Restos e vestígios de uma carta rasurada

Transcrição

Restos e vestígios de uma carta rasurada
33
RESTOS E VESTÍGIOS DE UMA CARTA RASURADA
Ana Carolina Cernicchiaro
Resumo: Partindo do conto “A carta roubada”, de Poe, o presente ensaio pretende pensar o resíduo,
o resto e o vestígio na literatura, e nas artes em geral. Assim como o chefe de polícia busca uma carta imaculada e idêntica à original, a história oficial busca uma origem identitária e pura que forme e
funde um cânone. Nesse sentido, só uma teoria literária que, seguindo a lição de Dupin, se detém no
roto, no amassado, é capaz de perceber o que ficou escondido nesse murmúrio sob a história. São os
restos da decantação, o caput mortuum ou o litter; impurezas insignificantes que sempre estiveram à
margem da história, mas que podem, com um exercício de anacronismo, revelar imagens dialéticas
tipicamente benjaminianas, onde o presente ilumina o passado. Este passado, uma vez iluminado,
torna-se uma força no presente e reabre a história. Nesta fissura, emerge uma história dos vencidos,
das cartas rotas, rasuradas, que possuem dentro de si as “verdadeiras” cartas roubadas.
Palavras-chave: “A carta roubada” · história · literatura
Abstract: The purpose of this paper is to reflect on the significance of remains, or traces, in literature and the arts in general. In Edgar Allan Poe’s short story “The Purloined Letter”, the Parisian
police search for an immaculate letter, identical to the original; likewise, the official history seeks a
pure origin so as to form and found a canon. Only a literary theory that follows Dupin’s lesson and
pays attention to the what is not neat, perfect, can perceive what lies hidden below the remains of
history. The insignificant impurities, the caput mortuum at the margin of history, can reveal, by
means of an exercise in anachronism, dialectical images through which the present can illuminate
the past, so that it becomes a force capable of reopening history. Through this gap emerges a history
of crumpled letters that contain the “true” purloined letters.
Keywords: “The Purloined Letter” · history · literature
En centenares de documentos leídos y en millares de documentos no leídos aún sobreviven en el Archivo las voces de los difuntos, y
la piedad del historiador tiene el poder de
volver a conferir un timbre a las voces inaudibles.
Aby Warburg 1
Na procura pela carta roubada, Monsieur G, o chefe da polícia parisiense, empreende
uma busca minuciosa na casa do ministro D., revista os lugares mais secretos, os móveis, as
paredes, os ladrilhos, a biblioteca, os livros, enfim, cada detalhe. “I fancy that I have investigated every nook and corner of the premises in which it is possible that the paper can be
concealed” 2 , diz o policial do famoso conto de Poe, “The purloined letter”.
Entretanto, a carta está “a little too self-evident” para ser encontrada. Seu paradeiro não
é exatamente um esconderijo, antes o lugar próprio para uma carta, um porta-cartões. Aliás, não um porta-cartões qualquer, mas sim um porta-cartões barato, vagabundo, um depo1
2
WARBURG. Arte del retrato y burguesia florentina, p. 21.
POE. The purloined letter, p. 234.
CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE ·, 2009 · Belo Horizonte
34
sitório indigno de qualquer documento importante. “At length my eyes, in going the circuit
of the room, fell upon a trumpery fillagree card-rack of pasteboard, that hung dangling by a
dirty blue ribbon, from a little brass knob just beneath the middle of the mantel-piece”, 3
descreve Dupin. A própria carta estava amassada, amarrotada, já não parecia mais uma
carta real, sofisticada, bela, pura; pelo contrário, era uma carta plebéia, rota, maculada,
rasgada. “In this rack, which had three or four compartments, were five or six visiting cards
and a solitary letter. This last was much soiled and crumpled. It was torn nearly in two,
across the middle”, 4 conta Dupin, concluindo que a aparência da carta pretendia sugeri-la
como um documento sem valor: “the dirt; the soiled and torn condition of the paper (…) so
suggestive of a design to delude the beholder into an idea of the worthlessness of the
document”. 5
É justamente por conta desta má condição da carta que Monsieur G. não pode encontrála. Ele está tão determinado na busca por um original que é incapaz de perceber o valor
secreto que a carta rota possui. Para o policial, ela é apenas um resto insignificante, um
lixo, “a letter, a litter, uma carta, um lixo”, 6 diz Jacques Lacan ao lembrar, a partir de Joyce,
a homofonia das duas palavras inglesas.
Se seguirmos esta linha de pensamento, é possível partir do conto de Poe para vislumbrar como a investigação do chefe de polícia se assemelha ao processo de formação da história da literatura e das artes em geral. Da mesma maneira que Monsieur G. procura uma
carta imaculada e idêntica à original, a história oficial busca uma origem identitária e pura
que forme e funde um cânone. Mais do que a memorização do original, a história carrega
em si uma experiência coletiva de esquecimento dos restos, do roto, do amassado. Enquanto espaço de exclusão, funciona como um cenário onde os holofotes estão estrategicamente
iluminados sobre um único ponto, tornando os outros elementos da cena fantasmagóricos,
como vestígios ou restos.
A carta rota é este resto, aquilo que sobra da decantação ou o que é impossível de ser
dissolvido na solução, um caput mortuum, para usar uma expressão que Lacan empresta da
alquimia em sua análise do conto de Poe. Ela é aquilo que não é representado, aquilo que é
insignificante, que não é visto por Monsieur G., uma espécie de murmúrio sob a história ou
uma história que não se tornou História.
Importante reparar que esta dicotomia entre o que se torna história e o que fica abaixo
dela, entre a carta que tem valor e a que não tem, não é neutra ou involuntária, é antes uma
decisão política. Como explica Franco Rella, a partir de Jacques Le Goff, apoderar-se da
memória é um dos objetivos políticos fundamentais das classes, dos grupos ou dos indivíduos, que dominam as sociedades históricas. Por isso, ao poder exercido por meio da memória, responde a destruição da memória, o esquecido. 7
Semelhante consideração faz Walter Benjamin, para quem a história é uma sucessão de
vitórias dos poderosos. Neste sentido, a idéia de história universal é falsa, simplesmente
porque não é universal, porque contém como princípio a exclusão. Paralela à História com
3
POE. The purloined letter, p. 248.
POE. The purloined letter, p. 248.
5
POE. The purloined letter, p. 249.
6
LACAN. O seminário sobre A carta roubada, p. 33.
7
RELLA. Metamorfosis: imágenes del pensamiento, p. 36.
4
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 33-40.
35
letra maiúscula, permanece, sucumbe, ou às vezes luta (e aí o sentido da rebelião), uma
outra história, uma história dos vencidos, dos que não têm história, dos que estão abaixo
da história. Como explica Michael Löwy, em sua leitura das teses benjaminianas sobre o
conceito de história:
O poder de uma classe dominante não resulta simplesmente de sua força econômica e política ou da distribuição da propriedade, ou das transformações do sistema produtivo: pressupõe sempre um triunfo histórico no combate às classes subalternas. Contra a visão evolucionista da história como acumulação de ‘conquistas’, como ‘progresso’ para cada vez mais liberdade, racionalidade ou civilização, ele [Benjamin] a percebe ‘de baixo’, do lado dos vencidos, como uma série de vitórias de classes reinantes. 8
Este processo de exclusão que está no cerne do processo histórico está amplamente presente na história da literatura e da arte, e fica evidente na formação do cânone, que valoriza
uns em detrimento de outros. A estes outros, o estatuto de obra-de-arte está vedado. O caso
da arte africana é um exemplo. Conforme vemos em Carl Einstein, a escultura negra é considerada pelo pensamento ocidental instrumento e fetiche, privada de historicidade e tratada como testemunho das origens, como obras que não evoluíram. A história deste tipo de
arte não existe porque a ciência positivista nega-lhe história (chamado-a de primitiva) e
arte (denominando-a instrumental). 9 A situação não é diferente na relação do Ocidente
com a arte e o pensamento ameríndio. Conforme analisa Eduardo Galeano em “Los
quiñentos años: el tigre azul y nuestra tierra prometida”, a cultura dominante admite os
índios como objetos de estudo, mas não os reconhece como sujeitos de história: “los índios
tienen folklore, no cultura, practican supersticiones, no religiones; hablan dialectos, no
lenguas; hacen artesanías, no arte”. 10 Enfim, os exemplos são infindos e podem ser encontrados em diferentes tempos e espaços, compreendem não apenas aquilo que está fora das
fronteiras do mundo Ocidental, mas também grande parte do que está dentro dele – para
isso, a história tem como aliadas as eficientes categorizações das escolas literárias e a própria idéia de literatura nacional.
Contra este projeto exclusivista, que não pode, não deve ou não pretende incluir o que
foge às classificações ou às identificações e que torna o singular um ser invisível, surge
uma história das pegadas, um ponto de vista anacrônico, para usar expressões de Georges
Didi-Huberman, também imagens dialéticas e origens-redemoinho, conforme defende Walter Benjamin, entre outras propostas que buscam desnaturalizar e/ou desconstruir nossas
idéias de origem, de história e de progresso. Como explica Didi-Huberman, a partir de Carl
Einstein,
Não se pode colocar em questão o objeto da história da arte sem colocar em questão seu próprio processo, isto é, o modelo de temporalidade que a anima. Carl Einstein exigirá, por conseguinte, que se pratique a história da arte contra certa noção de história e, mais precisamen8
LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 60. Segundo Löwy, “o pretenso historiador neutro,
que acede diretamente aos fatos ‘reais’, na verdade apenas confirma a visão dos vencedores, dos reis,
dos papas, dos imperadores (...) de todas as épocas” (LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p.
65).
9
DIDI-HUBERMAN. O anacronismo fabrica a história, p. 38. Segundo Carl Einstein, “debemos evitar
interpolar cómodas teorías evolucionistas y poner en pie de igualdad el proceso de pensamiento y la
creación artística [da arte negra]”. (EINSTEIN. La escultura negra y otros escritos, p. 33).
10
GALEANO. Los quiñentos años, p. 382.
CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE ·, 2009 · Belo Horizonte
36
te, contra os modelos positivista, evolucionista e teleológico que sustentam geralmente a análise histórica das imagens. Poder-se-ia dizer, deste ponto de vista, que ele tentou desenvolver uma dialética não hegeliana –uma concepção da história como “luta” não apaziguável,
irredutível a todo saber absoluto – que é também uma genealogia ao modo nietzscheano. 11
Para Raúl Antelo, as imagens não são fatos ou formas, mas forças capazes de fazer surgir o contemporâneo, através da superposição de elementos dissímiles, “tais como o arcaico
e o atual, a tradição e a ruptura, o trágico e o farsesco, o arquipassado e o ainda por-vir”. 12
Segundo ele,
O movimento das imagens, na cena contemporânea, não comporta, com efeito, um marco
formal de circulação global, mas exige analisar o modo em que, sob esse regime, os corpos, a
vida, são atualmente produzidos, reproduzidos, lançados ou, a rigor, abandonados. Uma parte do real persiste, apesar de todos os esforços de sublimação, na ordem simbólica, quer dizer que algo, em nossa leitura da história cultural, está mesmo sempre presente, enquanto
ausência, e esse algo chama-se, para Lacan, agalma, a Coisa, das Ding, excesso de gozo, desejo do Outro, objeto causa do desejo, objet petit a. E, para Debord, ele é o surplus de survie, em
outras palavras, o punctum da imagem é que sustenta a sociedade do espetáculo. Ausente no
mundo da presença material, esse resto ou caput mortuum é um vazio estrutural, ou centro
gravitacional, em torno do qual funciona, a rigor, a ordem simbólica. Mas o caput mortuum
nos revela, ainda, a superposição (com) de vários tempos, a primeira vista, desconexos. 13
O caput mortuum é não apenas aquilo que funciona como resíduo do significante, como
resto da instituição, mas também aquilo que dá um sentido posterior ao original, ou seja,
são restos que garantem um sentido de luta na e pela história. Na explicação de Bruce Fink,
o caput mortuum é o outro da cadeia. Cadeia esta que é determinada tanto pelo que inclui
quanto pelo que exclui, e que é condenada a escrever algo que continua evitando. 14 Segundo a análise de Garnet C. Butchart, apesar de sua aparente falta, o caput mortuum não é
simplesmente invisível, mas uma resistência à simbolização, pois o Real se apresenta como
uma lacuna na cadeia significante, uma impossibilidade simbólica que a cadeia é forçada a
evitar. 15 De maneira semelhante, Claudia de Moraes Rego esclarece que, enquanto resíduo
do significante, bagaço ou cabeça esvaziada do espírito ou da vida, o caput mortuum “é a
letra que fica fora da cadeia, que está logicamente proibida de aparecer, mas que causa toda
a insistência, toda a repetição”. 16
Se pensarmos esta cadeia como a história e o caput mortuum como aquilo que fica abaixo dela, podemos compreender como os restos, as sujeiras e os amassados da carta rota
modificam eles mesmos a história. É isso que faz Ernesto Laclau ao aproximar o conceito
hegeliano de povos sem história ao caput mortuum lacaniano, concluindo, nos explica Antelo, que “essa presença não-histórica absolutamente contingente desborda a dialética da
história, tornada ela mesma, por esse ato, contingente”. 17
Nesta contingência da história, a própria idéia de original é desconstruída. É isso que o
conto de Poe nos mostra: afinal, uma vez que a carta rota é ela mesma a carta ‘original’, o
11
DIDI-HUBERMAN. O anacronismo fabrica a história, p. 32.
ANTELO. As imagens como força.
13
ANTELO. As imagens como força.
14
FINK. O sujeito lacaniano, p. 47.
15
Citado em ANTELO. As imagens como força.
16
REGO. Traço, letra, escrita, p. 179.
17
ANTELO. As imagens como força.
12
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 33-40.
37
que sobra de origem na carta primeira? A carta – ou devo dizer as cartas? – se repete como
desvio. A carta da rainha é como o primeiro sim da expressão oui, oui, analisada por Jacques Derrida, 18 pois pede um complemento, uma repetição, para que ganhe potência no
presente. Este segundo sim, que corrompe o primeiro, é fonte de contaminação, mas também abertura, eco, memória, pois sem contaminação não há afirmação do original; sem o
segundo sim, não há o primeiro. Falar do passado esquecido é trazê-lo, mas também modificá-lo, assim como encontrar uma carta suja, amassada e rasgada é encontrar uma carta
diferente, fantasmagórica. O passado, a carta, não volta como aconteceu, como era, mas
como rastro, sombra, fantasma. Tal repetição-diferente é o que Derrida chama de différance,
que faz com que o movimento da significação não seja possível a não ser que cada elemento
dito ‘presente’, que aparece sobre a cena da presença, se relacione com outra coisa que não
ele mesmo, guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se já moldar pela
marca da sua relação com o elemento futuro, relacionando-se o rastro menos com aquilo a
que se chama presente do que àquilo a que se chama passado, e constituindo aquilo a que
chamamos presente por intermédio dessa relação mesma com o que não é ele próprio. 19
Portanto, encontrar a carta original na carta rota não equivale à manutenção da origem,
ao resgate de um original, mas a perceber como esta origem é corrompida no contato com o
atual. Isso significa que o original nunca é puro, que é sempre mescla, relação, e que depende deste contato, desta contaminação, para que exista, para que volte e se repita como
espectro. Quando os murmúrios sob a história retornam não é uma verdade que retorna,
uma gênese, uma identidade, mas um gesto, uma potência, um raio, um rastro. Conforme
explica Derrida, o rastro não é somente a desaparição da origem, ele aponta também para o
fato de que “a origem não desapareceu sequer, que ela jamais foi reconstituída a não ser por
uma não-origem, o rastro”. Daí Derrida concluir que, “se tudo começa pelo rastro, acima de
tudo não há rastro originário”. 20
Esse rastro-não-originário é uma sobrevivência, que nos fala não apenas do contato com
a origem, mas também da perda da origem, “algo que expresa tanto el contato de la pérdida
como la pérdida del contacto”, 21 define Didi-Huberman, a partir de Benjamin, para quem
essa é a verdadeira origem:
El origen, aun siendo una categoría plenamente histórica, no tiene nada que ver con la génesis. Por ‘origen’ no se entiende el llegar a ser de lo que ha surgido, sino lo que está surgiendo
del llegar a ser y del pasar. El origen se localiza en el flujo del devenir como un remolino que
engulle en su ritmo el material relativo a la génesis. Lo originario no se da nunca a conocer
en el modo de existencia bruto e manifiesto de lo fáctico, y su ritmo se revela solamente a un
enfoque doble que lo reconoce como restauración, como rehabilitación, por un lado, y justamente debido a ello, como algo imperfecto y sin terminar, por otro. 22
Se a origem é aquilo que não cessa de se produzir, se a fundação não é absoluta e a gênese é uma construção discursiva, então a história não está já dada, ela se faz em nós. Não
há fundamentos últimos, apenas fundações parciais, passageiras, que se modificam, se des18
DERRIDA. Nombre de Oui.
DERRIDA. A diferença, p. 45.
20
DERRIDA. A diferença, p. 44.
21
DIDI-HUBERMAN. El punto de vista anacrónico, p. 34.
22
BENJAMIN, citado por DIDI-HUBERMAN. El punto de vista anacrónico, p. 33. Em nota, DidiHuberman destaca que Derrida, ainda que critique a noção de origem em geral, não suprime o termo
origem de seu vocabulário, e isto faz a diferença entre desconstrução e destruição.
19
CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE ·, 2009 · Belo Horizonte
38
constroem e se refazem. Os chamados “julgamentos da história” podem ser afetados por
isso que falta, pela carta-resto, pelos vestígios da carta real na carta rota.
Desta forma, o confronto entre a pureza da primeira carta e a impureza da segunda, que,
como vimos, são a mesma carta, é o que dinamiza a história, aquilo que evidencia a descontinuidade da história, que aponta para o que a história esqueceu. Este confronto suspende o tempo histórico e se apresenta como uma tentativa de “extirpar a tradição ao conformismo que se quer dominar” 23 e, portanto, uma forma de restituir à história, defende
Löwy, “sua dimensão de subversão da ordem estabelecida, edulcorada, obliterada ou negada pelos historiadores ‘oficiais’. Somente assim o adepto do materialismo histórico pode
‘atear ao passado a centelha de esperança’ – uma centelha que pode incendiar a pólvora no
presente”. 24
É por isso que, na tese mais famosa de Benjamin, o anjo da história está olhando para
trás. 25 Só se pode avançar em direção ao futuro, um outro futuro, um futuro não do progresso e da catástrofe, mas da ruptura real, olhando para trás. Afinal, se o anjo olhar apenas
para frente irá reprimir o amontoado de restos que a história deixou no caminho. Assim
sendo, o imperativo benjaminiano de “escovar a história a contrapelo” tem duplo significado:
histórico: trata-se de ir contra a corrente da versão oficial da história opondo-lhe a tradição
dos oprimidos. Desse ponto de vista, entende-se a continuidade histórica das classes dominantes como um único e enorme cortejo triunfal, ocasionalmente interrompido por sublevações das classes subalternas;
político (atual): a redenção/revolução não acontecerá graças ao curso natural das coisas, o
“sentido da história”, o progresso inevitável. Será necessário lutar contra a corrente. Deixada
à própria sorte, ou acariciada no sentido do pêlo, a história somente produzirá novas guerras,
novas catástrofes, novas formas de barbárie e opressão. 26
Esse movimento de olhar para frente pensando o passado e de mudar a história a partir
do presente é o que Didi-Huberman chama de ponto de vista anacrônico, que se impõe
quando falta a história, “no para sustituirla, sino para hacerla nacer en un punto que hasta
entonces desconocia”. 27 Nas palavras de Benjamin, “a história é [ou deveria ser] objeto de
uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de
‘agoras’”. 28 A origem-fonte é substituída por uma origem-redemoinho, uma espécie de catástrofe “producida en desarrollo del devenir: un salto, una crisis de tiempo que se produce
con el ritmo de una destrucción y de una supervivencia, de un Ahora y un Antes”, explica
Didi-Huberman, concluindo que a origem não é aquilo de que tudo provém, mas um anacronismo, “un proceso de desvio dialéctico. Una interrupción de la misma historia, su
apertura a la vez hiriente (desfiguradora) y desveladora (portadora de un efecto de verdad)”. 29
23
LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 126.
LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 66.
25
BENJAMIN. Sobre o conceito da História (Tese IX), p. 226.
26
LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 74.
27
DIDI-HUBERMAN. El punto de vista anacrónico, p. 27.
28
BENJAMIN. Sobre o conceito da História (Tese XIV), p. 229.
29
DIDI-HUBERMAN. El punto de vista anacrónico, p. 33 (grifo do autor).
24
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 33-40.
39
Neste sentido, só uma teoria literária que, seguindo a lição de Dupin, se detém no roto,
no amassado, é capaz de reverter o processo de esquecimento deliberado do resto e perceber o que ficou escondido sob a história, realizando uma leitura da história em sua plenitude, resgatando, conforme explica Foucault, o espaço, “ao mesmo tempo vazio e povoado,
de todas as palavras sem linguagem que permitem, a quem presta atenção, ouvir um ruído
surdo abaixo da história, o murmúrio obstinado de uma linguagem que falaria sozinha...
Raiz calcinada do sentido”. 30
Neste exercício de anacronismo, as impurezas que sempre estiveram à margem da história são capazes de revelar imagens dialéticas, pelas quais o presente ilumina o passado.
Este passado, uma vez iluminado, torna-se uma força no presente e reabre a história. Nesta
abertura, nesta fissura, neste rasgo, emerge uma história dos vencidos, das cartas rotas,
rasuradas, que possuem dentro de si as “verdadeiras” cartas roubadas.
REFERÊNCIAS
ANTELO, Raúl. As imagens como força. Revista Crítica Cultural, Florianópolis, v. 3, n. 2,
julho/dezembro 2008. Disponível em: <http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/critica/0302/00.htm>. Acesso em: ago. 2009.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1994. p. 222-232.
DERRIDA, Jacques. A diferença. In: _____. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa; António M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991. p. 33-63.
DERRIDA, Jacques. Nombre de Oui. In : _____. Psyché: inventions de l’autre. Paris: Galilée,
1987. p. 639-650.
DIDI-HUBERMAN, Georges. El punto de vista anacrónico. Trad. Crispin Salvatierra. Revista de Occidente, Madrid, n. 213, p. 25-40, marzo 1999.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl
Einstein. Trad. Maria Ozomar Ramos Squeff. In: ZIELINSKY, Mônica (ed). Fronteiras. Arte,
crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003. p. 19-53.
EINSTEIN, Carl. La escultura negra y otros escritos. Barcelona: Gil y Gaya, 2002.
FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Trad. Maria de Lourdes Sette.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
GALEANO, Eduardo. Los quiñentos años: el tigre azul y nuestra tierra prometida. In: _____.
Nosotros decimos no. Cronicas 1966/1988. México: Siglo Veintiuno Editores, 2001. p. 375382.
LACAN, Jacques. O seminário sobre A carta roubada. In: _____. Escritos. Trad. Inês OsekiDepré. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 17-67.
30
FOUCAULT citado em MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p. 46.
CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE ·, 2009 · Belo Horizonte
40
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Trad. Wanda Nogueira Caldeira
Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.
MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
POE, Edgar Allan. The purloined letter. In: _____. The best tales of Edgar Allan Poe. New
York: The Modern Library, 1924. p. 229-251.
REGO, Claudia de Moraes. Traço, letra, escrita: Freud, Derrida, Lacan. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2006.
RELLA, Franco. Metamorfosis: imágenes del pensamiento. Trad. Joaquín Jordá. Madrid:
Espasa Calpe, 1989.
WARBURG, Aby. Arte del retrato y burguesia florentina. Domenico Ghirlandaio en Santa
Trinita. Los retratos de Lorenzo de Medici y de sus familiares. Historia de las imágenes e
historia de las ideas - la escuela de Aby Warburg. Trad. José Emilio Burucúa. Buenos Aires:
Centro Editor de América Latina, 1992. p. 18-43.
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 33-40.

Documentos relacionados