Restos e vestígios de uma carta rasurada
Transcrição
Restos e vestígios de uma carta rasurada
33 RESTOS E VESTÍGIOS DE UMA CARTA RASURADA Ana Carolina Cernicchiaro Resumo: Partindo do conto “A carta roubada”, de Poe, o presente ensaio pretende pensar o resíduo, o resto e o vestígio na literatura, e nas artes em geral. Assim como o chefe de polícia busca uma carta imaculada e idêntica à original, a história oficial busca uma origem identitária e pura que forme e funde um cânone. Nesse sentido, só uma teoria literária que, seguindo a lição de Dupin, se detém no roto, no amassado, é capaz de perceber o que ficou escondido nesse murmúrio sob a história. São os restos da decantação, o caput mortuum ou o litter; impurezas insignificantes que sempre estiveram à margem da história, mas que podem, com um exercício de anacronismo, revelar imagens dialéticas tipicamente benjaminianas, onde o presente ilumina o passado. Este passado, uma vez iluminado, torna-se uma força no presente e reabre a história. Nesta fissura, emerge uma história dos vencidos, das cartas rotas, rasuradas, que possuem dentro de si as “verdadeiras” cartas roubadas. Palavras-chave: “A carta roubada” · história · literatura Abstract: The purpose of this paper is to reflect on the significance of remains, or traces, in literature and the arts in general. In Edgar Allan Poe’s short story “The Purloined Letter”, the Parisian police search for an immaculate letter, identical to the original; likewise, the official history seeks a pure origin so as to form and found a canon. Only a literary theory that follows Dupin’s lesson and pays attention to the what is not neat, perfect, can perceive what lies hidden below the remains of history. The insignificant impurities, the caput mortuum at the margin of history, can reveal, by means of an exercise in anachronism, dialectical images through which the present can illuminate the past, so that it becomes a force capable of reopening history. Through this gap emerges a history of crumpled letters that contain the “true” purloined letters. Keywords: “The Purloined Letter” · history · literature En centenares de documentos leídos y en millares de documentos no leídos aún sobreviven en el Archivo las voces de los difuntos, y la piedad del historiador tiene el poder de volver a conferir un timbre a las voces inaudibles. Aby Warburg 1 Na procura pela carta roubada, Monsieur G, o chefe da polícia parisiense, empreende uma busca minuciosa na casa do ministro D., revista os lugares mais secretos, os móveis, as paredes, os ladrilhos, a biblioteca, os livros, enfim, cada detalhe. “I fancy that I have investigated every nook and corner of the premises in which it is possible that the paper can be concealed” 2 , diz o policial do famoso conto de Poe, “The purloined letter”. Entretanto, a carta está “a little too self-evident” para ser encontrada. Seu paradeiro não é exatamente um esconderijo, antes o lugar próprio para uma carta, um porta-cartões. Aliás, não um porta-cartões qualquer, mas sim um porta-cartões barato, vagabundo, um depo1 2 WARBURG. Arte del retrato y burguesia florentina, p. 21. POE. The purloined letter, p. 234. CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE ·, 2009 · Belo Horizonte 34 sitório indigno de qualquer documento importante. “At length my eyes, in going the circuit of the room, fell upon a trumpery fillagree card-rack of pasteboard, that hung dangling by a dirty blue ribbon, from a little brass knob just beneath the middle of the mantel-piece”, 3 descreve Dupin. A própria carta estava amassada, amarrotada, já não parecia mais uma carta real, sofisticada, bela, pura; pelo contrário, era uma carta plebéia, rota, maculada, rasgada. “In this rack, which had three or four compartments, were five or six visiting cards and a solitary letter. This last was much soiled and crumpled. It was torn nearly in two, across the middle”, 4 conta Dupin, concluindo que a aparência da carta pretendia sugeri-la como um documento sem valor: “the dirt; the soiled and torn condition of the paper (…) so suggestive of a design to delude the beholder into an idea of the worthlessness of the document”. 5 É justamente por conta desta má condição da carta que Monsieur G. não pode encontrála. Ele está tão determinado na busca por um original que é incapaz de perceber o valor secreto que a carta rota possui. Para o policial, ela é apenas um resto insignificante, um lixo, “a letter, a litter, uma carta, um lixo”, 6 diz Jacques Lacan ao lembrar, a partir de Joyce, a homofonia das duas palavras inglesas. Se seguirmos esta linha de pensamento, é possível partir do conto de Poe para vislumbrar como a investigação do chefe de polícia se assemelha ao processo de formação da história da literatura e das artes em geral. Da mesma maneira que Monsieur G. procura uma carta imaculada e idêntica à original, a história oficial busca uma origem identitária e pura que forme e funde um cânone. Mais do que a memorização do original, a história carrega em si uma experiência coletiva de esquecimento dos restos, do roto, do amassado. Enquanto espaço de exclusão, funciona como um cenário onde os holofotes estão estrategicamente iluminados sobre um único ponto, tornando os outros elementos da cena fantasmagóricos, como vestígios ou restos. A carta rota é este resto, aquilo que sobra da decantação ou o que é impossível de ser dissolvido na solução, um caput mortuum, para usar uma expressão que Lacan empresta da alquimia em sua análise do conto de Poe. Ela é aquilo que não é representado, aquilo que é insignificante, que não é visto por Monsieur G., uma espécie de murmúrio sob a história ou uma história que não se tornou História. Importante reparar que esta dicotomia entre o que se torna história e o que fica abaixo dela, entre a carta que tem valor e a que não tem, não é neutra ou involuntária, é antes uma decisão política. Como explica Franco Rella, a partir de Jacques Le Goff, apoderar-se da memória é um dos objetivos políticos fundamentais das classes, dos grupos ou dos indivíduos, que dominam as sociedades históricas. Por isso, ao poder exercido por meio da memória, responde a destruição da memória, o esquecido. 7 Semelhante consideração faz Walter Benjamin, para quem a história é uma sucessão de vitórias dos poderosos. Neste sentido, a idéia de história universal é falsa, simplesmente porque não é universal, porque contém como princípio a exclusão. Paralela à História com 3 POE. The purloined letter, p. 248. POE. The purloined letter, p. 248. 5 POE. The purloined letter, p. 249. 6 LACAN. O seminário sobre A carta roubada, p. 33. 7 RELLA. Metamorfosis: imágenes del pensamiento, p. 36. 4 Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 33-40. 35 letra maiúscula, permanece, sucumbe, ou às vezes luta (e aí o sentido da rebelião), uma outra história, uma história dos vencidos, dos que não têm história, dos que estão abaixo da história. Como explica Michael Löwy, em sua leitura das teses benjaminianas sobre o conceito de história: O poder de uma classe dominante não resulta simplesmente de sua força econômica e política ou da distribuição da propriedade, ou das transformações do sistema produtivo: pressupõe sempre um triunfo histórico no combate às classes subalternas. Contra a visão evolucionista da história como acumulação de ‘conquistas’, como ‘progresso’ para cada vez mais liberdade, racionalidade ou civilização, ele [Benjamin] a percebe ‘de baixo’, do lado dos vencidos, como uma série de vitórias de classes reinantes. 8 Este processo de exclusão que está no cerne do processo histórico está amplamente presente na história da literatura e da arte, e fica evidente na formação do cânone, que valoriza uns em detrimento de outros. A estes outros, o estatuto de obra-de-arte está vedado. O caso da arte africana é um exemplo. Conforme vemos em Carl Einstein, a escultura negra é considerada pelo pensamento ocidental instrumento e fetiche, privada de historicidade e tratada como testemunho das origens, como obras que não evoluíram. A história deste tipo de arte não existe porque a ciência positivista nega-lhe história (chamado-a de primitiva) e arte (denominando-a instrumental). 9 A situação não é diferente na relação do Ocidente com a arte e o pensamento ameríndio. Conforme analisa Eduardo Galeano em “Los quiñentos años: el tigre azul y nuestra tierra prometida”, a cultura dominante admite os índios como objetos de estudo, mas não os reconhece como sujeitos de história: “los índios tienen folklore, no cultura, practican supersticiones, no religiones; hablan dialectos, no lenguas; hacen artesanías, no arte”. 10 Enfim, os exemplos são infindos e podem ser encontrados em diferentes tempos e espaços, compreendem não apenas aquilo que está fora das fronteiras do mundo Ocidental, mas também grande parte do que está dentro dele – para isso, a história tem como aliadas as eficientes categorizações das escolas literárias e a própria idéia de literatura nacional. Contra este projeto exclusivista, que não pode, não deve ou não pretende incluir o que foge às classificações ou às identificações e que torna o singular um ser invisível, surge uma história das pegadas, um ponto de vista anacrônico, para usar expressões de Georges Didi-Huberman, também imagens dialéticas e origens-redemoinho, conforme defende Walter Benjamin, entre outras propostas que buscam desnaturalizar e/ou desconstruir nossas idéias de origem, de história e de progresso. Como explica Didi-Huberman, a partir de Carl Einstein, Não se pode colocar em questão o objeto da história da arte sem colocar em questão seu próprio processo, isto é, o modelo de temporalidade que a anima. Carl Einstein exigirá, por conseguinte, que se pratique a história da arte contra certa noção de história e, mais precisamen8 LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 60. Segundo Löwy, “o pretenso historiador neutro, que acede diretamente aos fatos ‘reais’, na verdade apenas confirma a visão dos vencedores, dos reis, dos papas, dos imperadores (...) de todas as épocas” (LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 65). 9 DIDI-HUBERMAN. O anacronismo fabrica a história, p. 38. Segundo Carl Einstein, “debemos evitar interpolar cómodas teorías evolucionistas y poner en pie de igualdad el proceso de pensamiento y la creación artística [da arte negra]”. (EINSTEIN. La escultura negra y otros escritos, p. 33). 10 GALEANO. Los quiñentos años, p. 382. CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE ·, 2009 · Belo Horizonte 36 te, contra os modelos positivista, evolucionista e teleológico que sustentam geralmente a análise histórica das imagens. Poder-se-ia dizer, deste ponto de vista, que ele tentou desenvolver uma dialética não hegeliana –uma concepção da história como “luta” não apaziguável, irredutível a todo saber absoluto – que é também uma genealogia ao modo nietzscheano. 11 Para Raúl Antelo, as imagens não são fatos ou formas, mas forças capazes de fazer surgir o contemporâneo, através da superposição de elementos dissímiles, “tais como o arcaico e o atual, a tradição e a ruptura, o trágico e o farsesco, o arquipassado e o ainda por-vir”. 12 Segundo ele, O movimento das imagens, na cena contemporânea, não comporta, com efeito, um marco formal de circulação global, mas exige analisar o modo em que, sob esse regime, os corpos, a vida, são atualmente produzidos, reproduzidos, lançados ou, a rigor, abandonados. Uma parte do real persiste, apesar de todos os esforços de sublimação, na ordem simbólica, quer dizer que algo, em nossa leitura da história cultural, está mesmo sempre presente, enquanto ausência, e esse algo chama-se, para Lacan, agalma, a Coisa, das Ding, excesso de gozo, desejo do Outro, objeto causa do desejo, objet petit a. E, para Debord, ele é o surplus de survie, em outras palavras, o punctum da imagem é que sustenta a sociedade do espetáculo. Ausente no mundo da presença material, esse resto ou caput mortuum é um vazio estrutural, ou centro gravitacional, em torno do qual funciona, a rigor, a ordem simbólica. Mas o caput mortuum nos revela, ainda, a superposição (com) de vários tempos, a primeira vista, desconexos. 13 O caput mortuum é não apenas aquilo que funciona como resíduo do significante, como resto da instituição, mas também aquilo que dá um sentido posterior ao original, ou seja, são restos que garantem um sentido de luta na e pela história. Na explicação de Bruce Fink, o caput mortuum é o outro da cadeia. Cadeia esta que é determinada tanto pelo que inclui quanto pelo que exclui, e que é condenada a escrever algo que continua evitando. 14 Segundo a análise de Garnet C. Butchart, apesar de sua aparente falta, o caput mortuum não é simplesmente invisível, mas uma resistência à simbolização, pois o Real se apresenta como uma lacuna na cadeia significante, uma impossibilidade simbólica que a cadeia é forçada a evitar. 15 De maneira semelhante, Claudia de Moraes Rego esclarece que, enquanto resíduo do significante, bagaço ou cabeça esvaziada do espírito ou da vida, o caput mortuum “é a letra que fica fora da cadeia, que está logicamente proibida de aparecer, mas que causa toda a insistência, toda a repetição”. 16 Se pensarmos esta cadeia como a história e o caput mortuum como aquilo que fica abaixo dela, podemos compreender como os restos, as sujeiras e os amassados da carta rota modificam eles mesmos a história. É isso que faz Ernesto Laclau ao aproximar o conceito hegeliano de povos sem história ao caput mortuum lacaniano, concluindo, nos explica Antelo, que “essa presença não-histórica absolutamente contingente desborda a dialética da história, tornada ela mesma, por esse ato, contingente”. 17 Nesta contingência da história, a própria idéia de original é desconstruída. É isso que o conto de Poe nos mostra: afinal, uma vez que a carta rota é ela mesma a carta ‘original’, o 11 DIDI-HUBERMAN. O anacronismo fabrica a história, p. 32. ANTELO. As imagens como força. 13 ANTELO. As imagens como força. 14 FINK. O sujeito lacaniano, p. 47. 15 Citado em ANTELO. As imagens como força. 16 REGO. Traço, letra, escrita, p. 179. 17 ANTELO. As imagens como força. 12 Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 33-40. 37 que sobra de origem na carta primeira? A carta – ou devo dizer as cartas? – se repete como desvio. A carta da rainha é como o primeiro sim da expressão oui, oui, analisada por Jacques Derrida, 18 pois pede um complemento, uma repetição, para que ganhe potência no presente. Este segundo sim, que corrompe o primeiro, é fonte de contaminação, mas também abertura, eco, memória, pois sem contaminação não há afirmação do original; sem o segundo sim, não há o primeiro. Falar do passado esquecido é trazê-lo, mas também modificá-lo, assim como encontrar uma carta suja, amassada e rasgada é encontrar uma carta diferente, fantasmagórica. O passado, a carta, não volta como aconteceu, como era, mas como rastro, sombra, fantasma. Tal repetição-diferente é o que Derrida chama de différance, que faz com que o movimento da significação não seja possível a não ser que cada elemento dito ‘presente’, que aparece sobre a cena da presença, se relacione com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação com o elemento futuro, relacionando-se o rastro menos com aquilo a que se chama presente do que àquilo a que se chama passado, e constituindo aquilo a que chamamos presente por intermédio dessa relação mesma com o que não é ele próprio. 19 Portanto, encontrar a carta original na carta rota não equivale à manutenção da origem, ao resgate de um original, mas a perceber como esta origem é corrompida no contato com o atual. Isso significa que o original nunca é puro, que é sempre mescla, relação, e que depende deste contato, desta contaminação, para que exista, para que volte e se repita como espectro. Quando os murmúrios sob a história retornam não é uma verdade que retorna, uma gênese, uma identidade, mas um gesto, uma potência, um raio, um rastro. Conforme explica Derrida, o rastro não é somente a desaparição da origem, ele aponta também para o fato de que “a origem não desapareceu sequer, que ela jamais foi reconstituída a não ser por uma não-origem, o rastro”. Daí Derrida concluir que, “se tudo começa pelo rastro, acima de tudo não há rastro originário”. 20 Esse rastro-não-originário é uma sobrevivência, que nos fala não apenas do contato com a origem, mas também da perda da origem, “algo que expresa tanto el contato de la pérdida como la pérdida del contacto”, 21 define Didi-Huberman, a partir de Benjamin, para quem essa é a verdadeira origem: El origen, aun siendo una categoría plenamente histórica, no tiene nada que ver con la génesis. Por ‘origen’ no se entiende el llegar a ser de lo que ha surgido, sino lo que está surgiendo del llegar a ser y del pasar. El origen se localiza en el flujo del devenir como un remolino que engulle en su ritmo el material relativo a la génesis. Lo originario no se da nunca a conocer en el modo de existencia bruto e manifiesto de lo fáctico, y su ritmo se revela solamente a un enfoque doble que lo reconoce como restauración, como rehabilitación, por un lado, y justamente debido a ello, como algo imperfecto y sin terminar, por otro. 22 Se a origem é aquilo que não cessa de se produzir, se a fundação não é absoluta e a gênese é uma construção discursiva, então a história não está já dada, ela se faz em nós. Não há fundamentos últimos, apenas fundações parciais, passageiras, que se modificam, se des18 DERRIDA. Nombre de Oui. DERRIDA. A diferença, p. 45. 20 DERRIDA. A diferença, p. 44. 21 DIDI-HUBERMAN. El punto de vista anacrónico, p. 34. 22 BENJAMIN, citado por DIDI-HUBERMAN. El punto de vista anacrónico, p. 33. Em nota, DidiHuberman destaca que Derrida, ainda que critique a noção de origem em geral, não suprime o termo origem de seu vocabulário, e isto faz a diferença entre desconstrução e destruição. 19 CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE ·, 2009 · Belo Horizonte 38 constroem e se refazem. Os chamados “julgamentos da história” podem ser afetados por isso que falta, pela carta-resto, pelos vestígios da carta real na carta rota. Desta forma, o confronto entre a pureza da primeira carta e a impureza da segunda, que, como vimos, são a mesma carta, é o que dinamiza a história, aquilo que evidencia a descontinuidade da história, que aponta para o que a história esqueceu. Este confronto suspende o tempo histórico e se apresenta como uma tentativa de “extirpar a tradição ao conformismo que se quer dominar” 23 e, portanto, uma forma de restituir à história, defende Löwy, “sua dimensão de subversão da ordem estabelecida, edulcorada, obliterada ou negada pelos historiadores ‘oficiais’. Somente assim o adepto do materialismo histórico pode ‘atear ao passado a centelha de esperança’ – uma centelha que pode incendiar a pólvora no presente”. 24 É por isso que, na tese mais famosa de Benjamin, o anjo da história está olhando para trás. 25 Só se pode avançar em direção ao futuro, um outro futuro, um futuro não do progresso e da catástrofe, mas da ruptura real, olhando para trás. Afinal, se o anjo olhar apenas para frente irá reprimir o amontoado de restos que a história deixou no caminho. Assim sendo, o imperativo benjaminiano de “escovar a história a contrapelo” tem duplo significado: histórico: trata-se de ir contra a corrente da versão oficial da história opondo-lhe a tradição dos oprimidos. Desse ponto de vista, entende-se a continuidade histórica das classes dominantes como um único e enorme cortejo triunfal, ocasionalmente interrompido por sublevações das classes subalternas; político (atual): a redenção/revolução não acontecerá graças ao curso natural das coisas, o “sentido da história”, o progresso inevitável. Será necessário lutar contra a corrente. Deixada à própria sorte, ou acariciada no sentido do pêlo, a história somente produzirá novas guerras, novas catástrofes, novas formas de barbárie e opressão. 26 Esse movimento de olhar para frente pensando o passado e de mudar a história a partir do presente é o que Didi-Huberman chama de ponto de vista anacrônico, que se impõe quando falta a história, “no para sustituirla, sino para hacerla nacer en un punto que hasta entonces desconocia”. 27 Nas palavras de Benjamin, “a história é [ou deveria ser] objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”. 28 A origem-fonte é substituída por uma origem-redemoinho, uma espécie de catástrofe “producida en desarrollo del devenir: un salto, una crisis de tiempo que se produce con el ritmo de una destrucción y de una supervivencia, de un Ahora y un Antes”, explica Didi-Huberman, concluindo que a origem não é aquilo de que tudo provém, mas um anacronismo, “un proceso de desvio dialéctico. Una interrupción de la misma historia, su apertura a la vez hiriente (desfiguradora) y desveladora (portadora de un efecto de verdad)”. 29 23 LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 126. LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 66. 25 BENJAMIN. Sobre o conceito da História (Tese IX), p. 226. 26 LÖWY. Walter Benjamin: aviso de incêndio, p. 74. 27 DIDI-HUBERMAN. El punto de vista anacrónico, p. 27. 28 BENJAMIN. Sobre o conceito da História (Tese XIV), p. 229. 29 DIDI-HUBERMAN. El punto de vista anacrónico, p. 33 (grifo do autor). 24 Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 33-40. 39 Neste sentido, só uma teoria literária que, seguindo a lição de Dupin, se detém no roto, no amassado, é capaz de reverter o processo de esquecimento deliberado do resto e perceber o que ficou escondido sob a história, realizando uma leitura da história em sua plenitude, resgatando, conforme explica Foucault, o espaço, “ao mesmo tempo vazio e povoado, de todas as palavras sem linguagem que permitem, a quem presta atenção, ouvir um ruído surdo abaixo da história, o murmúrio obstinado de uma linguagem que falaria sozinha... Raiz calcinada do sentido”. 30 Neste exercício de anacronismo, as impurezas que sempre estiveram à margem da história são capazes de revelar imagens dialéticas, pelas quais o presente ilumina o passado. Este passado, uma vez iluminado, torna-se uma força no presente e reabre a história. Nesta abertura, nesta fissura, neste rasgo, emerge uma história dos vencidos, das cartas rotas, rasuradas, que possuem dentro de si as “verdadeiras” cartas roubadas. REFERÊNCIAS ANTELO, Raúl. As imagens como força. Revista Crítica Cultural, Florianópolis, v. 3, n. 2, julho/dezembro 2008. Disponível em: <http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/critica/0302/00.htm>. Acesso em: ago. 2009. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222-232. DERRIDA, Jacques. A diferença. In: _____. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa; António M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991. p. 33-63. DERRIDA, Jacques. Nombre de Oui. In : _____. Psyché: inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1987. p. 639-650. DIDI-HUBERMAN, Georges. El punto de vista anacrónico. Trad. Crispin Salvatierra. Revista de Occidente, Madrid, n. 213, p. 25-40, marzo 1999. DIDI-HUBERMAN, Georges. O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl Einstein. Trad. Maria Ozomar Ramos Squeff. In: ZIELINSKY, Mônica (ed). Fronteiras. Arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003. p. 19-53. EINSTEIN, Carl. La escultura negra y otros escritos. Barcelona: Gil y Gaya, 2002. FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Trad. Maria de Lourdes Sette. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. GALEANO, Eduardo. Los quiñentos años: el tigre azul y nuestra tierra prometida. In: _____. Nosotros decimos no. Cronicas 1966/1988. México: Siglo Veintiuno Editores, 2001. p. 375382. LACAN, Jacques. O seminário sobre A carta roubada. In: _____. Escritos. Trad. Inês OsekiDepré. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 17-67. 30 FOUCAULT citado em MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura, p. 46. CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE ·, 2009 · Belo Horizonte 40 LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. POE, Edgar Allan. The purloined letter. In: _____. The best tales of Edgar Allan Poe. New York: The Modern Library, 1924. p. 229-251. REGO, Claudia de Moraes. Traço, letra, escrita: Freud, Derrida, Lacan. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. RELLA, Franco. Metamorfosis: imágenes del pensamiento. Trad. Joaquín Jordá. Madrid: Espasa Calpe, 1989. WARBURG, Aby. Arte del retrato y burguesia florentina. Domenico Ghirlandaio en Santa Trinita. Los retratos de Lorenzo de Medici y de sus familiares. Historia de las imágenes e historia de las ideas - la escuela de Aby Warburg. Trad. José Emilio Burucúa. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1992. p. 18-43. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 33-40.