GUILHERME PINHO MENESES VIDEOGAME É
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GUILHERME PINHO MENESES VIDEOGAME É
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL GUILHERME PINHO MENESES VIDEOGAME É DROGA? CONTROVÉRSIAS EM TORNO DA DEPENDÊNCIA DE JOGOS ELETRÔNICOS Relatório apresentado ao Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social da Universidade de São Paulo para o Exame de Qualificação do curso de Mestrado. Orientador: Prof. Dr. Stelio Alessandro Marras São Paulo 2013 Meneses, Guilherme. Videogame é droga? Controvérsias em torno da dependência de jogos eletrônicos. Guilherme Pinho Meneses, São Paulo, 2013, 90 p. Exame de Qualificação (Mestrado). Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social. Título em inglês: “Is videogame a drug? Controversies surrounding the electronic games addiction”. 1. Videogame 2. Drogas 3. Dependência 4. Virtualidade 1 BANCA EXAMINADORA PRESIDENTE DA BANCA Prof. Dr. Stelio Marras Professor Afiliado ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). TITULARES Prof. Dr. Theophilos Rifiotis Professor Afiliado ao Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani Professor Afiliado ao Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). SUPLENTES Prof. Dr. Gilson Schwartz Professor Afiliado ao Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Prof. Dr. Renato Sztutman Professor Afiliado ao Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). 2 Resumo A proposta deste estudo consiste em um mapeamento parcial da controvérsia sobre a dependência de videogames, em especial, de uma discussão sobre os seus distintos modos de classificação, métodos de diagnóstico e tratamento. Apoiando-se na teoria do ator-rede de Bruno Latour, busca-se constituir um parlamento das coisas a fim de descrever a variada semântica de noções de dependência e de vício enunciadas e praticadas pelos variados sujeitos envolvidos na controvérsia: os próprios jogadores; pais, cônjuges e demais pessoas próximas a estes jogadores; desenvolvedores de games; cientistas de diversas áreas (psiquiatria, psicoterapia) e teorias acadêmicas. Junto a estes diversos sujeitos, buscar-se-á mapear as práticas investigando a maneira pela qual os diversos saberes científicos sobre a dependência de drogas associam-se a outros elementos, como as dependências comportamentais, que incluem, principalmente, a dependência de jogos de azar e as dependências tecnológicas, as quais se imbricam na construção da ideia do jogador “viciado” em videogames. Passaremos por uma discussão das principais correntes teóricas que abordam o assunto, tal como o modelo cognitivo-comportamental, o modelo neuropsicológico, a teoria da compensação e os fatores situacionais, numa tentativa de desestabilizar os seus pressupostos e ressaltar os elementos colocados em controvérsia entre os diferentes atores. Ao costurar este cruzamento de perspectivas a partir das práticas, discursos e classificações dos sujeitos, buscaremos multiplicar as possibilidades de traçar o rastro destas intensas conexões dos homens com os videogames. Palavras-chave: videogames; dependência; drogas; antropologia da ciência. 3 Índice Introdução à pesquisa .................................................................................................... 6 1. Objeto foco do trabalho ...................................................................................... 6 1.1 A controvérsia ................................................................................................. 6 1.2 O imobilismo e a guerra das ciências ............................................................... 6 1.3 Videogames em perspectiva ............................................................................ 9 2. Questões e objetos da pesquisa ......................................................................... 11 2.1 As retóricas do vício ...................................................................................... 11 2.2 Videogame e seu aspecto lúdico .................................................................... 14 2.3 Videogame e seu aspecto virtual .................................................................... 16 2.4 Games e drogas: metáfora ou metonímia? ...................................................... 17 3. Pressupostos Teóricos ....................................................................................... 20 3.1 De atores a jogadores: notas para uma teoria da ação ..................................... 20 3.2 Constituindo um parlamento das coisas ......................................................... 25 3.3 Mapeando controvérsias: notas teórico-metodológicas ................................... 28 3.4 A antropologia cibernética e a etnografia virtual ............................................ 30 4. Procedimentos Metodológicos........................................................................... 31 4.1 A pesquisa de campo: técnicas e tecnologias.................................................. 31 4.2 A inserção do pesquisador na controvérsia ..................................................... 34 5. Resultados Parciais ........................................................................................... 35 5.1 Breves apontamentos ..................................................................................... 35 5.2 Andamento da pesquisa ................................................................................. 39 5.3 Próximos passos da pesquisa ......................................................................... 40 5.4 Cronograma atualizado .................................................................................. 41 Capítulo 1 – Por dentro da rede: o conhecimento médico ............................................ 42 1. A incerteza sobre a determinação do vício ....................................................... 42 2. Modos de classificação do jogador de videogames como dependente ............. 44 3. Dependência: conceitos e classificações ............................................................ 47 3.1 Um corpo partido: a dependência física e a dependência psicológica ............. 47 3.2 Componentes centrais da dependência de videogames ................................... 48 3.3 Construindo dependências: formas de composição......................................... 49 4. Apresentando teorias: a gramática das ciências .............................................. 51 4.1 Modelo cognitivo-comportamental ................................................................ 51 4 4.2 Modelo neuropsicológico .............................................................................. 56 4.3 Teoria da compensação.................................................................................. 61 4.4 Fatores situacionais ....................................................................................... 66 5. Reflexão sobre o culto moderno da Ciência Moderna ..................................... 68 Capítulo 2: O sério e o lúdico: repensando as categorias lazer e trabalho a partir dos videogames ................................................................................................................. 73 1. Delineando associações: entre usos legítimos e ilegítimos ................................ 73 2. Discutindo conceitos: jogo, lazer e trabalho ..................................................... 74 3. Desestabilizando categorias .............................................................................. 79 4. Jogando por lazer ou por trabalho? Os gamers e suas classificações ............... 83 4.1 Divertir-se ou conquistar as metas? O jogador curtidor e o jogador apelão ..... 85 4.2 Entre o trabalho dos sonhos e a desconsideração moral: os jogadores profissionais de videogame.................................................................................. 88 5. Por graus de comprometimento ........................................................................ 91 Plano da dissertação .................................................................................................... 93 Índice dos capítulos ............................................................................................... 93 Título e resumo dos capítulos ............................................................................... 95 Referências ................................................................................................................. 98 Anexos ................................................................................................................................ Projeto de Pesquisa ............................................................................................................. Cursos realizados e seu impacto na evolução do projeto ................................................... 5 Introdução à pesquisa 1. Objeto foco do trabalho 1.1 A controvérsia O objetivo geral deste trabalho é mapear as práticas e experiências que ancoram os discursos dos diversos agentes em torno da questão da dependência de videogames. O intuito é simular um parlamento das coisas (LATOUR, 1994) inicial em torno dos jogos eletrônicos. Por meio da descrição e da análise das práticas dos atores, articulando as dimensões do chamado mundo “real” e do mundo “virtual”, pretende-se compreender o significado de suas relações, sejam elas de dependência ou não, com os videogames. 1.2 O imobilismo e a guerra das ciências Grande parte da produção científica, mais marcadamente da área da ciência médica, e de algumas vertentes de estudo da psicanálise, da psicologia e da pedagogia, tem trabalhado com a categoria “vício” e “dependência” para descrever a relação de usuários de videogame com seus jogos, na qual se sobressai uma associação semântica entre os efeitos dos videogames e das drogas (de uso não farmacológico). Frequentemente, os jogadores classificados como adictos são vistos por tais pesquisadores (YOUNG, 1998; SCARPATO, 2004; ABREU, 2008) como pessoas socialmente isoladas, proto-violentas e perigosas; que estão aprendendo a expressar a sua raiva e agressão reprimida por meio dos jogos, e que são potencialmente capazes de engendrar novos episódios traumáticos como o Massacre de Realengo1 ou de Columbine 2. Segundo tais pesquisas, o vício em videogames traria consequências prejudiciais para o indivíduo, como: uma piora no rendimento escolar e no trabalho, afastamento do convívio familiar e de outras formas de contato social, compulsão por jogar, insônia, falta de apetite, sedentarismo, tendinite, troca de prioridades da “vida real” para 1 Em 24 de abril de 2011, a Rede Record (R7) exibiu uma reportagem de longa duração no programa Domingo Espetacular tentando associar a chacina ocorrida na escola do bairro do Rio de Janeiro com o uso de videogames violentos no intuito de, talvez, encobrir motivos religiosos; o que gerou uma grande revolta dos gamers nas redes sociais da Internet. 2 Em 20 de abril de 1999 em Columbine, Colorado, EUA, dois jovens atiraram em colegas e professores da escola, matando 13 pessoas, para depois suicidarem-se. Um dos motivos acusados foi o uso de jogos de tiro como Doom e Wolfenstein 3D pelos jovens que engendraram o massacre. 6 alcançar os objetivos dos jogos “virtuais”, descaso com o bem-estar e o direito do próximo, aumento da agressividade (no caso de jogos violentos), e até mesmo mortes em decorrência de horas prolongadas em frente à tela do jogo. Apesar de esta ser a visão majoritária, há outra corrente de estudos de caráter construtivista-relativista (ou sociologizante), presente nos game studies, que considera tal abordagem médica como falsa ou meramente retórica, destituindo-a de seus efeitos de realidade ao apontar o caráter historicamente construído dessas relações. Rob Cover (2006), por exemplo, em seu artigo “Game (Ad)Diction Discourse, Identity, Time and Play in the Production of the Gamer Addiction Myth”, publicada no periódico Game Studies, apesar de manifestar inquietações interessantes, toma a aproximação dos jogos com as drogas como construções sociais: Não seriam nada mais que “discursos”, retórica, “metáfora” e “mito”, perdendo a dimensão de seus efeitos de realidade. Estas duas grandes correntes que polarizam uma controvérsia sociotécnica configuram o que Bruno Latour (1994) e Isabelle Stengers (2003) chamaram de guerra das ciências. Por mais que haja um lado preponderante, o conhecimento científico, neste caso, não está estabilizado em torno de fortes associações que tornem impossível o questionamento de suas verdades, ou conforme a terminologia latouriana, a abertura de suas caixas-pretas (LATOUR, 2000). Trata-se, pois, de uma controvérsia 3 – ou seja, uma disputa científica entre aqueles que produzem a epistemologia sobre o uso dos videogames no contexto atual. Assume-se aqui, como Latour, que a ciência fala de uma posição privilegiada, senão central, na sociedade moderna, e que esta, portanto, influencia de forma incisiva a opinião de jornalistas, governantes, profissionais da indústria de jogos, familiares e os próprios usuários dos jogos eletrônicos. Uma análise preliminar do material produzido nesta área parece indicar uma polarização entre duas perspectivas de análise. O primeiro grupo de estudos aborda a partir da perspectiva da “coisa” – o objeto videogame causando um vício incontrolável ao homem, que perderia assim a sua racionalidade e capacidade de falar por si mesmo, ou 3 Este projeto está inserido dentro de um programa maior entitulado Mapping Controversies, criado por Bruno Latour e hoje coordenado internacionalmente por Tomasso Venturini, que agrega pesquisadores de diversas instituições: MIT, Sciences-Po, ENSMP, Oxford University, Manchester University, Ecole Polytechnique Fédérale de Lausanne, e que, desde agosto de 2011, incluiu a Universidade de São Paulo, por meio do curso Antropologia da Ciência e da Modernidade: Mapeamento de Controvérsias, a cargo do Prof. Dr. Stelio Marras e com a colaboração do Prof. Dr. Vincent Lépinay do Science-PO (ver websites sobre o mapeamento de controvérsias nas referências). 7 seja, seu estatuto enquanto sujeito. Em contrapartida, o segundo grupo partiria do “homem” para falar da coisa, ou seja, dos benefícios que o homem – o sujeito por excelência em pleno controle da relação – colheria a partir do uso dos jogos eletrônicos. Essa controvérsia, portanto, gira em torno do tema da captura da subjetividade humana, da relação entre homem e máquina: um tema clássico na história do pensamento ocidental. Estaríamos de volta à antiga matriz ocidental/moderna: homem vs. máquina? Esta problemática retorna não para reafirmar o que já foi dito, mas para dar um encaminhamento teórico adequado para a pesquisa. A clássica questão seria: quem englobaria quem? O homem dominaria a máquina, como parecem sugerir os pesquisadores que apontam para os benefícios cognitivos propiciados pelos videogames? Ou aconteceria exatamente o oposto, como defendem os especialistas que alertam para os perigos do vício? Neste jogo de captura e agência de subjetividades, a máquina se encontraria numa posição de ambiguidade: de um lado aparece como uma virtude do desenvolvimento, de outro como a causa de prejuízos sociais, cognitivos e psíquicos. Quem seria então o sujeito da relação? E quem seria o objeto? Buscando sair dessa dicotomia paralisante, encontramos em Donna Haraway a perspectiva do ciborgue, que nos ajuda a pensar esta questão: O ciborgue nos força a pensar não em termos de “sujeitos”, de mônadas, de átomos ou indivíduos, mas em termos de fluxos e intensidades, tal como sugerido, aliás, por uma “ontologia” deleuziana. O mundo não seria constituído, então, de unidades (“sujeitos”), de onde partiriam as ações sobre outras unidades, mas, inversamente, de correntes e circuitos que encontram aquelas unidades em sua passagem. Primários são os fluxos e as intensidades, relativamente aos quais os indivíduos e os sujeitos são secundários, subsidiários. (HARAWAY; KUNZRU; TADEU, 2009, p.14) Sem erigir barreiras intransponíveis entre o humano e o não-humano, a perspectiva do ciborgue, que mistura a mecanização e a eletrificação do humano com a humanização e a subjetivação da máquina, é especialmente útil por fornecer um guia teórico para esta pesquisa: afinal, são “bits e bytes que circulam, indistintamente, entre corpos humanos e corpos elétricos, tornando-os igualmente indistintos: corpos humano-elétricos.” (HARAWAY; KUNZRU; TADEU, 2009, pp.12-13). No entanto, frise-se bem, não estamos falando de qualquer homem e qualquer máquina, mas de homens e máquinas 8 específicos, situados no meio com outras associações4. Somente uma etnografia densa poderá revelar as particularidades de cada um dos agentes. O esforço será empreendido no sentido de entender as categorias, e ver a quê elas estão associadas. É a idéia do fazfazer5 de Latour: de que as associações, os engendramentos (ou agenciamentos) dão o sentido das coisas e pessoas em rede. Ao investigar as relações entre ciência, sociedade, tecnologia e as múltiplas associações aí envolvidas, que se configuram de forma específica em cada situação, pretende-se, então, compreender as redes de associações em torno do uso de jogos eletrônicos e, afinal, como se constitui a sua regulação sociotécnica. A pesquisa, por fim, buscará investigar quais as concepções de humano e de desenvolvimento que estão pressupostas em cada uma dessas visões, tal como as médicas-científicas, da qual derivam imagens sobre a dependência e os dependentes. 1.3 Videogames em perspectiva É difícil de entender a falta de trabalhos acadêmicos, em especial no Brasil, sobre o uso de videogames, tendo em vista sua ampla difusão mundial. Para dar uma dimensão do fenômeno: hoje, a indústria de games é a mais lucrativa no ramo de entretenimento, com faturamento de US$ 60,4 bilhões anuais i superando o cinema e a música. No Brasil, segundo pesquisa do Ibope em 2012, 60 milhões de pessoas, ou seja, 33% da população, possui ao menos um videogame em casa. ii Nos EUA, 99% dos garotos e 94% das garotas entre 12 a 17 anos são adeptos dos videogames iii – e confessamente preferem os jogos a filmes ou outras formas de diversão. Em 2008, a China atingiu a marca de 59 milhões de jogadores online iv. Na Coréia do Sul, foram registrados de 300.000 a 500.000 casos de viciados em gamesv. E já há clinicas de tratamento de dependência funcionando em diversos países, como o Japão, China, Coréia, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, e mais recentemente, o Brasil – que curiosamente é o país em que as 4 Segundo Latour (2000), nunca somos postos diante da ciência, da tecnologia e da sociedade, mas sim diante de uma gama de associações mais fracas e mais fortes; portanto, entender o que são fatos e máquinas é o mesmo que entender o que as pessoas são. 5 Ainda segundo Latour, não podemos afirmar que exista algo que seja por si só social. Humanos e nãohumanos se associam e essas associações geram efeitos, e esses efeitos deslocam objetivos, redefinem posições e sentidos. Não importa as entidades, o que importa são os efeitos que esses “atores” fazem fazer. 9 pessoas, entre as que têm acesso à Internet, passam o maior tempo dedicado às atividades online: 45 horas mensais, em média vi. E apesar de controversa, associação do jogador de videogames com o vício circula em vários ramos de estudos psicológicos e pedagógicos e, com maior força e influência política, na imprensa e no discurso governamental. Alguns teóricos dos game studies, no entanto, acostumaram-se com a ideia de que tal imagem é falsa, que a dependência de videogame não é real, ou pelo menos é muito mais complexa do que a sua representação na ciência médica. Contudo, observamos que estas associações são atuantes, informa a atitude dos ministros do governo, políticos e legisladores perante os jogos, tem notáveis efeitos indiretos na indústria de games e no financiamento de seu desenvolvimento e influencia as atitudes dos próprios jogadores e seus familiares em relação aos jogos. Devemos ter em mente que, se a imagem do vício permanece, é porque há uma base sociotécnica que a suporta. Não basta afirmar que o vício é socialmente construído. Isto é apenas o ponto de partida da investigação, e não esgota de forma alguma o problema, pois ao tratá-lo como algo falso, ilusório ou não existente, perde-se a dimensão de sua performatividade, isto é, o seu efeito de “realidade”. Diga-se, é bom ressaltar, que esta controvérsia está viva, posta em disputa, e muitas pessoas a vivenciam cotidianamente, ora concordando, ora discordando dos especialistas, ou mesmo não os escutando. O que está em questão, portanto, é a forma como são produzidos e circulados os vários conjuntos de conhecimentos que produzem a associação do jogador com o vício. Somente pelas razões já elencadas, a construção da idéia do vício em videogames seria digna de pesquisas e análises mais aprofundadas. Então, ao invés de ignorar ou denunciar estas associações, um dos pontos centrais da investigação deve estar localizado na desestabilização dos conhecimentos científicos acerca da dependência de videogames. A preocupação agora passa a ser: como abordar o uso dos jogos eletrônicos, sem, no entanto, aderir prematuramente ao construtivismo ou ao naturalismo? A antropologia da ciência e da tecnologia pode ser muito proveitosa neste enfrentamente, pois tem característica de estabelecer um diálogo interdisciplinar com as diversas ciências que emitem pareceres sobre o tema, e por envolver em sua 10 argumentação o ponto de vista dos diversos “nativos” envolvidos na situação, reconhecendo-lhes estatuto ontológico não-reducionista. Além disso, soma-se ao fato de que são praticamente inexistentes estudos antropológicos sobre a dependência de videogames. Deste modo, a combinação videogame, dependência e antropologia parece ser inédita no Brasil, o que pode revelar uma especificidade local do modo de relação entre os atores envolvidos no problema, além de poder vir a ser adequada para evitar generalizações apressadas que advêm da relação entre os jogos e uma estrutura cognitiva individual suposta como universal. Não devemos, portanto, tratar a dependência em jogos digitais de forma isolada ou monocausal, mas em rede, situada no meio com outras associações em torno da controvérsia. Nesta pesquisa, se pretende trabalhar por meio de algumas questões que se cruzam com os argumentos em torno do jogo e do vício, tais como: lazer, infância e juventude, violência, drogas, corporalidade, virtualidade e a interatividade dos jogos. Estes podem ser, em várias combinações, alguns dos campos em que o videogame é denunciado e que as associações do jogo com o vício são tecidas. Nossa hipótese é que o que conecta todas estas questões seria a preocupação que pode gerar a produção de uma dicotomia entre o "real" e o "virtual" e uma apreensão contínua de atividades tomadas como de mero entretenimento, que são encaradas como perigosas em virtude de suas associações com o lúdico e o virtual, simultaneamente. 2. Questões e objetos da pesquisa 2.1 As retóricas do vício A transferência da concepção de vício para os discursos que relacionam atividades que exijam repetição, ou que até mesmo tenham qualidades compulsivas, não está limitada aos games, mas tem sido aplicada aos jogos de azar (GRIFFITHS, 1998), à compulsão sexual (YOUNG, 1998) e à pornografia (PORNOGRAPHY & SEXUAL VIOLENCE, 1983), entre outros. No entanto, as novas tecnologias parecem ser um alvo em particular, e tanto a Internet como os videogames e os telefones celulares têm sido discutidos como possuidores de qualidades inerentemente viciantes (YOUNG, 1998). A indagação inicial pode ser pode ser colocada do seguinte modo: porque essa relação repetitiva específica é socialmente tida como negativa, ao mesmo tempo em que outras 11 não são vistas como objeto de dependência (embora também possam produzir doenças)? Essa pergunta nos leva direto à questão central: o que seria mesmo o vício, ou a dependência de jogos eletrônicos? Essa é a categoria-chave para a pesquisa. É justamente a noção de vício que tem que ser discutida, desestabilizada e colocada em risco na etnografia, já que não há consenso em torno do seu significado. É pouco afirmar que esta noção é socialmente construída, mas deve ser o ponto de partida para a investigação. Poderíamos trabalhar provisoriamente com a hipótese de que o vício seria um fenômeno que compreende relações não-controladas, não-domesticadas, em que está em jogo captura da subjetividade humana. Não estaria aí posto o terror da mistura entre humanos e não-humanos? O vício constantemente aparece ligado às idéias de embotamento, alienação e desumanização. Poderíamos pensar que, nesta tentativa moderna de purificar o humano (e o não-humano, separados de forma isolada nos pólos sociedade e natureza) de que fala Bruno Latour, o videogame apareceria como uma séria ameaça? Estaria o usuário se tornando um autômato, deixando de ser humano ou perdendo a essência de sua humanidade? Olhando mais de perto as práticas das ciências, vemos que, nos discursos médicos em torno das drogas químicas, a dependência é muitas vezes definida como uma mudança de comportamento processual relacionada à experiência repetitiva nas disciplinas sociopsicológicas, ou uma neuro-adaptação a estímulos (tais como substâncias químicas psicoativas), entre os entendimentos orientados pela bioquímica. De qualquer forma, qualquer conceito de dependência envolve uma noção de mudança de comportamento e um desejo de experiência ou de repetição. A dependência é por vezes apresentada como uma experiência de desordem moral, uma falha física, uma falha social, ou como uma doença infecciosa que deve ser contida ou monitorada por medo de espalhar o vício de um corpo para outro (LART, 1998). Comumente, um ou vários desses conceitos são usados na retórica 6 do vício digital para produzir a figura (ou personagem) do jogador hardcore como um dependente. Muitas vezes isto é visto simultaneamente como distúrbio psicológico, e por meio de um 6 O conceito de retórica não está sendo tratado nesta introdução como um falso discurso, mas como uma prática discursiva que carrega diversas associações e ativa uma série de códigos, formando um conjunto de significados que se relacionam entre si e que podem abarcar novos elementos. 12 modelo em que a dependência é determinada por aquilo que é tido como viciante – mídia digital, neste caso. O trabalho de Kimberly Young sobre o vício em internet serve como um exemplo significativo das maneiras em que a retórica do vício é articulada a fim de denunciar novas formações sociais que emergem através da mídia digital. Sua escrita está cheia de comparações, muitas deles redutoras e simplistas, para sugerir que o uso frequente e consumidor de tempo de formas de mídia digital não é diferente de "alcoolismo, dependência química, ou vícios como comer demais e jogos de azar" (YOUNG, 1998). Ao invés de traçar um conjunto de paralelos muito próximos entre o digital como "droga" e as drogas em si, ela trabalha por meio de uma noção de comportamento adicto inspirando-se em escritos anteriores que têm atraído semelhanças entre a dependência química de drogas e hábitos como o jogo compulsivo de apostas, comilança crônica, compulsão sexual e obsessão por assistir televisão. Para Young, é o sentimento experienciado que é viciante, mais do que a mídia digital em si (YOUNG, 1998). Para outros autores (BINAISA, 2002), uma noção de dependência digital é produzida por meio da articulação de uma semelhança entre as noções culturais de ambos, os fármacos e os jogos eletrônicos, como escapistas – uma fuga do "real". Tais comparações são geralmente apenas afirmações redutoras da semelhança que comparam a fisicalidade da dependência de substâncias químicas com atividades, tais como os jogos, que podem ser conscientemente escolhidas porque são prazerosas, agradáveis e gratificantes, e estão localizadas em uma matriz complexa de desejo, identidade e sociabilidade que produzem a escolha de passar um tempo significativo envolvido na atividade do jogo. Jacques Derrida se refere a uma noção de "dicção" da "adicção" como um conjunto de características significantes que são aplicadas aos usuários de drogas e que se ligam ao requerente dentro de um particular conjunto ideológico e político de valências (DERRIDA, 1995). É importante notar que a aplicação da metáfora da dependência restringe e produz certos comportamentos, e estabelece o "mundo digital" como uma substância não-natural, irreal e perigosa, e redutivamente representa o usuário por meio da "imagem" do viciado em drogas. 13 Suspeitamos que a denúncia do jogo eletrônico feita pela ciência médica, de que os games representariam uma forma inválida de engajamento textual, erige-se a partir das diversas associações dos videogames com outros campos, como: lazer, novas tecnologias, drogas, violência, juventude, corporalidade (mediada por computador) e virtualidade. No entanto, é bom ressaltar que somente poderemos verificar a validade destas suspeitas a partir da etnografia realizada em campo. O material coletado até o momento nos permite apenas direcionar as questões a serem buscadas, fazer breves apontamentos e indicar algumas hipóteses. Por hora, iremos propor uma reflexão inicial acerca dois aspectos do videogame: o primeiro enquanto jogo, como algo associado ao campo do “lúdico”, e o segundo enquanto algo que pertence ao campo do “virtual”. 2.2 Videogame e seu aspecto lúdico De saída, quando pensamos em jogo (ao menos na cultura ocidental contemporânea), podemos classificá-los como pertencente ao campo do tempo livre, do não-trabalho. A clássica definição de Huizinga demarca uma característica específica do jogo em contraponto à racionalidade instrumental. Para ele o jogo seria: Uma atividade livre, ficando conscientemente tomada como não séria e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro. Ela é praticada dentro de seus próprios limites de tempo e espaço de acordo com regras fixas e de uma maneira ordenada. Promove a formação de agrupamentos sociais, que tendem a se cercar de sigilo e sublinhar a sua diferença em relação ao mundo comum, por disfarce ou outros meios (HUIZINGA, 1938). O trabalho do sociólogo Roger Caillois (1957) complementa a clássica conceituação de jogo do filósofo Johann Huizinga colocada na seção anterior, com algumas características da interação lúdica, a seguir: Livre: A interação lúdica não é obrigatória; se fosse, perderia de uma vez só sua qualidade atrativa e alegre como diversão. Separada: Circunscrita dentro dos limites de espaço e tempo, definida e fixada antecipadamente. Incerta: O curso da qual não pode ser determinado, nem o resultado obtido previamente e alguma margem para as inovações deixadas para a iniciativa do jogador. Improdutiva: Não cria bens, riqueza, nem elementos novos de qualquer espécie; e, com exceção da troca de bens entre os jogadores, termina em uma situação idêntica à que prevalecia no início do jogo. 14 Regida por regras: Sob convenções que suspendem as leis ordinárias e no momento, estabelecem uma nova legislação, que conta sozinha. Faz-de-conta: Acompanhado por uma consciência especial de uma segunda realidade ou fantasia livre, como em oposição à vida real (CAILLOIS, 1957). Entre os autores da área da ludologia (ou game studies como também o campo é chamado), começamos por Clark Abt (1970), que propõe a seguinte definição: Um jogo7 é uma atividade entre dois ou mais tomadores de decisão independentes buscando alcançar seus objetivos em um contexto limitador [...] um jogo é um contexto com regras entre os adversários tentando conquistar objetivos (ABT, 1970). Avedon e Sutton-Smith (1971) formulam que “jogos são um exercício de sistemas de controle voluntário, em que há uma competição entre forças, limitadas por regras para produzir um desequilíbrio”. Já Costikyan (1994) coloca que “um jogo é uma forma de arte na qual os participantes, denominados jogadores, tomam decisões a fim de gerenciar os recursos por meio das fichas do jogo em busca de um objetivo”. Por sua vez, Bernard Suits (1990) teoriza que: Interagir em um jogo é engajar-se em uma atividade direcionada para produzir um determinado estado de coisas, usando apenas meios permitidos pelas regras, em que as regras proíbem meios mais eficientes em favor dos menos eficientes, e em que tais regras são aceitas apenas porque possibilitam essa atividade (SUITS, 1990, p. 34). Todas estas definições apontam para alguns elementos em comum. Não vamos por hora entrar em detalhe sobre as divergências entre elas. Encontramos, pois, em Salen e Zimmerman (2012) uma conceituação de jogos que sintetiza alguns elementos, com os quais trabalharemos mais detidamente. Assim, temos que: “jogo é um sistema no qual os jogadores se envolvem em um conflito artificial8, definido por regras, que resulta em um resultado quantificável”. A partir das definições acima podemos dizer que o aspecto lúdico poderia estar relacionado com a esfera do lazer; que por sua vez encontrar-se-ia em posição imediatamente oposta ao cálculo utilitarista e à ética do trabalho moderna de que fala 7 Um dos problemas dessa definição é que nem todos os jogos são disputas entre adversários – em alguns jogos, os jogadores cooperam para atingir um objetivo comum contra uma força obstrutiva ou situação natural que não é, em si, realmente um jogador, uma vez que não têm objetivos (ABT, 1970). 8 Para evitar maiores complicações, vou utilizar artificial no sentido de que o jogo ocorre dentro do chamado “círculo mágico”, isto é, dentro de um espaço e de um regime de tempo distintos da “vida ordinária”. No entanto, a concepção de jogo como não-real possui sérias objeções. 15 Max Weber (1904-1905). Associado ao campo do lazer, do tempo livre e da nãoseriedade e, ao mesmo tempo, afastado do campo do trabalho, da vida ordinária e da lógica utilitária, o videogame ligar-se-ia possivelmente com as drogas, já que ambas pertenceriam ao campo do lazer e seriam avessas à lógica da sociedade de produção de mercadorias: aparentemente não haveria nada sendo produzido em nenhum dos casos, apenas coisas consumidas num tempo devotado ao puro ócio. Além disso, o círculo mágico (espaço e tempo próprios do jogo, separados dos da vida social ordinária) produzido pelo jogo, a que se referem Huizinga (1938) e Caillois (1957), poderia fazer com que o jogador ficasse completamente imerso dentro do mundo do jogo, onde nada que passasse fora dali alcançasse importância para fazê-lo parar de jogar. 2.3 Videogame e seu aspecto virtual Para além de ser um jogo, os videogames têm características específicas: diferentemente de jogos esportivos ou jogos de cartas, eles são mediados eletronicamente; em geral por meio de um computador ou de um console, e acontecem num espaço chamado “virtual”. Isto os aproxima dos usos da internet, de telefones celulares e da temática mais geral do vício digital. Ao contrário de autores como Young (1998), que tratam da mesma forma os usos de internet e de videogames, e que interpretam a interatividade e a imersão de ambos como os fatores causadores da dependência, há claramente um ramo do discurso médico que procura discernir um do outro, e acusar exclusivamente os games por seu potencial viciante. Por outro lado, o videogame e a internet compartilham uma série de características por participarem do “mundo digital”: seriam classificados como atividades “virtuais”, em que a corporalidade do ser humano estaria comprometida por não operar, supostamente, com toda a potencialidade de seu aparato sensitivo. Seriam experiências, portanto, menos intensas, menos humanas, ou até mesmo falsas. Suspeitamos, mais uma vez, que as associações destes diversos elementos contribuiriam para a produção e a estabilização de um valor negativo em torno da categoria videogame. O jogo eletrônico aqui se afastaria do esporte pelo primeiro não ser entendido como uma atividade corporal, mas algo que, pelo contrário, causaria prejuízos à saúde devido ao sedentarismo causado pelo seu uso contínuo. Esta visão de corporalidade também é controversa dentre alguns trabalhos recentes de antropologia. Le Breton (1999), em 16 “Adeus ao corpo”, aponta para o perigo das relações não mediadas pelo corpo em sua reflexão a respeito do ciberespaço como lugar de seu desaparecimento. Para ele, a virtualidade seria, por excelência, um espaço onde o corpo (fisiológico) fica pendente, provisoriamente esquecido enquanto matéria. Seria o território das imagens e dos signos, onde coexistem em virtualidade inúmeros corpos em potencial. O corpo físico seria então desnecessário, e mesmo indesejável, em um mundo onde se pode potencialmente vestir qualquer máscara, ter qualquer forma e tornar-se qualquer personagem imaginável. No entanto, na visão outros autores, a não aparição do corpo para o outro não significa necessariamente a sua ausência. Ingold (2000), por exemplo, aponta para uma integração dos sentidos envolvidos em atividades como jogar videogame. Para ele, o corpo não é uma coleção de órgãos adjacentes, mas um sistema sinérgico, cujas funções todas são exercidas e conectadas na percepção do ambiente. Pierre Lévy argumenta que “a virtualização do corpo não é portanto uma desencarnação mas uma reinvenção, uma reencarnação, uma multiplicação, uma vetorização, uma heterogênese do humano (LÉVY, 1996, p.33). Para ele, “os sistemas de realidade virtual nos permitem experimentar uma integração dinâmica de diferentes modalidades perceptivas” (idem, p.28). Taylor observa que "da mesma maneira que agora vemos a relação entre a vida online e offline como não delimitada, em muitos aspectos, uma dicotomia jogo/não-jogo não se sustenta" (TAYLOR, 2006, p. 19). Suspeitamos que a classificação do videogame mediante esta concepção de virtualidade poderia torná-lo suscetível à retórica do vício em drogas. 2.4 Games e drogas: metáfora ou metonímia? Em geral, dentro da dicção da adicção, cria-se uma dependência do "eu" (ou do corpo, ou da personalidade ou de alguma outra faceta da individualidade) a alguma coisa. Enquanto as drogas são vistas como um complemento físico que é ingerido (um comprimido, um pó, um líquido), que penetra no corpo através da pele (ou de alguma outra maneira), é o que a droga representa – o seu efeito – que é considerado virtual, irreal, sem realidade ou fora da razão. O vício é geralmente concebido em termos de uma dependência do não-real, de algo que é menos real do que aquilo que é classificado como natural, justo, apropriado, benéfico. 17 Podemos pensar que a experiência do jogo, na retórica da dependência, apareça não como irreal ou virtual por causa de algo que nos leva para fora do mundo físico e do comportamento normal, nem porque se baseie em tecnologias que são relativamente novas. Mas, talvez, porque esses “mundos” narrativos, comunicativos e articuláveis, que são evocados de forma interativa, não possuam (aparentemente) uma substância física. As preocupações sobre a dependência digital continuam a invocar uma separação entre o real e o virtual por meio da invocação da divisória representada pela tela do computador (ou do console e da televisão) e pelos dispositivos de interface. O ponto importante aqui é que aqueles que celebram ou denunciam novas formas de mídia a partir de um conceito binário de real/virtual, veem um potencial de transformação para o real e para o "eu real" (outro conceito também controverso) no encontro com o virtual, de tal forma que os usos repetitivos, frequentes, apaixonados e até mesmo obsessivos de mídias digitais geram uma ansiedade que iguala o virtual com a droga, com a fantasia da pornografia, e com outros não-reais relacionados com a dependência; todos eles são entendidos como a falta de prazer da "vida real", do jogo físico e da comunicação face a face. Nesse sentido, jogar poderia ser entendido como viciante não porque os jogos são usados compulsivamente, mas porque, ao representar seu universo conceitual como "irreal", eles estariam ligados às drogas, e, assim, poderiam tornar-se sujeitos ao discurso do vício em drogas. Como Derrida coloca, nós rejeitamos o viciado em drogas, porque: Ele se isola do mundo, no exílio da realidade, longe da realidade objetiva e da vida real da cidade e da comunidade; [...] drogas, diz-se, faz alguém perder qualquer senso da verdadeira realidade. No fim das contas, é sempre, penso eu, nos termos da presente acusação que a interdição é declarada. Não nos opomos ao usuário de drogas do prazer em si, mas a um prazer tomado em uma experiência sem verdade (DERRIDA, 1995, pp.235-236, tradução nossa). Vargas (2006) nos alerta que indagar “por que as pessoas usam drogas” ou “o que significa usar drogas” não seria colocar boas questões. As respostas que os especialistas costumam dar a estas questões apresentam uma regularidade impressionante: o porquê ou o significado do uso de drogas são regularmente imputados a uma falta ou fraqueza, física e/ou moral, psíquica e/ou cultural, política e/ou social. Dito de um modo mais prosaico, habituamo-nos a pensar que o consumo de drogas seria uma resposta a uma 18 crise ou a uma carência qualquer: consomem-se drogas porque faltam saúde, afeto, cultura, religião, escola, informação, dinheiro, família, trabalho, razão, consciência, liberdade, etc. (p. 585-586). Sua proposta é que: Em vez de indagar o porquê ou qual o significado do uso de drogas, cabe perguntar o que ocorre, ou que experiência os usuários atualizam mediante o consumo. [...] Minha hipótese de trabalho é que o que ocorre são eventos e que esses eventos implicam experimentações intensivas de auto-abandono, ou o paradoxo de ações que deliberadamente visam “sair de si” (VARGAS, 2006, p. 583). Embora se argumente aqui que a ligação entre a dependência de drogas e a dependência de games seja mais do que uma comparação metafórica, pois é realmente enraizada em uma percepção do que constitui o "real", uma simples inserção do significante "jogo" no lugar de “drogas” nas duas citações acima indica muito cuidadosamente as maneiras pelas quais o viciado digital é produzido na cultura contemporânea ocidental: uma vez que não estaria dentro do conhecimento da realidade objetiva, o entretenimento interativo seria um prazer experienciado "sem verdade". Ou seja, quando o usuário ou jogador retorna a este prazer ou experiencia o mesmo jogo diversas vezes, como a tensão gerada pelo cumprimento das metas dos jogos, a retórica da dependência entraria em jogo e uma lógica seria estabelecida pela qual seria possível referir-se ao usuário hardcore como um viciado. Para encontrar uma abstração mais adequada da relação entre o suposto mundo “real” e o “virtual”, pode-se recorrer aos conceitos clássicos de Gabriel Tarde (1910). Para ele, diferentemente da concepção aristotélica 9, o real não é hierarquicamente superior aos possíveis (virtuais). Estes são condição de possibilidade daquele. Para Tarde, os possíveis não são menos reais (senão ao contrário, são mais reais) que o próprio real. Este é apenas um aborto, um sacrifício, um "dispêndio dos possíveis". Levar em conta a realidade do virtual em nossas vidas é, por fim, assumir o paradoxo, a composição de 9 O esquema do virtual aristotélico começa por distinguir, na gestação contínua da realidade do universo, uma relação dialógica entre o "real" e o "possível". Sob esta rubrica da tensão dialética, Aristóteles instituiu uma equivalência entre atual (ato) = real; e virtual (força) = irreal ou ilusório. Todo e qualquer movimento do mundo trata-se, deste modo, de um jogo agonístico, por meio do qual surge um par de conceitos opostos que ele chama de "dynamis / energeia". Aristóteles recorria então à noção de virtual para justificar esta ontológica oposição vigente, entre "possibilidade" e "existência". A lógica do sistema aristotélico obedecia ao princípio da "identidade", da recognição e da não-contradição no pensamento, cuja premissa dispunha que não seria possível existir, ao mesmo tempo, "A" e "não-A". Isso quer dizer que, entre várias possibilidades, apenas uma era realizada em cada momento, sendo que o virtual serviria apenas para hierarquizar, com a sua força germinal, as possibilidades realizáveis. 19 virtualidades não-humanas e de devires moduláveis, como uma imagem-ritmo, como produtores de um imanente ethos intensivo, singular, múltiplo e criativo (FONSECA, 2006). Grosz e outros autores apontam que o quê o mundo digital faz de melhor é "revelar que o mundo em que vivemos, o mundo real, sempre foi um espaço de virtualidade" (GROSZ, 2001, p.78). Enfim, pensamos que refletir sobre a dependência do videogame somente pode ser produtivo por meio da quebra dessa distinção estanque entre o real e o virtual. 3. Pressupostos Teóricos 3.1 De atores a jogadores: notas para uma teoria da ação Nesta seção iremos explorar alguns conceitos de jogo para construir a nossa abordagem teórica em relação ao problema da agência. Partindo da metáfora do teatro, que foi bastante utilizada pelas ciências sociais (GOFFMAN, 1959; GEERTZ, 1991) para descrever o comportamento dos chamados atores, propomos experimentars desta vez a metáfora dos jogos, substituindo a noção de atores (no sentido teatral) por jogadores, e pensar nas possibilidades que esta perspectiva pode contribuir para uma teoria da ação. Clark Abt (1970) nos abre as portas para esta reflexão: Naturalmente, a maioria das atividades da vida real envolve tomadores de decisão independentes buscando alcançar os objetivos em algum contexto limitador. As situações políticas e sociais muitas vezes podem também ser vistas como jogos. Cada eleição é um jogo. As relações internacionais são um jogo. Todo argumento pessoal é um jogo. E quase todas as atividades comerciais são um jogo. Se estas competições de políticos, guerra, economia e relações interpessoais forem jogadas com recursos de poder, habilidade, conhecimento ou sorte, sempre terão as características comuns das decisões recíprocas entre os atores independentes, com objetivos pelo menos parcialmente conflitantes (ABT, 1970). Se já pudemos entender que “a vida é (como se fosse) um teatro”, o que a aproximação da vida social como um jogo nos trás de novidade? A primeira questão que surge é: O que é, afinal, um jogo? Em que exatamente ele consiste? Trago aqui algumas definições multidisciplinares que vão contribuir para a nossa discussão antropológica mais centrada nos trabalhos de Geertz (1973), Latour (1994) e Ortner (2007) sobre o conceito de agência. A reflexão que se tentando propor aqui, por meio da definição de Salen e Zimmermann (2012) anteriormente citada, é que podemos ver um jogo como algo que é basicamente composto por jogadores, que agem em um sistema por meio de suas 20 decisões (ou jogadas) conforme determinadas regras. Essas jogadas entram em interações com as ações dos demais jogadores afetando o sistema, que irá devolver uma nova situação para os jogadores no momento seguinte. Assim, para os objetivos traçados no início, ficamos com a ideia de que agência do jogador é a sua jogada. Mas esta também não é agência livre. [...] Em outras palavras, os desejos ou intenções culturais emergem de diferenças estruturalmente definidas entre categorias sociais e diferenciais de poder. Assim, como já apontei há pouco, esses projetos culturais são jogos sérios, o jogo social de metas culturais organizadas em e em torno de relações locais de poder (ORTNER, 2007, p. 66) A ação em um jogo não é livre de forma alguma, pois esta condicionada sempre às regras do jogo e às ações do sistema e/ou dos outros jogadores. Portanto, o modo pelo qual o jogador age no jogo é basicamente fazendo escolhas dentro das possibilidades apresentadas pelas regras e pela configuração atual das posições dos elementos do jogo. Assim, essa escolha não é autônoma, mas se dá em rede. Os indivíduos/pessoas/sujeitos sempre estão inseridos em teias de relações, de afeto ou de solidariedade, de poder ou de rivalidade, ou, muitas vezes, em alguma mescla dos dois. Seja qual for a “agência” que pareçam “ter” como indivíduos, na verdade se trata de algo que é sempre negociado interativamente. Neste sentido, nunca são agentes livres, não apenas no sentido de que não têm liberdade para formular e atingir suas próprias metas em um vazio social, mas também no sentido de que não têm capacidade de controlar completamente essas relações para seus próprios fins. Como seres sociais – fato verdadeiro e inescapável –, só podem atuar dentro de muitas teias de relações que compõem seus mundos sociais (ORTNER, 2007). A questão da unidade de análise se impõe em seguida. Afinal, quem age? São indivíduos, pessoas, o sistema, a estrutura, o jogo? Prefiro optar pela saída de Latour (1994) inspirado pelo conceito de Gabriel Tarde (1910) de mônadas abertas, que nos leva a uma teoria do ator-rede e a ideia do faz-fazer de Latour: de que as associações, os ou agenciamentos dão o sentido das coisas e pessoas em rede. Assim, a ação é realizada não por um indivíduo autônomo, mas por uma complexa rede de associações que fazem fazer aquele jogador agir de tal modo e não de outro. A ideia de actantes (LATOUR, 1994), como tudo aquilo que modifica, é muito interessante porque também nos leva a prestar atenção na agência não-humana. Desse modo, poderíamos pensar que não somente o jogador joga com o jogo, mas como o jogo joga com o jogador. Os jogos sérios sempre implicam o jogo de atores vistos como “agentes”. Contudo, a própria palavra “agência” tem algo que remete ao ator autônomo, individualista, ocidental. De fato, as próprias categorias que historicamente 21 estão por trás da teoria da prática, a oposição entre “estrutura” e “agência”, parecem sugerir um indivíduo heróico – O Agente – enfrentando uma entidade tipo cyborg chamada “Estrutura”. Mas nada poderia ser mais distante da maneira como enfoco os agentes sociais, encarando-os como estando sempre envolvidos na multiplicidade de relações sociais em que estão enredados e jamais podendo agir fora dela. Assim sendo, assume-se que todos os atores sociais “têm” agência, mas a idéia de atores como sempre envolvidos com outros na operação dos jogos sérios visa a tornar praticamente impossível imaginar-se que o agente é livre ou que é um indivíduo que age sem restrições. (ORTNER, 2007, p. 46-47). Poderíamos ficar em dúvida se na vida social não há um objetivo claro nem um resultado quantificável, pois não há um objetivo comum para todos, nem uma condição universal de vitória ou derrota. Poderíamos pensar, então, que na vida social não jogamos somente um jogo, mas múltiplos jogos sobrepostos e simultâneos, com regras e sistemas de avaliação distintos. Nessa encruzilhada, cada um constrói (e também sofre uma construção de) um significado próprio para a vida e persegue os seus projetos específicos, sejam estes individuais ou coletivos. Aí que entra o assunto da intenção do agente, isto é, o quê o jogador está buscando alcançar com a sua decisão. Assim como na teoria da prática, a vida social, sob a perspectiva dos jogos sérios, é vista como algo ativamente jogado, voltado para metas e projetos culturalmente constituídos e envolvendo tanto práticas de rotina como ações intencionalizadas (ORTNER, 2007, p. 45-46). Quando um jogador joga ele está buscando atingir um objetivo. Nesse sentido, a agência carrega intencionalidades. Tarde (1904) nos fala de desejos e crenças e creio que seja semelhante ao que Ortner (2007) coloca como agência no sentido hard, de uma agência direcionada no sentido de perseguir um “projeto”, um fim, ou seja, um objetivo. A agência de projetos não está necessariamente relacionada com dominação e resistência, embora algo disso possa existir. Tem a ver com pessoas que nutrem desejos de ir além de suas próprias estruturas de vida, inclusive – o que é muito central – de suas próprias estruturas de desigualdade; tem a ver, em suma, com pessoas que jogam, ou tentam jogar, seus próprios jogos sérios, mesmo se partes mais poderosas procuram desvalorizá-las ou até destruí-las. (ORTNER, 2007, p. 68). E como o jogador faz a sua jogada? Poderia se pensar que seria por meio de um cálculo objetivo de custos e benefícios (ou perdas e ganhos) esperados das ações, assim como no jogo da bolsa de valores. No entanto, esta é uma típica forma de jogar do pensamento moderno, pois carrega consigo uma forma predominante racional e individual de agir. A metáfora dos jogos sérios, portanto, aqui não se confunde com a 22 clássica teoria dos jogos da economia (OLSON, 1965; HARDIN, 1968), porque esta trabalha com a ideia de escolha racional de um indivíduo. As interpretações da vida social por meio de jogos sérios não envolvem a modelagem formal da teoria dos jogos e não envolvem o seu pressuposto de que prevalece uma espécie de racionalidade universal em praticamente todos os tipos de comportamento social. Ao contrário, os “jogos sérios” são, bem enfaticamente, formações culturais, não modelos de analista. Além disso, a perspectiva dos jogos sérios pressupõe atores culturalmente variáveis (e não universais) e subjetivamente complexos (e não predominantemente racionalistas e interessados em si mesmos) (ORTNER, 2007, p. 46). Desse modo, nesta proposição na trabalhamos com só um tipo de racionalidade, mas múltiplas, e tampouco com uma autonomia do indivíduo para fazer escolhas ao calcular os possíveis ganhos e perdas de seu leque de decisão. A discussão de Geertz (1971) em seu ensaio sobre a briga de galos em Bali reforça esta posição. Ora, a não ser em ocasiões muito especiais, as brigas de galos são ilegais em Bali desde que foi proclamada a república (como o eram sob os holandeses, por motivos não muito bem explicados), em função das pretensões ao puritanismo que o nacionalismo radical tende a trazer consigo. A elite, que não é tão puritana, preocupa-se com o camponês pobre, ignorante, que aposta todo o seu dinheiro, com o que o estrangeiro poderá pensar, com o desperdício de tempo que poderia ser melhor aplicado na construção do país. Ele vê a briga de galos como “primitiva”, “atrasada”, “não progressista” e que não combina, em geral, com uma nação ambiciosa (GEERTZ, 1973, p. 280). Nesta discussão, Geertz se opõe a Jeremy Bentham, filósofo utilitarista inglês que se tornou um dos principais proponentes da teoria do cálculo hedonista e que cunhou o conceito de "jogo profundo" para designar jogos nos quais "as apostas são tão altas que, da perspectiva utilitarista, é irracional que os homens se engajem neles” (BENTHAN apud GEERTZ, 1973, p. 432). Sendo, do ponto de vista utilitarista, irracional participar de jogos como esse, já que nesse tipo de jogo os riscos envolvidos são superiores aos benefícios esperados, Bentham conclui que o "jogo profundo é imoral" e que, portanto, "deveria ser legalmente proscrito" (idem, p. 433). Contudo, ao analisar a briga de galos balinesa, Geertz tocou num ponto particularmente crucial: segundo ele, Apesar da força lógica da análise de Bentham, os homens engajam-se num tal jogo, freqüentemente e apaixonadamente, e mesmo diante de uma punição legal. Para Bentham e os que pensam como ele (hoje em dia sobretudo advogados, economistas e alguns psiquiatras), a explicação é que [...] tais 23 homens são irracionais viciados, fetichistas, crianças, tolos, selvagens que precisam ser protegidos contra eles mesmos. (GEERTZ, 1973, p. 432) Geertz comenta que para os balineses, embora não a formulem em tantas palavras, a explicação repousa no fato de que nesse jogo o dinheiro é menos uma medida de utilidade, tida ou esperada, do que um símbolo de importância moral, percebido ou imposto (p. 300). Portanto, “o que torna a briga de galos balinesa absorvente não é o dinheiro em si, mas o que o dinheiro faz acontecer, e quanto mais dinheiro, mais acontece: a migração da hierarquia de status balinesa para o corpo da briga de galos” (GEERTZ, 1973, p. 303). Neste sentido devemos prestar atenção no que o dinheiro faz-fazer, em como ele movimenta o jogo e os jogadores. Ele não age aqui como uma moeda de troca universal tal como no comércio. Na briga de galos o jogo é outro, e o dinheiro, enquanto um elemento participante do jogo, tem determinadas funções na criação da experiência do significado de uma partida e da vida mais ampla. Este processo de interpretar os jogos como objetos simbólicos, como textos culturais que refletem seus contextos, é uma maneira de entender os jogos como cultura (SALEN; ZIMMERMANN, 2012, p. 28). Então, solução que Geertz dá ao problema de Bentham é culturalista, pois ela estabelece que, se os jogos profundos não respeitam os cânones do cálculo utilitário, é porque não existem nem foram criados para isso, mas sim para "expressar simbolicamente" códigos sociais: “a briga de galos é um texto cultural, e o que os balineses põem em jogo nesse texto é mais do que dinheiro, e galos..., é o status de cada um”. Para o antropólogo Eduardo Vargas (2006) se a explicação utilitarista não lhe parece ser satisfatória porque não dá conta, a não ser assimétrica e negativamente, do fato de que as pessoas "engajam-se num tal jogo, freqüentemente e apaixonadamente", a alternativa apresentada por Geertz tampouco lhe parece adequada, pois ela põe a perder o veículo mesmo utilizado para "expressar simbolicamente" os códigos sociais. Para Vargas: O problema é que o recurso aos argumentos da (ir)racionalidade e da "expressão simbólica" interdita, de antemão, que se considere a eficácia própria [...] Dessa maneira acaba-se por perder de vista [...] o que o evento faz acontecer, a saber, outros modos de engajamento no mundo, maneiras mais ou menos adequadas de "a gente", enquanto "agentes", engajar-se no mundo, ou ainda, outras maneiras de ser "(a)gente". O evento [...] produz modos de engajamento no mundo que não são agenciados às expensas dos objetos, e que também não os tomam apenas como intermediários [sobre a diferença entre mediadores e 24 intermediários, ver Latour (1991)], mas que se articulam com eles, mediadores indispensáveis, no caso, para que as agências se efetuem de modo 'alterado' ou, melhor, sob o modo de uma alter-ação (VARGAS, 2006) O que Vargas aqui quer dizer (numa discussão em que aproxima o uso de drogas aos jogos e as paixões), apoiando-se num pensamento pós-estruturalista, é que não estamos apenas tratando de símbolos descolados dos actantes, mas que tanto o imaterial (os símbolos) quanto o material estão conectados. A agência, então, seria o produto e o produtor de um jogo de associações, de relações estabilizadas ou instabilizadas, de alianças mais fortes ou mais fracas entre os jogadores (ver a teoria latouriana sobre poder e dominação no artigo “Technology is society made durable”, 1991). Portanto, ao levar a cabo o empreendimento etnográfico de delinear associações, é preciso buscar entender o que são, em detalhe, estes jogos; no quê os jogadores estão se baseando para tomar as suas decisões; quais valores e tipos de racionalidade estão sendo tomados como referência e quais são os projetos e objetivos que orientam as suas ações; e a que, tudo isso afinal, está levando em termos de transformações. O que este jogo está fazendo, o quê ele está movimentando, quem ganha, quem perde, e a que preço? Assim, Antropologia da “agência” não tem só a ver com a maneira como sujeitos sociais, como atores empoderados ou desempoderados, jogam os jogos de sua cultura, mas também com o fato de desnudar o que são esses jogos culturais, a ideologia subjacente a eles, e também com o fato de que jogar o jogo os reproduz e os transforma (ORTNER, 2007). 3.2 Constituindo um parlamento das coisas Antes de mergulhar na controvérsia propriamente dita, buscamos apresentar um breve arcabouço teórico-metodológico associado à proposta cosmopolítica (STENGERS, 2007). Não elaboraremos aqui um “referencial teórico”, mas uma pequena introdução a este vocabulário mobilizado pelos autores referenciados, que, de alguma maneira, se associam a um movimento em direção a uma Antropologia pós-social, simétrica e/ou perspectivista. Devemos notar, como recomenda Latour (2006) em sua teoria-ator-rede (A-N-T), que durante a própria descrição os conceitos já aparecem conectados aos agentes, auxiliando-nos no trabalho etnográfico. Portanto, não estamos aqui “aplicando” conceitos (a uma realidade exterior que possa servir de exemplo empírico), mas os “experimentando” na prática, junto com os actantes. 25 Chamaremos aqui de cosmopolítica 10, então, esta proposta de agregar política 11 e cosmologia num mesmo plano de análise; o que, por um lado, busca levar em conta a alteridade cosmológica dos coletivos, e por outro, as coloca tais cosmologias em relação, incluindo humanos e não-humanos no parlamento das coisas12, sem tratar a política como uma esfera separada da vida “social 13”, nem como um fato “natural”; pois aqui “natureza” e “sociedade 14” não devem constituir, como para os Modernos, um par opositor, mas dois lados da mesma moeda. Como expressão a um só tempo de uma nova natureza da política e de uma nova política da natureza, o conceito/proposta de “cosmopolítica” ambiciona explorar relações simetricamente comparáveis entre coletivos muito distintos entre si, mas só aparentemente inconciliáveis no plano da análise. Dentre esses impasses privilegiaremos o que estamos chamando aqui de “contextos cosmopolitas”, isto é, situações de sobreposição, convivência ou embate entre práticas e discursos (...). Com isso, buscaremos fortalecer a aposta na comparabilidade de “modos de existência” ou “ontologias” (termos que, ao lado 10 Cosmopolítica: leva-se em conta aqui o sentido grego de arranjo, de harmonia, ao mesmo tempo que aquele, mais tradicional, de mundo. É então um sinômimo do bom mundo comum, o que Isabelle Stengers chama cosmopolítica (não no sentido multinacional, mas no sentido metafísico de política do cosmo). Poder-se-ia designar como seu antônimo a palavra cacosmos, embora Platão, no Górgias, prefira acosmos (LATOUR, 2004). 11 Política: entende-se, aqui, em três sentidos, que se distinguem por intermédio de perífrases: a) na sua acepção usual, designa a luta e os compromissos dos interesses e das paixões humanas diante das preocupações dos não-humanos; utiliza-se ainda a expressão políticas da Caverna; b) no sentido próprio, designa a composição progressiva do mundo comum e todas as competências exercidas pelo coletivo; c) no sentido restrito, chama-se política somente a um dos cinco alicerces necessários à Constituição, e que permite a representação fiel pela ativação, sempre a retomar, da relação um/todos (LATOUR, 2004). 12 O objetivo do parlamento das coisas é tornar públicas as controvérsias sociotécnicas, conferindo representividade a um maior número de agentes envolvidos na questão. Neste sentido, este método não toma de antemão a representação do tipo caixa-preta, mas aponta que deve-se seguir etnoficamente a passagem do instável ao estável, das controvérsias ao fechamento do fato em caixas-pretas. Neste sentido, o parlamento das coisas celebra a não-modernidade das práticas científicas porque nele os cientistas não são os únicos representantes das coisas. É uma rede, um rizoma que funciona sem o julgamento de uma unidade transcendente, sem demarcações pré-estabelecidas, sem bordas (MORAES, 2000) 13 Segundo Latour, não podemos afirmar que exista algo que seja por si só social. Humanos e nãohumanos se associam e essas associações geram efeitos, e esses efeitos deslocam objetivos, redefinem posições e sentidos. Não importa as entidades, o que importa são os efeitos que esses “atores” fazem fazer. Neste sentido, estes atores não são apenas tomados como intermediários, que somente transportariam significados, desejos ou vontades, mas mediadores, cujas presenças modificam as redes de relações. 14 Sociedade, social: chama-se sociedade ou mundo social à metade da velha Constituição que deve unificar os sujeitos separados dos objetos, e sempre submissa à ameaça da unificação pela natureza; é um todo já constituído que explica as condutas humanas e permite, então, abreviar o papel político da composição; faz o mesmo papel paralisante que a natureza, e pelas mesmas razões. O adjetivo “social” (em inferno do social, ou representação social, ou construtivismo social) é, então, sempre pejorativo, pois designa o esforço sem esperança dos prisioneiros da Caverna para articular a realidade sem ter os meios (LATOUR, 2004). 26 do dualismo “nós/eles”, deverão ser problematizados) [...] algo que já tem sido experimentado pela assim chamada “Antropologia Simétrica” (cf. LATOUR, GOLDMAN & VIVEIROS DE CASTRO apud SZTUTMAN; MARRAS, ementa do curso “Cosmopolíticas em comparação: diálogos entre a Antropologia da Ciência e da Modernidade e a Etnologia Indígena”, 2013). Portanto, a proposta da descrição etnográfica será seguir a rede sociotécnica de actantes (LATOUR, 2006), detalhando agenciamentos específicos (DELEUZE, 1988) entre humanos e não-humanos, como os próprios videogames. Será praticada uma antropologia simétrica, que buscará reconhecer o mesmo estatuto ontológico para os variados discursos e práticas que aparecem no campo, sejam estes provenientes dos aficionados por videogames, sejam estes dos psiquiatras ou ainda de outros híbridos. Assim, a partir da metodologia de Latour (2007), buscar-se-á entender de que modo os regimes de veridicção (Foucault, 2008) acerca da dependência de jogos eletrônicos são construídos, purificados e erigidos em caixas-pretas. Ao compreender este processo de transcendentalização, no qual se oculta a dimensão imanente, do construído (plano oficioso), e se estabelece a “verdade” (plano oficial), será possível apreender as controvérsias, que desestabilizam as associações 15 bem amarradas entre os agentes em torno do tema. Busca-se, pois, constituir um parlamento das coisas a fim de mapear a variada semântica de noções de dependência e de vício enunciadas e praticadas pelos variados sujeitos envolvidos na controvérsia: os próprios jogadores; pais, cônjuges e demais pessoas próximas a estes jogadores; profissionais da indústria de games; cientistas de diversas áreas (psiquiatria, psicoterapia, pedagogia); teorias acadêmicas, notícias jornalísticas, vídeos circulados na internet e regulamentações legais. A descrição das práticas e dos discursos dos atores, por meio da articulação das dimensões do chamado mundo “real” e dos mundos “virtuais”, nos permitirá traçar as associações de suas relações com os videogames sem cair numa dicotomia assimétrica entre o verdadeiro e o falso. 15 Associação: estende e modifica o sentido das palavras social e sociedade, que são sempre prisioneiras da divisão entre o mundo dos objetos e o dos sujeitos; em vez da distinção entre os sujeitos e os objetos, falar-se-á de associações entre os humanos e não-humanos; o termo recupera, assim, ao mesmo tempo, as antigas ciências naturais e as antigas ciências sociais (LATOUR, 2004. p. 370). 27 3.3 Mapeando controvérsias: notas teórico-metodológicas Embora o termo controvérsia muitas vezes carregue o sentido de uma polêmica viva, ela é empregada aqui no sentido mais restrito de um debate em torno de um fato que ainda não foi determinado. O principal objetivo desse tipo de análise é confrontar formas de conhecimento que ainda são instáveis, para levar a uma compreensão mais profunda das dificuldades associadas com o mapeamento de disputas na fabricação dos fatos. Portanto, a investigação incidirá em uma situação em que as incertezas sociais, políticas e morais tornam-se mais complexas, e não menos, pelo conhecimento científico. The word “controversy” refers here to every bit of science and technology which is not yet stabilized, closed or “black boxed”; it does not mean that there is a fierce dispute nor that it hás been politicized; we use it as a general term to describe shared uncertainty (VENTURINI, 2009, p. 6)16 De acordo com Venturini (2009), o mapeamento de controvérsias tem uma metodologia precisa: serão utilizados cinco níveis de análise, ou “lentes” diferentes de observação, que propiciarão uma multiplicação das perspectivas. Começaremos pela identificação das declarações concorrentes, dos argumentos em disputa, e para a discussão da literatura que os suporta. Da literatura vamos aos diversos atores envolvidos na questão. Estes atores estão ligados de alguma forma, aliados ou em conflito – constituem, portanto, redes complexas a serem reconstituídas. Das redes vamos à cosmologia, e as suas diferentes versões. E por fim, vemos como as diferentes cosmologias se confrontam em relações de poder: a cosmopolitica. Para Venturini (2009), sua a compreensão requer “abandonar uma das ideias mais veneráveis da cultura ocidental: a crença de que, por trás de todas as ideologias e controvérsias, deve existir alguma realidade objetiva independentemente do que os atores pensam ou dizem”. De acordo com essa ideia (que pode ser rastreada até caverna de Platão), ambas as ideologias e controvérsias derivam da imperfeição do intelecto humano. Muitos preconceitos, os interesses, as ilusões, as preocupações em distorcer a visão subjetiva do mundo, tanto que os homens são levados a acreditar que eles vivem em diferentes cosmos e que devem lutar por eles. Se todos os homens 16 Segundo a documentação oficial do Macospol (Mapping Controversies on Science for Politics) “a palavra “controvérsia” refere-se aqui a cada pedaço de ciência e tecnologia que ainda não está estabilizado ou fechado em “caixas-pretas”; isto não significa que há uma disputa feroz ou que esta ainda não foi politizada; nós as utilizamos como um termo geral para descrever incerteza compartilhada” (tradução nossa). 28 pudessem ver a realidade como ela realmente é, eles, de forma pacífica e racional, negociariam sua existência coletiva. Além de ser muito centrada no homem (como ele se esquece que nem todos os atores sociais são seres humanos), essa idéia tem uma grande desvantagem: ela muitas vezes acaba justificando o absolutismo. Assim, como substrato na final da verdade é postulada, os atores começam alegando ter um acesso privilegiado a ela. Através da filosofia, religião, arte, ciência ou da tecnologia, a realidade pode finalmente ser revelada e todos (gostem ou não) acabarão por concordar. Infelizmente (ou melhor, felizmente), não importa o quão confiante esses profetas possam parecer, nem todos finalmente concordam. Essa é uma das lições cruciais da cartografia de controvérsia (VENTURINI, 2009, p. 18) É neste movimento de acompanhar a transição de um estado de instabilidade em direção à estabilidade (e vice-versa), de abertura de caixas-pretas em direção a um novo fechamento, que se pode visualizar mais nitidamente, num plano da imanência, as associações entre os atores. Segundo Venturini (2009), este estado de magma é um momento especial para cartografar controvérsias. Isso vale tanto para a observação e descrição etnográfica quanto para a atuação no próprio debate, pois, uma vez que há maior abertura para mudanças nestes estados, há mais espaço para dialogar e interferir nas tentativas de composição destes “mundos comuns”. Pegue qualquer verdade filosófica, religiosa, artística, científica ou técnica e você vai encontrar uma controvérsia. Às vezes, as disputas são temporariamente silenciados pelo fato de que alguns cosmos prevaleceu sobre os outros, ou pelo fato de que os atores descobriram um compromisso resistindo, mas nenhum acordo, nenhuma convenção, nenhuma realidade coletiva já chegou sem discussão. Isso não quer dizer que nunca poderíamos habitar um mundo de paz, que nós nunca poderíamos alinhar nossas visões, que nunca poderia concordar com a verdade. Um mundo comum é possível, mas não como "algo que venha a reconhecer, como se tivesse sido sempre aqui (e que não tinha até agora percebido isso). “Um mundo comum, se é que vai existir, é algo que teremos que construir juntos, com unhas e dentes" (LATOUR, 1994c, p. 455) (VENTURINI, p. 18-19, 2009, tradução nossa). Antes de chegar neste “mundo comum”, portanto, é necessário fazer um esforço de tradução entre estes mundos tidos como incomunicáveis a priori, abrindo novos canais de comunicação. Como estamos lidando com “mundos” ou “ontologias” muito distintas, este trabalho de tradução não é levado a cabo sem modificações que vislumbrem alcançar certo nível de comunicação com o diferente. Portanto, nesta tradução fica evidente a alteração de sentidos, interesses e posições dos agentes, o que, por outro lado, também possibilita novas criações e rearranjos. Seguindo as idéias de Latour, traduzir (ou transladar) neste caso significa deslocar objetivos, interesses, dispositivos, seres humanos. Implica desvio de rota, invenção de um elo que antes não existia e que de alguma maneira 29 modifica os elementos imbricados. As cadeias de tradução referem-se ao trabalho pelo qual os atores modificam, deslocam e transladam os seus vários e contraditórios interesses. Descrevendo diversas táticas de deslocamento de interesses e objetivos, Latour (2000) esclarece que, além do significado lingüístico de transposição de uma língua para outra, a noção de tradução tem aqui um significado de transposição de um lugar para outro. Assim, transladar interesses significa, ao mesmo tempo, oferecer novas interpretações desses interesses e canalizar as pessoas para direções diferentes (LATOUR, 2000:6 apud CAVALCANTE, 2011, pp. 131-13). Devemos lembrar, por fim, que estas cosmologias postas em diálogo não têm as fronteiras bem demarcadas, pois, na prática, aparecem como híbridas. Em seguida, a fim de abordar o debate de forma mais complexa junto com os conceitos, entraremos numa descrição etnográfica deste movimento, buscando observar de perto e de dentro (MAGNANI, 2002) as controvérsias tomarem curso, localizando inclusive a mediação dos próprios autores, que estiveram presentes em alguns eventos científicos17, comunidades online18, cursos19 e eventos de games e de desenvolvedores de jogos20. 3.4 A antropologia cibernética e a etnografia virtual Pela própria característica do trabalho de campo, utilizamos aqui além da etnografia “convencional”, a chamada etnografia virtual. Segundo Rifiotis: A pesquisa no campo da “cibercultura” terá muito a ganhar levando em consideração a teoria ator-rede. Podemos interrogar a própria prática etnográfica sobre os limites de produzir narrativas de agências humanas e não-humanas, sobre a prática de rastreamento de associações e como destacar agências, ou identificar coletivos híbridos, mapear fluxos da ação e seus deslocamentos e controvérsias (RIFIOTIS, 2012, p. 11). Christine Hine (2000, p. 7) coloca um ponto importante na questão de onde localizar o trabalho de campo na etnografia virtual: “the field” is an epistemological rather than an 17 XI Simpósio Brasileiro de Jogos Eletrônicos e Entretenimento Digital (SBGames), I Súmula de Pesquisa em Games (SPGames), VIII Seminário Internacional Imagens da Cultura/Cultura das Imagens, III Seminário História de Roteiristas: Múltiplas Telas, banca da Defesa de Doutorado de Ivelise Fortim. 18 Dependência de Internet, IDGA São Paulo, Curso Unity Puc 2013, Unity 3D Brasil, Indie Game Developers, Boteco Gamer, SPjam. 19 Desenvolvimento de Games com Unity 3D, na PUC-SP. 20 2ª Maratona Paulista de Desenvolvimento de Games (SPJam), I Festival Games Brasil (MIS/IGDA), II Festival Games For Change América Latina, SPIN (Encontro de Desenvolvedores de Jogos Independentes de São Paulo), entre outros. 30 ontological category: it is a state of mind21. Knorr-Cetina, por sua vez, pontua a faceta da virtualidade a respeito dos estudos de ciência no laboratório: “the laboratory is a virtual space in most respects and in most respects coextensive with the experiment” (1992, p. 125). Por meio de dados etnográficos coletados em campo presencial e virtual, poderemos, então, fazer alguns apontamentos sobre quais seriam os principais pontos desta controvérsia e levantar questões que envolvem o encontro destas diferentes cosmologias a partir das perspectivas dos sujeitos envolvidos na discussão. Já que estamos propondo uma releitura da oposição entre o “real” e o “virtual”, também devemos abolir a ideia de que, para que a observação participante ocorra, haja uma necessidade intrínseca de estar sempre fisicamente presente no local de observação. (AMARAL; NATAL; VIANA, 2008). Neste sentido, serão realizadas diversas incursões a campo, online e offline, a fim de interagir com os sujeitos da investigação, por meio do método da observação etnográfica. Estas idas a campo terão o objetivo de captar as associações entre os agentes em termos cosmológicos – procurando compreender suas ideias a respeito dos videogames; e das práticas – materializadas nas atividades que desenvolvem e nas suas relações com seus outros. 4. Procedimentos Metodológicos 4.1 A pesquisa de campo: técnicas e tecnologias O ponto de unidade entre os diversos campos de coleta de dados é a própria controvérsia. Propomos, assim, unir a perspectiva latouriana com o conceito de etnografia multissituada de George Marcus (1998). Segundo ele, o pesquisador deve seguir as cadeias, as trajetórias e os fios que fazem parte de um fenômeno específico e tratar de fazer conjunções ou justaposições de situações, estabelecendo uma conexão ou associação entre elas22 (1998, p. 105). 21 Tradução: “o campo” é uma categoria epistemológica ao invés de uma ontológica: é um estado de espírito. 22 O objeto da pesquisa não é, assim, necessariamente, restrito a determinado grupo situado no interior de um campo de observação. Muitas vezes, o objeto consiste em um determinado fenômeno social), e sua construção ocorre ao se fazerem determinados movimentos (por meio de passos já previamente planejados ou oportunistas), seguindo pessoas, histórias, objetos, ao longo de várias cadeias, superpondo situações e verificando os pontos nos quais as intersecções, ressonâncias e associações ocorrem (MARCUS, 1995, p. 106). 31 A realização da etnografia multissituada não se restringe, assim, apenas à prática de campo; engloba também o fazer, a forma de relatar o que se ouviu. O “seguir as linhas” refere-se ao trabalho do pesquisador, no momento de analisar os dados. Trata-se de uma tarefa sua olhar para determinados aspectos, estabelecendo associação entre locais e fatos e fazendo escolhas que permitam a construção de determinada situação, na qual diferentes facetas de um mesmo fenômeno dialoguem entre si e se sobreponham. É nessa prática de recomposição de múltiplas perspectivas e situações, realizada pelo pesquisador, que as configurações que moldam o fenômeno social vão ganhando sentido (SCIRÉ, 2009, p. 98). Em nosso trabalho, o primeiro passo da pesquisa foi fazer uma revisão bibliográfica da produção científica, produzida no Brasil, mas principalmente no exterior (devido à quantidade abundante), que trata sobre o tema do vício em jogos eletrônicos. Foram reunidos cerca de 50 documentos científicos, entre artigos, livros e teses. A partir da leitura desses trabalhos se pode esboçar um mapeamento da conexão entre os autores e de suas perspectivas teóricas. Neste sentido, a pesquisa da literatura foi encarada como parte do trabalho de campo, pois são actantes importantes da controvérsia. A partir daí, se fez incursões em outros espaços, urbanos e virtuais, buscando jogadores classificados como usuários intensivos pelos demais agentes em seus múltiplos ambientes de jogo (casa, trabalho, escola, lan-houses) e sociabilidade (fóruns de discussão, blogs, comentários de notícias) Seguindo a rede dos atores, buscou-se investigar a agência na controvérsia de atores significativos como: pais, cônjuges ou outros familiares e colegas de trabalho de pessoas que utilizam esses jogos e que possam monitorar o seu uso; profissionais da indústria de games, a mídia, jornalistas, leis e agentes do governo. Nesse sentido, buscou-se construir uma etnografia polifônica (CLIFFORD, 1998), tentando reconhecer a fala de diferentes atores. Foram rastreadas mais de 120 notícias (e comentários dos usuários) em sites como G1 (globo.com), TechTudo, Folha de São Paulo, UOL, Estado de São Paulo, Hypescience, Toda Teen, Terra, Revista Galileu, Veja.com, FayerWayer Brasil, Via6, Mundo dos Hackers, Corpo Saun, Geek, Garotas Geeks, Coletivo Cult, Fóruns: Terra - Outer Space, Rock, Paper, Shotgun, GameStorming, GameAddict e Página 22; além de mais de dezenas de vídeos (em sites como YouTube) contendo reportagens da TV Globo, TV O Povo, TV Record, TV Ideologia, Rede Bandeirantes, Canal Futura, SBT, Via Legal; canais como TEDx e Games For Change, redes sociais como Twitter, Orkut e 32 Facebook, além de produções independentes dos próprios internautas. Além disso, foi catalogado mais de 20 vídeos circulados na internet sobre a controvérsia. Foram entrevistadas, por meio de um roteiro de perguntas semiaberto, pessoas que consideraram que fizeram (ou fazem), em algum momento de sua vida, um uso intensivo de videogames: este foi o critério para a escolha dos estrevistados. Muitos tomaram conhecimento e foram convidados para dar o seu depoimento para pesquisa por meio da rede social Facebook e das comunidades de gamers; em que pessoas que tenho contato direto indicaram outras pessoas que, segundo eles, faziam este uso intensivo de games. Neste sentido, em muitos casos tivemos depoimentos de “exviciados”, contando retrospectivamente o seu histórico de relações com os gamers (ver em Anexos). Também foram entrevistados alguns cientistas da área, como a psicóloga Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira, especialista em jogo patológico. No entanto, esta parte do trabalho de campo está um pouco atrasada. Conseguiu-se completar apenas cinco entrevistas, mas já estão previamente acordadas pelo menos mais 30 para os três próximos meses (ver a lista em Próximos passos da pesquisa), para serem escolhidas, no total, cerca de 20 para integrarem o estudo final. Também estão sendo feitas entrevistas com familiares desses jogadores, desenvolvedores e cientistas. Desse modo, dividimos nossos dados de campo em quatro categorias: 1) jogadores; 2) pais/conjuges/; desenvolvedores; 4) cientistas. Em muitos casos, no entanto, esta divisória não é clara, pois, por exemplo, muitos dos desenvolvedores também são jogadores, assim como alguns cientistas e familiares. Foram estabelecidos contatos com os seguintes agentes institucionais: o Grupo de Dependência de Internet e Jogos Eletrônicos do Ambulatório de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria, situado no Hospital das Clínicas (HC) em São Paulo, o Núcleo de Estudos em Psicologia e Informática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (ABRAGAMES), a Associação Comercial, Industrial e Cultural de Games (ACIGAMES), o projeto Jogo Justo, o coletivo Games For Change, o Simpósio Brasileiro de Games e Entretenimento Digital (SBGames), o USPGameDev (desenvolvedora de jogos gratuitos), International Game Developers Association - São Paulo (IGDA-SP), a Maratona Paulista de Desenvolvedores de Games (SPJam), além de 33 estudantes e professores dos cursos de graduação e de pós-graduação em Design de Jogos Digitais da PUC-SP. Nestes meses também se frequentou os circuitos dos desenvolvedores independentes e dos pesquisadores na área de games em São Paulo. A partir dos contatos iniciais foram seguidas as redes de atores que pareceram mais frutíferas. 4.2 A inserção do pesquisador na controvérsia O autor é integrante do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGASFFLCH/USP), onde está desenvolvendo esta dissertação como parte de seu Mestrado. Dentro da universidade coordena um pequeno grupo de estudos sobre Antropologia Cibernética, chamado CyberNAU, situado dentro do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana; e faz parte da rede Games for Change Latin America, que busca incentivar e desenvolver jogos com propósitos (se assim se pode dizer) de transformação social. Seu interesse pela pesquisa surgiu ao tomar contato com a abordagem de alguns profissionais da saúde que propunham um tratamento médico do problema, que, à primeira vista, não aparentavam ter familiaridade com o objeto específico dos videogames. Por meio da Antropologia, o pesquisador viu uma oportunidade de ajudar a construir um diálogo entre estes mundos apartados: as ciências e os games. Frise-se bem: o autor não tem qualquer ligação institucional com instituições ou pessoas relacionadas a abordagem clínica, seu interesse na discussão é sobretudo acadêmico. No entanto, pode se dizer que há componentes políticos e mesmo emocionais em seu envolvimento com os games, já que sua história na área de jogos coincide com a história de sua vida: praticamente desde o seu nascimento tem o hábito de jogar (embora nem de perto com a mesma intensidade que os jogadores que foram abordados na pesquisa) e inventar jogos e brincadeiras. É um desenvolvedor indie (independente) há mais de 10 anos: criou cerca de 20 jogos, entre jogos de cartas, tabuleiros e de computador, quase todos não publicados de forma oficial e sem interesse financeiro, Hoje coordena um projeto de criação de um game com os índios Kaxinawá (Huni Kuin) do Acre. O pesquisador sofreu um processo de mudança ao longo da pesquisa. Inicialmente demasiado crítico, o problema da chamada dependência afetou o seu modo de conceber 34 a questão ao atentar para casos muito delicados, conhecendo experiências de outros pesquisadores e reconhecendo que a questão da dependência é complexa: há casos em que este uso intenso traz uma série de sofrimentos pelo menos para algum lado da relação. Este processo o auxiliou no refinamento desta investigação e, em verdade, reforçou a necessidade inicial de construir uma abordagem interdisciplinar entre estes mundos distintos, de buscar entender de perto o que se passa nos games. Portanto, este afetamento não coloca em questão o conteúdo da investigação presente neste relatório, já que este sofreu as devidas alterações e foi revisado continuamente. Por fim, sua intervenção na controvérsia ainda é incipiente: teve uma entrevista publicada numa revista (Página 22) e deu palestras em eventos, como no Festival Games For Change Latin America, mas é necessário um maior estudo para chegar a conclusões mais bem sustentadas e divulgar seus resultados. 5. Resultados Parciais 5.1 Breves apontamentos A pesquisa atualmente encontra-se em fase intermediária, então não há como antecipar conclusões. Há outros profissionais há muito mais tempo discutindo esta questão, com mais experiência de campo e com evidências mais sólidas. Mas o diferencial desta investigação é o seu modo de abordar a questão: o da Antropologia, em especial da Antropologia da Ciência e da Tecnologia (área que tem afinidade com os sciences studies e com os trabalhos de Bruno Latour), que permite colocar em foco a relação entre homens e máquinas (e não os termos em si) e nos levará a problematizar muitos dos conceitos geralmente tomados como dados (ou “caixas-pretas”, na terminologia de Latour) em estudos dessa área. Inicialmente percebe-se que há uma noção naturalista de dependência traz uma série de pressupostos do que é o real e humano em oposição ao que é concebido por virtual e maquínico. A perspectiva do ciborgue permite trabalhar com a hipótese de que o vício seria um fenômeno que compreende relações não-controladas, não-domesticadas, em que está em jogo captura da subjetividade humana. Há uma polarização em torno de duas formas de abordar as relações humanas com os videogames. Na primeira, o objeto videogame causaria um vício incontrolável ao homem, que perderia assim a sua 35 racionalidade e capacidade de falar por si mesmo, ou seja, seu estatuto enquanto sujeito. Já a segunda, partiria dos benefícios que o homem – o sujeito por excelência em pleno controle da relação – colheria a partir do uso dos jogos eletrônicos. Quem engloba quem? Quem está no controle? O homem ou o videogame? Estas duas formas de abordar o problema paralisariam a discussão, pois não colocam o foco nas relações. A Ciência parece não ocupar um local central nesta discussão em todos os casos. Em termos de intervenção clínica, as iniciativas ainda são insipientes. Em outros países, como China, Coréia do Sul, Japão, e mesmo Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Finlândia, há centro de tratamentos, e nos Brasil, já há no Hospital das Clínicas (SP) um trabalho neste sentido. Mas não é a forma predominante de tratar o assunto. Muitas vezes as discórdias em torno do videogame são tratadas em âmbito doméstico, com o pai proibindo o filho de usar o aparelho, ou não é resolvido. No entanto, as gerações mais velhas, em geral, desconhecem os videogames e não têm os mesmos conhecimentos que seus filhos sobre o assunto, o que gera muitos problemas, pois os pais não têm guias para orientar o seu comportamento. Aí que entra o papel da ciência. Por exemplo, uma resolução da Associação Americana de Psiquiatria23 afirma que duas horas de atividades frente à tela, incluindo, televisão, computador, videogame, celular, tablets, etc., seria o máximo tolerável, depois disso já seria considerado uso excessivo. Esta é uma resolução que vai contra até a nossas realidades atuais formas de estudo e de trabalho no Ocidente. Classificar mais de 40% da população como viciada não parece ser a melhor solução para tratar do problema. Aliás, esta heterogeneidade na forma de classificação da dependência marca as discussões no campo, pois não há formas de diagnóstico e tratamentos estabilizadas que sejam consenso mesmo no campo científico. No entanto, há alguns modelos mais utilizados, sobretudo por psicólogos e psiquiatras. Por exemplo, o modelo cognitivo-comportamental trabalha com a ideia de Uso Problemático de Internet (UPI), definindo o “corte” para o que seria definido como dependência aquilo que traria consequências negativas para o indivíduo. Já o modelo neuropsicológico, ao examinar o que é entendido por impulso primitivo associado à 23 Hoje há uma discussão forte em torno da inclusão das dependências digitais (internet, celular, videogame) no novo documento da associação, o DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), o que deve aumentar a medicalização na forma de intervenção sobre os usuários. Isso eu não sou a favor, pois a questão é muito mais do que simplesmente médica. A proposta inclusive foi rejeitada na primeira tentativa. 36 dependência, parte de uma construção sobre o que seria o comportamento cerebral e faz uma associação direta à dependência química. Nesta perspectiva, a ativação farmacológica dos sistemas de recompensa do cérebro seria o grande responsável pela produção das potentes propriedades adictivas das drogas. Também há a teoria da compensação, que trabalha com a ideia do uso de videogames como um meio de compensar ou lidar com déficits de autoestima, identidade e relacionamentos. Argumenta-se que foram encontrados níveis mais elevados de solidão entre os considerados usuários patológicos. Em todas estas teorias há diversos pontos controversos, os quais são explorados na sequencia do trabalho. Em termos teóricos, há um esquema geral oriundo das drogas químicas que explicaria o comportamento adicto, dividindo-o em seis fases: saliência (atividade se torna a mais importante da vida da pessoa), mudança de humor, tolerância, sintomas de abstinência, conflito, recaída e reinstalação. Esse esquema é utilizado para quase todo tipo de dependência e foi levemente adaptado (com nenhuma modificação estrutural) para o caso da Internet e dos videogames, por pesquisadores como Mark Griffiths. No entanto, em tese, esta forma de entender relações muito intensas poderia ser aplicada a quase todo o tipo de relações, desde relacionamentos amorosos, trabalho, até leitura ou televisão. Mas isto, em geral, não acontece, e os videogames aparecem como um alvo privilegiado para críticas. Este modelo conforma uma gramática estruturante para explicar todo tipo de dependência, mas que, se adentrarmos em seus pormenores, veremos que não é neutra, mas recheada de valores e símbolos. Aí entramos no território específico da Antropologia. Pois, afinal, o que videogames e o crack teriam em comum – passando pelos vícios associados como os jogos de azar, pornografia, internet; que justificaria a utilização dos mesmos métodos de diagnóstico e de tratamento? Isto não é óbvio. Investigar como se dá esta ligação é um caminho que a pesquisa deve percorrer. Por exemplo, em alguns casos, os videogames são aproximados dos jogos de azar por partilhar as mesmas características lúdicas, de envolvimento com o caráter específico de jogo. Em outros (por exemplo, por Kimberly Young) são encarados como um subcaso do vício em internet, enfatizando, desta vez, o caráter virtual destes tipos de formas de relação. 37 O vício em videogame e em internet são diferentes em grande medida. Os videogames possuem lógicas específicas que envolvem sistemas de recompensas dos jogos, incluindo um balanceamento preciso entre o nível de desafio e a curva de aprendizagem do jogador, para que atenção do jogador seja atraída por um tempo prolongado 24. Por outro lado, a própria internet também é muito diversa. O quê a pessoa faz especificamente no computador deveria ser investigado além da tecnologia utilizada. O computador é, antes de tudo, um mediador. Os excessos com certeza são resultado das relações e não da tecnologia em si. Insistimos em tocar em controvérsias que dão sustentação à ideia do vício, como: a comunicação face-a-face como mais “humana” que a comunicação digital; o mundo dos jogos como mundo falso em oposição ao mundo verdadeiro das relações sociais, o que gera uma visão “escapista” da realidade; o videogame e a internet como local da anonimidade e da não-seriedade; o estudo e o trabalho como únicos usos legítimos do computador versus os usos lúdicos, tomados como improdutivos e “perdedores de tempo”. E não é porque os games possam ter usos benéficos que não existam usos nocivos. Uma perspectiva não anula a outra. Os videogames, não são ontologicamente nem bons nem maus. Mais uma vez, o foco está na relação, não na tecnologia em si. A cobertura jornalística deste assunto é complicada. Não só na área de adicção, mas um problema mais geral sobre a cobertura jornalística de pesquisas científicas. Quase nenhuma chega a problematizar a fundo as noções de vício ou de dependência e muitas vezes repetem jargões, propagando visões preconceituosas sobre o tema, tais como o estereótipo do gamer como uma figura socialmente isolada e às vezes perigosa. Hoje, as notícias divulgadas na Internet abrem um espaço para comentários do público, o que se revelou um espaço muito frutífero para pesquisa. Ali os jogadores muitas vezes reprovam a opinião dos especialistas sobre o tema e propiciam discussões interessantíssimas entre eles mesmos, entram em debate com pessoas que se preocupam com a situação de outro jogador, tais como pais, cônjuges ou colegas de pessoas próximas das ditas “viciadas”, conformando uma verdadeira arena de disputa de argumentos, conceitos e valores – algo próximo daquilo o que Latour chamou de 24 O MMORPG é o tipo de game que possui os casos mais graves de jogadores classificados como “viciados”, pois, entre outras explicações, as relações neste tipo de jogo são mais duradouras que em outros. 38 parlamento das coisas, que, em oposição ao parlamento dos homens, todos, homens e coisas, podem dar a sua contribuição sobre a controvérsia sem esperar que cientistas sejam seus porta-vozes. É positivo que existam vozes dissonantes, pois enriquecem o debate. Podemos também trabalhar com uma visão alargada do que entendemos por tecnologia. Se lembrarmos das obras clássicas de Mauss (1934), podemos entender que não só computadores e videogames, mas o nosso corpo e nossos olhos são tecnologias de apreensão e intervenção no mundo. Evitar a tecnologia, portanto, parece ser um lema que reduz por demais o problema. Nossa tentativa, enfim, é tentar desfazer a armadilha do dilema de se o videogame é droga ou não é droga, porque do ponto de vista das ciências sociais é um falso dilema que não vai nos ajudar a caminhar na produção de conhecimento a respeito de tanto do consumo educacional como lúdico, como laboral. O que a gente deve olhar é: Que tipo de agência esses jogos provocam na interação com as experiências e agências individuais, que são muito peculiares, e que podem mudar facilmente ao longo de uma trajetória individual, da trajetória de um grupo ou de algo ainda maior. Portanto, não está se questionando aqui que o tratamento terapêutico possa ajudar uma pessoa, mas sim o seu discurso oficial, que cria uma ideia sobre o que seria a vida real oposto ao virtual e ao lúdico. Desse modo, aqui está se colocando em questão não as práticas científicas em si, que são híbridas, mas, sobretudo, o seu discurso oficial purificado. Neste sentido, tampouco devemos separar estes dois elementos, pois o discurso também é uma prática, já que tem efeitos práticos: fazem-fazer. 5.2 Andamento da pesquisa Até agora foi realizada uma extensa pesquisa bibliográfica em campos que extrapolam a Antropologia, em virtude da natureza interdisciplinar da discussão. Foi feito também uma documentação de notícias jornalísticas em língua portuguesa sobre o assunto, que estão sendo reunidas em um website (http://gamedependencia.wordpress.com) para apresentação dos resultados da pesquisa, seguindo o método do Mapeamento de Controvérsias. Estas são novas formas de apresentar os resultados da pesquisa. Na parte de documentação há links para mais de 110 notícias, além de dezenas de vídeos e 39 artigos científicos em torno do assunto que foram utilizados na pesquisa. Além disso, feita uma pesquisa de campo (em fase intermediária), com uma imersão dupla no universo dos games e no universo das ciências psi. Neste período, foi feito todo um trabalho de inserção no campo, reconhecimento dos atores mais relevantes, construção de contatos com desenvolvedores, cientistas, profissionais da indústria e muitos jogadores. A pesquisa está prevista para terminar no tempo estipulado. Os pontos gerais da controvérsia já foram mapeados e as atividades de pesquisa estão bem encaminhadadas para o prosseguimento. 5.3 Próximos passos da pesquisa O próximo passo da pesquisa é o exame de qualificação, que deve acontecer no dia 27 de Agosto. Para a banca de qualificação estão convidados os professores Theophilos Rifiotis (UFSC/GrupCiber) e José Guilherme Magnani (FFLCH-USP/LabNAU), além do orientador Stelio Marras (IEB-USP/CEstA). Como suplentes estão convidados os professores Gilson Schwartz (ECA-USP/Cidade do Conhecimento) e Renato Sztutman (FFLCH-USP/CEstA). Depois da avaliação da banca, iremos corrigir as questões sobre a pesquisa e reiniciar a fase de coleta de dados de campo, sobretudo colhendo também entrevistas (e as transcrevendo) nos meses de Setembro até Outubro. A ideia é conseguir 20 entrevistas gravadas (contando que já temos finalizadas quatro), distribuídas entre as diferentes categorias de atores: gamers, parentes/cônjuges, desenvolvedores e cientistas. Já estão acordadas entrevistas com os gamers: Juliana Maransaldi, Ricardo Paiva, Breno Amorim, Rafael Silva Savietto, Bruno Moreira Rissi, Clayton Casari, Iago Haibara (e sua mãe, Mônica Haibara), Lucas Cruz Costa, Lucas Pedron Baptista (e sua noiva Carla Sion), Lucas Lopes, Bruno Desperati Mateos, Rodrigo Chiquetto, Mateus Pinho (e seu pai Severino Pinho) Yuri Tambucci, Rafael Moreira, Luiz Sá, Walmor Amorim, Pedro Schwartz, Marcus de Lima, Pedro Alvares, Gabriel Juliano Rodrigues e os filhos de Denise Fajardo e Luis Donisete Grupioni. Também estão planejadas entrevistas com os desenvolvedores de jogos: Sabrina Carmona, Emanuel Tavares, Alysson Silveira, Johnny William, Jay Santos (Gamer e Field Engineer na Unity); e com os cientistas: Maria Paula Magalhães Tavares de 40 Oliveira (Psicóloga), Ivelise Fortim (PUC/SP), Cristiano Nabuco de Abreu (Hospital das Clínicas/SP), Gilson Schwartz (Games For Change Latin America), Marcelo Mercante (NEIP). A partir do término das entrevistas entraremos na fase de análise dos dados de campo nos meses de Novembro e Fevereiro de 2014. Faremos um apanhado das principais questões em controvérsia e a partir das regularidades encontradas esboçaremos o mapeamento da dependência de jogos eletrônicos em diferentes níveis (enunciados, atores, redes, cosmologias e cosmopolíticas), vide Venturini (2009). Ainda restam poucas leituras a serem feitas neste período. No mês de Março de 2014 em diante, as atenções estarão focadas na redação final da dissertação e na revisão do conteúdo da pesquisa. Neste período regidiremos um capítulo, o terceiro capítulo da dissertação, acerca do aspecto virtual na dependência de videogame, e o capítulo final, acerca da experiência do jogador, levando em conta sua relação com os jogos, com as famílias, e com os desenvolvedores de games. Nos meses de Maio em diante iremos nos dedicar na redação do Relatório Final para a FAPESP e o depósito da dissertação no Departamento de Antropologia. 5.4 Cronograma atualizado Período Atividade SETNOVJANMARMAIJULOUT/2013 DEZ/2014 FEV/2014 ABR/2014 JUN/2014 AGO/2014 Exame de Qualificação Pesquisa de Campo e Entrevistas Análise dos Dados de Campo Escrita do Capítulo 4 Escrita do Capítulo 5 e Conclusão Organização formal da Dissertação 41 Capítulo 1 – Por dentro da rede: o conhecimento médico 1. A incerteza sobre a determinação do vício Neste capítulo iremos nos debruçar sobre algumas formas científicas de entendimento da dependência de videogames. A maioria das teorias aqui tratadas é oriunda das áreas da Psiquiatria (subárea da Medicina) e da Psicologia, sendo estas muito diversas entre si, em especial a Psicologia, que conta com diversas linhas de trabalho. Nosso esforço aqui será entender estas controvérsias científicas, primeiro entre elas mesmas, e depois em relação a visão dos próprios jogadores. Para tanto, de início apresentaremos as teorias na forma que são entendidas por alguns cientistas que as adotam. A seguir, iremos colocá-las em relação a partir de alguns questionamentos suscitados pelo cruzamento de perspectivas e pelo trabalho etnográfico com os jogadores. Nossa principal questão aqui é: quem determina se o jogador é viciado (ou não) nos jogos eletrônicos? A sua própria enunciação? Um teste científico? A fala daqueles que o cercam, como os pais, cônjuges e demais familiares? Em muitos casos, terapeutas tratam de jogadores que não identificariam a sua própria doença e teimariam em não querer largar o jogo. Ao mesmo tempo, especialistas afirmam que muitos daqueles que se dizem viciados, na verdade, não apresentam sintomas de dependência; enquanto outros que não se acusariam viciados, apresentariam tais sintomas. É nessa encruzilhada entre médicos e pacientes, jogadores e expectadores, autonomia e heteronomia entre saberes e determinações que entrarão em debate estes modos de classificação. Não raro, há consenso sobre se uma pessoa está com problemas em sua relação com os videogames. Ela mesma acredita que está viciada e quer parar de jogar, as pessoas com quem convive partilham da mesma opinião, e os especialistas confirmam, por meio de suas metodologias, que a pessoa vive uma relação de dependência negativa com os jogos eletrônicos. Já em outros casos, há jogadores que não se intitulam viciados, ninguém ao seu redor reclama do seu modo de utilização dos jogos eletrônicos e os cientistas não avaliam a relação como adictiva. No entanto, estes não são os casos mais interessantes, mas sim aqueles que, ao contrário, são controversos. Aí aparece a disputa de argumentos, a construção das associações, em suma, a feitura, a construção da própria ideia do que é ser um viciado em videogames. 42 O nosso principal objetivo aqui é fazer uma reflexão sobre as diversas classificações dos modos científicos de categorização da dependência e de como elas se apoiam e se afastam entre si. Não nos interessa simplesmente mapear a disputa pelas determinações, nem somente apresentar os critérios geralmente usados para classificar a dependência, mas entender, sobretudo, o que a classificação científica de alguém como dependente faz-fazer (LATOUR, 2000). Nesse sentido, as classificações são entendidas também como actantes (LATOUR, 2000), pois participam e modificam as redes de relações. Este tipo de categorização pode ser utilizado como instrumento político por uma diversidade de atores para os fins mais variados possíveis. O caso da IBM nos ajuda a pôr a questão: A IBM foi processada em 5 milhões de dólares por demissão injusta; um exfuncionário que usava salas de bate-papo durante as horas de trabalho está processando a firma por tê-lo demitido em vez de lhe proporcionar reabilitação, invocando a Americans with Disabilities Act. Podem se seguir mais processos por demissão injusta em companhias menores. O problema passa a ser o de que a empresa forneceu a assim chamada droga digital e pode ser responsabilizada por oferecer tratamento e programas de prevenção para a dependência de internet como um meio de diminuir suas ramificações legais (HOLAHAN, 2006). As teorias aqui analisadas foram extraídas do livro “Dependência de Internet: Manual e Guia de Avaliação e Tratamento”, única publicação em português sobre o assunto. Neste sentido, a leitura e a sua articulação de cientistas e jogadores se constitui como parte de nosso trabalho de campo. No entanto, esta limitação traz um problema de antemão: a maioria dos autores aqui trabalhados, como Kimberly Young, encara a dependência de videogames como um subcaso específico da dependência de internet, sendo esta considerada mais abrangente. Este modo de classificação se apresenta como a forma mais destacada e influente de tratar o problema dentro do campo médico. Entretanto, esta não é a única forma possível. Pensamos que diferentes agentes em relação provocam interações específicas, e, portanto, o mero transporte de uma teoria (no caso, de dependência de Internet) para outro contexto (videogames) seria uma demasiada simplificação do problema, oposto ao trabalho que estamos propondo de investigar a complexidade da controvérsia. Neste sentido, pretendemos apresentar como se constrói a sobreposição e a articulação entre as teorias de dependência de drogas químicas, jogos de azar, internet e videogames. 43 2. Modos de classificação do jogador de videogames como dependente A questão sobre a dependência de videogames é tomada tal como uma controvérsia em sentido estrito porque não há consenso em como diagnosticar, tratar e mesmo sobre a própria existência do dito vício. Muitos cientistas (GRIFFITHS; DAVIES, 2005; YOUNG, 2001) fazem questão de insistir que o vício em videogames (e em internet) existe de forma universal e que é uma novidade a qual as pessoas ainda não foram conscientizadas. Como afirma Young (2011, p. 51): “a dependência de internet parece ser um problema crescente, que independe de cultura, etnia ou gênero”. Smahel e Blinka também demonstram especial apreensão no caso dos MMORPG’s (jogos multijogador em massa de representação de papéis): É praticamente certo, contudo, que a dependência de jogos online tem aumentado nos últimos anos. Acreditamos que a realidade virtual como uma forma de escape do mundo real será cada vez mais comum – e os MMORPGs não serão exceção. Se a fronteira entre a realidade concreta e a realidade virtual continuar se tornando cada vez mais indistinta, seja pela melhora gráfica dos jogos, qualidade dos monitores, seja pelo desenvolvimento de novas ferramentas tecnológicas como monitores em óculos, luvas com sensores, e assim por diante, podemos esperar que esse fenômeno se torne ainda mais significativo e profundo. Será cada vez mais difícil para o jogador distinguir o mundo real do virtual, e sua imersão no jogo será ainda maior. A importância de se examinar os MMORPGs no contexto da dependência aumentará muito (BLINKA; SMAHEL, 2011, p. 115). Muito do conhecimento científico que circula na área de tratamento de drogas nas disciplinas de Psiquiatria e em certas vertentes da Psicologia, todas elas ligadas ao campo da saúde, influenciam decisivamente o modo de conceber a relação intensa de jogadores com os videogames. Mas isto não é nada óbvio. Como se dá esta ligação? O que videogames e o crack teriam em comum – passando pelos vícios associados como os jogos de azar, pornografia, internet; que justificaria a utilização dos mesmos métodos de diagnóstico e de tratamento? Apresento um trecho sobre o vício em MMORPGs, dos mesmos autores acima citados, que abordam desta maneira o problema: A dependência dos MMORPGs é específica devido à presença virtual do jogador em uma comunidade, e também devido ao relacionamento com o personagem virtual, mas aparentemente não é especial no que se refere aos princípios e procedimentos terapêuticos. A nossa recomendação aos terapeutas de possíveis dependentes dos MMORPGs é que usem os procedimentos comprovados que costumam usar para outros tipos de dependência ou problema 44 e, possivelmente, combiná-los com as opções fornecidas pelo mundo virtual (BLINKA; SMAHEL, 2011). Quais seriam, então, estes conhecimentos científicos comprovados que acabam por tomar o status de porta-voz dos próprios jogadores? Somente poderemos ter a resposta a esta questão se considerarmos os variados atores a partir de sua articulação em redes complexas – redes, estas, de saber e de poder. Entendendo as alianças e as caixaspretas25 (LATOUR, 2000) que sustentam verdades bem estabilizadas entre os atores, visualizaremos a influência de atores poderosos como a Associação Americana de Psiquiatria26 e seu documento, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM)27, que leva a resoluções tal qual: “De todas as maneiras de avaliar a dependência de internet, os critérios baseados no DSM28 parecem ser a maneira mais aceita de definir o transtorno”. The DSM-IV (APA 1994) aims to be ‘practical and useful for clinicians by striving for brevity of criteria sets, clarity of language and explicit statements of constructs embodied in the diagnostic criteria’ (1994, xv). It is basically a classificatory system which aims to see, to isolate features, to recognize those that are identical and those that are different, to regroup them, to classify them 25 Para Latour (1994), uma caixa-preta é qualquer actante tão firmemente estabelecido que nós podemos desconsiderar seu interior. As propriedades internas de uma caixa-preta não contam na medida em que estivermos preocupados somente com seu input e output. Mas as caixas-pretas não são apenas aparatos, senão qualquer espécie de ator tão consolidado que se torna quase que inquestionável: por exemplo, uma teoria científica ou uma certa “verdade social”. 26 A American Psychiatric Association — ou Associação Americana de Psiquiatria — é a principal organização profissional de psiquiatras e estudantes de psiquiatria nos Estados Unidos, e a mais influente no mundo. Seus cerca de 38 mil membros são, em sua maioria, estadunidenses, mas muitos são de vários lugares do mundo. A associação tem várias publicações e panfletos, bem como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais, ou DSM. O DSM descreve as condições psiquiátricas e é usado mundialmente como referência para diagnóstico dos transtornos mentais. 27 O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM) é um manual para profissionais da área da saúde mental que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los, de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria. É usado ao redor do mundo por clínicos e pesquisadores bem como por companhias de seguro, indústria farmacêutica e parlamentos políticos. Existem quatro revisões para o DSM desde sua primeira publicação em 1952. A maior revisão foi a DSM-IV, publicada em 1994. O DSM-V está atualmente em discussão, planejamento e preparação, para uma nova publicação em 2013. Apesar de existirem outros guias como o ICD, o DSM continua sendo a maior referência da atualidade em termos de pesquisa em saúde mental. 28 Se aprofundarmos na rede que constitui o DSM veremos que o seu contexto político é um tópico controverso, incluindo seu uso por indústrias farmacêuticas e seguradoras. O potencial conflito de interesses tem surgido porque aproximadamente 50% dos autores que previamente selecionaram e definiram as desordens psiquiátricas do DSM tiveram ou têm relacionamentos com indústrias farmacêuticas. Alguns argumentam que a expansão dos transtornos no DSM foi influenciada por motivos de lucro e representa um aumento da medicalização dos seres humanos, enquanto outros argumentam que problemas de saúde mental são subestimados ou sub-tratados (KIRK, 2005). 45 by species or families (Foucault, 1977). As a classificatory system its purpose could be regarded as the translation of particular observed behaviours into symptoms. These symptoms are attributed with considerable significance – anaemic, diagnostic and prognostic (Foucault, 1973) (CROWE, 2000, pp. 6970). Desse modo, apesar da prevalência de atores como o DSM, os próprios cientistas das vertentes aqui debatidas afirmam que as pesquisas sobre a dependência de videogames tem sido problemáticas. Muitos estudos carecem da solidez empírica do planejamento experimental, baseando-se em dados de levantamento e informações de populações autosselecionadas, segundo estes próprios pesquisadores (YOUNG, 2011). Algumas pesquisas também não usam adequadamente grupos de controle, e em alguns casos tiram conclusões baseadas em um número muito pequeno de estudos de caso e questionários. A disputa entre as definições do próprio jogador e as definições por meio de outros agentes (ex: testes científicos) estaria posta a partir de um suposto desconhecimento do próprio jogador sobre a sua situação. A pergunta que os cientistas aqui referidos fazem é a seguinte: em que extensão alguém que se classifica como dependente realmente apresenta um comportamento de dependência? O que significa, então, este comportamento de dependência? A princípio isso não seria algo que poderia ser definido pelo usuário ele próprio, mas por um conceito tido como científico, pertencente ao campo das ciências, articulado em rede entre cientistas e seus aliados (LATOUR, 2000). Vamos, a seguir, colocar algumas questões neste sentido. Em um estudo quantitativo (SMAHEL; BLINKA; LEDABYL, 2007), encontrou-se uma concordância entre a autodefinição como dependente e o que estes autores denominam como comportamento de dependência em aproximadamente 21% dos jogadores; portanto, segundo os cientistas, essa é a proporção de jogadores que apresentam sintomas de dependência e se consideram dependentes. Quase um quarto dos jogadores diz ser dependente, mas não apresentaria sintomas de dependência. Isso ocorre, segundo os cientistas, provavelmente devido ao uso popular exagerado da palavra dependência – ou seja, caindo no senso comum, um termo tido como “seu” não estaria mais sobre seu total controle, tendo que disputá-lo com os demais atores. Muitos jogadores baseiam seu julgamento sobre ser ou não ser dependente unicamente na quantidade de tempo passada jogando. De um ponto de vista terapêutico, 6% dos 46 jogadores não se considerariam dependentes, mas apresentariam sintomas de dependência. Esse grupo não reconheceria seu comportamento dependente, e isso deveria ser trabalhado terapeuticamente. Os 49% restantes dos jogadores não se consideram dependentes e não apresentariam sintomas de dependência. Em outro estudo (BLINKA; SMAHEL, 2011, p. 113), um total de 27% dos jogadores de MMORPG apresentaria todos os seis fatores de dependência (descritos mais adiante) – uma parcela relativamente elevada, considerando-se o fato de que, por exemplo, o World of Warcraft é jogado por mais de 11 milhões de pessoas. Tais pesquisadores argumentam que uma vez que os jogadores passam muito tempo no jogo, é comum que, só por este critério, se classifiquem como dependentes. Outra pesquisa aponta que cerca da metade dos jogadores acredita ser dependente do jogo (YEE, 2006). Para explicar seus resultados, ela afirma que isso parece ser apenas uma tendência atual causada pelo emprego excessivo da palavra dependência, pois uma grande parcela desses jogadores não apresentariam sintomas de dependência do jogo. Por fim, outro estudo afirma que aproximadamente um quarto dos jogadores de MMORPG apresenta sintomas de dependência (SMAHEL, 2008; SMAHEL et al., 2008). 3. Dependência: conceitos e classificações 3.1 Um corpo partido: a dependência física e a dependência psicológica Primeiramente, propomos definir os conceitos de dependência com os quais estes cientistas estão trabalhando. As dependências são definidas por eles como uma compulsão habitual a realizar certas atividades ou utilizar alguma substância, apesar das consequências tidas como devastadoras sobre o bem-estar físico, social, espiritual, mental e financeiro do indivíduo. Em vez de lidar com os obstáculos da vida, administrar o estresse do cotidiano e/ou enfrentar traumas passados ou presentes, o dependente responderia de forma desadaptativa, recorrendo a um mecanismo de pseudomanejo.Segundo eles, a dependência tipicamente apresenta características psicológicas e físicas. A dependência física ocorreria quando o corpo da pessoa se tornaria dependente de certa substância e experienciaria sintomas de abstinência quando o consumo fosse descontinuado, como acontece com drogas ou álcool. Embora a substância adictiva inicialmente induza ao prazer, seu consumo continuado seria mais 47 instigado pela necessidade de eliminar a ansiedade provocada por sua ausência, o que levaria a pessoa ao comportamento compulsivo. A dependência psicológica se tornaria evidente quando a pessoa experiencia sintomas de abstinência como depressão, fissura, insônia e irritabilidade. Tanto a dependência comportamental quanto a dependência de substâncias geralmente originariam a dependência psicológica. Caplan (2002) considerou as dependências tecnológicas como um subgrupo das dependências comportamentais; já que a dependência de internet e de videogames apresentariam os componentes centrais de dependência (isto é, saliência, modificação do humor, tolerância, abstinência, conflito e recaída). 3.2 Componentes centrais da dependência de videogames I. Saliência: quando a atividade passa a ser a coisa mais importante na vida da pessoa, podendo ser dividida em cognitiva (quando a pessoa pensa frequentemente sobre a atividade) e comportamental (por exemplo, quando ela negligencia necessidades básicas como sono, alimentação ou higiene para realizar a atividade). II. Mudança de humor: experiências subjetivas influenciadas pela atividade executada. III. Tolerância: o processo de precisar de doses continuamente maiores da atividade para obter as sensações iniciais. O jogador, portanto, precisa jogar sempre mais e mais. IV. Sintomas de abstinência: sentimentos e sensações negativas acompanhando o término da atividade ou a impossibilidade de realizar a atividade requerida. V. Conflito: conflito interpessoal (normalmente com as pessoas do entorno mais próximo, família, parceiros) ou intrapessoal provocado pela atividade executada. É frequentemente acompanhado por uma deterioração dos resultados acadêmicos ou profissionais, abandono de antigos passatempos, e assim por diante. VI. Recaída e reinstalação: a tendência a retornar ao comportamento de dependência mesmo após períodos de relativo controle (SMAHEL; BLINKA, 2011, pp. 104-105). 48 Tabela 1.1 – Questionário sobre o Comportamento de Dependência do Jogo (id, p.112) Fatores Perguntas Saliência Você já negligenciou suas necessidades (como comer ou dormir) para ficar conectado à internet jogando? Você às vezes imagina que está no jogo quando não está? Modificação Você já se sentiu irrequieto ou irritado quando não pode estar no jogo? do humor Você se sente mais feliz e mais contente quando finalmente consegue jogar? Tolerância Você sente que está passando cada vez mais tempo no jogo online? Você se pega jogando sem estar realmente interessado? Conflitos Você às vezes briga com as pessoas mais próximas (família, amigos, parceira/o) por causa do tempo que passa jogando? Sua família, amigos, trabalho e/ou passatempos sofrem por causa do tempo que você passa jogando na internet? Restrições tempo de Você já fracassou ao tentar limitar o tempo que passa jogando? Acontece de você ficar no jogo mais tempo do que planejara originalmente? Dessa perspectiva, os dependentes de videogame apresentam saliência da atividade, experienciando frequentemente fissura (desejo incontrolável de usar) e preocupação com o videogame quando desconectados. Também se sugere que usar os videogames seria uma maneira de se escapar de sentimentos perturbadores, desenvolvendo uma tolerância ao videogame para chegar à satisfação, experienciando abstinência quando se reduz o uso, passando assim a ter mais conflitos com as pessoas por causa dessa atividade e voltando a recair, ou seja, todos os sinais clássicos de dependência. Esse modelo tem sido replicado a comportamentos como sexo, consumo de alimentos e jogos de azar (PEELE, 1985; VAILLANT, 1995) e seria útil para examinar o uso patológico (ou dependente) de videogames. 3.3 Construindo dependências: formas de composição Como adiantado na seção anterior, temos quatro possibilidades de considerar a dependência de games em relação a outras dependências: 1) como um subgrupo da dependência de internet, 2) como um tipo específico de jogo patológico, 3) como uma dependência tecnológica, e por fim, 4) como uma nova dependência, que junta aspectos de todas as anteriores. No primeiro caso, como já adiantado, o videogame é considerado como um subcaso da dependência de internet, sendo esta mais geral. Young, por exemplo, havia classificado a compulsão a jogos eletrônicos como “Compulsões do 49 computador”. Aqui, portanto, não se considera a especificidade da atividade do jogo, mas o uso do objeto: o computador (ou o console). Assim, o videogame é posto em paralelo a supostos vícios como sexo virtual, compulsão por comunicação online, utilização de redes sociais, entre outras atividades (cuja consideração enquanto vício também é controversa). Aqui não importa qual atividade se está desempenhando no computador, mas sim o seu uso efetivo, a sua dimensão de “virtualidade”, além do efeito físico do contato propiciado pela proximidade a um objeto eletroeletrônico, a entre outras motivações. No segundo caso, o videogame é considerado um subcaso da dependência de jogos de azar. É preciso lembrar que esta foi o primeiro tipo de dependência inventada (WAGNER, 1981) após a dependência de drogas “químicas”. Neste sentido, o vício no jogo de azar foi considerado a primeira dependência comportamental. Aqui se enfatiza o caráter lúdico da relação com os jogos, como a compulsão por ganhar, vencer desafios, obter recompensas e alcançar o êxtase. O jogo de azar tradicional, no entanto, envolve a utilização de moeda em espécie, que funciona como o elemento de media as apostas. No caso do vício em videogame, exceto em exemplos específicos como online poker, que unem os dois aspectos, não há presente o componente financeiro das apostas: são outras moedas que estão em jogo. No terceiro caso, o vício em videogame é considerado uma dependência diferente da dependência de Internet. Por vezes, é agrupado em uma categoria chamada dependências tecnológicas, que inclui também o vício em televisão, celulares, tablets e outros gadgets. Aqui, por um lado, se considera o aspecto virtual do uso dos games (além de outras características próprias ao que se considera como “tecnológico” no senso comum, que envolve a criação de novas necessidades de consumo ou a apreensão gerada pela popularização de novas mídias), mas por outro, não considera seu aspecto lúdico, presente, por exemplo, nos jogos de azar. Fortim (2013, p. 64-65), por sua vez, afirma que como os jogos mudaram desde a classificação de Young, ela preferiu agrupar na categoria Jogos Eletrônicos, todos os jogos que exigem como mediação a internet, o que inclui o jogo patológico, classificado por Young em outro item. Proponho, portanto, encontrar um ponto comum entre estas abordagens: tomar o videogame como um objeto único e distinto dos demais, que une aspectos tanto do lúdico, como do virtual (como na figura abaixo, que sugere posicionar 50 a dependência de videogames como uma intersecção entre as dependências de Internet e jogos de azar. Figura 1.1 – Intersecção entre as dependências de jogo patológico e de internet (do autor) A seguir, apresentamos as teorias explicativas mais utilizadas por um grupo específico de terapeutas psiquiátricos e psicólogos que trabalham com estas noções de dependência aplicada ao caso da internet e dos videogames: o modelo cognitivo comportamental, o modelo neuropsicológico e a teoria da compensação. 4. Apresentando teorias: a gramática das ciências 4.1 Modelo cognitivo-comportamental Davis (2001) introduziu a teoria cognitivo-comportamental do uso patológico de internet (UPI) que explica a etiologia, o desenvolvimento e as consequências associadas ao UPI. Davis caracteriza o UPI como algo que vai além de uma dependência comportamental: ele conceitualiza o uso patológico de internet como um padrão distinto de cognições e comportamentos relacionados à internet que resultam em consequências negativas para a vida. Ele propõe duas formas distintas de UPI: específica e generalizada. O UPI específico envolveria uso exagerado ou abuso de funções de conteúdo específico de internet (por exemplo, jogos de azar). Além disso, Davis argumenta que esses transtornos comportamentais ligados a estímulos específicos provavelmente se manifestariam de alguma maneira alternativa se o indivíduo não tivesse a possibilidade de acessar a internet. O UPI generalizado é conceitualizado como 51 um uso exagerado multidimensional da própria internet, que resulta em consequências pessoais e profissionais negativas. Os sintomas de UPI generalizado incluem cognições e comportamentos desadaptativos relacionados ao uso de internet que não estão ligados a nenhum conteúdo específico. O UPI generalizado ocorre quando a pessoa passa a ter problemas devido ao contexto exclusivo de comunicação virtual. Em outras palavras, a pessoa seria levada à experiência de estar conectada por si e em si mesma, e demonstraria preferência por comunicações interpessoais virtuais, em vez daquelas estabelecidas face a face. Nesse contexto, os pesquisadores afirmam que o uso moderado e controlado de internet seria a forma mais adequada de tratar o dito transtorno (GREENFIELD, 2001; ORZACK, 1999). A terapia cognitivo-comportamental seria o método preferido de tratamento (YOUNG, 2007), visando um maior controle dos pensamentos, já que esta teoria se baseia na premissa de que os pensamentos determinariam os sentimentos. O comportamento relacionado ao computador teria a ver com o uso “real” de internet, e o objetivo principal do tratamento seria a pessoa se abster das aplicações consideradas problemáticas, ao mesmo tempo em que manteria um uso controlado do computador por razões classificadas como legítimas. Com relação aos comportamentos não relacionados ao computador, o cliente seria auxiliado a fazer mudanças entendidas como positivas e permanentes em seu estilo de vida excluindo a internet. São estimuladas atividades que não envolvem o computador, como passatempos fora da internet, reuniões sociais e atividades com a família. Da perspectiva cognitiva, a pessoa que pensaria de modo adictivo se sentiria apreensiva, sem aparentemente nenhum motivo lógico, ao antecipar desastres (HALL; PARSONS, 2001). Embora os dependentes não fossem as únicas pessoas que se preocupam e antecipam acontecimentos negativos, eles tenderiam a fazer isso mais frequentemente que as outras pessoas. Young sugeriu que esse tipo de pensamento catastrófico poderia contribuir para o uso compulsivo de internet, ao fornecer um mecanismo de escape psicológico para evitar problemas reais ou percebidos. Estudos subsequentes hipotetizaram que outras cognições mal adaptativas, como a supergeneralização ou catastrofização e as crenças centrais negativas também contribuiriam para o uso compulsivo de internet (CAPLAN, 2002; CAPLAN; HIGH, 2007; DAVIS, 2001). As 52 pessoas que sofreriam do tal pensamento negativo geralmente teriam baixa autoestima e apresentariam atitudes pessimistas. Elas poderiam ser atraídas para o potencial interativo anônimo da internet, na tentativa de superar essa inadequação percebida. O modelo cognitivo ajudaria a explicar por que os usuários de internet criariam um hábito de uso compulsivo e como os pensamentos negativos sobre si mesmo manteriam padrões de comportamento compulsivo. Discutindo o modelo cognitivo-comportamental Primeiramente, este modelo aborda de forma que pode parecer óbvia a utilização da internet e dos videogames a partir de uma analogia feita ao uso de drogas. Ao transportar critérios previamente estabelecidos para outro contexto, neste caso o virtual, e vislumbrando que estas métricas podem ser aplicadas sem grandes modificações (nenhuma significativa, no caso), termina-se por simplificar demais a questão e a limitar-se a entender o uso dos games a partir de uma gramática científica da dependência que não leva em conta a própria experiência dos jogadores. A partir de sua própria régua e de seus mecanismos de referência circular (a classificação do dependente criaria o comportamento dependente e vice-versa) esta gramática pode abarcar em sua estrutura lógica tudo o que é considerado socialmente como negativo, revelando-se, ao final, uma máquina de criar dependências. O modelo cognitivo, ao mesmo tempo em que renega a segundo plano a influência do chamado social29 em sua teorização da dependência, se baseia numa oposição estanque entre razões legítimas e ilegítimas do uso do computador para distinguir qual seria uso recomendável e o uso problemático, sendo este último o único passível de ser classificado como potencialmente adictivo. Nessa oposição, as atividades classificadas como legítimas seriam somente as que estariam relacionadas ao trabalho e ao estudo, e as ilegítimas aquelas ligadas ao lazer – eu não precisaria reafirmar que tais conceitos são fruto das associações entre os atores sociais pela qual a pesquisa é composta. Os jogos, neste caso, não teriam espaço, pois não teria, em tese, nenhuma finalidade produtiva, mas somente recreativa. São somente classificados, pois, como atividades ilegítimas. 29 Chama-se sociedade ou mundo social à metade da velha Constituição que deve unificar os sujeitos separados dos objetos, e sempre submissa à ameaça da unificação pela natureza; é um todo já constituído que explica as condutas humanas e permite, então, abreviar o papel político da composição; faz o mesmo papel paralisante que a natureza, e pelas mesmas razões. O adjetivo “social” (em inferno do social, ou representação social, ou construtivismo social) é, então, sempre pejorativo, pois designa o esforço sem esperança dos prisioneiros da Caverna para articular a realidade sem ter os meios (LATOUR, 2004). 53 Como uma forma de caracterizar o comportamento dito patológico, a teoria também aponta o que eles chamam de consequências negativas para o indivíduo. No entanto, o negativo aqui é classificado pelos próprios terapeutas. Isto é problemático, pois não considera a fala da própria pessoa que está sendo diagnosticada. A determinação heterônoma aplicada via métodos científicos que carregam consigo diversas associações do que seja o positivo e o negativo, são escondidas em nome da neutralidade; a ponto de expulsar do parlamento das coisas as demais explicações dos atores. Este modelo também trabalha com uma valorização problemática da comunicação face a face em detrimento da comunicação virtual. Ela não baseia seu argumento de uma maneira convincente para desqualificar este último, de modo que toma o virtual de forma preconceituosa como um ambiente menos “real” ou menos “natural”, e deixa a impressão de que este tipo de comunicação não levaria em conta a plena utilização de todos os sentidos do corpo humano. Reforçamos nosso argumento com a companhia de alguns “nativos”. Eu acho pelo contrário, eu acho que a comunicação virtual é sublimada de vários bloqueios e várias questões que a gente tem da nossa dificuldade de relação face-a-face. Pela criação de um ambiente neutro, você inventa e cria uma imagem de si ali, podendo expressar seus desejos mais profundos, suas alucinações, enfim, suas criatividades. É um espaço liberado, um espaço criativo, onde o desejo humano ele se realiza ali, tirando algumas amarras. Lógico que tem implicação disso, da pessoa acreditar que a imagem que a pessoa tá transmitindo é de fato “real”. Ela é real porque ela é fruto de um desejo, mas ela não está necessariamente acoplada a vida daquela pessoa. Ela existe em outro plano. Fora do jogo, do chat, do plano da Internet (Gamer em Entrevista). O modelo cognitivo-comportamental também trabalha com a ideia de que a pessoa usa o videogame como um escape psicológico. Mas, nos perguntamos, escape do quê? Está implícito que seria da chamada vida real, a vida para o trabalho e para o estudo realizados offline. A interação com o videogame mais uma vez aparece como parte da vida irreal ou ilusória. Esta visão do escape não considera que as pessoas poderiam se envolver mais com os videogames porque, na comparação com as suas possibilidades de atividades, a escola e o trabalho parecem pouco interessantes, não apresentam componentes lúdicos bem desenvolvidos que atraiam a sua atenção e acabam por ser encaradas como maçantes, entediantes e repetitivas. Em contrapartida, estas pessoas vivenciam experiências relatadas como mais interessantes com os videogames, com os quais teriam a possibilidade de vencer desafios e desenvolver aprendizados de uma 54 forma mais engajada, mais imersa, exatamente o que aparece como sinal de dependência para este grupo de cientistas. É um mundo real porque é um mundo criado, concebido. E você pode criar a partir dele também. É uma realidade, só que ela é em outra dimensão. Ela é uma dimensão interativa, como a gente tá vivendo num contato físico, mas é um contato virtual. Isso não constitui como falso, ou fora da realidade, é como se fosse um plano de interação, como a gente tem vários planos de interação durante a vida (Gamer em Entrevista). Não trabalhamos aqui com a ideia de que o usuário do videogame tem pleno controle sobre o objeto “jogo”, mas sim com a ideia das múltiplas agências humanas e nãohumanas. O fácil acesso e a disponibilidade do videogame também fazem-fazer o jogador jogar. Ele não está controlando tudo o que faz, assim como ninguém (ou nenhuma coisa) o faz. Todos são superados pelos acontecimentos (LATOUR, 2002). Este tratamento cognitivo-comportamental visa, sobretudo, mudar o pensamento das pessoas para que elas não pensem negativamente e assim, livrarem-se da utilização dos jogos de forma classificada como compulsiva nestes métodos. Ele concebe, portanto, o pessimismo como o principal fator adictivo. Isto pode ser questionado: uma pessoa pode estar com baixas expectativas sobre a sua relação com as coisas e pessoas no futuro, mas isto não significa que ela deixaria de se envolver com as mesmas. Pessimismo não seria o mesmo que negar o convívio e deixar de participar das relações, e por isso não seria uma fuga do que se entende por real. Esta visão catastrofista ou premonitória parece questionável, já que de algum modo uma habilidade de prever acontecimentos negativos seria alçada a um componente causador do vício. É compreensível, sim, que se relacione a maior utilização dos jogos com a baixa autoestima em ambientes fora do jogo, apesar dos problemas de medição que isto possa acarretar. Mas se pode entender também que a pessoa possa alcançar uma melhora da autoestima via jogos e que a mesma desempenhe habilidades sociais melhores no jogo em comparação com outras atividades “fora da tela” – o que lhe geraria aumento de status, reconhecimento e realização. No entanto, porque isto tem de ser visto como falso? Outro problema desta análise é tratar o ciberespaço como espaço da anonimidade. Muitas pesquisas (CASTELLS, 2003) já realizadas apontam que as pessoas, na maior parte, se relacionam no ciberespaço com pessoas previamente conhecidas em contextos 55 fora da internet. No jogo, haveria um espaço maior para o contato com o desconhecido, mas ainda não seria o local da pura anonimidade – vide a popularização dos jogos sociais em plataformas como o Facebook, plataforma esta que favorece a uma aproximação muito forte entre a representação online da pessoa com a virtual e ao jogo entre pessoas que já são amigas fora da tela. A relação que a gente cria com as pessoas enquanto joga, tanto no jogo online e offline, ela não se termina no jogo em si, a gente acaba criando amizades que tem como princípio o jogo, a gente fala do jogo, mas ela se expande pra tudo. Eu conheci várias pessoas e cultivei amizades durante muitos anos, uma amizade que extrapolava o jogo, mas é como se fosse... É um amigo virtual (Gamer em Entrevista). O problema desta análise é que ela ainda continua operando numa divisão completa entre online e offline como se fossem dois mundos incomunicáveis, enquanto que hoje, com a expansão do uso da internet e dos videogames, estas duas formas de interação quase sempre necessariamente estão ligadas. 4.2 Modelo neuropsicológico A China Youth Association for Network Development apresentou um padrão para avaliar a dependência de internet incluindo um pré-requisito e três condições (CYAND, 2005). O pré-requisito é que a dependência de internet deve prejudicar gravemente o funcionamento social e a comunicação interpessoal. Um indivíduo seria classificado como dependente ao satisfazer qualquer uma das três seguintes condições: 1. Sentir que é mais fácil se autorrealizar virtualmente que na vida real; 2. Experienciar disforia ou depressão sempre que o acesso à internet for interrompido ou deixar de funcionar; 3. Finalmente, tentar esconder dos membros da família o tempo real de uso. Um dos cientistas dessa associação, Ying, propõe um modelo neuropsicológico de encadeamento para explicar o comportamento virtual dependente (TAO, YING, YUE; HAO, 2007). Este modelo, ao examinar o que é entendido por impulso primitivo associado à dependência, parte de uma construção sobre o que seria o comportamento cerebral e cria uma associação direta à dependência química. Nesta perspectiva, a ativação farmacológica dos sistemas de recompensa do cérebro seria o grande responsável pela produção das potentes propriedades adictivas das drogas. A 56 personalidade, o social e a genética entrariam como fatores secundários, que explicariam o envolvimento inicial e a velocidade do desenvolvimento da dependência, mas não como fator determinante: este seria o efeito da droga sobre o sistema nervoso central. Ainda sim, no caso de algumas substâncias, alguns fatores não farmacológicos poderiam interagir com a ação farmacológica da droga e provocar o uso compulsivo da substância, envolvendo assim o uso de substâncias que geralmente não são consideradas adictivas. Uso de videogame Impulso primitivo Experiência eufórica Uso repetido Enfrentamento passivo Reação de abstinência Tolerância Figura 1.2 – Modelo neuropsicológico de encadeamento da dependência de videogames Nesta teoria, a dopamina, um dos neurotransmissores encontrados no sistema nervoso central, teria uma função aparentemente importante na regulação do humor e do afeto e por causa de seu papel nos processos de motivação e recompensa 30. 30 Na via de recompensa, dopamina é fabricada na área tegmental ventral e é liberado no núcleo accumbens e segue para o córtex pré-frontal. Na via responsável por movimentação, a dopamina é produzida na substância nigra e liberada no corpo estriado. 57 TABELA 1 - Explicação da cadeia neuropsicológica da dependência de videogames Conceito principal Impulso primitivo Experiência eufórica Tolerância Reação de abstinência Enfrentamento passivo Efeito avalanche Explicação específica O instinto do indivíduo de buscar o prazer e evitar a dor, que é representativo de vários motivos e impulsos de usar o videogame. As atividades virtuais estimulam o sistema nervoso central do indivíduo, que se sente feliz e satisfeito. O sentimento impulsionará a pessoa a usar continuamente o videogame e prolongar a euforia. Depois de estabelecida a dependência, a experiência eufórica logo se transforma em hábito e em estado de entorpecimento. Devido ao uso repetido de videogame, o limiar sensorial do indivíduo diminui; a fim de atingir a mesma experiência de felicidade, o usuário precisa aumentar o tempo e o apego ao videogame. A tolerância de nível elevado é o trampolim para a dependência de videogame e o resultado do esforço da experiência eufórica referente ao videogame. As síndromes física e psicológica acontecem quando o indivíduo interrompe ou diminui o uso de videogames, e incluem principalmente disforia, insônia, instabilidade emocional, irritabilidade, e assim por diante. Quando o indivíduo se confronta com frustrações ou sofre efeitos prejudiciais do mundo exterior, surgem comportamentos passivos de acomodação ao ambiente, comportamentos que incluem imputação adversa de eventos, falsificação de cognições, supressão, escape e agressão. O efeito avalanche inclui experiências passivas que consistem em reação de tolerância e abstinência, e impulso combinado consistindo em estilos de enfrentamento passivos com base no impulso primitivo do indivíduo. Dentre os diversos sistemas de dopamina no cérebro, o sistema mesolímbico de dopamina31 aparentaria ser o mais importante nos processos motivacionais. Algumas drogas adictivas produziriam seus potentes efeitos sobre o comportamento ao aumentar a atividade de dopamina mesolímbica (DI CHIARA, 2000). A ligação neuroquímica com dependências comportamentais, como o jogo patológico ou a comida, ainda precisaria ser confirmada, mas alguns estudos sugerem que os processos neuroquímicos desempenham um papel central em todas as dependências, quer de substâncias, quer de comportamento (DI CHIARA, 2000). O modelo proposto de circuito cerebral de recompensas na dependência envolve o aumento de dopamina quando certas áreas do cérebro seriam estimuladas. Sua estimulação excessiva resultaria numa dessensibilização dos receptores gerando maior necessidade de dopamina para obter o mesmo efeito (esse mecanismo teria um papel importante no vício em jogo, 31 A via mesolímbica é uma das vias dopaminérgicas do cérebro. A via inicia-se na área tegmental ventral do mesencéfalo e forma conexão com o sistema límbico através do núcleo accumbens, a amígdala cerebelosa e o hipocampo, e também com o córtex pré-frontal medial. É sabido estar envolvida na modulação das respostas comportamentais aos estímulos que activam as sensações de recompensa através do neurotransmissor dopamina. 58 adicção sexual, alcoolismo e drogadicção). Para isso, o cérebro possuiria trajetórias especializadas que mediariam a recompensa e a motivação. A estimulação elétrica direta do feixe medial do prosencéfalo32 produziria efeitos intensamente gratificantes de recompensa por sua ação farmacológica sobre o núcleo accumbens33 e a área tegmental ventral34, respectivamente. A ação ventral tegmental dos opiáceos provavelmente envolveria um sistema endógeno de peptídeos opioides, mas a localização anatômica desse sistema jamais foi identificada. Recompensas ditas “naturais” (como comida e sexo) e outras substâncias (como cafeína, álcool e nicotina) também ativariam esse sistema cerebral de recompensas (DI CHIARA, 2000). Figura 1.3 – Córtex frontal35, núcleo accumbens, hipocampo36, substância negra e corpo estriado. 32 Prosencéfalo (ou encéfalo frontal), na anatomia dos vertebrados, é a parte mais rostral e frontral do cérebro. O prosencéfalo, o mesencéfalo, e o rombencéfalo são as três partes principais do cérebro durante o começo do desenvolvimento do sistema nervoso central. Ele controla a temperatura corporal, as funções reprodutivas, a alimentação, o sono e todas as emoções. No estágio das cinco cavidades, o prosencéfalo separa-se em diencéfalo (tálamo, hipotálamo, subtálamo, epitálamo e pretécto) e o telencéfalo. O cérebro consiste de córtex cerebral, substância branca subjacente, e glândulas da base. Quando o prosencéfalo embrionário não se divide o cérebro em dois lóbulos, que resulta em uma condição conhecida como holoprosencefalia. 33 Núcleo accumbens é uma estrutura cerebral ligada à sensação do prazer. É pertencente ao sistema mesolímbico dopaminérgico. Localiza-se próximo ao hipocampo. 34 Área tegmental ventral é um grupo de neurônios localizados em uma parte do tronco cerebral. Uma parte dele secreta dopamina. A descarga espontânea ou a estimulação elétrica dos neurônios da região dopaminérgica na via mesolímbica produzem sensações de prazer, algumas delas similares ao orgasmo. Indivíduos que apresentam, por defeito genético, redução no número de receptores das células neurais dessa área, tornam-se incapazes de se sentirem recompensados pelas satisfações comuns da vida e buscam alternativas "prazerosas" atípicas e nocivas como, por exemplo, alcoolismo, cocainomania, compulsividade por alimentos doces e pelo jogo desenfreado. 35 O córtex pré-frontal (PFC) é a parte anterior do lobo frontal do cérebro, localizado anteriormente ao córtex motor primário e ao córtex pré-motor. Esta região cerebral está relacionada ao planejamento de 59 Pesquisadores há muito tempo associam a dependência a mudanças em neurotransmissores no cérebro e alguns deles argumentam que toda dependência pode ser desencadeada por mudanças semelhantes no cérebro. Pesquisas farmacológicas buscaram construir o argumento científico do impacto positivo do tratamento medicamentoso nesse dito transtorno em testes de laboratório, como por exemplo, o uso do antidepressivo escitalopram (DELL’OSSO, 2008), utilizando-se de uma serie de técnicas como a seleção prévia de candidatos classificados como dependentes conforme a métrica científica utilizada, separação do grupo que “respondeu” daqueles que não reagiram ao medicamento, uso de grupo de controle e de placebo controlado. Problematizando o modelo neuropsicológico A teoria neuropsicológica trata o videogame como uma substância que fabrica um efeito sobre o corpo, de forma análoga à narrativa sobre as drogas. Trata, pois, da interação (de um só vetor) da substância entendida como videogame com o corpo entendido como humano. Esta abordagem tem um caráter universalista, que serviria para todos os casos, independendo de cultura, idade, sexo, ou qualquer outro “fator”. O argumento central desta teoria recorre a uma série de invisíveis, ou seres difíceis de visualizar por um nãoexpert. Estes atores, como a dopamina, o sistema mesolímbico, o sistema de afetos e recompensas do cérebro, as trajetórias especializadas do cérebro; entram como atores poderosos, que mobilizam muitos outros a partir de associações bem estabilizadas que as sustentam. Sob um aparente mistério justifica-se a teoria, e ajuda-se a amarrar e fortalecer outros agentes em caixas-pretas de difícil abertura, a não ser com o exame minucioso da complexidade de sua linguagem. O modelo neuropsicológico desconsidera o social como mediador, mas o toma como mero intermediário, ou como dizem, fator secundário. O caminho para a cura também o comportamentos e pensamentos complexos, expressão da personalidade, tomadas de decisões e modulação de comportamento social. A atividade básica dessa região é resultado de pensamentos e ações em acordo com metas internas. A função psicológica mais importante relacionada com o córtex préfrontal é a função executiva. Esta função se relaciona a habilidades para diferenciar pensamentos conflitantes, determinar o bom ou ruim, melhor e pior, igual e diferente, consequências futuras de atividades correntes, trabalho em relação a uma meta definida, previsão de fatos, expectativas baseadas em ações, e controle social. Muitos autores indicam uma ligação entre a personalidade de uma pessoa e funcionamento do córtex pré-frontal. 36 Hipocampo é uma estrutura localizada nos lobos temporais do cérebro humano, considerada a principal sede da memória e importante componente do sistema límbico. Além disso é relacionado com a navegação espacial. 60 desconsidera e a tentativa de tratamento passaria então pela medicalização, pela ingestão de outras substâncias farmacológicas que alterariam a dinâmica dos atores considerados (vide as pesquisas acima citadas). Todos os outros agentes desconsiderados – o próprio social – se reuniriam então num plano oficioso, ao contrário da dopamina, do sistema nervoso, das recompensas – estes sim entendidos como agentes naturais, objetivos, dos fatos científicos, que ocupam o plano oficial. O tema dos sistemas de motivação e recompensa, que aparece na voz dos atores do modelo neuropsicológico, parece ser rico para a continuidade da pesquisa, pois encontra um canal de diálogo com os game designers, profissionais que criam os videogames. Estes também trabalham com o termo sistemas de recompensas, mas talvez com um objetivo contrário ao dos agentes de saúde: como uma forma de investigar como poderiam fabricar jogos que mantenham a atenção e a motivação dos jogadores de forma contínua, sem que eles percam o interesse no jogo, e, portanto, não parem de jogar. Para isso, os game designers criam um sistema de cumprimento de metas e de balanceamento de uma série de variáveis, tais como a relação de risco-recompensa que um jogador vivencia em uma situação de jogo, a curva de aprendizagem do jogo (aumento de dificuldade do nível do jogo em relação ao aumento da habilidade decorrente da experiência do jogador), posicionamento de certos momentos de clímax no roteiro. Estas recompensas poderiam vir de diversas formas, como a descoberta de novos espaços e/ou de novas fases, evolução do personagem, ganho de novas habilidades ou equipamentos, pontuação, aumento de status entre outros jogadores e até mesmo animações, sons ou imagens. Mas este é um assunto que trataremos no capítulo quatro, a partir de uma etnografia com os desenvolvedores de jogos. 4.3 Teoria da compensação A teoria da compensação trabalha basicamente com a ideia do uso de videogames como um meio de compensar ou lidar com déficits de autoestima, identidade e relacionamentos. Argumenta-se que foram encontrados níveis mais elevados de solidão entre os considerados usuários patológicos. Em geral, os considerados dependentes de videogame teriam dificuldade em formar relacionamentos íntimos com os outros e se esconderiam na anonimidade do 61 ciberespaço para se conectar com pessoas de maneira não ameaçadora. Virtualmente, o indivíduo poderia criar uma rede social de novos relacionamentos. Com visitas rotineiras a um determinado grupo, ele estabeleceria um alto grau de familiaridade com outros membros do grupo, criando assim um sentimento de comunidade. O usuário se adaptaria, assim, às normas correntes do grupo. Existindo supostamente apenas virtualmente, o grupo existiria em um tempo e espaço paralelos, desconsideraria as convenções normais relativas à privacidade e se manteria vivo somente por meio da intermediação do computador. Uma vez estabelecido o senso de pertencimento a um determinado grupo, os dependentes de internet dependeriam do intercâmbio pela conversação para obter companhia, conselhos, entendimentos e, inclusive, romance. A capacidade de criar uma comunidade virtual deixaria para trás o mundo físico – as pessoas conhecidas, fixas e visuais deixariam de existir – e os usuários anônimos criariam um encontro de mentes que viveriam em uma sociedade baseada puramente em textos. Assim, os usuários compensariam o que lhes falta na chamada vida real (CAPLAN; HIGH, 2007). Eles poderiam usar os jogos para encontrar significado psicológico e conexões, formar vínculos íntimos e se sentirem emocionalmente próximos uns dos outros. A formação dessas arenas virtuais criaria uma dinâmica de grupo de apoio social que atenderia a uma necessidade profunda em pessoas cuja suposta vida real seria empobrecida e careceria de intimidade em termos interpessoais. Em algumas circunstâncias da vida consideradas limitadoras do acesso da pessoa aos outros, seria mais provável que o indivíduo utilizasse os games como um meio alternativo para estabelecer os alicerces sociais que faltaria em seu, assim chamado, ambiente imediato. Em outros casos, quem se sentiria socialmente pouco hábil ou teria dificuldade em criar relacionamentos entendidos como sadios na suposta vida real descobriria que conseguiria se expressar mais livremente e encontraria o companheirismo e a aceitação ausentes em sua vida. Há estudos (KRANT, 1997) que apontam uma correlação entre o isolamento social, a depressão e o uso de jogos eletrônicos. Outros, que investigam o impacto psicológico, associam o jogo à diminuição da comunicação familiar e à redução do círculo social local; a um aumento na solidão e depressão – mesmo no uso considerado modesto, pronunciados no caso dos jovens. Há pesquisadores que afirmam que descobriram que 62 quanto mais os usuários eram dependentes, mais eles usariam os jogos como fuga (YOUNG; ROGERS, 1997). Quanto mais estressados pelo trabalho ou deprimidos, os dependentes tenderiam a usar mais os jogos e relatariam graus mais elevados de solidão, humor deprimido e compulsividade quando comparado a outros grupos. A depressão aparece ligada ao uso excessivo dos jogos, mas não foi demonstrado nestas pesquisas se a depressão causa dependência ou, inversamente, se ser dependente causa depressão; limitando-se a constatar uma correlação entre estas duas variáveis, que segundo os estudos, se reforçariam mutuamente. A teoria recomenda que os terapeutas atentem para como os usuários poderiam compensar o que falta em sua vida supostamente real usando os videogames, destacando que estes podem se tornar extremamente reforçadores na superação da baixa autoestima, falta de habilidade social, solidão e depressão. Ao mesmo tempo, comenta que quem sofre desses problemas pode estar mais vulnerável e corre maior risco de desenvolver tal transtorno. Enfim, recomenda que os terapeutas devessem examinar outros fatores considerados comórbidos com os quais o cliente estaria lidando (somente aqui entraria o “social”). Ao final, sugere perguntas, como: O cliente está usando o videogame para satisfazer necessidades sociais? Estabelece relacionamentos virtuais para fazer amigos devido à fobia social? Ele usa o jogo online para se sentir poderoso quando sofre de baixa-estima? Ele usa o jogo para lidar com uma depressão clínica? Questionamentos sobre a teoria da compensação Poderia parecer que, ao contrário do modelo neuropsicológico, a teoria da compensação levaria em conta o “social”. Sim, isto acontece, no entanto de forma específica. O social, ou a sociedade, aqui aparece como o mundo exclusivo dos humanos. A visão de que as pessoas recorrem à Internet por estarem sozinhas, ou por terem baixa autoestima, deriva de uma concepção de solidão que somente leva em conta as relações estabelecidas entre seres humanos. A única ausência aqui somente poderia ser a de relações com humanos em ambiente offline. Os outros seres, como os animais, plantas, divindades, ou objetos pertencentes ao reino da tecnologia, tais quais os videogames, estariam fora da “sociedade”. E assim, fora das relações entendidas como verdadeiras. Operando na visão da falta – de autoestima, relacionamentos, de identidade, e em último caso, de realidade, esta teoria não chega a atentar para o que efetivamente está 63 acontecendo com os jogadores. Podemos argumentar que ela trabalha com uma ideia de uma dependência da troca: as múltiplas trocas realizadas em um ambiente falso se reforçariam a tal ponto que não permitiria mais o indivíduo sair dessa rede perigosa de prestações múltiplas. Mas se tudo o que o homem faz o ultrapassa e está além de seu controle, em qualquer tipo de relação, porque esta seria classificada como doentia? Não estaria aí novamente a tentativa do homem moderno, convencido de ser o senhor de si e do mundo, de controlar a natureza e a todos os demais atores com quem convive (mas que, ao mesmo tempo, desconsidera)? Os terapeutas, neste sentido, tentariam em vão reestabelecer a imagem do homem senhor de si por meio do tratamento, que assim que curado passaria a controlar seu uso de forma plena, tal como um sábio distintor daquilo que faz o bem e o mal. A hipótese é muito mais simples, e os modernos, na verdade, nunca a abandonaram. Aquele que age não tem o domínio daquilo que faz; outros, que o superam, passam à ação. Nada que autorize, contudo, a afogar o sujeito no mar do desespero. Não existe em lugar algum um ácido capaz de dissolver o sujeito. Este último ganha autonomia, ao conceder a autonomia que não possui aos seres que advêm graças a ele. Ele aprende a mediação. Ele provém dos fe(i)tiches. Ele morreria sem eles. Se a expressão parece difícil, que ela seja comparada à aparelhagem inverossímil, como todos seus maquinismos, engrenagens, contradições, feedbacks, reparos, epiciclos, dialéticas e contorções destes marionetes-marionetistas, enredados em seus fios, às vezes visíveis e invisíveis, mergulhando na crença, a má consciência, a má fé, a virtualidade e o illusio... Ao querer fazer mais simples que os fe(i)tiches, os modernos fizeram mais complicado. Ao querer fazer mais luminoso, fizeram mais obscuro. Quem quer fazer o anjo, faz o homem (LATOUR, 2002, p. 102). Assim como o modelo cognitivo-comportamental, esta teoria também apresenta o ciberespaço como o local da anonimidade. O ciberespaço, anunciado como um ambiente não-ameaçador, se mostra, ao contrário do que pensam estes cientistas, um local perigoso ao passo que a pessoa mantém relacionamentos profundos nos jogos e cria uma reputação online. Para não mencionar o argumento já citado de que esses mundos – online e offline – estão intrinsecamente conectados e de que as pessoas conhecidas em ambientes offline em geral são as mesmas daquelas com quem as pessoas mantêm contato via online. Desse modo, fica difícil sustentar a ideia postulada por esta teoria de que relacionamentos íntimos seriam impossíveis na internet, sem levar em conta a sobreposição destes “dois mundos” tomados como separados. A acusação de que estes grupos existiriam apenas virtualmente, de que se manteria vivo somente por meio da intermediação do computador, mais uma vez parte de uma 64 aproximação dicotômica real-virtual, mesmo que a agência do objeto computador aqui seja considerada importante para a construção e transformação destas relações. É cabível afirmar que estes grupos existam em um tempo e espaço diferentes das convenções ditas como normais, e talvez seja exatamente por conta disso que apareçam como tão ameaçadores. O mundo virtual é real. O mundo virtual é tão real quanto o mundo que a gente vive. Eu não tenho a menor dúvida disso porque as minhas sensações são reais. A sensação de liderança, a sensação de batalha, a adrenalina... Se as sensações são reais porque que não é real? É real, é totalmente real. Eu sou o cara que eu acredito que gente vive atualmente numa simulação, eu tenho essa teoria que a gente vive na Matrix e tudo mais. E isso aqui é real. Então eu não vejo motivos pra não crer que um jogo que seja extremamente imersivo... Ele passa a sensação de ser real, então porque que ele não é real? Se você discutir assim: “Ah, não, mas realidade realidade?” Bom, realidade realidade só existe essa. Mas que é real entre aspas, outro tipo de real, é. Porque as sensações são reais. Então é real. Entende meu ponto de vista? Tem gente que acha diferente, que fala “não, mas, não é real”. No jogo você age de forma ativa e tem as sensações. Você está atuando, você não tá só recebendo coisas. Você tá agindo e você tá sofrendo com as consequências dos seus atos da mesma maneira que você sofre na vida real. Então é real. (Gamer em Entrevista) O mais curioso é que esta teoria trabalha com uma contradição inerente ao seu próprio argumento: ao mesmo tempo em que afirma que os videogames contribuem para formar vínculos íntimos e superar a solidão (entre humanos), diz, ao contrário, que estas relações são falsas e que as pessoas que fazem uso dos jogos são mais solitárias e depressivas. A vida vivida no virtual é novamente entendida como não-real, já que não estaria dentro do que os cientistas chamam de ambiente imediato – concepção que trabalha com uma concepção naturalista de espaço derivada das ciências biológicas. Constrói-se, então, uma referência circular: os mais dependentes é, nesta teoria, os que mais fogem da vida “real”; ao passo que as pessoas que passam mais tempo no virtual, logo no “não-real”, são classificados como dependentes. Tomados por esta máquina de criar dependências, devemos então problematizar a controvérsia no seguinte sentido: Quem é que criou as réguas para definir o que é a solidão; a compulsividade, o adequado ou não para uso? Encontramos uma multiplicidade de concepções se sairmos deste reduto científico (já múltiplo em si mesmo) e partirmos para a prática dos demais atores envolvidos. 65 4.4 Fatores situacionais Segundo esta mesma linha de pesquisadores, os chamados fatores situacionais desempenhariam certo papel no desenvolvimento da dependência de videogame. Os indivíduos que se sentem oprimidos enfrentam problemas pessoais ou passam por mudanças de vida como um divórcio recente, recolocação profissional ou morte de alguém querido poderiam se absorver num mundo de fantasia e fascínio (YOUNG, 2007). O videogame poderia se tornar uma fuga psicológica que distrai o usuário de um problema ou situação difícil da chamada vida real. Como um meio de lidar num novo ambiente, o usuário poderia recorrer ao videogame para preencher o vazio das noites solitárias. O usuário também poderia ter uma história de dependência de álcool ou drogas, e considerar o videogame uma alternativa fisicamente segura para sua tendência adictiva. Ele pode acreditar que ser dependente de videogame seria medicamente mais seguro que ser dependente de drogas ou álcool – sem perceber que continuaria se comportando compulsivamente para evitar as dificuldades subjacentes à dependência. Os usuários que sofrem de múltiplas dependências seriam os que correm maior risco de dependência de videogame. Pessoas com personalidades adictivas tenderiam a usar mais álcool, cigarros, drogas, comida ou sexo como uma maneira de lidar com problemas. Elas aprenderiam a lidar com dificuldades situacionais por meio do comportamento dependente e o videogame lhes parece uma distração conveniente, legal e fisicamente segura, desses mesmos problemas da vida real. Nos casos em que o sujeito também é dependente do sexo ou de jogos de azar, o videogame passaria a ser uma nova maneira de se dedicar a esses comportamentos. Observamos que o estresse situacional, seja ele divórcio, luto, perda recente do emprego ou luta pelo sucesso acadêmico, pode levar a pessoa a usar a internet com maior intensidade. Nem todos os indivíduos que usam a internet como uma fuga momentânea ou um meio de controlar o estresse situacional se tornam dependentes. Seu comportamento pode ser temporário e desaparecer com o tempo. Mas há casos em que o comportamento passa a ser persistente e constante, e as atividades virtuais se tornam exageradas. O comportamento, progressivamente, passa a girar em torno do uso de internet. A pessoa adapta seu comportamento e se concentra em aplicações que inicialmente eram necessárias para o trabalho, como um BlackBerry, ou recreativas, como uma sala de bate-papo ou jogo. Na medida em que o comportamento se intensifica e o uso de internet se torna crônico e arraigado, transforma-se numa obsessão compulsiva. Nesse estágio a pessoa se torna incapaz de manejar sua vida, e o comportamento compulsivo passa a prejudicar os relacionamentos e/ou a atividade profissional (YOUNG, 2011, p. 32). 66 Segundo estes cientistas, a pessoa estaria vulnerável à dependência quando se sente insatisfeita com sua vida, não tem relacionamentos íntimos ou sólidos com os outros, não tem autoconfiança nem interesses envolventes, ou não tem mais esperança (PEELE, 1985, p. 42). De maneira semelhante, os indivíduos que estão insatisfeitos ou sofrendo em alguma área específica ou em várias áreas da vida apresentam maior probabilidade de se tornarem dependentes de internet por não conhecerem outra maneira de lidar com isso (YOUNG, 1998). Por exemplo, em vez de fazer escolhas positivas que trarariam benefícios, os alcoolistas costumam beber, o que amortece a dor, evita o problema e mantém o status quo. Todavia, quando ficam sóbrios, perceberiam que suas dificuldades não mudaram. Nada seria alterado pela bebida, mas pareceria mais fácil beber do que lidar com os problemas de frente. De forma semelhante, o usuário dependente acessaria a internet para amortecer a dor, evitar o problema real e manter as coisas como estão. Mas quando se desconectam eles perceberiam que nada mudou. Essa substituição de necessidades não atendidas em geral permitiria ao dependente escapar temporariamente do problema – mas não é a assim que se resolveriam os problemas. Portanto, neste sentido, seria importante que o terapeuta avaliasse a situação atual do paciente para determinar (YOUNG, 2011, p. 32-33) se ele não estaria usando o videogame como um cobertor de segurança, para evitar uma situação de infelicidade, tal como uma insatisfação conjugal ou profissional, doença médica, desemprego ou instabilidade acadêmica. Fatores situacionais? Fica difícil entender o que estes cientistas entendem por fatores situacionais: parece que tudo o que os modelos universais não explicam se encaixa neste modelo de “resto”. A “cultura” e a “educação”, por exemplo, aparecem como fator situacionais daquilo que as explicações universais não dão conta de abarcar. Estes “fatores” são colocados, portanto, como externalidades37; mas que, se nos aproximarmos em detalhe das 37 Exteriorização, externalização: os economistas usam a expressão externalidades para designar o que não pode ser levado em conta, mas que desempenha um papel importante (negativo ou positivo) nos cálculos; dá-se lhe aqui um sentido mais geral e mais político para substituir a noção usual de natureza exterior ao mundo social; isso não é um dado, mas o resultado de um procedimento explícito de colocar no exterior o que a pessoa decidiu não levar em conta ou o que põe em perigo o coletivo (LATOUR, 2004, p. 337). 67 situações práticas, observaremos que fazem toda a diferença. Podemos dizer, então, que esta necessidade de criar um modelo único, simples e até “teleológico” para prever os acontecimentos acaba por deixar de fora uma série de agências – daquilo que seria desprezível – fechando as portas, no plano oficial, para o imprevisível – sendo que este sempre está presente, ainda mais quando tratamos de jogo, no qual é um elemento central. De acordo com a teoria-ator-rede, pois, não há uma explicação única. Devemos observar a agência de um sobre todos os demais e vice-versa. Um dos aspectos que podemos apreender desta teoria é que aqui se enfatizam os períodos de maiores mudanças pelas quais as pessoas enfrentam. Nestas situações a pessoa experimentaria um enfraquecimento de algumas de suas relações e recorreria ao jogo para se reconectar a experiências significativas. No entanto, assim como nos outros modelos, esta experiência também é encarada como falsa: desconsidera a sua capacidade de auxiliar na resolução de problemas e no aprendizado que esta possa trazer à pessoa que joga. A barreira entre a vida “real” e a vida “virtual” acaba sendo o ponto de contato que perpassa todas as teorias e modelos que aqui descrevemos, sendo, portanto, o grande ponto em embate desta controvérsia: haveria uma só realidade, aquela ligada à matéria, à família, ao trabalho, desconectada do que se entende no senso comum por “tecnologia”, ou, pelo contrário, realidades múltiplas? 5. Reflexão sobre o culto moderno da Ciência Moderna The discourse of the DSM-IV (APA 1994) provides na image of what individuals could become and helps realign what they are with what they want to be – or what psychiatric discourse decrees that individuals should strive to be. This image of normality is dependent on the modification of personal desires with institutionally or socially valued goals. It could be regarded as a central text in ensuring that individuals meet social requirements for acceptable subjectivity. When individuals fail to measure up to these requirements they become part of the ever increasing psychiatric attention on all aspects of everyday life (CROWE, 2000, p. 76). Buscamos neste capítulo propor uma discussão sobre as teorias científicas que buscam determinar critérios objetivos para definir a dependência, intervindo a partir de uma perspectiva antropológica específica, proveniente da Antropologia da Ciência e da Tecnologia, sobre as pesquisas que tratam deste tema, geralmente dominadas pela Psiquiatria e por certas vertentes da Psicologia. A discussão ainda é pobre, pois carece 68 de dados etnográficos que os demais agentes trazem para esta controvérsia. Mas, ainda sim, o material coletado nos permite tecer algumas conclusões. Ao tratar o humano como sujeito e videogame como objeto (ou, do mesmo modo, como uma substância), as teorias da dependência aqui apresentadas acabam por inventar dois mundos separados: um mundo verdadeiro, a sociedade dos humanos, e um mundo falso, o da tecnologia e dos videogames. Erigi-se, assim, uma barreira (pensada como) intransponível entre estes mundos, apesar dos agentes circularem oficiosamente de um plano para o outro, causando efeitos uns sobre os outros, ou fazendo-fazer, de forma generalizada. Latour faz uma reflexão semelhante em “Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches”, que tomaremos aqui como aliada para discutir estas questões, que parecem seguir no mesmo sentido. De fato, não podendo mais situar as inumeráveis entidades com as quais misturamos nossas vidas (já que a imagem tradicional da ciência nos descrevera este baixo mundo repleto de causalidades eficazes), e não podendo tampouco nos resignarmos em alojá-las no âmago do nosso eu, transformando-as em fantasias, complexos ou jogos de significantes, só tínhamos como recurso inventar um outro mundo [...] Não existe outro mundo senão o baixo mundo. Não se tem tampouco que sucumbir às fantasias do eu. (LATOUR, 2002, p.88). O quê Latour toma aqui como baixo mundo seria o plano oficioso onde circulam as diversas entidades separadas pela taxonomia moderna, que divide o mundo entre natureza e sociedade, objeto e sujeito, real e fabricado, fato e fetiche. O alto mundo, situado no plano oficial, por sua vez, seria este da Ciência, autorizada a produzir verdades sobre ambos os polos, natureza e sociedade, com as suas ciências naturais e sociais, bem separadas em seus respectivos domínios. Com estas duas esferas apartadas, deve-se produzir um conhecimento específico para cada uma delas. Os homens, no reino da Sociedade, seriam os únicos sujeitos – seriam indivíduos, dotados de um “eu”, que deve ter controle de si e também da Natureza. Psicologiza-se, assim, o humano. As coisas, situadas no reino da Natureza, seriam os objetos cujas verdades, únicas e prontas desde sempre, devem ser somente “descobertas” pelos cientistas. Epistemologiza-se, da mesma forma, todos os não-humanos. Se o antigo sujeito da psicologia podia acumular sobre si mesmo, no seio de sua interioridade, a totalidade de seu ser, aquele que aqui aparece, quase-sujeito misturado aos quase-objetos, assemelha-se antes com algo disposto em camadas, como uma massa folhada, atravessado por diferentes veículos onde cada um o define em parte, mas, sem jamais ali se deter completamente. Como se pode perceber, ao menos eu espero, abandonar as diferenças entre as 69 interioridades da psicologia e as exterioridades da epistemologia não torna a misturar tudo. Ao se perder a distinção entre as representações e os fatos, não se mergulha de forma alguma no indiferenciado. Seguir os diversos veículos permite, ao contrário, retraçar outras distinções além das duas únicas impostas pela cenografia moderna, e nos convida a registrar outros contrastes. (LATOUR, 2002, p. 94) O que fazer, então, quando as coisas e os humanos aparecem tão intrinsecamente conectados, como os jogadores e os videogames? Como dar conta da explicação pura, sem produzir inúmeros híbridos? Como negar o ciborgue (HARAWAY, 2009)? Como “descobrir” o efeito “puro” do videogame sobre uma pessoa; sem saber se estamos tratando de qual jogo específico, qual pessoa específica, e tudo o mais a que ambas estão relacionadas? Curiosamente, operando de uma forma especial para contornar estas questões, é que alguns psiquiatras prosseguem. O teórico da etnopsiquiatria nos interessa pois, menos que o prático. O que este faz? Ele trata o doente, por meio de gestos, no interior de um dispositivo experimental artificial, que revela um tipo particular de energia cuja existência havíamos esquecido, de tanto epistemologizar nossos objetos e de psicologizar nossos sujeitos. Ele é um grande “charlatão”, e eu não teria compreendido o que ele faz antes de ter restituído um sentido positivo a esta palavra que serve comumente para estigmatizar o mal médico38 (LATOUR, 2002, p. 92). Somente trabalhando a partir destas oposições fundadoras – sociedade e natureza; sujeito e objeto – é que se pode inventar estes dois mundos: o chamado “real” e o “virtual”. O mundo real seria somente composto por certos humanos e certos objetos; humanos que viveriam somente na sociedade, e objetos que pertenceriam exclusivamente ao mundo das coisas. Deixem-me explicar melhor: Latour (2002) afirma que os objetos reais, para os modernos, seriam aqueles pensados como não-feitos pelos humanos; e que os humanos reais seriam aqueles pensados como não-fabricados pelos objetos. Concebe-se assim que os humanos somente seriam construídos e afetados por outros humanos; e que os objetos reais não seriam produzidos de forma alguma, pois estariam aí desde sempre, de outra forma seriam irreais. Sob pretexto de que ajudamos a fabricar os seres nos quais acreditamos, tal pensamento esvaziava todos os objetos-encantados, expulsando-os do mundo real, para transformá-los, uns após os outros, em fantasias, em imagens, em 38 Ao aplicar aos humanos um modelo epistemológico que nenhum cientista jamais aplicara aos objetos, os psiquiatras não teriam conseguido compreender, por imitação de um modelo inexistente da ciência, a originalidade própria da cura. Paradoxalmente, é preciso tratar os humanos como Pasteur trata o fermento de seu ácido lático, a fim de começar a “fazê-los falar” de maneira interessante. Sobre toda esta confusão dos modelos de dominação, ver Stengers (2003). 70 ideias. [...] Sob o pretexto de que os objetos-feitos, uma vez elaborados no laboratório, parecem existir sem a nossa presença, ele alinhava os fatos em batalhões compactos, compondo um “mundo real”, contínuo, sem lacuna, sem vazio, sem humano (LATOUR, 2002, p.75). Desse modo, doente seria o homem que não viveria na sociedade, isto é, entre relações humanas; mas que passa para o outro lado, que vive no mundo “irreal” dos objetos. Neste sentido, o jogador que perde o controle da relação com o videogame seria capturado pelas máquinas, sendo destituído da essência de sua humanidade. Por isso, esta pessoa precisaria de ajuda terapêutica para “voltar” ao mundo dos humanos e reestabelecer suas relações “verdadeiras”. Latour comenta que “são feitos esforços, por intermédio da cura, para dotar os doentes uma identidade, para congregá-los novamente, para reinseri-los em um território (LATOUR, 2002, p.90)”. Cria-se assim uma identidade doentia a partir de concepções de “real” e “virtual” que distinguem radicalmente o que é o humano e o não-humano. A virtualidade, via de regra, é associada a uma "não-realidade", concepção que não é das mais adequadas para se pensar o Ciberespaço. Vários pensadores argumentam que o virtual não se opõe ao real, mas sim que o complementa e transforma, ao subverter as limitações espaço-temporais que este apresenta. Desta forma, o virtual não é o oposto do real, mas sim uma esfera singular da própria realidade, onde as categorias de espaço e tempo estão submetidas a um regime diferenciado. Esta forma de conceber o virtual (o “real virtual”) é fundamental para se tratar de uma das dicotomias problemáticas dentro do campo da Cibercultura - a oposição entre o on-line e o off-line (SILVA, p.3). De acordo com Márcio Goldman (comunicação oral, 2013), não há ponto de vista que permita julgar qual realidade é mais real que as outras. Segundo ele, todas as realidades são igualmente reais. O perspectivismo proposto Viveiros de Castro, ele próprio e outros atores, quer dizer basicamente essa inexistência de uma transcendência, a inexistência de um fora, de um ponto de vista de um todo, de um geometral. Se não há ponto de vista extrínseco, portanto, há de se descrever o mundo dos outros como ontologicamente verdadeiro. Nossa proposta, enfim, é que não trabalhemos exclusivamente com a concepção moderna, esta da separação estanque entre o real e virtual, utilizada aqui pelos cientistas citados para debater a controvérsia sobre o uso dos jogos eletrônicos; mas que congreguemos as diversas perspectivas dos atores envolvidos na questão, principalmente os próprios jogadores, que não trazem, em suas práticas, estas divisões tão impenetráveis. É preciso adentrar estes chamados “mundos virtuais”, os ambientes 71 dos jogos, e ver o que eles têm a nos dizer. Somente assim, os invisíveis (para os modernos) se tornarão visíveis, para que possamos visualizar uma rede mais complexa de agências e causalidades. Apenas escolho com cuidado os termos, para que eles possam passar de um lado a outro da antiga “grande divisão”, varrendo um tipo de fenômeno que nem a psicologia – sem objeto – nem a epistemologia – sem sujeito – parecem-me capazes de abrigar. Interessam-me somente as questões que essa reformulação permite colocar, agora que dispomos de uma base comparativa mais simétrica e mais vasta: já que eles não têm mais psicologia que os outros [...] Quais são os invisíveis indispensáveis à construção provisória e frágil de seus invólucros e de seus quase-sujeitos? Como fazem para afastar os pavores e para transferi-los para outro lugar? Por meio de quais dispositivos? Quem são seus curandeiros? Quem são seus etnopsiquiatras? (LATOUR, 2002, p. 100). Por fim, encontramos uma afirmação dos mesmos autores que enfrentamos durante esta reflexão, que parece sintetizar o pensamento que estamos tentando trabalhar (evitaria, no entanto, a separação entre dois mundos apartados) e com isso fecho este capítulo: “Não subestimem os mundos virtuais e não os demonizem. Os mundos virtuais, primeiro lugar e antes de mais nada, são simplesmente um outro lugar para as pessoas se realizarem, para o melhor ou para o pior (BLINKA; SMAHEL, 2011, p. 115)”. 72 Capítulo 2: O sério e o lúdico: repensando as categorias lazer e trabalho a partir dos videogames Pai: ... A questão é que o objetivo dessas conversas é descobrir as “regras”. É como a vida – um jogo cujo propósito é descobrir as regras, que estão sempre mudando e são impossíveis de descobrir. Filha: Mas eu não chamo isso de jogo, papai. – Gregory Bateson, Steps to an Ecology of Mind (1972) 1. Delineando associações: entre usos legítimos e ilegítimos Alguns terapeutas que postulam a ideia de uma dependência em jogos eletrônicos (GRIFFITHS, 2008, YOUNG; DONG, YING, 2011; YOUNG, 2011; BLINKA; SMAHEL, 2011) trabalham com a ideia de que existem dois tipos fundamentais de uso dos computadores: os legítimos e os ilegítimos. Os usos legítimos seriam somente aqueles relacionados ao trabalho e ao estudo; enquanto os ilegítimos seriam aqueles destinados a fins recreativos – deveriam ser evitados, portanto, sob o perigo de se criar uma relação de dependência. Os videogames – lúdicos por excelência – uma vez enquadrados nesta classificação, não teriam outra saída senão a restrição de seu uso. Tais argumentos científicos, para suportar esta teoria, fazem uso da ideia de que há um mundo virtual, existente na tela do computador (ou do videogame), que é falso, e de que há um mundo real, existente fora da tela, o que é o único verdadeiro. Nesta argumentação fica evidente que o intuito da cura, ou do tratamento, é tirar a pessoa desse mundo falso, onde ela tem uma série de relações (inclusive com não-humanos) também ditas falsas, para reinseri-las no mundo verdadeiro, onde ela fará parte de uma 73 série de outras relações com seres humanos: sobretudo na família, na escola e no trabalho. Fica aí implícita uma certa visão de mundo, do que é humano e do que é verdadeiro, em suma, do que seja o verdadeiro humano. O verdadeiro humano aqui seria aquele que se relaciona com a sua família, e que, sobretudo, trabalha, ou, se podemos assim dizer, que se prepara para o trabalho na escola ou na universidade; que vence desafios reais (e não virtuais) no mundo adulto do trabalho, que ganha dinheiro real, que progride como um profissional real e por aí em diante. O nosso interesse aqui é verificar o quanto a ética moderna, ou seja, o conjunto de valores da vida humana voltada para uma determinada concepção de trabalho, que, por oposição ao lazer, contribui para a produção da ideia de um jogador viciado em um falso mundo, o chamado “mundo dos games”. Esta não é uma simples questão, pois há diversos tipos de lazer e eles não são tomados do mesmo modo, pois, embora partilhem características comuns da esfera lúdica, todos eles se situam em diferentes redes de associações (LATOUR, 2006). Mas de algum modo, o jogo, numa concepção mais ampla, é entendido como lazer, e inserido numa categoria chamada “tempo livre” (considerado como lazer não produtivo) em oposição à categoria “tempo do trabalho” nas sociedades modernas. O objetivo desta seção, enfim, é investigar as associações entre jogo, lazer e trabalho; e partir das problemáticas levantadas pelos videogames e seus jogadores a partir da etnografia, rever a utilização destes conceitos para verificar a validade de seu uso para esta pesquisa. Nas conclusões, propomos um modelo para investigar o engajamento humano em suas atividades cotidianas a despeito de serem classificadas como lazer ou trabalho, prazerosas ou maçantes, de “tempo livre” ou “tempo ocupado”, a fim de atender os objetivos próprios desta pesquisa. 2. Discutindo conceitos: jogo, lazer e trabalho Tratamos primeiro, pois, de recuperar as reflexões já realizadas sobre estes conceitos. A primeira noção a ser debatida aqui é a de jogo. Mais especificamente, a questão de como o jogo se associaria ao lazer, e por contrapartida, ao não-trabalho. Há dois autores clássicos para quem estuda este tema, Johann Huizinga, com seu livro de 1938, “Homo 74 Ludens”, e posteriormente Roger Caillois, em 1957, com “Os jogos e os homens”. Estes dois trabalhos ainda são as grandes referências para as pesquisas contemporâneas (em diferentes áreas como: ciências humanas, game design, game studies) seja para concordar ou discordar dos autores; mas observa-se que as atuais pesquisas estão em constante diálogo com os trabalhos clássicos. A clássica definição que Huizinga apresenta de jogo possui certas características básicas: é uma atividade que, diferente do trabalho, é livre; e que não faz parte da vida “cotidiana”, “comum”, “corrente”, ou como ele mesmo chama, da vida “real”. Para ele, estas são duas de suas características fundamentais. Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida “corrente” nem vida “real”. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade com orientação própria (HUIZINGA, 1938, p. 11). Ainda segundo Huizinga o “jogo distingue-se da vida “comum” tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características (HUIZINGA, 1938, p. 12)”. Essa orientação própria – de tempo e de espaço – do jogo é geralmente entendida pelos terapeutas como o quê faz com que o videogame atue como uma forma de escape da vida real para o mundo ilusório dos jogos. Também é essa orientação específica que dá origem ao que os teóricos dos jogos chamam de círculo mágico – as regras próprias que separam o jogo do não-jogo, da vida comum. Esta visão do círculo mágico dos jogos tornou-se bastante influente nos estudos contemporâneos. De acordo com Lin e Sun (2007), a visão do círculo mágico implica tratar o jogo como "um mundo independente do mundo cotidiano real." A melhor experiência de jogo seria alcançada quando o jogo seria "isolado ou oposto às características utilitárias do mundo físico" (LIN; SUN, 2007, p. 336, tradução nossa). Muitos pesquisadores de jogos já entraram na discussão para argumentar a favor ou contra esta visão (COPIER, 2005). Malaby, por exemplo, sugere que esta definição isolacionista dos jogos é realmente "o maior obstáculo para a compreensão do quê é poderoso sobre eles" (2007, p. 96, tradução nossa). Além de serem “livres”, não fazerem parte da vida ordinária e terem outra orientação de tempo e espaço, os jogos trazem consigo outro tipo de racionalidade, distinta daquela da 75 racionalidade instrumental que geralmente predomina nas ações voltadas ao trabalho no sentido moderno (WEBER, 1904-05). Os jogos não “servem” para atingir outros objetivos planejados; têm, ao contrário, um fim em si mesmo. No que diz respeito às características formais do jogo, todos os observadores dão grande ênfase ao fato de ser ele desinteressado. Visto que não pertence à vida “comum”, ele se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo contrário, interrompe este mecanismo. Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância, o ele se nos apresenta: como um intervalo em nossa vida quotidiana (HUIZINGA, 1938, p. 12). Como não faz parte da vida ordinária, o jogo, para Huizinga, faria parte do campo do extraordinário ou mesmo do supérfluo. Ele não é, por assim dizer, necessário – tal como o trabalho – e outras atividades tidas como de necessidade básica: alimentação, sono, sexo, excreção, abrigo, etc. Deve, também, ser praticado num tempo específico – nas horas de ócio, ou, no chamado “tempo livre” – portanto, não deve “invadir” as horas de trabalho sério. Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma função que facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca constitui uma tarefa, sendo sempre praticado nas “horas de ócio”. Liga-se a noções de obrigações e dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual (HUIZINGA, 1938, p. 11). Camargo (2003) nos lembra de que tal divisão entre necessidades básicas e supérfluas é fruto da teoria de hierarquia de necessidades de Abraham Maslow, que com sua conhecida Pirâmide de Maslow, construiu a ideia de que as necessidades fisiológicas e as de segurança seriam mais fundamentais que as necessidades “sociais”. Camargo alerta que, portanto, essa divisão não deve ser tomada como autoevidente – sob o perigo de desqualificar de antemão as atividades de lazer. As pessoas têm outras preocupações mais importantes do que o lazer, dizia-se então. A favor desse argumento, havia uma teoria e uma pesquisa recente. A teoria era a das necessidades básicas de Maslow. [...] Curiosamente os que recorriam a essa teoria sempre concluíam que o lazer não fazia parte das necessidades básicas e sim das supérfluas (CAMARGO, 2003). 76 Figura 2.1 – Pirâmide das necessidades de Maslow; as necessidades humanas partem da base e, conforme vão sendo realizadas, as necessidades superiores passam a ser prioridade. Complementando a definição de Huizinga, trazemos para o debate também a conceituação de Roger Caillois. Embora os dois autores difiram em diversos pontos e tenham focos diferentes em suas análises, o conceito básico de jogo, para os fins que aqui nos interessam, é bastante semelhante: A palavra “jogo” evoca por igual as ideias de facilidade, risco ou habilidade. Acima de tudo, contribui infalivelmente para uma atmosfera de descontração ou de diversão. Acalma e diverte. Evoca uma atividade sem escolhos mas também sem consequências na vida real. Opõe-se ao caráter sério desta última e, por isso, vê-se qualificada de frívola. Por outro lado, opõe-se ao trabalho, tal como o tempo perdido se opõe ao tempo bem empregue. Com efeito, o jogo não produz nada – nem bens nem obras. É essencialmente estéril. A cada novo lance, e mesmo que estivessem a jogar toda a sua vida, os jogadores voltam a estar a zero e nas mesmas condições de início. Os jogos a dinheiro, apostas ou loterias, não são exceção. Não criam riqueza, movimentam-na (CAILLOIS, 1967, p. 9). Tanto para Huizinga como para Caillois, diferentemente do trabalho, o jogo não produz nada. Não se constitui propriamente numa tarefa (diferentemente da conceituação de Ingold, que exporemos mais adiante). Como não é produtivo, é associado à perda de tempo, e ao tempo mal utilizado. Enfim, ele opõe-se a seriedade representada pelo trabalho. No entanto, como Huizinga próprio afirma, isto não significa que o jogo não é sério. Em nossa maneira de pensar, o jogo é diametralmente oposto à seriedade. A primeira vista, esta oposição parece tão irredutível a outras categorias como o próprio conceito de jogo. Todavia, caso o examinemos mais de perto, verificamos que o contraste entre jogo e seriedade não é decisivo nem imutável. 77 É lícito dizer que o jogo é a não-seriedade, mas esta afirmação, além do fato de nada nos dizer quanto às características positivas do jogo, é extremamente fácil de refutar. Caso pretendamos passar de o “jogo é a não-seridade” para ”o jogo não é sério”, imediatamente o contraste tornar-se-á impossível, pois certas formas de jogo podem ser extraordinariamente sérias. Além disso, é facílimo designar várias outras categorias fundamentais que também são abrangidas pela categoria da “não-seriedade” e não apresentam qualquer relação com o jogo (HUIZINGA, 1938, p. 8). O jogo não é trabalho, não é sério – mas como não dizer que não há seriedade em sua prática? É preciso que as suas regras se apliquem dentro de seu tempo e espaço específicos. Veja o que acontece quando alguém quebra uma destas regras – por exemplo, um jogador de futebol (de linha) que segura a bola com as mãos; ou no nosso caso, quando um jogador utiliza trapaças (denominadas cheats pelos jogadores) para avançar as fases do jogo sem percorrê-las, ou deixar o seu personagem mais forte que o dos demais jogadores: isto quebra a sua “fantasia”. Todavia, conforme já salientamos, esta consciência do fato de “só fazer de conta” no jogo não impede de modo algum que ele se processe com a maior seriedade, com um enlevo e um entusiasmo que chegam ao arrebatamento e, pelo menos temporariamente, tiram todo o significado da palavra “só” da frase acima. Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador. Nunca há um contraste bem nítido entre ele e a seriedade, sendo a inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade. Ele se torna seriedade e a seriedade jogo. É possível ao jogo alcançar extremos de beleza e de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade (HUIZINGA, 1938, p. 11). Hector Rodriguez, em um artigo que comenta Homo Ludens, afirma que as definições de Huizinga de seriedade e jogo não são muito precisas; que apesar de serem aplicáveis em muitos casos, em outros, no entanto, não se pode visualizar uma fronteira de maneira alguma. Homo Ludens não expressa, entretanto, a tese de que jogar [ou brincar] é, em todos os aspectos, isolada de preocupações sérias. A fronteira entre o lúdico e o sério é certamente real e amplamente aplicada, mas não bem definida em todos os lugares, e sempre sujeitas à revisão. Em alguns casos, a fronteira não pode ser marcada de forma alguma. Além disso, questões éticas sobre civilidade e justiça são muitas vezes intimamente ligadas com o ato de jogar. Huizinga afirma, por exemplo, que muitas formas de cultura séria se originaram a partir de ações lúdicas. O lúdico está na origem da arte, religião, política, filosofia, e da lei. É enganoso ver essas instituições em termos meramente funcionais, como veículos para a transmissão de valores sociais ou de reprodução da coesão social. A ação social é, em parte, motivada por um desejo de experiências intensas de risco, incerteza, superação de si mesmo, desafio, etc. Estas regiões da vida social atravessam a distinção entre o lúdico e o sério (RODRIGUEZ, 2006, tradução nossa). 78 Apesar de Huizinga trabalhar estas dicotomias não muito bem definidas entre seriedade e não-seriedade, necessidades básicas e supérfluas; vida real e vida extraordinária, jogo e não-jogo, – que até certo ponto são problemáticas – a sua noção de jogo não permite classificá-lo como uma atividade ilegítima, tal como os psiquiatras e psicólogos que condenam o uso dos videogames. Para ele o jogo não é verdadeiro nem falso, não é virtuoso nem viciante. O jogo não é compreendido pela antítese entre sabedoria e loucura, ou pelas que opõem a verdade e a falsidade, ou o bem e o mal. Embora seja uma atividade não material, não desempenha uma função moral, sendo impossível aplicar-lhe as noções de vício e virtude (HUIZINGA, 1938, p. 9). Castronova, um dos autores mais citados em estudos relacionados com MMOs (jogos de interpretação de personagens online e em massa para múltiplos jogadores), argumenta em The Right to Play (CASTRONOVA, 2004) que todos os seres humanos têm uma necessidade fundamental de jogar. Para ele, o desejo de jogar é "enterrado profundamente em nossa psique, bem abaixo do pensamento racional e, de alguma maneira, um pouco acima da vontade de comer e fazer sexo", e se a necessidade for insatisfeita, coisas terríveis acontecem (CASTRONOVA, 2004, pp. 202-203). Neste artigo, ele defende uma lesgislação específica para proteger o círculo mágico do jogo das regras “do mundo de fora”, desconsiderando seus efeitos em outros agentes e a sua interpenetração prática no “não-jogo” ou “não-virtual”. Para definir o quê qualifica como jogo, ele se refere a Huizinga: Para Huizinga, nada pode ser um jogo se envolver uma conseqüência moral [...] se alguma consequência realmente importa no final, o jogo acaba. De fato, o único ato de conseqüência moral que pode acontecer dentro de um jogo é o ato de acabar com o jogo, negando seu caráter de faz de conta [as-if], estragando a fantasia [...] (CASTRONOVA, 2004, pp. 188-189, tradução nossa). 3. Desestabilizando categorias Classificar o jogos eletrônicos como uma atividade de lazer, que não é produtiva, e sobretudo, que não faz parte do mundo real é uma maneira por demais simples para desqualificá-la. Iremos, a partir de agora, problematizar estas aproximações dicotômicas entre lazer e trabalho, jogo e não-jogo, à luz de algumas teorias mais recentes junto com a intervenção de alguns dos jogadores ditos viciados. 79 O próximo movimento é, agora, ampliar a discussão dos jogos para uma mais geral, o lazer. Como afirma Elias (1985), o lazer é um conceito histórico de classificação de atividades humanas, existente propriamente em nossas sociedades modernas, e não de forma universal – apesar das próprias atividades existirem de forma equivalente. Poucas sociedades humanas existem, se é que existe alguma, que não possuam equivalente às nossas atividades de lazer, que não tenham danças, confrontos simulados, exibições acrobáticas ou musicais, cerimônias de invocação de espíritos – em resumo, sem instituições sociais que proporcionam, por assim dizer, a renovação emocional por meio do equilíbrio entre os esforços e as pressões da vida ordinária, com suas lutas a sério, os riscos e seus constrangimentos (ELIAS, 1985, p. 74). Deste modo, a idéia de lazer só pode ser pensada por oposição a uma determinada idéia de trabalho – portanto, que se só pode ser construída em relação a um conceito de trabalho específico: trabalho no sentido moderno, sendo geralmente este assalariado, realizado fora do ambiente doméstico, dotado de uma jornada contabilizada em horas, e o mais importante, organizado em um tempo próprio. Podemos dizer, então, que na modernidade, separam-se as tarefas e os tempos de modo radical – uma atividade ou é rigorosamente trabalho ou é puro lazer; ou é para ser realizada no tempo “ocupado” ou no tempo “livre”. Freyre afirmou que à medida que a máquina substituía o homem, a organização do lazer tornava-se mais importante que a organização do trabalho. [...] Temia não conseguir a compreensão de que, se o tempo livre era um problema sério para os países desenvolvidos, para as nações que desejam progredir, a concretização das potencialidades contidas nessas horas de folga era um imperativo. A palavra do ilustre sociólogo pernambucano vinha de certa forma em meu auxílio. [...] Acontece, porém, que nos países padrões do sistema cultural em que nos inserimos, “tempo é dinheiro” e amar a vida no que ela tem de belo e desinteressado, uma deformação ou um vício (FERREIRA, 1959). Sendo assim, qual seria exatamente o ponto de choque das sociedades modernas com o lazer? O que o lazer, e o videogame, mais especificamente, ofenderiam? A organização do trabalho e lazer nas sociedades modernas, que seguiriam uma determinada lógica de divisão de tempos, não seria, de alguma forma, ameaçada pelos jogos, que operariam em regimes de tempo e espaço diferenciados? Uma vez que os jogos não obedecem a máxima de que “tempo é dinheiro” e que, eventualmente, “invadem” o tempo do trabalho, extrapolando o tempo do lazer que fora alocado para contê-lo; não estaria-se ameaçando o próprio cerne da cosmologia moderna? 80 O problema não seria, então, o lazer em si mesmo; mas a prática de atividades destinadas a serem executadas no tempo livre dentro do tempo de trabalho. Estaria aí posto o perigo do excesso de lazer; ou o problema de tornar essas fronteiras mais turvas, invisíveis, de difícil supervisão. Afinal, pensariam os modernos, como se poderia saber quem está trabalhando e quem está desfrutando o tempo de lazer? Será que alguns estão levando vantagens nas custas de outros? Colocadas estão questões, como, então, operar de outra forma sem que os videogames sejam classificados arbitrariamente como “irreais” ou de “fora deste mundo”? Buscando sair destas visões catastrofistas, e também daquelas meras exaltadoras dos jogos, devemos flexibilizar algumas destas divisões modernas (LATOUR, 1996) que nos impedem de tratar a questão de forma mais complexa. A nossa sugestão aqui é diluir estas categorias – lazer, trabalho e jogo – a partir de outros pontos de vistas teóricos, pois, como argumenta Taylor (2006, p. 153): “Imaginar que podemos segregar essas coisas – jogo e não-jogo, [...] virtual e real – não é só não entender a nossa relação com a tecnologia, mas também a nossa relação com a cultura". Um destes trabalhos que não trabalham com uma associação rígida entre trabalho e seriedade; nem lazer e não-seriedade; é o de Robert Stebbins. Ele forjou o conceito de Serious Leisure (lazer sério) que pode nos ser interessante para pensar estas questões. Segundo o autor, o lazer sério: (...) is systematic persuit of an amateur, hobbyst, or volunteer activity that participants find so substantial and interesting that, in typical case, they launch themselfs on a career centred on acquiting and expressing its specials skills, knowledge and experience (STEBBINS, 2006, p. 448). No entanto, apesar de avançar na discussão, Stebbins ainda continua operando em um um vocabulário que mantém os conceitos de lazer e trabalho como categorias analíticas de classificação de atividades, as quais ainda não atingem nosso objetivo derradeiro. A seguir, nos aprofundaremos no trabalho do antropólogo britânico Tim Ingold (2000), que adota uma perspectiva que chama de dwelling, que em oposição à commodity perspective, rompe com as dicotomias modernas de tempo (tempo livre e tempo do relógio), de atividade (lazer e trabalho), produção (arte e tecnologia/produção em massa) e troca (sistema da dádiva e do mercado); para trabalhar com uma orientação à tarefas (task-orientation) e habilidades (skills). 81 Em “Work, Time and Industry” (2000), Ingold, na tentativa de problematizar tais dicotomias, retoma o que ele identifica como sendo o local e o tempo de sua formação: o cenário das fábricas tayloristas e fordistas – nas quais os capitalistas, na tentativa de maximizar a utilização da mão de obra, organizaram o tempo em unidades mensuráveis e impuseram um tempo regrado para o trabalho. Com esta organização produtiva, segundo Ingold, a rotina das pessoas foi regulada de forma abstrata em unidades como “horas” e “minutos”, e, partir daí, gerada uma divisão entre o tempo que estas pessoas deveriam utilizar para trabalhar (ou seja, o trabalho; não como uma atividade, mas como um tempo) e o tempo que descansariam: o lazer. Ingold faz menção ao clássico “Os Nuer” (EVANS-PRITCHARD, 1978), onde se descreve que, na sociedade Nuer, a rotina é organizada de acordo com as tarefas a serem realizadas e que, portanto, esta era a base para a mensuração do tempo. Ingold argumenta que o mesmo acontece na sociedade chamada ocidental contemporânea: quando se organiza o dia, está-se organizando as tarefas que serão postas em prática durante este dia e, muitas vezes, quando queremos mensurar o tempo, utilizamos como referência estas mesmas tarefas. Desse modo, divide-se a experiência temporal não necessariamente em termos abstratos, mas por meio de tarefas. O autor desconstrói, então, estas divisões, afirmando que, de modo análogo às sociedades ditas “tradicionais”, nas sociedades modernas não se depende necessariamente de “horas” e “minutos”. Além disso, postula que essa forma de organizar o tempo não seria exclusiva do momento do lazer, mas se estenderia por todas as dimensões da vida dos agentes. Chiquetto (2012) comenta que, por esta perspectiva (dwelling), todos os atores são agentes no meio que habitam, reconstruindo este meio ativamente durante sua existência. Assim, tanto o meio da casa quanto o meio do trabalho oferecem diferentes possibilidades para a construção de relações com o outro, para a criação e utilização das habilidades que são incorporadas durante a vida e por meio das quais se compreende o ambiente em que se vive. Uma vez que, para Ingold, a fronteira entre o trabalho e o lazer não é tão rígida quanto possa parecer, do mesmo modo a relação entre tempo de trabalho e tempo livre também parece ser mais híbrida do que postula a purificação dos modernos (LATOUR, 1996). Não é todo o tempo de trabalho que é ocupado, dedicado às atividades produtivas – e 82 estas não são necessariamente repetitivas, maçantes e entediantes, mas, ao contrário, podem conter componentes lúdicos e criativos. Assim como todo o tempo de lazer não é exatamente livre, destinado ao puro descanso, desfrute ou prazer. O que fazer, então, com estas classificações? Negá-las? Rodriguez (2006) recomenda que não totalmente, pois elas seriam úteis e serviriam como boas aproximações em muitos casos, mas não seriam feitas para funcionar como categorias absolutas: Huizinga ressalta que o conceito de jogo, por vezes, não pode ser circunscrito dentro de precisos limites conceituais. Homo Ludens raramente avança com definições rígidas. A tentativa de Huizinga "definir" jogo em termos do círculo mágico, por exemplo, não deve ser entendida como um conjunto de condições necessárias e suficientes, mas como uma aproximação preliminar a certas regiões de vida que resistem a uma categorização exata. Como um bom historiador, Huizinga não se furta da ambiguidade. Seu estudo completo pode ser visto como um esforço para falar o mais precisamente possível de categorias e distinções que não podem ser claramente demarcadas. As definições são úteis na medida em que sugerem tópicos comuns que perpassam manifestações heterogêneas, mas elas não são destinadas a funcionar como categorias absolutas. Assim, jogar, é sério tanto como não sério. A dificuldade está em prestar atenção a importantes diferenças conceituais, mantendo nossas categorias descritivas suficientemente flexíveis para acomodar a ambiguidade e a imprecisão (RODRIGUEZ, 2006, tradução nossa). Sendo assim, resta-nos mapear um pouco mais esta controvérsia e trazer à tona a multiplicidade da explicação dos agentes que a tornam tão complexa – para tentar compreender o que eles mesmos entendem por trabalho e lazer, por jogo e seriedade e, qual é a relação, afinal, de tudo isso, com os videogames. Para isto, vamos agora nos voltar para o que dizem principais agentes da controvérsia. 4. Jogando por lazer ou por trabalho? Os gamers e suas classificações Os jogadores de videogame constantemente relatam casos em que jogam por intermináveis horas mesmo sem ter prazer na maior parte do tempo do jogo; e em muitos casos fazem movimentos tão mecânicos e repetitivos que lembram o trabalho nas fábricas fordistas. Para subir um nível num game de RPG (Role Playing Game) 39 39 Os jogos conhecidos como MMOGs (Multi Massive Online Games) e os conhecidos como MMORPGs (Multi Massive Online Role Playing Games) são apontados como uma atividade de potencial adictivo muito grande, desde a época dos antigos jogos de texto, conhecidos como MUDs (Multi User Domain). Atualmente, o jogo mais conhecido é o World of Warcraft (WoW), jogo com tema sobre o universo de J.R.R. Tolkien, que conta com 11,4 milhões de jogadores no mundo todo, segundo a Blizzard Entertainment (BLIZZARD, 2012). Mas existem diversos outros jogos online que também são jogados 83 Online, por exemplo, o jogador deve matar monstros por centenas de vezes seguidas apertando somente um botão, ou quando muito acionando alguns botões especiais. O jogo pode se tornar chato, maçante, desinteressante, mas o jogador continua jogando. Como explicar tal situação? A partir do método etnográfico, buscaremos não exatamente “explicações”, mas descrições mais complexas, por meio de uma entrada profunda nestes mundos dos jogadores – a fim de que tais ações possam adquirir um significado próximo ao que os próprios atores lhes conferem e nos permitam multiplicar as perspectivas e enriquecer, por fim, a controvérsia que nos interessa. Assim prosseguiremos nesta seção. Um trecho da famosa e divertida entrevista com o Anônimo da TP (ele não é anônimo, mas sim o nome pelo qual é conhecido na Internet), personagem símbolo dos jogadores brasileiros “viciados”, nos ajuda a pôr a questão. Ae, ramela. Caralho, mano. Tá foda de ficar aqui no PC, na real. [Por quê?] Ah, mano, tô jogando faz mó cara aqui, eu não saio aqui, mano. Tá fedendo pra caralho, mó cheirão de presunto, tá ligado? Nego tá chiando pra mim tomar banho, mas não dá, mano. Se eu sair aqui, como que eu vou upar nessa porra? Em muitos destes jogos virtuais – denominados MMORPGs40 – “upar”, isto é, adquirir pontos de experiência que deixarão o seu avatar (o seu personagem dentro do jogo) mais forte – torna-se o principal o objetivo do jogador na “comunidade” virtual. Em muitos casos, ter um personagem forte significa ter respeito dos demais, ganhar status, obter companhia, favores, além de dar acesso a novas áreas e possibilidades do jogo. em rede, com temáticas diversas. Esses jogos têm como características principais a imersão em realidade virtual primorosamente simulada, o contato social intenso com outros jogadores e sua permanência independente do jogador, o mundo virtual continua existindo (SNODGRASS; LACY; DENGAH II et al., 2011). Um MMORPG geralmente apresenta um lugar bem semelhante ao mundo real, mas com componentes mágicos e fantásticos. Os jogadores podem se envolver em uma variedade de interações com outros jogadores através de batalhas, comércio, vendas de itens valiosos, namoros e sexo virtual, aventuras feitas pelos programadores. O objetivo principal no início é melhorar o personagem, adquirindo armas e equipamentos. Com a interação social, os jogadores adquirem outros objetivos como participar de clãs, guildas, campeonatos, coleções de itens, aventuras em grandes grupos, missões, etc. (FORTIM, 2004a) (FORTIM, 2013, p. 65). 40 O jogo o qual o Anônimo da TP aqui se refere, chamado Cabal Online, opera nesta lógica, mas muitos outros de forma quase idêntica – World of Warcraft, Ragnarok Online, Ultima Online, Everquest, Grand Chase, Priston Tale, Tibia, EVE Online, Guild Wars, Perfect World, entre outros. Tais jogos são ditos pelos próprios jogadores como os mais “viciantes” entre todos e atraem a atenção de muitos especialistas das ciências médicas que tratam da dependência, como Blinka e Smahel (2005). 84 Perseguindo este objetivo, o jogador terá de enfrentar missões e se aventurar por florestas e cavernas (dependendo do tema do jogo), matando monstros, conseguindo ítens especiais e, eventualmente, confrontando outros jogadores. No entanto, muitos jogadores tentarão fazer estas mesmas coisas ao mesmo tempo – tudo se converte, pois, numa disputa agonística que pode levá-los a exaustão. Evoluir um personagem leva tempo. Subir um nível pode significar muitas horas de jogo, matando os mesmos monstros exatamente da mesma maneira. Obter dinheiro no jogo também geralmente é duro, e exige que o jogador consiga ítens demandados pelos demais e que faça boas trocas. Ainda mais, conseguir um ítem raro pode ser tão difícil que, às vezes, pode demorar mais de um ano de procura em vão. Por conta disso, muitos relatam que estão trabalhando nos seus (ou com os seus) personagens. Porque não levá-los a sério? Também não trabalhamos offline, pelo menos por um lado, para conseguir, além do ganho material, os mesmos status, respeito e companhia? De certa maneira, se ainda continua sendo relativamente válida a proposição de Huizinga de que o jogo não produz nada – no sentido estritamente material, palpável, tal como alimentos – não o é no sentido imaterial. A economia, o marketing, a sociologia e a antropologia há tempos reconheceram o valor do trabalho intangível ou simbólico. Muitos jogadores produzem itens, casas e muitas coisas inimagináveis nos jogos online; e mesmo neste dito mundo offline os jogadores vendem seus personagens, são contratados como jogadores profissionais e são patrocinados por empresas. Seria, apesar de tudo isto, o jogo somente lazer? Seria este pura liberdade? O trabalho seria de todo falso? Responder afirmativamente a estas questões seria descartar tudo aquilo que os gamers praticam e nos contam acerca de sua experiência – apesar de não se tratar, do mesmo modo, de respostas únicas, mas ao contrário, extremamente controversas. 4.1 Divertir-se ou conquistar as metas? O jogador curtidor e o jogador apelão Entre muitos jogos, aparece a dicotomia entre o jogador que utiliza o jogo como supostamente seu lazer – seu objetivo é divertir-se, desfrutar, socializar com outras pessoas e não se importa muito em cumprir as metas do jogo, em se tornar mais poderoso ou utilizar as estratégias mais adequadas para que consiga vencer os desafios – e o jogador “apelão” (ou hardcore), que faria todo o oposto, não importando nada mais 85 senão ser o melhor – este joga para “upar”, ser forte e rico. Condenando esse tipo de jogador, Abadi, um paladino em World of Warcraft, fala: Alguém aí já parou para ler a história do WoW? Já parou para ler algumas quests? Sem querer ser muito roleplay, mas as quests são muito massa, véio! É divertido pensar que seu personagem irá evoluir ajudando e rodando o continente inteiro fazendo trabalhos. Que entediante ficar numa cidade voando e voando esperando aparecer um tank para fazer aquela dungeon pela décima vez! Talvez esse seja o motivo de muitos players abandonarem o jogo. [...] Pra mim, para um verdadeiro jogador de WoW upar é de menos! Parem de se preocuparem com seus chars que irão ficar [nível] 85! Aproveitem o momento e conheçam os lugares desse jogo que por sinal tem 30 GB! Vivenciem e chorem para o massacre do campo taurajo! A seguir recupero uma discussão mais larga, porém interessantíssima, sobre os objetivos do jogo Ragnarok Online, debatidos por seus membros no fórum oficial do bRO (Brasil Ragnarok Online), que seguem a mesma linha: “upar”, se divertir, ganhar respeito, explorar diferentes ambientes... O que, afinal, buscamos no jogo? Meu objetivo em qualquer jogo é a diversão. Acho que o Ragnarok toma uma trilha meio errada ao estimular o up intenso e demorado (antes que me critiquem, é demorado pegar 150, tanto quanto era pegar 99 trans). O level deveria ser um dos meios do jogo, e não um fim. Upar pode até ser divertido sob certas condições, mas ficar no point & click pra upar – seja matando tartarugas ou magmarings – não me empolga nada. Me senti cansado só de pensar em ter que upar mais um monte de level de novo, e sinceramente, talvez eu nunca peguei 150. O que eu esperava para o jogo é que investissem numa diversão de verdade pra quem já tem level máximo, e não que tudo ficasse naquela "agora que eu peguei level máximo, vou criar outro char, porque o que importa nesse jogo é upar". – Festa Brasileira. Objetivos... É uma pergunta bem interessante de se fazer, bem o objetivo real do jogo no caso, seria chegar ao nível máximo do jogo, como todos os outros, mas tem pessoas como eu que fazem metas, eu já tive muita esperança, por exemplo, de me tornar Suma-Sacerdotisa, aquilo pra mim era tudo, mas com o passar do tempo aquilo parecia que se distanciava cada vez mais de mim a cada % que eu conseguia por incrível que pareça, eu tinha perdido as esperanças, até largar de uma vez eu larguei, mas como eu disse o que não me falta são pessoas me apoiando pra seguir em frente. Bom, meu objetivo agora seria me reestruturar para poder atingir o 99, mas isso também vai ser um grande desafio. Mas eu prometi a mim mesma que não iria desistir não importa o quão difícil fosse. Até por que vou ter que conciliar um TERCEIRO ANO DO ENSINO MÉDIO com o Ragnarök, ou seja, mais tempo fazendo temas, trabalhos e coisa e tal e menos tempo no bRO, mas o que não me falta é organização. Enfim, objetivos não me faltam, é só passar essa tempestade e eu vou arrumar essa Sacerdotisa maltratada que eu to jogando – Sakura. Eu upei a vida inteira praticamente de mob, e ter que matar de 1 em 1 monstro com Golpe Fulminante é frustrante. Ah, claro, eu preciso de uns 4 golpes e os monstros morrem, o risco de eu morrer é ínfimo e upo mais rápido do que antes, 86 mas está tedioso. Bom, a única coisa que penso é ficar treinando, treinando, treinando... Eu sei que para o personagem ficar "do jeito que eu quero" vai demorar muito (lá pelo 145, acredito eu). Até fiquei animado com algumas habilidades novas e a nova configuração de mapas, mas está repetitivo. Meu objetivo mesmo é moldar o personagem do jeito que quero pra experimentar as features do jogo com os amigos. Tem sempre algo bacana pra fazer em conjunto, sejam quests extensas, subir Torre de Thanatos ou a Sem Fim, as Instâncias, os MVPs, talvez uma WOE, ajudar outros. Cada dia que passa eu acredito mais que meu objetivo não vai ser definido só por mim, mas a única certeza que eu tenho é de continuar treinando. – Sengoku Bom, sempre quis me divertir, pena que poucos pensem assim, up hard cansa mesmo, mas não vou parar agora que resetei pela primeira vez. Vou ficar forte e jogar junto com meus amigos. – Tsu. Pra mim, enquanto for divertido irá durar. Claro, vou ter que fazer uma pausa (vestibular e pans), mas enquanto for agradável eu vou jogar. A verdade é que o up pra mim não importa muito. O que eu gosto é fazer coisas em grupo e rir bastante. A maior parte dos meus contatos já virou 3-x, mas eu acho que ficar upando que nem louco é bobeira. E fora que quero fazer as quests do éden pra pegar aquele hat! – Yuukorin. Meu objetivo neste momento é upar e alcançar 99. Também acho frustrante um jogo visado no "entretenimento" e "diversão sem limites no Thor e Odin", você ficar horas e horas rodando um mapa, vendo os mesmos monstros, matando com mesmas skills, usando mesmos itens, passando a mão na barrinha de experiência, raramente usando chat. Isso chega a ser deprimente, mas enfim quase todos os MMORPGs você tem que ficar no mesmo mapa ou área upando desse modo. – NickStarMaster. Depois que eu comecei a jogar WoW eu mudei totalmente as minhas concepções de o que é se divertir num RPG. Eu já não me divertia faz tempo no RO e não sabia o que estava faltando. O jogo SÓ COMEÇA depois que você chega ao level máximo. Infelizmente, a grande maioria dos RPGs anda copiando o WoW em tudo (como esse sistema de party finder aí), menos no que realmente importa. – Festa Brasileira. Meu único objetivo no bRO é jogar enquanto meus amigos jogarem, que é o que me diverte atualmente no jogo. Não é mais tão interessante jogar sozinho, embora com o renewal isso esteja até legal. – Waltz. Existem tipos de diversão: existem pessoas que se unem para evoluírem seus chars e poder alcançar novos poderes e vê-los crescer, principalmente se divertindo no processo. Outros fazem exatamente a mesma coisa para poder avacalhar a diversão dos outros, que por sinal expressam claramente o dito popular "espírito de porco". Deixando isso de lado, cada um tem um tempo próprio a que se dedique ao Ragnarok. Muitos estão na fase do pré/iminente vestibular, outros trabalham, têm faculdade, assim dificultando algumas possibilidades de diversão. O que define o jogo e seu objetivo pessoal é somente você! Atualmente ele é minha válvula de escape do cotidiano agitado, aonde encontro alguns amigos e juntos nos divertimos um bocado. – Leinad. Hoje a tarde aqui na empresa, fiquei jogando e anotando alguns defeitos, então resolvi criar um grupo para ver como o jogo se comporta em tais situações, foi 87 quando me deparei que muitos players aqui não estão nem aí para os bugs e problemas do jogo, tentei umas 17 vezes criar um grupo e sempre me davam uma resposta do tipo "Aff, vai encher outro, eu quero upar", eu fico me perguntando o que passa na cabeça desses carinhas, acham que o char que eles estão upando vai continuar no servidor depois do closed beta? Então peço uma coisa para esses players, não se esqueçam: o objetivo principal aqui é relatar os bugs para a LUG [empresa de jogos], pois quando o closed acabar, seu char vai junto, e para quem se acha o melhor do melhor do mundo em matar low level, pare de perturbar quem está preocupado nos defeitos do jogo, e pare de abusar dos bugs, isso não te faz ser top rank, apenas deixa claro o nível da sua noobisse, sem mais. – Delatroixx. Acho que o objetivo no jogo, pra todo mundo, é virar classe 3rd nível 150. Lembro até hoje quando eu era 2-1, fiz quests repetíveis até o nível 85 e aí fui upar. Eu não tinha a MÍNIMA noção de up, não sabia nada sobre Ragnarok e só consegui upar pro 86 depois de 10 dias. Eu achava que quando eu pegasse 99 eu ia dar uma volta olímpica por São Paulo, ia comemorar um título, fazer tudo que eu tinha direito. Mas com o passar do tempo, não só eu, mas todo mundo descobre que é uma coisa muito normal, nada muito maravilhoso. Quando eu cheguei lá, só dei um sorrisinho e avisei pro clã que tinha pego 99. Depois disso veio o trans, pegar 99 de transclasse foi MUITO mais fácil, eu já tinha mais noção do jogo, já sabia onde eu iria upar e peguei 99 muito mais rápido. Hoje com as classes 3, eu acho que meu objetivo é esse, alcançar o nível 150, cumprir minhas promessas no servidor e aí eu penso se eu continuo com outros personagens ou se eu paro de jogar. Depois que tudo que todos passamos, sabemos como lidar com as dificuldades no jogo, cada vez mais novidades seriam mais objetivos a serem alcançados, e por aí vai. Novidades no jogo seriam a essência para os velhos players, e eu acho que merecíamos isso. – SouL. Fica evidente por todos estes comentários que os jogos não têm um único uso nem uma única finalidade; mas podem ser apropriados de diversas maneiras pelos jogadores. Há formas que, sim, parecem se aproximar ao que os modernos chamam de trabalho e outras que se aproximam do que chamam de lazer, mas sustento que ainda sim não é proveitoso continuar operando com estas categorias. Vamos ver, no próximo caso, outra disputa muito controversa que colocará estas classificações definitivamente em cheque. 4.2 Entre o trabalho dos sonhos e a desconsideração moral: os jogadores profissionais de videogame Os jogadores profissionais de videogame existem em diversos países, no entanto, são vistos de formas muito distintas ao redor do mundo. Comenta-se que nos países asiáticos orientais, como Japão, Coréia do Sul e China, tais jogadores são pessoas extremamente valorizadas, online e offline, pela comunidade nacional. Em outros países, principalmente nos do Ocidente, e em especial, o Brasil (onde concentro minha análise), os jogadores profissionais são acusados de não trabalhar “de verdade”, de 88 viverem na “moleza”, de sofrerem de “falta do que fazer” e de “não terem vida” – são invariavelmente chamados de alienados, nerds, virgens e punheteiros. Retrato aqui algumas brigas em comentários de notícias e listas de discussões online sobre o tema: É realmente, lá eles não tem muito o que fazer da vida... são meio alienados, com certeza – diz Diego. Falta do que fazer. – diz Rafael. Meio que sem-vida. – diz Vinícius. Ficar só jogando não dá, tem que praticar esporte, estudar. – diz Madnessrsd. Na boa, jogar videogame e ganhar pra isso é um sonho, mas puta trampo de vagabundo, hein. – escreve KillerST. Bando de playboy patrocinado pelos pais, enquanto eu to ralando por aqui no meu curso de programação de jogos, para poder no futuro quem saber poder fazer o mesmo... – escreve Matador-CD. Faz um mês que eu vendi minha lan-house, e assim como todo “lan gamer” eu era eu viciado em World of Warcraft, Warcraft e Starcraft, fora os famosos jogos de FPS [First-Person Shooter], tipo Counter-Strike e Modern Warfare 2. Jogava sempre desde manhã até a noite. Agora, depois da venda tenho que levantar cedo pra trampar em uma empresa no setor administrativo. Levantar cedo e trampar de verdade é muito mais difícil, mas tenho que concordar que não fazer nada e só jogar é realmente enfiar a vida no cu. Acordem nerds, vamos trabalhar de verdade e parar de ficar fazendo da vida um eterno joguinho, porque na vida real, joguinho não te ajuda em nada! – diz Felipe. Em contrapartida, outros jogadores elaboram respostas afirmando que jogar videogames profissionalmente é sim uma atividade justa e um trabalho propriamente dito – inclusive, algumas vezes, o trabalho dos sonhos. O estigma sexual também tenta ser convertido em algo positivo, inspirado nas culturas orientais. Como "falta do que fazer" se eles estão FAZENDO alguma coisa? Você acha que um cara que joga 10 horas por dia não considera isso um trabalho? Se ele for patrocinado e pago, porque não fazer? – retruca Vismael. Sem vida? Sem vida é quem acorda cedo, passa o dia trampando e só volta pra casa à noite. Queria eu ter uma vida de jogador assim. – diz Dario. Isso é a vida que eu pedi a Deus. Ganhar a vida jogando e ainda ser homenageado por isso. Mano, quem não quer isso? – Lucas. Quem fala que os caras são vagabundos morrem de inveja e queria estar no lugar deles, porra pra ta lá é um dom mano, os caras jogam pra caralho, queria eu, ganhar dinheiro, viajar vários países só jogando videogame. Ia ser massa! – escreve Nieow. 89 Vida de gamer não é mole não, encarem a realidade. – escreve gdc23. Gamer profissional já é realidade há anos. Se um cara precisa passar 10, 15 horas por dia treinando é porque a profissão exige isso. Ele é patrocinado como qualquer outro atleta e respeitado por milhares de fãs. A cultura na Coréia do Sul é outra. – Luiz Gustavo. O lance é que ninguém faz o comentário "sem-vida" para o cara que passa 15 horas por dia treinando dentro de um ginásio. Eu não entendo como pessoas que jogam videogame ainda têm preconceitos bobos contra videogames. Starcraft é gigante na Coréia do Sul, lá esses caras fazem dinheiros e ficam famosos. Um campeonato atrai multidões. Recentemente teve até um escândalo que virou caso de polícia, pois descobriram jogadores que estavam perdendo propositalmente por causa de acordos feitos com apostadores. Ou seja, eles treinam o dia inteiro por que ganham dinheiro com isso. – Fernando. Sugiro que vocês procurem a namorada do Grubby, jogadora de Starcraft, grande rival do Moon. Orientais em geral são tímidos e reservados, não significa que são nerds. Campeonatos da Ásia são extremamente badalados, diferente do Brasil. Esses putos têm fãs (incluindo mulheres). Certamente eles se dão bem melhores que a maioria dos brazucas baladeiros. – Juan. Condenando ou louvando, os jogadores de videogame retratam uma mudança de envolvimento com os jogos a partir de sua profissionalização: jogar deixaria de ser lazer – desfrute, brincadeira – para ser trabalho – duro, repetido e sério. Ah, na boa, acho que jogar desse jeito perde toda a graça. É como assistir um filme em Fast Forward. – diz Marc. Eu sempre sonhei em ser um gamer profissional, mas não sabia que teria que desistir da vida. Eu provavelmente irei continuar um amador mesmo. – diz Thomas. Daigo Umehara, melhor jogador do mundo de jogos de luta, chamado Pelé dos Videogames pela reportagem do site TechTudo que lhe entrevistou; quando perguntado sobre a situação de que, no Brasil, os esportes eletrônicos não seriam encarados com seriedade, respondeu: Sabe, vivemos a mesma situação por muito tempo no Japão. Lutamos contra a noção de que “um videogame é apenas um jogo, nada sério”. As pessoas nunca encararam isto com seriedade. Então eu entendo a dificuldade pela qual o brasileiro está passando. Mas a situação no Japão mudou vagarosamente ao longo dos anos. Eu verdadeiramente acredito que isto pode mudar no Brasil também. Este assunto está bem documentado na etnografia intitulada “Unidos pelo Controle” de Daniel Costa Valentim (2012) sobre os jogadores profissionais de futebol digital, 90 especialmente na seção “A gente era tudo menino”. O principal problema dos jogadores profissionais seria que esta mudança de envolvimento não seria reconhecida pelos demais atores, e, portanto, desvalorizada sob o argumento de que a pessoa não trabalharia de verdade e ganharia a vida na moleza, gerando falta de apoio, patrocínio e mesmo de reconhecimento de suas habilidades. Enfim, poderíamos aqui multiplicar os exemplos, mas acredito que para os objetivos desta breve discussão já conseguimos coletar material suficiente para impactar nossa reflexão teórica e encaminhar algumas conclusões sobre a proposta desta seção. 5. Por graus de comprometimento Começamos discutindo os conceitos de jogo, lazer e trabalho a fim de entender porque, afinal, os jogos são considerados – pelos terapeutas e por muitos outros atores – como uma atividade ilegítima passível de geração de comportamento dependente, e o estudo e o trabalho como as únicas atividades legítimas; estas não pensadas, em geral, como adictivas. O ponto, afinal, é que, ao praticar uma Antropologia da Ciência e da Modernidade, não devemos tratar as categorias jogo, lazer e trabalho como categorias analíticas, mas como categorias nativas, enunciadas pelos agentes para inserir tarefas em um sistema de classificação propriamente moderno e conferi-las de uma carga simbólica as quais estas categorias evocam. Uma vez que os jogos nos abrem para a experiência do risco, confiança, dependência, vulnerabilidade, fatalismo, dependência, incerteza e violência, jogar pode, assim, nos possibilitar novas formas de subjetividade e interação que surgem por meio de modificações experimentais da vida cotidiana (RODRIGUEZ, 2006, tradução nossa). Tampouco devemos procurar medir as atividades pelo prazer ocasionado por sua execução. Primeiro, porque isto gera uma grande dificuldade de mensuração por meio do uso das técnicas geralmente utilizadas em pesquisas sociais. E também, porque foge, ao meu entender, dos objetivos das pesquisas próprias das áreas de sociologia e antropologia, e aproxima-se da metodologia de pesquisas psicológicas. É claro que o prazer experienciado por determinadas atividades tem estreita relação com sua conotação social. No entanto, ela não resolve o nosso problema. O jogador derivaria prazer da mera prática desta atividade ou do cumprimento das 91 metas conseguidas por meio da prática de tais atividades, tal como ver o seu personagem subir um nível? Ficam expostas diversas questões, mas a oposição lazer/trabalho permanece problemática, pois para o jogador esta atividade pode adquirir um sentido muito próximo ao que entendemos por trabalho nas sociedades modernas; enquanto pode ser classificado como lazer para alguém que esteja observando o jogo de fora. Em sintonia com as ideias de Chiquetto (2012), sugiro, por sua vez, utilizar como categoria analítica o conceito de graus de comprometimento; como uma forma mais adequada para medir o engajamento dos agentes em cada tarefa cotidiana (na perspectiva de Ingold) e também para elencar as suas prioridades. Não está se tratando aqui de um engajamento individual da pessoa com a tarefa, mas de um comprometimento social, que considera toda a agência de todos sobre esse um e desse um sobre todos os demais. É importante ressaltar que todas, absolutamente todas, as tarefas são sociais – em relação com humanos ou não humanos (apud LATOUR, 2005) – e nenhuma ação é inteiramente desprovida de compromisso (em nota: mesmo essa mensuração entre mais e menos compromisso deve ser também problematizada, mas como se trata de um discurso amplo e através do qual os agentes organizam suas ações, torna-se fundamental para a análise da organização das tarefas no tempo e no espaço) (CHIQUETTO, 2012). As perguntas mais frutíferas seriam: que associações estariam levando uma pessoa fazer tal coisa? À que isso está se ligando; a que pessoas, a que coisas, a que ideias, a que recursos materiais, a que tudo o mais. A ideia é desvendar essa rede de agenciamentos, mais do que descobrir uma causa. E investigando o conjunto de atividades das pessoas, medindo as suas prioridades, podemos chegar a compreender melhor o seu cotidiano do que mantendo como instrumento de análise a dicotomia trabalho/lazer e tudo aquilo de mais problemático que esta oposição carrega consigo. 92 Plano da dissertação Índice dos capítulos Introdução – Por uma perspectiva da Antropologia da Ciência e da Tecnologia A controvérsia O imobilismo e a guerra das ciências Videogames na contemporaneidade Dependência de games: um breve histórico Games e drogas: metáfora ou metonímia? De atores a jogadores: notas para uma teoria da ação Mapeando controvérsias: notas metodológicas Constituindo um parlamento das coisas Cosmopolíticas e cosmopolitismos A teoria-ator-rede: por uma antropologia das associações A pesquisa de campo: técnicas e tecnologias Antropologia cibernética e a etnografia virtual Capítulo 2 – Por dentro da rede: o conhecimento médico A incerteza sobre a determinação do vício Modos de classificação do jogador como dependente Dependência: conceitos e classificações Os componentes centrais da dependência Dependências químicas, comportamentais e tecnológicas Apresentando teorias, a gramática das ciências Modelo cognitivo-comportamental Modelo neuropsicológico Teoria da compensação Fatores Sociais 93 Reflexão sobre o culto moderno da ciência médica Capítulo 3 – O sério e o lúdico: repensando as categorias lazer e trabalho Delineando associações: entre usos legítimos e ilegítimos Discutindo conceitos: jogo, lazer e trabalho Desestabilizando categorias Jogando por lazer ou por trabalho? Os gamers e suas classificações Por graus de comprometimento Capítulo 4 – O real e o virtual Videogame e Internet: objetos da mesma natureza? O avatar: a construção da corporalidade virtual ou a negação do corpo? Esportes e videogames: entre o sedentarismo e o controle de tensões Sentidos em jogo: comunicação virtual e comunicação face a face Realidades em jogo: anonimato e relacionamentos nos games online Circuitos virtuais: uma categoria analítica Capítulo 5 – Por dentro do jogo: explorando o círculo mágico Relações entre videogames, jogadores e familiares Construindo realidades: o conhecimento dos desenvolvedores de jogos Mecanismos de Recompensa Teoria do Fluxo MMORPGs: regimes multidimensionais de tempo e espaço Videogames como forma de viver fora deste mundo Considerações Finais Desestabilizando a taxonomia moderna Recompondo os mundos reais e virtuais Referências Anexos 94 Título e resumo dos capítulos Introdução: Videogames em perspectiva: por uma Antropologia da Ciência e da Tecnologia Na introdução iremos descrever de forma inicial a controvérsia que está sendo abordada, expondo os objetivos e objetos desta pequisa para o leitor. Apresentaremos a chamada guerra das ciências, abordando a incapacidade de encontrarmos soluções adequadas por meio das velhas oposições da Ciência Moderna, tais como: natureza e sociedade, sujeito e objeto, humanos e não-humanos. Em seguida faremos um breve histórico sobre os videogames e o surgimento da tentativa de abordagem de relações intensas com os videogames enquanto doença psíquica; passando por atores importantes na controvérsia como a Associação Americana de Psiquatria e o seu documento DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), para enfim, discutir em que medida podemos tecer comparações entre videogames e drogas. A proposta desta introdução é apontar a especificidade teórico-metodológica desta pesquisa, que a diferencia das abordagens psiquiátricas e psicológicas (ou de forma mais ampla, de uma perspectiva disciplinar da saúde), até então dominantes nas abordagens científicas do tema; além das pesquisas dos chamados “game studies”. Apresentaremos conceitos como o mapeamento de controvérsias, a teoria do ator-rede, o parlamento das coisas, cosmopolítica e cosmopolitismos, apontando para a quebra das dualidades “natural” vs. “social” presentes nas ciências de caráter universalista. Numa tentativa de sair desta paralisia provocada pela chamada “guerra das ciências”, buscaremos unir novamente os polos natural e artificial, do “dado” e do “construído”, para praticar uma antropologia das associações, como proposto por Bruno Latour. Entraremos no mérito das etnografias virtuais e na recém-proposta Antropologia Cibernética a fim de apontar as qualidades teórico-metodológicas possibilitadas por este tipo de abordagem. Capítulo 1: Por dentro da rede: o conhecimento médico A proposta deste capítulo inicial consiste em um mapeamento parcial dos distintos modos de classificação, métodos de diagnóstico e tratamento acerca da dependência de videogames. Apoiando-se na teoria do ator-rede de Bruno Latour, busca-se constituir um parlamento das coisas a fim de descrever a variada semântica de noções de 95 dependência e de vício enunciadas e praticadas pelos variados sujeitos envolvidos na controvérsia, principalmente por cientistas de diversas áreas (psiquiatria, psicoterapia) e teorias acadêmicas, além dos próprios jogadores. Junto a estes diversos sujeitos, buscarse-á mapear as práticas investigando a maneira pela qual os diversos saberes científicos sobre a dependência de drogas associam-se a outros elementos, como as dependências comportamentais, que incluem, principalmente, a dependência de jogos de azar e as dependências tecnológicas. Passaremos por uma discussão das principais correntes teóricas que abordam o assunto, tal como o modelo cognitivo-comportamental, o modelo neuropsicológico, a teoria da compensação e os fatores situacionais, numa tentativa de desestabilizar os seus pressupostos e ressaltar os elementos colocados em controvérsia entre os diferentes atores. Ao costurar este cruzamento de perspectivas a partir das práticas, discursos e classificações dos sujeitos, buscaremos multiplicar as possibilidades de traçar o rastro destas intensas conexões dos homens com os videogames. Capítulo 2: O sério e o lúdico: repensando as categorias lazer e trabalho a partir dos videogames O nosso interesse neste capítulo é investigar o aspecto lúdico dos jogos e tecer uma problematização acerca da dependência de videogame enquanto jogo, colocado como oposto ao trabalho. O quanto a ética moderna, ou seja, o conjunto de valores da vida humana voltada para o trabalho (que utiliza uma determinada concepção de trabalho), que, por oposição ao lazer, contribui para a produção da ideia de um jogador viciado em um falso mundo, o chamado “mundo dos games”. Esta não é uma simples questão, pois, embora partilhem características comuns da esfera lúdica, todos eles se situam em diferentes redes de associações. Mas de algum modo, o jogo, numa concepção mais ampla, é entendido como lazer, e inserido numa categoria chamada “tempo livre” (considerado como lazer não produtivo) em oposição à categoria “tempo do trabalho” nas sociedades modernas. O objetivo desta seção é investigar as associações entre jogo, lazer e trabalho; e partir das problemáticas levantadas pelos videogames e seus jogadores a partir da etnografia, rever a utilização destes conceitos para verificar a validade de seu uso para esta pesquisa. Nas conclusões, propomos um modelo para investigar o engajamento humano em suas atividades cotidianas a despeito de serem classificadas como lazer ou trabalho, mas a partir de graus de comprometimento. 96 Capítulo 3: O real e o virtual: mundos distintos? Neste capítulo, pretendemos abordar o aspecto virtual (ou da comunicação mediada por computador) da dependência de jogos eletrônicos. Exploraremos os pontos de contato e afastamento entre as dependências de internet e de videogame. Em seguida, destrincharemos controvérsias específicas sobre corporalidade, sensitividade, imaterialidade, comunicabilidade e anonimidade presentes nos enunciados acerca da dependência. Os “mundos virtuais” seriam realidades apartadas, ou até mesmo falsas, do que se entende por “vida real”? A partir da etnografia coletada em campo, buscar-seá descrever o sentido do que se entende por realidade por diversas perspectivas presentes na controvérsia, como os gamers, seus parentes, desenvolvedores e cientistas. Buscaremos uma diferenciação dos jogos eletrônicos dos jogos supostamente naturais ou esportivos e proporemos o conceito de circuitos virtuais para lidar com a emergência de realidades mediadas por computador. Capítulo 4: Por dentro do jogo: explorando o círculo mágico No capítulo derradeiro pretendemos descrever de forma mais detalhada a experiência do jogador e compreender os significados de suas relações mediadas pelos videogames, ressaltando a importância de conhecer as suas realidades. Neste sentido, buscaremos descrever aquilo que é mobilizado pelos games e extrair algumas regularidades entre os diferentes casos. Iremos mapear as disputas envolvendo os ambientes de jogo, em relação à casa (ou LAN House) aos familiares, cônjuges e demais pessoas afetadas pelo uso. Também iremos adentrar os mundos dos MMORPG, apontados pelos próprios jogadores como os casos mais frequentes de dependência. Por fim, traremos à tona os conhecimentos dos desenvolvedores de jogos sobre os mecanismos de recompensa e a teoria do fluxo, que propõem uma relação entre o nível de aprendizagem do jogador e nível de dificuldade, que mantém a atenção no jogo por mais tempo possível. Conclusão: Desestabilizando a taxonomia moderna Na conclusão, esboçaremos uma reflexão sobre a aproximação entre videogames e drogas, apresentando propostas para uma aproximação entre conhecimentos científicos e realidade dos jogos virtuais. Pretendemos destrinchar a fundo a taxonomia moderna, questionando certas práticas cientificas por dentro da própria Ciência para, a partir do trabalho de campo, enfim propôr abordagens alternativas à medicalização da questão. 97 Referências ABREU, Cristiano et al. “Dependência de Internet e de jogos eletrônicos: uma revisão”. Revista Brasileira de Psiquiatria. No. 30(2), São Paulo, 2008, pp. 156-67. ABT, Clark. Serious Games. Nova York: Viking Press, 1970. 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