Prosa e Verso Benjamin II

Transcrição

Prosa e Verso Benjamin II
11/9/2010
O Globo
PROSA&VERSO - 11/09/2010
Discutir Walter Benjamin no campo do horror Sociólogo comenta seminário sobre filósofo que
acontecerá em antigo centro de execução e tortura na Argentina
Alejandro Kaufman
Em Buenos Aires, na Esma [antiga Escuela Superior de Mecánica de la Armada, hoje Escuela de Suboficiales
de Mecánica de la Armada, centro de formação de oficiais da Marinha que foi usado como centro de detenção,
tortura e assassinato durante a ditadura argentina], em outubro próximo, a presença acadêmica e intelectual de
um conjunto de estudiosos da obra de Walter Benjamin, assim como de quem estuda problemas filosóficos e
sociais sob sua inspiração, acontece por razões que ultrapassam o interesse acadêmico e intelectual.
O ultrapassam pelas melhores razões para tal extrapolação: porque a leitura de Benjamin no Rio da Prata,
localização inaugural das primeiras traduções de suas obras ao castelhano, acaba sendo esclarecedora dos
acontecimentos que o mal radical produziu nessas terras.
Se um primeiro olhar apressado se interrogará sobre a tenacidade com que o leitor riopratense recorreu e
recorre tantas vezes às fontes europeias, leituras como as do exilado berlinense nos permitirão intuir certa
singularidade, depois de um longo trajeto marcado por distrações e desvios. O que elas nos permitirão
compreender é que a cultura derivativa que nossos leitores riopratenses cultivaram e cultivam também encontra
sua réplica mimética e especular no acontecimento do mal: os perpetradores se inspiraram eles mesmos nos
paradigmas nacional-socialistas europeus para o tortuoso programa em que praticaram o extermínio de 1976 em
diante, o extermínio dos “desaparecidos”.
Uma releitura depois do desaparecimento, do exílio Se a primeira geração de tradutores e leitores de Benjamin
formou parte ostensiva de uma matriz de crítica cultural e estética, a geração de leitores que o relê a partir da
Esma o faz depois do horror da ditadura, depois do horror da desaparição e do exílio externo e interno, depois
do cárcere e da tortura, quando se impõe a pergunta de Theodor Adorno sobre como é possível viver depois
do horror, sobretudo quem escapou por acaso com vida, e a quem normalmente deveriam ter matado.
Sem o recurso a este problema, a leitura e releitura de Walter Benjamin na Esma não seria mais do que um gesto
integrado ao mercado e ao intercâmbio de bens culturais. Algo que não pode deixar de acontecer no mundo
capitalista, em que a relação social ineludível e essencial é a do intercâmbio de bens de toda espécie. Adorno
apontava a frieza como princípio fundamental da subjetividade burguesa, sem a qual Auschwitz não teria sido
possível.
Quem lê e relê Benjamin depois do horror o faz imbuído da subjetividade do sobrevivente, disposto a contrapor
a memória diante da frieza burguesa que promete uma duração indolor numa época sem horizontes.
Trata-se do sobrevivente que se nega a crescer em meio ao esquecimento que toda época, mas com mais
motivos a nossa, dispõe como caminho traçado à maneira de uma segunda natureza.
Inclinação ética e política com a atualidade Coloca-se a pergunta pela memória no sentido benjaminiano da
razão anamnésica. É uma pergunta que se interroga pelo passado como trânsito para a interrogação radical
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sobre o presente como acontecimento e sobre a condição de justiça na atualidade. É então a pergunta que se
compromete como uma inclinação ética e política tanto com a atualidade como com o futuro do “nunca mais”, o
advento do horror.
A filosofia da história de Benjamin não se lê então como uma reivindicação da memória como instância
reconstrutiva do passado, mas como razão anamnésica — sustentação da sensibilidade redentora em direção ao
passado, por um modo subjetivo que estabeleceria uma relação com o passado como referente. Como tanto
explicou Yerushalmi, não se trata de um modo distinto (instância reconstrutiva) de recuperar o passado, mas de
estabelecer uma relação com o presente por meio de um processo de elaboração cuja orientação temporal
aponta para o passado, mas sem estabelecer com ele um vínculo de referência em qualquer sentido objetal que
possa resultar familiar ao fundo objetivista que percorre certa bibliografia sociológica ou filosófica.
A percepção benjaminiana não opta entre “não reconstruir os feitos do passado” e “recordá-los”, porque não
“recorda” e sim experimenta seu significado por meio de configurações narrativas.
Essas configurações narrativas, as alegorias, as formas do ensaio, não dão conta de uma recordação do
passado, mas daquilo que os mortos nos dizem sobre o presente sem palavras nem representações.
O “passado presente” se manifesta como inquietude e compreensão do presente, como relação com um aqui e
agora em dívida com o passado, mas sem satisfações referenciais.
Por isso não é uma “lembrança”, mas “razão anamnésica” (rememorativa). O redentor benjaminiano, cifra da
operação anamnésica, não é “mandato de um ato messiânico de redenção”, como às vezes foi lido, nem é uma
subjetividade inscrita no regime da norma, nem da obediência, nem da legislação, nem da culpa, nem do castigo.
Confronto com a barbárie nos documentos da cultura O judaísmo de Benjamin — provocação da reminiscência
sem solução e sem objeto — não é suscetível de interpretação por parte da autoridade escolar cujo índice se
volta sobre as palavras que fluem e circulam numa desordem que deve ser remediada. Em vez disso, é crítica da
violência.
Violência como atravessamento teológico-político da história, como limite ético de conduta das possibilidades
de um sujeito que se enfrenta, como disse Derrida, com a necessidade de comer. O “é preciso comer” define o
solo do espectro da violência que nos opõe e irmana com nossa animalidade intrínseca, com a intuição e
compreensão de que não há representação possível de uma comunidade nem imaginação coletiva sequer
suscetível de narração verossímil sem o confronto com a barbárie inscrita em todo documento da cultura, como
disse Benjamin em seus fragmentos sobre a história.
A crítica benjaminiana é inspirada pela iminência dos catastróficos acontecimentos europeus da Segunda Guerra,
e, em sua posteridade, pela repetição do horror a que assistimos ainda uma e outra vez.
Sua leitura e releitura, desta vez na Esma — o Auschwitz argentino — volta a nos iluminar na busca incansável
por uma humanidade emancipada de suas — nossas — próprias e inevitáveis fraquezas.
ALEJANDRO KAUFMAN é sociólogo, professor da Universidade de Buenos Aires e da Universidade de
Quilmes
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