GUILHERME PINHO MENESES VIDEOGAME É

Transcrição

GUILHERME PINHO MENESES VIDEOGAME É
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
GUILHERME PINHO MENESES
VIDEOGAME É DROGA? CONTROVÉRSIAS EM TORNO DA
DEPENDÊNCIA DE JOGOS ELETRÔNICOS
Relatório apresentado ao Programa de
Pós-Graduação de Antropologia
Social da Universidade de São Paulo
para o Exame de Qualificação do
curso de Mestrado.
Orientador: Prof. Dr. Stelio Alessandro Marras
São Paulo
2013
Meneses, Guilherme.
Videogame é droga? Controvérsias em torno da dependência de jogos
eletrônicos. Guilherme Pinho Meneses, São Paulo, 2013, 90 p.
Exame de Qualificação (Mestrado). Universidade de São Paulo. Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação de
Antropologia Social.
Título em inglês: “Is videogame a drug? Controversies surrounding the electronic
games addiction”.
1. Videogame 2. Drogas 3. Dependência 4. Virtualidade
1
BANCA EXAMINADORA
PRESIDENTE DA BANCA
Prof. Dr. Stelio Marras
Professor Afiliado ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São
Paulo (USP).
TITULARES
Prof. Dr. Theophilos Rifiotis
Professor Afiliado ao Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC).
Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani
Professor Afiliado ao Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
SUPLENTES
Prof. Dr. Gilson Schwartz
Professor Afiliado ao Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP).
Prof. Dr. Renato Sztutman
Professor Afiliado ao Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
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Resumo
A proposta deste estudo consiste em um mapeamento parcial da controvérsia sobre a
dependência de videogames, em especial, de uma discussão sobre os seus distintos
modos de classificação, métodos de diagnóstico e tratamento. Apoiando-se na teoria do
ator-rede de Bruno Latour, busca-se constituir um parlamento das coisas a fim de
descrever a variada semântica de noções de dependência e de vício enunciadas e
praticadas pelos variados sujeitos envolvidos na controvérsia: os próprios jogadores;
pais, cônjuges e demais pessoas próximas a estes jogadores; desenvolvedores de games;
cientistas de diversas áreas (psiquiatria, psicoterapia) e teorias acadêmicas. Junto a estes
diversos sujeitos, buscar-se-á mapear as práticas investigando a maneira pela qual os
diversos saberes científicos sobre a dependência de drogas associam-se a outros
elementos, como as dependências comportamentais, que incluem, principalmente, a
dependência de jogos de azar e as dependências tecnológicas, as quais se imbricam na
construção da ideia do jogador “viciado” em videogames. Passaremos por uma
discussão das principais correntes teóricas que abordam o assunto, tal como o modelo
cognitivo-comportamental, o modelo neuropsicológico, a teoria da compensação e os
fatores situacionais, numa tentativa de desestabilizar os seus pressupostos e ressaltar os
elementos colocados em controvérsia entre os diferentes atores. Ao costurar este
cruzamento de perspectivas a partir das práticas, discursos e classificações dos sujeitos,
buscaremos multiplicar as possibilidades de traçar o rastro destas intensas conexões dos
homens com os videogames.
Palavras-chave: videogames; dependência; drogas; antropologia da ciência.
3
Índice
Introdução à pesquisa .................................................................................................... 6
1. Objeto foco do trabalho ...................................................................................... 6
1.1 A controvérsia ................................................................................................. 6
1.2 O imobilismo e a guerra das ciências ............................................................... 6
1.3 Videogames em perspectiva ............................................................................ 9
2. Questões e objetos da pesquisa ......................................................................... 11
2.1 As retóricas do vício ...................................................................................... 11
2.2 Videogame e seu aspecto lúdico .................................................................... 14
2.3 Videogame e seu aspecto virtual .................................................................... 16
2.4 Games e drogas: metáfora ou metonímia? ...................................................... 17
3. Pressupostos Teóricos ....................................................................................... 20
3.1 De atores a jogadores: notas para uma teoria da ação ..................................... 20
3.2 Constituindo um parlamento das coisas ......................................................... 25
3.3 Mapeando controvérsias: notas teórico-metodológicas ................................... 28
3.4 A antropologia cibernética e a etnografia virtual ............................................ 30
4. Procedimentos Metodológicos........................................................................... 31
4.1 A pesquisa de campo: técnicas e tecnologias.................................................. 31
4.2 A inserção do pesquisador na controvérsia ..................................................... 34
5. Resultados Parciais ........................................................................................... 35
5.1 Breves apontamentos ..................................................................................... 35
5.2 Andamento da pesquisa ................................................................................. 39
5.3 Próximos passos da pesquisa ......................................................................... 40
5.4 Cronograma atualizado .................................................................................. 41
Capítulo 1 – Por dentro da rede: o conhecimento médico ............................................ 42
1. A incerteza sobre a determinação do vício ....................................................... 42
2. Modos de classificação do jogador de videogames como dependente ............. 44
3. Dependência: conceitos e classificações ............................................................ 47
3.1 Um corpo partido: a dependência física e a dependência psicológica ............. 47
3.2 Componentes centrais da dependência de videogames ................................... 48
3.3 Construindo dependências: formas de composição......................................... 49
4. Apresentando teorias: a gramática das ciências .............................................. 51
4.1 Modelo cognitivo-comportamental ................................................................ 51
4
4.2 Modelo neuropsicológico .............................................................................. 56
4.3 Teoria da compensação.................................................................................. 61
4.4 Fatores situacionais ....................................................................................... 66
5. Reflexão sobre o culto moderno da Ciência Moderna ..................................... 68
Capítulo 2: O sério e o lúdico: repensando as categorias lazer e trabalho a partir dos
videogames ................................................................................................................. 73
1. Delineando associações: entre usos legítimos e ilegítimos ................................ 73
2. Discutindo conceitos: jogo, lazer e trabalho ..................................................... 74
3. Desestabilizando categorias .............................................................................. 79
4. Jogando por lazer ou por trabalho? Os gamers e suas classificações ............... 83
4.1 Divertir-se ou conquistar as metas? O jogador curtidor e o jogador apelão ..... 85
4.2 Entre o trabalho dos sonhos e a desconsideração moral: os jogadores
profissionais de videogame.................................................................................. 88
5. Por graus de comprometimento ........................................................................ 91
Plano da dissertação .................................................................................................... 93
Índice dos capítulos ............................................................................................... 93
Título e resumo dos capítulos ............................................................................... 95
Referências ................................................................................................................. 98
Anexos ................................................................................................................................
Projeto de Pesquisa .............................................................................................................
Cursos realizados e seu impacto na evolução do projeto ...................................................
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Introdução à pesquisa
1. Objeto foco do trabalho
1.1 A controvérsia
O objetivo geral deste trabalho é mapear as práticas e experiências que ancoram os
discursos dos diversos agentes em torno da questão da dependência de videogames. O
intuito é simular um parlamento das coisas (LATOUR, 1994) inicial em torno dos
jogos eletrônicos. Por meio da descrição e da análise das práticas dos atores, articulando
as dimensões do chamado mundo “real” e do mundo “virtual”, pretende-se compreender
o significado de suas relações, sejam elas de dependência ou não, com os videogames.
1.2 O imobilismo e a guerra das ciências
Grande parte da produção científica, mais marcadamente da área da ciência médica, e
de algumas vertentes de estudo da psicanálise, da psicologia e da pedagogia, tem
trabalhado com a categoria “vício” e “dependência” para descrever a relação de usuários
de videogame com seus jogos, na qual se sobressai uma associação semântica entre os
efeitos dos videogames e das drogas (de uso não farmacológico). Frequentemente, os
jogadores classificados como adictos são vistos por tais pesquisadores (YOUNG, 1998;
SCARPATO, 2004; ABREU, 2008) como pessoas socialmente isoladas, proto-violentas
e perigosas; que estão aprendendo a expressar a sua raiva e agressão reprimida por meio
dos jogos, e que são potencialmente capazes de engendrar novos episódios traumáticos
como o Massacre de Realengo1 ou de Columbine 2.
Segundo tais pesquisas, o vício em videogames traria consequências prejudiciais para o
indivíduo, como: uma piora no rendimento escolar e no trabalho, afastamento do
convívio familiar e de outras formas de contato social, compulsão por jogar, insônia,
falta de apetite, sedentarismo, tendinite, troca de prioridades da “vida real” para
1
Em 24 de abril de 2011, a Rede Record (R7) exibiu uma reportagem de longa duração no programa
Domingo Espetacular tentando associar a chacina ocorrida na escola do bairro do Rio de Janeiro com o
uso de videogames violentos no intuito de, talvez, encobrir motivos religiosos; o que gerou uma grande
revolta dos gamers nas redes sociais da Internet.
2
Em 20 de abril de 1999 em Columbine, Colorado, EUA, dois jovens atiraram em colegas e professores
da escola, matando 13 pessoas, para depois suicidarem-se. Um dos motivos acusados foi o uso de jogos
de tiro como Doom e Wolfenstein 3D pelos jovens que engendraram o massacre.
6
alcançar os objetivos dos jogos “virtuais”, descaso com o bem-estar e o direito do
próximo, aumento da agressividade (no caso de jogos violentos), e até mesmo mortes
em decorrência de horas prolongadas em frente à tela do jogo.
Apesar de esta ser a visão majoritária, há outra corrente de estudos de caráter
construtivista-relativista (ou sociologizante), presente nos game studies, que considera
tal abordagem médica como falsa ou meramente retórica, destituindo-a de seus efeitos
de realidade ao apontar o caráter historicamente construído dessas relações. Rob Cover
(2006), por exemplo, em seu artigo “Game (Ad)Diction Discourse, Identity, Time and
Play in the Production of the Gamer Addiction Myth”, publicada no periódico Game
Studies, apesar de manifestar inquietações interessantes, toma a aproximação dos jogos
com as drogas como construções sociais: Não seriam nada mais que “discursos”,
retórica, “metáfora” e “mito”, perdendo a dimensão de seus efeitos de realidade.
Estas duas grandes correntes que polarizam uma controvérsia sociotécnica configuram o
que Bruno Latour (1994) e Isabelle Stengers (2003) chamaram de guerra das ciências.
Por mais que haja um lado preponderante, o conhecimento científico, neste caso, não
está estabilizado em torno de fortes associações que tornem impossível o
questionamento de suas verdades, ou conforme a terminologia latouriana, a abertura de
suas caixas-pretas (LATOUR, 2000). Trata-se, pois, de uma controvérsia 3 – ou seja,
uma disputa científica entre aqueles que produzem a epistemologia sobre o uso dos
videogames no contexto atual. Assume-se aqui, como Latour, que a ciência fala de uma
posição privilegiada, senão central, na sociedade moderna, e que esta, portanto,
influencia de forma incisiva a opinião de jornalistas, governantes, profissionais da
indústria de jogos, familiares e os próprios usuários dos jogos eletrônicos.
Uma análise preliminar do material produzido nesta área parece indicar uma polarização
entre duas perspectivas de análise. O primeiro grupo de estudos aborda a partir da
perspectiva da “coisa” – o objeto videogame causando um vício incontrolável ao
homem, que perderia assim a sua racionalidade e capacidade de falar por si mesmo, ou
3
Este projeto está inserido dentro de um programa maior entitulado Mapping Controversies, criado por
Bruno Latour e hoje coordenado internacionalmente por Tomasso Venturini, que agrega pesquisadores de
diversas instituições: MIT, Sciences-Po, ENSMP, Oxford University, Manchester University, Ecole
Polytechnique Fédérale de Lausanne, e que, desde agosto de 2011, incluiu a Universidade de São Paulo,
por meio do curso Antropologia da Ciência e da Modernidade: Mapeamento de Controvérsias, a cargo
do Prof. Dr. Stelio Marras e com a colaboração do Prof. Dr. Vincent Lépinay do Science-PO (ver
websites sobre o mapeamento de controvérsias nas referências).
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seja, seu estatuto enquanto sujeito. Em contrapartida, o segundo grupo partiria do
“homem” para falar da coisa, ou seja, dos benefícios que o homem – o sujeito por
excelência em pleno controle da relação – colheria a partir do uso dos jogos eletrônicos.
Essa controvérsia, portanto, gira em torno do tema da captura da subjetividade humana,
da relação entre homem e máquina: um tema clássico na história do pensamento
ocidental.
Estaríamos de volta à antiga matriz ocidental/moderna: homem vs. máquina? Esta
problemática retorna não para reafirmar o que já foi dito, mas para dar um
encaminhamento teórico adequado para a pesquisa. A clássica questão seria: quem
englobaria quem? O homem dominaria a máquina, como parecem sugerir os
pesquisadores que apontam para os benefícios cognitivos propiciados pelos
videogames? Ou aconteceria exatamente o oposto, como defendem os especialistas que
alertam para os perigos do vício? Neste jogo de captura e agência de subjetividades, a
máquina se encontraria numa posição de ambiguidade: de um lado aparece como uma
virtude do desenvolvimento, de outro como a causa de prejuízos sociais, cognitivos e
psíquicos. Quem seria então o sujeito da relação? E quem seria o objeto? Buscando sair
dessa dicotomia paralisante, encontramos em Donna Haraway a perspectiva do
ciborgue, que nos ajuda a pensar esta questão:
O ciborgue nos força a pensar não em termos de “sujeitos”, de mônadas, de
átomos ou indivíduos, mas em termos de fluxos e intensidades, tal como
sugerido, aliás, por uma “ontologia” deleuziana. O mundo não seria constituído,
então, de unidades (“sujeitos”), de onde partiriam as ações sobre outras
unidades, mas, inversamente, de correntes e circuitos que encontram aquelas
unidades em sua passagem. Primários são os fluxos e as intensidades,
relativamente aos quais os indivíduos e os sujeitos são secundários, subsidiários.
(HARAWAY; KUNZRU; TADEU, 2009, p.14)
Sem erigir barreiras intransponíveis entre o humano e o não-humano, a perspectiva do
ciborgue, que mistura a mecanização e a eletrificação do humano com a humanização e
a subjetivação da máquina, é especialmente útil por fornecer um guia teórico para esta
pesquisa: afinal, são “bits e bytes que circulam, indistintamente, entre corpos humanos e
corpos elétricos, tornando-os igualmente indistintos: corpos humano-elétricos.”
(HARAWAY; KUNZRU; TADEU, 2009, pp.12-13). No entanto, frise-se bem, não
estamos falando de qualquer homem e qualquer máquina, mas de homens e máquinas
8
específicos, situados no meio com outras associações4. Somente uma etnografia densa
poderá revelar as particularidades de cada um dos agentes. O esforço será empreendido
no sentido de entender as categorias, e ver a quê elas estão associadas. É a idéia do fazfazer5 de Latour: de que as associações, os engendramentos (ou agenciamentos) dão o
sentido das coisas e pessoas em rede.
Ao investigar as relações entre ciência, sociedade, tecnologia e as múltiplas associações
aí envolvidas, que se configuram de forma específica em cada situação, pretende-se,
então, compreender as redes de associações em torno do uso de jogos eletrônicos e,
afinal, como se constitui a sua regulação sociotécnica. A pesquisa, por fim, buscará
investigar quais as concepções de humano e de desenvolvimento que estão pressupostas
em cada uma dessas visões, tal como as médicas-científicas, da qual derivam imagens
sobre a dependência e os dependentes.
1.3 Videogames em perspectiva
É difícil de entender a falta de trabalhos acadêmicos, em especial no Brasil, sobre o uso
de videogames, tendo em vista sua ampla difusão mundial. Para dar uma dimensão do
fenômeno: hoje, a indústria de games é a mais lucrativa no ramo de entretenimento, com
faturamento de US$ 60,4 bilhões anuais i superando o cinema e a música. No Brasil,
segundo pesquisa do Ibope em 2012, 60 milhões de pessoas, ou seja, 33% da população,
possui ao menos um videogame em casa. ii Nos EUA, 99% dos garotos e 94% das
garotas entre 12 a 17 anos são adeptos dos videogames iii – e confessamente preferem os
jogos a filmes ou outras formas de diversão. Em 2008, a China atingiu a marca de 59
milhões de jogadores online iv. Na Coréia do Sul, foram registrados de 300.000 a
500.000 casos de viciados em gamesv. E já há clinicas de tratamento de dependência
funcionando em diversos países, como o Japão, China, Coréia, Holanda, Inglaterra,
Estados Unidos, e mais recentemente, o Brasil – que curiosamente é o país em que as
4
Segundo Latour (2000), nunca somos postos diante da ciência, da tecnologia e da sociedade, mas sim
diante de uma gama de associações mais fracas e mais fortes; portanto, entender o que são fatos e
máquinas é o mesmo que entender o que as pessoas são.
5
Ainda segundo Latour, não podemos afirmar que exista algo que seja por si só social. Humanos e nãohumanos se associam e essas associações geram efeitos, e esses efeitos deslocam objetivos, redefinem
posições e sentidos. Não importa as entidades, o que importa são os efeitos que esses “atores” fazem
fazer.
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pessoas, entre as que têm acesso à Internet, passam o maior tempo dedicado às
atividades online: 45 horas mensais, em média vi.
E apesar de controversa, associação do jogador de videogames com o vício circula em
vários ramos de estudos psicológicos e pedagógicos e, com maior força e influência
política, na imprensa e no discurso governamental. Alguns teóricos dos game studies,
no entanto, acostumaram-se com a ideia de que tal imagem é falsa, que a dependência
de videogame não é real, ou pelo menos é muito mais complexa do que a sua
representação na ciência médica. Contudo, observamos que estas associações são
atuantes, informa a atitude dos ministros do governo, políticos e legisladores perante os
jogos, tem notáveis efeitos indiretos na indústria de games e no financiamento de seu
desenvolvimento e influencia as atitudes dos próprios jogadores e seus familiares em
relação aos jogos.
Devemos ter em mente que, se a imagem do vício permanece, é porque há uma base
sociotécnica que a suporta. Não basta afirmar que o vício é socialmente construído. Isto
é apenas o ponto de partida da investigação, e não esgota de forma alguma o problema,
pois ao tratá-lo como algo falso, ilusório ou não existente, perde-se a dimensão de sua
performatividade, isto é, o seu efeito de “realidade”. Diga-se, é bom ressaltar, que esta
controvérsia está viva, posta em disputa, e muitas pessoas a vivenciam cotidianamente,
ora concordando, ora discordando dos especialistas, ou mesmo não os escutando. O que
está em questão, portanto, é a forma como são produzidos e circulados os vários
conjuntos de conhecimentos que produzem a associação do jogador com o vício.
Somente pelas razões já elencadas, a construção da idéia do vício em videogames seria
digna de pesquisas e análises mais aprofundadas. Então, ao invés de ignorar ou
denunciar estas associações, um dos pontos centrais da investigação deve estar
localizado na desestabilização dos conhecimentos científicos acerca da dependência de
videogames. A preocupação agora passa a ser: como abordar o uso dos jogos
eletrônicos, sem, no entanto, aderir prematuramente ao construtivismo ou ao
naturalismo?
A antropologia da ciência e da tecnologia pode ser muito proveitosa neste
enfrentamente, pois tem característica de estabelecer um diálogo interdisciplinar com as
diversas ciências que emitem pareceres sobre o tema, e por envolver em sua
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argumentação o ponto de vista dos diversos “nativos” envolvidos na situação,
reconhecendo-lhes estatuto ontológico não-reducionista. Além disso, soma-se ao fato de
que são praticamente inexistentes estudos antropológicos sobre a dependência de
videogames. Deste modo, a combinação videogame, dependência e antropologia parece
ser inédita no Brasil, o que pode revelar uma especificidade local do modo de relação
entre os atores envolvidos no problema, além de poder vir a ser adequada para evitar
generalizações apressadas que advêm da relação entre os jogos e uma estrutura
cognitiva individual suposta como universal. Não devemos, portanto, tratar a
dependência em jogos digitais de forma isolada ou monocausal, mas em rede, situada no
meio com outras associações em torno da controvérsia.
Nesta pesquisa, se pretende trabalhar por meio de algumas questões que se cruzam com
os argumentos em torno do jogo e do vício, tais como: lazer, infância e juventude,
violência, drogas, corporalidade, virtualidade e a interatividade dos jogos. Estes
podem ser, em várias combinações, alguns dos campos em que o videogame é
denunciado e que as associações do jogo com o vício são tecidas. Nossa hipótese é que
o que conecta todas estas questões seria a preocupação que pode gerar a produção de
uma dicotomia entre o "real" e o "virtual" e uma apreensão contínua de atividades
tomadas como de mero entretenimento, que são encaradas como perigosas em virtude
de suas associações com o lúdico e o virtual, simultaneamente.
2. Questões e objetos da pesquisa
2.1 As retóricas do vício
A transferência da concepção de vício para os discursos que relacionam atividades que
exijam repetição, ou que até mesmo tenham qualidades compulsivas, não está limitada
aos games, mas tem sido aplicada aos jogos de azar (GRIFFITHS, 1998), à compulsão
sexual (YOUNG, 1998) e à pornografia (PORNOGRAPHY & SEXUAL VIOLENCE,
1983), entre outros. No entanto, as novas tecnologias parecem ser um alvo em
particular, e tanto a Internet como os videogames e os telefones celulares têm sido
discutidos como possuidores de qualidades inerentemente viciantes (YOUNG, 1998).
A indagação inicial pode ser pode ser colocada do seguinte modo: porque essa relação
repetitiva específica é socialmente tida como negativa, ao mesmo tempo em que outras
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não são vistas como objeto de dependência (embora também possam produzir doenças)?
Essa pergunta nos leva direto à questão central: o que seria mesmo o vício, ou a
dependência de jogos eletrônicos? Essa é a categoria-chave para a pesquisa. É
justamente a noção de vício que tem que ser discutida, desestabilizada e colocada em
risco na etnografia, já que não há consenso em torno do seu significado. É pouco
afirmar que esta noção é socialmente construída, mas deve ser o ponto de partida para a
investigação.
Poderíamos trabalhar provisoriamente com a hipótese de que o vício seria um fenômeno
que compreende relações não-controladas, não-domesticadas, em que está em jogo
captura da subjetividade humana. Não estaria aí posto o terror da mistura entre humanos
e não-humanos? O vício constantemente aparece ligado às idéias de embotamento,
alienação e desumanização. Poderíamos pensar que, nesta tentativa moderna de
purificar o humano (e o não-humano, separados de forma isolada nos pólos sociedade e
natureza) de que fala Bruno Latour, o videogame apareceria como uma séria ameaça?
Estaria o usuário se tornando um autômato, deixando de ser humano ou perdendo a
essência de sua humanidade?
Olhando mais de perto as práticas das ciências, vemos que, nos discursos médicos em
torno das drogas químicas, a dependência é muitas vezes definida como uma mudança
de comportamento processual relacionada à experiência repetitiva nas disciplinas
sociopsicológicas, ou uma neuro-adaptação a estímulos (tais como substâncias químicas
psicoativas), entre os entendimentos orientados pela bioquímica. De qualquer forma,
qualquer conceito de dependência envolve uma noção de mudança de comportamento e
um desejo de experiência ou de repetição.
A dependência é por vezes apresentada como uma experiência de desordem moral, uma
falha física, uma falha social, ou como uma doença infecciosa que deve ser contida ou
monitorada por medo de espalhar o vício de um corpo para outro (LART, 1998).
Comumente, um ou vários desses conceitos são usados na retórica 6 do vício digital para
produzir a figura (ou personagem) do jogador hardcore como um dependente. Muitas
vezes isto é visto simultaneamente como distúrbio psicológico, e por meio de um
6
O conceito de retórica não está sendo tratado nesta introdução como um falso discurso, mas como uma
prática discursiva que carrega diversas associações e ativa uma série de códigos, formando um conjunto
de significados que se relacionam entre si e que podem abarcar novos elementos.
12
modelo em que a dependência é determinada por aquilo que é tido como viciante –
mídia digital, neste caso.
O trabalho de Kimberly Young sobre o vício em internet serve como um exemplo
significativo das maneiras em que a retórica do vício é articulada a fim de denunciar
novas formações sociais que emergem através da mídia digital. Sua escrita está cheia de
comparações, muitas deles redutoras e simplistas, para sugerir que o uso frequente e
consumidor de tempo de formas de mídia digital não é diferente de "alcoolismo,
dependência química, ou vícios como comer demais e jogos de azar" (YOUNG, 1998).
Ao invés de traçar um conjunto de paralelos muito próximos entre o digital como
"droga" e as drogas em si, ela trabalha por meio de uma noção de comportamento adicto
inspirando-se em escritos anteriores que têm atraído semelhanças entre a dependência
química de drogas e hábitos como o jogo compulsivo de apostas, comilança crônica,
compulsão sexual e obsessão por assistir televisão. Para Young, é o sentimento
experienciado que é viciante, mais do que a mídia digital em si (YOUNG, 1998).
Para outros autores (BINAISA, 2002), uma noção de dependência digital é produzida
por meio da articulação de uma semelhança entre as noções culturais de ambos, os
fármacos e os jogos eletrônicos, como escapistas – uma fuga do "real". Tais
comparações são geralmente apenas afirmações redutoras da semelhança que comparam
a fisicalidade da dependência de substâncias químicas com atividades, tais como os
jogos, que podem ser conscientemente escolhidas porque são prazerosas, agradáveis e
gratificantes, e estão localizadas em uma matriz complexa de desejo, identidade e
sociabilidade que produzem a escolha de passar um tempo significativo envolvido na
atividade do jogo.
Jacques Derrida se refere a uma noção de "dicção" da "adicção" como um conjunto de
características significantes que são aplicadas aos usuários de drogas e que se ligam ao
requerente dentro de um particular conjunto ideológico e político de valências
(DERRIDA, 1995). É importante notar que a aplicação da metáfora da dependência
restringe e produz certos comportamentos, e estabelece o "mundo digital" como uma
substância não-natural, irreal e perigosa, e redutivamente representa o usuário por meio
da "imagem" do viciado em drogas.
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Suspeitamos que a denúncia do jogo eletrônico feita pela ciência médica, de que os
games representariam uma forma inválida de engajamento textual, erige-se a partir das
diversas associações dos videogames com outros campos, como: lazer, novas
tecnologias, drogas, violência, juventude, corporalidade (mediada por computador) e
virtualidade. No entanto, é bom ressaltar que somente poderemos verificar a validade
destas suspeitas a partir da etnografia realizada em campo. O material coletado até o
momento nos permite apenas direcionar as questões a serem buscadas, fazer breves
apontamentos e indicar algumas hipóteses. Por hora, iremos propor uma reflexão inicial
acerca dois aspectos do videogame: o primeiro enquanto jogo, como algo associado ao
campo do “lúdico”, e o segundo enquanto algo que pertence ao campo do “virtual”.
2.2 Videogame e seu aspecto lúdico
De saída, quando pensamos em jogo (ao menos na cultura ocidental contemporânea),
podemos classificá-los como pertencente ao campo do tempo livre, do não-trabalho. A
clássica definição de Huizinga demarca uma característica específica do jogo em
contraponto à racionalidade instrumental. Para ele o jogo seria:
Uma atividade livre, ficando conscientemente tomada como não séria e exterior
à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira
intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material,
com a qual não se pode obter qualquer lucro. Ela é praticada dentro de seus
próprios limites de tempo e espaço de acordo com regras fixas e de uma
maneira ordenada. Promove a formação de agrupamentos sociais, que tendem a
se cercar de sigilo e sublinhar a sua diferença em relação ao mundo comum, por
disfarce ou outros meios (HUIZINGA, 1938).
O trabalho do sociólogo Roger Caillois (1957) complementa a clássica conceituação de
jogo do filósofo Johann Huizinga colocada na seção anterior, com algumas
características da interação lúdica, a seguir:
Livre: A interação lúdica não é obrigatória; se fosse, perderia de uma vez só sua
qualidade atrativa e alegre como diversão.
Separada: Circunscrita dentro dos limites de espaço e tempo, definida e fixada
antecipadamente.
Incerta: O curso da qual não pode ser determinado, nem o resultado obtido
previamente e alguma margem para as inovações deixadas para a iniciativa do
jogador.
Improdutiva: Não cria bens, riqueza, nem elementos novos de qualquer espécie;
e, com exceção da troca de bens entre os jogadores, termina em uma situação
idêntica à que prevalecia no início do jogo.
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Regida por regras: Sob convenções que suspendem as leis ordinárias e no
momento, estabelecem uma nova legislação, que conta sozinha.
Faz-de-conta: Acompanhado por uma consciência especial de uma segunda
realidade ou fantasia livre, como em oposição à vida real (CAILLOIS, 1957).
Entre os autores da área da ludologia (ou game studies como também o campo é
chamado), começamos por Clark Abt (1970), que propõe a seguinte definição:
Um jogo7 é uma atividade entre dois ou mais tomadores de decisão
independentes buscando alcançar seus objetivos em um contexto limitador [...]
um jogo é um contexto com regras entre os adversários tentando conquistar
objetivos (ABT, 1970).
Avedon e Sutton-Smith (1971) formulam que “jogos são um exercício de sistemas de
controle voluntário, em que há uma competição entre forças, limitadas por regras para
produzir um desequilíbrio”. Já Costikyan (1994) coloca que “um jogo é uma forma de
arte na qual os participantes, denominados jogadores, tomam decisões a fim de
gerenciar os recursos por meio das fichas do jogo em busca de um objetivo”. Por sua
vez, Bernard Suits (1990) teoriza que:
Interagir em um jogo é engajar-se em uma atividade direcionada para produzir
um determinado estado de coisas, usando apenas meios permitidos pelas regras,
em que as regras proíbem meios mais eficientes em favor dos menos eficientes,
e em que tais regras são aceitas apenas porque possibilitam essa atividade
(SUITS, 1990, p. 34).
Todas estas definições apontam para alguns elementos em comum. Não vamos por hora
entrar em detalhe sobre as divergências entre elas. Encontramos, pois, em Salen e
Zimmerman (2012) uma conceituação de jogos que sintetiza alguns elementos, com os
quais trabalharemos mais detidamente. Assim, temos que: “jogo é um sistema no qual
os jogadores se envolvem em um conflito artificial8, definido por regras, que resulta em
um resultado quantificável”.
A partir das definições acima podemos dizer que o aspecto lúdico poderia estar
relacionado com a esfera do lazer; que por sua vez encontrar-se-ia em posição
imediatamente oposta ao cálculo utilitarista e à ética do trabalho moderna de que fala
7
Um dos problemas dessa definição é que nem todos os jogos são disputas entre adversários – em alguns
jogos, os jogadores cooperam para atingir um objetivo comum contra uma força obstrutiva ou situação
natural que não é, em si, realmente um jogador, uma vez que não têm objetivos (ABT, 1970).
8
Para evitar maiores complicações, vou utilizar artificial no sentido de que o jogo ocorre dentro do
chamado “círculo mágico”, isto é, dentro de um espaço e de um regime de tempo distintos da “vida
ordinária”. No entanto, a concepção de jogo como não-real possui sérias objeções.
15
Max Weber (1904-1905). Associado ao campo do lazer, do tempo livre e da nãoseriedade e, ao mesmo tempo, afastado do campo do trabalho, da vida ordinária e da
lógica utilitária, o videogame ligar-se-ia possivelmente com as drogas, já que ambas
pertenceriam ao campo do lazer e seriam avessas à lógica da sociedade de produção de
mercadorias: aparentemente não haveria nada sendo produzido em nenhum dos casos,
apenas coisas consumidas num tempo devotado ao puro ócio. Além disso, o círculo
mágico (espaço e tempo próprios do jogo, separados dos da vida social ordinária)
produzido pelo jogo, a que se referem Huizinga (1938) e Caillois (1957), poderia fazer
com que o jogador ficasse completamente imerso dentro do mundo do jogo, onde nada
que passasse fora dali alcançasse importância para fazê-lo parar de jogar.
2.3 Videogame e seu aspecto virtual
Para além de ser um jogo, os videogames têm características específicas: diferentemente
de jogos esportivos ou jogos de cartas, eles são mediados eletronicamente; em geral por
meio de um computador ou de um console, e acontecem num espaço chamado “virtual”.
Isto os aproxima dos usos da internet, de telefones celulares e da temática mais geral do
vício digital. Ao contrário de autores como Young (1998), que tratam da mesma forma
os usos de internet e de videogames, e que interpretam a interatividade e a imersão de
ambos como os fatores causadores da dependência, há claramente um ramo do discurso
médico que procura discernir um do outro, e acusar exclusivamente os games por seu
potencial viciante.
Por outro lado, o videogame e a internet compartilham uma série de características por
participarem do “mundo digital”: seriam classificados como atividades “virtuais”, em
que a corporalidade do ser humano estaria comprometida por não operar, supostamente,
com toda a potencialidade de seu aparato sensitivo. Seriam experiências, portanto,
menos intensas, menos humanas, ou até mesmo falsas. Suspeitamos, mais uma vez, que
as associações destes diversos elementos contribuiriam para a produção e a
estabilização de um valor negativo em torno da categoria videogame.
O jogo eletrônico aqui se afastaria do esporte pelo primeiro não ser entendido como
uma atividade corporal, mas algo que, pelo contrário, causaria prejuízos à saúde devido
ao sedentarismo causado pelo seu uso contínuo. Esta visão de corporalidade também é
controversa dentre alguns trabalhos recentes de antropologia. Le Breton (1999), em
16
“Adeus ao corpo”, aponta para o perigo das relações não mediadas pelo corpo em sua
reflexão a respeito do ciberespaço como lugar de seu desaparecimento. Para ele, a
virtualidade seria, por excelência, um espaço onde o corpo (fisiológico) fica pendente,
provisoriamente esquecido enquanto matéria. Seria o território das imagens e dos
signos, onde coexistem em virtualidade inúmeros corpos em potencial. O corpo físico
seria então desnecessário, e mesmo indesejável, em um mundo onde se pode
potencialmente vestir qualquer máscara, ter qualquer forma e tornar-se qualquer
personagem imaginável.
No entanto, na visão outros autores, a não aparição do corpo para o outro não significa
necessariamente a sua ausência. Ingold (2000), por exemplo, aponta para uma
integração dos sentidos envolvidos em atividades como jogar videogame. Para ele, o
corpo não é uma coleção de órgãos adjacentes, mas um sistema sinérgico, cujas funções
todas são exercidas e conectadas na percepção do ambiente. Pierre Lévy argumenta que
“a virtualização do corpo não é portanto uma desencarnação mas uma reinvenção, uma
reencarnação, uma multiplicação, uma vetorização, uma heterogênese do humano
(LÉVY, 1996, p.33). Para ele, “os sistemas de realidade virtual nos permitem
experimentar uma integração dinâmica de diferentes modalidades perceptivas” (idem,
p.28). Taylor observa que "da mesma maneira que agora vemos a relação entre a vida
online e offline como não delimitada, em muitos aspectos, uma dicotomia jogo/não-jogo
não se sustenta" (TAYLOR, 2006, p. 19). Suspeitamos que a classificação do
videogame mediante esta concepção de virtualidade poderia torná-lo suscetível à
retórica do vício em drogas.
2.4 Games e drogas: metáfora ou metonímia?
Em geral, dentro da dicção da adicção, cria-se uma dependência do "eu" (ou do corpo,
ou da personalidade ou de alguma outra faceta da individualidade) a alguma coisa.
Enquanto as drogas são vistas como um complemento físico que é ingerido (um
comprimido, um pó, um líquido), que penetra no corpo através da pele (ou de alguma
outra maneira), é o que a droga representa – o seu efeito – que é considerado virtual,
irreal, sem realidade ou fora da razão. O vício é geralmente concebido em termos de
uma dependência do não-real, de algo que é menos real do que aquilo que é classificado
como natural, justo, apropriado, benéfico.
17
Podemos pensar que a experiência do jogo, na retórica da dependência, apareça não
como irreal ou virtual por causa de algo que nos leva para fora do mundo físico e do
comportamento normal, nem porque se baseie em tecnologias que são relativamente
novas. Mas, talvez, porque esses “mundos” narrativos, comunicativos e articuláveis, que
são evocados de forma interativa, não possuam (aparentemente) uma substância física.
As preocupações sobre a dependência digital continuam a invocar uma separação entre
o real e o virtual por meio da invocação da divisória representada pela tela do
computador (ou do console e da televisão) e pelos dispositivos de interface.
O ponto importante aqui é que aqueles que celebram ou denunciam novas formas de
mídia a partir de um conceito binário de real/virtual, veem um potencial de
transformação para o real e para o "eu real" (outro conceito também controverso) no
encontro com o virtual, de tal forma que os usos repetitivos, frequentes, apaixonados e
até mesmo obsessivos de mídias digitais geram uma ansiedade que iguala o virtual com
a droga, com a fantasia da pornografia, e com outros não-reais relacionados com a
dependência; todos eles são entendidos como a falta de prazer da "vida real", do jogo
físico e da comunicação face a face.
Nesse sentido, jogar poderia ser entendido como viciante não porque os jogos são
usados compulsivamente, mas porque, ao representar seu universo conceitual como
"irreal", eles estariam ligados às drogas, e, assim, poderiam tornar-se sujeitos ao
discurso do vício em drogas. Como Derrida coloca, nós rejeitamos o viciado em drogas,
porque:
Ele se isola do mundo, no exílio da realidade, longe da realidade objetiva e da
vida real da cidade e da comunidade; [...] drogas, diz-se, faz alguém perder
qualquer senso da verdadeira realidade. No fim das contas, é sempre, penso eu,
nos termos da presente acusação que a interdição é declarada. Não nos opomos
ao usuário de drogas do prazer em si, mas a um prazer tomado em uma
experiência sem verdade (DERRIDA, 1995, pp.235-236, tradução nossa).
Vargas (2006) nos alerta que indagar “por que as pessoas usam drogas” ou “o que
significa usar drogas” não seria colocar boas questões. As respostas que os especialistas
costumam dar a estas questões apresentam uma regularidade impressionante: o porquê
ou o significado do uso de drogas são regularmente imputados a uma falta ou fraqueza,
física e/ou moral, psíquica e/ou cultural, política e/ou social. Dito de um modo mais
prosaico, habituamo-nos a pensar que o consumo de drogas seria uma resposta a uma
18
crise ou a uma carência qualquer: consomem-se drogas porque faltam saúde, afeto,
cultura, religião, escola, informação, dinheiro, família, trabalho, razão, consciência,
liberdade, etc. (p. 585-586). Sua proposta é que:
Em vez de indagar o porquê ou qual o significado do uso de drogas, cabe
perguntar o que ocorre, ou que experiência os usuários atualizam mediante o
consumo. [...] Minha hipótese de trabalho é que o que ocorre são eventos e que
esses eventos implicam experimentações intensivas de auto-abandono, ou o
paradoxo de ações que deliberadamente visam “sair de si” (VARGAS, 2006, p.
583).
Embora se argumente aqui que a ligação entre a dependência de drogas e a dependência
de games seja mais do que uma comparação metafórica, pois é realmente enraizada em
uma percepção do que constitui o "real", uma simples inserção do significante "jogo" no
lugar de “drogas” nas duas citações acima indica muito cuidadosamente as maneiras
pelas quais o viciado digital é produzido na cultura contemporânea ocidental: uma vez
que não estaria dentro do conhecimento da realidade objetiva, o entretenimento
interativo seria um prazer experienciado "sem verdade". Ou seja, quando o usuário ou
jogador retorna a este prazer ou experiencia o mesmo jogo diversas vezes, como a
tensão gerada pelo cumprimento das metas dos jogos, a retórica da dependência entraria
em jogo e uma lógica seria estabelecida pela qual seria possível referir-se ao usuário
hardcore como um viciado.
Para encontrar uma abstração mais adequada da relação entre o suposto mundo “real” e
o “virtual”, pode-se recorrer aos conceitos clássicos de Gabriel Tarde (1910). Para ele,
diferentemente da concepção aristotélica 9, o real não é hierarquicamente superior aos
possíveis (virtuais). Estes são condição de possibilidade daquele. Para Tarde, os
possíveis não são menos reais (senão ao contrário, são mais reais) que o próprio real.
Este é apenas um aborto, um sacrifício, um "dispêndio dos possíveis". Levar em conta a
realidade do virtual em nossas vidas é, por fim, assumir o paradoxo, a composição de
9
O esquema do virtual aristotélico começa por distinguir, na gestação contínua da realidade do universo,
uma relação dialógica entre o "real" e o "possível". Sob esta rubrica da tensão dialética, Aristóteles
instituiu uma equivalência entre atual (ato) = real; e virtual (força) = irreal ou ilusório. Todo e qualquer
movimento do mundo trata-se, deste modo, de um jogo agonístico, por meio do qual surge um par de
conceitos opostos que ele chama de "dynamis / energeia". Aristóteles recorria então à noção de virtual
para justificar esta ontológica oposição vigente, entre "possibilidade" e "existência". A lógica do sistema
aristotélico obedecia ao princípio da "identidade", da recognição e da não-contradição no pensamento,
cuja premissa dispunha que não seria possível existir, ao mesmo tempo, "A" e "não-A". Isso quer dizer
que, entre várias possibilidades, apenas uma era realizada em cada momento, sendo que o virtual serviria
apenas para hierarquizar, com a sua força germinal, as possibilidades realizáveis.
19
virtualidades não-humanas e de devires moduláveis, como uma imagem-ritmo, como
produtores de um imanente ethos intensivo, singular, múltiplo e criativo (FONSECA,
2006). Grosz e outros autores apontam que o quê o mundo digital faz de melhor é
"revelar que o mundo em que vivemos, o mundo real, sempre foi um espaço de
virtualidade" (GROSZ, 2001, p.78). Enfim, pensamos que refletir sobre a dependência
do videogame somente pode ser produtivo por meio da quebra dessa distinção estanque
entre o real e o virtual.
3. Pressupostos Teóricos
3.1 De atores a jogadores: notas para uma teoria da ação
Nesta seção iremos explorar alguns conceitos de jogo para construir a nossa abordagem
teórica em relação ao problema da agência. Partindo da metáfora do teatro, que foi
bastante utilizada pelas ciências sociais (GOFFMAN, 1959; GEERTZ, 1991) para
descrever o comportamento dos chamados atores, propomos experimentars desta vez a
metáfora dos jogos, substituindo a noção de atores (no sentido teatral) por jogadores, e
pensar nas possibilidades que esta perspectiva pode contribuir para uma teoria da ação.
Clark Abt (1970) nos abre as portas para esta reflexão:
Naturalmente, a maioria das atividades da vida real envolve tomadores de
decisão independentes buscando alcançar os objetivos em algum contexto
limitador. As situações políticas e sociais muitas vezes podem também ser
vistas como jogos. Cada eleição é um jogo. As relações internacionais são um
jogo. Todo argumento pessoal é um jogo. E quase todas as atividades
comerciais são um jogo. Se estas competições de políticos, guerra, economia e
relações interpessoais forem jogadas com recursos de poder, habilidade,
conhecimento ou sorte, sempre terão as características comuns das decisões
recíprocas entre os atores independentes, com objetivos pelo menos
parcialmente conflitantes (ABT, 1970).
Se já pudemos entender que “a vida é (como se fosse) um teatro”, o que a aproximação
da vida social como um jogo nos trás de novidade? A primeira questão que surge é: O
que é, afinal, um jogo? Em que exatamente ele consiste? Trago aqui algumas definições
multidisciplinares que vão contribuir para a nossa discussão antropológica mais
centrada nos trabalhos de Geertz (1973), Latour (1994) e Ortner (2007) sobre o conceito
de agência. A reflexão que se tentando propor aqui, por meio da definição de Salen e
Zimmermann (2012) anteriormente citada, é que podemos ver um jogo como algo que é
basicamente composto por jogadores, que agem em um sistema por meio de suas
20
decisões (ou jogadas) conforme determinadas regras. Essas jogadas entram em
interações com as ações dos demais jogadores afetando o sistema, que irá devolver uma
nova situação para os jogadores no momento seguinte. Assim, para os objetivos
traçados no início, ficamos com a ideia de que agência do jogador é a sua jogada.
Mas esta também não é agência livre. [...] Em outras palavras, os desejos ou
intenções culturais emergem de diferenças estruturalmente definidas entre
categorias sociais e diferenciais de poder. Assim, como já apontei há pouco,
esses projetos culturais são jogos sérios, o jogo social de metas culturais
organizadas em e em torno de relações locais de poder (ORTNER, 2007, p. 66)
A ação em um jogo não é livre de forma alguma, pois esta condicionada sempre às
regras do jogo e às ações do sistema e/ou dos outros jogadores. Portanto, o modo pelo
qual o jogador age no jogo é basicamente fazendo escolhas dentro das possibilidades
apresentadas pelas regras e pela configuração atual das posições dos elementos do jogo.
Assim, essa escolha não é autônoma, mas se dá em rede.
Os indivíduos/pessoas/sujeitos sempre estão inseridos em teias de relações, de
afeto ou de solidariedade, de poder ou de rivalidade, ou, muitas vezes, em
alguma mescla dos dois. Seja qual for a “agência” que pareçam “ter” como
indivíduos, na verdade se trata de algo que é sempre negociado interativamente.
Neste sentido, nunca são agentes livres, não apenas no sentido de que não têm
liberdade para formular e atingir suas próprias metas em um vazio social, mas
também no sentido de que não têm capacidade de controlar completamente
essas relações para seus próprios fins. Como seres sociais – fato verdadeiro e
inescapável –, só podem atuar dentro de muitas teias de relações que compõem
seus mundos sociais (ORTNER, 2007).
A questão da unidade de análise se impõe em seguida. Afinal, quem age? São
indivíduos, pessoas, o sistema, a estrutura, o jogo? Prefiro optar pela saída de Latour
(1994) inspirado pelo conceito de Gabriel Tarde (1910) de mônadas abertas, que nos
leva a uma teoria do ator-rede e a ideia do faz-fazer de Latour: de que as associações, os
ou agenciamentos dão o sentido das coisas e pessoas em rede. Assim, a ação é realizada
não por um indivíduo autônomo, mas por uma complexa rede de associações que fazem
fazer aquele jogador agir de tal modo e não de outro. A ideia de actantes (LATOUR,
1994), como tudo aquilo que modifica, é muito interessante porque também nos leva a
prestar atenção na agência não-humana. Desse modo, poderíamos pensar que não
somente o jogador joga com o jogo, mas como o jogo joga com o jogador.
Os jogos sérios sempre implicam o jogo de atores vistos como “agentes”.
Contudo, a própria palavra “agência” tem algo que remete ao ator autônomo,
individualista, ocidental. De fato, as próprias categorias que historicamente
21
estão por trás da teoria da prática, a oposição entre “estrutura” e “agência”,
parecem sugerir um indivíduo heróico – O Agente – enfrentando uma entidade
tipo cyborg chamada “Estrutura”. Mas nada poderia ser mais distante da
maneira como enfoco os agentes sociais, encarando-os como estando sempre
envolvidos na multiplicidade de relações sociais em que estão enredados e
jamais podendo agir fora dela. Assim sendo, assume-se que todos os atores
sociais “têm” agência, mas a idéia de atores como sempre envolvidos com
outros na operação dos jogos sérios visa a tornar praticamente impossível
imaginar-se que o agente é livre ou que é um indivíduo que age sem restrições.
(ORTNER, 2007, p. 46-47).
Poderíamos ficar em dúvida se na vida social não há um objetivo claro nem um
resultado quantificável, pois não há um objetivo comum para todos, nem uma condição
universal de vitória ou derrota. Poderíamos pensar, então, que na vida social não
jogamos somente um jogo, mas múltiplos jogos sobrepostos e simultâneos, com regras e
sistemas de avaliação distintos. Nessa encruzilhada, cada um constrói (e também sofre
uma construção de) um significado próprio para a vida e persegue os seus projetos
específicos, sejam estes individuais ou coletivos. Aí que entra o assunto da intenção do
agente, isto é, o quê o jogador está buscando alcançar com a sua decisão.
Assim como na teoria da prática, a vida social, sob a perspectiva dos jogos
sérios, é vista como algo ativamente jogado, voltado para metas e projetos
culturalmente constituídos e envolvendo tanto práticas de rotina como ações
intencionalizadas (ORTNER, 2007, p. 45-46).
Quando um jogador joga ele está buscando atingir um objetivo. Nesse sentido, a agência
carrega intencionalidades. Tarde (1904) nos fala de desejos e crenças e creio que seja
semelhante ao que Ortner (2007) coloca como agência no sentido hard, de uma agência
direcionada no sentido de perseguir um “projeto”, um fim, ou seja, um objetivo.
A agência de projetos não está necessariamente relacionada com dominação e
resistência, embora algo disso possa existir. Tem a ver com pessoas que nutrem
desejos de ir além de suas próprias estruturas de vida, inclusive – o que é muito
central – de suas próprias estruturas de desigualdade; tem a ver, em suma, com
pessoas que jogam, ou tentam jogar, seus próprios jogos sérios, mesmo se partes
mais poderosas procuram desvalorizá-las ou até destruí-las. (ORTNER, 2007, p.
68).
E como o jogador faz a sua jogada? Poderia se pensar que seria por meio de um cálculo
objetivo de custos e benefícios (ou perdas e ganhos) esperados das ações, assim como
no jogo da bolsa de valores. No entanto, esta é uma típica forma de jogar do
pensamento moderno, pois carrega consigo uma forma predominante racional e
individual de agir. A metáfora dos jogos sérios, portanto, aqui não se confunde com a
22
clássica teoria dos jogos da economia (OLSON, 1965; HARDIN, 1968), porque esta
trabalha com a ideia de escolha racional de um indivíduo.
As interpretações da vida social por meio de jogos sérios não envolvem a
modelagem formal da teoria dos jogos e não envolvem o seu pressuposto de que
prevalece uma espécie de racionalidade universal em praticamente todos os
tipos de comportamento social. Ao contrário, os “jogos sérios” são, bem
enfaticamente, formações culturais, não modelos de analista. Além disso, a
perspectiva dos jogos sérios pressupõe atores culturalmente variáveis (e não
universais) e subjetivamente complexos (e não predominantemente racionalistas
e interessados em si mesmos) (ORTNER, 2007, p. 46).
Desse modo, nesta proposição na trabalhamos com só um tipo de racionalidade, mas
múltiplas, e tampouco com uma autonomia do indivíduo para fazer escolhas ao calcular
os possíveis ganhos e perdas de seu leque de decisão. A discussão de Geertz (1971) em
seu ensaio sobre a briga de galos em Bali reforça esta posição.
Ora, a não ser em ocasiões muito especiais, as brigas de galos são ilegais em
Bali desde que foi proclamada a república (como o eram sob os holandeses, por
motivos não muito bem explicados), em função das pretensões ao puritanismo
que o nacionalismo radical tende a trazer consigo. A elite, que não é tão
puritana, preocupa-se com o camponês pobre, ignorante, que aposta todo o seu
dinheiro, com o que o estrangeiro poderá pensar, com o desperdício de tempo
que poderia ser melhor aplicado na construção do país. Ele vê a briga de galos
como “primitiva”, “atrasada”, “não progressista” e que não combina, em geral,
com uma nação ambiciosa (GEERTZ, 1973, p. 280).
Nesta discussão, Geertz se opõe a Jeremy Bentham, filósofo utilitarista inglês que se
tornou um dos principais proponentes da teoria do cálculo hedonista e que cunhou o
conceito de "jogo profundo" para designar jogos nos quais "as apostas são tão altas que,
da perspectiva utilitarista, é irracional que os homens se engajem neles” (BENTHAN
apud GEERTZ, 1973, p. 432). Sendo, do ponto de vista utilitarista, irracional participar
de jogos como esse, já que nesse tipo de jogo os riscos envolvidos são superiores aos
benefícios esperados, Bentham conclui que o "jogo profundo é imoral" e que, portanto,
"deveria ser legalmente proscrito" (idem, p. 433). Contudo, ao analisar a briga de galos
balinesa, Geertz tocou num ponto particularmente crucial: segundo ele,
Apesar da força lógica da análise de Bentham, os homens engajam-se num tal
jogo, freqüentemente e apaixonadamente, e mesmo diante de uma punição
legal. Para Bentham e os que pensam como ele (hoje em dia sobretudo
advogados, economistas e alguns psiquiatras), a explicação é que [...] tais
23
homens são irracionais viciados, fetichistas, crianças, tolos, selvagens que
precisam ser protegidos contra eles mesmos. (GEERTZ, 1973, p. 432)
Geertz comenta que para os balineses, embora não a formulem em tantas palavras, a
explicação repousa no fato de que nesse jogo o dinheiro é menos uma medida de
utilidade, tida ou esperada, do que um símbolo de importância moral, percebido ou
imposto (p. 300). Portanto, “o que torna a briga de galos balinesa absorvente não é o
dinheiro em si, mas o que o dinheiro faz acontecer, e quanto mais dinheiro, mais
acontece: a migração da hierarquia de status balinesa para o corpo da briga de galos”
(GEERTZ, 1973, p. 303).
Neste sentido devemos prestar atenção no que o dinheiro faz-fazer, em como ele
movimenta o jogo e os jogadores. Ele não age aqui como uma moeda de troca universal
tal como no comércio. Na briga de galos o jogo é outro, e o dinheiro, enquanto um
elemento participante do jogo, tem determinadas funções na criação da experiência do
significado de uma partida e da vida mais ampla. Este processo de interpretar os jogos
como objetos simbólicos, como textos culturais que refletem seus contextos, é uma
maneira de entender os jogos como cultura (SALEN; ZIMMERMANN, 2012, p. 28).
Então, solução que Geertz dá ao problema de Bentham é culturalista, pois ela estabelece
que, se os jogos profundos não respeitam os cânones do cálculo utilitário, é porque não
existem nem foram criados para isso, mas sim para "expressar simbolicamente" códigos
sociais: “a briga de galos é um texto cultural, e o que os balineses põem em jogo nesse
texto é mais do que dinheiro, e galos..., é o status de cada um”.
Para o antropólogo Eduardo Vargas (2006) se a explicação utilitarista não lhe parece ser
satisfatória porque não dá conta, a não ser assimétrica e negativamente, do fato de que
as pessoas "engajam-se num tal jogo, freqüentemente e apaixonadamente", a alternativa
apresentada por Geertz tampouco lhe parece adequada, pois ela põe a perder o veículo
mesmo utilizado para "expressar simbolicamente" os códigos sociais. Para Vargas:
O problema é que o recurso aos argumentos da (ir)racionalidade e da "expressão
simbólica" interdita, de antemão, que se considere a eficácia própria [...] Dessa
maneira acaba-se por perder de vista [...] o que o evento faz acontecer, a saber,
outros modos de engajamento no mundo, maneiras mais ou menos adequadas de
"a gente", enquanto "agentes", engajar-se no mundo, ou ainda, outras maneiras
de ser "(a)gente". O evento [...] produz modos de engajamento no mundo que
não são agenciados às expensas dos objetos, e que também não os tomam
apenas como intermediários [sobre a diferença entre mediadores e
24
intermediários, ver Latour (1991)], mas que se articulam com eles, mediadores
indispensáveis, no caso, para que as agências se efetuem de modo 'alterado' ou,
melhor, sob o modo de uma alter-ação (VARGAS, 2006)
O que Vargas aqui quer dizer (numa discussão em que aproxima o uso de drogas aos
jogos e as paixões), apoiando-se num pensamento pós-estruturalista, é que não estamos
apenas tratando de símbolos descolados dos actantes, mas que tanto o imaterial (os
símbolos) quanto o material estão conectados. A agência, então, seria o produto e o
produtor de um jogo de associações, de relações estabilizadas ou instabilizadas, de
alianças mais fortes ou mais fracas entre os jogadores (ver a teoria latouriana sobre
poder e dominação no artigo “Technology is society made durable”, 1991).
Portanto, ao levar a cabo o empreendimento etnográfico de delinear associações, é
preciso buscar entender o que são, em detalhe, estes jogos; no quê os jogadores estão se
baseando para tomar as suas decisões; quais valores e tipos de racionalidade estão sendo
tomados como referência e quais são os projetos e objetivos que orientam as suas ações;
e a que, tudo isso afinal, está levando em termos de transformações. O que este jogo
está fazendo, o quê ele está movimentando, quem ganha, quem perde, e a que preço?
Assim, Antropologia da “agência” não tem só a ver com a maneira como sujeitos
sociais, como atores empoderados ou desempoderados, jogam os jogos de sua
cultura, mas também com o fato de desnudar o que são esses jogos culturais, a
ideologia subjacente a eles, e também com o fato de que jogar o jogo os reproduz e
os transforma (ORTNER, 2007).
3.2 Constituindo um parlamento das coisas
Antes de mergulhar na controvérsia propriamente dita, buscamos apresentar um breve
arcabouço teórico-metodológico associado à proposta cosmopolítica (STENGERS,
2007). Não elaboraremos aqui um “referencial teórico”, mas uma pequena introdução a
este vocabulário mobilizado pelos autores referenciados, que, de alguma maneira, se
associam a um movimento em direção a uma Antropologia pós-social, simétrica e/ou
perspectivista. Devemos notar, como recomenda Latour (2006) em sua teoria-ator-rede
(A-N-T), que durante a própria descrição os conceitos já aparecem conectados aos
agentes, auxiliando-nos no trabalho etnográfico. Portanto, não estamos aqui “aplicando”
conceitos (a uma realidade exterior que possa servir de exemplo empírico), mas os
“experimentando” na prática, junto com os actantes.
25
Chamaremos aqui de cosmopolítica 10, então, esta proposta de agregar política 11 e
cosmologia num mesmo plano de análise; o que, por um lado, busca levar em conta a
alteridade cosmológica dos coletivos, e por outro, as coloca tais cosmologias em
relação, incluindo humanos e não-humanos no parlamento das coisas12, sem tratar a
política como uma esfera separada da vida “social 13”, nem como um fato “natural”; pois
aqui “natureza” e “sociedade 14” não devem constituir, como para os Modernos, um par
opositor, mas dois lados da mesma moeda.
Como expressão a um só tempo de uma nova natureza da política e de uma
nova política da natureza, o conceito/proposta de “cosmopolítica” ambiciona
explorar relações simetricamente comparáveis entre coletivos muito distintos
entre si, mas só aparentemente inconciliáveis no plano da análise. Dentre esses
impasses privilegiaremos o que estamos chamando aqui de “contextos
cosmopolitas”, isto é, situações de sobreposição, convivência ou embate entre
práticas e discursos (...). Com isso, buscaremos fortalecer a aposta na
comparabilidade de “modos de existência” ou “ontologias” (termos que, ao lado
10
Cosmopolítica: leva-se em conta aqui o sentido grego de arranjo, de harmonia, ao mesmo tempo que
aquele, mais tradicional, de mundo. É então um sinômimo do bom mundo comum, o que Isabelle
Stengers chama cosmopolítica (não no sentido multinacional, mas no sentido metafísico de política do
cosmo). Poder-se-ia designar como seu antônimo a palavra cacosmos, embora Platão, no Górgias, prefira
acosmos (LATOUR, 2004).
11
Política: entende-se, aqui, em três sentidos, que se distinguem por intermédio de perífrases: a) na sua
acepção usual, designa a luta e os compromissos dos interesses e das paixões humanas diante das
preocupações dos não-humanos; utiliza-se ainda a expressão políticas da Caverna; b) no sentido próprio,
designa a composição progressiva do mundo comum e todas as competências exercidas pelo coletivo; c)
no sentido restrito, chama-se política somente a um dos cinco alicerces necessários à Constituição, e que
permite a representação fiel pela ativação, sempre a retomar, da relação um/todos (LATOUR, 2004).
12
O objetivo do parlamento das coisas é tornar públicas as controvérsias sociotécnicas, conferindo
representividade a um maior número de agentes envolvidos na questão. Neste sentido, este método não
toma de antemão a representação do tipo caixa-preta, mas aponta que deve-se seguir etnoficamente a
passagem do instável ao estável, das controvérsias ao fechamento do fato em caixas-pretas. Neste sentido,
o parlamento das coisas celebra a não-modernidade das práticas científicas porque nele os cientistas não
são os únicos representantes das coisas. É uma rede, um rizoma que funciona sem o julgamento de uma
unidade transcendente, sem demarcações pré-estabelecidas, sem bordas (MORAES, 2000)
13
Segundo Latour, não podemos afirmar que exista algo que seja por si só social. Humanos e nãohumanos se associam e essas associações geram efeitos, e esses efeitos deslocam objetivos, redefinem
posições e sentidos. Não importa as entidades, o que importa são os efeitos que esses “atores” fazem
fazer. Neste sentido, estes atores não são apenas tomados como intermediários, que somente
transportariam significados, desejos ou vontades, mas mediadores, cujas presenças modificam as redes de
relações.
14
Sociedade, social: chama-se sociedade ou mundo social à metade da velha Constituição que deve
unificar os sujeitos separados dos objetos, e sempre submissa à ameaça da unificação pela natureza; é um
todo já constituído que explica as condutas humanas e permite, então, abreviar o papel político da
composição; faz o mesmo papel paralisante que a natureza, e pelas mesmas razões. O adjetivo “social”
(em inferno do social, ou representação social, ou construtivismo social) é, então, sempre pejorativo, pois
designa o esforço sem esperança dos prisioneiros da Caverna para articular a realidade sem ter os meios
(LATOUR, 2004).
26
do dualismo “nós/eles”, deverão ser problematizados) [...] algo que já tem sido
experimentado pela assim chamada “Antropologia Simétrica” (cf. LATOUR,
GOLDMAN & VIVEIROS DE CASTRO apud SZTUTMAN; MARRAS,
ementa do curso “Cosmopolíticas em comparação: diálogos entre a
Antropologia da Ciência e da Modernidade e a Etnologia Indígena”, 2013).
Portanto, a proposta da descrição etnográfica será seguir a rede sociotécnica de actantes
(LATOUR, 2006), detalhando agenciamentos específicos (DELEUZE, 1988) entre
humanos e não-humanos, como os próprios videogames. Será praticada uma
antropologia simétrica, que buscará reconhecer o mesmo estatuto ontológico para os
variados discursos e práticas que aparecem no campo, sejam estes provenientes dos
aficionados por videogames, sejam estes dos psiquiatras ou ainda de outros híbridos.
Assim, a partir da metodologia de Latour (2007), buscar-se-á entender de que modo os
regimes de veridicção (Foucault, 2008) acerca da dependência de jogos eletrônicos são
construídos, purificados e erigidos em caixas-pretas. Ao compreender este processo de
transcendentalização, no qual se oculta a dimensão imanente, do construído (plano
oficioso), e se estabelece a “verdade” (plano oficial), será possível apreender as
controvérsias, que desestabilizam as associações 15 bem amarradas entre os agentes em
torno do tema.
Busca-se, pois, constituir um parlamento das coisas a fim de mapear a variada
semântica de noções de dependência e de vício enunciadas e praticadas pelos variados
sujeitos envolvidos na controvérsia: os próprios jogadores; pais, cônjuges e demais
pessoas próximas a estes jogadores; profissionais da indústria de games; cientistas de
diversas áreas (psiquiatria, psicoterapia, pedagogia); teorias acadêmicas, notícias
jornalísticas, vídeos circulados na internet e regulamentações legais. A descrição das
práticas e dos discursos dos atores, por meio da articulação das dimensões do chamado
mundo “real” e dos mundos “virtuais”, nos permitirá traçar as associações de suas
relações com os videogames sem cair numa dicotomia assimétrica entre o verdadeiro e
o falso.
15
Associação: estende e modifica o sentido das palavras social e sociedade, que são sempre prisioneiras
da divisão entre o mundo dos objetos e o dos sujeitos; em vez da distinção entre os sujeitos e os objetos,
falar-se-á de associações entre os humanos e não-humanos; o termo recupera, assim, ao mesmo tempo, as
antigas ciências naturais e as antigas ciências sociais (LATOUR, 2004. p. 370).
27
3.3 Mapeando controvérsias: notas teórico-metodológicas
Embora o termo controvérsia muitas vezes carregue o sentido de uma polêmica viva, ela
é empregada aqui no sentido mais restrito de um debate em torno de um fato que ainda
não foi determinado. O principal objetivo desse tipo de análise é confrontar formas de
conhecimento que ainda são instáveis, para levar a uma compreensão mais profunda das
dificuldades associadas com o mapeamento de disputas na fabricação dos fatos.
Portanto, a investigação incidirá em uma situação em que as incertezas sociais, políticas
e morais tornam-se mais complexas, e não menos, pelo conhecimento científico.
The word “controversy” refers here to every bit of science and technology
which is not yet stabilized, closed or “black boxed”; it does not mean that there
is a fierce dispute nor that it hás been politicized; we use it as a general term to
describe shared uncertainty (VENTURINI, 2009, p. 6)16
De acordo com Venturini (2009), o mapeamento de controvérsias tem uma metodologia
precisa: serão utilizados cinco níveis de análise, ou “lentes” diferentes de observação,
que propiciarão uma multiplicação das perspectivas. Começaremos pela identificação
das declarações concorrentes, dos argumentos em disputa, e para a discussão da
literatura que os suporta. Da literatura vamos aos diversos atores envolvidos na
questão. Estes atores estão ligados de alguma forma, aliados ou em conflito –
constituem, portanto, redes complexas a serem reconstituídas. Das redes vamos à
cosmologia, e as suas diferentes versões. E por fim, vemos como as diferentes
cosmologias se confrontam em relações de poder: a cosmopolitica.
Para Venturini (2009), sua a compreensão requer “abandonar uma das ideias mais
veneráveis da cultura ocidental: a crença de que, por trás de todas as ideologias e
controvérsias, deve existir alguma realidade objetiva independentemente do que os
atores pensam ou dizem”.
De acordo com essa ideia (que pode ser rastreada até caverna de Platão), ambas
as ideologias e controvérsias derivam da imperfeição do intelecto humano.
Muitos preconceitos, os interesses, as ilusões, as preocupações em distorcer a
visão subjetiva do mundo, tanto que os homens são levados a acreditar que eles
vivem em diferentes cosmos e que devem lutar por eles. Se todos os homens
16
Segundo a documentação oficial do Macospol (Mapping Controversies on Science for Politics) “a
palavra “controvérsia” refere-se aqui a cada pedaço de ciência e tecnologia que ainda não está
estabilizado ou fechado em “caixas-pretas”; isto não significa que há uma disputa feroz ou que esta ainda
não foi politizada; nós as utilizamos como um termo geral para descrever incerteza compartilhada”
(tradução nossa).
28
pudessem ver a realidade como ela realmente é, eles, de forma pacífica e
racional, negociariam sua existência coletiva. Além de ser muito centrada no
homem (como ele se esquece que nem todos os atores sociais são seres
humanos), essa idéia tem uma grande desvantagem: ela muitas vezes acaba
justificando o absolutismo. Assim, como substrato na final da verdade é
postulada, os atores começam alegando ter um acesso privilegiado a ela.
Através da filosofia, religião, arte, ciência ou da tecnologia, a realidade pode
finalmente ser revelada e todos (gostem ou não) acabarão por concordar.
Infelizmente (ou melhor, felizmente), não importa o quão confiante esses
profetas possam parecer, nem todos finalmente concordam. Essa é uma das
lições cruciais da cartografia de controvérsia (VENTURINI, 2009, p. 18)
É neste movimento de acompanhar a transição de um estado de instabilidade em direção
à estabilidade (e vice-versa), de abertura de caixas-pretas em direção a um novo
fechamento, que se pode visualizar mais nitidamente, num plano da imanência, as
associações entre os atores. Segundo Venturini (2009), este estado de magma é um
momento especial para cartografar controvérsias. Isso vale tanto para a observação e
descrição etnográfica quanto para a atuação no próprio debate, pois, uma vez que há
maior abertura para mudanças nestes estados, há mais espaço para dialogar e interferir
nas tentativas de composição destes “mundos comuns”.
Pegue qualquer verdade filosófica, religiosa, artística, científica ou técnica e
você vai encontrar uma controvérsia. Às vezes, as disputas são temporariamente
silenciados pelo fato de que alguns cosmos prevaleceu sobre os outros, ou pelo
fato de que os atores descobriram um compromisso resistindo, mas nenhum
acordo, nenhuma convenção, nenhuma realidade coletiva já chegou sem
discussão. Isso não quer dizer que nunca poderíamos habitar um mundo de paz,
que nós nunca poderíamos alinhar nossas visões, que nunca poderia concordar
com a verdade. Um mundo comum é possível, mas não como "algo que venha a
reconhecer, como se tivesse sido sempre aqui (e que não tinha até agora
percebido isso). “Um mundo comum, se é que vai existir, é algo que teremos
que construir juntos, com unhas e dentes" (LATOUR, 1994c, p. 455)
(VENTURINI, p. 18-19, 2009, tradução nossa).
Antes de chegar neste “mundo comum”, portanto, é necessário fazer um esforço de
tradução entre estes mundos tidos como incomunicáveis a priori, abrindo novos canais
de comunicação. Como estamos lidando com “mundos” ou “ontologias” muito distintas,
este trabalho de tradução não é levado a cabo sem modificações que vislumbrem
alcançar certo nível de comunicação com o diferente. Portanto, nesta tradução fica
evidente a alteração de sentidos, interesses e posições dos agentes, o que, por outro lado,
também possibilita novas criações e rearranjos.
Seguindo as idéias de Latour, traduzir (ou transladar) neste caso significa
deslocar objetivos, interesses, dispositivos, seres humanos. Implica desvio de
rota, invenção de um elo que antes não existia e que de alguma maneira
29
modifica os elementos imbricados. As cadeias de tradução referem-se ao
trabalho pelo qual os atores modificam, deslocam e transladam os seus vários e
contraditórios interesses. Descrevendo diversas táticas de deslocamento de
interesses e objetivos, Latour (2000) esclarece que, além do significado
lingüístico de transposição de uma língua para outra, a noção de tradução tem
aqui um significado de transposição de um lugar para outro. Assim, transladar
interesses significa, ao mesmo tempo, oferecer novas interpretações desses
interesses e canalizar as pessoas para direções diferentes (LATOUR, 2000:6
apud CAVALCANTE, 2011, pp. 131-13).
Devemos lembrar, por fim, que estas cosmologias postas em diálogo não têm as
fronteiras bem demarcadas, pois, na prática, aparecem como híbridas. Em seguida, a
fim de abordar o debate de forma mais complexa junto com os conceitos, entraremos
numa descrição etnográfica deste movimento, buscando observar de perto e de dentro
(MAGNANI, 2002) as controvérsias tomarem curso, localizando inclusive a mediação
dos próprios autores, que estiveram presentes em alguns eventos científicos17,
comunidades online18, cursos19 e eventos de games e de desenvolvedores de jogos20.
3.4 A antropologia cibernética e a etnografia virtual
Pela própria característica do trabalho de campo, utilizamos aqui além da etnografia
“convencional”, a chamada etnografia virtual. Segundo Rifiotis:
A pesquisa no campo da “cibercultura” terá muito a ganhar levando em
consideração a teoria ator-rede. Podemos interrogar a própria prática etnográfica
sobre os limites de produzir narrativas de agências humanas e não-humanas,
sobre a prática de rastreamento de associações e como destacar agências, ou
identificar coletivos híbridos, mapear fluxos da ação e seus deslocamentos e
controvérsias (RIFIOTIS, 2012, p. 11).
Christine Hine (2000, p. 7) coloca um ponto importante na questão de onde localizar o
trabalho de campo na etnografia virtual: “the field” is an epistemological rather than an
17
XI Simpósio Brasileiro de Jogos Eletrônicos e Entretenimento Digital (SBGames), I Súmula de
Pesquisa em Games (SPGames), VIII Seminário Internacional Imagens da Cultura/Cultura das Imagens,
III Seminário História de Roteiristas: Múltiplas Telas, banca da Defesa de Doutorado de Ivelise Fortim.
18
Dependência de Internet, IDGA São Paulo, Curso Unity Puc 2013, Unity 3D Brasil, Indie Game
Developers, Boteco Gamer, SPjam.
19
Desenvolvimento de Games com Unity 3D, na PUC-SP.
20
2ª Maratona Paulista de Desenvolvimento de Games (SPJam), I Festival Games Brasil (MIS/IGDA), II
Festival Games For Change América Latina, SPIN (Encontro de Desenvolvedores de Jogos
Independentes de São Paulo), entre outros.
30
ontological category: it is a state of mind21. Knorr-Cetina, por sua vez, pontua a faceta
da virtualidade a respeito dos estudos de ciência no laboratório: “the laboratory is a
virtual space in most respects and in most respects coextensive with the experiment”
(1992, p. 125). Por meio de dados etnográficos coletados em campo presencial e
virtual, poderemos, então, fazer alguns apontamentos sobre quais seriam os principais
pontos desta controvérsia e levantar questões que envolvem o encontro destas diferentes
cosmologias a partir das perspectivas dos sujeitos envolvidos na discussão.
Já que estamos propondo uma releitura da oposição entre o “real” e o “virtual”, também
devemos abolir a ideia de que, para que a observação participante ocorra, haja uma
necessidade intrínseca de estar sempre fisicamente presente no local de observação.
(AMARAL; NATAL; VIANA, 2008). Neste sentido, serão realizadas diversas
incursões a campo, online e offline, a fim de interagir com os sujeitos da investigação,
por meio do método da observação etnográfica. Estas idas a campo terão o objetivo de
captar as associações entre os agentes em termos cosmológicos – procurando
compreender suas ideias a respeito dos videogames; e das práticas – materializadas nas
atividades que desenvolvem e nas suas relações com seus outros.
4. Procedimentos Metodológicos
4.1 A pesquisa de campo: técnicas e tecnologias
O ponto de unidade entre os diversos campos de coleta de dados é a própria
controvérsia. Propomos, assim, unir a perspectiva latouriana com o conceito de
etnografia multissituada de George Marcus (1998). Segundo ele, o pesquisador deve
seguir as cadeias, as trajetórias e os fios que fazem parte de um fenômeno específico e
tratar de fazer conjunções ou justaposições de situações, estabelecendo uma conexão ou
associação entre elas22 (1998, p. 105).
21
Tradução: “o campo” é uma categoria epistemológica ao invés de uma ontológica: é um estado de
espírito.
22
O objeto da pesquisa não é, assim, necessariamente, restrito a determinado grupo situado no interior de
um campo de observação. Muitas vezes, o objeto consiste em um determinado fenômeno social), e sua
construção ocorre ao se fazerem determinados movimentos (por meio de passos já previamente
planejados ou oportunistas), seguindo pessoas, histórias, objetos, ao longo de várias cadeias, superpondo
situações e verificando os pontos nos quais as intersecções, ressonâncias e associações ocorrem
(MARCUS, 1995, p. 106).
31
A realização da etnografia multissituada não se restringe, assim, apenas à
prática de campo; engloba também o fazer, a forma de relatar o que se ouviu. O
“seguir as linhas” refere-se ao trabalho do pesquisador, no momento de analisar
os dados. Trata-se de uma tarefa sua olhar para determinados aspectos,
estabelecendo associação entre locais e fatos e fazendo escolhas que permitam a
construção de determinada situação, na qual diferentes facetas de um mesmo
fenômeno dialoguem entre si e se sobreponham. É nessa prática de
recomposição de múltiplas perspectivas e situações, realizada pelo pesquisador,
que as configurações que moldam o fenômeno social vão ganhando sentido
(SCIRÉ, 2009, p. 98).
Em nosso trabalho, o primeiro passo da pesquisa foi fazer uma revisão bibliográfica da
produção científica, produzida no Brasil, mas principalmente no exterior (devido à
quantidade abundante), que trata sobre o tema do vício em jogos eletrônicos. Foram
reunidos cerca de 50 documentos científicos, entre artigos, livros e teses. A partir da
leitura desses trabalhos se pode esboçar um mapeamento da conexão entre os autores e
de suas perspectivas teóricas. Neste sentido, a pesquisa da literatura foi encarada como
parte do trabalho de campo, pois são actantes importantes da controvérsia.
A partir daí, se fez incursões em outros espaços, urbanos e virtuais, buscando jogadores
classificados como usuários intensivos pelos demais agentes em seus múltiplos
ambientes de jogo (casa, trabalho, escola, lan-houses) e sociabilidade (fóruns de
discussão, blogs, comentários de notícias) Seguindo a rede dos atores, buscou-se
investigar a agência na controvérsia de atores significativos como: pais, cônjuges ou
outros familiares e colegas de trabalho de pessoas que utilizam esses jogos e que
possam monitorar o seu uso; profissionais da indústria de games, a mídia, jornalistas,
leis e agentes do governo. Nesse sentido, buscou-se construir uma etnografia polifônica
(CLIFFORD, 1998), tentando reconhecer a fala de diferentes atores.
Foram rastreadas mais de 120 notícias (e comentários dos usuários) em sites como G1
(globo.com), TechTudo, Folha de São Paulo, UOL, Estado de São Paulo, Hypescience,
Toda Teen, Terra, Revista Galileu, Veja.com, FayerWayer Brasil, Via6, Mundo dos
Hackers, Corpo Saun, Geek, Garotas Geeks, Coletivo Cult, Fóruns: Terra - Outer Space,
Rock, Paper, Shotgun, GameStorming, GameAddict e Página 22; além de mais de
dezenas de vídeos (em sites como YouTube) contendo reportagens da TV Globo, TV O
Povo, TV Record, TV Ideologia, Rede Bandeirantes, Canal Futura, SBT, Via Legal;
canais como TEDx e Games For Change, redes sociais como Twitter, Orkut e
32
Facebook, além de produções independentes dos próprios internautas. Além disso, foi
catalogado mais de 20 vídeos circulados na internet sobre a controvérsia.
Foram entrevistadas, por meio de um roteiro de perguntas semiaberto, pessoas que
consideraram que fizeram (ou fazem), em algum momento de sua vida, um uso
intensivo de videogames: este foi o critério para a escolha dos estrevistados. Muitos
tomaram conhecimento e foram convidados para dar o seu depoimento para pesquisa
por meio da rede social Facebook e das comunidades de gamers; em que pessoas que
tenho contato direto indicaram outras pessoas que, segundo eles, faziam este uso
intensivo de games. Neste sentido, em muitos casos tivemos depoimentos de “exviciados”, contando retrospectivamente o seu histórico de relações com os gamers (ver
em Anexos). Também foram entrevistados alguns cientistas da área, como a psicóloga
Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira, especialista em jogo patológico. No
entanto, esta parte do trabalho de campo está um pouco atrasada. Conseguiu-se
completar apenas cinco entrevistas, mas já estão previamente acordadas pelo menos
mais 30 para os três próximos meses (ver a lista em Próximos passos da pesquisa), para
serem escolhidas, no total, cerca de 20 para integrarem o estudo final.
Também
estão
sendo
feitas
entrevistas
com
familiares
desses
jogadores,
desenvolvedores e cientistas. Desse modo, dividimos nossos dados de campo em quatro
categorias: 1) jogadores; 2) pais/conjuges/; desenvolvedores; 4) cientistas. Em muitos
casos, no entanto, esta divisória não é clara, pois, por exemplo, muitos dos
desenvolvedores também são jogadores, assim como alguns cientistas e familiares.
Foram estabelecidos contatos com os seguintes agentes institucionais: o Grupo de
Dependência de Internet e Jogos Eletrônicos do Ambulatório de Transtornos do
Impulso do Instituto de Psiquiatria, situado no Hospital das Clínicas (HC) em São
Paulo, o Núcleo de Estudos em Psicologia e Informática da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de
Jogos Eletrônicos (ABRAGAMES), a Associação Comercial, Industrial e Cultural de
Games (ACIGAMES), o projeto Jogo Justo, o coletivo Games For Change, o Simpósio
Brasileiro de Games e Entretenimento Digital (SBGames), o USPGameDev
(desenvolvedora de jogos gratuitos), International Game Developers Association - São
Paulo (IGDA-SP), a Maratona Paulista de Desenvolvedores de Games (SPJam), além de
33
estudantes e professores dos cursos de graduação e de pós-graduação em Design de
Jogos Digitais da PUC-SP. Nestes meses também se frequentou os circuitos dos
desenvolvedores independentes e dos pesquisadores na área de games em São Paulo. A
partir dos contatos iniciais foram seguidas as redes de atores que pareceram mais
frutíferas.
4.2 A inserção do pesquisador na controvérsia
O autor é integrante do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGASFFLCH/USP), onde está desenvolvendo esta dissertação como parte de seu Mestrado.
Dentro da universidade coordena um pequeno grupo de estudos sobre Antropologia
Cibernética, chamado CyberNAU, situado dentro do Laboratório do Núcleo de
Antropologia Urbana; e faz parte da rede Games for Change Latin America, que busca
incentivar e desenvolver jogos com propósitos (se assim se pode dizer) de
transformação social.
Seu interesse pela pesquisa surgiu ao tomar contato com a abordagem de alguns
profissionais da saúde que propunham um tratamento médico do problema, que, à
primeira vista, não aparentavam ter familiaridade com o objeto específico dos
videogames. Por meio da Antropologia, o pesquisador viu uma oportunidade de ajudar a
construir um diálogo entre estes mundos apartados: as ciências e os games. Frise-se
bem: o autor não tem qualquer ligação institucional com instituições ou pessoas
relacionadas a abordagem clínica, seu interesse na discussão é sobretudo acadêmico.
No entanto, pode se dizer que há componentes políticos e mesmo emocionais em seu
envolvimento com os games, já que sua história na área de jogos coincide com a
história de sua vida: praticamente desde o seu nascimento tem o hábito de jogar (embora
nem de perto com a mesma intensidade que os jogadores que foram abordados na
pesquisa) e inventar jogos e brincadeiras. É um desenvolvedor indie (independente) há
mais de 10 anos: criou cerca de 20 jogos, entre jogos de cartas, tabuleiros e de
computador, quase todos não publicados de forma oficial e sem interesse financeiro,
Hoje coordena um projeto de criação de um game com os índios Kaxinawá (Huni Kuin)
do Acre.
O pesquisador sofreu um processo de mudança ao longo da pesquisa. Inicialmente
demasiado crítico, o problema da chamada dependência afetou o seu modo de conceber
34
a questão ao atentar para casos muito delicados, conhecendo experiências de outros
pesquisadores e reconhecendo que a questão da dependência é complexa: há casos em
que este uso intenso traz uma série de sofrimentos pelo menos para algum lado da
relação. Este processo o auxiliou no refinamento desta investigação e, em verdade,
reforçou a necessidade inicial de construir uma abordagem interdisciplinar entre estes
mundos distintos, de buscar entender de perto o que se passa nos games. Portanto, este
afetamento não coloca em questão o conteúdo da investigação presente neste relatório,
já que este sofreu as devidas alterações e foi revisado continuamente.
Por fim, sua intervenção na controvérsia ainda é incipiente: teve uma entrevista
publicada numa revista (Página 22) e deu palestras em eventos, como no Festival
Games For Change Latin America, mas é necessário um maior estudo para chegar a
conclusões mais bem sustentadas e divulgar seus resultados.
5. Resultados Parciais
5.1 Breves apontamentos
A pesquisa atualmente encontra-se em fase intermediária, então não há como antecipar
conclusões. Há outros profissionais há muito mais tempo discutindo esta questão, com
mais experiência de campo e com evidências mais sólidas. Mas o diferencial desta
investigação é o seu modo de abordar a questão: o da Antropologia, em especial da
Antropologia da Ciência e da Tecnologia (área que tem afinidade com os sciences
studies e com os trabalhos de Bruno Latour), que permite colocar em foco a relação
entre homens e máquinas (e não os termos em si) e nos levará a problematizar muitos
dos conceitos geralmente tomados como dados (ou “caixas-pretas”, na terminologia de
Latour) em estudos dessa área.
Inicialmente percebe-se que há uma noção naturalista de dependência traz uma série de
pressupostos do que é o real e humano em oposição ao que é concebido por virtual e
maquínico. A perspectiva do ciborgue permite trabalhar com a hipótese de que o vício
seria um fenômeno que compreende relações não-controladas, não-domesticadas, em
que está em jogo captura da subjetividade humana. Há uma polarização em torno de
duas formas de abordar as relações humanas com os videogames. Na primeira, o objeto
videogame causaria um vício incontrolável ao homem, que perderia assim a sua
35
racionalidade e capacidade de falar por si mesmo, ou seja, seu estatuto enquanto sujeito.
Já a segunda, partiria dos benefícios que o homem – o sujeito por excelência em pleno
controle da relação – colheria a partir do uso dos jogos eletrônicos. Quem engloba
quem? Quem está no controle? O homem ou o videogame? Estas duas formas de
abordar o problema paralisariam a discussão, pois não colocam o foco nas relações.
A Ciência parece não ocupar um local central nesta discussão em todos os casos. Em
termos de intervenção clínica, as iniciativas ainda são insipientes. Em outros países,
como China, Coréia do Sul, Japão, e mesmo Estados Unidos, Alemanha, Holanda,
Finlândia, há centro de tratamentos, e nos Brasil, já há no Hospital das Clínicas (SP) um
trabalho neste sentido. Mas não é a forma predominante de tratar o assunto. Muitas
vezes as discórdias em torno do videogame são tratadas em âmbito doméstico, com o
pai proibindo o filho de usar o aparelho, ou não é resolvido. No entanto, as gerações
mais velhas, em geral, desconhecem os videogames e não têm os mesmos
conhecimentos que seus filhos sobre o assunto, o que gera muitos problemas, pois os
pais não têm guias para orientar o seu comportamento. Aí que entra o papel da ciência.
Por exemplo, uma resolução da Associação Americana de Psiquiatria23 afirma que duas
horas de atividades frente à tela, incluindo, televisão, computador, videogame, celular,
tablets, etc., seria o máximo tolerável, depois disso já seria considerado uso excessivo.
Esta é uma resolução que vai contra até a nossas realidades atuais formas de estudo e de
trabalho no Ocidente. Classificar mais de 40% da população como viciada não parece
ser a melhor solução para tratar do problema. Aliás, esta heterogeneidade na forma de
classificação da dependência marca as discussões no campo, pois não há formas de
diagnóstico e tratamentos estabilizadas que sejam consenso mesmo no campo científico.
No entanto, há alguns modelos mais utilizados, sobretudo por psicólogos e psiquiatras.
Por exemplo, o modelo cognitivo-comportamental trabalha com a ideia de Uso
Problemático de Internet (UPI), definindo o “corte” para o que seria definido como
dependência aquilo que traria consequências negativas para o indivíduo. Já o modelo
neuropsicológico, ao examinar o que é entendido por impulso primitivo associado à
23
Hoje há uma discussão forte em torno da inclusão das dependências digitais (internet, celular,
videogame) no novo documento da associação, o DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais), o que deve aumentar a medicalização na forma de intervenção sobre os usuários.
Isso eu não sou a favor, pois a questão é muito mais do que simplesmente médica. A proposta inclusive
foi rejeitada na primeira tentativa.
36
dependência, parte de uma construção sobre o que seria o comportamento cerebral e faz
uma associação direta à dependência química. Nesta perspectiva, a ativação
farmacológica dos sistemas de recompensa do cérebro seria o grande responsável pela
produção das potentes propriedades adictivas das drogas. Também há a teoria da
compensação, que trabalha com a ideia do uso de videogames como um meio de
compensar ou lidar com déficits de autoestima, identidade e relacionamentos.
Argumenta-se que foram encontrados níveis mais elevados de solidão entre os
considerados usuários patológicos. Em todas estas teorias há diversos pontos
controversos, os quais são explorados na sequencia do trabalho.
Em termos teóricos, há um esquema geral oriundo das drogas químicas que explicaria o
comportamento adicto, dividindo-o em seis fases: saliência (atividade se torna a mais
importante da vida da pessoa), mudança de humor, tolerância, sintomas de abstinência,
conflito, recaída e reinstalação. Esse esquema é utilizado para quase todo tipo de
dependência e foi levemente adaptado (com nenhuma modificação estrutural) para o
caso da Internet e dos videogames, por pesquisadores como Mark Griffiths.
No entanto, em tese, esta forma de entender relações muito intensas poderia ser aplicada
a quase todo o tipo de relações, desde relacionamentos amorosos, trabalho, até leitura ou
televisão. Mas isto, em geral, não acontece, e os videogames aparecem como um alvo
privilegiado para críticas. Este modelo conforma uma gramática estruturante para
explicar todo tipo de dependência, mas que, se adentrarmos em seus pormenores,
veremos que não é neutra, mas recheada de valores e símbolos. Aí entramos no
território específico da Antropologia.
Pois, afinal, o que videogames e o crack teriam em comum – passando pelos vícios
associados como os jogos de azar, pornografia, internet; que justificaria a utilização dos
mesmos métodos de diagnóstico e de tratamento? Isto não é óbvio. Investigar como se
dá esta ligação é um caminho que a pesquisa deve percorrer. Por exemplo, em alguns
casos, os videogames são aproximados dos jogos de azar por partilhar as mesmas
características lúdicas, de envolvimento com o caráter específico de jogo. Em outros
(por exemplo, por Kimberly Young) são encarados como um subcaso do vício em
internet, enfatizando, desta vez, o caráter virtual destes tipos de formas de relação.
37
O vício em videogame e em internet são diferentes em grande medida. Os videogames
possuem lógicas específicas que envolvem sistemas de recompensas dos jogos,
incluindo um balanceamento preciso entre o nível de desafio e a curva de aprendizagem
do jogador, para que atenção do jogador seja atraída por um tempo prolongado 24. Por
outro lado, a própria internet também é muito diversa. O quê a pessoa faz
especificamente no computador deveria ser investigado além da tecnologia utilizada. O
computador é, antes de tudo, um mediador. Os excessos com certeza são resultado das
relações e não da tecnologia em si.
Insistimos em tocar em controvérsias que dão sustentação à ideia do vício, como: a
comunicação face-a-face como mais “humana” que a comunicação digital; o mundo dos
jogos como mundo falso em oposição ao mundo verdadeiro das relações sociais, o que
gera uma visão “escapista” da realidade; o videogame e a internet como local da
anonimidade e da não-seriedade; o estudo e o trabalho como únicos usos legítimos do
computador versus os usos lúdicos, tomados como improdutivos e “perdedores de
tempo”. E não é porque os games possam ter usos benéficos que não existam usos
nocivos. Uma perspectiva não anula a outra. Os videogames, não são ontologicamente
nem bons nem maus. Mais uma vez, o foco está na relação, não na tecnologia em si.
A cobertura jornalística deste assunto é complicada. Não só na área de adicção, mas um
problema mais geral sobre a cobertura jornalística de pesquisas científicas. Quase
nenhuma chega a problematizar a fundo as noções de vício ou de dependência e muitas
vezes repetem jargões, propagando visões preconceituosas sobre o tema, tais como o
estereótipo do gamer como uma figura socialmente isolada e às vezes perigosa. Hoje, as
notícias divulgadas na Internet abrem um espaço para comentários do público, o que se
revelou um espaço muito frutífero para pesquisa. Ali os jogadores muitas vezes
reprovam a opinião dos especialistas sobre o tema e propiciam discussões
interessantíssimas entre eles mesmos, entram em debate com pessoas que se preocupam
com a situação de outro jogador, tais como pais, cônjuges ou colegas de pessoas
próximas das ditas “viciadas”, conformando uma verdadeira arena de disputa de
argumentos, conceitos e valores – algo próximo daquilo o que Latour chamou de
24
O MMORPG é o tipo de game que possui os casos mais graves de jogadores classificados como
“viciados”, pois, entre outras explicações, as relações neste tipo de jogo são mais duradouras que em
outros.
38
parlamento das coisas, que, em oposição ao parlamento dos homens, todos, homens e
coisas, podem dar a sua contribuição sobre a controvérsia sem esperar que cientistas
sejam seus porta-vozes.
É positivo que existam vozes dissonantes, pois enriquecem o debate. Podemos também
trabalhar com uma visão alargada do que entendemos por tecnologia. Se lembrarmos
das obras clássicas de Mauss (1934), podemos entender que não só computadores e
videogames, mas o nosso corpo e nossos olhos são tecnologias de apreensão e
intervenção no mundo. Evitar a tecnologia, portanto, parece ser um lema que reduz por
demais o problema.
Nossa tentativa, enfim, é tentar desfazer a armadilha do dilema de se o videogame é
droga ou não é droga, porque do ponto de vista das ciências sociais é um falso dilema
que não vai nos ajudar a caminhar na produção de conhecimento a respeito de tanto do
consumo educacional como lúdico, como laboral. O que a gente deve olhar é: Que tipo
de agência esses jogos provocam na interação com as experiências e agências
individuais, que são muito peculiares, e que podem mudar facilmente ao longo de uma
trajetória individual, da trajetória de um grupo ou de algo ainda maior.
Portanto, não está se questionando aqui que o tratamento terapêutico possa ajudar uma
pessoa, mas sim o seu discurso oficial, que cria uma ideia sobre o que seria a vida real
oposto ao virtual e ao lúdico. Desse modo, aqui está se colocando em questão não as
práticas científicas em si, que são híbridas, mas, sobretudo, o seu discurso oficial
purificado. Neste sentido, tampouco devemos separar estes dois elementos, pois o
discurso também é uma prática, já que tem efeitos práticos: fazem-fazer.
5.2 Andamento da pesquisa
Até agora foi realizada uma extensa pesquisa bibliográfica em campos que extrapolam a
Antropologia, em virtude da natureza interdisciplinar da discussão. Foi feito também
uma documentação de notícias jornalísticas em língua portuguesa sobre o assunto, que
estão sendo reunidas em um website (http://gamedependencia.wordpress.com) para
apresentação dos resultados da pesquisa, seguindo o método do Mapeamento de
Controvérsias. Estas são novas formas de apresentar os resultados da pesquisa. Na parte
de documentação há links para mais de 110 notícias, além de dezenas de vídeos e
39
artigos científicos em torno do assunto que foram utilizados na pesquisa. Além disso,
feita uma pesquisa de campo (em fase intermediária), com uma imersão dupla no
universo dos games e no universo das ciências psi. Neste período, foi feito todo um
trabalho de inserção no campo, reconhecimento dos atores mais relevantes, construção
de contatos com desenvolvedores, cientistas, profissionais da indústria e muitos
jogadores. A pesquisa está prevista para terminar no tempo estipulado. Os pontos gerais
da controvérsia já foram mapeados e as atividades de pesquisa estão bem
encaminhadadas para o prosseguimento.
5.3 Próximos passos da pesquisa
O próximo passo da pesquisa é o exame de qualificação, que deve acontecer no dia 27
de Agosto. Para a banca de qualificação estão convidados os professores Theophilos
Rifiotis (UFSC/GrupCiber) e José Guilherme Magnani (FFLCH-USP/LabNAU), além
do orientador Stelio Marras (IEB-USP/CEstA). Como suplentes estão convidados os
professores Gilson Schwartz (ECA-USP/Cidade do Conhecimento) e Renato Sztutman
(FFLCH-USP/CEstA).
Depois da avaliação da banca, iremos corrigir as questões sobre a pesquisa e reiniciar a
fase de coleta de dados de campo, sobretudo colhendo também entrevistas (e as
transcrevendo) nos meses de Setembro até Outubro. A ideia é conseguir 20 entrevistas
gravadas (contando que já temos finalizadas quatro), distribuídas entre as diferentes
categorias de atores: gamers, parentes/cônjuges, desenvolvedores e cientistas.
Já estão acordadas entrevistas com os gamers: Juliana Maransaldi, Ricardo Paiva, Breno
Amorim, Rafael Silva Savietto, Bruno Moreira Rissi, Clayton Casari, Iago Haibara (e
sua mãe, Mônica Haibara), Lucas Cruz Costa, Lucas Pedron Baptista (e sua noiva Carla
Sion), Lucas Lopes, Bruno Desperati Mateos, Rodrigo Chiquetto, Mateus Pinho (e seu
pai Severino Pinho) Yuri Tambucci, Rafael Moreira, Luiz Sá, Walmor Amorim, Pedro
Schwartz, Marcus de Lima, Pedro Alvares, Gabriel Juliano Rodrigues e os filhos de
Denise Fajardo e Luis Donisete Grupioni.
Também estão planejadas entrevistas com os desenvolvedores de jogos: Sabrina
Carmona, Emanuel Tavares, Alysson Silveira, Johnny William, Jay Santos (Gamer e
Field Engineer na Unity); e com os cientistas: Maria Paula Magalhães Tavares de
40
Oliveira (Psicóloga), Ivelise Fortim (PUC/SP), Cristiano Nabuco de Abreu (Hospital
das Clínicas/SP), Gilson Schwartz (Games For Change Latin America), Marcelo
Mercante (NEIP).
A partir do término das entrevistas entraremos na fase de análise dos dados de campo
nos meses de Novembro e Fevereiro de 2014. Faremos um apanhado das principais
questões em controvérsia e a partir das regularidades encontradas esboçaremos o
mapeamento da dependência de jogos eletrônicos em diferentes níveis (enunciados,
atores, redes, cosmologias e cosmopolíticas), vide Venturini (2009). Ainda restam
poucas leituras a serem feitas neste período.
No mês de Março de 2014 em diante, as atenções estarão focadas na redação final da
dissertação e na revisão do conteúdo da pesquisa. Neste período regidiremos um
capítulo, o terceiro capítulo da dissertação, acerca do aspecto virtual na dependência de
videogame, e o capítulo final, acerca da experiência do jogador, levando em conta sua
relação com os jogos, com as famílias, e com os desenvolvedores de games. Nos meses
de Maio em diante iremos nos dedicar na redação do Relatório Final para a FAPESP e o
depósito da dissertação no Departamento de Antropologia.
5.4 Cronograma atualizado
Período
Atividade
SETNOVJANMARMAIJULOUT/2013 DEZ/2014 FEV/2014 ABR/2014 JUN/2014 AGO/2014
Exame de
Qualificação
Pesquisa de Campo
e Entrevistas
Análise dos Dados
de Campo
Escrita
do Capítulo 4
Escrita do Capítulo
5 e Conclusão
Organização formal
da Dissertação
41
Capítulo 1 – Por dentro da rede: o conhecimento
médico
1. A incerteza sobre a determinação do vício
Neste capítulo iremos nos debruçar sobre algumas formas científicas de entendimento
da dependência de videogames. A maioria das teorias aqui tratadas é oriunda das áreas
da Psiquiatria (subárea da Medicina) e da Psicologia, sendo estas muito diversas entre
si, em especial a Psicologia, que conta com diversas linhas de trabalho. Nosso esforço
aqui será entender estas controvérsias científicas, primeiro entre elas mesmas, e depois
em relação a visão dos próprios jogadores. Para tanto, de início apresentaremos as
teorias na forma que são entendidas por alguns cientistas que as adotam. A seguir,
iremos colocá-las em relação a partir de alguns questionamentos suscitados pelo
cruzamento de perspectivas e pelo trabalho etnográfico com os jogadores.
Nossa principal questão aqui é: quem determina se o jogador é viciado (ou não) nos
jogos eletrônicos? A sua própria enunciação? Um teste científico? A fala daqueles que o
cercam, como os pais, cônjuges e demais familiares? Em muitos casos, terapeutas
tratam de jogadores que não identificariam a sua própria doença e teimariam em não
querer largar o jogo. Ao mesmo tempo, especialistas afirmam que muitos daqueles que
se dizem viciados, na verdade, não apresentam sintomas de dependência; enquanto
outros que não se acusariam viciados, apresentariam tais sintomas. É nessa encruzilhada
entre médicos e pacientes, jogadores e expectadores, autonomia e heteronomia entre
saberes e determinações que entrarão em debate estes modos de classificação.
Não raro, há consenso sobre se uma pessoa está com problemas em sua relação com os
videogames. Ela mesma acredita que está viciada e quer parar de jogar, as pessoas com
quem convive partilham da mesma opinião, e os especialistas confirmam, por meio de
suas metodologias, que a pessoa vive uma relação de dependência negativa com os
jogos eletrônicos. Já em outros casos, há jogadores que não se intitulam viciados,
ninguém ao seu redor reclama do seu modo de utilização dos jogos eletrônicos e os
cientistas não avaliam a relação como adictiva. No entanto, estes não são os casos mais
interessantes, mas sim aqueles que, ao contrário, são controversos. Aí aparece a disputa
de argumentos, a construção das associações, em suma, a feitura, a construção da
própria ideia do que é ser um viciado em videogames.
42
O nosso principal objetivo aqui é fazer uma reflexão sobre as diversas classificações dos
modos científicos de categorização da dependência e de como elas se apoiam e se
afastam entre si. Não nos interessa simplesmente mapear a disputa pelas determinações,
nem somente apresentar os critérios geralmente usados para classificar a dependência,
mas entender, sobretudo, o que a classificação científica de alguém como dependente
faz-fazer (LATOUR, 2000). Nesse sentido, as classificações são entendidas também
como actantes (LATOUR, 2000), pois participam e modificam as redes de relações.
Este tipo de categorização pode ser utilizado como instrumento político por uma
diversidade de atores para os fins mais variados possíveis. O caso da IBM nos ajuda a
pôr a questão:
A IBM foi processada em 5 milhões de dólares por demissão injusta; um exfuncionário que usava salas de bate-papo durante as horas de trabalho está
processando a firma por tê-lo demitido em vez de lhe proporcionar reabilitação,
invocando a Americans with Disabilities Act. Podem se seguir mais processos
por demissão injusta em companhias menores. O problema passa a ser o de que
a empresa forneceu a assim chamada droga digital e pode ser responsabilizada
por oferecer tratamento e programas de prevenção para a dependência de
internet como um meio de diminuir suas ramificações legais (HOLAHAN,
2006).
As teorias aqui analisadas foram extraídas do livro “Dependência de Internet: Manual e
Guia de Avaliação e Tratamento”, única publicação em português sobre o assunto.
Neste sentido, a leitura e a sua articulação de cientistas e jogadores se constitui como
parte de nosso trabalho de campo. No entanto, esta limitação traz um problema de
antemão: a maioria dos autores aqui trabalhados, como Kimberly Young, encara a
dependência de videogames como um subcaso específico da dependência de internet,
sendo esta considerada mais abrangente.
Este modo de classificação se apresenta como a forma mais destacada e influente de
tratar o problema dentro do campo médico. Entretanto, esta não é a única forma
possível. Pensamos que diferentes agentes em relação provocam interações específicas,
e, portanto, o mero transporte de uma teoria (no caso, de dependência de Internet) para
outro contexto (videogames) seria uma demasiada simplificação do problema, oposto ao
trabalho que estamos propondo de investigar a complexidade da controvérsia. Neste
sentido, pretendemos apresentar como se constrói a sobreposição e a articulação entre as
teorias de dependência de drogas químicas, jogos de azar, internet e videogames.
43
2. Modos de classificação do jogador de videogames como
dependente
A questão sobre a dependência de videogames é tomada tal como uma controvérsia em
sentido estrito porque não há consenso em como diagnosticar, tratar e mesmo sobre a
própria existência do dito vício. Muitos cientistas (GRIFFITHS; DAVIES, 2005;
YOUNG, 2001) fazem questão de insistir que o vício em videogames (e em internet)
existe de forma universal e que é uma novidade a qual as pessoas ainda não foram
conscientizadas. Como afirma Young (2011, p. 51): “a dependência de internet parece
ser um problema crescente, que independe de cultura, etnia ou gênero”. Smahel e Blinka
também demonstram especial apreensão no caso dos MMORPG’s (jogos multijogador
em massa de representação de papéis):
É praticamente certo, contudo, que a dependência de jogos online tem
aumentado nos últimos anos. Acreditamos que a realidade virtual como uma
forma de escape do mundo real será cada vez mais comum – e os MMORPGs
não serão exceção. Se a fronteira entre a realidade concreta e a realidade virtual
continuar se tornando cada vez mais indistinta, seja pela melhora gráfica dos
jogos, qualidade dos monitores, seja pelo desenvolvimento de novas
ferramentas tecnológicas como monitores em óculos, luvas com sensores, e
assim por diante, podemos esperar que esse fenômeno se torne ainda mais
significativo e profundo. Será cada vez mais difícil para o jogador distinguir o
mundo real do virtual, e sua imersão no jogo será ainda maior. A importância de
se examinar os MMORPGs no contexto da dependência aumentará muito
(BLINKA; SMAHEL, 2011, p. 115).
Muito do conhecimento científico que circula na área de tratamento de drogas nas
disciplinas de Psiquiatria e em certas vertentes da Psicologia, todas elas ligadas ao
campo da saúde, influenciam decisivamente o modo de conceber a relação intensa de
jogadores com os videogames. Mas isto não é nada óbvio. Como se dá esta ligação? O
que videogames e o crack teriam em comum – passando pelos vícios associados como
os jogos de azar, pornografia, internet; que justificaria a utilização dos mesmos métodos
de diagnóstico e de tratamento? Apresento um trecho sobre o vício em MMORPGs, dos
mesmos autores acima citados, que abordam desta maneira o problema:
A dependência dos MMORPGs é específica devido à presença virtual do
jogador em uma comunidade, e também devido ao relacionamento com o
personagem virtual, mas aparentemente não é especial no que se refere aos
princípios e procedimentos terapêuticos. A nossa recomendação aos terapeutas
de possíveis dependentes dos MMORPGs é que usem os procedimentos
comprovados que costumam usar para outros tipos de dependência ou problema
44
e, possivelmente, combiná-los com as opções fornecidas pelo mundo virtual
(BLINKA; SMAHEL, 2011).
Quais seriam, então, estes conhecimentos científicos comprovados que acabam por
tomar o status de porta-voz dos próprios jogadores? Somente poderemos ter a resposta a
esta questão se considerarmos os variados atores a partir de sua articulação em redes
complexas – redes, estas, de saber e de poder. Entendendo as alianças e as caixaspretas25 (LATOUR, 2000) que sustentam verdades bem estabilizadas entre os atores,
visualizaremos a influência de atores poderosos como a Associação Americana de
Psiquiatria26 e seu documento, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM)27, que leva a resoluções tal qual: “De todas as maneiras de avaliar a
dependência de internet, os critérios baseados no DSM28 parecem ser a maneira mais
aceita de definir o transtorno”.
The DSM-IV (APA 1994) aims to be ‘practical and useful for clinicians by
striving for brevity of criteria sets, clarity of language and explicit statements of
constructs embodied in the diagnostic criteria’ (1994, xv). It is basically a
classificatory system which aims to see, to isolate features, to recognize those
that are identical and those that are different, to regroup them, to classify them
25
Para Latour (1994), uma caixa-preta é qualquer actante tão firmemente estabelecido que nós podemos
desconsiderar seu interior. As propriedades internas de uma caixa-preta não contam na medida em que
estivermos preocupados somente com seu input e output. Mas as caixas-pretas não são apenas aparatos,
senão qualquer espécie de ator tão consolidado que se torna quase que inquestionável: por exemplo, uma
teoria científica ou uma certa “verdade social”.
26
A American Psychiatric Association — ou Associação Americana de Psiquiatria — é a principal
organização profissional de psiquiatras e estudantes de psiquiatria nos Estados Unidos, e a mais influente
no mundo. Seus cerca de 38 mil membros são, em sua maioria, estadunidenses, mas muitos são de vários
lugares do mundo. A associação tem várias publicações e panfletos, bem como o Manual Diagnóstico e
Estatístico de Desordens Mentais, ou DSM. O DSM descreve as condições psiquiátricas e é usado
mundialmente como referência para diagnóstico dos transtornos mentais.
27
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders – DSM) é um manual para profissionais da área da saúde mental que lista diferentes
categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los, de acordo com a Associação Americana
de Psiquiatria. É usado ao redor do mundo por clínicos e pesquisadores bem como por companhias de
seguro, indústria farmacêutica e parlamentos políticos. Existem quatro revisões para o DSM desde sua
primeira publicação em 1952. A maior revisão foi a DSM-IV, publicada em 1994. O DSM-V está
atualmente em discussão, planejamento e preparação, para uma nova publicação em 2013. Apesar de
existirem outros guias como o ICD, o DSM continua sendo a maior referência da atualidade em termos de
pesquisa em saúde mental.
28
Se aprofundarmos na rede que constitui o DSM veremos que o seu contexto político é um tópico
controverso, incluindo seu uso por indústrias farmacêuticas e seguradoras. O potencial conflito de
interesses tem surgido porque aproximadamente 50% dos autores que previamente selecionaram e
definiram as desordens psiquiátricas do DSM tiveram ou têm relacionamentos com indústrias
farmacêuticas. Alguns argumentam que a expansão dos transtornos no DSM foi influenciada por motivos
de lucro e representa um aumento da medicalização dos seres humanos, enquanto outros argumentam que
problemas de saúde mental são subestimados ou sub-tratados (KIRK, 2005).
45
by species or families (Foucault, 1977). As a classificatory system its purpose
could be regarded as the translation of particular observed behaviours into
symptoms. These symptoms are attributed with considerable significance –
anaemic, diagnostic and prognostic (Foucault, 1973) (CROWE, 2000, pp. 6970).
Desse modo, apesar da prevalência de atores como o DSM, os próprios cientistas das
vertentes aqui debatidas afirmam que as pesquisas sobre a dependência de videogames
tem sido problemáticas. Muitos estudos carecem da solidez empírica do planejamento
experimental, baseando-se em dados de levantamento e informações de populações
autosselecionadas, segundo estes próprios pesquisadores (YOUNG, 2011). Algumas
pesquisas também não usam adequadamente grupos de controle, e em alguns casos
tiram conclusões baseadas em um número muito pequeno de estudos de caso e
questionários.
A disputa entre as definições do próprio jogador e as definições por meio de outros
agentes (ex: testes científicos) estaria posta a partir de um suposto desconhecimento do
próprio jogador sobre a sua situação. A pergunta que os cientistas aqui referidos fazem é
a seguinte: em que extensão alguém que se classifica como dependente realmente
apresenta um comportamento de dependência? O que significa, então, este
comportamento de dependência? A princípio isso não seria algo que poderia ser
definido pelo usuário ele próprio, mas por um conceito tido como científico, pertencente
ao campo das ciências, articulado em rede entre cientistas e seus aliados (LATOUR,
2000). Vamos, a seguir, colocar algumas questões neste sentido.
Em um estudo quantitativo (SMAHEL; BLINKA; LEDABYL, 2007), encontrou-se
uma concordância entre a autodefinição como dependente e o que estes autores
denominam como comportamento de dependência em aproximadamente 21% dos
jogadores; portanto, segundo os cientistas, essa é a proporção de jogadores que
apresentam sintomas de dependência e se consideram dependentes. Quase um quarto
dos jogadores diz ser dependente, mas não apresentaria sintomas de dependência. Isso
ocorre, segundo os cientistas, provavelmente devido ao uso popular exagerado da
palavra dependência – ou seja, caindo no senso comum, um termo tido como “seu” não
estaria mais sobre seu total controle, tendo que disputá-lo com os demais atores.
Muitos jogadores baseiam seu julgamento sobre ser ou não ser dependente unicamente
na quantidade de tempo passada jogando. De um ponto de vista terapêutico, 6% dos
46
jogadores não se considerariam dependentes, mas apresentariam sintomas de
dependência. Esse grupo não reconheceria seu comportamento dependente, e isso
deveria ser trabalhado terapeuticamente. Os 49% restantes dos jogadores não se
consideram dependentes e não apresentariam sintomas de dependência. Em outro estudo
(BLINKA; SMAHEL, 2011, p. 113), um total de 27% dos jogadores de MMORPG
apresentaria todos os seis fatores de dependência (descritos mais adiante) – uma parcela
relativamente elevada, considerando-se o fato de que, por exemplo, o World of Warcraft
é jogado por mais de 11 milhões de pessoas.
Tais pesquisadores argumentam que uma vez que os jogadores passam muito tempo no
jogo, é comum que, só por este critério, se classifiquem como dependentes. Outra
pesquisa aponta que cerca da metade dos jogadores acredita ser dependente do jogo
(YEE, 2006). Para explicar seus resultados, ela afirma que isso parece ser apenas uma
tendência atual causada pelo emprego excessivo da palavra dependência, pois uma
grande parcela desses jogadores não apresentariam sintomas de dependência do jogo.
Por fim, outro estudo afirma que aproximadamente um quarto dos jogadores de
MMORPG apresenta sintomas de dependência (SMAHEL, 2008; SMAHEL et al.,
2008).
3. Dependência: conceitos e classificações
3.1 Um corpo partido: a dependência física e a dependência psicológica
Primeiramente, propomos definir os conceitos de dependência com os quais estes
cientistas estão trabalhando. As dependências são definidas por eles como uma
compulsão habitual a realizar certas atividades ou utilizar alguma substância, apesar das
consequências tidas como devastadoras sobre o bem-estar físico, social, espiritual,
mental e financeiro do indivíduo. Em vez de lidar com os obstáculos da vida,
administrar o estresse do cotidiano e/ou enfrentar traumas passados ou presentes, o
dependente responderia de forma desadaptativa, recorrendo a um mecanismo de
pseudomanejo.Segundo eles, a dependência tipicamente apresenta características
psicológicas e físicas. A dependência física ocorreria quando o corpo da pessoa se
tornaria dependente de certa substância e experienciaria sintomas de abstinência quando
o consumo fosse descontinuado, como acontece com drogas ou álcool. Embora a
substância adictiva inicialmente induza ao prazer, seu consumo continuado seria mais
47
instigado pela necessidade de eliminar a ansiedade provocada por sua ausência, o que
levaria a pessoa ao comportamento compulsivo.
A dependência psicológica se tornaria evidente quando a pessoa experiencia sintomas
de abstinência como depressão, fissura, insônia e irritabilidade. Tanto a dependência
comportamental quanto a dependência de substâncias geralmente originariam a
dependência psicológica. Caplan (2002) considerou as dependências tecnológicas como
um subgrupo das dependências comportamentais; já que a dependência de internet e de
videogames apresentariam os componentes centrais de dependência (isto é, saliência,
modificação do humor, tolerância, abstinência, conflito e recaída).
3.2 Componentes centrais da dependência de videogames
I.
Saliência: quando a atividade passa a ser a coisa mais importante na vida da
pessoa, podendo ser dividida em cognitiva (quando a pessoa pensa frequentemente
sobre a atividade) e comportamental (por exemplo, quando ela negligencia
necessidades básicas como sono, alimentação ou higiene para realizar a atividade).
II.
Mudança de humor: experiências subjetivas influenciadas pela atividade
executada.
III.
Tolerância: o processo de precisar de doses continuamente maiores da atividade
para obter as sensações iniciais. O jogador, portanto, precisa jogar sempre mais e
mais.
IV.
Sintomas de abstinência: sentimentos e sensações negativas acompanhando o
término da atividade ou a impossibilidade de realizar a atividade requerida.
V.
Conflito: conflito interpessoal (normalmente com as pessoas do entorno mais
próximo, família, parceiros) ou intrapessoal provocado pela atividade executada. É
frequentemente acompanhado por uma deterioração dos resultados acadêmicos ou
profissionais, abandono de antigos passatempos, e assim por diante.
VI.
Recaída e reinstalação: a tendência a retornar ao comportamento de
dependência mesmo após períodos de relativo controle (SMAHEL; BLINKA, 2011,
pp. 104-105).
48
Tabela 1.1 – Questionário sobre o Comportamento de Dependência do Jogo (id, p.112)
Fatores
Perguntas
Saliência
Você já negligenciou suas necessidades (como comer ou dormir) para ficar
conectado à internet jogando?
Você às vezes imagina que está no jogo quando não está?
Modificação
Você já se sentiu irrequieto ou irritado quando não pode estar no jogo?
do humor
Você se sente mais feliz e mais contente quando finalmente consegue jogar?
Tolerância
Você sente que está passando cada vez mais tempo no jogo online?
Você se pega jogando sem estar realmente interessado?
Conflitos
Você às vezes briga com as pessoas mais próximas (família, amigos,
parceira/o) por causa do tempo que passa jogando?
Sua família, amigos, trabalho e/ou passatempos sofrem por causa do tempo
que você passa jogando na internet?
Restrições
tempo
de Você já fracassou ao tentar limitar o tempo que passa jogando?
Acontece de você ficar no jogo mais tempo do que planejara originalmente?
Dessa perspectiva, os dependentes de videogame apresentam saliência da atividade,
experienciando frequentemente fissura (desejo incontrolável de usar) e preocupação
com o videogame quando desconectados. Também se sugere que usar os videogames
seria uma maneira de se escapar de sentimentos perturbadores, desenvolvendo uma
tolerância ao videogame para chegar à satisfação, experienciando abstinência quando se
reduz o uso, passando assim a ter mais conflitos com as pessoas por causa dessa
atividade e voltando a recair, ou seja, todos os sinais clássicos de dependência. Esse
modelo tem sido replicado a comportamentos como sexo, consumo de alimentos e jogos
de azar (PEELE, 1985; VAILLANT, 1995) e seria útil para examinar o uso patológico
(ou dependente) de videogames.
3.3 Construindo dependências: formas de composição
Como adiantado na seção anterior, temos quatro possibilidades de considerar a
dependência de games em relação a outras dependências: 1) como um subgrupo da
dependência de internet, 2) como um tipo específico de jogo patológico, 3) como uma
dependência tecnológica, e por fim, 4) como uma nova dependência, que junta aspectos
de todas as anteriores. No primeiro caso, como já adiantado, o videogame é considerado
como um subcaso da dependência de internet, sendo esta mais geral. Young, por
exemplo, havia classificado a compulsão a jogos eletrônicos como “Compulsões do
49
computador”. Aqui, portanto, não se considera a especificidade da atividade do jogo,
mas o uso do objeto: o computador (ou o console). Assim, o videogame é posto em
paralelo a supostos vícios como sexo virtual, compulsão por comunicação online,
utilização de redes sociais, entre outras atividades (cuja consideração enquanto vício
também é controversa). Aqui não importa qual atividade se está desempenhando no
computador, mas sim o seu uso efetivo, a sua dimensão de “virtualidade”, além do
efeito físico do contato propiciado pela proximidade a um objeto eletroeletrônico, a
entre outras motivações.
No segundo caso, o videogame é considerado um subcaso da dependência de jogos de
azar. É preciso lembrar que esta foi o primeiro tipo de dependência inventada
(WAGNER, 1981) após a dependência de drogas “químicas”. Neste sentido, o vício no
jogo de azar foi considerado a primeira dependência comportamental. Aqui se enfatiza
o caráter lúdico da relação com os jogos, como a compulsão por ganhar, vencer
desafios, obter recompensas e alcançar o êxtase. O jogo de azar tradicional, no entanto,
envolve a utilização de moeda em espécie, que funciona como o elemento de media as
apostas. No caso do vício em videogame, exceto em exemplos específicos como online
poker, que unem os dois aspectos, não há presente o componente financeiro das apostas:
são outras moedas que estão em jogo.
No terceiro caso, o vício em videogame é considerado uma dependência diferente da
dependência de Internet. Por vezes, é agrupado em uma categoria chamada
dependências tecnológicas, que inclui também o vício em televisão, celulares, tablets e
outros gadgets. Aqui, por um lado, se considera o aspecto virtual do uso dos games
(além de outras características próprias ao que se considera como “tecnológico” no
senso comum, que envolve a criação de novas necessidades de consumo ou a apreensão
gerada pela popularização de novas mídias), mas por outro, não considera seu aspecto
lúdico, presente, por exemplo, nos jogos de azar.
Fortim (2013, p. 64-65), por sua vez, afirma que como os jogos mudaram desde a
classificação de Young, ela preferiu agrupar na categoria Jogos Eletrônicos, todos os jogos
que exigem como mediação a internet, o que inclui o jogo patológico, classificado por
Young em outro item. Proponho, portanto, encontrar um ponto comum entre estas
abordagens: tomar o videogame como um objeto único e distinto dos demais, que une
aspectos tanto do lúdico, como do virtual (como na figura abaixo, que sugere posicionar
50
a dependência de videogames como uma intersecção entre as dependências de Internet e
jogos de azar.
Figura 1.1 – Intersecção entre as dependências de jogo patológico e de internet (do autor)
A seguir, apresentamos as teorias explicativas mais utilizadas por um grupo específico
de terapeutas psiquiátricos e psicólogos que trabalham com estas noções de dependência
aplicada ao caso da internet e dos videogames: o modelo cognitivo comportamental, o
modelo neuropsicológico e a teoria da compensação.
4. Apresentando teorias: a gramática das ciências
4.1 Modelo cognitivo-comportamental
Davis (2001) introduziu a teoria cognitivo-comportamental do uso patológico de
internet (UPI) que explica a etiologia, o desenvolvimento e as consequências associadas
ao UPI. Davis caracteriza o UPI como algo que vai além de uma dependência
comportamental: ele conceitualiza o uso patológico de internet como um padrão distinto
de cognições e comportamentos relacionados à internet que resultam em consequências
negativas para a vida. Ele propõe duas formas distintas de UPI: específica e
generalizada. O UPI específico envolveria uso exagerado ou abuso de funções de
conteúdo específico de internet (por exemplo, jogos de azar). Além disso, Davis
argumenta que esses transtornos comportamentais ligados a estímulos específicos
provavelmente se manifestariam de alguma maneira alternativa se o indivíduo não
tivesse a possibilidade de acessar a internet. O UPI generalizado é conceitualizado como
51
um uso exagerado multidimensional da própria internet, que resulta em consequências
pessoais e profissionais negativas. Os sintomas de UPI generalizado incluem cognições
e comportamentos desadaptativos relacionados ao uso de internet que não estão ligados
a nenhum conteúdo específico. O UPI generalizado ocorre quando a pessoa passa a ter
problemas devido ao contexto exclusivo de comunicação virtual. Em outras palavras, a
pessoa seria levada à experiência de estar conectada por si e em si mesma, e
demonstraria preferência por comunicações interpessoais virtuais, em vez daquelas
estabelecidas face a face.
Nesse contexto, os pesquisadores afirmam que o uso moderado e controlado de internet
seria a forma mais adequada de tratar o dito transtorno (GREENFIELD, 2001;
ORZACK, 1999). A terapia cognitivo-comportamental seria o método preferido de
tratamento (YOUNG, 2007), visando um maior controle dos pensamentos, já que esta
teoria se baseia na premissa de que os pensamentos determinariam os sentimentos.
O comportamento relacionado ao computador teria a ver com o uso “real” de internet, e
o objetivo principal do tratamento seria a pessoa se abster das aplicações consideradas
problemáticas, ao mesmo tempo em que manteria um uso controlado do computador
por razões classificadas como legítimas. Com relação aos comportamentos não
relacionados ao computador, o cliente seria auxiliado a fazer mudanças entendidas
como positivas e permanentes em seu estilo de vida excluindo a internet. São
estimuladas atividades que não envolvem o computador, como passatempos fora da
internet, reuniões sociais e atividades com a família.
Da perspectiva cognitiva, a pessoa que pensaria de modo adictivo se sentiria apreensiva,
sem aparentemente nenhum motivo lógico, ao antecipar desastres (HALL; PARSONS,
2001). Embora os dependentes não fossem as únicas pessoas que se preocupam e
antecipam acontecimentos negativos, eles tenderiam a fazer isso mais frequentemente
que as outras pessoas. Young sugeriu que esse tipo de pensamento catastrófico poderia
contribuir para o uso compulsivo de internet, ao fornecer um mecanismo de escape
psicológico para evitar problemas reais ou percebidos. Estudos subsequentes
hipotetizaram que outras cognições mal adaptativas, como a supergeneralização ou
catastrofização e as crenças centrais negativas também contribuiriam para o uso
compulsivo de internet (CAPLAN, 2002; CAPLAN; HIGH, 2007; DAVIS, 2001). As
52
pessoas que sofreriam do tal pensamento negativo geralmente teriam baixa autoestima e
apresentariam atitudes pessimistas. Elas poderiam ser atraídas para o potencial
interativo anônimo da internet, na tentativa de superar essa inadequação percebida. O
modelo cognitivo ajudaria a explicar por que os usuários de internet criariam um hábito
de uso compulsivo e como os pensamentos negativos sobre si mesmo manteriam
padrões de comportamento compulsivo.
Discutindo o modelo cognitivo-comportamental
Primeiramente, este modelo aborda de forma que pode parecer óbvia a utilização da
internet e dos videogames a partir de uma analogia feita ao uso de drogas. Ao
transportar critérios previamente estabelecidos para outro contexto, neste caso o virtual,
e vislumbrando que estas métricas podem ser aplicadas sem grandes modificações
(nenhuma significativa, no caso), termina-se por simplificar demais a questão e a
limitar-se a entender o uso dos games a partir de uma gramática científica da
dependência que não leva em conta a própria experiência dos jogadores. A partir de sua
própria régua e de seus mecanismos de referência circular (a classificação do
dependente criaria o comportamento dependente e vice-versa) esta gramática pode
abarcar em sua estrutura lógica tudo o que é considerado socialmente como negativo,
revelando-se, ao final, uma máquina de criar dependências.
O modelo cognitivo, ao mesmo tempo em que renega a segundo plano a influência do
chamado social29 em sua teorização da dependência, se baseia numa oposição estanque
entre razões legítimas e ilegítimas do uso do computador para distinguir qual seria uso
recomendável e o uso problemático, sendo este último o único passível de ser
classificado como potencialmente adictivo. Nessa oposição, as atividades classificadas
como legítimas seriam somente as que estariam relacionadas ao trabalho e ao estudo, e
as ilegítimas aquelas ligadas ao lazer – eu não precisaria reafirmar que tais conceitos são
fruto das associações entre os atores sociais pela qual a pesquisa é composta. Os jogos,
neste caso, não teriam espaço, pois não teria, em tese, nenhuma finalidade produtiva,
mas somente recreativa. São somente classificados, pois, como atividades ilegítimas.
29
Chama-se sociedade ou mundo social à metade da velha Constituição que deve unificar os sujeitos
separados dos objetos, e sempre submissa à ameaça da unificação pela natureza; é um todo já constituído
que explica as condutas humanas e permite, então, abreviar o papel político da composição; faz o mesmo
papel paralisante que a natureza, e pelas mesmas razões. O adjetivo “social” (em inferno do social, ou
representação social, ou construtivismo social) é, então, sempre pejorativo, pois designa o esforço sem
esperança dos prisioneiros da Caverna para articular a realidade sem ter os meios (LATOUR, 2004).
53
Como uma forma de caracterizar o comportamento dito patológico, a teoria também
aponta o que eles chamam de consequências negativas para o indivíduo. No entanto, o
negativo aqui é classificado pelos próprios terapeutas. Isto é problemático, pois não
considera a fala da própria pessoa que está sendo diagnosticada. A determinação
heterônoma aplicada via métodos científicos que carregam consigo diversas associações
do que seja o positivo e o negativo, são escondidas em nome da neutralidade; a ponto de
expulsar do parlamento das coisas as demais explicações dos atores.
Este modelo também trabalha com uma valorização problemática da comunicação face
a face em detrimento da comunicação virtual. Ela não baseia seu argumento de uma
maneira convincente para desqualificar este último, de modo que toma o virtual de
forma preconceituosa como um ambiente menos “real” ou menos “natural”, e deixa a
impressão de que este tipo de comunicação não levaria em conta a plena utilização de
todos os sentidos do corpo humano. Reforçamos nosso argumento com a companhia de
alguns “nativos”.
Eu acho pelo contrário, eu acho que a comunicação virtual é sublimada de
vários bloqueios e várias questões que a gente tem da nossa dificuldade de
relação face-a-face. Pela criação de um ambiente neutro, você inventa e cria
uma imagem de si ali, podendo expressar seus desejos mais profundos, suas
alucinações, enfim, suas criatividades. É um espaço liberado, um espaço
criativo, onde o desejo humano ele se realiza ali, tirando algumas amarras.
Lógico que tem implicação disso, da pessoa acreditar que a imagem que a
pessoa tá transmitindo é de fato “real”. Ela é real porque ela é fruto de um
desejo, mas ela não está necessariamente acoplada a vida daquela pessoa. Ela
existe em outro plano. Fora do jogo, do chat, do plano da Internet (Gamer em
Entrevista).
O modelo cognitivo-comportamental também trabalha com a ideia de que a pessoa usa
o videogame como um escape psicológico. Mas, nos perguntamos, escape do quê? Está
implícito que seria da chamada vida real, a vida para o trabalho e para o estudo
realizados offline. A interação com o videogame mais uma vez aparece como parte da
vida irreal ou ilusória. Esta visão do escape não considera que as pessoas poderiam se
envolver mais com os videogames porque, na comparação com as suas possibilidades
de atividades, a escola e o trabalho parecem pouco interessantes, não apresentam
componentes lúdicos bem desenvolvidos que atraiam a sua atenção e acabam por ser
encaradas como maçantes, entediantes e repetitivas. Em contrapartida, estas pessoas
vivenciam experiências relatadas como mais interessantes com os videogames, com os
quais teriam a possibilidade de vencer desafios e desenvolver aprendizados de uma
54
forma mais engajada, mais imersa, exatamente o que aparece como sinal de
dependência para este grupo de cientistas.
É um mundo real porque é um mundo criado, concebido. E você pode criar a
partir dele também. É uma realidade, só que ela é em outra dimensão. Ela é uma
dimensão interativa, como a gente tá vivendo num contato físico, mas é um
contato virtual. Isso não constitui como falso, ou fora da realidade, é como se
fosse um plano de interação, como a gente tem vários planos de interação
durante a vida (Gamer em Entrevista).
Não trabalhamos aqui com a ideia de que o usuário do videogame tem pleno controle
sobre o objeto “jogo”, mas sim com a ideia das múltiplas agências humanas e nãohumanas. O fácil acesso e a disponibilidade do videogame também fazem-fazer o
jogador jogar. Ele não está controlando tudo o que faz, assim como ninguém (ou
nenhuma coisa) o faz. Todos são superados pelos acontecimentos (LATOUR, 2002).
Este tratamento cognitivo-comportamental visa, sobretudo, mudar o pensamento das
pessoas para que elas não pensem negativamente e assim, livrarem-se da utilização dos
jogos de forma classificada como compulsiva nestes métodos. Ele concebe, portanto, o
pessimismo como o principal fator adictivo. Isto pode ser questionado: uma pessoa pode
estar com baixas expectativas sobre a sua relação com as coisas e pessoas no futuro,
mas isto não significa que ela deixaria de se envolver com as mesmas. Pessimismo não
seria o mesmo que negar o convívio e deixar de participar das relações, e por isso não
seria uma fuga do que se entende por real. Esta visão catastrofista ou premonitória
parece questionável, já que de algum modo uma habilidade de prever acontecimentos
negativos seria alçada a um componente causador do vício.
É compreensível, sim, que se relacione a maior utilização dos jogos com a baixa
autoestima em ambientes fora do jogo, apesar dos problemas de medição que isto possa
acarretar. Mas se pode entender também que a pessoa possa alcançar uma melhora da
autoestima via jogos e que a mesma desempenhe habilidades sociais melhores no jogo
em comparação com outras atividades “fora da tela” – o que lhe geraria aumento de
status, reconhecimento e realização. No entanto, porque isto tem de ser visto como
falso?
Outro problema desta análise é tratar o ciberespaço como espaço da anonimidade.
Muitas pesquisas (CASTELLS, 2003) já realizadas apontam que as pessoas, na maior
parte, se relacionam no ciberespaço com pessoas previamente conhecidas em contextos
55
fora da internet. No jogo, haveria um espaço maior para o contato com o desconhecido,
mas ainda não seria o local da pura anonimidade – vide a popularização dos jogos
sociais em plataformas como o Facebook, plataforma esta que favorece a uma
aproximação muito forte entre a representação online da pessoa com a virtual e ao jogo
entre pessoas que já são amigas fora da tela.
A relação que a gente cria com as pessoas enquanto joga, tanto no jogo online e
offline, ela não se termina no jogo em si, a gente acaba criando amizades que
tem como princípio o jogo, a gente fala do jogo, mas ela se expande pra tudo.
Eu conheci várias pessoas e cultivei amizades durante muitos anos, uma
amizade que extrapolava o jogo, mas é como se fosse... É um amigo virtual
(Gamer em Entrevista).
O problema desta análise é que ela ainda continua operando numa divisão completa
entre online e offline como se fossem dois mundos incomunicáveis, enquanto que hoje,
com a expansão do uso da internet e dos videogames, estas duas formas de interação
quase sempre necessariamente estão ligadas.
4.2 Modelo neuropsicológico
A China Youth Association for Network Development apresentou um padrão para
avaliar a dependência de internet incluindo um pré-requisito e três condições (CYAND,
2005). O pré-requisito é que a dependência de internet deve prejudicar gravemente o
funcionamento social e a comunicação interpessoal. Um indivíduo seria classificado
como dependente ao satisfazer qualquer uma das três seguintes condições:
1. Sentir que é mais fácil se autorrealizar virtualmente que na vida real;
2. Experienciar disforia ou depressão sempre que o acesso à internet for
interrompido ou deixar de funcionar;
3. Finalmente, tentar esconder dos membros da família o tempo real de uso.
Um dos cientistas dessa associação, Ying, propõe um modelo neuropsicológico de
encadeamento para explicar o comportamento virtual dependente (TAO, YING, YUE;
HAO, 2007). Este modelo, ao examinar o que é entendido por impulso primitivo
associado à dependência, parte de uma construção sobre o que seria o comportamento
cerebral e cria uma associação direta à dependência química. Nesta perspectiva, a
ativação farmacológica dos sistemas de recompensa do cérebro seria o grande
responsável pela produção das potentes propriedades adictivas das drogas. A
56
personalidade, o social e a genética entrariam como fatores secundários, que
explicariam o envolvimento inicial e a velocidade do desenvolvimento da dependência,
mas não como fator determinante: este seria o efeito da droga sobre o sistema nervoso
central. Ainda sim, no caso de algumas substâncias, alguns fatores não farmacológicos
poderiam interagir com a ação farmacológica da droga e provocar o uso compulsivo da
substância, envolvendo assim o uso de substâncias que geralmente não são consideradas
adictivas.
Uso de
videogame
Impulso
primitivo
Experiência
eufórica
Uso
repetido
Enfrentamento
passivo
Reação de
abstinência
Tolerância
Figura 1.2 – Modelo neuropsicológico de encadeamento da dependência de videogames
Nesta teoria, a dopamina, um dos neurotransmissores encontrados no sistema nervoso
central, teria uma função aparentemente importante na regulação do humor e do afeto e
por causa de seu papel nos processos de motivação e recompensa 30.
30
Na via de recompensa, dopamina é fabricada na área tegmental ventral e é liberado no núcleo
accumbens e segue para o córtex pré-frontal. Na via responsável por movimentação, a dopamina é
produzida na substância nigra e liberada no corpo estriado.
57
TABELA 1 - Explicação da cadeia neuropsicológica da dependência de videogames
Conceito principal
Impulso primitivo
Experiência eufórica
Tolerância
Reação de abstinência
Enfrentamento passivo
Efeito avalanche
Explicação específica
O instinto do indivíduo de buscar o prazer e evitar a dor, que é
representativo de vários motivos e impulsos de usar o videogame.
As atividades virtuais estimulam o sistema nervoso central do
indivíduo, que se sente feliz e satisfeito. O sentimento impulsionará
a pessoa a usar continuamente o videogame e prolongar a euforia.
Depois de estabelecida a dependência, a experiência eufórica logo se
transforma em hábito e em estado de entorpecimento.
Devido ao uso repetido de videogame, o limiar sensorial do
indivíduo diminui; a fim de atingir a mesma experiência de
felicidade, o usuário precisa aumentar o tempo e o apego ao
videogame. A tolerância de nível elevado é o trampolim para a
dependência de videogame e o resultado do esforço da experiência
eufórica referente ao videogame.
As síndromes física e psicológica acontecem quando o indivíduo
interrompe ou diminui o uso de videogames, e incluem
principalmente disforia, insônia, instabilidade emocional,
irritabilidade, e assim por diante.
Quando o indivíduo se confronta com frustrações ou sofre efeitos
prejudiciais do mundo exterior, surgem comportamentos passivos de
acomodação ao ambiente, comportamentos que incluem imputação
adversa de eventos, falsificação de cognições, supressão, escape e
agressão.
O efeito avalanche inclui experiências passivas que consistem em
reação de tolerância e abstinência, e impulso combinado consistindo
em estilos de enfrentamento passivos com base no impulso primitivo
do indivíduo.
Dentre os diversos sistemas de dopamina no cérebro, o sistema mesolímbico de
dopamina31 aparentaria ser o mais importante nos processos motivacionais. Algumas
drogas adictivas produziriam seus potentes efeitos sobre o comportamento ao aumentar
a atividade de dopamina mesolímbica (DI CHIARA, 2000). A ligação neuroquímica
com dependências comportamentais, como o jogo patológico ou a comida, ainda
precisaria ser confirmada, mas alguns estudos sugerem que os processos
neuroquímicos desempenham um papel central em todas as dependências, quer de
substâncias, quer de comportamento (DI CHIARA, 2000). O modelo proposto de
circuito cerebral de recompensas na dependência envolve o aumento de dopamina
quando certas áreas do cérebro seriam estimuladas. Sua estimulação excessiva resultaria
numa dessensibilização dos receptores gerando maior necessidade de dopamina para
obter o mesmo efeito (esse mecanismo teria um papel importante no vício em jogo,
31
A via mesolímbica é uma das vias dopaminérgicas do cérebro. A via inicia-se na área tegmental ventral
do mesencéfalo e forma conexão com o sistema límbico através do núcleo accumbens, a amígdala
cerebelosa e o hipocampo, e também com o córtex pré-frontal medial. É sabido estar envolvida na
modulação das respostas comportamentais aos estímulos que activam as sensações de recompensa através
do neurotransmissor dopamina.
58
adicção sexual, alcoolismo e drogadicção). Para isso, o cérebro possuiria trajetórias
especializadas que mediariam a recompensa e a motivação. A estimulação elétrica direta
do feixe medial do prosencéfalo32 produziria efeitos intensamente gratificantes de
recompensa por sua ação farmacológica sobre o núcleo accumbens33 e a área tegmental
ventral34, respectivamente. A ação ventral tegmental dos opiáceos provavelmente
envolveria um sistema endógeno de peptídeos opioides, mas a localização anatômica
desse sistema jamais foi identificada. Recompensas ditas “naturais” (como comida e
sexo) e outras substâncias (como cafeína, álcool e nicotina) também ativariam esse
sistema cerebral de recompensas (DI CHIARA, 2000).
Figura 1.3 – Córtex frontal35, núcleo accumbens, hipocampo36, substância negra e corpo
estriado.
32
Prosencéfalo (ou encéfalo frontal), na anatomia dos vertebrados, é a parte mais rostral e frontral do
cérebro. O prosencéfalo, o mesencéfalo, e o rombencéfalo são as três partes principais do cérebro durante
o começo do desenvolvimento do sistema nervoso central. Ele controla a temperatura corporal, as funções
reprodutivas, a alimentação, o sono e todas as emoções. No estágio das cinco cavidades, o prosencéfalo
separa-se em diencéfalo (tálamo, hipotálamo, subtálamo, epitálamo e pretécto) e o telencéfalo. O cérebro
consiste de córtex cerebral, substância branca subjacente, e glândulas da base. Quando o prosencéfalo
embrionário não se divide o cérebro em dois lóbulos, que resulta em uma condição conhecida como
holoprosencefalia.
33
Núcleo accumbens é uma estrutura cerebral ligada à sensação do prazer. É pertencente ao sistema
mesolímbico dopaminérgico. Localiza-se próximo ao hipocampo.
34
Área tegmental ventral é um grupo de neurônios localizados em uma parte do tronco cerebral. Uma
parte dele secreta dopamina. A descarga espontânea ou a estimulação elétrica dos neurônios da região
dopaminérgica na via mesolímbica produzem sensações de prazer, algumas delas similares ao orgasmo.
Indivíduos que apresentam, por defeito genético, redução no número de receptores das células neurais
dessa área, tornam-se incapazes de se sentirem recompensados pelas satisfações comuns da vida e buscam
alternativas "prazerosas" atípicas e nocivas como, por exemplo, alcoolismo, cocainomania,
compulsividade por alimentos doces e pelo jogo desenfreado.
35
O córtex pré-frontal (PFC) é a parte anterior do lobo frontal do cérebro, localizado anteriormente ao
córtex motor primário e ao córtex pré-motor. Esta região cerebral está relacionada ao planejamento de
59
Pesquisadores
há
muito
tempo
associam
a
dependência
a
mudanças
em
neurotransmissores no cérebro e alguns deles argumentam que toda dependência pode
ser desencadeada por mudanças semelhantes no cérebro. Pesquisas farmacológicas
buscaram construir o argumento científico do impacto positivo do tratamento
medicamentoso nesse dito transtorno em testes de laboratório, como por exemplo, o uso
do antidepressivo escitalopram (DELL’OSSO, 2008), utilizando-se de uma serie de
técnicas como a seleção prévia de candidatos classificados como dependentes conforme
a métrica científica utilizada, separação do grupo que “respondeu” daqueles que não
reagiram ao medicamento, uso de grupo de controle e de placebo controlado.
Problematizando o modelo neuropsicológico
A teoria neuropsicológica trata o videogame como uma substância que fabrica um efeito
sobre o corpo, de forma análoga à narrativa sobre as drogas. Trata, pois, da interação
(de um só vetor) da substância entendida como videogame com o corpo entendido como
humano. Esta abordagem tem um caráter universalista, que serviria para todos os casos,
independendo de cultura, idade, sexo, ou qualquer outro “fator”. O argumento central
desta teoria recorre a uma série de invisíveis, ou seres difíceis de visualizar por um nãoexpert. Estes atores, como a dopamina, o sistema mesolímbico, o sistema de afetos e
recompensas do cérebro, as trajetórias especializadas do cérebro; entram como atores
poderosos, que mobilizam muitos outros a partir de associações bem estabilizadas que
as sustentam. Sob um aparente mistério justifica-se a teoria, e ajuda-se a amarrar e
fortalecer outros agentes em caixas-pretas de difícil abertura, a não ser com o exame
minucioso da complexidade de sua linguagem.
O modelo neuropsicológico desconsidera o social como mediador, mas o toma como
mero intermediário, ou como dizem, fator secundário. O caminho para a cura também o
comportamentos e pensamentos complexos, expressão da personalidade, tomadas de decisões e
modulação de comportamento social. A atividade básica dessa região é resultado de pensamentos e ações
em acordo com metas internas. A função psicológica mais importante relacionada com o córtex préfrontal é a função executiva. Esta função se relaciona a habilidades para diferenciar pensamentos
conflitantes, determinar o bom ou ruim, melhor e pior, igual e diferente, consequências futuras de
atividades correntes, trabalho em relação a uma meta definida, previsão de fatos, expectativas baseadas
em ações, e controle social. Muitos autores indicam uma ligação entre a personalidade de uma pessoa e
funcionamento do córtex pré-frontal.
36
Hipocampo é uma estrutura localizada nos lobos temporais do cérebro humano, considerada a principal
sede da memória e importante componente do sistema límbico. Além disso é relacionado com a
navegação espacial.
60
desconsidera e a tentativa de tratamento passaria então pela medicalização, pela
ingestão de outras substâncias farmacológicas que alterariam a dinâmica dos atores
considerados (vide as pesquisas acima citadas). Todos os outros agentes
desconsiderados – o próprio social – se reuniriam então num plano oficioso, ao
contrário da dopamina, do sistema nervoso, das recompensas – estes sim entendidos
como agentes naturais, objetivos, dos fatos científicos, que ocupam o plano oficial.
O tema dos sistemas de motivação e recompensa, que aparece na voz dos atores do
modelo neuropsicológico, parece ser rico para a continuidade da pesquisa, pois encontra
um canal de diálogo com os game designers, profissionais que criam os videogames.
Estes também trabalham com o termo sistemas de recompensas, mas talvez com um
objetivo contrário ao dos agentes de saúde: como uma forma de investigar como
poderiam fabricar jogos que mantenham a atenção e a motivação dos jogadores de
forma contínua, sem que eles percam o interesse no jogo, e, portanto, não parem de
jogar.
Para isso, os game designers criam um sistema de cumprimento de metas e de
balanceamento de uma série de variáveis, tais como a relação de risco-recompensa que
um jogador vivencia em uma situação de jogo, a curva de aprendizagem do jogo
(aumento de dificuldade do nível do jogo em relação ao aumento da habilidade
decorrente da experiência do jogador), posicionamento de certos momentos de clímax
no roteiro. Estas recompensas poderiam vir de diversas formas, como a descoberta de
novos espaços e/ou de novas fases, evolução do personagem, ganho de novas
habilidades ou equipamentos, pontuação, aumento de status entre outros jogadores e até
mesmo animações, sons ou imagens. Mas este é um assunto que trataremos no capítulo
quatro, a partir de uma etnografia com os desenvolvedores de jogos.
4.3 Teoria da compensação
A teoria da compensação trabalha basicamente com a ideia do uso de videogames como
um meio de compensar ou lidar com déficits de autoestima, identidade e
relacionamentos. Argumenta-se que foram encontrados níveis mais elevados de solidão
entre os considerados usuários patológicos.
Em geral, os considerados dependentes de videogame teriam dificuldade em formar
relacionamentos íntimos com os outros e se esconderiam na anonimidade do
61
ciberespaço para se conectar com pessoas de maneira não ameaçadora. Virtualmente, o
indivíduo poderia criar uma rede social de novos relacionamentos. Com visitas
rotineiras a um determinado grupo, ele estabeleceria um alto grau de familiaridade com
outros membros do grupo, criando assim um sentimento de comunidade. O usuário se
adaptaria, assim, às normas correntes do grupo. Existindo supostamente apenas
virtualmente, o grupo existiria em um tempo e espaço paralelos, desconsideraria as
convenções normais relativas à privacidade e se manteria vivo somente por meio da
intermediação do computador.
Uma vez estabelecido o senso de pertencimento a um determinado grupo, os
dependentes de internet dependeriam do intercâmbio pela conversação para obter
companhia, conselhos, entendimentos e, inclusive, romance. A capacidade de criar uma
comunidade virtual deixaria para trás o mundo físico – as pessoas conhecidas, fixas e
visuais deixariam de existir – e os usuários anônimos criariam um encontro de mentes
que viveriam em uma sociedade baseada puramente em textos. Assim, os usuários
compensariam o que lhes falta na chamada vida real (CAPLAN; HIGH, 2007).
Eles poderiam usar os jogos para encontrar significado psicológico e conexões, formar
vínculos íntimos e se sentirem emocionalmente próximos uns dos outros. A formação
dessas arenas virtuais criaria uma dinâmica de grupo de apoio social que atenderia a
uma necessidade profunda em pessoas cuja suposta vida real seria empobrecida e
careceria de intimidade em termos interpessoais. Em algumas circunstâncias da vida
consideradas limitadoras do acesso da pessoa aos outros, seria mais provável que o
indivíduo utilizasse os games como um meio alternativo para estabelecer os alicerces
sociais que faltaria em seu, assim chamado, ambiente imediato. Em outros casos, quem
se sentiria socialmente pouco hábil ou teria dificuldade em criar relacionamentos
entendidos como sadios na suposta vida real descobriria que conseguiria se expressar
mais livremente e encontraria o companheirismo e a aceitação ausentes em sua vida.
Há estudos (KRANT, 1997) que apontam uma correlação entre o isolamento social, a
depressão e o uso de jogos eletrônicos. Outros, que investigam o impacto psicológico,
associam o jogo à diminuição da comunicação familiar e à redução do círculo social
local; a um aumento na solidão e depressão – mesmo no uso considerado modesto,
pronunciados no caso dos jovens. Há pesquisadores que afirmam que descobriram que
62
quanto mais os usuários eram dependentes, mais eles usariam os jogos como fuga
(YOUNG; ROGERS, 1997). Quanto mais estressados pelo trabalho ou deprimidos, os
dependentes tenderiam a usar mais os jogos e relatariam graus mais elevados de solidão,
humor deprimido e compulsividade quando comparado a outros grupos. A depressão
aparece ligada ao uso excessivo dos jogos, mas não foi demonstrado nestas pesquisas se
a depressão causa dependência ou, inversamente, se ser dependente causa depressão;
limitando-se a constatar uma correlação entre estas duas variáveis, que segundo os
estudos, se reforçariam mutuamente.
A teoria recomenda que os terapeutas atentem para como os usuários poderiam
compensar o que falta em sua vida supostamente real usando os videogames,
destacando que estes podem se tornar extremamente reforçadores na superação da baixa
autoestima, falta de habilidade social, solidão e depressão. Ao mesmo tempo, comenta
que quem sofre desses problemas pode estar mais vulnerável e corre maior risco de
desenvolver tal transtorno. Enfim, recomenda que os terapeutas devessem examinar
outros fatores considerados comórbidos com os quais o cliente estaria lidando (somente
aqui entraria o “social”). Ao final, sugere perguntas, como: O cliente está usando o
videogame para satisfazer necessidades sociais? Estabelece relacionamentos virtuais
para fazer amigos devido à fobia social? Ele usa o jogo online para se sentir poderoso
quando sofre de baixa-estima? Ele usa o jogo para lidar com uma depressão clínica?
Questionamentos sobre a teoria da compensação
Poderia parecer que, ao contrário do modelo neuropsicológico, a teoria da compensação
levaria em conta o “social”. Sim, isto acontece, no entanto de forma específica. O
social, ou a sociedade, aqui aparece como o mundo exclusivo dos humanos. A visão de
que as pessoas recorrem à Internet por estarem sozinhas, ou por terem baixa autoestima,
deriva de uma concepção de solidão que somente leva em conta as relações
estabelecidas entre seres humanos. A única ausência aqui somente poderia ser a de
relações com humanos em ambiente offline. Os outros seres, como os animais, plantas,
divindades, ou objetos pertencentes ao reino da tecnologia, tais quais os videogames,
estariam fora da “sociedade”. E assim, fora das relações entendidas como verdadeiras.
Operando na visão da falta – de autoestima, relacionamentos, de identidade, e em último
caso, de realidade, esta teoria não chega a atentar para o que efetivamente está
63
acontecendo com os jogadores. Podemos argumentar que ela trabalha com uma ideia de
uma dependência da troca: as múltiplas trocas realizadas em um ambiente falso se
reforçariam a tal ponto que não permitiria mais o indivíduo sair dessa rede perigosa de
prestações múltiplas. Mas se tudo o que o homem faz o ultrapassa e está além de seu
controle, em qualquer tipo de relação, porque esta seria classificada como doentia? Não
estaria aí novamente a tentativa do homem moderno, convencido de ser o senhor de si e
do mundo, de controlar a natureza e a todos os demais atores com quem convive (mas
que, ao mesmo tempo, desconsidera)? Os terapeutas, neste sentido, tentariam em vão
reestabelecer a imagem do homem senhor de si por meio do tratamento, que assim que
curado passaria a controlar seu uso de forma plena, tal como um sábio distintor daquilo
que faz o bem e o mal.
A hipótese é muito mais simples, e os modernos, na verdade, nunca a
abandonaram. Aquele que age não tem o domínio daquilo que faz; outros, que o
superam, passam à ação. Nada que autorize, contudo, a afogar o sujeito no mar
do desespero. Não existe em lugar algum um ácido capaz de dissolver o sujeito.
Este último ganha autonomia, ao conceder a autonomia que não possui aos seres
que advêm graças a ele. Ele aprende a mediação. Ele provém dos fe(i)tiches. Ele
morreria sem eles. Se a expressão parece difícil, que ela seja comparada à
aparelhagem inverossímil, como todos seus maquinismos, engrenagens,
contradições, feedbacks, reparos, epiciclos, dialéticas e contorções destes
marionetes-marionetistas, enredados em seus fios, às vezes visíveis e invisíveis,
mergulhando na crença, a má consciência, a má fé, a virtualidade e o illusio...
Ao querer fazer mais simples que os fe(i)tiches, os modernos fizeram mais
complicado. Ao querer fazer mais luminoso, fizeram mais obscuro. Quem quer
fazer o anjo, faz o homem (LATOUR, 2002, p. 102).
Assim como o modelo cognitivo-comportamental, esta teoria também apresenta o
ciberespaço como o local da anonimidade. O ciberespaço, anunciado como um
ambiente não-ameaçador, se mostra, ao contrário do que pensam estes cientistas, um
local perigoso ao passo que a pessoa mantém relacionamentos profundos nos jogos e
cria uma reputação online. Para não mencionar o argumento já citado de que esses
mundos – online e offline – estão intrinsecamente conectados e de que as pessoas
conhecidas em ambientes offline em geral são as mesmas daquelas com quem as
pessoas mantêm contato via online. Desse modo, fica difícil sustentar a ideia postulada
por esta teoria de que relacionamentos íntimos seriam impossíveis na internet, sem levar
em conta a sobreposição destes “dois mundos” tomados como separados.
A acusação de que estes grupos existiriam apenas virtualmente, de que se manteria vivo
somente por meio da intermediação do computador, mais uma vez parte de uma
64
aproximação dicotômica real-virtual, mesmo que a agência do objeto computador aqui
seja considerada importante para a construção e transformação destas relações. É
cabível afirmar que estes grupos existam em um tempo e espaço diferentes das
convenções ditas como normais, e talvez seja exatamente por conta disso que apareçam
como tão ameaçadores.
O mundo virtual é real. O mundo virtual é tão real quanto o mundo que a gente
vive. Eu não tenho a menor dúvida disso porque as minhas sensações são reais.
A sensação de liderança, a sensação de batalha, a adrenalina... Se as sensações
são reais porque que não é real? É real, é totalmente real. Eu sou o cara que eu
acredito que gente vive atualmente numa simulação, eu tenho essa teoria que a
gente vive na Matrix e tudo mais. E isso aqui é real. Então eu não vejo motivos
pra não crer que um jogo que seja extremamente imersivo... Ele passa a
sensação de ser real, então porque que ele não é real? Se você discutir assim:
“Ah, não, mas realidade realidade?” Bom, realidade realidade só existe essa.
Mas que é real entre aspas, outro tipo de real, é. Porque as sensações são reais.
Então é real. Entende meu ponto de vista? Tem gente que acha diferente, que
fala “não, mas, não é real”. No jogo você age de forma ativa e tem as sensações.
Você está atuando, você não tá só recebendo coisas. Você tá agindo e você tá
sofrendo com as consequências dos seus atos da mesma maneira que você sofre
na vida real. Então é real. (Gamer em Entrevista)
O mais curioso é que esta teoria trabalha com uma contradição inerente ao seu próprio
argumento: ao mesmo tempo em que afirma que os videogames contribuem para formar
vínculos íntimos e superar a solidão (entre humanos), diz, ao contrário, que estas
relações são falsas e que as pessoas que fazem uso dos jogos são mais solitárias e
depressivas. A vida vivida no virtual é novamente entendida como não-real, já que não
estaria dentro do que os cientistas chamam de ambiente imediato – concepção que
trabalha com uma concepção naturalista de espaço derivada das ciências biológicas.
Constrói-se, então, uma referência circular: os mais dependentes é, nesta teoria, os que
mais fogem da vida “real”; ao passo que as pessoas que passam mais tempo no virtual,
logo no “não-real”, são classificados como dependentes. Tomados por esta máquina de
criar dependências, devemos então problematizar a controvérsia no seguinte sentido:
Quem é que criou as réguas para definir o que é a solidão; a compulsividade, o
adequado ou não para uso? Encontramos uma multiplicidade de concepções se sairmos
deste reduto científico (já múltiplo em si mesmo) e partirmos para a prática dos demais
atores envolvidos.
65
4.4 Fatores situacionais
Segundo esta mesma linha de pesquisadores, os chamados fatores situacionais
desempenhariam certo papel no desenvolvimento da dependência de videogame. Os
indivíduos que se sentem oprimidos enfrentam problemas pessoais ou passam por
mudanças de vida como um divórcio recente, recolocação profissional ou morte de
alguém querido poderiam se absorver num mundo de fantasia e fascínio (YOUNG,
2007). O videogame poderia se tornar uma fuga psicológica que distrai o usuário de um
problema ou situação difícil da chamada vida real. Como um meio de lidar num novo
ambiente, o usuário poderia recorrer ao videogame para preencher o vazio das noites
solitárias. O usuário também poderia ter uma história de dependência de álcool ou
drogas, e considerar o videogame uma alternativa fisicamente segura para sua tendência
adictiva. Ele pode acreditar que ser dependente de videogame seria medicamente mais
seguro que ser dependente de drogas ou álcool – sem perceber que continuaria se
comportando compulsivamente para evitar as dificuldades subjacentes à dependência.
Os usuários que sofrem de múltiplas dependências seriam os que correm maior risco de
dependência de videogame. Pessoas com personalidades adictivas tenderiam a usar mais
álcool, cigarros, drogas, comida ou sexo como uma maneira de lidar com problemas.
Elas aprenderiam a lidar com dificuldades situacionais por meio do comportamento
dependente e o videogame lhes parece uma distração conveniente, legal e fisicamente
segura, desses mesmos problemas da vida real. Nos casos em que o sujeito também é
dependente do sexo ou de jogos de azar, o videogame passaria a ser uma nova maneira
de se dedicar a esses comportamentos.
Observamos que o estresse situacional, seja ele divórcio, luto, perda recente do
emprego ou luta pelo sucesso acadêmico, pode levar a pessoa a usar a internet
com maior intensidade. Nem todos os indivíduos que usam a internet como uma
fuga momentânea ou um meio de controlar o estresse situacional se tornam
dependentes. Seu comportamento pode ser temporário e desaparecer com o
tempo. Mas há casos em que o comportamento passa a ser persistente e
constante, e as atividades virtuais se tornam exageradas. O comportamento,
progressivamente, passa a girar em torno do uso de internet. A pessoa adapta
seu comportamento e se concentra em aplicações que inicialmente eram
necessárias para o trabalho, como um BlackBerry, ou recreativas, como uma
sala de bate-papo ou jogo. Na medida em que o comportamento se intensifica e
o uso de internet se torna crônico e arraigado, transforma-se numa obsessão
compulsiva. Nesse estágio a pessoa se torna incapaz de manejar sua vida, e o
comportamento compulsivo passa a prejudicar os relacionamentos e/ou a
atividade profissional (YOUNG, 2011, p. 32).
66
Segundo estes cientistas, a pessoa estaria vulnerável à dependência quando se sente
insatisfeita com sua vida, não tem relacionamentos íntimos ou sólidos com os outros,
não tem autoconfiança nem interesses envolventes, ou não tem mais esperança (PEELE,
1985, p. 42). De maneira semelhante, os indivíduos que estão insatisfeitos ou sofrendo
em alguma área específica ou em várias áreas da vida apresentam maior probabilidade
de se tornarem dependentes de internet por não conhecerem outra maneira de lidar com
isso (YOUNG, 1998). Por exemplo, em vez de fazer escolhas positivas que trarariam
benefícios, os alcoolistas costumam beber, o que amortece a dor, evita o problema e
mantém o status quo.
Todavia, quando ficam sóbrios, perceberiam que suas dificuldades não mudaram. Nada
seria alterado pela bebida, mas pareceria mais fácil beber do que lidar com os
problemas de frente. De forma semelhante, o usuário dependente acessaria a internet
para amortecer a dor, evitar o problema real e manter as coisas como estão. Mas
quando se desconectam eles perceberiam que nada mudou. Essa substituição de
necessidades não atendidas em geral permitiria ao dependente escapar temporariamente
do problema – mas não é a assim que se resolveriam os problemas. Portanto, neste
sentido, seria importante que o terapeuta avaliasse a situação atual do paciente para
determinar (YOUNG, 2011, p. 32-33) se ele não estaria usando o videogame como um
cobertor de segurança, para evitar uma situação de infelicidade, tal como uma
insatisfação conjugal ou profissional, doença médica, desemprego ou instabilidade
acadêmica.
Fatores situacionais?
Fica difícil entender o que estes cientistas entendem por fatores situacionais: parece que
tudo o que os modelos universais não explicam se encaixa neste modelo de “resto”. A
“cultura” e a “educação”, por exemplo, aparecem como fator situacionais daquilo que as
explicações universais não dão conta de abarcar. Estes “fatores” são colocados,
portanto, como externalidades37; mas que, se nos aproximarmos em detalhe das
37
Exteriorização, externalização: os economistas usam a expressão externalidades para designar o que
não pode ser levado em conta, mas que desempenha um papel importante (negativo ou positivo) nos
cálculos; dá-se lhe aqui um sentido mais geral e mais político para substituir a noção usual de natureza
exterior ao mundo social; isso não é um dado, mas o resultado de um procedimento explícito de colocar
no exterior o que a pessoa decidiu não levar em conta ou o que põe em perigo o coletivo (LATOUR,
2004, p. 337).
67
situações práticas, observaremos que fazem toda a diferença. Podemos dizer, então, que
esta necessidade de criar um modelo único, simples e até “teleológico” para prever os
acontecimentos acaba por deixar de fora uma série de agências – daquilo que seria
desprezível – fechando as portas, no plano oficial, para o imprevisível – sendo que este
sempre está presente, ainda mais quando tratamos de jogo, no qual é um elemento
central. De acordo com a teoria-ator-rede, pois, não há uma explicação única. Devemos
observar a agência de um sobre todos os demais e vice-versa.
Um dos aspectos que podemos apreender desta teoria é que aqui se enfatizam os
períodos de maiores mudanças pelas quais as pessoas enfrentam. Nestas situações a
pessoa experimentaria um enfraquecimento de algumas de suas relações e recorreria ao
jogo para se reconectar a experiências significativas. No entanto, assim como nos outros
modelos, esta experiência também é encarada como falsa: desconsidera a sua
capacidade de auxiliar na resolução de problemas e no aprendizado que esta possa trazer
à pessoa que joga. A barreira entre a vida “real” e a vida “virtual” acaba sendo o ponto
de contato que perpassa todas as teorias e modelos que aqui descrevemos, sendo,
portanto, o grande ponto em embate desta controvérsia: haveria uma só realidade,
aquela ligada à matéria, à família, ao trabalho, desconectada do que se entende no senso
comum por “tecnologia”, ou, pelo contrário, realidades múltiplas?
5. Reflexão sobre o culto moderno da Ciência Moderna
The discourse of the DSM-IV (APA 1994) provides na image of what individuals
could become and helps realign what they are with what they want to be – or
what psychiatric discourse decrees that individuals should strive to be. This
image of normality is dependent on the modification of personal desires with
institutionally or socially valued goals. It could be regarded as a central text in
ensuring that individuals meet social requirements for acceptable subjectivity.
When individuals fail to measure up to these requirements they become part of
the ever increasing psychiatric attention on all aspects of everyday life
(CROWE, 2000, p. 76).
Buscamos neste capítulo propor uma discussão sobre as teorias científicas que buscam
determinar critérios objetivos para definir a dependência, intervindo a partir de uma
perspectiva antropológica específica, proveniente da Antropologia da Ciência e da
Tecnologia, sobre as pesquisas que tratam deste tema, geralmente dominadas pela
Psiquiatria e por certas vertentes da Psicologia. A discussão ainda é pobre, pois carece
68
de dados etnográficos que os demais agentes trazem para esta controvérsia. Mas, ainda
sim, o material coletado nos permite tecer algumas conclusões.
Ao tratar o humano como sujeito e videogame como objeto (ou, do mesmo modo, como
uma substância), as teorias da dependência aqui apresentadas acabam por inventar dois
mundos separados: um mundo verdadeiro, a sociedade dos humanos, e um mundo falso,
o da tecnologia e dos videogames. Erigi-se, assim, uma barreira (pensada como)
intransponível entre estes mundos, apesar dos agentes circularem oficiosamente de um
plano para o outro, causando efeitos uns sobre os outros, ou fazendo-fazer, de forma
generalizada. Latour faz uma reflexão semelhante em “Reflexão sobre o culto moderno
dos deuses fe(i)tiches”, que tomaremos aqui como aliada para discutir estas questões,
que parecem seguir no mesmo sentido.
De fato, não podendo mais situar as inumeráveis entidades com as quais
misturamos nossas vidas (já que a imagem tradicional da ciência nos descrevera
este baixo mundo repleto de causalidades eficazes), e não podendo tampouco
nos resignarmos em alojá-las no âmago do nosso eu, transformando-as em
fantasias, complexos ou jogos de significantes, só tínhamos como recurso
inventar um outro mundo [...] Não existe outro mundo senão o baixo mundo.
Não se tem tampouco que sucumbir às fantasias do eu. (LATOUR, 2002, p.88).
O quê Latour toma aqui como baixo mundo seria o plano oficioso onde circulam as
diversas entidades separadas pela taxonomia moderna, que divide o mundo entre
natureza e sociedade, objeto e sujeito, real e fabricado, fato e fetiche. O alto mundo,
situado no plano oficial, por sua vez, seria este da Ciência, autorizada a produzir
verdades sobre ambos os polos, natureza e sociedade, com as suas ciências naturais e
sociais, bem separadas em seus respectivos domínios. Com estas duas esferas apartadas,
deve-se produzir um conhecimento específico para cada uma delas. Os homens, no
reino da Sociedade, seriam os únicos sujeitos – seriam indivíduos, dotados de um “eu”,
que deve ter controle de si e também da Natureza. Psicologiza-se, assim, o humano. As
coisas, situadas no reino da Natureza, seriam os objetos cujas verdades, únicas e prontas
desde sempre, devem ser somente “descobertas” pelos cientistas. Epistemologiza-se, da
mesma forma, todos os não-humanos.
Se o antigo sujeito da psicologia podia acumular sobre si mesmo, no seio de sua
interioridade, a totalidade de seu ser, aquele que aqui aparece, quase-sujeito
misturado aos quase-objetos, assemelha-se antes com algo disposto em
camadas, como uma massa folhada, atravessado por diferentes veículos onde
cada um o define em parte, mas, sem jamais ali se deter completamente. Como
se pode perceber, ao menos eu espero, abandonar as diferenças entre as
69
interioridades da psicologia e as exterioridades da epistemologia não torna a
misturar tudo. Ao se perder a distinção entre as representações e os fatos, não se
mergulha de forma alguma no indiferenciado. Seguir os diversos veículos
permite, ao contrário, retraçar outras distinções além das duas únicas impostas
pela cenografia moderna, e nos convida a registrar outros contrastes.
(LATOUR, 2002, p. 94)
O que fazer, então, quando as coisas e os humanos aparecem tão intrinsecamente
conectados, como os jogadores e os videogames? Como dar conta da explicação pura,
sem produzir inúmeros híbridos? Como negar o ciborgue (HARAWAY, 2009)? Como
“descobrir” o efeito “puro” do videogame sobre uma pessoa; sem saber se estamos
tratando de qual jogo específico, qual pessoa específica, e tudo o mais a que ambas
estão relacionadas? Curiosamente, operando de uma forma especial para contornar estas
questões, é que alguns psiquiatras prosseguem.
O teórico da etnopsiquiatria nos interessa pois, menos que o prático. O que este
faz? Ele trata o doente, por meio de gestos, no interior de um dispositivo
experimental artificial, que revela um tipo particular de energia cuja existência
havíamos esquecido, de tanto epistemologizar nossos objetos e de psicologizar
nossos sujeitos. Ele é um grande “charlatão”, e eu não teria compreendido o que
ele faz antes de ter restituído um sentido positivo a esta palavra que serve
comumente para estigmatizar o mal médico38 (LATOUR, 2002, p. 92).
Somente trabalhando a partir destas oposições fundadoras – sociedade e natureza;
sujeito e objeto – é que se pode inventar estes dois mundos: o chamado “real” e o
“virtual”. O mundo real seria somente composto por certos humanos e certos objetos;
humanos que viveriam somente na sociedade, e objetos que pertenceriam
exclusivamente ao mundo das coisas. Deixem-me explicar melhor: Latour (2002)
afirma que os objetos reais, para os modernos, seriam aqueles pensados como não-feitos
pelos humanos; e que os humanos reais seriam aqueles pensados como não-fabricados
pelos objetos. Concebe-se assim que os humanos somente seriam construídos e afetados
por outros humanos; e que os objetos reais não seriam produzidos de forma alguma,
pois estariam aí desde sempre, de outra forma seriam irreais.
Sob pretexto de que ajudamos a fabricar os seres nos quais acreditamos, tal
pensamento esvaziava todos os objetos-encantados, expulsando-os do mundo
real, para transformá-los, uns após os outros, em fantasias, em imagens, em
38
Ao aplicar aos humanos um modelo epistemológico que nenhum cientista jamais aplicara aos objetos,
os psiquiatras não teriam conseguido compreender, por imitação de um modelo inexistente da ciência, a
originalidade própria da cura. Paradoxalmente, é preciso tratar os humanos como Pasteur trata o fermento
de seu ácido lático, a fim de começar a “fazê-los falar” de maneira interessante. Sobre toda esta confusão
dos modelos de dominação, ver Stengers (2003).
70
ideias. [...] Sob o pretexto de que os objetos-feitos, uma vez elaborados no
laboratório, parecem existir sem a nossa presença, ele alinhava os fatos em
batalhões compactos, compondo um “mundo real”, contínuo, sem lacuna, sem
vazio, sem humano (LATOUR, 2002, p.75).
Desse modo, doente seria o homem que não viveria na sociedade, isto é, entre relações
humanas; mas que passa para o outro lado, que vive no mundo “irreal” dos objetos.
Neste sentido, o jogador que perde o controle da relação com o videogame seria
capturado pelas máquinas, sendo destituído da essência de sua humanidade. Por isso,
esta pessoa precisaria de ajuda terapêutica para “voltar” ao mundo dos humanos e
reestabelecer suas relações “verdadeiras”. Latour comenta que “são feitos esforços, por
intermédio da cura, para dotar os doentes uma identidade, para congregá-los novamente,
para reinseri-los em um território (LATOUR, 2002, p.90)”. Cria-se assim uma
identidade doentia a partir de concepções de “real” e “virtual” que distinguem
radicalmente o que é o humano e o não-humano.
A virtualidade, via de regra, é associada a uma "não-realidade", concepção que
não é das mais adequadas para se pensar o Ciberespaço. Vários pensadores
argumentam que o virtual não se opõe ao real, mas sim que o complementa e
transforma, ao subverter as limitações espaço-temporais que este apresenta.
Desta forma, o virtual não é o oposto do real, mas sim uma esfera singular da
própria realidade, onde as categorias de espaço e tempo estão submetidas a um
regime diferenciado. Esta forma de conceber o virtual (o “real virtual”) é
fundamental para se tratar de uma das dicotomias problemáticas dentro do
campo da Cibercultura - a oposição entre o on-line e o off-line (SILVA, p.3).
De acordo com Márcio Goldman (comunicação oral, 2013), não há ponto de vista que
permita julgar qual realidade é mais real que as outras. Segundo ele, todas as realidades
são igualmente reais. O perspectivismo proposto Viveiros de Castro, ele próprio e
outros atores, quer dizer basicamente essa inexistência de uma transcendência, a
inexistência de um fora, de um ponto de vista de um todo, de um geometral. Se não há
ponto de vista extrínseco, portanto, há de se descrever o mundo dos outros como
ontologicamente verdadeiro.
Nossa proposta, enfim, é que não trabalhemos exclusivamente com a concepção
moderna, esta da separação estanque entre o real e virtual, utilizada aqui pelos cientistas
citados para debater a controvérsia sobre o uso dos jogos eletrônicos; mas que
congreguemos
as
diversas
perspectivas
dos
atores
envolvidos
na
questão,
principalmente os próprios jogadores, que não trazem, em suas práticas, estas divisões
tão impenetráveis. É preciso adentrar estes chamados “mundos virtuais”, os ambientes
71
dos jogos, e ver o que eles têm a nos dizer. Somente assim, os invisíveis (para os
modernos) se tornarão visíveis, para que possamos visualizar uma rede mais complexa
de agências e causalidades.
Apenas escolho com cuidado os termos, para que eles possam passar de um
lado a outro da antiga “grande divisão”, varrendo um tipo de fenômeno que nem
a psicologia – sem objeto – nem a epistemologia – sem sujeito – parecem-me
capazes de abrigar. Interessam-me somente as questões que essa reformulação
permite colocar, agora que dispomos de uma base comparativa mais simétrica e
mais vasta: já que eles não têm mais psicologia que os outros [...] Quais são os
invisíveis indispensáveis à construção provisória e frágil de seus invólucros e de
seus quase-sujeitos? Como fazem para afastar os pavores e para transferi-los
para outro lugar? Por meio de quais dispositivos? Quem são seus curandeiros?
Quem são seus etnopsiquiatras? (LATOUR, 2002, p. 100).
Por fim, encontramos uma afirmação dos mesmos autores que enfrentamos durante esta
reflexão, que parece sintetizar o pensamento que estamos tentando trabalhar (evitaria,
no entanto, a separação entre dois mundos apartados) e com isso fecho este capítulo:
“Não subestimem os mundos virtuais e não os demonizem. Os mundos virtuais,
primeiro lugar e antes de mais nada, são simplesmente um outro lugar para as pessoas
se realizarem, para o melhor ou para o pior (BLINKA; SMAHEL, 2011, p. 115)”.
72
Capítulo 2: O sério e o lúdico: repensando as
categorias lazer e trabalho a partir dos
videogames
Pai: ... A questão é que o objetivo dessas conversas é descobrir as
“regras”. É como a vida – um jogo cujo propósito é descobrir as regras,
que estão sempre mudando e são impossíveis de descobrir.
Filha: Mas eu não chamo isso de jogo, papai.
– Gregory Bateson, Steps to an Ecology of Mind (1972)
1. Delineando associações: entre usos legítimos e ilegítimos
Alguns terapeutas que postulam a ideia de uma dependência em jogos eletrônicos
(GRIFFITHS, 2008, YOUNG; DONG, YING, 2011; YOUNG, 2011; BLINKA;
SMAHEL, 2011) trabalham com a ideia de que existem dois tipos fundamentais de uso
dos computadores: os legítimos e os ilegítimos. Os usos legítimos seriam somente
aqueles relacionados ao trabalho e ao estudo; enquanto os ilegítimos seriam aqueles
destinados a fins recreativos – deveriam ser evitados, portanto, sob o perigo de se criar
uma relação de dependência. Os videogames – lúdicos por excelência – uma vez
enquadrados nesta classificação, não teriam outra saída senão a restrição de seu uso.
Tais argumentos científicos, para suportar esta teoria, fazem uso da ideia de que há um
mundo virtual, existente na tela do computador (ou do videogame), que é falso, e de que
há um mundo real, existente fora da tela, o que é o único verdadeiro. Nesta
argumentação fica evidente que o intuito da cura, ou do tratamento, é tirar a pessoa
desse mundo falso, onde ela tem uma série de relações (inclusive com não-humanos)
também ditas falsas, para reinseri-las no mundo verdadeiro, onde ela fará parte de uma
73
série de outras relações com seres humanos: sobretudo na família, na escola e no
trabalho.
Fica aí implícita uma certa visão de mundo, do que é humano e do que é verdadeiro, em
suma, do que seja o verdadeiro humano. O verdadeiro humano aqui seria aquele que se
relaciona com a sua família, e que, sobretudo, trabalha, ou, se podemos assim dizer, que
se prepara para o trabalho na escola ou na universidade; que vence desafios reais (e não
virtuais) no mundo adulto do trabalho, que ganha dinheiro real, que progride como um
profissional real e por aí em diante.
O nosso interesse aqui é verificar o quanto a ética moderna, ou seja, o conjunto de
valores da vida humana voltada para uma determinada concepção de trabalho, que, por
oposição ao lazer, contribui para a produção da ideia de um jogador viciado em um
falso mundo, o chamado “mundo dos games”. Esta não é uma simples questão, pois há
diversos tipos de lazer e eles não são tomados do mesmo modo, pois, embora partilhem
características comuns da esfera lúdica, todos eles se situam em diferentes redes de
associações (LATOUR, 2006). Mas de algum modo, o jogo, numa concepção mais
ampla, é entendido como lazer, e inserido numa categoria chamada “tempo livre”
(considerado como lazer não produtivo) em oposição à categoria “tempo do trabalho”
nas sociedades modernas.
O objetivo desta seção, enfim, é investigar as associações entre jogo, lazer e trabalho; e
partir das problemáticas levantadas pelos videogames e seus jogadores a partir da
etnografia, rever a utilização destes conceitos para verificar a validade de seu uso para
esta pesquisa. Nas conclusões, propomos um modelo para investigar o engajamento
humano em suas atividades cotidianas a despeito de serem classificadas como lazer ou
trabalho, prazerosas ou maçantes, de “tempo livre” ou “tempo ocupado”, a fim de
atender os objetivos próprios desta pesquisa.
2. Discutindo conceitos: jogo, lazer e trabalho
Tratamos primeiro, pois, de recuperar as reflexões já realizadas sobre estes conceitos. A
primeira noção a ser debatida aqui é a de jogo. Mais especificamente, a questão de
como o jogo se associaria ao lazer, e por contrapartida, ao não-trabalho. Há dois autores
clássicos para quem estuda este tema, Johann Huizinga, com seu livro de 1938, “Homo
74
Ludens”, e posteriormente Roger Caillois, em 1957, com “Os jogos e os homens”. Estes
dois trabalhos ainda são as grandes referências para as pesquisas contemporâneas (em
diferentes áreas como: ciências humanas, game design, game studies) seja para
concordar ou discordar dos autores; mas observa-se que as atuais pesquisas estão em
constante diálogo com os trabalhos clássicos.
A clássica definição que Huizinga apresenta de jogo possui certas características
básicas: é uma atividade que, diferente do trabalho, é livre; e que não faz parte da vida
“cotidiana”, “comum”, “corrente”, ou como ele mesmo chama, da vida “real”. Para ele,
estas são duas de suas características fundamentais.
Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de
ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente
ligada à primeira, é que o jogo não é vida “corrente” nem vida “real”. Pelo
contrário, trata-se de uma evasão da vida “real” para uma esfera temporária de
atividade com orientação própria (HUIZINGA, 1938, p. 11).
Ainda segundo Huizinga o “jogo distingue-se da vida “comum” tanto pelo lugar quanto
pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características (HUIZINGA, 1938, p.
12)”. Essa orientação própria – de tempo e de espaço – do jogo é geralmente entendida
pelos terapeutas como o quê faz com que o videogame atue como uma forma de escape
da vida real para o mundo ilusório dos jogos. Também é essa orientação específica que
dá origem ao que os teóricos dos jogos chamam de círculo mágico – as regras próprias
que separam o jogo do não-jogo, da vida comum.
Esta visão do círculo mágico dos jogos tornou-se bastante influente nos estudos
contemporâneos. De acordo com Lin e Sun (2007), a visão do círculo mágico implica
tratar o jogo como "um mundo independente do mundo cotidiano real." A melhor
experiência de jogo seria alcançada quando o jogo seria "isolado ou oposto às
características utilitárias do mundo físico" (LIN; SUN, 2007, p. 336, tradução nossa).
Muitos pesquisadores de jogos já entraram na discussão para argumentar a favor ou
contra esta visão (COPIER, 2005). Malaby, por exemplo, sugere que esta definição
isolacionista dos jogos é realmente "o maior obstáculo para a compreensão do quê é
poderoso sobre eles" (2007, p. 96, tradução nossa).
Além de serem “livres”, não fazerem parte da vida ordinária e terem outra orientação de
tempo e espaço, os jogos trazem consigo outro tipo de racionalidade, distinta daquela da
75
racionalidade instrumental que geralmente predomina nas ações voltadas ao trabalho no
sentido moderno (WEBER, 1904-05). Os jogos não “servem” para atingir outros
objetivos planejados; têm, ao contrário, um fim em si mesmo.
No que diz respeito às características formais do jogo, todos os observadores
dão grande ênfase ao fato de ser ele desinteressado. Visto que não pertence à
vida “comum”, ele se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das
necessidades e dos desejos e, pelo contrário, interrompe este mecanismo. Ele se
insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se
realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É
pelo menos assim que, em primeira instância, o ele se nos apresenta: como um
intervalo em nossa vida quotidiana (HUIZINGA, 1938, p. 12).
Como não faz parte da vida ordinária, o jogo, para Huizinga, faria parte do campo do
extraordinário ou mesmo do supérfluo. Ele não é, por assim dizer, necessário – tal como
o trabalho – e outras atividades tidas como de necessidade básica: alimentação, sono,
sexo, excreção, abrigo, etc. Deve, também, ser praticado num tempo específico – nas
horas de ócio, ou, no chamado “tempo livre” – portanto, não deve “invadir” as horas de
trabalho sério.
Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma função que
facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma
necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma
numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o
jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca
constitui uma tarefa, sendo sempre praticado nas “horas de ócio”. Liga-se a
noções de obrigações e dever apenas quando constitui uma função cultural
reconhecida, como no culto e no ritual (HUIZINGA, 1938, p. 11).
Camargo (2003) nos lembra de que tal divisão entre necessidades básicas e supérfluas é
fruto da teoria de hierarquia de necessidades de Abraham Maslow, que com sua
conhecida Pirâmide de Maslow, construiu a ideia de que as necessidades fisiológicas e
as de segurança seriam mais fundamentais que as necessidades “sociais”. Camargo
alerta que, portanto, essa divisão não deve ser tomada como autoevidente – sob o perigo
de desqualificar de antemão as atividades de lazer.
As pessoas têm outras preocupações mais importantes do que o lazer, dizia-se
então. A favor desse argumento, havia uma teoria e uma pesquisa recente. A
teoria era a das necessidades básicas de Maslow. [...] Curiosamente os que
recorriam a essa teoria sempre concluíam que o lazer não fazia parte das
necessidades básicas e sim das supérfluas (CAMARGO, 2003).
76
Figura 2.1 – Pirâmide das necessidades de Maslow; as necessidades humanas partem da base e,
conforme vão sendo realizadas, as necessidades superiores passam a ser prioridade.
Complementando a definição de Huizinga, trazemos para o debate também a
conceituação de Roger Caillois. Embora os dois autores difiram em diversos pontos e
tenham focos diferentes em suas análises, o conceito básico de jogo, para os fins que
aqui nos interessam, é bastante semelhante:
A palavra “jogo” evoca por igual as ideias de facilidade, risco ou habilidade.
Acima de tudo, contribui infalivelmente para uma atmosfera de descontração ou
de diversão. Acalma e diverte. Evoca uma atividade sem escolhos mas também
sem consequências na vida real. Opõe-se ao caráter sério desta última e, por
isso, vê-se qualificada de frívola. Por outro lado, opõe-se ao trabalho, tal como
o tempo perdido se opõe ao tempo bem empregue. Com efeito, o jogo não
produz nada – nem bens nem obras. É essencialmente estéril. A cada novo
lance, e mesmo que estivessem a jogar toda a sua vida, os jogadores voltam a
estar a zero e nas mesmas condições de início. Os jogos a dinheiro, apostas ou
loterias, não são exceção. Não criam riqueza, movimentam-na (CAILLOIS,
1967, p. 9).
Tanto para Huizinga como para Caillois, diferentemente do trabalho, o jogo não produz
nada. Não se constitui propriamente numa tarefa (diferentemente da conceituação de
Ingold, que exporemos mais adiante). Como não é produtivo, é associado à perda de
tempo, e ao tempo mal utilizado. Enfim, ele opõe-se a seriedade representada pelo
trabalho. No entanto, como Huizinga próprio afirma, isto não significa que o jogo não é
sério.
Em nossa maneira de pensar, o jogo é diametralmente oposto à seriedade. A
primeira vista, esta oposição parece tão irredutível a outras categorias como o
próprio conceito de jogo. Todavia, caso o examinemos mais de perto,
verificamos que o contraste entre jogo e seriedade não é decisivo nem imutável.
77
É lícito dizer que o jogo é a não-seriedade, mas esta afirmação, além do fato de
nada nos dizer quanto às características positivas do jogo, é extremamente fácil
de refutar. Caso pretendamos passar de o “jogo é a não-seridade” para ”o jogo
não é sério”, imediatamente o contraste tornar-se-á impossível, pois certas
formas de jogo podem ser extraordinariamente sérias. Além disso, é facílimo
designar várias outras categorias fundamentais que também são abrangidas pela
categoria da “não-seriedade” e não apresentam qualquer relação com o jogo
(HUIZINGA, 1938, p. 8).
O jogo não é trabalho, não é sério – mas como não dizer que não há seriedade em sua
prática? É preciso que as suas regras se apliquem dentro de seu tempo e espaço
específicos. Veja o que acontece quando alguém quebra uma destas regras – por
exemplo, um jogador de futebol (de linha) que segura a bola com as mãos; ou no nosso
caso, quando um jogador utiliza trapaças (denominadas cheats pelos jogadores) para
avançar as fases do jogo sem percorrê-las, ou deixar o seu personagem mais forte que o
dos demais jogadores: isto quebra a sua “fantasia”.
Todavia, conforme já salientamos, esta consciência do fato de “só fazer de
conta” no jogo não impede de modo algum que ele se processe com a maior
seriedade, com um enlevo e um entusiasmo que chegam ao arrebatamento e,
pelo menos temporariamente, tiram todo o significado da palavra “só” da frase
acima. Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o
jogador. Nunca há um contraste bem nítido entre ele e a seriedade, sendo a
inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade. Ele
se torna seriedade e a seriedade jogo. É possível ao jogo alcançar extremos de
beleza e de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade (HUIZINGA, 1938,
p. 11).
Hector Rodriguez, em um artigo que comenta Homo Ludens, afirma que as definições
de Huizinga de seriedade e jogo não são muito precisas; que apesar de serem aplicáveis
em muitos casos, em outros, no entanto, não se pode visualizar uma fronteira de
maneira alguma.
Homo Ludens não expressa, entretanto, a tese de que jogar [ou brincar] é, em
todos os aspectos, isolada de preocupações sérias. A fronteira entre o lúdico e o
sério é certamente real e amplamente aplicada, mas não bem definida em todos
os lugares, e sempre sujeitas à revisão. Em alguns casos, a fronteira não pode
ser marcada de forma alguma. Além disso, questões éticas sobre civilidade e
justiça são muitas vezes intimamente ligadas com o ato de jogar. Huizinga
afirma, por exemplo, que muitas formas de cultura séria se originaram a partir
de ações lúdicas. O lúdico está na origem da arte, religião, política, filosofia, e
da lei. É enganoso ver essas instituições em termos meramente funcionais,
como veículos para a transmissão de valores sociais ou de reprodução da coesão
social. A ação social é, em parte, motivada por um desejo de experiências
intensas de risco, incerteza, superação de si mesmo, desafio, etc. Estas regiões
da vida social atravessam a distinção entre o lúdico e o sério (RODRIGUEZ,
2006, tradução nossa).
78
Apesar de Huizinga trabalhar estas dicotomias não muito bem definidas entre seriedade
e não-seriedade, necessidades básicas e supérfluas; vida real e vida extraordinária, jogo
e não-jogo, – que até certo ponto são problemáticas – a sua noção de jogo não permite
classificá-lo como uma atividade ilegítima, tal como os psiquiatras e psicólogos que
condenam o uso dos videogames. Para ele o jogo não é verdadeiro nem falso, não é
virtuoso nem viciante.
O jogo não é compreendido pela antítese entre sabedoria e loucura, ou pelas que
opõem a verdade e a falsidade, ou o bem e o mal. Embora seja uma atividade
não material, não desempenha uma função moral, sendo impossível aplicar-lhe
as noções de vício e virtude (HUIZINGA, 1938, p. 9).
Castronova, um dos autores mais citados em estudos relacionados com MMOs (jogos de
interpretação de personagens online e em massa para múltiplos jogadores), argumenta
em The Right to Play (CASTRONOVA, 2004) que todos os seres humanos têm uma
necessidade fundamental de jogar. Para ele, o desejo de jogar é "enterrado
profundamente em nossa psique, bem abaixo do pensamento racional e, de alguma
maneira, um pouco acima da vontade de comer e fazer sexo", e se a necessidade for
insatisfeita, coisas terríveis acontecem (CASTRONOVA, 2004, pp. 202-203). Neste
artigo, ele defende uma lesgislação específica para proteger o círculo mágico do jogo
das regras “do mundo de fora”, desconsiderando seus efeitos em outros agentes e a sua
interpenetração prática no “não-jogo” ou “não-virtual”. Para definir o quê qualifica
como jogo, ele se refere a Huizinga:
Para Huizinga, nada pode ser um jogo se envolver uma conseqüência moral [...]
se alguma consequência realmente importa no final, o jogo acaba. De fato, o
único ato de conseqüência moral que pode acontecer dentro de um jogo é o ato
de acabar com o jogo, negando seu caráter de faz de conta [as-if], estragando a
fantasia [...] (CASTRONOVA, 2004, pp. 188-189, tradução nossa).
3. Desestabilizando categorias
Classificar o jogos eletrônicos como uma atividade de lazer, que não é produtiva, e
sobretudo, que não faz parte do mundo real é uma maneira por demais simples para
desqualificá-la. Iremos, a partir de agora, problematizar estas aproximações dicotômicas
entre lazer e trabalho, jogo e não-jogo, à luz de algumas teorias mais recentes junto com
a intervenção de alguns dos jogadores ditos viciados.
79
O próximo movimento é, agora, ampliar a discussão dos jogos para uma mais geral, o
lazer. Como afirma Elias (1985), o lazer é um conceito histórico de classificação de
atividades humanas, existente propriamente em nossas sociedades modernas, e não de
forma universal – apesar das próprias atividades existirem de forma equivalente.
Poucas sociedades humanas existem, se é que existe alguma, que não possuam
equivalente às nossas atividades de lazer, que não tenham danças, confrontos
simulados, exibições acrobáticas ou musicais, cerimônias de invocação de
espíritos – em resumo, sem instituições sociais que proporcionam, por assim
dizer, a renovação emocional por meio do equilíbrio entre os esforços e as
pressões da vida ordinária, com suas lutas a sério, os riscos e seus
constrangimentos (ELIAS, 1985, p. 74).
Deste modo, a idéia de lazer só pode ser pensada por oposição a uma determinada idéia
de trabalho – portanto, que se só pode ser construída em relação a um conceito de
trabalho específico: trabalho no sentido moderno, sendo geralmente este assalariado,
realizado fora do ambiente doméstico, dotado de uma jornada contabilizada em horas, e
o mais importante, organizado em um tempo próprio. Podemos dizer, então, que na
modernidade, separam-se as tarefas e os tempos de modo radical – uma atividade ou é
rigorosamente trabalho ou é puro lazer; ou é para ser realizada no tempo “ocupado” ou
no tempo “livre”.
Freyre afirmou que à medida que a máquina substituía o homem, a organização
do lazer tornava-se mais importante que a organização do trabalho. [...] Temia
não conseguir a compreensão de que, se o tempo livre era um problema sério
para os países desenvolvidos, para as nações que desejam progredir, a
concretização das potencialidades contidas nessas horas de folga era um
imperativo. A palavra do ilustre sociólogo pernambucano vinha de certa forma
em meu auxílio. [...] Acontece, porém, que nos países padrões do sistema
cultural em que nos inserimos, “tempo é dinheiro” e amar a vida no que ela tem
de belo e desinteressado, uma deformação ou um vício (FERREIRA, 1959).
Sendo assim, qual seria exatamente o ponto de choque das sociedades modernas com o
lazer? O que o lazer, e o videogame, mais especificamente, ofenderiam? A organização
do trabalho e lazer nas sociedades modernas, que seguiriam uma determinada lógica de
divisão de tempos, não seria, de alguma forma, ameaçada pelos jogos, que operariam
em regimes de tempo e espaço diferenciados? Uma vez que os jogos não obedecem a
máxima de que “tempo é dinheiro” e que, eventualmente, “invadem” o tempo do
trabalho, extrapolando o tempo do lazer que fora alocado para contê-lo; não estaria-se
ameaçando o próprio cerne da cosmologia moderna?
80
O problema não seria, então, o lazer em si mesmo; mas a prática de atividades
destinadas a serem executadas no tempo livre dentro do tempo de trabalho. Estaria aí
posto o perigo do excesso de lazer; ou o problema de tornar essas fronteiras mais turvas,
invisíveis, de difícil supervisão. Afinal, pensariam os modernos, como se poderia saber
quem está trabalhando e quem está desfrutando o tempo de lazer? Será que alguns estão
levando vantagens nas custas de outros? Colocadas estão questões, como, então, operar
de outra forma sem que os videogames sejam classificados arbitrariamente como
“irreais” ou de “fora deste mundo”?
Buscando sair destas visões catastrofistas, e também daquelas meras exaltadoras dos
jogos, devemos flexibilizar algumas destas divisões modernas (LATOUR, 1996) que
nos impedem de tratar a questão de forma mais complexa. A nossa sugestão aqui é diluir
estas categorias – lazer, trabalho e jogo – a partir de outros pontos de vistas teóricos,
pois, como argumenta Taylor (2006, p. 153): “Imaginar que podemos segregar essas
coisas – jogo e não-jogo, [...] virtual e real – não é só não entender a nossa relação com
a tecnologia, mas também a nossa relação com a cultura".
Um destes trabalhos que não trabalham com uma associação rígida entre trabalho e
seriedade; nem lazer e não-seriedade; é o de Robert Stebbins. Ele forjou o conceito de
Serious Leisure (lazer sério) que pode nos ser interessante para pensar estas questões.
Segundo o autor, o lazer sério:
(...) is systematic persuit of an amateur, hobbyst, or volunteer activity that
participants find so substantial and interesting that, in typical case, they launch
themselfs on a career centred on acquiting and expressing its specials skills,
knowledge and experience (STEBBINS, 2006, p. 448).
No entanto, apesar de avançar na discussão, Stebbins ainda continua operando em um
um vocabulário que mantém os conceitos de lazer e trabalho como categorias analíticas
de classificação de atividades, as quais ainda não atingem nosso objetivo derradeiro. A
seguir, nos aprofundaremos no trabalho do antropólogo britânico Tim Ingold (2000),
que adota uma perspectiva que chama de dwelling, que em oposição à commodity
perspective, rompe com as dicotomias modernas de tempo (tempo livre e tempo do
relógio), de atividade (lazer e trabalho), produção (arte e tecnologia/produção em
massa) e troca (sistema da dádiva e do mercado); para trabalhar com uma orientação à
tarefas (task-orientation) e habilidades (skills).
81
Em “Work, Time and Industry” (2000), Ingold, na tentativa de problematizar tais
dicotomias, retoma o que ele identifica como sendo o local e o tempo de sua formação:
o cenário das fábricas tayloristas e fordistas – nas quais os capitalistas, na tentativa de
maximizar a utilização da mão de obra, organizaram o tempo em unidades mensuráveis
e impuseram um tempo regrado para o trabalho. Com esta organização produtiva,
segundo Ingold, a rotina das pessoas foi regulada de forma abstrata em unidades como
“horas” e “minutos”, e, partir daí, gerada uma divisão entre o tempo que estas pessoas
deveriam utilizar para trabalhar (ou seja, o trabalho; não como uma atividade, mas como
um tempo) e o tempo que descansariam: o lazer.
Ingold faz menção ao clássico “Os Nuer” (EVANS-PRITCHARD, 1978), onde se
descreve que, na sociedade Nuer, a rotina é organizada de acordo com as tarefas a serem
realizadas e que, portanto, esta era a base para a mensuração do tempo. Ingold
argumenta que o mesmo acontece na sociedade chamada ocidental contemporânea:
quando se organiza o dia, está-se organizando as tarefas que serão postas em prática
durante este dia e, muitas vezes, quando queremos mensurar o tempo, utilizamos como
referência estas mesmas tarefas. Desse modo, divide-se a experiência temporal não
necessariamente em termos abstratos, mas por meio de tarefas.
O autor desconstrói, então, estas divisões, afirmando que, de modo análogo às
sociedades
ditas
“tradicionais”,
nas
sociedades
modernas
não
se
depende
necessariamente de “horas” e “minutos”. Além disso, postula que essa forma de
organizar o tempo não seria exclusiva do momento do lazer, mas se estenderia por todas
as dimensões da vida dos agentes. Chiquetto (2012) comenta que, por esta perspectiva
(dwelling), todos os atores são agentes no meio que habitam, reconstruindo este meio
ativamente durante sua existência. Assim, tanto o meio da casa quanto o meio do
trabalho oferecem diferentes possibilidades para a construção de relações com o outro,
para a criação e utilização das habilidades que são incorporadas durante a vida e por
meio das quais se compreende o ambiente em que se vive.
Uma vez que, para Ingold, a fronteira entre o trabalho e o lazer não é tão rígida quanto
possa parecer, do mesmo modo a relação entre tempo de trabalho e tempo livre também
parece ser mais híbrida do que postula a purificação dos modernos (LATOUR, 1996).
Não é todo o tempo de trabalho que é ocupado, dedicado às atividades produtivas – e
82
estas não são necessariamente repetitivas, maçantes e entediantes, mas, ao contrário,
podem conter componentes lúdicos e criativos. Assim como todo o tempo de lazer não é
exatamente livre, destinado ao puro descanso, desfrute ou prazer.
O que fazer, então, com estas classificações? Negá-las? Rodriguez (2006) recomenda
que não totalmente, pois elas seriam úteis e serviriam como boas aproximações em
muitos casos, mas não seriam feitas para funcionar como categorias absolutas:
Huizinga ressalta que o conceito de jogo, por vezes, não pode ser circunscrito
dentro de precisos limites conceituais. Homo Ludens raramente avança com
definições rígidas. A tentativa de Huizinga "definir" jogo em termos do círculo
mágico, por exemplo, não deve ser entendida como um conjunto de condições
necessárias e suficientes, mas como uma aproximação preliminar a certas
regiões de vida que resistem a uma categorização exata. Como um bom
historiador, Huizinga não se furta da ambiguidade. Seu estudo completo pode
ser visto como um esforço para falar o mais precisamente possível de categorias
e distinções que não podem ser claramente demarcadas. As definições são úteis
na medida em que sugerem tópicos comuns que perpassam manifestações
heterogêneas, mas elas não são destinadas a funcionar como categorias
absolutas. Assim, jogar, é sério tanto como não sério. A dificuldade está em
prestar atenção a importantes diferenças conceituais, mantendo nossas
categorias descritivas suficientemente flexíveis para acomodar a ambiguidade e
a imprecisão (RODRIGUEZ, 2006, tradução nossa).
Sendo assim, resta-nos mapear um pouco mais esta controvérsia e trazer à tona a
multiplicidade da explicação dos agentes que a tornam tão complexa – para tentar
compreender o que eles mesmos entendem por trabalho e lazer, por jogo e seriedade e,
qual é a relação, afinal, de tudo isso, com os videogames. Para isto, vamos agora nos
voltar para o que dizem principais agentes da controvérsia.
4. Jogando por lazer ou por trabalho? Os gamers e suas
classificações
Os jogadores de videogame constantemente relatam casos em que jogam por
intermináveis horas mesmo sem ter prazer na maior parte do tempo do jogo; e em
muitos casos fazem movimentos tão mecânicos e repetitivos que lembram o trabalho
nas fábricas fordistas. Para subir um nível num game de RPG (Role Playing Game) 39
39
Os jogos conhecidos como MMOGs (Multi Massive Online Games) e os conhecidos como MMORPGs
(Multi Massive Online Role Playing Games) são apontados como uma atividade de potencial adictivo
muito grande, desde a época dos antigos jogos de texto, conhecidos como MUDs (Multi User Domain).
Atualmente, o jogo mais conhecido é o World of Warcraft (WoW), jogo com tema sobre o universo de
J.R.R. Tolkien, que conta com 11,4 milhões de jogadores no mundo todo, segundo a Blizzard
Entertainment (BLIZZARD, 2012). Mas existem diversos outros jogos online que também são jogados
83
Online, por exemplo, o jogador deve matar monstros por centenas de vezes seguidas
apertando somente um botão, ou quando muito acionando alguns botões especiais. O
jogo pode se tornar chato, maçante, desinteressante, mas o jogador continua jogando.
Como explicar tal situação?
A partir do método etnográfico, buscaremos não exatamente “explicações”, mas
descrições mais complexas, por meio de uma entrada profunda nestes mundos dos
jogadores – a fim de que tais ações possam adquirir um significado próximo ao que os
próprios atores lhes conferem e nos permitam multiplicar as perspectivas e enriquecer,
por fim, a controvérsia que nos interessa. Assim prosseguiremos nesta seção. Um trecho
da famosa e divertida entrevista com o Anônimo da TP (ele não é anônimo, mas sim o
nome pelo qual é conhecido na Internet), personagem símbolo dos jogadores brasileiros
“viciados”, nos ajuda a pôr a questão.
Ae, ramela. Caralho, mano. Tá foda de ficar aqui no PC, na real. [Por quê?] Ah,
mano, tô jogando faz mó cara aqui, eu não saio aqui, mano. Tá fedendo pra
caralho, mó cheirão de presunto, tá ligado? Nego tá chiando pra mim tomar
banho, mas não dá, mano. Se eu sair aqui, como que eu vou upar nessa porra?
Em muitos destes jogos virtuais – denominados MMORPGs40 – “upar”, isto é, adquirir
pontos de experiência que deixarão o seu avatar (o seu personagem dentro do jogo)
mais forte – torna-se o principal o objetivo do jogador na “comunidade” virtual. Em
muitos casos, ter um personagem forte significa ter respeito dos demais, ganhar status,
obter companhia, favores, além de dar acesso a novas áreas e possibilidades do jogo.
em rede, com temáticas diversas. Esses jogos têm como características principais a imersão em realidade
virtual primorosamente simulada, o contato social intenso com outros jogadores e sua permanência independente do jogador, o mundo virtual continua existindo (SNODGRASS; LACY; DENGAH II et al.,
2011). Um MMORPG geralmente apresenta um lugar bem semelhante ao mundo real, mas com
componentes mágicos e fantásticos. Os jogadores podem se envolver em uma variedade de interações
com outros jogadores através de batalhas, comércio, vendas de itens valiosos, namoros e sexo virtual,
aventuras feitas pelos programadores. O objetivo principal no início é melhorar o personagem, adquirindo
armas e equipamentos. Com a interação social, os jogadores adquirem outros objetivos como participar de
clãs, guildas, campeonatos, coleções de itens, aventuras em grandes grupos, missões, etc. (FORTIM,
2004a) (FORTIM, 2013, p. 65).
40
O jogo o qual o Anônimo da TP aqui se refere, chamado Cabal Online, opera nesta lógica, mas muitos
outros de forma quase idêntica – World of Warcraft, Ragnarok Online, Ultima Online, Everquest, Grand
Chase, Priston Tale, Tibia, EVE Online, Guild Wars, Perfect World, entre outros. Tais jogos são ditos
pelos próprios jogadores como os mais “viciantes” entre todos e atraem a atenção de muitos especialistas
das ciências médicas que tratam da dependência, como Blinka e Smahel (2005).
84
Perseguindo este objetivo, o jogador terá de enfrentar missões e se aventurar por
florestas e cavernas (dependendo do tema do jogo), matando monstros, conseguindo
ítens especiais e, eventualmente, confrontando outros jogadores. No entanto, muitos
jogadores tentarão fazer estas mesmas coisas ao mesmo tempo – tudo se converte, pois,
numa disputa agonística que pode levá-los a exaustão. Evoluir um personagem leva
tempo. Subir um nível pode significar muitas horas de jogo, matando os mesmos
monstros exatamente da mesma maneira. Obter dinheiro no jogo também geralmente é
duro, e exige que o jogador consiga ítens demandados pelos demais e que faça boas
trocas. Ainda mais, conseguir um ítem raro pode ser tão difícil que, às vezes, pode
demorar mais de um ano de procura em vão. Por conta disso, muitos relatam que estão
trabalhando nos seus (ou com os seus) personagens. Porque não levá-los a sério?
Também não trabalhamos offline, pelo menos por um lado, para conseguir, além do
ganho material, os mesmos status, respeito e companhia?
De certa maneira, se ainda continua sendo relativamente válida a proposição de
Huizinga de que o jogo não produz nada – no sentido estritamente material, palpável, tal
como alimentos – não o é no sentido imaterial. A economia, o marketing, a sociologia e
a antropologia há tempos reconheceram o valor do trabalho intangível ou simbólico.
Muitos jogadores produzem itens, casas e muitas coisas inimagináveis nos jogos online;
e mesmo neste dito mundo offline os jogadores vendem seus personagens, são
contratados como jogadores profissionais e são patrocinados por empresas. Seria, apesar
de tudo isto, o jogo somente lazer? Seria este pura liberdade? O trabalho seria de todo
falso? Responder afirmativamente a estas questões seria descartar tudo aquilo que os
gamers praticam e nos contam acerca de sua experiência – apesar de não se tratar, do
mesmo modo, de respostas únicas, mas ao contrário, extremamente controversas.
4.1 Divertir-se ou conquistar as metas? O jogador curtidor e o jogador
apelão
Entre muitos jogos, aparece a dicotomia entre o jogador que utiliza o jogo como
supostamente seu lazer – seu objetivo é divertir-se, desfrutar, socializar com outras
pessoas e não se importa muito em cumprir as metas do jogo, em se tornar mais
poderoso ou utilizar as estratégias mais adequadas para que consiga vencer os desafios –
e o jogador “apelão” (ou hardcore), que faria todo o oposto, não importando nada mais
85
senão ser o melhor – este joga para “upar”, ser forte e rico. Condenando esse tipo de
jogador, Abadi, um paladino em World of Warcraft, fala:
Alguém aí já parou para ler a história do WoW? Já parou para ler algumas
quests? Sem querer ser muito roleplay, mas as quests são muito massa, véio! É
divertido pensar que seu personagem irá evoluir ajudando e rodando o
continente inteiro fazendo trabalhos. Que entediante ficar numa cidade voando e
voando esperando aparecer um tank para fazer aquela dungeon pela décima vez!
Talvez esse seja o motivo de muitos players abandonarem o jogo. [...] Pra mim,
para um verdadeiro jogador de WoW upar é de menos! Parem de se
preocuparem com seus chars que irão ficar [nível] 85! Aproveitem o momento e
conheçam os lugares desse jogo que por sinal tem 30 GB! Vivenciem e chorem
para o massacre do campo taurajo!
A seguir recupero uma discussão mais larga, porém interessantíssima, sobre os
objetivos do jogo Ragnarok Online, debatidos por seus membros no fórum oficial do
bRO (Brasil Ragnarok Online), que seguem a mesma linha: “upar”, se divertir, ganhar
respeito, explorar diferentes ambientes... O que, afinal, buscamos no jogo?
Meu objetivo em qualquer jogo é a diversão. Acho que o Ragnarok toma uma
trilha meio errada ao estimular o up intenso e demorado (antes que me
critiquem, é demorado pegar 150, tanto quanto era pegar 99 trans). O level
deveria ser um dos meios do jogo, e não um fim. Upar pode até ser divertido
sob certas condições, mas ficar no point & click pra upar – seja matando
tartarugas ou magmarings – não me empolga nada. Me senti cansado só de
pensar em ter que upar mais um monte de level de novo, e sinceramente, talvez
eu nunca peguei 150. O que eu esperava para o jogo é que investissem numa
diversão de verdade pra quem já tem level máximo, e não que tudo ficasse
naquela "agora que eu peguei level máximo, vou criar outro char, porque o que
importa nesse jogo é upar". – Festa Brasileira.
Objetivos... É uma pergunta bem interessante de se fazer, bem o objetivo real do
jogo no caso, seria chegar ao nível máximo do jogo, como todos os outros, mas
tem pessoas como eu que fazem metas, eu já tive muita esperança, por exemplo,
de me tornar Suma-Sacerdotisa, aquilo pra mim era tudo, mas com o passar do
tempo aquilo parecia que se distanciava cada vez mais de mim a cada % que eu
conseguia por incrível que pareça, eu tinha perdido as esperanças, até largar de
uma vez eu larguei, mas como eu disse o que não me falta são pessoas me
apoiando pra seguir em frente. Bom, meu objetivo agora seria me reestruturar
para poder atingir o 99, mas isso também vai ser um grande desafio. Mas eu
prometi a mim mesma que não iria desistir não importa o quão difícil fosse. Até
por que vou ter que conciliar um TERCEIRO ANO DO ENSINO MÉDIO com
o Ragnarök, ou seja, mais tempo fazendo temas, trabalhos e coisa e tal e menos
tempo no bRO, mas o que não me falta é organização. Enfim, objetivos não me
faltam, é só passar essa tempestade e eu vou arrumar essa Sacerdotisa
maltratada que eu to jogando – Sakura.
Eu upei a vida inteira praticamente de mob, e ter que matar de 1 em 1 monstro
com Golpe Fulminante é frustrante. Ah, claro, eu preciso de uns 4 golpes e os
monstros morrem, o risco de eu morrer é ínfimo e upo mais rápido do que antes,
86
mas está tedioso. Bom, a única coisa que penso é ficar treinando, treinando,
treinando... Eu sei que para o personagem ficar "do jeito que eu quero" vai
demorar muito (lá pelo 145, acredito eu). Até fiquei animado com algumas
habilidades novas e a nova configuração de mapas, mas está repetitivo. Meu
objetivo mesmo é moldar o personagem do jeito que quero pra experimentar as
features do jogo com os amigos. Tem sempre algo bacana pra fazer em
conjunto, sejam quests extensas, subir Torre de Thanatos ou a Sem Fim, as
Instâncias, os MVPs, talvez uma WOE, ajudar outros. Cada dia que passa eu
acredito mais que meu objetivo não vai ser definido só por mim, mas a única
certeza que eu tenho é de continuar treinando. – Sengoku
Bom, sempre quis me divertir, pena que poucos pensem assim, up hard cansa
mesmo, mas não vou parar agora que resetei pela primeira vez. Vou ficar forte e
jogar junto com meus amigos. – Tsu.
Pra mim, enquanto for divertido irá durar. Claro, vou ter que fazer uma pausa
(vestibular e pans), mas enquanto for agradável eu vou jogar. A verdade é que o
up pra mim não importa muito. O que eu gosto é fazer coisas em grupo e rir
bastante. A maior parte dos meus contatos já virou 3-x, mas eu acho que ficar
upando que nem louco é bobeira. E fora que quero fazer as quests do éden pra
pegar aquele hat! – Yuukorin.
Meu objetivo neste momento é upar e alcançar 99. Também acho frustrante um
jogo visado no "entretenimento" e "diversão sem limites no Thor e Odin", você
ficar horas e horas rodando um mapa, vendo os mesmos monstros, matando
com mesmas skills, usando mesmos itens, passando a mão na barrinha de
experiência, raramente usando chat. Isso chega a ser deprimente, mas enfim
quase todos os MMORPGs você tem que ficar no mesmo mapa ou área upando
desse modo. – NickStarMaster.
Depois que eu comecei a jogar WoW eu mudei totalmente as minhas
concepções de o que é se divertir num RPG. Eu já não me divertia faz tempo no
RO e não sabia o que estava faltando. O jogo SÓ COMEÇA depois que você
chega ao level máximo. Infelizmente, a grande maioria dos RPGs anda
copiando o WoW em tudo (como esse sistema de party finder aí), menos no que
realmente importa. – Festa Brasileira.
Meu único objetivo no bRO é jogar enquanto meus amigos jogarem, que é o
que me diverte atualmente no jogo. Não é mais tão interessante jogar sozinho,
embora com o renewal isso esteja até legal. – Waltz.
Existem tipos de diversão: existem pessoas que se unem para evoluírem seus
chars e poder alcançar novos poderes e vê-los crescer, principalmente se
divertindo no processo. Outros fazem exatamente a mesma coisa para poder
avacalhar a diversão dos outros, que por sinal expressam claramente o dito
popular "espírito de porco". Deixando isso de lado, cada um tem um tempo
próprio a que se dedique ao Ragnarok. Muitos estão na fase do pré/iminente
vestibular, outros trabalham, têm faculdade, assim dificultando algumas
possibilidades de diversão. O que define o jogo e seu objetivo pessoal é somente
você! Atualmente ele é minha válvula de escape do cotidiano agitado, aonde
encontro alguns amigos e juntos nos divertimos um bocado. – Leinad.
Hoje a tarde aqui na empresa, fiquei jogando e anotando alguns defeitos, então
resolvi criar um grupo para ver como o jogo se comporta em tais situações, foi
87
quando me deparei que muitos players aqui não estão nem aí para os bugs e
problemas do jogo, tentei umas 17 vezes criar um grupo e sempre me davam
uma resposta do tipo "Aff, vai encher outro, eu quero upar", eu fico me
perguntando o que passa na cabeça desses carinhas, acham que o char que eles
estão upando vai continuar no servidor depois do closed beta? Então peço uma
coisa para esses players, não se esqueçam: o objetivo principal aqui é relatar os
bugs para a LUG [empresa de jogos], pois quando o closed acabar, seu char vai
junto, e para quem se acha o melhor do melhor do mundo em matar low level,
pare de perturbar quem está preocupado nos defeitos do jogo, e pare de abusar
dos bugs, isso não te faz ser top rank, apenas deixa claro o nível da sua
noobisse, sem mais. – Delatroixx.
Acho que o objetivo no jogo, pra todo mundo, é virar classe 3rd nível 150.
Lembro até hoje quando eu era 2-1, fiz quests repetíveis até o nível 85 e aí fui
upar. Eu não tinha a MÍNIMA noção de up, não sabia nada sobre Ragnarok e só
consegui upar pro 86 depois de 10 dias. Eu achava que quando eu pegasse 99 eu
ia dar uma volta olímpica por São Paulo, ia comemorar um título, fazer tudo que
eu tinha direito. Mas com o passar do tempo, não só eu, mas todo mundo
descobre que é uma coisa muito normal, nada muito maravilhoso. Quando eu
cheguei lá, só dei um sorrisinho e avisei pro clã que tinha pego 99. Depois disso
veio o trans, pegar 99 de transclasse foi MUITO mais fácil, eu já tinha mais
noção do jogo, já sabia onde eu iria upar e peguei 99 muito mais rápido. Hoje
com as classes 3, eu acho que meu objetivo é esse, alcançar o nível 150, cumprir
minhas promessas no servidor e aí eu penso se eu continuo com outros
personagens ou se eu paro de jogar. Depois que tudo que todos passamos,
sabemos como lidar com as dificuldades no jogo, cada vez mais novidades
seriam mais objetivos a serem alcançados, e por aí vai. Novidades no jogo
seriam a essência para os velhos players, e eu acho que merecíamos isso. –
SouL.
Fica evidente por todos estes comentários que os jogos não têm um único uso nem uma
única finalidade; mas podem ser apropriados de diversas maneiras pelos jogadores. Há
formas que, sim, parecem se aproximar ao que os modernos chamam de trabalho e
outras que se aproximam do que chamam de lazer, mas sustento que ainda sim não é
proveitoso continuar operando com estas categorias. Vamos ver, no próximo caso, outra
disputa muito controversa que colocará estas classificações definitivamente em cheque.
4.2 Entre o trabalho dos sonhos e a desconsideração moral: os
jogadores profissionais de videogame
Os jogadores profissionais de videogame existem em diversos países, no entanto, são
vistos de formas muito distintas ao redor do mundo. Comenta-se que nos países
asiáticos orientais, como Japão, Coréia do Sul e China, tais jogadores são pessoas
extremamente valorizadas, online e offline, pela comunidade nacional. Em outros
países, principalmente nos do Ocidente, e em especial, o Brasil (onde concentro minha
análise), os jogadores profissionais são acusados de não trabalhar “de verdade”, de
88
viverem na “moleza”, de sofrerem de “falta do que fazer” e de “não terem vida” – são
invariavelmente chamados de alienados, nerds, virgens e punheteiros. Retrato aqui
algumas brigas em comentários de notícias e listas de discussões online sobre o tema:
É realmente, lá eles não tem muito o que fazer da vida... são meio alienados,
com certeza – diz Diego.
Falta do que fazer. – diz Rafael.
Meio que sem-vida. – diz Vinícius.
Ficar só jogando não dá, tem que praticar esporte, estudar. – diz Madnessrsd.
Na boa, jogar videogame e ganhar pra isso é um sonho, mas puta trampo de
vagabundo, hein. – escreve KillerST.
Bando de playboy patrocinado pelos pais, enquanto eu to ralando por aqui no
meu curso de programação de jogos, para poder no futuro quem saber poder
fazer o mesmo... – escreve Matador-CD.
Faz um mês que eu vendi minha lan-house, e assim como todo “lan gamer” eu
era eu viciado em World of Warcraft, Warcraft e Starcraft, fora os famosos
jogos de FPS [First-Person Shooter], tipo Counter-Strike e Modern Warfare 2.
Jogava sempre desde manhã até a noite. Agora, depois da venda tenho que
levantar cedo pra trampar em uma empresa no setor administrativo. Levantar
cedo e trampar de verdade é muito mais difícil, mas tenho que concordar que
não fazer nada e só jogar é realmente enfiar a vida no cu. Acordem nerds,
vamos trabalhar de verdade e parar de ficar fazendo da vida um eterno joguinho,
porque na vida real, joguinho não te ajuda em nada! – diz Felipe.
Em contrapartida, outros jogadores elaboram respostas afirmando que jogar videogames
profissionalmente é sim uma atividade justa e um trabalho propriamente dito –
inclusive, algumas vezes, o trabalho dos sonhos. O estigma sexual também tenta ser
convertido em algo positivo, inspirado nas culturas orientais.
Como "falta do que fazer" se eles estão FAZENDO alguma coisa? Você acha
que um cara que joga 10 horas por dia não considera isso um trabalho? Se ele
for patrocinado e pago, porque não fazer? – retruca Vismael.
Sem vida? Sem vida é quem acorda cedo, passa o dia trampando e só volta pra
casa à noite. Queria eu ter uma vida de jogador assim. – diz Dario.
Isso é a vida que eu pedi a Deus. Ganhar a vida jogando e ainda ser
homenageado por isso. Mano, quem não quer isso? – Lucas.
Quem fala que os caras são vagabundos morrem de inveja e queria estar no
lugar deles, porra pra ta lá é um dom mano, os caras jogam pra caralho, queria
eu, ganhar dinheiro, viajar vários países só jogando videogame. Ia ser massa! –
escreve Nieow.
89
Vida de gamer não é mole não, encarem a realidade. – escreve gdc23.
Gamer profissional já é realidade há anos. Se um cara precisa passar 10, 15
horas por dia treinando é porque a profissão exige isso. Ele é patrocinado como
qualquer outro atleta e respeitado por milhares de fãs. A cultura na Coréia do
Sul é outra. – Luiz Gustavo.
O lance é que ninguém faz o comentário "sem-vida" para o cara que passa 15
horas por dia treinando dentro de um ginásio. Eu não entendo como pessoas que
jogam videogame ainda têm preconceitos bobos contra videogames. Starcraft é
gigante na Coréia do Sul, lá esses caras fazem dinheiros e ficam famosos. Um
campeonato atrai multidões. Recentemente teve até um escândalo que virou
caso de polícia, pois descobriram jogadores que estavam perdendo
propositalmente por causa de acordos feitos com apostadores. Ou seja, eles
treinam o dia inteiro por que ganham dinheiro com isso. – Fernando.
Sugiro que vocês procurem a namorada do Grubby, jogadora de Starcraft,
grande rival do Moon. Orientais em geral são tímidos e reservados, não
significa que são nerds. Campeonatos da Ásia são extremamente badalados,
diferente do Brasil. Esses putos têm fãs (incluindo mulheres). Certamente eles
se dão bem melhores que a maioria dos brazucas baladeiros. – Juan.
Condenando ou louvando, os jogadores de videogame retratam uma mudança de
envolvimento com os jogos a partir de sua profissionalização: jogar deixaria de ser lazer
– desfrute, brincadeira – para ser trabalho – duro, repetido e sério.
Ah, na boa, acho que jogar desse jeito perde toda a graça. É como assistir um
filme em Fast Forward. – diz Marc.
Eu sempre sonhei em ser um gamer profissional, mas não sabia que teria que
desistir da vida. Eu provavelmente irei continuar um amador mesmo. – diz
Thomas.
Daigo Umehara, melhor jogador do mundo de jogos de luta, chamado Pelé dos
Videogames pela reportagem do site TechTudo que lhe entrevistou; quando perguntado
sobre a situação de que, no Brasil, os esportes eletrônicos não seriam encarados com
seriedade, respondeu:
Sabe, vivemos a mesma situação por muito tempo no Japão. Lutamos contra a
noção de que “um videogame é apenas um jogo, nada sério”. As pessoas nunca
encararam isto com seriedade. Então eu entendo a dificuldade pela qual o
brasileiro está passando. Mas a situação no Japão mudou vagarosamente ao
longo dos anos. Eu verdadeiramente acredito que isto pode mudar no Brasil
também.
Este assunto está bem documentado na etnografia intitulada “Unidos pelo Controle” de
Daniel Costa Valentim (2012) sobre os jogadores profissionais de futebol digital,
90
especialmente na seção “A gente era tudo menino”. O principal problema dos jogadores
profissionais seria que esta mudança de envolvimento não seria reconhecida pelos
demais atores, e, portanto, desvalorizada sob o argumento de que a pessoa não
trabalharia de verdade e ganharia a vida na moleza, gerando falta de apoio, patrocínio e
mesmo de reconhecimento de suas habilidades.
Enfim, poderíamos aqui multiplicar os exemplos, mas acredito que para os objetivos
desta breve discussão já conseguimos coletar material suficiente para impactar nossa
reflexão teórica e encaminhar algumas conclusões sobre a proposta desta seção.
5. Por graus de comprometimento
Começamos discutindo os conceitos de jogo, lazer e trabalho a fim de entender porque,
afinal, os jogos são considerados – pelos terapeutas e por muitos outros atores – como
uma atividade ilegítima passível de geração de comportamento dependente, e o estudo e
o trabalho como as únicas atividades legítimas; estas não pensadas, em geral, como
adictivas. O ponto, afinal, é que, ao praticar uma Antropologia da Ciência e da
Modernidade, não devemos tratar as categorias jogo, lazer e trabalho como categorias
analíticas, mas como categorias nativas, enunciadas pelos agentes para inserir tarefas
em um sistema de classificação propriamente moderno e conferi-las de uma carga
simbólica as quais estas categorias evocam.
Uma vez que os jogos nos abrem para a experiência do risco, confiança,
dependência, vulnerabilidade, fatalismo, dependência, incerteza e violência,
jogar pode, assim, nos possibilitar novas formas de subjetividade e interação
que surgem por meio de modificações experimentais da vida cotidiana
(RODRIGUEZ, 2006, tradução nossa).
Tampouco devemos procurar medir as atividades pelo prazer ocasionado por sua
execução. Primeiro, porque isto gera uma grande dificuldade de mensuração por meio
do uso das técnicas geralmente utilizadas em pesquisas sociais. E também, porque foge,
ao meu entender, dos objetivos das pesquisas próprias das áreas de sociologia e
antropologia, e aproxima-se da metodologia de pesquisas psicológicas. É claro que o
prazer experienciado por determinadas atividades tem estreita relação com sua
conotação social. No entanto, ela não resolve o nosso problema.
O jogador derivaria prazer da mera prática desta atividade ou do cumprimento das
91
metas conseguidas por meio da prática de tais atividades, tal como ver o seu
personagem subir um nível? Ficam expostas diversas questões, mas a oposição
lazer/trabalho permanece problemática, pois para o jogador esta atividade pode adquirir
um sentido muito próximo ao que entendemos por trabalho nas sociedades modernas;
enquanto pode ser classificado como lazer para alguém que esteja observando o jogo de
fora.
Em sintonia com as ideias de Chiquetto (2012), sugiro, por sua vez, utilizar como
categoria analítica o conceito de graus de comprometimento; como uma forma mais
adequada para medir o engajamento dos agentes em cada tarefa cotidiana (na
perspectiva de Ingold) e também para elencar as suas prioridades. Não está se tratando
aqui de um engajamento individual da pessoa com a tarefa, mas de um
comprometimento social, que considera toda a agência de todos sobre esse um e desse
um sobre todos os demais.
É importante ressaltar que todas, absolutamente todas, as tarefas são sociais –
em relação com humanos ou não humanos (apud LATOUR, 2005) – e nenhuma
ação é inteiramente desprovida de compromisso (em nota: mesmo essa
mensuração entre mais e menos compromisso deve ser também problematizada,
mas como se trata de um discurso amplo e através do qual os agentes organizam
suas ações, torna-se fundamental para a análise da organização das tarefas no
tempo e no espaço) (CHIQUETTO, 2012).
As perguntas mais frutíferas seriam: que associações estariam levando uma pessoa fazer
tal coisa? À que isso está se ligando; a que pessoas, a que coisas, a que ideias, a que
recursos materiais, a que tudo o mais. A ideia é desvendar essa rede de agenciamentos,
mais do que descobrir uma causa. E investigando o conjunto de atividades das pessoas,
medindo as suas prioridades, podemos chegar a compreender melhor o seu cotidiano do
que mantendo como instrumento de análise a dicotomia trabalho/lazer e tudo aquilo de
mais problemático que esta oposição carrega consigo.
92
Plano da dissertação
Índice dos capítulos
Introdução – Por uma perspectiva da Antropologia da Ciência e da Tecnologia
A controvérsia
O imobilismo e a guerra das ciências
Videogames na contemporaneidade
Dependência de games: um breve histórico
Games e drogas: metáfora ou metonímia?
De atores a jogadores: notas para uma teoria da ação
Mapeando controvérsias: notas metodológicas
Constituindo um parlamento das coisas
Cosmopolíticas e cosmopolitismos
A teoria-ator-rede: por uma antropologia das associações
A pesquisa de campo: técnicas e tecnologias
Antropologia cibernética e a etnografia virtual
Capítulo 2 – Por dentro da rede: o conhecimento médico
A incerteza sobre a determinação do vício
Modos de classificação do jogador como dependente
Dependência: conceitos e classificações
Os componentes centrais da dependência
Dependências químicas, comportamentais e tecnológicas
Apresentando teorias, a gramática das ciências
Modelo cognitivo-comportamental
Modelo neuropsicológico
Teoria da compensação
Fatores Sociais
93
Reflexão sobre o culto moderno da ciência médica
Capítulo 3 – O sério e o lúdico: repensando as categorias lazer e trabalho
Delineando associações: entre usos legítimos e ilegítimos
Discutindo conceitos: jogo, lazer e trabalho
Desestabilizando categorias
Jogando por lazer ou por trabalho? Os gamers e suas classificações
Por graus de comprometimento
Capítulo 4 – O real e o virtual
Videogame e Internet: objetos da mesma natureza?
O avatar: a construção da corporalidade virtual ou a negação do corpo?
Esportes e videogames: entre o sedentarismo e o controle de tensões
Sentidos em jogo: comunicação virtual e comunicação face a face
Realidades em jogo: anonimato e relacionamentos nos games online
Circuitos virtuais: uma categoria analítica
Capítulo 5 – Por dentro do jogo: explorando o círculo mágico
Relações entre videogames, jogadores e familiares
Construindo realidades: o conhecimento dos desenvolvedores de jogos
Mecanismos de Recompensa
Teoria do Fluxo
MMORPGs: regimes multidimensionais de tempo e espaço
Videogames como forma de viver fora deste mundo
Considerações Finais
Desestabilizando a taxonomia moderna
Recompondo os mundos reais e virtuais
Referências
Anexos
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Título e resumo dos capítulos
Introdução: Videogames em perspectiva: por uma Antropologia da Ciência e da
Tecnologia
Na introdução iremos descrever de forma inicial a controvérsia que está sendo
abordada, expondo os objetivos e objetos desta pequisa para o leitor. Apresentaremos a
chamada guerra das ciências, abordando a incapacidade de encontrarmos soluções
adequadas por meio das velhas oposições da Ciência Moderna, tais como: natureza e
sociedade, sujeito e objeto, humanos e não-humanos. Em seguida faremos um breve
histórico sobre os videogames e o surgimento da tentativa de abordagem de relações
intensas com os videogames enquanto doença psíquica; passando por atores importantes
na controvérsia como a Associação Americana de Psiquatria e o seu documento DSM
(Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), para enfim, discutir em que
medida podemos tecer comparações entre videogames e drogas.
A proposta desta introdução é apontar a especificidade teórico-metodológica desta
pesquisa, que a diferencia das abordagens psiquiátricas e psicológicas (ou de forma
mais ampla, de uma perspectiva disciplinar da saúde), até então dominantes nas
abordagens científicas do tema; além das pesquisas dos chamados “game studies”.
Apresentaremos conceitos como o mapeamento de controvérsias, a teoria do ator-rede,
o parlamento das coisas, cosmopolítica e cosmopolitismos, apontando para a quebra das
dualidades “natural” vs. “social” presentes nas ciências de caráter universalista. Numa
tentativa de sair desta paralisia provocada pela chamada “guerra das ciências”,
buscaremos unir novamente os polos natural e artificial, do “dado” e do “construído”,
para praticar uma antropologia das associações, como proposto por Bruno Latour.
Entraremos no mérito das etnografias virtuais e na recém-proposta Antropologia
Cibernética a fim de apontar as qualidades teórico-metodológicas possibilitadas por este
tipo de abordagem.
Capítulo 1: Por dentro da rede: o conhecimento médico
A proposta deste capítulo inicial consiste em um mapeamento parcial dos distintos
modos de classificação, métodos de diagnóstico e tratamento acerca da dependência de
videogames. Apoiando-se na teoria do ator-rede de Bruno Latour, busca-se constituir
um parlamento das coisas a fim de descrever a variada semântica de noções de
95
dependência e de vício enunciadas e praticadas pelos variados sujeitos envolvidos na
controvérsia, principalmente por cientistas de diversas áreas (psiquiatria, psicoterapia) e
teorias acadêmicas, além dos próprios jogadores. Junto a estes diversos sujeitos, buscarse-á mapear as práticas investigando a maneira pela qual os diversos saberes científicos
sobre a dependência de drogas associam-se a outros elementos, como as dependências
comportamentais, que incluem, principalmente, a dependência de jogos de azar e as
dependências tecnológicas. Passaremos por uma discussão das principais correntes
teóricas que abordam o assunto, tal como o modelo cognitivo-comportamental, o
modelo neuropsicológico, a teoria da compensação e os fatores situacionais, numa
tentativa de desestabilizar os seus pressupostos e ressaltar os elementos colocados em
controvérsia entre os diferentes atores. Ao costurar este cruzamento de perspectivas a
partir das práticas, discursos e classificações dos sujeitos, buscaremos multiplicar as
possibilidades de traçar o rastro destas intensas conexões dos homens com os
videogames.
Capítulo 2: O sério e o lúdico: repensando as categorias lazer e trabalho a partir
dos videogames
O nosso interesse neste capítulo é investigar o aspecto lúdico dos jogos e tecer uma
problematização acerca da dependência de videogame enquanto jogo, colocado como
oposto ao trabalho. O quanto a ética moderna, ou seja, o conjunto de valores da vida
humana voltada para o trabalho (que utiliza uma determinada concepção de trabalho),
que, por oposição ao lazer, contribui para a produção da ideia de um jogador viciado em
um falso mundo, o chamado “mundo dos games”. Esta não é uma simples questão, pois,
embora partilhem características comuns da esfera lúdica, todos eles se situam em
diferentes redes de associações. Mas de algum modo, o jogo, numa concepção mais
ampla, é entendido como lazer, e inserido numa categoria chamada “tempo livre”
(considerado como lazer não produtivo) em oposição à categoria “tempo do trabalho”
nas sociedades modernas. O objetivo desta seção é investigar as associações entre jogo,
lazer e trabalho; e partir das problemáticas levantadas pelos videogames e seus
jogadores a partir da etnografia, rever a utilização destes conceitos para verificar a
validade de seu uso para esta pesquisa. Nas conclusões, propomos um modelo para
investigar o engajamento humano em suas atividades cotidianas a despeito de serem
classificadas como lazer ou trabalho, mas a partir de graus de comprometimento.
96
Capítulo 3: O real e o virtual: mundos distintos?
Neste capítulo, pretendemos abordar o aspecto virtual (ou da comunicação mediada por
computador) da dependência de jogos eletrônicos. Exploraremos os pontos de contato e
afastamento entre as dependências de internet e de videogame. Em seguida,
destrincharemos
controvérsias
específicas
sobre
corporalidade,
sensitividade,
imaterialidade, comunicabilidade e anonimidade presentes nos enunciados acerca da
dependência. Os “mundos virtuais” seriam realidades apartadas, ou até mesmo falsas,
do que se entende por “vida real”? A partir da etnografia coletada em campo, buscar-seá descrever o sentido do que se entende por realidade por diversas perspectivas
presentes na controvérsia, como os gamers, seus parentes, desenvolvedores e cientistas.
Buscaremos uma diferenciação dos jogos eletrônicos dos jogos supostamente naturais
ou esportivos e proporemos o conceito de circuitos virtuais para lidar com a emergência
de realidades mediadas por computador.
Capítulo 4: Por dentro do jogo: explorando o círculo mágico
No capítulo derradeiro pretendemos descrever de forma mais detalhada a experiência do
jogador e compreender os significados de suas relações mediadas pelos videogames,
ressaltando a importância de conhecer as suas realidades. Neste sentido, buscaremos
descrever aquilo que é mobilizado pelos games e extrair algumas regularidades entre os
diferentes casos. Iremos mapear as disputas envolvendo os ambientes de jogo, em
relação à casa (ou LAN House) aos familiares, cônjuges e demais pessoas afetadas pelo
uso. Também iremos adentrar os mundos dos MMORPG, apontados pelos próprios
jogadores como os casos mais frequentes de dependência. Por fim, traremos à tona os
conhecimentos dos desenvolvedores de jogos sobre os mecanismos de recompensa e a
teoria do fluxo, que propõem uma relação entre o nível de aprendizagem do jogador e
nível de dificuldade, que mantém a atenção no jogo por mais tempo possível.
Conclusão: Desestabilizando a taxonomia moderna
Na conclusão, esboçaremos uma reflexão sobre a aproximação entre videogames e
drogas, apresentando propostas para uma aproximação entre conhecimentos científicos
e realidade dos jogos virtuais. Pretendemos destrinchar a fundo a taxonomia moderna,
questionando certas práticas cientificas por dentro da própria Ciência para, a partir do
trabalho de campo, enfim propôr abordagens alternativas à medicalização da questão.
97
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