquilo que acima referimos como uma inversão do sentido que a inicial
proposta do Governo tinha e à qual parece estar subjacente a intenção político-criminal de
impedir a suspensão provisória do processo nos crimes que são puníveis com a pena acessória
de proibição de conduzir veículos com motor.
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Sendo permitida a suspensão provisória do processo em caso de crime negligente para o qual
esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor iremos
assistir, porventura, à supremacia da razão prática sobre a razão teórica e sobre as razões de
politica criminal acabadas de referir. Ou seja, passarão a ser cada vez mais evidenciáveis as
dificuldades da prova do dolo (incluindo o eventual e incluindo as dificuldades de o delimitar da
negligência consciente) e as dúvidas inerentes a essa prova, por forma a deixar aberta a via da
sanção pela negligência, alargando assim a possibilidade de uma suspensão provisória do
processo onde normalmente não era usual encontrar a forma negligente. O risco é o de deixar
entregue a qualificação do facto como negligente ou doloso a um eventual arbítrio judicial ou
acentuar-se a ampla controvérsia judiciária em vista de uma interpretação jurídica do facto que
consinta essa qualificação, mais ou menos presumida, em prejuízo do princípio da segurança
jurídica.
Em conclusão, a Proposta de Lei do Governo quanto à exclusão da suspensão provisória do
processo nos crimes em que à pena principal acresce pena acessória de proibição de conduzir
veículos com motor tem justificação em termos político-criminais e jurídico-dogmáticos e
nenhuma reserva existe por parte do SMMP à sua consagração legislativa, na condição de que
a alteração proposta para a alínea e) do n.º 1 do artigo 281º não limite a exclusão da
suspensão provisória do processo aos crimes dolosos para os quais esteja legalmente prevista
pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor. Deve assim ser retomada a
versão da inicial proposta.
9. O regime da admissão de novas provas durante o julgamento – artigo 340.º
a. Proposta
Na proposta em análise, pretende o Governo a introdução de uma nova alínea ao n.º 4 do artigo
340.º do Código de Processo Penal com o seguinte teor:
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
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a) As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, excepto se
o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Na exposição de motivos e para fundamentação desta alteração, podemos encontrar que “na fase
de julgamento a celeridade da justiça penal implica igualmente que, quer o Ministério Público, quer
o arguido devam oferecer todas as provas com a acusação e a contestação, pelo que se altera o
disposto no art. 340º, no sentido de que os requerimentos de prova, apresentados no decurso da
audiência, devem ser indeferidos sempre que essas provas pudessem ter sido juntas, ou arroladas
naquelas peças processuais, salvaguardando-se os casos em que o juiz as considera imprescindíveis
para a descoberta da verdade e boa decisão da causa”.
Com fundamento na celeridade da justiça, pretende-se assim introduzir agora uma nova alínea ao
n.º 4 do artigo 340.º com o propósito de incentivar a que, por regra, as provas sejam juntas ou
arroladas com a acusação ou a contestação: se podiam ter sido juntas ou arroladas nesses
momentos e não o foram, pretende-se limitar a sua admissão em julgamento aos casos em que são
indispensáveis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
b. Apreciação
b.1. O artigo 340.º do Código de Processo Penal define os princípios gerais da produção e admissão
da prova em julgamento.
Tem-se discutido, jurisprudencialmente falando (incluindo tribunais de 1.ª instância), que a
faculdade concedida de requerer a produção de prova na fase de julgamento, de meios que prova
que não hajam sido indicados no momento da dedução de acusação, da pronúncia ou da
contestação, será uma faculdade excepcional, já que constam dos artigos 283.º, n.º 4, 284.º, 308.º,
n.º 2, 79.º, n.º 1, 165.º, n.º 1, e 315.º, n.º 1, os prazos para requerer a produção de prova.
Deste modo, entende já alguma jurisprudência que os meios de prova requeridos em sede de
audiência de julgamento, ao abrigo daquele preceito legal, têm de ser supervenientes, face,
designadamente, ao que dispõem os artigos 328.º, nº 3, alínea b), e 360.º, n.º 4, do Código de
Processo Penal.
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Será ainda possível a junção de documentos até ao encerramento da audiência, quando a sua
junção não foi possível no momento próprio – artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
E, assim, concluem que no requerimento para a produção de meios de prova na audiência de
julgamento deve o requerente alegar e provar que aqueles meios de prova ou de obtenção de
prova só chegaram ao seu conhecimento depois do prazo para requerer a respectiva produção, ou
surgiram depois daquele momento.
Não obstante, tal entendimento não é generalizado nem pacífico.
b.2. Parece ser intenção do Governo a introdução de um critério mais exigente para a
admissibilidade em julgamento de novos meios de prova que podiam ter sido juntos ou arrolados
com a acusação ou a instrução. Sabemos que, não raras vezes, o disposto no artigo 340.º é
utilizado para introdução de “provas surpresa” em julgamento (relativamente às quais é
normalmente mais difícil exercer o contraditório) e, principalmente, para o protelar.
Efectivamente, desde que os meios de prova sejam necessários, a lei actual não impede que, quem
nisso tenha interesse, possa apresentá-los “a conta-gotas”, um de cada vez, sucessivamente, ad
eternum, ainda que já fossem conhecidos no momento previsto para a sua junção ou arrolamento.
Compreendemos, por isso, a intenção do Governo. Porém, algumas dúvidas podem suscitar-se.
Confrontando o n.º 1 do artigo 340.º, que se mantém inalterado, com a nova norma em análise,
verifica-se que o primeiro refere prova necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da
causa, e a segunda, prova considerada indispensável a esse mesmo objectivo.
Na actual redacção do artigo 340.º, o princípio do n.º 1 reporta-se a todos os meios de prova,
independentemente de já existirem ou não no momento em que a prova foi indicada pelo
Ministério Público (acusação) ou pelo arguido (contestação), desde que se mostrem necessários
àquele fim, em obediência ao já referido princípio da investigação ou da verdade material. A
introdução da nova alínea do n.º 4 levará a uma redução do campo de aplicação do n.º 1 aos casos
em que o meio de prova é superveniente à acusação ou contestação; os casos em que o meio de
prova é anterior à acusação ou contestação serão regulados pelo n.º 4, alínea a).
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Semanticamente, não há diferenças entre “necessário” e “indispensável”. Segundo o Dicionário
da Língua Portuguesa da Porto Editora, o adjectivo “necessário”: é sinónimo de indispensável;
imprescindível; útil; preciso; inevitável; que não pode ser de outro modo, nem deixar de ser. E o
adjectivo “indispensável” significa aquilo que se não pode dispensar; absolutamente necessário;
habitual; constante.
Porém, o Código de Processo Penal utiliza já diferentes (e claramente demasiadas) expressões para
estabelecer diferentes critérios de admissibilidade de meios de prova, existindo trabalho doutrinal
para o seu enquadramento em categorias e sua graduação relativa. Na verdade, conforme refere
Paulo Pinto de Albuquerque em anotação ao artigo 340.º, este preceito estabelece alguns dos
critérios de admissão de prova, “encontrando-se vários outros critérios dispersos noutros preceitos
do Código de Processo Penal. A lei é, com efeito, prolixa no estabelecimento dos critérios de
admissibilidade da prova”4. E, enuncia aquele autor, os diferentes termos utilizados para a
possibilidade de ser admitido um determinado requerimento de prova, para concluir, que “esta
prolixidade de expressões não favorece a segurança jurídica e encobre uma identidade substantiva
dos critérios. Com efeito, a lei Portuguesa reconhece apenas três critérios materiais de
admissibilidade da prova, que são: a. prova “essencial”, “indispensável”, “absolutamente
indispensável”, ou “estritamente indispensável”; b. a prova “necessária”, “previsivelmente
necessária ou absolutamente necessária”, “útil” “de interesse”, “relevante”, ou “de grande
interesse” (…) c. a prova “conveniente.”5. Este autor gradua estas três categorias da seguinte
forma: a omissão da prova no primeiro tipo constitui nulidade sanável nos termos do artigo 120.º,
n.º 2, alínea d) (omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade); a omissão da prova do
segundo tipo constitui irregularidade, nos termos do artigo 123.º; a omissão da prova do terceiro
tipo não constitui qualquer vício processual (por ser acto discricionário).
Ora, assim sendo, não será difícil ao aplicador a interpretação desta nova norma em confronto com
o n.º 1, enquadrando e graduando correctamente os critérios de “necessidade” e
“indispensabilidade”.
4
5
Comentário do Código de Processo Penal, pag 838.
Ibidem, pag. 841.
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Porém, não se pode esquecer a orientação do Tribunal Constitucional quanto a esta matéria, por
exemplo no Ac. 137/2002 (negritos e sublinhados nossos):
«Há que partir da constatação, já feita no Acórdão nº 584/96, de que o artigo 340º, nº 1
do Código de Processo Penal é o lugar de afirmação paradigmática do princípio da
investigação ou da verdade material.
Este princípio significa, mesmo no quadro de um processo penal orientado pelo princípio
acusatório (artigo 32º, nº 5 da Constituição), que o tribunal de julgamento tem o poderdever de investigar por si o facto, isto é, de fazer a sua própria "instrução" sobre o facto,
em audiência, atendendo a todos os meios de prova não irrelevantes para a descoberta
da verdade, sem estar em absoluto vinculado pelos requerimentos e declarações das
partes, com o fim de determinar a verdade material (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de
Processo Penal, I, 1955, p. 49; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, p.72;
Roxin, Strafverfahrensrecht, 20ª edição, 1987, p. 76).
É isto mesmo que diz, por outras palavras, o nº 1 do artigo 340º.
Ora não há dúvida de que o princípio da investigação ou da verdade material, sem
prejuízo da estrutura acusatória do processo penal português, tem valor constitucional.
Quer os fins do direito penal, quer os do processo penal, que são instrumentais daqueles,
implicam que as sanções penais, as penas e as medidas de segurança, apenas sejam
aplicadas aos verdadeiros agentes de crimes, pelo que a prossecução desses fins, isto é, a
realização do direito penal e a própria existência do processo penal só são
constitucionalmente legítimas se aquele princípio for respeitado».
“(..) O Código de Processo não admite – com ressalva dos direitos de defesa do arguido e
dos preceitos legais imperativos sobre a admissibilidade de certas provas ‐ qualquer
restrição ao poder ‐ dever do juiz de ordenar ou autorizar a produção de prova que
considere indispensável para a boa decisão de causa – isto é, para a instrução de facto
ou para a descoberta da verdade material acerca dele – como se vê quando prevê
expressamente o seu exercício já depois de passado o período normal de produção de
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prova em audiência, durante as alegações orais, que terão de ser suspensas para o efeito
(artigo 360º, nº 4).
O Código de Processo Penal harmoniza assim o princípio da investigação ou da verdade
material, o princípio do contraditório e as garantias de defesa, de tal forma que nem o
primeiro princípio nem as garantias sofrem restrição durante a audiência, mas o segundo
princípio não deixa de ser aplicado a qualquer prova que o juiz considere necessária para
boa decisão de causa (..)»
Evidencia este acórdão alguma confusão entre “necessidade” e “indispensabilidade”.
Poderá, pois, suscitar-se a dúvida da conformidade com a Constituição da nova norma que concede
ao tribunal o poder de indeferir provas necessárias (mas não indispensáveis) à descoberta da
verdade e boa decisão da causa que já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a
contestação.
10. Possibilidade de utilização em julgamento das declarações que o arguido prestou nas fases
preliminares do processo; direitos e deveres dos arguidos; interrogatórios de arguido – artigos
61.º, 64.º, 141.º, 144.º e 357.º
a. Propostas
Como o próprio Governo assume, ponto de maior relevância nestas propostas é a modificação
introduzida quanto à possibilidade de utilização das declarações prestadas pelo arguido, na fase de
inquérito e de instrução, em sede de audiência de julgamento.
Neste âmbito e por causa dessa vontade, são propostas várias alterações ao Código de Processo
Penal: nos direitos e deveres do arguido (designadamente eliminando totalmente a
obrigatoriedade de o mesmo responder sobre os seus antecedentes criminais), na obrigatoriedade
da assistência por defensor, nos procedimentos de interrogatório e também, claro, no próprio
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regime de reprodução/leitura em julgamento das declarações prévias do arguido e regime da sua
apreciação e valoração.
b. Da eliminação da obrigatoriedade de o arguido responder sobre os seus antecedentes
criminais nas fases de inquérito e instrução
Propõe o Governo a eliminação dos segmentos “e, quando a lei o impuser, sobre os seus
antecedentes criminais”, constante da actual redacção do artigo 61.º, n.º 3, alínea b), e “se já
esteve preso, quando e porquê e se foi ou não condenado e por que crimes”, constante da actual
redacção do n.º 3 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, normativos aplicáveis nas fases de
inquérito e instrução do processo penal. Deixa assim o arguido de ter o dever de responder sobre
os seus antecedentes criminais nas fases de inquérito e instrução.
Esta proposta não se encontra justificada na Exposição de Motivos.
Não obstante, entende o SMMP que, em termos abstractos, não existem objecções de fundo que
possam ser levantadas. No entanto, para que tal possa acontecer, é imprescindível que seja
garantido que o sistema informático de emissão do registo criminal funcione efectivamente, em
qualquer dia da semana, a qualquer hora do dia, de forma pronta e que permita a obtenção
imediata de tal registo com toda a informação que do mesmo deva constar, incluindo de pessoas
colectivas e cidadãos estrangeiros, o que hoje não sucede e se duvida que possa vir a acontecer a
curto prazo.
Note-se que ainda que seja viável conhecer em tempo útil o registo criminal português de
cidadãos portugueses e estrangeiros, já não o será certamente relativamente aos antecedentes
criminais que uns e outros possam ter noutros países. A obrigação que hoje consta dos artigos
61.º, n.º 3, alínea b), e 141.º, n.º 3, abrange todos os antecedentes criminais, todas as informações
sobre se já esteve preso, quando e porquê, se foi ou não condenado e por que crimes, ou seja,
também quando tais factos ocorreram no estrangeiro.
Ora, se é manifesto que, actualmente, não é expedita nem se encontram totalmente digitalizados
todos os dados referentes ao registo criminal português, mais o é relativamente ao registo criminal
por factos ocorridos no estrangeiro.
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Sendo o registo criminal de um arguido elemento essencial de ponderação em sede de
interrogatório judicial para aplicação de medida de coacção, pois é relevantíssimo para qualquer
juízo sobre a existência de perigo de continuação da actividade criminosa, alerta-se para a
situação que com esta proposta se pode vir a criar.
c. Da obrigatoriedade da assistência por defensor
Pretende o Governo que passe a ser obrigatória a assistência por defensor nos interrogatórios
feitos por autoridade judiciária, no debate instrutório e na audiência – artigo 64.º, n.º 1, alíneas b)
e c), do Código de Processo Penal.
Sendo a assistência por defensor naturalmente requisito indispensável para que se possa
conceber a possibilidade de leitura/reprodução em julgamento das declarações dos arguidos, e
representando isso uma garantia de melhor defesa para este, o SMMP nada tem a opor às
alterações propostas.
Lembre-se até, a este propósito, que se encontra em discussão6 uma proposta de Directiva do
Parlamento Europeu e do Conselho que alargará o acesso a advogado pelo arguido no processo
penal, pelo que é de saudar o passo nesse sentido que o Estado Português desde já dará.
d. Da advertência ao arguido de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que
prestar em interrogatório perante autoridade judiciária durante o inquérito ou instrução
poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não prestar
declarações em audiência de julgamento, sendo livremente valoradas como prova.
Propõe o Governo que, nos interrogatórios realizados por autoridade judiciária no inquérito ou na
instrução, o arguido seja advertido de que, não exercendo o direito ao silêncio, as declarações que
prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não prestar
declarações em audiência de julgamento, sendo livremente valoradas como prova – artigo 141.º,
n.º 4, alínea b), proposto.
6
Cfr. http://www.europarl.europa.eu/oeil/popups/ficheprocedure.do?reference=2011/0154(COD)&l=en
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Sendo esta advertência essencial a que o arguido possa, de forma esclarecida, decidir prestar ou
não declarações sobre os factos que lhe são imputados, e sendo por isso naturalmente requisito
indispensável para que se possa conceber a possibilidade de leitura/reprodução em julgamento
dessas declarações, representando ainda uma garantia de melhor defesa para este, o SMMP
nada tem a opor às alterações propostas.
e. Da utilização no processo das declarações do arguido
e.1. Propostas de alteração
Propõe o Governo a seguinte alteração ao artigo 357.º do Código de Processo Penal:
Artigo 357.º
Leitura permitida de declarações do arguido
1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida:
a) …
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido
tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º.
2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem
como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 7 a 9 do artigo anterior.
Paralelamente, propõe-se a alteração do artigo 141.º, n.º 4, do Código de Processo Penal,
passando o mesmo a ter a seguinte redacção:
Artigo 141.º
Primeiro interrogatório judicial de arguido detido
4 - Seguidamente, o juiz informa o arguido:
a) …
b) De que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no
processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento,
estando sujeitas à livre apreciação da prova;
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a
7 - O interrogatório do arguido é efetuado, em regra, através de registo áudio ou áudio visual, só podendo
ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio
técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando
aqueles meios não estiverem disponíveis, o que deverá ficar a constar do auto.
8 - Quando houver lugar a registo áudio ou áudio visual deve ser consignado no auto o início e o termo da
gravação de cada declaração.
9 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 101.º.
Também é alterado o 144.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:
Artigo 144.º
Outros interrogatórios
1-…
2 - No inquérito, os interrogatórios referidos no número anterior podem ser feitos por órgão de polícia
criminal no qual o Ministério Público tenha delegado a sua realização, obedecendo, em tudo o que lhe for
aplicável, às disposições deste capítulo, excepto quanto ao disposto nas alíneas b) e e) do n.º 4 do artigo
141.º.
e.2. Apreciação global
e.2.1. Na lei processual hoje vigente, como decorrência do direito fundamental de presunção de
inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, o arguido
tem o direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe
forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar – artigo 61.º, n.º 1,
alínea d), do Código de Processo Penal. Prestando declarações, o arguido pode confessar ou negar
os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa,
bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua
responsabilidade ou da medida da sanção – artigo 141.º, n.º 5.
Esse direito ao silêncio pode ser exercido em qualquer fase do processo, designadamente no
julgamento e mesmo que antes tenha prestado declarações.
Em julgamento, a leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida (artigo
357.º):
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a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido
prestadas; ou
b) Quando, tendo sido feitas perante o juiz, houver contradições ou discrepâncias entre elas e
as feitas em audiência.
Significa isto que, se o arguido recusar prestar declarações em julgamento, as suas anteriores
declarações, mesmo que tendo sido feitas perante juiz e na presença de defensor, não podem ser
lidas.
e.2.2. Este regime, para além de incompreendido pela opinião pública, permite hoje que o arguido,
ao longo do inquérito e instrução, apresente inúmeras versões dos factos, quer naquilo que apenas
a si respeita, quer no que toca a outros suspeitos ou arguidos, e depois em julgamento apresente
uma outra, que o tribunal terá de apreciar (dando como provada ou não provada) sem poder levar
em consideração que antes dessa houve muitas outras.
Não há aqui qualquer verdadeiro direito de defesa, mas sim um abuso do mesmo. Direito de
defesa é a faculdade que o arguido tem de, a qualquer momento, poder prestar declarações sobre
os factos que lhe são imputados, dar-lhe o conteúdo que bem entender, mudar de versão, não
tendo dever de prestar declarações nem de o fazer com verdade.
Não há, em verdade, fundamento, nem o respeito pelos direitos aludidos o impõe, para que não
possam ser livremente valoradas em julgamento as declarações voluntárias prestadas por um
arguido assistido por defensor e esclarecido das consequências que para si podem advir de tais
declarações, mesmo que em fase posterior se remeta ao silêncio, pois que o que se tem
necessariamente de acautelar é que desse silêncio não resulte um privilégio odioso para o arguido:
um verdadeiro “direito à impunidade”.
Se assim não fosse, essas declarações do arguido nunca deveriam poder ser apreciadas e valoradas
pelo tribunal, mesmo quando o arguido isso pretendesse ou tivessem sido prestadas perante juiz.
Se houvesse razões válidas para não permitir ao tribunal de julgamento conhecer e valorar o que
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antes foi declarado no processo pelo arguido, tais razões deveriam valer também para os casos em
que o arguido consente na leitura das mesmas ou quando as mesmas foram prestadas perante juiz.
Ora, sabemos que não é isso que já hoje sucede.
e.2.3. O que está agora em causa é, efectivamente, uma alteração do paradigma processual penal
vigente, com reflexos evidentes na compreensão, sentido e alcance quer do actual estatuto de
direitos do arguido, designadamente do seu direito ao silêncio e da tutela do princípio da não autoincriminação, quer ainda no princípio da imediação e oralidade da prova.
O que se propõe, e que o SMMP vivamente saúda, é que o tribunal de julgamento, oficiosamente
ou a requerimento, possa proceder à leitura e livremente valorar as declarações anteriormente
feitas pelo arguido, em diligência presidida por autoridade judiciária, em que tenha estado
assistido por defensor e em que tenha sido advertido de que tinha direito de não responder a
perguntas feitas sobre os factos que lhe foram imputados e sobre o conteúdo das declarações
que acerca deles prestasse, e de que, querendo prestar declarações, as mesmas poderiam ser
utilizadas no processo, mesmo que sendo julgado na ausência, ou não prestasse declarações em
audiência de julgamento, sendo livremente valoradas como prova.
Tais garantias permitem que o arguido possa escolher, de forma voluntária e esclarecida, na
presença do seu defensor, se deve ou não prestar declarações e qual o seu teor, sendo este o
escopo, afinal, do direito ao silêncio, designadamente na sua vertente da não auto-incriminação.
e.2.4. Quanto à estrita valoração das declarações prestadas pelo arguido nas fases processuais
anteriores ao julgamento, poder-se-á afirmar que o proposto viola os princípios da imediação e
oralidade quanto à produção e ponderação da prova em sede de julgamento, designadamente nas
situações em que, nessa fase, o arguido se venha a remeter ao silêncio.
Não acompanhamos tais dúvidas. É que, desde logo, as declarações lidas em audiência não devem
poder, em caso algum, ter efeito confessório dos factos, antes sendo apenas livremente apreciadas
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pelo tribunal, nos termos do disposto na norma contida no artigo 127.º do Código de Processo
Penal. Assim, não basta uma declaração do arguido, mesmo que voluntária e esclarecida,
admitindo a comissão dos factos típicos para que o mesmo seja considerado culpado.
Garantem-se, desta forma, dois efeitos fundamentais: em primeiro lugar, exige-se ao Ministério
Público que produza em audiência de julgamento prova diversa bastante no sentido de afirmar a
culpabilidade do arguido, com recurso a outros meios de prova e não apenas com base nas
declarações do arguido; por outro lado, obriga o julgador a efectuar uma ponderosa análise crítica
de toda a prova globalmente produzida no sentido de aferir não só da credibilidade de tal
afirmação, mas essencialmente no sentido de a confirmar ou infirmar.
Por outro lado, não se colocam em crise os princípios da imediação e da oralidade.
De acordo com a acepção sustentada pelo Prof. Figueiredo Dias7, o Princípio da Oralidade implica
que a forma da decisão ser obtida é ser a mesma proferida com base em audiência de discussão
oral da matéria a considerar, e o Princípio da Imediação implica que a forma da decisão ser obtida
pressupõe uma relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no
processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de
ter como base da sua decisão.
Ora, ambos os princípios se encontram salvaguardados, pois, durante o julgamento, a leitura
dessas declarações é feita perante o tribunal. Por outro lado, a leitura em audiência das
declarações prestadas antecipadamente pelo arguido permite que sobre as mesmas se exerça o
contraditório, garantindo-se assim a discussão oral sobre o seu teor, estando o tribunal impedido
de as valorar sem a sua renovação na audiência, respeitando-se assim o princípio da oralidade e
respeitando-se o disposto na norma contida no artigo 355.º do Código de Processo Penal. Nada
diferente, aliás, do que sucede já hoje quando, nos termos permitidos pela lei vigente, se procede a
leitura das declarações do arguido feitas em momento anterior ao julgamento.
Finalmente, sendo obrigatória a presença do arguido em audiência, salvo nos casos de julgamento
na ausência do arguido, excepcionalmente já previstos nas normas contidas no n.º 1 e n.º 2 do
7
In Direito Processual Penal, Clássicos Jurídicos, Coimbra Editora, 2004, pág. 229 e seguintes.
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artigo 333º e no n.º 1 e n.º 2 do artigo 334º, ambos do Código de Processo Penal, e que se cingem,
no essencial, ao seu próprio consentimento, garante-se a imediação na produção da prova, pois
que não só o tribunal pode confrontar o arguido com o teor das declarações, como o princípio é
respeitado desde que a este seja dada a possibilidade de prestar, querendo, declarações até ao
encerramento da audiência, direitos estes que não são afectados pelas alterações propostas e que
permitem assim salvaguardar o princípio da imediação.
Aliás, o objecto de prova passível de ser livremente apreciado pelo tribunal é o que se encontra
contido nas declarações transcritas em auto e prestadas pelo arguido, e não o seu eventual silêncio
em sede de audiência de julgamento.
e.2.5. Nenhum argumento válido se encontra para distinguir entre as declarações prestadas pelo
arguido perante juiz de instrução, magistrado do Ministério Público ou até órgão de polícia
criminal.
Em qualquer dos casos, o arguido será advertido de que, querendo prestar declarações, estas
poderão ser utilizadas no julgamento, tomará previamente conhecimento dos factos que lhe são
imputados e dos meios de prova que sustentam tal imputação e estará assistido por defensor.
Estes requisitos, especialmente a presença de defensor, são garantia bastante de que não haverá
qualquer tipo de abuso sobre o arguido.
Deste modo, a decisão que relativamente a isso tome em nada difere daquela que tomaria perante
um juiz, pelo que do mesmo modo deve ser possível a sua livre valoração pelo tribunal de
julgamento.
O que é relevante é que se reconhece ao tribunal de julgamento a capacidade para apreciar
livremente tais declarações, que seguramente saberá distinguir um interrogatório e consequentes
declarações do arguido que lhe merecem credibilidade de um outro que o não merece. Não
importa tanto o “quem interrogou”, mas sim “a forma como o fez”, e isso ficará plasmado no auto
e gravações áudio ou áudio e vídeo que o tribunal de julgamento saberá interpretar e valorar.
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No que respeita concretamente ao Ministério Público, recorde-se o óbvio: os deveres de isenção,
de objectividade e de obediência à lei dos magistrados do Ministério Público são os mesmos que
têm os juízes. Não têm qualquer “compromisso” com a acusação: o que refere o n.º 1 do artigo
262.º do Código Processo Penal é que o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam
investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e
descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação. Há uma vinculação das
diligências de inquérito com a decisão da acusação, não com a acusação ela própria8. A sua
actividade no inquérito com este objectivo é materialmente judiciária9. Nesse sentido, nada a
distingue, pois, da actividade do juiz de instrução na fase da instrução. Note-se, aliás, que, como
não poderia deixar de ser, é exactamente o mesmo o conceito de indícios suficientes a que o
Ministério
Público
e
o
juiz
de
instrução
devem
atender
nas
suas
decisões
de
arquivamento/acusação e não pronúncia/ pronúncia, respectivamente – cfr. artigos 283.º, n.ºs 1 e
2, e 308.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.
Quanto aos órgãos de polícia criminal, não vemos razões para desconfiar da sua actuação quando o
arguido está assistido por defensor. Já passaram muitos anos desde os tempos das polícias políticas
e de práticas bárbaras. Se válidas razões houver para desconfiar de tais actos, então não deverá o
Ministério Público poder utilizá-los para fundamentar a acusação e, ainda menos, o juiz de
instrução para a aplicação de medidas de coacção ou para a decisão instrutória. E ninguém hoje
defende que não podem.
e.2.6. Entre muitos outros países, também permitem a livre valoração em julgamento das
declarações antes prestadas pelo arguido:
a Alemanha (de que, tal como com o italiano, o nosso Código de Processo Penal é tributário
e onde os professores portugueses de direito penal e processual penal muito buscam
inspiração): no seu artigo 254.º permite-se expressamente que as declarações do arguido
contidas no processo judicial possam ser lidas com a finalidade de obter provas a respeito
8
9
Assim se explica que a taxa média de arquivamentos se situe nos 85%.
Cfr. Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito e Garantia Judiciária, 2003, pp. 79 e ss.
- 44 / 86 -
da confissão, bem como quando existe alguma contradição com aquelas prestadas em
julgamento;
a Itália: quer o arguido esteja a ser julgado na ausência ou recuse prestar declarações
(artigo 513.º do seu Código de Processo Penal); quer em caso de contradições com as
anteriormente prestadas (artigo 503.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). Essas
declarações anteriores podem ter sido prestadas perante juiz, magistrado do Ministério
Público ou até órgão de polícia criminal, mas é sempre exigível a presença do seu defensor.
Nunca têm efeito confessório, ficando sujeitas à livre apreciação do tribunal (artigo 192.º
do Código de Processo Penal);
a Suíça: que permite a valoração em julgamento de todas as provas produzidas durante as
fases preliminares do processo (que constituem o “dossier”), exigindo apenas, no que
respeita às declarações do arguido, que este tenha estado assistido por defensor, podendo
tais declarações ter sido prestadas perante juiz, Ministério Público ou polícia criminal
(artigos 100.º e ss. e 343.º do seu recentíssimo Código de Processo Penal); no processo
simplificado (artigos 358.º e ss.,) não há mesmo qualquer produção de prova, bastando
aquela recolhida na fase preliminar, dirigida pelo Ministério Público;
a Polónia: quer o arguido recuse prestar declarações ou as preste em sentido divergente
das anteriores, ou ainda se revelar falta de memória, independentemente da entidade
perante a qual tenham sido prestadas, tenha ou não estado assistido por defensor – artigo
389.º, § 1, do seu Código de Processo Penal;
a Hungria: quer o arguido recuse prestar declarações ou as preste em sentido divergente
das anteriores, ou ainda esteja a ser julgado na ausência – artigo 291.º do seu Código de
Processo Penal.
Igualmente credor de observação é o regime vigente nos Estados Unidos da América, onde esta
questão tem sido amplamente tratada. Quanto ao estatuto dos direitos do arguido, a formulação
mais conhecida naquela jurisdição radica na doutrina resultante do Acórdão do Supremo Tribunal
Federal dos Estados Unidos, Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966), de 13 de Junho de 1966.
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Dispõe-se no referido Acórdão que “Sustentamos que, quando um indivíduo é levado sob custódia
ou privado da sua liberdade pelas autoridades, de forma significativa, e é submetido a
interrogatório, o direito contra a auto-incriminação é comprometido. As garantias processuais
devem ser empregues para proteger o direito, e a menos que outros meios totalmente eficazes
sejam adoptados para notificar a pessoa do seu direito ao silêncio e para assegurar que o exercício
desse direito será escrupulosamente honrado, as seguintes medidas são necessárias. Ele deve ser
notificado antes de qualquer interrogatório de que tem o direito de permanecer em silêncio, de que
tudo o que disser pode ser usado contra ele em tribunal, de que tem o direito à presença de um
advogado e de que, se ele não puder pagar um advogado, ser-lhe-á nomeado um antes de qualquer
interrogatório, se ele assim o desejar. A oportunidade de exercer esses direitos deve-lhe ser
concedida durante todo o interrogatório. Depois de tais advertências serem dadas, e tal
oportunidade lhe ser proporcionada, o indivíduo pode consciente e inteligentemente renunciar a
esses direitos e concordar em responder a perguntas ou fazer uma declaração. Mas a menos que, e
até que tais avisos e a renúncia esclarecida sejam demonstrados pela acusação no julgamento,
nenhumas provas obtidas como resultado do depoimento prestado em interrogatório podem ser
usados contra ele”10.
Na génese desta decisão esteve a necessidade de dar conteúdo efectivo à determinação contida na
Quinta Emenda da Carta de Direitos Fundamentais dos Estados Unidos da América na parte em
que dispõe que “[ninguém] deve ser compelido em qualquer processo criminal a testemunhar
contra si mesmo, nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo
legal”11, que consagra os direitos do arguido ao silêncio e à não auto-incriminação, e à Sexta
Emenda, que consagra genericamente o direito a aconselhamento legal.
10
“We hold that, when an individual is taken into custody or otherwise deprived of his freedom by the authorities in any
significant way and is subjected to questioning, the privilege against self-incrimination is jeopardized. Procedural safeguards must be
employed to protect the privilege, and unless other fully effective means are adopted to notify the person of his right of silence and to
assure that the exercise of the right will be scrupulously honored, the following measures are required. He must be warned prior to any
questioning that he has the right to remain silent, that anything he says can be used against him in a court of law, that he has the right
to the presence of an attorney, and that, if he cannot afford an attorney one will be appointed for him prior to any questioning if he so
desires. Opportunity to exercise these rights must be afforded to him throughout the interrogation. After such warnings have been
given, and such opportunity afforded him, the individual may knowingly and intelligently waive these rights and agree to answer
questions or make a statement. But unless and until such warnings and waiver are demonstrated by the prosecution at trial, no
evidence obtained as a result of interrogation can be used against him”.
11
“No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a
Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger;
nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal
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Cumpridas estas condições, o depoimento prestado por um arguido durante a fase de
investigação, que nos Estados Unidos é geralmente realizado por órgão de investigação criminal,
mesmo que este prescinda da presença de um advogado, é admissível como prova em
julgamento, incluindo os depoimentos confessórios e os falsos depoimentos exculpatórios.
Caso o arguido conteste o carácter voluntário de tais depoimentos, incumbe à acusação a prova de
que os mesmos foram formalmente regulares e de que o depoimento foi voluntário.
No caso de não ter sido efectuada a notificação de direitos, os chamados “Miranda Rights”, a
declaração anteriormente prestada não pode ser valorada em julgamento. No entanto, se o
arguido alterar a versão dos factos que ofereceu durante a investigação, pode ser sujeito a
interrogatório com base nas suas anteriores declarações, desde que seja demonstrado que tais
declarações foram efectuadas de forma voluntária.
e.2.7. O SMMP concorda, pois, com a proposta em apreço. Reafirma, porém, que nenhum
argumento válido se encontra para afastar deste regime as declarações prestadas pelo arguido
perante autoridade ou órgão de polícia criminal. Esperamos que, com o tempo, quaisquer receios
quanto a esse alargamento sejam dissipados.
f. Necessidade de norma transitória
No Projecto de Proposta de Lei apresentado para discussão, constava uma norma transitória (no
2.º, n.º 3, do texto da própria Proposta de Lei) que tinha o seguinte teor:
Aos processos pendentes na data da entrada em vigor da presente lei em que o arguido já tenha sido
interrogado, continua a aplicar-se o disposto no artigo 357.º do Código de Processo Penal na redação
da Lei n.º 48/2007, de 28 de Agosto.
A Proposta de Lei em análise não inclui tal norma, sem que se perceba razão para tal.
Em verdade, a mesma é imprescindível: sem ela, nos casos pendentes em que já ocorreu o
interrogatório do arguido (e, aí, naturalmente, este não foi advertido de que as suas declarações
case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property
be taken for public use, without just compensation”.
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poderiam ser utilizadas posteriormente no processo, nos termos agora previstos), não será
aplicável nem a lei nova, nem a lei hoje em vigor (artigo 357.º, n.º 1, alínea b)), que permite a
leitura das declarações anteriormente feitas pelo arguido perante juiz quando houver contradições
ou discrepâncias entre elas e as prestadas em audiência.
O SMMP apela, pois, a que se insira uma norma transitório com o referido teor.
g. Registo dos interrogatórios judiciais de arguido
A proposta de alteração do artigo 141.º, n.ºs 7 e 8, não nos merece qualquer comentário, desde
que, como referimos a propósito do artigo 101.º, se permita a transcrição em súmula das
declarações do arguido registadas em suporte áudio ou áudio-visual.
h. Interrogatórios do arguido pelos órgãos de polícia criminal
A redacção proposta para o n.º 2 do artigo 144.º merece um comentário. O texto é o seguinte:
Artigo 144.º
Outros interrogatórios
1-…
2 - No inquérito, os interrogatórios referidos no número anterior podem ser feitos por órgão de polícia
criminal no qual o Ministério Público tenha delegado a sua realização, obedecendo, em tudo os que lhe
for aplicável, às disposições deste capítulo, excepto quanto ao disposto nas alíneas b) e e) do n.º 4 do
artigo 141.º.
O que há de novo nesta norma é a introdução do segmento “obedecendo, em tudo os que lhe for
aplicável, às disposições deste capítulo, excepto quanto ao disposto nas alíneas b) e e) do n.º 4 do
artigo 141.º”.
O anteprojecto referia apenas a alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º. Saúda-se que, seguindo o alerta
do SMMP, se tenha ressalvado também a alínea e) desse número.
Em verdade, se assim não fosse, nos interrogatórios de arguido feitos durante o inquérito por
órgãos de polícia criminal estes passariam a estar obrigados a comunicar ao arguido também os
elementos do processo que indiciassem os factos imputados, sempre que a sua comunicação não
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pusesse em causa a investigação, não dificultasse a descoberta da verdade nem criasse perigo para
a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas
do crime. Excepcionando a lei expressamente apenas a alínea b), ficaria indubitável que tudo o
demais previsto nas outras alíneas será aplicável.
Tal solução mereceu a nossa discordância absoluta.
A actual alínea d) do n.º 4 do artigo 141.º, recorde-se, foi introduzida pela Lei n.º 48/2007 na
sequência de diversos acórdãos do Tribunal Constitucional (n.ºs 121/97, 516/2003 e 607/2003) que
consideraram ser inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 141.º, n.º 4, e 194.º,
n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, que não permita ao arguido conhecer as provas
utilizadas pelo juiz de instrução para fundamentar a aplicação de medidas de coacção, ficando o
seu direito de defesa em relação a essa decisão claramente prejudicado. Tal informação surge
apenas no primeiro interrogatório judicial como decorrência da obrigação de fundamentação dos
despachos de aplicação de medidas de coacção estabelecida no artigo 194.º, n.º 4, alínea b), do
Código de Processo Penal.
Ora, não se admitindo a possibilidade de as declarações prestadas pelo arguido perante órgãos de
polícia criminal serem reproduzidas e valoradas em julgamento, nem estando em causa a aplicação
de medidas de coacção (para além do obrigatório termo de identidade e residência), não se
justificaria a aplicação dessa regra dos interrogatórios judiciais12.
Note-se ainda que o artigo 61.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não consagra como direito
do arguido o conhecer os elementos de prova que indiciam os factos que lhe são imputados;
apenas o faz quanto aos factos.
11. Da reprodução em audiência das declarações anteriormente prestadas por testemunhas – artigo
356.º
12
Isto não significa que, em concreto, o órgão de polícia criminal não possa confrontar o arguido com esses elementos de prova
sempre que tal se afigure útil ao próprio interrogatório, desde que, claro, tal não puser em causa a investigação, não dificultar a
descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das
vítimas do crime
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a. Proposta
Propõe o Governo a seguinte alteração ao artigo 356.º do Código de Processo Penal:
Artigo 356.º
Leitura permitida de autos e declarações
3 - É também permitida a reprodução ou leitura de declarações anteriormente prestadas perante autoridade
judiciária:
a) …
b) …
4 - É permitida a leitura ou a reprodução de declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes
não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira,
designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação
para comparecimento.
5-…
6-…
7-…
8-…
b. Apreciação global
A proposta merece toda a concordância do SMMP.
b.1. O SMMP tem defendido, com insistência, a alteração do Código de Processo Penal no que diz
respeito à leitura em sede de audiência de julgamento das declarações das testemunhas prestadas
nas fases preliminares do processo.
Com efeito, não se afiguram adequadas as limitações actualmente existentes no artigo 356º do
Código de Processo Penal, pois que, desde que sejam garantidos o respeito pelos princípios do
contraditório e da livre apreciação da prova, não se deve excluir, por princípio, a utilização e
valoração da prova produzida nas fases anteriores, o que aliás sucede nos termos legais com prova
documental e pericial, mas também com as declarações de testemunhas, assistentes ou partes
civis, nos casos previstos na lei.
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Importa lembrar que, na generalidade dos processos criminais tramitados sob a forma comum, a
audiência de julgamento, pela própria natureza e estrutura do actual processo penal, é realizada
com grande dilação temporal em relação à data da ocorrência dos factos eventualmente
presenciados pelas testemunhas.
Por regra, e logo na fase de inquérito, são inquiridas todas as testemunhas conhecidas cujo
depoimento seja relevante para a descoberta da verdade material. Nessas diligências, as
testemunhas, que até podem estar acompanhadas de advogado, estão obrigadas a falar verdade,
sob pena de cometerem um crime – cfr. artigo 132.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal,
e artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal. Quando a diligência é presidida por autoridade judiciária, as
testemunhas prestam juramento – artigos 91.º, n.º 3, e 132.ºn 1, alínea b), do Código de Processo
Penal. Tudo é reduzido a auto, que é assinado por todos os presentes – artigo 100.º do Código de
Processo Penal.
Quando finalmente são convocadas e prestam depoimento em audiência de julgamento, é natural
que uma significativa parte das testemunhas não tenha já presente na sua memória todos os
detalhes daquilo que terá percepcionado no momento dos factos e que, pouco tempo depois,
relatou no inquérito.
Em tais casos, é manifesto que, para a descoberta da verdade material, tem relevo não despiciendo
a declaração prestada pela testemunha em momento subsequente aos factos, muitas vezes muito
mais rica em pormenores e conformidade com a verdade do que aquela que venha a prestar em
audiência de julgamento.
Por outro lado, existem igualmente inúmeras situações em que as testemunhas se contradizem ou
perdem (ou dizem ter perdido…) totalmente a memória, conduzindo depois a um resultado final –
sentença – que, ainda que formalmente adequada à prova produzida em julgamento, não tem
qualquer contacto com a verdade material, sendo por isso incompreensível para a generalidade da
população.
Finalmente, não são raros os casos em que, após a inquirição em inquérito ou instrução, se perde o
contacto com as testemunhas e, apesar de todas as diligências realizadas, não se consegue
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proceder à sua notificação para comparência em julgamento. Impossibilidade total de inquirição
em julgamento existe também, naturalmente, em caso de morte da testemunha.
Com o actual regime, o que ocorre com frequência é o desperdício da prova produzida, de forma
legítima e com as garantias asseguradas, nas fases anteriores ao julgamento, o que se traduz em
perda de tempo e dinheiro e configura um desrespeito pelo cidadão que pretende colaborar com a
realização da justiça.
b.2. Neste contexto, sendo agora proposta uma alteração de paradigma no que às declarações do
arguido diz respeito, seria profundamente ilógica a manutenção das actuais restrições à leitura em
audiência de julgamento das declarações prestadas por testemunhas nas fases preliminares à
audiência de julgamento do processo penal, constituindo uma enorme dissonância sistemática,
desde logo porquanto se é admitida a leitura sem oposição de declarações prestadas
anteriormente ao julgamento pelo arguido, não se compreenderia que, por maioria de razão,
sendo menores as exigências de salvaguarda de direitos fundamentais em relação às testemunhas,
as declarações por si prestadas não pudessem igualmente ser lidas em audiência sem necessidade
de obter a concordância do arguido, do assistente e do Ministério Público.
b.3. Diga-se, desde já, que em relação às declarações de testemunhas não podem ser colocadas
quaisquer das questões relativas aos direitos e estatuto dos arguidos, acima explanadas,
porquanto não só estas não têm o direito ao silêncio (salvo nos casos de recusa legítima a depor,
previstos no artigo 134º do Código de Processo Penal, ou de segredo profissional ou de Estado),
como têm a obrigação legal de responder e responder com verdade às questões que lhes sejam
colocadas por autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal, nos termos do disposto na norma
contida na alínea d) do n.º 1 do artigo 132º do Código de Processo Penal.
Encontra-se igualmente salvaguardado o direito de não responder a perguntas autoincriminatórias, desde logo por força do princípio geral contido no n.º 2 do artigo 132º do Código
de Processo Penal, garantia esta reforçada com a possibilidade de se fazer acompanhar por
advogado, nos termos do n.º 4 do referido preceito legal.
- 52 / 86 -
b.4. Assim, apenas restaria a eventual limitação aos Princípios da Imediação e da Oralidade, a qual,
desde já se diga, é inexistente.
Por um lado, porquanto a leitura de declarações prestadas por testemunhas já é permitida sem
oposição, designadamente quando, por causa de falecimento, anomalia psíquica superveniente ou
impossibilidade duradoira não possam sequer comparecer em Tribunal, desde que tenham sido
prestadas perante o juiz ou o Ministério Público – artigo 356.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Por outro lado, o que se propõe é que essa leitura de declarações seja efectuada, em sede de
julgamento, na presença da testemunha, e por forma a avivar a memória desta ou quando existam
contradições ou discrepâncias entre as prestadas anteriormente e as prestadas em audiência de
julgamento, sem que tal leitura possa ser objecto de uma ponderação casuística e oportunística no
sentido da autorização de tal acto, quer por parte do arguido, quer também por parte do
assistente13.
Assim, tal leitura das declarações seria sempre sujeita ao crivo do princípio do contraditório e, por
ter de ser presencial, respeitaria os princípios da imediação e da oralidade.
b.5. Vale aqui o que supra ficou exposto sobre a ausência de fundamento para excluir os
depoimentos prestados perante órgão de polícia criminal.
b.6. Em praticamente todos os sistemas jurídicos existe uma previsão idêntica à que ora se
propõe.
É o caso, designadamente, do sistema processual penal da Alemanha, que prevê14, no seu artigo
253.º, sob a epígrafe de leitura de depoimento para refrescar a memória, que “1 – Se uma
testemunha ou um perito declarar que já não se lembra de um facto, a parte pertinente do auto
por si subscrito pode ser lido para refrescar a sua memória; 2 – O mesmo procedimento pode ser
13
Não raras vezes é o arguido o prejudicado pela impossibilidade de confronto da testemunha com as declarações antes pela
mesma prestadas (por exemplo quando as testemunhas passaram a “lembrar-se” de aspectos que no inquérito não sabiam ou já
tinham esquecido...). Em qualquer dos casos, prejudicada é sempre a realização da Justiça.
14
Tradução livre nossa.
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adoptado se durante a inquirição surgir uma contradição com a sua anterior declaração, e a mesma
não puder ser esclarecida ou eliminada sem que a audiência seja interrompida”. Por outro lado, na
forma de processo especial acelerada (similar ao nosso processo abreviado), prevê-se até que a
inquirição das testemunhas possa ser substituída pela leitura dos seus depoimentos anteriores –
artigo 420.º.
É também o caso da Espanha, onde, nos artigos 714.º e 730.º, se permite a leitura das declarações
anteriores das testemunhas quando existam divergências entre essas e as prestadas em
julgamento e quando, por causas independentes da vontade de qualquer das partes (incluindo
acusação) não seja possível repetir a sua inquirição em julgamento.
Também a Itália permite a leitura das anteriores declarações das testemunhas caso estas tenham
entretanto morrido ou estejam desaparecidas (artigo 512.º) ou se houver contradições entre as
declarações prestadas durante a investigação e aqueles prestadas em julgamento (artigo 500.º).
O mesmo o faz a Suíça, em termos idênticos ao atrás exposto para as declarações do arguido, mas
permite ao defensor do arguido que assista à realização da inquirição.
A Polónia permite a leitura das declarações anteriores da testemunha (prestadas perante juiz,
Ministério Público ou polícia) sempre que esta recuse depor em julgamento sem fundamento,
altere o seu testemunho, declare que já não se lembra de qualquer aspecto, resida no estrangeiro,
não tenha sido possível a sua notificação, não tenha podido comparecer por algum motivo
inultrapassável ou tenha morrido – artigo 391.º, § 1.
Finalmente, a Hungria também permite a leitura do anterior depoimento da testemunha (prestado
perante juiz, Ministério Público ou polícia) se não for possível a sua inquirição em julgamento ou se
a sua presença em julgamento lhe causar dificuldades irrazoáveis devido ao seu estado de saúde –
artigo 296.º.
b.7. A alteração proposta à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
- 54 / 86 -
O artigo 6.º da Convenção15
16
consagra um conjunto de direitos respeitantes ao “processo
equitativo”, sendo que os n.ºs 2 e 3 respeitam especialmente ao acusado em processo penal,
fazendo uma concretização não exaustiva do princípio geral enunciado no n.º 1.
Não há aí qualquer previsão legal expressa sobre o assunto ora em análise, mas pode sempre
colocar-se a questão da sua conformidade com o princípio do direito a um processo equitativo.
Com particular incidência, a questão coloca-se relativamente ao contraditório: ficará este
assegurado se o tribunal puder valorar um depoimento que foi realizado sem a presença do
arguido e seu defensor?
Muitas vezes foi o TEDH chamado a pronunciar-se sobre esta questão. A resposta, como refere
Ireneu Cabral Barreto17, tem sido a de que, se os elementos de prova devem em princípio ser
produzidos em audiência pública, tendo em vista um debate contraditório, tal não impede a
utilização das provas recolhidas na fase de instrução do processo, desde que as regras do
contraditório tenham sido observadas, podendo isso acontecer no momento da sua produção ou
mais tarde, no momento da sua valoração em julgamento.
12. O regime do processo sumário e a competência do tribunal colectivo
15
O texto do artigo é o seguinte:
1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um
tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de
carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas
o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da
moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a
protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em
circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente
provada.
3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra
ele formulada;
b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;
c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um
defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem;
d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de
defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;
e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.
16
Convenção que, recorde-se, tem valor infraconstitucional, mas supralegal.
17
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 3.ª Edição, 2005, pp. 175.
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a. Proposta
Na Exposição de Motivos, defende o Governo que não existem razões válidas para que o
processo não possa seguir a forma sumária relativamente a quase todos os arguidos detidos em
flagrante delito, já que a medida da pena aplicável não é, só por si, excludente desta forma de
processo.
Propõe depois diversas alterações a esta forma de processo e à competência do tribunal
colectivo.
Analisemo-las.
b. Artigo 13.º
Pretendendo o Governo que o processo sumário seja aplicável também a crimes puníveis com
pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, e sendo que, por regra, nos processos que
respeitarem a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável seja superior a 8 anos, pode
ser requerida a intervenção do tribunal de júri, havia que estabelecer o momento em que tal
poderia ser requerido.
Procede-se a introdução de um novo número (o 4) a este artigo, definindo que nos casos em que
o processo devesse seguir a forma sumária, o requerimento para a intervenção de júri terá de
ser apresentado pelo Ministério Público e pelo arguido, desde que tenham exercido o direito
consagrado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 382.º, até ao início da audiência, ou pelo assistente no início
da audiência.
Quanto ao Ministério Público, se entende que o julgamento deve ser feito pelo tribunal de júri,
não avançará com o julgamento em processo sumário, antes tramitará o processo sob a forma
comum, sendo que, nesse caso, o seu requerimento deverá ser feito no momento da acusação.
O requerimento do Ministério Público nos termos previstos será um “requerimento”
desnecessário e condicional: desnecessário, porque o Ministério Público, que sempre poderia
deixar de remeter o processo ao juiz de julgamento para julgamento em processo sumário e
desde logo ordenar a sua tramitação sob a forma comum, fá-lo apenas para que seja proferido o
- 56 / 86 -
despacho previsto no novo artigo 390.º, n.º 1, alínea b); condicional, porque quando chegar o
momento de proferir despacho de encerramento do inquérito sempre poderá, de acordo com a
análise objectiva das provas recolhidas, proferir despacho de arquivamento ou de acusação por
crime que não admita intervenção do tribunal do júri, sendo que, por isso, o “requerimento”
que antes fez apenas será eficaz se for deduzida acusação e por crime que legalmente admita a
intervenção do tribunal do júri.
c. Artigo 14.º:
A competência do tribunal colectivo é regulada no Código de Processo Penal, em regime de
subsidiariedade e por exclusão de partes. Com efeito, nos termos do artigo 14.º, compete ao
tribunal colectivo julgar os processos que, para além do mais, não devam ser julgados pelo
tribunal do júri ou pelo tribunal singular.
Seguindo essa linha de raciocínio, a nova redacção proposta para o artigo 14.º limita-se a
subtrair competência ao tribunal colectivo para julgar os crimes previstos nas alíneas a) e b) do
seu n.º 2 que devam ser julgados em processo sumário.
Tais crimes, conforme resulta da leitura necessariamente articulada do presente artigo com o
artigo 16.º, passam a ser julgados por tribunal singular, que assim vê a sua competência
bastante alargada.
d. Artigo 16.º:
Apesar de ter deixado cair um dos pressupostos de sempre do julgamento em processo sumário
– a comissão de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a 5 anos
– optou o Governo não pela atribuição da competência ao tribunal colectivo, mas sim ao
tribunal singular.
Nessa medida, a nova redacção do artigo 16.º estabelece que compete também ao tribunal
singular julgar os processos que respeitem a crimes dolosos ou agravados pelo resultado,
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quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa, ou cuja pena máxima, abstractamente
aplicável, seja superior a 5 anos, se esses crimes forem julgados em processo sumário.
A alteração em análise poderá acarretar um aumento da complexidade dos casos que passarão a
ser julgados em tribunal singular, sob a forma sumária, não obstante a detenção em flagrante
delito facilitar normalmente a produção de prova a realizar no âmbito desse tipo de processos.
Para além disso, aumentará segura e exponencialmente o volume de serviço a cargo do tribunal
singular e dos magistrados que o compõem, a demandar uma urgente redistribuição dos
recursos humanos afectos a julgamentos.
e. Artigo 381º:
e.1. A nova redacção deste artigo alarga o âmbito de aplicação do processo sumário, eliminando
um dos seus anteriores requisitos: que a detenção fosse por crime punível com pena de prisão
cujo limite máximo não ultrapassasse os 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções.
Assim, são agora susceptíveis de ser julgados em processo sumário os detidos em flagrante
delito, nos termos do artigo 381.º, n.º 1, independentemente da moldura penal que caiba aos
crimes que lhes são imputados.
e.2. O SMMP aplaude vivamente esta alteração, que irá permitir o aumento do número de
casos a submeter a julgamento em processo sumário, com todos os benefícios daí decorrentes
para a celeridade e a eficácia do sistema de justiça, bem como para a própria realização dos fins
das penas.
Com efeito, apesar de originariamente vocacionado para o combate à pequena e média
criminalidade, o processo sumário, nos termos agora avançados, poderá contribuir também para
descongestionar as instâncias de julgamento no que respeita aos crimes puníveis com penas de
prisão superiores a 5 anos, desde que os arguidos responsáveis pela prática dos mesmos tenham
sido detidos em flagrante delito e nessa medida, a prova se apresente facilitada. Por outro lado,
é consabido que os julgamentos a curta distância dos factos renovam o sentimento de confiança
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da comunidade na eficácia das normas jurídicas violadas, para além de se traduzirem numa
economia de tempo e de custos por demais importantes.
Louva-se, por isso, a solução preconizada nesta matéria, sem esquecer, todavia, a pertinente
observação efectuada pelo Observatório Permanente de Justiça, em Outubro de 2009, que
alertou para o facto de ser necessária uma outra “cultura judiciária” para que o processo
sumário seja devidamente utilizado. Essa nova “cultura judiciária” será necessária a todos,
magistrados, advogados, oficiais de justiça, órgãos de polícia criminal e peritos, mas, estamos
certos, rapidamente se instalará.
Não vemos razões para recear a aplicação de penas de prisão superiores a cinco anos por
parte de tribunal singular: reconhecemos a todos os juízes a capacidade para tal; por outro
lado, há que recordar que se mantém inalterada a possibilidade de recurso para os tribunais
superiores nesses casos, o que garante a correcção de quaisquer eventuais erros na apreciação
da matéria de facto ou na determinação da pena.
e.3. São excepcionadas à regra geral constante do n.º 1 do artigo 381.º as condutas que
integrem crimes de associação criminosa, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de
estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência, participação
económica em negócio ou branqueamento (alínea m) do artigo 1.º), bem como os crimes contra
a identidade cultural e integridade pessoal (previstos no Título III do Livro II), os crimes contra a
segurança do Estado (previstos no Capítulo I do Título V do Livro II do Código Penal) e os crimes
previstos na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário, crimes estes já
atribuídos pelo artigo 14.º, n.º 1, ao tribunal colectivo.
A ressalva em causa suscita-nos críticas no que respeita à exclusão da possibilidade de levar a
julgamento em processo sumário as condutas a que alude a alínea m) do artigo 1.º, ou seja, a
denominada criminalidade organizada que integra crimes como o tráfico de armas ou o tráfico
de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas. Com efeito, não se compreende que um
crime como o de tráfico de estupefacientes, só para dar um exemplo, que se esgote na
apreensão de cocaína ou heroína a um correio de droga que é detido em flagrante delito num
aeroporto, não possa ser julgado em processo sumário. Outro exemplo: a simples venda de uma
arma proibida (como uma navalha de abertura automática) integra o crime de tráfico de armas:
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havendo flagrante delito, as diligências a fazer serão escassas e muito simples. Não há motivo
para não haver julgamento em processo sumário.
Por outro lado, é óbvio que nos casos em que se evidencia a necessidade de proceder a uma
investigação mais profunda, que não se compagine com os prazos previstos para a realização
de diligências de prova em processo sumário, o Ministério Público continuará a remeter o
expediente para inquérito, para o tramitar sob a forma comum, apesar da detenção em
flagrante delito e independentemente do tipo legal de crime com que esteja a ser confrontado.
Tal como poderá até entender que o processo deve ser de imediato arquivado (v.g., por
entender que a conduta que motivou a detenção não constitui qualquer crime). Nestes casos e
em todos os outros de flagrante delito, mesmo em crimes de pequena ou média gravidade,
sublinhe-se.
Atente-se, aliás, no disposto no artigo 384.º, n.º 1, nova redacção, em que se salvaguarda
expressamente a possibilidade de o Ministério Público não utilizar o processo sumário e optar
por um arquivamento por dispensa de pena ou por uma suspensão provisória do processo.
Na verdade, continua a impor-se ao Ministério Público um juízo de ponderação, aquando da
apresentação do detido em flagrante delito, sobre se deve encaminhar o caso para julgamento
em processo sumário ou determinar a sua tramitação sob outra forma processual admissível.
Pelo exposto, entende o SMPP que não se justifica a consagração no n.º 2 do artigo 381.º, da
exclusão da possibilidade de levar a julgamento em processo sumário as condutas a que alude
a alínea m) do artigo 1º.
f. Artigo 382.º:
O presente artigo foi reestruturado de modo a antecipar para momento prévio ao do início da
audiência de julgamento em processo sumário a possibilidade de o arguido requerer prazo para
a preparação da sua defesa.
Concorda-se, desde logo, com a alteração que estabelece que é o Ministério Público que
assegura a nomeação de defensor ao arguido: só assistido por defensor desde o momento em
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que é apresentado (ou se apresentada voluntariamente) perante o Ministério Público é que o
arguido poderá ponderar se necessita ou não de prazo para defesa.
Resulta do novo texto legal que o Ministério Público deve apresentar o arguido detido, logo que
possível, ao tribunal competente para julgamento, salvo se o arguido lhe requerer prazo para
preparação da sua defesa ou se o Ministério Público considerar que é necessária à descoberta
da verdade a realização prévia de diligências de prova. E se esta segunda hipótese já conhecia
consagração legal no n.º 4 do artigo 382º, em contrapartida, o arguido só podia requerer prazo
para preparação da sua defesa no início da audiência e ao juiz de julgamento.
A solução em causa permite uniformizar procedimentos e avançar para o julgamento em
processo sumário com a prova possível já carreada para os autos. Tem, contudo, associada uma
desvantagem colateral: decorrendo, necessariamente, em simultâneo, o prazo máximo de 20
dias após a detenção para Ministério Público e arguido se munirem de prova, é possível que o
arguido venha a concluir, no final do prazo comum, que precisa de mais tempo para obter
provas que abalem os novos argumentos entretanto conseguidos pelo Ministério Público e com
os quais só a final é confrontado. Ou pode, inicialmente, o arguido entender que não precisa de
prazo para preparar a sua defesa e mudar de ideias face aos resultados das diligências de prova
realizadas pelo Ministério Público.
Nessa medida, a solução apresentada terá de admitir a possibilidade de o arguido, em
audiência, requerer a concessão de prazo acrescido para o exercício do direito de defesa, pelo
menos quando, entre a detenção e o início do julgamento, o Ministério Público tenha obtido
novos meios de prova. Sublinhe-se que a faculdade prevista no n.º 6 do artigo 387.º (prazo
adicional de 10 dias com vista ao contraditório) só está prevista para os casos do artigo 389.º,
n.º 2, ou seja, em que o Ministério Público completa a factualidade constante do auto de
notícia. Não sabemos se efectivamente era essa a intenção do Governo ou se se tratou de um
esquecimento de correcção da referência feita no artigo 387.º, n.º 6, pois, em versões
anteriores desta proposta, o actual n.º 3 do artigo do artigo 389.º era o n.º 2. Tratando-se de
lapso, a sua correcção superará a crítica feita.
Sempre que tiver razões para crer que a audiência de julgamento não terá lugar no prazo de 48
horas após a detenção, v.g., se o arguido requerer prazo para a preparação da sua defesa, o
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Ministério Público interroga o arguido para efeitos de validação da sua detenção e eventual
libertação, e sujeita-o a termo de identidade e residência ou apresenta-o ao juiz de instrução
para que lhe seja aplicada medida de coação ou de garantia patrimonial, como já era regra.
Um reparo de pormenor: foi acrescentada, no n.º 1 do artigo 382.º a menção de que o arguido
detido em flagrante delito tem de ser apresentado no mais curto prazo possível, “sem exceder
as quarenta e oito horas”, ao Ministério Público junto do tribunal competente para julgamento.
Parece-nos que tal prazo máximo, peremptório, já resultaria do regime geral da detenção, sem
(aparente) necessidade de o frisar no presente artigo.
g. Artigo 383.º:
A redacção agora proposta para o artigo 383.º introduz algumas alterações de pormenor ao
regime de notificações para eventual julgamento em processo sumário. Assim, no momento da
detenção, passa a ser obrigatória a notificação do ofendido para comparecer perante o
Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento, ao invés do que até agora
sucedia, em que essa notificação dependia de um juízo prévio de utilidade, e o número de
testemunhas presentes a notificar com o mesmo objectivo eleva-se para sete.
Por seu turno, o n.º 2 do artigo 383.º antecipa para o momento da detenção a informação
expressa ao arguido de que tem direito a prazo não superior a 15 dias para preparação da sua
defesa, o que deve manifestar ao Ministério Público, para além de elevar igualmente para sete o
número de testemunhas susceptíveis de serem apresentadas por aquele, sendo estas, se
presentes, desde logo verbalmente notificadas para comparecerem.
h. Artigo 384.º:
A alteração proposta importará a seguinte formulação:
Artigo 384.º
Arquivamento ou suspensão do processo
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1 - Nos casos em que se verifiquem os pressupostos a que aludem os artigos 280.º e 281.º o Ministério Público,
oficiosamente ou requerimento do arguido ou do assistente determina, com a concordância do juiz de instrução, o
arquivamento ou a suspensão do processo.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior o Ministério Público interroga o arguido nos termos do artigo
143.º, para efeitos de validação da detenção e libertação do arguido, sujeitando-o, se for caso disso, a termo de
identidade e residência, devendo o juiz de instrução pronunciar-se no prazo máximo de quarenta e oito horas sobre
a proposta de arquivamento ou suspensão.
3 - Se não for obtida a concordância do juiz de instrução, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 5 e 6
do artigo 382.º, mas se o arguido não tiver requerido prazo para apresentação da sua defesa, a notificação para
comparecimento é para uma data compreendida até ao prazo máximo de 15 dias após a detenção.
A nosso juízo, a opção do Governo em propor que o arquivamento em caso de dispensa de pena
e a suspensão provisória do processo deixem de ser institutos ponderáveis no âmbito do
processo especial sumário stricto sensu vem clarificar, de vez, os princípios e a natureza
subjacente a cada um desses institutos: por um lado, institutos de oportunidade e consenso,
como são os casos do arquivamento em caso de dispensa de pena e da suspensão provisória do
processo e, por outro lado, institutos de celeridade, de que é exemplo por excelência o processo
especial sumário.
A solução vigente, depois das alterações introduzidas pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, ao
artigo 384.º do Código de Processo Penal, complicou a tramitação desses institutos de
oportunidade e consenso, pois eram frequentes os conflitos negativos de competência entre o
juiz do julgamento e o juiz de instrução, sobretudo quanto à concordância para a suspensão
provisória do processo no âmbito do processo sumário, além de outras anomalias que sempre
sucediam quanto à situação ou encaminhamento do processo após a concordância judicial,
quanto a saber quem controlava o decorrer da suspensão provisória do processo, ou quem
procedia a notificações e mesmo se a iniciativa do «Tribunal» na proposta da suspensão
provisória do processo em processo sumário (artigo 384.º, n.º 1, vigente) fazia sentido face ao
regime geral do instituto como configurado pelo artigo 281º do Código de Processo Penal.
Há um regresso à coerência do instituto, cabendo o impulso e sobretudo a decisão ao Ministério
Público, por ser até o veículo de concretização das opções e orientações de política criminal que
ao juiz são necessariamente estranhas.
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Em todo o caso, não é sobretudo aí que residiriam as dificuldades principais. Essas, como
referimos, resultavam da conciliação improvável entre institutos com natureza e objectivos
diferenciados. Institutos vocacionados para a consecução de objectivos de celeridade
processual, como o processo especial sumário, deveriam estar isentos das perturbações que a
conciliação com institutos de oportunidade e consenso sempre representam e cuja tramitação,
ponderação, decisão e controlo têm autonomia e exigências específicas, designadamente todo o
conjunto de diligências e porventura de rotinas que importam à fundamentação das injunções e
regras de conduta e que sempre pareceriam anómalas e até contraditórias com a celeridade que
é objectivada pelo processo especial sumário.
De facto, a celeridade e simplificação inerentes ao processo sumário ou mesmo ao abreviado,
não são prosseguidas em termos principais no instituto da suspensão provisória do processo (se
bem que, como veremos, a suspensão provisória do processo que o Governo propõe como fase
prévia e obrigatória ao prosseguimento do processo sumário originável na detenção do arguido
seja uma suspensão provisória do processo “sumária” e “liminar”, sem exigência de diligências
de recolha de prova que não o interrogatório do arguido, a quem se propõe concordância com
injunções e regras de conduta ou de quem se recolhe requerimento para suspensão provisória
do processo). Na suspensão provisória do processo prosseguem-se objectivos de consenso,
diversão e desjudicialização. Esse consenso, diversão e desjudicialização não se compadece, para
funcionar plenamente, com o seu enxerto na celeridade e simplificação próprias do processo
sumário, já que é através da obtenção reflectida do consenso que se alcançam os objectivos da
suspensão provisória do processo.
A inviabilidade ou a incompatibilidade da suspensão provisória do processo no processo sumário
estava inscrita na natureza diferenciada dos institutos de celeridade processual e dos institutos
de consenso e, como tal, a separação agora acolhida na proposta do Governo parece-nos ser a
correcta, no plano da racionalidade dos princípios e no plano do pragmatismo exigível à
tramitação processual célere para controlo e resolução da criminalidade menos grave.
Com estas alterações, a possibilidade de arquivamento em caso de dispensa de pena e de
suspensão provisória do processo no âmbito do processo sumário, será, na prática, eliminada.
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O propósito é, aliás, anunciado na exposição de motivos, que destarte refere que “a
possibilidade de o instituto do arquivamento e da suspensão do processo ter lugar nos casos de
detenção em flagrante delito é agora regulada por forma a esclarecer que, nesses casos, não há
início da fase judicial do julgamento sumário, já que a sua tramitação é incompreensível com
esta forma de processo”.
O SMMP reconhece que o regime actualmente em vigor não podia permanecer como estava.
A solução introduzida recentemente, pela Lei n.º 26/2010 de 30 de Agosto, de admitir no âmbito
do processo sumário o arquivamento ou a suspensão provisória do processo “até ao início da
audiência”, gerou diversos problemas de interpretação e aplicação daqueles institutos. Assim e
sem pretensões de esgotar todas as questões que têm sido levantadas, a propósito, pela
doutrina e jurisprudência, vem-se discutindo a quem compete decidir a suspensão no processo
sumário, se ao juiz ou ao Ministério Público; qual o juiz, se o de instrução ou o de julgamento,
que deve dar (ou não) a concordância à suspensão provisória do processo; onde deve o processo
permanecer durante o prazo de suspensão; a quem cabe fiscalizar o cumprimento das injunções.
A redacção ora proposta para o artigo 384.º esclarece, de forma clara, que em caso de detenção
em flagrante delito e verificando-se os pressupostos a que aludem os artigos 280.º e 281.º, é o
Ministério Público quem determina, com a concordância do juiz de instrução, o arquivamento
ou a suspensão provisória do processo, não havendo lugar à instauração de processo judicial de
sumário.
Note-se que, no regime hoje vigente, não há verdadeiramente arquivamento com dispensa de
pena ou suspensão provisória do processo na forma especial de processo sumário: numa
situação ou noutra, tais processos estão verdadeiramente em inquérito. Por exemplo, em caso
de incumprimento das injunções impostas na suspensão provisória do processo, é
inquestionável que o processo está na fase de inquérito, não na de julgamento: se estivesse
nesta, continuaria com a realização da audiência de julgamento, o que o artigo 384.º, n.º 3,
afasta; prossegue, então, com dedução de acusação18. Ao longo dos anos, tem havido alguma
18
Desde o início, a redacção desta norma nos mereceu críticas. Em verdade, percebe-se que a intenção do legislador era a de que, se o
arguido não cumprisse as injunções, o processo prosseguiria e o Ministério Público, se acusasse, poderia ainda fazê-lo na forma
abreviada, assim criando um regime de excepção ao prazo geral previsto no actual artigo 391.º-B, n.º 2. Porém, não se podia
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confusão entre suspensão provisória de processos que teve origem em detenções em flagrante
delito e suspensão provisória de processo sumário. Desde o início, a intenção do legislador foi a
de definir que, não obstante o processo se ter iniciado com uma detenção em flagrante delito
por crime que admitia o julgamento em processo sumário, também nesses casos poderia haver
suspensão provisória do processo. O processo sumário só se inicia verdadeiramente quando o
juiz manda registar e autuar nessa forma processual o expediente ou processo que o Ministério
Público lhe apresentou; se o não fizer, não chega a haver processo sumário. Por isso, se o
Ministério Público encaminhar o expediente/processo do detido em flagrante delito para a
suspensão provisória do processo, o que há verdadeiramente é um inquérito, com a
especificidade de, em caso de incumprimento das injunções, o Ministério Público poder ainda
acusar na forma abreviada, assim criando um regime de excepção ao prazo geral previsto no
actual artigo 391.º-B, n.º 2. E isto pode suceder, por razões de organização interna do Ministério
Público, quer o processo esteja num DIAP (formal ou informal), quer esteja com o Ministério
Público junto de um juízo criminal ou de um juízo de pequena instância criminal (ou seja, a
natureza do processo não é determinada pelo edifício onde o Ministério Público se encontra…).
É agora claro que compete ao Ministério Público determinar o arquivamento ou a suspensão
provisória do processo “liminar” do arguido detido em flagrante delito, após o seu interrogatório
nos termos do artigo 143.º e com a concordância do juiz de instrução, em processo da exclusiva
titularidade do Ministério Público.
A única especificidade de relevo do novo regime, por reporte ao regime geral estatuído nos
artigos 280.º e 281.º tem a ver com o facto de o juiz de instrução se dever pronunciar, no prazo
máximo de 48 horas, sobre a proposta de arquivamento ou de suspensão, por forma a
possibilitar, em caso de discordância com a posição assumida pelo Ministério Público, a remessa
oportuna dos autos para julgamento em processo sumário. Tal remessa deverá ocorrer em
momento que permita que a audiência de julgamento se inicie no prazo máximo de 20 dias após
a detenção, se o arguido requerer ao Ministério Público prazo para preparação da sua defesa ou,
caso não o requeira, no prazo máximo de 15 dias.
determinar que, em caso de prosseguimento, havia sempre lugar à acusação! Esse seria o destino normal, mas não podemos
esquecer que, prosseguindo o processo, poderá ser produzida prova que fundamente o arquivamento nos termos do n.º 1 ou 2 do
artigo 277.º, ou até ocorrer a morte do arguido ou o crime ser amnistiado, etc.
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Concluindo, a proposta em causa simplifica o regime vigente relativo ao arquivamento e à
suspensão provisória do processo, por reporte ao processo sumário, expurgando-o de uma
série de incongruências e potenciando, nessa medida, a sua aplicação, pelo que o SMMP
sufraga as alterações em causa.
i. Artigo 385.º:
Na lei vigente, está consagrado o princípio de que, se a apresentação o ao juiz não tiver lugar em
acto seguido à detenção em flagrante delito, o arguido só continua detido se houver razões para
crer que não se apresentará voluntariamente perante a autoridade judiciária na data e hora que
lhe forem fixadas, quando se verificar em concreto alguma das circunstâncias previstas no artigo
204.º que apenas a manutenção da detenção permita acautelar, ou se tal se mostrar
imprescindível para a protecção da vítima.
O que agora se propõe é manter intacto este regime para os casos em que estava previsto
(aqueles em que poderia haver julgamento em processo sumário – detenção por crime punível
com pena de prisão cujo limite máximo não seja superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso
de infracções) e, para os novos casos (puníveis com pena de prisão de máximo superior a 5 anos)
manter-se-á sempre a detenção (o arguido ficará detido até ser apresentado ao Ministério
Público). A Exposição de Motivos não contém qualquer explicação para esta alteração.
O Anteprojecto previa o princípio de que, se a apresentação ao juiz não tivesse lugar em acto
seguido à detenção em flagrante delito, todos os detidos ficariam nessa situação até à
apresentação ao Ministério Público.
Apesar de melhor do que essa, a Proposta em análise não pode merecer a concordância do
SMMP, pois sobre a mesma mantém reservas. Há um retrocesso no percurso que tem sido
trilhado pelo legislador desde a Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, no sentido de reduzir os casos de
detenção ao mínimo indispensável à administração da justiça. Com efeito, constituindo a
detenção uma restrição ao direito fundamental à liberdade previsto no artigo 27.º da
Constituição da República, integrante da categoria dos “direitos, liberdades e garantias”, está
sujeita às competentes regras do artigo 18.º, n.º 2 e 3, da mesma lei, só podendo ser
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estabelecida para proteger outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e
devendo limitar-se ao necessário para os proteger. Por outro lado, a sua inserção sistemática no
Código de Processo Penal permite destacar-lhe outras características: a provisoriedade e a
instrumentalidade cautelar e de auxílio à actividade da polícia.
Não constituem, pois, finalidades da detenção a prevenção geral negativa (de intimidação) ou a
prevenção especial (de evitar que o agente volte a delinquir), posto que as mesmas são
específicas das penas, independentemente de poderem resultar como efeito colateral de uma
detenção. A proposta em análise poderá assim colidir com o princípio da presunção de inocência
consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.
Pelo exposto, encontrando-se a detenção, tal como a prisão preventiva, vinculada aos princípios
da adequação, proporcionalidade e necessidade, como decorre ainda do artigo 261º, nº 1, in
fine, do Código de Processo Penal, a adopção cega do princípio de que o arguido deve aguardar
o julgamento em processo sumário na situação de detido, pode violar, no caso concreto, os
princípios constitucionais acima enunciados.
Não concordamos, pois, com a proposta de alteração do regime de libertação do arguido
preconizada para o artigo 385.º.
Entende, assim, o SMMP que deve manter-se o actual regime de libertação do arguido previsto
no n.º 1 do artigo 385.º, que estabelece que o arguido só continua detido se houver razões para
crer que não se apresentará voluntariamente perante a autoridade judiciária na data e hora que
lhe forem fixadas, quando se verificar em concreto alguma das circunstâncias previstas no artigo
204.º que apenas a manutenção da detenção permita acautelar, ou se tal se mostrar
imprescindível para a protecção da vítima. A experiência tem demonstrado que, em regra, os
órgãos de polícia criminal fazem uma correcta aplicação destas normas. Estas, por outro lado,
permitem acautelar que, em crimes mais graves (v.g., de homicídio), não ocorrerá libertação,
pois aí, face à elevada moldura da pena, sempre será invocável o perigo de não comparecer ou
mesmo de fuga, ou ainda o perigo de grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
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O SMMP saúda a alteração feita ao n.º 3 do artigo 385.º, que obrigará a autoridade de polícia
criminal que tenha procedido à imediata libertação do arguido por ter fundadas razões para crer
que este não poderia ser apresentado no prazo a que alude o n.º 1 do artigo 382.º, a fazer
relatório fundamentado da ocorrência e a transmiti-lo, de imediato e conjuntamente com o
auto, ao Ministério Público. Possibilitará isto o controlo pelo Ministério Público dos
pressupostos destas situações de libertação, o que até agora não acontecia.
j. Artigo 387.º:
Mantém-se, como regra geral, que o início da audiência de julgamento em processo sumário
deve ter lugar no prazo máximo de 48 horas após a detenção, salvo nos casos expressamente
previstos na lei.
Tendo em vista incrementar a realização de julgamentos em processo sumário, as alterações
preconizadas ao artigo 387.º vêm, entre outros aspectos, clarificar ou alargar alguns dos prazos
especiais já anteriormente previstos para o protelamento do início da audiência.
Assim, mantém-se a possibilidade de início da audiência até ao limite do 5.º dia posterior à
detenção, quando houver a interposição de um ou mais dias não úteis no prazo geral de 48
horas, que merece a nossa concordância pois evita a acumulação de serviço nos tribunais de
turno e permite uma gestão mais sadia das agendas dos tribunais.
Mantém-se também, destacada, a possibilidade de se iniciar a audiência no prazo de 15 dias
após a detenção, sempre que se gorar a tentativa prévia de arquivamento ou a suspensão
provisória do processo por falta de concordância do juiz de instrução, nos termos do n.º 3 do
artigo 384.º.
Alarga-se, ainda, até ao limite de 20 dias após a detenção, a possibilidade de se iniciar a
audiência nesse prazo, sempre que o arguido tiver requerido tempo para a preparação da sua
defesa ou o Ministério Público entender necessária a realização de diligências de prova
essenciais à descoberta da verdade, em conformidade com o disposto no novel artigo 382.º, n.º
5.
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Desaparece do artigo 387.º qualquer menção à possibilidade de adiamento da audiência, a qual
se deverá realizar, inclusive, na ausência do arguido, nos termos do n.º 6 do artigo 382.º, nova
redacção, sendo representado para todos os efeitos pelo respectivo defensor.
A impossibilidade do juiz titular começar a audiência nos prazos legais previstos nos n.ºs 1 e 2,
não é igualmente motivo para a não realização de julgamento em processo sumário, atenta a
sua natureza urgente.
Admite-se, como eventual motivo de interrupção da audiência, pelo prazo máximo de 20 dias, a
necessidade de fazer comparecer testemunhas devidamente notificadas ou de aguardar a
junção de exames, relatórios periciais ou documentos, que o juiz considere indispensáveis à boa
decisão da causa.
Sempre com o objectivo evidente de potenciar a realização dos julgamentos sob a forma
sumária, é atribuído carácter urgente aos exames, relatórios periciais e documentos destinados
a instruir aquele tipo de processos.
Finalmente, no n.º 8 do artigo 387.º estabelece-se que o prazo normal para a produção de prova
em processo sumário é de 60 dias, podendo, excepcionalmente, por razões devidamente
fundamentadas, designadamente por falta de algum exame ou relatório pericial, ser elevado
para 90 dias. Se se tratar de caso de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja
superior a 5 anos, ou em caso de concurso de infracções cujo limite máximo seja superior a 5
anos de prisão, esses prazos elevam-se para 90 e 120 dias, respectivamente. Estes prazos
afiguram-se-nos adequados para a tramitação desta forma de processo.
De qualquer forma, defende o SMMP que este prazo deveria ser meramente indicativo, não se
admitindo uma modificação da forma do processo em caso de sua ultrapassagem, assim
impedindo que um atraso inicial na tramitação do processo leve à remessa dos autos para uma
outra forma de processo que ainda implique maior delonga na tramitação respectiva
subsequente, pois não faz qualquer sentido remeter o processo para outra forma processual
(comum com tribunal singular, abreviado ou sumaríssimo), quando, nos termos do n.º 2 do
artigo 390.º, será o mesmo tribunal que virá a fazer o julgamento nessa outra forma
processual (excepto com intervenção do tribunal colectivo). Por outro lado, e não com menor
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importância, tal obrigará o arguido a um duplo julgamento pelos mesmos factos que, ainda que
não seja violador do princípio ne bis in idem (por não haver sentença), será sempre um duplo
estigma e por isso se afigura de evitar.
l. Artigo 389.º:
É de aplaudir a eliminação da referência espúria ao regime de substituição do Ministério
Público no início das audiências em processo sumário, que constava do n.º 1 do artigo 389.º.
O novo texto deste artigo mantém a possibilidade de o Ministério Público substituir a
apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à
detenção, excepto em caso de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo seja
superior a 5 anos, ou em caso de concurso de infracções cujo limite máximo seja superior a 5
anos de prisão, situação em que deverá apresentar acusação. Concordamos com esta solução,
pois se nos casos mais simples e frequentes (v.g., condução de veículo em estado de embriaguez
ou sem habilitação legal) o auto de notícia tem, em regra, a correcta descrição e imputação ao
arguido dos factos típicos necessários, nos mais complicados, que fogem à normalidade e aos
modelos de auto de notícia pré-estabelecidos, é necessário elaborar acusação para com precisão
delimitar o objecto do processo e os factos que são imputados ao arguido.
Mais esclarece o n.º 2, e bem, que o Ministério Público adita ao auto de notícia os factos que
forem necessários, através de despacho que poderá ser feito no próprio auto e lido em
audiência conjuntamente com os demais factos constantes daquele auto. Com efeito, é raro o
auto de notícia que refere o elemento subjectivo do crime e a consciência da ilicitude, por não
ser algo que compita ao órgão de polícia criminal determinar. Também os factos que
consubstanciem uma reincidência ou as normas respeitantes aos ilícitos e respectivas penas,
principais e acessórias, devem ser acrescentadas ao auto sempre que necessário. Ora, se isto já
é prática corrente entre os magistrados do Ministério Público, a verdade é que nem sempre era
aceite tal aditamento pelo juiz de julgamento. Com a nova redacção do artigo 389.º, n.º 1,
dissipam-se quaisquer dúvidas sobre a questão.
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O novel n.º 3 do artigo 389.º torna obrigatória para o Ministério Público, nos casos em que tiver
considerado necessária a realização de diligências de prova antes da introdução do feito em
juízo, a indicação discriminada dessa mesma prova em requerimento a apresentar com o auto
de notícia. Permite ainda, de forma feliz, que um exame ou perícia requisitados pelo Ministério
Público que não tenha chegado a tempo de acompanhar tal requerimento, possa ser junto
posteriormente, no decurso da audiência de julgamento (cfr., neste sentido, os n.ºs 6 e 7 do
novo artigo 387.º).
No que toca às alegações orais, foi eliminado o segmento que expressamente impedia a
prorrogação do prazo máximo de 30 minutos para alegações, a que não será alheio o facto de se
poderem agora discutir, em processo sumário, casos de maior complexidade criminal do que
anteriormente. O juiz poderá, assim, permitir que continue no uso da palavra aquele que,
esgotado o máximo do tempo legalmente consentido, assim fundadamente o requerer com
base na complexidade da causa – artigo 360.º, nº 3, ex vi do artigo 386.º, n.º 1.
m. Artigo 390.º:
Este artigo enumera, de forma taxativa, as situações em que é possível ao tribunal reenviar os
autos de processo sumário ao Ministério Público, para tramitação sob outra forma processual.
A este propósito, assinale-se, com agrado, que o legislador decidiu eliminar a excepcional
complexidade da causa dos fundamentos susceptíveis de justificar o reenvio dos autos para
outra forma processual. Com efeito, tal possibilidade, anteriormente consagrada (alínea c) do
n.º 1 do artigo 390.º), era motivo de muitos reenvios, frequentemente injustificados. Por outro
lado, sempre que um caso se apresente como especialmente complexo e insusceptível de ser
julgado em processo sumário no prazo máximo previsto para o efeito, deve o Ministério Público,
como habitualmente, encaminhá-lo para inquérito e não enveredar por aquela forma de
processo mais expedita. Regressou-se, pois, e bem, no entender do SMMP, à opção legislativa já
experimentada com a Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto.
13. O regime dos recursos
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No que respeita ao regime dos recursos, a Proposta de Lei em análise quer alterar os seguintes
pontos:
a. Trânsito em julgado da decisão proferida pelo juiz em processo sumaríssimo;
b. Decisões que não admitem recurso – artigo 400.º do Código de Processo Penal;
c. Desnecessidade de transcrição da sentença proferida oralmente;
d. Resposta ao recurso só após ter sido proferido despacho sobre a sua admissão;
e. Alteração do prazo de recurso;
f. Suprimento da falta de conclusões antes da admissão do recurso pelo juiz de 1ª instância;
g. Restringe-se o impedimento por decisão ou participação em recurso anterior às situações
indicadas na alínea d) do artigo 40.º.
a. Trânsito em julgado da decisão proferida pelo juiz em processo sumaríssimo – artigo 397.º
A Proposta de Lei altera a redacção do artigo 397.º com a epígrafe “decisão”, que se reporta à
decisão a proferir pelo juiz no processo sumaríssimo.
Assim, o n.º 2, que estatuía: ”O despacho a que se refere o número anterior vale como sentença
condenatória e transita imediatamente em julgado” é alterado no sentido de passar a prever que
“O despacho a que se refere o número anterior vale como sentença condenatória e não admite
recurso ordinário”.
A nova redacção é mais rigorosa, já que, apesar da lei estipular que a decisão transitava
imediatamente em julgado, o certo é que, desde que entrou em vigor a alteração a este artigo
introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, tal não acontecia, já que havia que aguardar pelo
decurso do prazo de arguição de nulidades previsto pelo n.º 3 desse mesmo artigo, aditado pela
referida Lei n.º 59/98.
b. Decisões que não admitem recurso – artigo 400.º
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A proposta de alteração vai no sentido de estabelecer que os acórdãos absolutórios proferidos,
em recurso, pelos Tribunais da Relação são irrecorríveis, excepto no caso de decisão condenatória
em 1ª instância em pena de prisão superior a 5 anos, assim como também passam a ser
irrecorríveis os acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que apliquem pena não privativa
da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos.
Com efeito, a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, ao suprimir na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º a
referência a “… ou de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de
infracções ou em que o Ministério Publico tenha usado da faculdade prevista no artigo 16º, n.º
3”, originou que os acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações após
condenação na primeira instância, passassem a ser recorríveis para o Supremo Tribunal de
Justiça.
Reafirma-se, deste modo, não só a irrecorribilidade dos acórdãos das Relações, em recurso, por
crime susceptível de pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos, como se esclarece
que são de igual modo irrecorríveis os acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas
relações após condenação na primeira instância em pena de multa ou em pena de prisão não
superior a 5 anos.
Embora se possa argumentar que esta limitação ao direito ao recurso restringe direitos
processuais do arguido, o certo é que, tendo em conta as molduras penais em causa, tal restrição
decorre da necessidade de assegurar uma intervenção pronta e eficaz do Supremo Tribunal de
Justiça, mantendo na sua esfera de competência jurisdicional apenas os casos de maior
gravidade.
c. Desnecessidade de transcrição da sentença produzida oralmente – artigo 101.º, n.ºs 4 e 5
Em regra deixa de ser necessária a transcrição da sentença que tenha sido produzida oralmente.
Só assim não acontece quando o relator, em despacho fundamentado, considerar que a
transcrição é absolutamente indispensável para a boa decisão da causa.
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Com efeito, estabelece o n.º 4 do art.º 101º, na redacção dada pela actual proposta de lei que
“Sempre que for utilizado registo áudio ou áudio vídeo não há lugar a transcrição e o funcionário
………., em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior”.
E o n.º 5 dispõe que: “Em caso de recurso, quando for absolutamente indispensável para a boa
decisão da causa, o relator, por despacho fundamentado, pode solicitar ao tribunal recorrido a
transcrição de toda ou de parte da sentença.”
Optou-se assim por aplicar ao recurso o regime geral das transcrições, limitando-a aos casos em
que tal se mostre indispensável à boa decisão da causa.
A propósito das alterações ao Código de Processo Penal de 2007, no que respeitava à necessidade
de transcrição para efeitos de recurso sobre matéria de facto, dizia a Sr.ª Desembargadora Dr.ª
Ana Brito, na altura docente do Centro de Estudos Judiciários: “A gravação está mais próxima da
prova produzida. Mas a extensão e complexidade de muitos depoimentos, sem transcrição, torna
problemático o acesso e o manuseamento da prova, bem como a localização dos excertos
relevantes”.
Todavia, em suma, parece-nos que tais alterações fazem todo o sentido e permitirão uma decisão
mais célere pelo tribunal superior, desde que a excepção não se transforme em regra – ou seja,
que no futuro não se considere, caso a caso, na maior parte dos processos, que a transcrição é
afinal essencial para a boa decisão da causa.
d. Resposta ao recurso só após ter sido proferido despacho sobre a sua admissão – artigos
411.º, n.º 6, 413.º, n.º 1, e 414.º, n.º 1,
A alteração à redacção dos artigos 411.º, n.º 6, 413.º, n.º 1, e 414.º, n.º 1, visa o regresso ao
sistema anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
Na verdade, a experiência veio demonstrar que a notificação oficiosa do recurso aos sujeitos
processuais por ele afectados, prevista na Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em nada contribui
para a aceleração da tramitação processual. Antes pelo contrário, verificou-se que em muitos
casos que o sujeito processual afectado pelo recurso era oficiosamente notificado, apresentava a
sua resposta e o recurso acabava por não ser recebido, traduzindo-se aqueles actos processuais
- 75 / 86 -
(o da notificação e o da elaboração e apresentação da resposta) em actos inúteis que causavam
demora desnecessária no processo.
Saúda-se, pois, a alteração proposta.
e. Alteração do prazo de recurso e resposta – artigos 411.º e 413.º
O prazo de interposição de recurso é actualmente de 20 dias, a não ser que tenha por objecto a
reapreciação da prova gravada, caso em que passa a ser de 30 dias – artigo 411º, n.ºs 1 e 4.
A fim de terminar com esta dualidade de prazos – que, na prática, quanto às sentenças, tem
gerado algumas dificuldades na determinação do momento em que transita a decisão, por um
lado, e não se traduz em qualquer ganho de tempo, por outro19 – uniformiza-se o prazo de
recurso, que passa a ser de 30 dias.
Não sendo insensível às apontadas dificuldades de determinação da data do trânsito em julgado,
estranha-se que uma reforma que aponta para a celeridade como um dos objectivos principais
das alterações a introduzir às regras processuais, opte por uniformizar o prazo escolhendo o
maior.
No Código de Processo Penal de 1929, o prazo geral de interposição de qualquer recurso era de 5
dias – artigo 651.º; na versão original do actual Código de Processo Penal, o prazo era de 10 dias –
artigo 411.º, n.º 1; a reforma do Código de Processo Penal de 1998 – Lei n.º 59/98, de 25 de
Agosto – pretendeu assegurar o recurso da matéria de facto, a interpor para os tribunais da
Relação (artigos 427º, 428º, 432º, n.º 1, alínea c)), passando o prazo regra a ser de 15 dias. Face
às dificuldades inerentes a um recurso sobre matéria de facto, desde logo as que se prendem
com o acesso e cópia das gravações e transcrição (quando é o caso) – e dado que o recorrente
que pretenda impugnar matéria de facto passou a ter de especificar os concretos pontos de facto
e as concretas provas que impõem decisão diferente da recorrida – artigo 412.º, n.º 3, com a
redacção dada pela Lei n.º 48/2007 – ou seja com o ónus de delimitar com toda a precisão quais
19
Pois só no final dos 30 dias é que se pode saber se houve ou não recurso da matéria de facto. A resposta à questão pode ser
determinante num caso em que, entre o 21 e o 30 dia, o arguido, que havia sido condenado em pena de prisão suspensa na sua
execução, cometeu novo crime. Antes de passarem os 30 dias não é possível praticar qualquer acto, pois até esse momento pode haver
recurso.
- 76 / 86 -
os pontos da matéria de facto controvertidos, definindo, deste modo, o próprio objecto do
recurso, o prazo regra de 15 dias passou para 20 dias e no caso do recurso ter por objecto a
reapreciação da prova gravada, passou o prazo para 30 dias.
Se tivermos em consideração que o prazo de resposta é igual ao prazo de interposição de recurso,
fácil é concluir que o processamento de qualquer recurso que venha a ocorrer consumirá cerca
de dois meses e meio – tempo que se afigura ser desajustado para os recursos em que não há
possibilidade de impugnação da matéria de facto, principalmente se tivermos em consideração
que o ritmo de vida tende a acelerar cada vez mais e não o contrário.
Na verdade, o recurso de decisões finais é complexo, principalmente quando se recorre de
matéria de facto, mas não podemos perder de vista que o prazo de que aqui tratamos é o prazo
regra de todo e qualquer recurso, aplicável a qualquer questão intercalar que admita recurso, por
simples que seja, como também abrangerá o despacho que aplica medidas de coacção,
nomeadamente as privativas da liberdade, o que, tendo em conta a inerente urgência de tais
casos, nos parece particularmente lesivo dos interesses em causa.
Assim, propomos a existência de dois prazos para recurso/resposta: como regra geral, de 20 dias;
como regime especial para as sentenças/acórdãos, de 30 dias.
Tal obrigaria às seguintes alterações:
Artigo 411.º
[…]
1 - O prazo para interposição de recurso de sentenças e acórdãos é de 30 dias; quanto às
demais decisões, é 20 dias. Tal prazos conta-se:
a) […];
b) […];
c) […].
2 — […]
3 — O requerimento de interposição do recurso é sempre motivado, sob pena de não
admissão do recurso, podendo a motivação, no caso de recurso interposto por declaração na
acta, ser apresentada no prazo previsto no n.º 1, contado da data da interposição.
- 77 / 86 -
4 — Revogado
5 — […]
6 — O requerimento de interposição ou a motivação são notificados aos restantes sujeitos
processuais afetados pelo recurso, após o despacho a que se refere o n.º 1 do artigo 414.º,
devendo ser entregue o número de cópias necessário.
7 — […]
Artigo 413.º
[…]
1 - Os sujeitos processuais afetados pela interposição do recurso podem responder em prazo
idêntico ao do recorrente, contado da notificação referida no n.º 6 do artigo 411.º.
2 – Revogado.
3 - […].
4 - […].
Note-se, no entanto, que se se mantiver o texto da Proposta de Lei, sempre haverá que alterar o
artigo 411.º, n.º 3: também nesse caso o prazo para apresentação da motivação do recurso
interposto em acta deve ser de 30 dias (igual ao prazo normal de recurso) e revogar o n.º 2 do
artigo 413.º.
f. A falta de conclusões deve ser suprida antes da admissão do recurso – artigos 414.º, n.ºs 1 e
2, e 417.º, n.º 3
Nos termos das alterações constantes na proposta de lei em análise, o “recurso não é admitido
quando a decisão for irrecorrível, quando for interposto fora de tempo, quando o recorrente não
reunir as condições necessárias para recorrer, quando faltar a motivação ou, faltando as
conclusões, quando o recorrente não as apresente em 10 dias, após ser convidado a fazê-lo” –
artigo 414.º, n.º 2.
- 78 / 86 -
Actualmente, o convite para o recorrente apresentar, completar ou esclarecer as conclusões
formuladas, está previsto no artigo 417.º, n.º 3, e é formulado pelo relator.
Ora, a partir do momento em que a sanção prevista para a omissão de conclusões é a rejeição do
recurso, faz todo o sentido a alteração proposta, em nome da economia processual.
Mal se compreende que, ao não serem apresentadas conclusões, mesmo depois do recorrente
ser notificado para o fazer, sob pena de rejeição do recurso, que o respectivo despacho de
rejeição não seja logo proferido no início da tramitação do recurso e que o processo seja
remetido ao tribunal superior para aí ser proferido o despacho de rejeição.
De todo modo, caso não tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 414.º, n.º 2, no
tribunal a quo (e não 411º, n.º 2, como se refere na proposta, certamente por lapso), o relator
continua a poder fazê-lo, convidando, então, o recorrente a apresentar as conclusões, mantendose a possibilidade do convite ser no sentido do recorrente completar ou esclarecer as conclusões
formulados.
g. Em caso de nulidade da sentença e de reenvio à 1ª instância, uma vez interposto recurso da
nova decisão, o processo será distribuído ao mesmo relator, salvo em caso de impossibilidade –
artigo 426.º, n.º 4
O aditamento do n.º 4 ao artigo 426º vai permitir que conheça do recurso quem já anteriormente
estudou o processo e que apenas não decidiu o recurso em causa, por ter tido necessidade de o
reenviar para novo julgamento.
É, pois, de aplaudir a solução proposta.
h. O regime dos impedimentos por participação em processo – artigo 40.º
Propõe o Governo a alteração da alínea d) do n.º 1 do artigo 40.º, que passaria a prescrever:
Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do
processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em
decisão de pedido de revisão anterior.
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Fá-lo, esclarecendo que «aproveitou-se a iniciativa para clarificar que o impedimento por decisão
ou participação em recurso anterior apenas se verifica nos casos agora indicados na alínea d) do
artigo 40.º.»
Actualmente, esta alínea, que foi inserida pela Lei n.º 48/2007, prescreve apenas: «Proferido ou
participado em decisão de recurso ou pedido de revisão anteriores.» Estão assim incluídos todos os
casos em que o juiz tenha participado em qualquer decisão de recurso ou pedido de revisão
anteriores, mesmo sobre qualquer decisão interlocutória (v.g., a constituição como assistente, o
levantamento de uma apreensão, a autorização para qualquer diligência de inquérito, a
intervenção de uma parte civil, etc.).
Propõe-se, pois, a redução dos casos de impedimento nos tribunais superiores aos juízes que
tenham proferido ou participado em decisão de recursos anteriores mais importantes: ou que
tenham conhecido, a final, do objecto do processo, ou de decisão instrutória, ou de decisão que
tenha aplicado medida de coacção de obrigação de permanência na habitação ou de prisão
preventiva, ou de pedido de revisão anterior.
Concorda-se com a alteração proposta. Efectivamente, não existe justificação material para a
existência de impedimento para os demais casos em que o juiz conheceu de recursos. A proposta
reduz os impedimentos aos casos em que verdadeiramente se justifica a sua existência por o
conhecimento do recurso ter obrigado o juiz a conhecer e pronunciar-se sobre o núcleo principal
de factos imputados ao arguido.
Note-se que, em processos muito complexos, cada vez mais frequentes, e com o aumento do
número de recursos, poderá hoje suceder que, quando venha a subir um recurso sobre a
sentença/acórdão, quase todos os juízes do Tribunal da Relação respectivo estejam já impedidos
em virtude dos recursos interlocutórios de que antes conheceram.
14. Regime da recusa de depoimento – artigo 134.º do Código de Processo Penal – Proposta de
alteração do SMMP
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a. Estabelece o n.º 1 do artigo 131.º do Código de Processo Penal o princípio geral de que
qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser
testemunha e só pode recusar-se nos casos previstos na lei.
Algumas das situações em que a lei atribui à testemunha a faculdade de recusar depoimento
estão no artigo 134.º do mesmo código, que, no seu n.º 1, estabelece que podem recusar-se a
depor como testemunhas os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2.º grau, os
adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido; e quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem,
sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às
dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação. O n.º 2
acrescenta que a entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de
nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o
depoimento. Subjacentes a esta norma estão razões de tutela da relação familiar entre
testemunha e arguido: para evitar conflitos de deveres (entre o dever de testemunhar com
verdade e o dever de não contribuir para a incriminação desse familiar) e conflitos entre as
pessoas (testemunha e arguido).
b. Aquilo a que se assiste diariamente nos tribunais é a uma utilização perversa deste direito por
parte de muitas testemunhas que se enquadram nas categorias do n.º 1 do artigo 134.º, que, ao
longo das várias fases do processo, ora vão decidindo depor, ora vão decidindo não depor.
Este sistema confere à testemunha um poder de “coacção” sobre o arguido, pois, ainda que o
crime em causa tenha natureza pública, fica com um poder real de, com o silêncio ou o seu
depoimento, fazer parar (arquivamento) ou avançar (acusação) o processo, de provocar uma
absolvição ou uma condenação, utilizando essa possibilidade como forma de levar o arguido a
adoptar uma conduta que pretende, sendo que muitas vezes é absolutamente lícito e
compreensível à testemunha esperar essa conduta (v.g., não ser mais maltratada física ou
psicologicamente), mas muitas outras assim não sucede (v.g., o pagamento de determinada
- 81 / 86 -
indemnização, determinado acordo de divórcio ou de regulação das responsabilidades parentais,
com pensões elevadas).
Leva isto a que, frequentemente, depois de proferida acusação e pronúncia tendo por base
determinados depoimentos, se chegue a julgamento, não raras vezes com o arguido sujeito a
medida de coacção gravosa, como a prisão preventiva, e aqueles que antes haviam
testemunhado agora o recusem fazer, isso conduzindo à absolvição.
Nesses casos, assiste-se, pois, a uma instrumentalização do processo penal e dos tipos penais a
que este deve dar tutela efectiva, com consequente descrédito da imagem dos tribunais e dos
que neles querem e devem aplicar a Justiça.
c. Há, pois, que corrigir esta distorção.
Duas soluções se perfilam:
uma, a de permitir em julgamento a leitura do depoimento de quem antes depôs e
naquele momento o recusa fazer, em modo similar ao que se supra se defendeu para as
declarações prestadas por arguido antes do julgamento, valendo aqui um argumento de
“maioria de razão” (mal se compreenderia que, tendo ambos o “direito ao silêncio”, se
consagrasse um regime mais gravoso para o arguido do que para as testemunhas);
outra, a de estabelecer que quem, em qualquer fase do processo, tendo a faculdade de
recusar depoimento, o decide prestar, não pode mais tarde recusar fazê-lo.
Ambas as soluções são “integráveis” no nosso processo penal, não gerando qualquer incoerência
sistemática ou de princípios, e não padecendo de qualquer inconstitucionalidade.
O Código de Processo Penal suíço, com o seu pragmatismo, no seu artigo 175.º20 opta
expressamente pela primeira das soluções, estabelecendo que a testemunha tem sempre o
20
Que, na versão em língua francesa, tem a epígrafe «Exercice du droit de refuser de témoigner» e o seguinte teor:
1 Le témoin peut en tout temps invoquer le droit de refuser de témoigner même s’il y avait renoncé.
2 Les dépositions faites par un témoin après qu’il a été informé du droit de refuser de témoigner peuvent être exploitées comme
preuves, même s’il invoque ultérieurement ce droit, du moment qu’il y avait renoncé.
- 82 / 86 -
direito de recusar depoimento, mesmo que antes a isso tenha renunciado, mas também que,
caso recuse, o testemunho antes prestado pode ser utilizado como prova.
Tendemos a preferir também a primeira das soluções, por vários motivos:
em primeiro lugar, porque, ainda que antes tenha decidido prestar depoimento,
continuam a ser válidas mais tarde as razões que fundamentam a atribuição do direito a
não o fazer; o depoimento forçado poderia, por um lado, fugir à verdade e conduzir ao
perjúrio, e, por outro e consequentemente, constituir factor de revitimização;
depois, tendo optado por prestar depoimento, a testemunha deixa de estar vulnerável a
qualquer tipo de pressão ou tentativa de condicionamento por parte do arguido seu
familiar, pois este saberá que ela será inútil e o depoimento já prestado poderá sempre
ser lido e valorado; assim não sucederia com a outra solução, pois, ainda que obrigada a
depor, a testemunha poderia ser coagida a recusá-lo e a sofrer as consequências dessa
recusa, assim também isto contribuindo para a sua revitimização;
finalmente, esta solução também permite obviar a que o próprio arguido possa ser
“coagido” pela testemunha, nos termos supra expostos, pois ambos saberão que as
declarações que antes prestou serão utilizáveis e valoráveis no julgamento.
Para a consagração desta solução bastará a revogação do n.º 6 do artigo 356.º do Código de
Processo Penal.
Importante será também consagrar a obrigação de às testemunhas previstas no n.º 1 do artigo
134.º do Código de Processo Penal ser feita também a advertência de que, caso prestem
depoimento, as suas declarações poderão sempre ser utilizadas posteriormente no processo,
pois tal afigura-se como elemento importante para a formação da sua vontade.
d. Assim, as alterações legislativas que o SMMP propõe são:
a eliminação do n.º 6 do artigo 356.º do Código de Processo Penal;
- 83 / 86 -
a alteração do n.º 2 do artigo 134.º, acrescentando-se-lhe a frase “e de que, caso o
prestem, as suas declarações poderão sempre ser utilizadas posteriormente no
processo”.
15. Conclusão
As propostas apresentadas parecem-nos globalmente muito positivas, sendo algumas delas de grande
coragem e lucidez. É o caso do julgamento em processo sumário e do regime das declarações de
arguidos e de testemunhas (aqui fazendo uma rotura necessária com alguns mitos que, ao longo dos
anos, foram constantemente repetidos em Portugal, criando a ideia de que a mudança que o SMMP
reclamava tornaria Portugal num Estado que não respeitaria os direitos fundamentais, quando, em
verdade, na Europa era Portugal que estava já quase totalmente isolado a estabelecer tão fortes
restrições à possibilidade de reproduzir e valorar em julgamento essas declarações).
Há, no entanto, outros aspectos que merecem a nossa crítica e que esperamos venham a ser corrigidos
pela Assembleia da República.
*
*
*
Lisboa, 16 de Julho de 2012
A Direcção do
Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
- 84 / 86 -
ÍNDICE
1.
2.
Introdução .............................................................................................................................. 2
Do registo e transcrição dos autos – artigos 99.º e 101.º .......................................................... 3
a. Proposta.......................................................................................................................................3
b. Apreciação ...................................................................................................................................4
c. Proposta SMMP ...........................................................................................................................8
3. O regime das notificações do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, do
assistente e das partes civis – artigo 145.º ............................................................................... 9
a. Proposta.......................................................................................................................................9
b. Apreciação ...................................................................................................................................9
4. O regime da notificação do despacho de arquivamento ao denunciante quando o inquérito não
correu termos contra pessoa determinada – artigo 113.º....................................................... 10
a. Proposta.....................................................................................................................................10
b. Apreciação .................................................................................................................................10
5. Regime das perícias – artigos 154.º a 156.º, 172.º e 269.º ...................................................... 11
a. Proposta.....................................................................................................................................11
b. Apreciação .................................................................................................................................13
6. O âmbito do poder jurisdicional na aplicação de medidas de coacção durante o inquérito –
artigo 194.º ........................................................................................................................... 15
a. Proposta.....................................................................................................................................16
b. Apreciação .................................................................................................................................16
7. O regime da extinção da medida de coacção de termo de identidade e residência – artigos
196.º e 214.º ......................................................................................................................... 19
a. Proposta.....................................................................................................................................19
b. Apreciação .................................................................................................................................19
8. A suspensão provisória do processo: para crimes dolosos puníveis com pena acessória de
proibição de conduzir veículos motorizados – artigo 281.º ..................................................... 21
a. Proposta.....................................................................................................................................21
b. Apreciação .................................................................................................................................22
9. O regime da admissão de novas provas durante o julgamento – artigo 340.º ......................... 30
a. Proposta.....................................................................................................................................30
b. Apreciação .................................................................................................................................31
10. Possibilidade de utilização em julgamento das declarações que o arguido prestou nas fases
preliminares do processo; direitos e deveres dos arguidos; interrogatórios de arguido – artigos
61.º, 64.º, 141.º, 144.º e 357.º ............................................................................................... 35
a. Propostas ...................................................................................................................................35
b. Da eliminação da obrigatoriedade de o arguido responder sobre os seus antecedentes
criminais nas fases de inquérito e instrução .................................................................................36
c. Da obrigatoriedade da assistência por defensor.......................................................................37
d. Da advertência ao arguido de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que
prestar em interrogatório perante autoridade judiciária durante o inquérito ou instrução
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poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não prestar
declarações em audiência de julgamento, sendo livremente valoradas como prova..................37
e. Da utilização no processo das declarações do arguido ............................................................38
e.1. Propostas de alteração .................................................................................................38
e.2. Apreciação global ..........................................................................................................39
f. Necessidade de norma transitória .............................................................................................47
g. Registo dos interrogatórios judiciais de arguido .......................................................................48
h. Interrogatórios do arguido pelos órgãos de polícia criminal ....................................................48
11. Da reprodução em audiência das declarações anteriormente prestadas por testemunhas –
artigo 356.º ........................................................................................................................... 49
a. Proposta.....................................................................................................................................50
b. Apreciação global ......................................................................................................................50
12. O regime do processo sumário e a competência do tribunal colectivo .................................... 55
a. Proposta.....................................................................................................................................56
b. Artigo 13.º .................................................................................................................................56
c. Artigo 14.º:.................................................................................................................................57
d. Artigo 16.º: ................................................................................................................................57
e. Artigo 381º:................................................................................................................................58
f. Artigo 382.º: ...............................................................................................................................60
g. Artigo 383.º:...............................................................................................................................62
h. Artigo 384.º: ..............................................................................................................................62
i. Artigo 385.º:................................................................................................................................67
j. Artigo 387.º:................................................................................................................................69
l. Artigo 389.º:................................................................................................................................71
m. Artigo 390.º: .............................................................................................................................72
13. O regime dos recursos ........................................................................................................... 72
a. Trânsito em julgado da decisão proferida pelo juiz em processo sumaríssimo – artigo 397.º 73
b. Decisões que não admitem recurso – artigo 400.º...................................................................73
c. Desnecessidade de transcrição da sentença produzida oralmente – artigo 101.º, n.ºs 4 e 5..74
d. Resposta ao recurso só após ter sido proferido despacho sobre a sua admissão – artigos
411.º, n.º 6, 413.º, n.º 1, e 414.º, n.º 1, ........................................................................................75
e. Alteração do prazo de recurso e resposta – artigos 411.º e 413.º ...........................................76
f. A falta de conclusões deve ser suprida antes da admissão do recurso – artigos 414.º, n.ºs 1 e
2, e 417.º, n.º 3..............................................................................................................................78
g. Em caso de nulidade da sentença e de reenvio à 1ª instância, uma vez interposto recurso da
nova decisão, o processo será distribuído ao mesmo relator, salvo em caso de impossibilidade –
artigo 426.º, n.º 4 ..........................................................................................................................79
h. O regime dos impedimentos por participação em processo – artigo 40.º ...............................79
14. Regime da recusa de depoimento – artigo 134.º do Código de Processo Penal – Proposta de
alteração do SMMP ............................................................................................................... 80
15. Conclusão.............................................................................................................................. 84
ÍNDICE.......................................................................................................................................... 85
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