psicologia e trabalho pedagogico roseli fontana e nazare

Transcrição

psicologia e trabalho pedagogico roseli fontana e nazare
ROSELI A. C. FONTANA
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Bacharel e licenciada em Pedagogia pela UNICAMP
Mestre em Psicologia Educacional pela UNICAMP
Docente de Prática de Ensino na Escola de 1? grau na
Faculdade de Educação da UNICAMP
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CRUZ
MARIA NAZARÉ DA
Bacharel e licenciada em Psicologia pela FFCL-USP
Ribeirão Preto — SP
Mestre em Psicologia Educacional pela UNICAMP
Docente de Psicologia Educacional na Universidade
Federal de Uberlândia — MG
PSICOLOGIA
í
PEDAGÓGICO
ATUAL
EDITORA
© Roseli A. C. Fontana Maria
Nazaré da Cruz
Copyright desta edição:
SARAIVA S.A. LIVREIROS EDITORES, São Paulo, 1999
Todos os direitos reservados.
EDITORA AFILIADA
Catalogação na fonte do
Departamento Nacional do Livro
F679p
Fontana, Roseli
Psicologia e trabalho pedagógico / Roseli Fontana, Maria Nazaré da Cruz. —
São Paulo : Atual, 1997.
240p.
cm. — (Formação do educador).
ISBN 85-7056-902-5
Suplementado por manual do professor.
Inclui bibliografia.
1. Psicologia educacional. 2. Psicologia da aprendizagem. I. Cruz, Maria
Nazaré da. II. Título. III. Série.
CDD-370.15
Psicologia e Trabalho Pedagógico
Desenvolvimento de produto
Gerente: Wilson Roberto Gambeta Editora: Vitória
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Preparação de texto: Célia Tavares
Editora de arte: Thaís de Bruyn Ferraz Pesquisa iconográfico: Cristina
Akisino Projeto gráfico: Irineu Sanches Projeto de capa: Glair Alonso
Arruda Imagem de capa: Criança brincando, 1876, Thomas Eakins
Produção editorial
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R Delia Rosa Editor de arte: Celson Scotton Chefe de arte: Irineu Sanches
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ISBN 85-7056-902-5
NOS PEDIDOS TELEGRAFICOS BASTA CITAR O CÓDIGO ADSS 866IA
apresentação
Todos os momentos do dia de todos os dias da vida eram para aprender e ensinar e de novo ensinar e aprender, vivendo e brincando, trabalhando e sendo...
(Carlos Rodrigues Brandão, Lutar com a palavra.)
V
1
»^^ ntendemos assim a educação: algo sempre presente cm nossas vidas. m mesmo
quando não a percebemos no amontoado de fazeres e saberes _JLBMBH
corriqueiros do cotidiano.
Ela está na voz da mãe que acalanta e na mão do avô que ajuda a criança a
segurar a colher e levá-la à boca. Está na birra e na palmada, no traço marcado na
areia ou no papel, no cabo de vassoura que se transforma em cavalinho.
Não é coisa só da escola... Ela se faz também na escola.
Está na amarelinha riscada no pátio, na letra escrita na lousa, na dobradura, no
problema de matemática, no livro de histórias, nas conversas do recreio.
E assim é porque a prática do fazer-se homem dá-se pelo gesto, pelo jogo, pela
palavra, pela mediação de outros homens, entre risos e choros, silêncios, cumplicidades, desigualdades. A educação é expressão do humano.
Como vida que vem sendo tecida e transformada de geração em geração, a educação é o lugar da psicologia — prática humana de teorização sobre o que somos.
Somos nós a matéria sobre a qual a educação e a psicologia se debruçam. A primeira
no esforço do fazer, do "lavrar e plantar no campo do nosso próprio corpo", como diz
Carlos Rodrigues Brandão. A segunda, na busca do entender e do explicar esse
fazer-se humano.
Orientadas por essas concepções, encaramos o desafio de escrever este livro.
Um livro carregado do desejo de manter vivos e próximos os sons e o movimento das
atividades e das relações entre as pessoas, para que, assim sendo, pudesse nos ajudar,
como professores em atuação e em formação, a estudar a criança, descobrindo a
beleza dos seus modos de dizer e de compreender o mundo.
Um livro em que as teorias não ficassem desgarradas dos fazeres e saberes cotidianos e em que os psicólogos e seu trabalho não se convertessem num amontoado
maçante de nomes e idéias que a gente não sabe bem por que teve de aprender.
Para isso, procuramos partir sempre das práticas educativas, tal qual se desenvolvem na escola, e de sua problematização: Como se processam? Que concepções
acerca do homem e de seu desenvolvimento as sustentam?
Delineadas as questões, voltamo-nos para as explicações e análises desenvolvidas pelos estudos em psicologia, buscando aí elementos para discutir e refletir sobre
elas.
Procuramos também entretecer as análises e discussões com episódios escolares
e não escolares, envolvendo as relações entre adultos e crianças e entre crianças,
trazendo, através deles, seus dizeres e sua produção gráfica.
Assim, cada uma das unidades deste livro começa na escola, dialoga em seguida
com os psicólogos, olha para as práticas educativas não escolares constitutivas do
desenvolvimento da criança e volta à escola numa tentativa de releitura do trabalho
pedagógico em seus limites e possibilidades.
Na primeira unidade, a relação entre as práticas pedagógicas e as teorias da
psicologia é tematizada a partir das quatro vertentes teórico-metodológicas que marcam as discussões sobre a especificidade do humano no nosso século: o
inatismo-maturacionismo, o comportamentalismo, o construtivismo piagetiano e a
abordagem histórico-cultural.
Nas três unidades seguintes, privilegiamos como foco de discussão e de análise
o desenvolvimento da atividade da criança, tal qual acontece na escola e fora dela.
Nessas unidades, nossos interlocutores no campo da psicologia são Piaget e
Vygotsky, em cujas explicações nos baseamos para examinar as relações da criança
com a palavra, com o jogo, com o desenho e com a escrita.
Ao final de cada capítulo, você encontrará sugestões de atividades e de leituras
variadas, que poderão auxiliá-lo a retomar o estudo do texto e a realizar pequenos
trabalhos de iniciação à pesquisa, constituídos por observações, levantamento de
dados e análise das práticas educativas e da produção cultural relativa ao desenvolvimento infantil.
Se conseguimos estar próximos de vencer o desafio a que nos propusemos,
você, leitor, é quem nos dirá...
Roseli e Nazaré.
Sumário
Unidade 1 — Desenvolvimento e aprendizagem: as abordagens da psicologia
Introdução ................................................................................................................
Capítulo 1 — A psicologia na escola ......................................................................
Escola é lugar de aprender. E de ensinar ...................................................................
A psicologia e a educação escolar .............................................................................
O que é ensinar? Como a criança aprende? ...............................................................
O estudo científico da criança: um pouco de história.................................................
Sugestão de atividades...............................................................................................
Sugestão de leituras .............................. • ..................................................................
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Capítulo 2—A abordagem inatista-maturacionista .............................................
A questão das diferenças individuais e a hereditariedade da
inteligência: "filho de peixe, peixinho é?" .................................................................
Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de cada idade?....................................
Pesquisando a criança: a construção dos testes de inteligência ..................................
Pesquisando a criança: a elaboração das escalas de desenvolvimento ......................
A questão dos comportamentos típicos .....................................................................
As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e as influências do
inatismo-maturacionismo na escola ..........................................................................
Sugestão de atividades...............................................................................................
Sugestão de leituras ...................................................................................................
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Capítulo 3—A abordagem comportamentalista ...................................................
Mas o que é comportamento? ...................................................................................
Comportamento e aprendizagem ..............................................................................
Pesquisando a criança: condicionamento e modelagem do comportamento ............
A aprendizagem de comportamentos emocionais: uma pesquisa de Watson ......
Modelagem do comportamento: as pesquisas de Skinner ..................................
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência do
comportamentalismo na escola ................................................................................
Sugestão de atividades ..............................................................................................
Sugestão de leituras ..................................................................................................
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Capítulo 4—A abordagem piagetiana ..................................................................
Conhecimento e adaptação: os processos de assimilação e acomodação ..................
A noção de esquema ..................................................................................................
A noção de equilibração ............................................................................................
A concepção sobre estágios de desenvolvimento ......................................................
Os estágios do desenvolvimento cognitivo ................................................................
O período sensório-motor ....................................................................................
O período pré-operatório .....................................................................................
O período das operações concretas ......................................................................
O período das operações formais .........................................................................
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Pesquisando a criança: o método clínico ..................................................................
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da abordagem
piagetiana na escola ............................................................................... * ................
Sugestão de atividades ..............................................................................................
Sugestão de leituras ..................................................................................................
Filme recomendado.............................................................................................
Capítulo 5 —A abordagem histórico-cultural......................................................
A transformação do biológico em histórico-cultural ................................................
O uso de instrumentos .........................................................................................
O uso de signos ........................................................................... '.......................
O papel do outro e a internalização ......................................................................
Pesquisando a criança: o papel do signo no desenvolvimento ..................................
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da
abordagem histórico-cultural na escola ....................................................................
O papel da escolarização .........................................................................................
Sugestão de atividades ..............................................................................................
Sugestão de leituras ..................................................................................................
Filmes recomendados .........................................................................................
Capítulo 6 — As abordagens sobre desenvolvimento e aprendizagem
e a prática pedagógica ....................................................................
Os diferentes modos de olhar ...................................................................................
Cada uma das abordagens explica um pouco? ..........................................................
A atividade da criança como foco de análise ............................................................
Sugestão de atividades ..............................................................................................
Sugestão de leitura ....................................................................................................
Filme recomendado .............................................................................................
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74
Unidade 2 — A elaboração conceituai
Introdução ......... ".....................................................................................................
Capítulo 7 —A relação entre pensamento e linguagem.......................................
O que a psicologia nos diz ........................................................................................
A linguagem como comportamento ....................................................................
A linguagem como função da inteligência ..........................................................
A linguagem como atividade simbólica constitutiva ..........................................
Sugestão de atividades ......................................................................... .; ..................
Sugestão de leituras ..................................................................................................
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Capítulo 8 — A criança e a palavra ......................................................................
Piaget e o papel da linguagem no desenvolvimento do pensamento
lógico: do símbolo individual aos conceitos ..............................................................
O desenvolvimento da função simbólica ............................................................
Os primeiros esquemas verbais ...........................................................................
O desenvolvimento da elaboração conceituai das palavras ...............................
Vygotsky e a elaboração conceituai — o desenvolvimento do significado da
palavra na criança .....................................................................................................
As primeiras palavras ..........................................................................................
A elaboração das funções analítica e generalizadora da palavra .........................
O pensamento por complexos e os conceitos potenciais .....................................
O papel do outro no desenvolvimento da elaboração conceituai ........................
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Sugestão de atividades .............................................................................................. 104
Sugestão de leituras .................................................................................................. 106
Capítulo 9 — O papel da escola ............................................................................
Escola é lugar de aprender a aprender, lugar de aprender pensando..........................
Escola é lugar de compartilhar conhecimentos .........................................................
Sugestão de atividades ..............................................................................................
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Unidade 3 — A brincadeira e o desenho da criança
Introdução................................................................................................................
Capítulo 10 — O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança .............
Porque as crianças brincam? .....................................................................................
A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget ............................................
As relações sociais com o mundo adulto: a concepção de Vygotsky ...................
Brincando de estação de trem ...................................................................................
Aprendendo a olhar a brincadeira..............................................................................
Brincadeira é coisa séria ...........................................................................................
Objetos e significados na brincadeira .......................................................................
O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança .............................................
A brincadeira e a função simbólica .....................................................................
A criação de zonas de desenvolvimento proximal ...............................................
Sugestão de atividades ..............................................................................................
Sugestão de leituras ...................................................................................................
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13]
Capítulo 11 —A brincadeira na vida e na escola .................................................
A-perspectiva de Piaget sobre o desenvolvimento da brincadeira .............................
A perspectiva de Vygotsky sobre o desenvolvimento da brincadeira ........................
Brincando, aprendendo e sendo ................................................................................
Brincando na escola ............................................................................................
O lugar da brincadeira na escola .........................................................................
Aprender e ensinar a brincar ................................................................................
Sugestão de atividades...............................................................................................
Sugestão de leitura ....................................................................................................
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Capítulo 12 — O desenho infantil .........................................................................
Quando o traço no papel recebe um nome .................................................................
A criança desenha o que sabe e não o que vê ............................................................
O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet ...........................................
A criança é realista na intenção: a perspectiva de Piaget ...........................................
O realismo visual é aprendido: a perspectiva de Vygotsky ........................................
Sugestão de atividades ..............................................................................................
Sugestão de leituras ...................................................................................................
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Capítulo 13 — Desenhando na escola ....................................................................
Analisando o processo de elaboração do desenho.....................................................
E a criatividade, onde fica? .......................................................................................
Desenhando e aprendendo .........................................................................................
A escola e o desenho ................................................................... \ ......................
"O lápis é o melhor dos olhos..." .........................................................................
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Sugestão de atividades ..............................................................................................
165
Sugestão de leituras ..................................................................................................
166
Unidade 4 — O desenvolvimento da escrita na criança
Introdução ................................................................................................................
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Capítulo 14 —A escrita e a alfabetização ..............................................................
169
Escrita e poder ...........................................................................................................
Alfabetização e desenvolvimento da escrita ..............................................................
Sugestão de atividades ...............................................................................................
Sugestão de leituras ...................................................................................................
Filme recomendado .............................................................................................
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175
Capítulo 15 —As relações da criança com a escrita .............................................
176
A criança constrói a escrita........................................................................................
A criança integra-se às práticas sociais de escrita ......................................................
Sugestão de atividades ..............................................................................................
Sugestão de leituras ...................................................................................................
Filme recomendado .............................................................................................
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187
Capítulo 16 — O estudo experimental da construção da escrita pela criança.. 188
A metodologia da pesquisa ....................................................................................... 189
As fases do processo de construção da escrita pela criança....................................... 190
A construção das primeiras formas de diferenciação: o período pré-silábico ...... 190
A fonetização da escrita: do período silábico ao período alfabético ..................... 193
Sugestão de atividades ............................................................................................. 195
Sugestão de leituras ................................................................................................... 195
Capítulo 17 — Da atividade simbólica à simbolização na escrita .......................
O estudo experimental do simbolismo na escrita .....................................................
O procedimento metodológico ............................................................................
A elaboração pré-instrumental da escrita: dos rabiscos mecânicos
às marcas topográficas .........................................................................................
A elaboração da função instrumental da escrita: o processo de
diferenciação das marcas utilizadas ....................................................................
O processo de alfabetização — a relação entre a escrita primitiva
da criança e a escrita convencional ......................................................................
Sugestão de atividades ..............................................................................................
Sugestão de leituras ...................................................................................................
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206
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Capítulo 18 — Escrevendo e lendo na escola ........................................................
Por que o fracasso da escola em ensinar a escrita e a leitura? ..................................
Como o convencional tem sido ensinado? .................................................................
E as crianças? ............................................................................................................
Pra quem, o que e por que escrevo? ..........................................................................
O que é o erro? Os erros são todos iguais? ................................................................
Mas como corrigir?....................................................................................................
Sugestão de atividades ...............................................................................................
Sugestão de leituras ...................................................................................................
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Bibliografia............................................................................................................... 226
Unidade 1
■|M
Introdução
fI1
anta coisa acontece na escola. Professores e crianças
aprendem e ensinam, participando de uma rede de re■JBL»
lações: históricas, sociais, econômicas,
pedagógicas,
afetivas, intelectuais... São múltiplos os olhares possíveis na tentativa
de apreender a complexidade dessa instituição.
A psicologia é apenas um deles. Tematizando os processos de desenvolvimento e de aprendizagem, analisando a atividade da criança,
ela vem produzindo conhecimentos que nos possibilitam ler e interpretar certos aspectos do ensinar e aprender.
Mas a psicologia não é única. É múltipla. No decorrer deste século,
importantes vertentes teóricas foram construídas e deixaram suas marcas na educação. São elas que abordaremos, nesta primeira unidade,
tematizando, ainda, a relação entre as teorias e a prática pedagógica.
No capítulo 1, apresentaremos um modo de conceber as relações
entre psicologia e educação, trazendo também um pouco da história
social da criança e do estudo científico existente sobre ela.
No capítulo 2, trataremos da abordagem inatista-maturacionista.
No capítulo 3, da abordagem comportamentalista.
No capítulo 4, da abordagem piagetiana.
No capítulo 5, da abordagem histórico-cultural.
Nesses quatro capítulos, enfocaremos os conceitos fundamentais
relacionados a cada uma dessas abordagens, apresentando seus principais teóricos e uma amostra das pesquisas que as fundamentam, e apontaremos as influências que exerceram e ainda exercem na escola e no
trabalho pedagógico.
No capítulo 6, discutiremos as relações entre teoria e prática.
Capítulo 1
A psicologia na escola
Escola é lugar de aprender. E de ensinar
É também lugar de tomar merenda, de jogar futebol, de fazer fila,
de ficar triste ou se alegrar. As crianças escrevem, somam ou subtraem,
copiam, perguntam. Elas brigam, choram, se machucam. Fazem grandes amigos. O professor explica a lição, lê histórias, pega na mão da
criança que começa a escrever. Ele também grita, fica bravo, perde a
calma. Tem que fazer chamada, corrigir prova, preparar aula, preencher
papelada. As crianças às vezes têm fome, às vezes estão doentes, às
vezes estão sadias
e felizes. De onde ..*.< .JSS^JSBÊÊbi^íe^Zf' elas vêm?
Do bairro ao lado, da
favela ali em cima, do
outro lado da avenida,
do sítio a alguns
quilômetros.
Falta
lápis e, por vezes, até
o sapato. Trinta (ou
quarenta?) em cada
sala. Lousa nova,
lousa gasta. Carteiras
meio quebradas. O
diretor se preocupa
com a reforma do
prédio, orienta
e
fiscaliza
os professores, tem
um monte de papel para assinar, é homenageado na formatura. Na
escola tem mais gente: merendeira, servente, secretário, inspetor... O
salário está baixo. A vida está dura. Mas escola é lugar de ensinar e de
aprender.
Escola: espaço
de aprender e de
brincar.
Quando pensamos na complexidade de tudo o que ocorre na escola, percebemos a multiplicidade de relações em que está envolvido o
"ensinar e aprender". Relações econômicas e materiais, relações sociais
e institucionais, relações entre conteúdos e métodos de ensino, crenças,
concepções, teorias. O cotidiano da escola é sempre permeado por tudo
isso e, dessa forma, não é tarefa simples procurar apreendê-lo,
analisá-lo, compreendê-lo.
Fonte: Nova Escola, maio/91.
A escola tem uma longa história. Em cada período histórico ela
assume novas características quanto a funções, funcionamento, idéias e
concepções que embasam suas práticas. As transformações dessas características sempre se relacionaram a mudanças da sociedade: mudanças econômicas, políticas, sociais e ideológicas.
O que acontece na escola é, assim, determinado por uma diversidade de fatores, o que faz com que a educação escolar seja objeto do interesse e de pesquisas de várias ciências: a psicologia, a economia, a sociologia, a história, entre outras.
Cada uma delas, de acordo com suas especificidades, produz análises de aspectos determinados da educação escolar, sem que nenhuma
consiga (ou mesmo pretenda) isoladamente dar conta da complexidade
da prática pedagógica.
A psicologia e a educação escolar
A psicologia é apenas uma entre as ciências que concorrem para a
reflexão sobre a educação escolar. Sendo uma das ciências que estudam
o homem, a psicologia tem se ocupado de uma grande variedade de
temas: a afetividade, o desenvolvimento da criança, a velhice, a aprendizagem, as relações sociais e institucionais, a deficiência mental, as
relações de trabalho, a saúde mental, entre outros.
Muitas das pesquisas e teorias psicológicas que têm servido à prática pedagógica não foram elaboradas com esse objetivo. Assim, as
questões e interesses dos psicólogos são às vezes mais abrangentes e às
vezes mais restritos do que aqueles colocados pelos agentes do processo educacional. Esses dois âmbitos, o psicológico e o pedagógico, raramente coincidem; portanto, não podem ser confundidos.
Considerando que o papel social da escola é essencialmente definido
processo de transmissão/assimilação do conhecimento, enten-A P s
que as contribuições fundamentais da psicologia à prática peda- o5n aauelas que podem lançar luz sobre alguns aspectos do
"en-g0gica sdu *ii sinar e aprender .
O que é ensinar? Como a criança aprende?
Essas são questões importantes quando se objetiva construir uma
prática pedagógica que possa garantir a todas as crianças um processo
de' aprendizagem significativo.
Todos nós já temos,
em alguma medida, respostas a essas questões. Se
nos perguntarmos, por
exemplo, como se aprende
a
fazer
bolo,
uma
infinidade de respostas
pode aparecer: a gente
aprende fazendo, seguindo
uma receita, vendo outra
pessoa fazer, seguindo as
orientações de alguém.
Quando 0 primeiro bolo
não dá certo, podemos
ainda dizer que "errando é
que se aprende".
E ensinar, o que é?
Como se ensina? Novamente uma série de respostas acaba emergindo:
ensinar é transmitir conhecimentos, técnicas, valores, é deixar o outro
fazer, orientando, explicando, "dando a receita", fazendo junto...
Quando se trata de criança, as idéias que temos sobre aprendizagem quase sempre se relacionam ao seu desenvolvimento, já que habitualmente admitimos que aprendizagem e desenvolvimento são processos, de alguma forma, inter-relacionados.
Quando dizemos, por exemplo, que, para ensinar à criança uma
coisa determinada, é preciso esperar que ela amadureça ou atinja uma
certa idade, estamos subordinando a aprendizagem ao desenvolvimento. Ou seja, admitimos que para aprender é necessário determinado nível de desenvolvimento. Por outro lado, sempre ouvimos dizer que o
ensino deve promover o desenvolvimento da criança.
Embora a gente conheça, em decorrência de nossa própria experiência, muita coisa sobre o ensinar, sobre o aprender e suas relações
com o desenvolvimento, quando se trata de desenvolver uma ação
educativa intencional, de escolher os métodos, um grande número de
questões acaba aparecendo.
A escola é um
espaço essencialmente de
relações sociais
de trocas.
Será que, se o professor explicar direitinho, a criança aprende?
Como explicar as coisas para uma criança? E se a deixarmos agir, montar quebra-cabeça, brincar com pedrinhas, estará aprendendo? O que ela
estará aprendendo? E, se a criança não aprende, será sinal de algum
distúrbio? Com quantos anos uma criança pode ser ensinada a ler?
Quais são os pré-requisitos para aprender a adição?
É sobre esse tipo de questões que a psicologia pode ajudar a refletir,
uma vez que, no decorrer de sua história, ela tem enfocado como objetos de estudo o desenvolvimento humano, os processos de aprendizagem e a própria criança, além de ter produzido conhecimentos que certamente contribuem para a compreensão do processo de apropriação/
elaboração do conhecimento.
O estudo científico da criança: um pouco de história
1
Representações
de crianças na
Roma antiga
(século II).
A preocupação com o estudo da criança é bastante recente na história da
humanidade. Aliás, a própria idéia de criança, tal como a concebemos hoje
(como um ser que tem necessidades, interesses, motivos e modos de pensar
específicos), não existia antes do século XVII.
Até então, as crianças eram consideradas adultos em mi
niatura. Esse modo de conceber a criança pode ser percebido
nas suas representações em pinturas. Nas ilustrações desta pá
gina, por exemplo, vê-se a representação de um jogo de bolas
entre meninos e de um menino aprendendo a andar em um
andador, feitas em uma tumba subterrânea, em Roma, no sécu
lo II. Repare como os meninos são representados: as propor
ções e formas do corpo se assemelham às de uma pessoa adul,^
...*„ =,
ta, de tal modo
que
""""««fT
^ **■
y-Sr
A convivência com um
infantil extremamente alto facrianças fosse considerada
infância fosse limitada a um
vida dos indivíduos. Ela
em que, para sobreviver, a
cuidados físicos. Quando
anos, após o desmame tardio,
companheira
natural
do
quem passava a conviver o
não encontramos nei í nhum traço que indique
qualquer especificidade
da criança em relação ao
adulto.
índice de mortalidade
zia com que a morte das
natural e que a duração da
período muito curto na
correspondia ao período
criança necessitava de
sobrevivia, com 6 ou 7
a criança "tornava-se a
adulto" (Aries, 1981), com
tempo todo. Participava das atividades do adulto, compartilhando com e]e o
trabalho nos campos ou nos mercados, os jogos e as festas.
O avanço das descobertas científicas tornou possível o prolongamento da
vida e a diminuição da mortalidade infantil. A partir do século XVII,
gradativamente passou-se a admitir a idéia de que a criança era diferente do
adulto não apenas fisicamente. Começou-se então a considerá-la como não
preparada para a vida, cabendo aos pais, além da garantia de sua
sobrevivência, a responsabilidade por sua formação, entendida principalmente
como espiritual e moral. Nessa época foi que se iniciou o costume de enviar
crianças às escolas, as quais se ocupavam basicamente com o ensino da
religião e da moral e de algumas habilidades, como a leitura e a aritmética.
' Se antes a socialização da criança acontecia em meio à convivência direta
com os adultos — ajudando os mais velhos ela aprendia valores, costumes e
habilidades —, a partir do século XVII, ela foi afastada do convívio constante
com eles e sua formação passou a ser responsabilidade da família e da escola.
Repare, na ilustração a seguir, um quadro do século XVII, como a
representação da criança se transformou: seu corpo, suas proporções, seus
movimentos ganharam contornos que permitem diferenciá-la claramente dos
adultos (compare com a representação do século II, a do menino aprendendo a
andar). Repare também como ela é
colocada como centro do interesse,
da* atenção e dos cuidados dos
adultos: seus primeiros passos são
acompanhados a-tentamente pela
mãe, pela ama e pela avó.
O historiador Phillippe Aries
cita um texto de 1602, que fala da
preocupação dos pais com a
educação das crianças:
Os pais que se preocupam
com a educação de suas
crianças merecem mais respeito
do que aqueles que se
contentam em pô-las no mundo.
Eles lhes dão não apenas a
vida, mas uma vida boa e santa. Por esse motivo, esses pais têm razão em
enviar seus filhos, desde a mais tenra idade, ao mercado da verdadeira
sabedoria [o colégio], onde eles se tornarão os artífices de sua própria
fortuna...
(Aries, 1981:277.)
Mas a atuação da escola era ainda bastante limitada, tanto no que se
refere aos objetivos que ela assumia quanto em relação aos métodos que
utilizava e ao pequeno número de crianças que atendia.
A retirada da criança do mundo adulto teve repercussões no modo de
pensar sobre elas. No século XVIII, os filósofos começaram a apontar a
O primeiro passo
da infância,
quadro de
Marguerite
Gérard.
existência de um mundo próprio e autônomo da criança. Rousseau,
Pestalozzi e outros consideraram que a mente infantil opera«diferentemente
da dos adultos. Isso possibilitou o estudo científico da criança e seu desenvolvimento em suas formas próprias de organização (Charlot, 1979).
Mas foi apenas no começo do século XX que se iniciou efetivamente o estudo científico da criança e do comportamento infantil. Desde então vem sendo desenvolvida uma série de pesquisas sobre diferentes aspectos da vida psíquica da criança. Importantes sistemas teóricos
foram construídos e têm servido de base às reflexões sobre seu desenvolvimento, sua afetividade e sua educação.
Além disso, diversas abordagens sobre os processos de aprendizagem
e desenvolvimento foram elaboradas, a partir de questões e interesses específicos e com base em diferentes métodos de investigação. Enfocando temas como a inteligênciae as diferenças individuais, a maturação, a aprendizagem, a construção do conhecimento e o desenvolvimento da criança, algumas dessas abordagens têm exercido considerável influência nos meios
educacionais e levado a reflexões sobre as metodologias e conteúdos do
ensino escolar. Entre elas destacam-se a inatista-maturacionista, o
comportamentalismo, a piagetiana e a histórico-cultural.
É sobre essas abordagens que trataremos nos próximos capítulos,
destacando os autores mais representativos, os conceitos fundamentais
ligados a cada uma e as relações entre elas. Apresentaremos também
algumas das pesquisas que as embasaram, suas concepções quanto à
relação desenvolvimento-aprendizagem e sua influência na escola.
O início da psicologia da criança no Brasil
No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre a criança
datam do início do século. Foram educadores, geralmente vinculados às Escolas Normais, que implantaram a psicologia do desenvolvimento infantil, realizando pesquisas e experimentos com crianças
em idade escolar.
Alguns fatos que marcaram o início da psicologia da criança no
Brasil foram:
1) O estabelecimento, em 1914, de um laboratório de pedagogia
experimental junto à Escola Normal de São Paulo, onde crianças eram
submetidas a exames destinados a medir suas reações psicofísicas
(como, por exemplo, discriminações visuais, auditivas, etc).
2) A criação, em 1916, de um laboratório de psicologia pedagógica, por uma academia de pedagogos do Rio de Janeiro. Esse laboratório foi planejado por Alfred Binet (ver boxe no próximo tópico)
e, através dele, introduziram-se os testes psicológicos no Brasil, especialmente aqueles destinados a medir e avaliar as capacidades e
habilidades infantis.
3) Os estudos sobre a maturidade para a leitura em escolares,
realizados por Lourenço Filho na Escola Normal de Piracicaba/SP.
Sugestão de atividades
Trabalho de campo
Escolha uma classe da V. à 4? série para observar durante um período de aula. Anote, em folhas de papel, a série observada, a data, o
horário do início e do término da observação, o número de alunos presentes à aula, como está organizada a sala, que móveis e outros objetos
há nela (por exemplo, se as carteiras estão dispostas em círculos, grupos
ou fileiras; a posição da mesa do professor; se há armários, prateleiras,
murais, etc).
Em seguida, vá anotando bem rapidamente tudo o que se passa na
sala de aula, prestando atenção aos seguintes aspectos:
•
•
•
•
•
os conteúdos trabalhados;
os recursos utilizados pela professora;
as atividades realizadas pelas crianças;
a movimentação das crianças e da professora;
acontecimentos "não previstos":
a) interrupções da aula;
b) situações de briga, choro, doença, falta de material;
c) situações em que a professora perdeu a paciência;
d) assuntos sobre os quais a professora e os alunos falaram que você considera não pertinentes aos conteúdos trabalhados;
• reação das crianças à sua presença.
Depois, organize o seu registro, agrupando as situações semelhantes, de acordo com os aspectos sugeridos acima. Lembre-se de redigir
seus registros de maneira clara, para que possam ser compreendidos
facilmente por outras pessoas.
Comente, por escrito, as situações observadas, considerando a
questão da complexidade do ensinar e do aprender.
Problematizando a observação
Destaque um comportamento ou um episódio observado ao desenvolver a atividade acima que, a seu ver, a psicologia poderia ajudar a
analisar. Justifique sua escolha. Enumere as perguntas que você faria,
pensando em encontrar respostas na psicologia.
Aprofundando as informações do texto
Conforme vimos, os sentimentos que temos atualmente em relação
à criança e as formas de nos comportarmos em relação a ela não são os
mesmos que se viam antes do século XVII. Para conhecer um pouco das
práticas sociais de educação da criança até então, leia um dos dois textos sugeridos a seguir, anotando seus pontos principais:
• P. Aries, A história social da família e da criança ('Conclusão', p.
275-279).
• J. Gélis, A individualização da criança (História da vida privada,
v.3).
Sugestão de leituras
ARIES, P. História social da família e da criança. Rio de Janeiro: Zahar,
1978.
GÉLIS, J. A individualização da criança. In: ARIES, R, CHARTIER, R. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. v. 3.
KORCZAK, J. Quando eu voltar a ser criança. São Paulo: Summus.
MIRANDA, M. G. O processo de socialização da criança: a evolução da
condição social da criança. In: LANE, S. T. M., CODO, W. Psicologia
social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.
Capítulo 2
A abordagem
inatista-maturacionista
Todos nós já ouvimos ou dissemos coisas como: "Ele ainda não
tem maturidade para aprender a ler"; "Meu filho tem uma aptidão incrível para a matemática"; "A Marina é tão inteligente! Puxou ao pai!".
Maturidade, aptidão, inteligência são temas tradicionalmente abordados pela psicologia numa perspectiva que atribui um papel central a
fatores biológicos no desenvolvimento da criança. Essa perspectiva,
que estamos denominando inatista-maturacionista, parte do princípio
de que fatores hereditários ou de maturação são mais importantes para o
desenvolvimento da criança e para a determinação de suas capacidades
do que os fatores relacionados à aprendizagem e à experiência.
Mas o que são esses fatores hereditários ou de maturação?
A hereditariedade pode ser entendida_como um conjunto de
quali-dades ou características que estão fixadas na criança, já ao
nascimento. Ou seja, quando falamos em hereditariedade estamos nos
referindo, à herança genétjca individual que_a criança recebg_de seus
pais. Todos sabemos que traços como, por exemplo, a cor dos olhos e
do cabelo, o tipo sangüíneo, o formato da orelha e da boca já estão
determinados geneticamente quando nascemos.
-Aldeia de maturação_refere-se a um padrão djMnudar^asjgmmr^a
U^s_os_rnernbros de determinada espécie, que se verifica durante a
vida de cada indivíduo. O crescimento do feto dentro do útero da mãe,
por exemplo, segue um padrão de mudanças biologicamente determinado. As transformações do corpo, o crescimento dos órgãos, etc. acontecem de acordo com uma seqüência predeterminada, que, a princípio,
não dependeria de fatores externos.
Você pode estar se perguntando o que essa história de cor dos olhos
ou do desenvolvimento do feto tem a ver com uma abordagem psicológica da maturidade, das aptidões e da inteligência.
E que, na psicologia, teóricos da perspectiva inatista-maturacionista supõem que, do mesmo modo que a cor dos olhos, aptidões indivi-
duais e inteligência são características herdadas dos pais e, portanto, já
estão determinadas biologicamente quando a criança nasce. Ou então
queyà maneira do crescimento das partes do corpo, o desenvolvimento
do comportamento e das habilidades da criança é governado por um
processo de maturação biológica, independentemente da aprendizagem
e da experiência.
São essas concepções que estudaremos no decorrer deste capítulo.
A questão das diferenças individuais e a hereditariedade
da inteligência: "filho de peixe, peixinho é?"
Gêmeos: centro
de interesse nos
estudos sobre
hereditariedade.
Por que as pessoas são diferentes umas das outras? Por que algumas
crianças parecem mais inclinadas para atividades artísticas, enquanto
outras se saem melhor com os números? Foram perguntas desse tipo
que orientaram, no começo do século, as primeiras investigações psicológicas sobre o
problema da natureza hereditária das aptidões
e da inteligência.
Interessados em saber por que uma pessoa
é diferente da outra — quanto a traços de
personalidade, de habilidades, de desempenho
intelectual, etc. —, pesquisadores procuraram
obter dados que permitissem estabelecer
comparações entre pessoas.
Eles constataram, então, que pessoas
com uma aptidão especial (um artista, por
exemplo) normalmente tinham familiares que
apresentavam o mesmo tipo de aptidão. Ou,
ainda, que gêmeos idênticos apresentavam
aptidões e nível intelectual com um grau de
semelhança maior do que o encontrado entre
irmãos não gêmeos. Por outro lado,
identificaram diferenças de aptidões e de
traços mentais entre homens e mulheres ou
entre raças diferentes. Essas constatações
foram interpretadas como indicadoras de que
os fatores inatos são mais poderosos na determinação das aptidões
individuais e do grau em que estas podem se desenvolver do que a
experiência, o meio social e a educação. O papel do meio social,
segundo essa perspectiva inatista, se restringe a impedir ou a permitir
que essas aptidões se manifestem.
Assim, uma criança — filha, neta ou sobrinha de músicos — apresenta inclinação e facilidade para aprender música porque herdou de
seus familiares a aptidão, o "dom" para a música, e não porque foi
educada num ambiente em que, provavelmente, a música é valorizada e
ensinada. Do mesmo modo, crianças brancas e negras apresentam diferenças no desempenho de determinadas tarefas em razão da herança genética de suas raças, e não de diferenças culturais ou de oportunidades.
Foi nessa linha da preocupação com as diferenças individuais que se
desenvolveram os primeiros estudos psicológicos com o objetivo de
avaliar a inteligência. Um dos pioneiros desses estudos, o pesquisador
francês Alfred Binet, interessou-se especialmente pela mensuração da
inteligência através de testes.
Quem foi Binet?
Alfred Binet nasceu em 1857 e viveu até 1911. Formou-se em
Medicina, mas desde cedo interessou-se pela psicologia da criança e do deficiente, área em que se tornou conhecido.
Em 1904, quando era diretor do Laboratório de Psicologia Fisiológica da Universidade
de Sorbonne, participou de uma comissão de
médicos, educadores e cientistas, nomeados pelo
ministro da Instrução Pública da França, que
tinha como objetivo estabelecer métodos e
formular recomendações para o ensino de
crianças deficientes mentais. Binet foi incumbido
da tarefa de desenvolver um instrumento que
permitisse identificar as crianças" mentalmente
deficientes.
Como resultado de seu trabalho nessa
comissão e de suas pesquisas anteriores, ele
publicou em 1905, com a colaboração de
Théodore Simon, a primeira escala para a
medida da inteligência geral. Essa escala, que
se tornou conhecida como escala Binet-Simon,
passou por duas revisões: a primeira, em 1908,
e a segunda, em 1911, pouco antes da morte de Binet.
Pode-se dizer que o desenvolvimento dessa escala marcou o
início da medida da inteligência, tal como a conhecemos hoje. Os
testes de Binet e Simon foram traduzidos e utilizados também em
muitos outros países e deram origem a inúmeras revisões,
realizadas por outros pesquisadores, bem como inspiraram a
elaboração de outros testes de inteligência.
No Brasil, seus estudos e testes foram introduzidos em 1916
Por educadores ligados ao Laboratório de Psicologia Pedagógica do Rio de Janeiro.
Binet concebia a inteligência como uma aptidão geral que não depende das informações ou das experiências adquiridas no decorrer da
13
vida do indivíduo. Segundo ele, as principais características da inteligência seriam as capacidades de atenção, de julgamentos de adaptação
do comportamento a objetivos:
Parece-nos que na inteligência há uma faculdade fundamental... Esta faculdade é o julgamento, também chamado bom senso
prático, iniciativa, a faculdade de adaptar-se às circunstâncias. Julgar, compreender e raciocinar bem; estas são as atividades essenciais da inteligência.
(Binet e Simon. O desenvolvimento da inteligência nas crianças.
Apud Bee, H.)
É importante compreender que, nessa perspectiva, a idéia de inteligência não se confunde com os conhecimentos adquiridos pelo indivíduo durante sua vida. Habitualmente, consideramos como muito inteligente uma pessoa que demonstra ter um vasto conhecimento; ou seja,
dizemos que os mais inteligentes (entre nossos colegas, por exemplo)
são os que sabem mais.
No entanto, o que define a inteligência de um indivíduo não é a quantidade de conhecimentos que ele possui, mas sua capacidade de julgar,
compreender e raciocinar. Essas capacidades, segundo Binet, não podem
ser aprendidas, mas, ao contrário, são biologicamente determinadas. Assim, a inteligência é vista como um atributo do indivíduo fixado pela
he-reditariedade e, como tal, variável de uma pessoa para outra.
Padrões de desenvolvimento: o que é próprio de cada
idade?
Mas, se as pessoas são diferentes umas das outras nas suas aptidões, traços de personalidade ou de inteligência, existem também muitas semelhanças entre elas. A maioria dos bebês, por exemplo, torna-se
capaz de se sentar antes que possa se arrastar, engatinhar e depois andar.
Do mesmo modo, quando começa a falar, a criança primeiro diz apenas
palavras isoladas, e só depois junta duas ou mais palavras, formando
frases. Ou, então, antes de desenhar casas, animais ou carros, a criança
rabisca traços e círculos.
Essas seqüências parecem se repetir sempre em relação à maioria
das crianças, o que sugere a existência de certo padrão de desenvolvimento humano. Esse fato tem chamado a atenção de muitos pesquisadores desde as primeiras décadas deste século. Um dos primeiros psicólogos a se interessarem por essa questão foi Arnold Gesell, nos Estados
Unidos. Ele se preocupou com a evolução da criança, do nascimento
aos 16 anos, e estudou as formas que seu comportamento vai tomando
no decorrer dessa evolução.
Quem foi Gesell?
Pesquisador norte-americano que viveu entre 1880 e 1961, Gesell
foi o principal expoente das teorias do desenvolvimento que dão maior
ênfase ao papel da maturação. Desde muito cedo, logo que
formado na Escola Normal (Magistério), dedicou-se à
carreira de professor. Foi diretor de colégio e escreveu sua
primeira tese sobre um assunto ligado à pedagogia. Depois
de doutorar-se em psicologia, Gesell retomou o seu trabalho
como professor em uma escola primária. Alguns anos depois,
decidiu-se por fazer o curso de Medicina e assim que o
concluiu foi nomeado professor de Higiene da Criança na
Escola de Medicina de Yale, cargo que ocupou até a sua
aposentadoria.
Em 1915, Gesell passou a empregar a psicologia com
vistas a proporcionar ajuda pedagógica às crianças
desadaptadas. Ele é, por isso, considerado o primeiro
psicólogo escolar norte-americano.
Preocupado com a criação de uma ciência do
desenvolvimento humano que integrasse todos os recursos da psicologia
experimental, da biologia evolutiva e da neurofisiologia, de 1920 a
1961 Gesell dedicou-se à pesquisa científica e à publicação de livros e
artigos.
Pode-se dizer que Gesell foi o primeiro teórico da maturação, uma vez
que defendia a prioridade dos fatores de maturação sobre os fatores de
aprendizagem, ou de experiência, na evolução do comportamento da criança.
Para ele, o que explica a existência de um padrão de desenvolvimento comum
à maioria das crianças é o processo de maturação biológica inerente às
transformações por que passa o comportamento da criança.
Assim, a evolução psicológica da criança seria determinada
biolo-gicamente, do mesmo modo que o crescimento do feto no útero materno. Seus comportamentos e formas de pensar tornam-se mais complexos à
medida que ela cresce, que seu sistema nervoso, sua estrutura muscular, etc.
se desenvolvem. O ambiente social e as influências externas, de modo geral,
limitam-se a facilitar ou dificultar o processo de maturação. Por exemplo, uma
criança que raramente é tirada do berço e deixada à vontade no chão,
certamente vai demorar mais para engatinhar ou andar. Em condições
adequadas, seu desenvolvimento se processaria no ritmo e na seqüência
determinados pela maturação.
Tanto Binet quanto Gesell, acreditando que a inteligência e o desenvolvimento psíquico da criança são biologicamente determinados, preocuparam-se
em descrever comportamentos e habilidades típicos de cada faixa etária.
Binet estava interessado, como já dissemos, em medir e comparar a
inteligência das pessoas. Mas, se podemos medir a altura ou o tamanho
!o dedo de uma criança simplesmente usando uma fita métrica, medir a
ntehgência é bem mais complicado. Enquanto aptidão geral do indivídu
o, a inteligência não pode ser medida diretamente, mas apenas atra-
15
vés de algumas de suas realizações. Por isso, para construir um teste de
inteligência, Binet precisava conhecer o que crianças s|o capazes de
fazer em cada idade.
Essa também foi uma necessidade experimentada por Gesell. Preocupado em compreender a evolução da criança, ele procurou estabelecer escalas de desenvolvimento que permitissem comparar os comportamentos de uma criança com aqueles que eram esperados, ou considerados "normais", para sua faixa etária.
Mas como foram criados os testes de inteligência e estabelecidas as
escalas de desenvolvimento?
Essa é uma pergunta importante, porque sua resposta nos mostra um
pouco como o conhecimento é produzido na área da psicologia. Partindo
do princípio de que a hereditariedade e a maturação são os fatores mais
decisivos na determinação da inteligência e na evolução do comportamento da criança, tanto Binet quanto Gesell dedicaram-se a pesquisas.
Pesquisando a criança: a construção dos testes de
inteligência
Binet partiu da experimentação e da observação do que as crianças
eram capazes de fazer em idades variadas. Ele procurou selecionar problemas ou questões cuja solução envolvesse os efeitos combinados da atenção, do juízo e do raciocínio e não dependesse de aprendizagens anteriores.
Essas questões eram organizadas em grupos por idade, de acordo
com o seguinte critério: se um teste era resolvido satisfatoriamente por
60% a 90% das crianças de determinada idade estudadas, ele era considerado adequado para aquela idade.
Um exemplo: se todas ou quase todas as crianças de 6 anos fossem
capazes de comparar dois pesos, essa tarefa era considerada muito fácil
para essa idade; se 60% a 90% das crianças de 5 anos estudadas resolvessem o problema de maneira correta, ele era aceito como adequado
para essa faixa etária. Do mesmo modo, se quase nenhuma das crianças
de 4 anos estudadas conseguisse copiar um quadrado, essa tarefa era
considerada difícil demais para essa idade.
Seguindo esse procedimento, Binet selecionava um número determinado de tarefas, em ordem crescente de dificuldade, para cada idade.
Assim, o seu teste de inteligência geral, destinado a avaliar pessoas dos
3 anos até a idade adulta, era composto por vários conjuntos de problemas: um para as crianças de 3 anos, outro para as de 4 anos, outro para
as de 5 anos, e assim sucessivamente.
Por meio desses testes, a inteligência é avaliada pelo desempenho
nas tarefas. O número de testes que a criança consegue resolver determina a sua idade mental ou o seu quociente de inteligência (QI). Se ela conseguir resolver todos os testes propostos para a sua idade, sua inteligência será considerada normal. Se ela também resolver corretamente alguns dos testes propostos para crianças mais velhas, seu QI estará acima
da média. E se, ao contrário, ela acertar apenas questões propostas para
crianças mais novas, sua inteligência será considerada abaixo da média.
Você sabe o que é o QI?
Embora confundido por muita gente com a própria inteligência, o
QI (quociente intelectual) é basicamente uma comparação entre a idade
mental e a idade real da criança (idade cronológica).
A idade mental é determinada pelo número de tarefas de um teste
que a criança consegue resolver corretamente. Por exemplo, se ela
acerta todas as tarefas atribuídas ao grupo de 10 anos, diz-se que ela
tem idade mental de 10 anos, seja qual for sua idade cronológica.
O Ql é obtido quando se divide a idade mental de uma criança pela
sua idade cronológica. Suponhamos que uma criança de 8 anos consiga
resolver todos os problemas propostos para a idade de 10 anos, mas
nada além desse nível. Diremos que sua idade mental é de 10 anos e,
para calcular o seu QI, dividiremos 10 por 8, o que dá um resultado de
1,25. Por convenção, esse resultado é multiplicado por 100, para que o
Ql possa ser expresso em números inteiros. Isso significa que, em nosso
exemplo, a criança tem um QI de 125, que é considerado acima da
média.
QT _
idade mental x 100
idade cronológica
Assim, quando a idade mental e a idade cronológica forem as
mesmas, o QI será sempre 100. Se a idade mental for inferior à idq.de
cronológica, os resultados serão sempre inferiores a 100, o que
indicará um QI abaixo da média. Se, ao contrário, a idade mental for
superior à idade cronológica, o QI será sempre superior a 100, ou
acima da média.
Pesquisando a criança: a elaboração das escalas de
desenvolvimento
A semelhança de Binet, Gesell também se utilizou da observação e da
experimentação com crianças para elaborar suas escalas de desenvolvimento.
No entanto, ele introduziu uma importante inovação técnica na observação e
no registro do comportamento da criança: as câme-ras cinematográficas.
Na Clínica do Desenvolvimento da Criança, criada por ele em 1930 na
Universidade de Yale, Gesell montou um observatório fotográfico, que era um
hemisfério de 4 metros de diâmetro e 2,5 metros de altura, equipado no alto e
nas paredes laterais com câmeras cinematográficas. Enquanto Gesell submetia
as crianças a vários testes — sem-Pre voltados a descobrir o que são capazes
de fazer em cada idade — as cameras rodavam, registrando todas as reações
que elas apresentavam.
Os filmes obtidos eram posteriormente analisados. Gesell procurava, então, destacar diversos aspectos da evolução do comportamento da
criança. A postura, a locomoção, a ação de agarrar, os jogos, as condutas sociais, etc. eram minuciosamente analisados e descritos com o
objetivo de captar as formas que esses comportamentos tomam no decorrer do desenvolvimento da criança.
A partir dessas análises, tornava-se possível
estabelecer que comportamentos eram típicos de
cada faixa etária, como, por exemplo, começar a
engatinhar, colocar-se de pé e andar com apoio,
subir em cadeiras ou sofás e caminhar sozinha.
Engatinhar e andar sozinho: estágios
diferentes do desenvolvimento infantil.
Essas pesquisas, baseadas na análise dos filmes, foram denominadas por Gesell pesquisas normativas, já que visavam à apreensão do
ritmo e da seqüência "normais" do desenvolvimento. Assim, ao enumerar os comportamentos considerados típicos de cada faixa etária, é esse
ritmo e essa seqüência que as escalas de desenvolvimento expressam.
A questão dos comportamentos típicos
18
Tanto Binet quanto Gesell ocuparam-se em definir os comportamentos típicos de cada faixa etária, embora a partir de perspectivas diferentes.
Como já apontamos, Gesell não apenas destacava quais são os
comportamentos infantis comuns a determinada idade, mas também
procurava retratar a maneira como esses comportamentos evoluem,
transformam-se. É o caso, por exemplo, da capacidade da criança de
manter-se sentada sem apoio.
É possível observar, nas figuras a seguir, que a evolução desse
comportamento deve-se ao progresso do alinhamento das costas e do
aumento do controle da cabeça: gradativamente as costas do bebê (que,
no recém-nascido, são arredondadas) ficam mais alinhadas, e a criança
torna-se capaz de manter a cabeça levantada, podendo, então, permanecer sentada sem apoio.
Primeiras 4
semanas de vida: o
dorso do bebê é
uniformemente
arredondado,
havendo falta de
controle da cabeça.
Binet, por sua vez, preocupava-se com
aqueles comportamentos que, numa
determinada idade, pudessem ser tomados
como indicadores do nível de inteligência da
criança. A evolução ou o desenvolvimento
dos comportamentos considerados típicos
não o interessaram de modo especial, mas
sim a capacidade da criança de realizá-dos
na idade tida como adequada.
Mas, apesar das diferenças, podemos
dizer que Binet e Gesell estabeleceram padrões de comportamento com a finalidade de
avaliar a inteligência ou o desenvolvimento
da criança. O pressuposto de que os fatores
biológicos (hereditariedade e maturação) são
os mais decisivos na determinação da
inteligência e do desenvolvimento leva a
supor que tais padrões de comportamento
são independentes de fatores externos ou do
contexto social em que as crianças vivem.
Desse modo, não importa o lugar e a época
em que a criança viva ou as condições
materiais e as possibilidades educacionais a
que tenha acesso: a criança "normal" deve
apresentar tais comportamentos.
No entanto, é importante lembrar que eles chegaram à definição
dos padrões de comportamento de cada faixa etária a partir de pesquisas realizadas nas primeiras décadas do século, com determinados
gru-Pos de crianças (francesas e norte-americanas). Logo, os
comporta-
Entre 4 e 6
semanas o bebê
tem o dorso
arredondado e a
cabeça é erguida
por alguns
momentos.
Entre 8e 12
semanas o dorso
ainda é
arredondado e a
cabeça já se levanta
mais, porém o bebê
ainda tende a
pender o corpo
para a frente.
Entre 16 e 20
semanas o bebê tem
o dorso mais
alinhado e a cabeça
é mantida ereta sem
vacilação.
1
I
mentos considerados típicos foram aqueles apresentados pela maioria
das crianças que eles estudaram, e foi a partir daí que se definiu o que é
normal ou não.
Esse procedimento é bastante coerente com os princípios teóricos
pelos quais Binet e Gesell se orientaram. Se o ritmo e a seqüência do
desenvolvimento são biologicamente determinados, espera-se que certos comportamentos apareçam sempre na mesma seqüência e na mesma
idade, quer se trate de crianças européias de classe média, quer de crianças do interior do Nordeste brasileiro.
As relações entre desenvolvimento e aprendizagem e as
influências do inatismo-maturacionismo na escola
Se o ritmo e a seqüência do desenvolvimento são biologicamente
determinados, qual a sua relação com os processos de aprendizagem?
Antes de responder a essa pergunta, é importante lembrar que os pesquisadores da abordagem inatista-maturacionista não tinham como objetivo o estudo da aprendizagem. No entanto, ao destacar o papel de
fatores internos na determinação da inteligência e do desenvolvimento,
essa abordagem considera que aquilo que a criança aprende no decorrer
da vida não interfere no processo de desenvolvimento.
De acordo com a perspectiva inatista-maturacionista, a aprendizagem é que depende do desenvolvimento. Ou seja, o que a criança é
capaz ou não de aprender é determinado pelo nível de maturação de
suas habilidades e do seu pensamento ou, ainda, pelo seu nível de
inteligência.
Essa concepção tem tido bastante influência na escola, desde sua
elaboração. Pode-se dizer que o inatismo-maturacionismo marca o começo da relação entre a psicologia científica e a educação. Como vimos, a construção dos primeiros testes de inteligência de Binet e Simon
foi resultado de uma necessidade emergente nos meios educacionais
franceses da época: a de identificar as crianças mentalmente deficientes
e estabelecer métodos que tornassem o ensino acessível a elas. O
trabalho de Gesell também foi orientado por fins ligados à educação,
especialmente a de crianças consideradas desadaptadas.
No Brasil, as principais pesquisas psicológicas sobre crianças datam do início do século. Educadores, geralmente vinculados às Escolas
Normais (antigo nome dos cursos de Magistério), implantaram na década de 20, em suas escolas, laboratórios de Psicologia Experimental e de
Psicologia Pedagógica. Nesses laboratórios, as crianças eram submetidas a exames destinados a medir suas reações psicofísicas (discriminações visuais, auditivas, etc), e foi através deles que se introduziram no
país os primeiros testes psicológicos. O primeiro teste para avaliar a
prontidão de crianças para a alfabetização foi desenvolvido por um educador, Lourenço Filho.
A idéia de que a criança é portadora dos atributos universais (bioló/ aicos) do gênero humano produz ou justifica a crença de que caberia à
I e(jucação fazer aflorar esses atributos naturais, desenvolvendo as
Qj£n£iahxladeido_e^çiiiid^le_mod() harmonioso. Tal concepçãg_tg_y_e
) 0 mérito de chamar a atenção para as especificidades da criança, para as
^fictêrísticas, habilidades e capacidades dos educandos, colocando
em destaque noções como prontidão, maturidade, aptidão.
Mas. ao mesmo tempo que atribuem à escola o papel de "cultivar" o
indivíduo, de possibilitar o seu desenvolvimento harmonioso, as propostas
pedagógicas orientadas por essa perspectiva consideram que para aprender os
conteúdos escolares a criança precisaria já ter desenvolvido determinadas
capacidades. Isso acaba gerando a idéia de que existe uma idade bem precisa
para aprender certos conteúdos. Ou, ainda, que o proveito que a criança tira
das situações de aprendizagem depende de seu nível de prontidão ou
maturidade.
Essas noções, além de circularem entre os agentes do processo
educacional, influenciando, muitas vezes, o cotidiano da escola, também dão
sustentação à prática de utilização de testes psicológicos para avaliar as
possibilidades educacionais da criança.
É fato bem conhecido que testes de prontidão (para a leitura, por
exemplo) e testes de inteligência têm sido amplamente utilizados para a
avaliação de crianças em idade escolar, penalizando muitas delas. Os
resultados de tais testes têm, historicamente, impedido que inúmeras crianças
tenham acesso ao conhecimento e à própria escolarização, ao fornecerem
indicadores de sua "imaturidade" ou de seus "déficits" de inteligência. Há
crianças, por exemplo, que são retidas na pré-escola ou permanecem nos
exercícios preparatórios, às vezes um ano inteiro, porque "não estão prontas"
para aprender a ler e escrever; outras são enviadas às classes especiais porque
"não têm condições" intelectuais de seguir o curso normal da escolaridade.
.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Organize um quadro explicando, resumidamente, o que é:
• hereditariedade;
• maturação.
2. Monte um quadro que apresente um resumo de como se explica, na
abordagem inatista-maturacionista:
• inteligência;
• desenvolvimento.
3. Explique a relação existente entre desenvolvimento e aprendizagem,
de acordo com essa abordagem.
Refletindo sobre o texto
1. Dividam-se em dois grupos, para discutir a seguinte frase: "Algumas
pessoas são mais inteligentes que outras em razão de sua herança
genética".
2. O grupo 1 deve se reunir e pensar em argumentos a favor dessa frase
(durante dez minutos).
3. O grupo 2 pensará em argumentos contra essa frase (durante dez minutos).
4. Organizem o debate entre os grupos. Mas lembrem-se: quem é do
grupo 1 só pode falar "a favor" da frase e quem é do grupo 2 deve
falar "contra".
5. Registre em seu caderno suas opiniões sobre os aspectos favoráveis e
desfavoráveis da abordagem analisada.
Trabalho de campo
1. Para realizar esta pesquisa, cada aluno deverá entrevistar uma pessoa
que tenha filhos (mãe ou pai) e uma professora (de pré-escola ou de
1? a 4? série). Explique à pessoa que você está realizando um trabalho
escolar e precisa da ajuda dela.
• Pergunte à mãe (ou ao pai) sobre o que se lembra a respeito do
desenvolvimento dos filhos. O que mais lhe chamou a atenção
nesse processo? O que foi motivo de encantamento e o que foi
motivo de preocupação? Por quê? Registre ou grave as respostas
obtidas. Caso a pessoa queira lhe mostrar fotos da criança ou anotações
sobre ela, observe-as atentamente e sintetize as informações
proporcionadas por esses materiais.
. Pergunte à professora quais são as situações a que ela presta atenção para
analisar o desenvolvimento de seus alunos. Procure saber o que a
encanta e o que a preocupa em seus alunos. Peça a ela que descreva
algumas situações ou experiências que foram marcantes em seu trabalho
com as crianças. Registre as respostas obtidas.
2 Em grupo, organizem os dados obtidos, reunindo as respostas semelhantes.
Destaquem nas respostas dadas pelos pais e professoras os aspectos que as
associam à visão inatista-maturacionista do desenvolvimento.
Concluído o trabalho, convém guardar os registros das entrevistas e o
resultado da organização dos dados estabelecida pelo grupo, pois eles serão
utilizados em atividades referentes aos próximos capítulos.
Exercitando a análise
Leia o livro A Terra dos Meninos Pelados, de Graciliano Ramos (Editora
Record). Nesse livro, o autor conta a estória de Raimundo, um menino
considerado "diferente" ...
Após a leitura, responda:
• De que tipos são as diferenças de Raimundo?
• Quais as conseqüências dessas diferenças na vida do menino?
Em grupo, discutam essas questões, relacionando-as com as idéias
apresentadas no capítulo a respeito do desenvolvimento humano.
Sugestão de leituras
A curva do sino. Folha de S. Paulo, 30 de outubro de 1994, p. 6-4 a 6-6. BEE,
H. A criança em desenvolvimento. São Paulo: Harper e Row do Brasil, 1977.
Capítulo 3
A abordagem
comportamentalista
Ao contrário do inatismo-maturacionismo, a abordagem comportamentalista destaca a importância da influência de fatores externos, do
ambiente e da experiência sobre o comportamento da criança.
Enquanto aquela abordagem enfatiza o papel de fatores biológicos
internos, como a hereditariedade e a maturação, o comportamentalismo
parte do princípio de que as ações e as habilidades dos indivíduos são
determinadas por suas relações com o meio em que se encontram.
John B. Watson foi o fundador do movimento comportamentalista
(ou behaviorista, do inglês behavior, que significa "comportamento")
na psicologia. Ele definiu a psicologia como a ciência do comportamento, como um ramo objetivo e experimental das ciências naturais.
Quem foi Watson?
John Broadus Watson nasceu em 1878, nos
EUA, e viveu até 1958. Formou-se em Filosofia,
pela Universidade de Furmam, aos 22 anos, mas
logo interessou-se pela psicologia animal, área em
que desenvolveu sua tese de doutoramento.
Em 1908, assumiu o cargo de professor de Psicologia na Universidade Johns Hopkins, onde continuou suas pesquisas com animais.
Após algumas tentativas de formulação de princípios que considerava mais objetivos para o estudo
da psicologia — desestimuladas pelas críticas —,
Watson publicou, em 1913, um artigo intitulado "A
psicologia como um behaviorista a vê", considerado
o lançamento oficial da escola behaviorista.
O fato de incluir a psicologia entre as ciências naturais deve-se a
rença na existência de uma continuidade entre o animal e o homem. Ou
seja, para os comportamentalistas, embora o comportamento do ho-em
difira do dos animais em razão de um maior refinamento e
com-"lexidade, ambos podem ser explicados pelos mesmos princípios.
Des-P modo, o comportamento humano não é privilegiado como objeto
de S<esquisa: no comportamentalismo, estudam-se tanto o
comportamento humano quanto o comportamento animal.
Mas o que é comportamento?
Na perspectiva de Watson, podemos dizer que o comportamento é
sempre uma resposta do organismo (humano ou animal) a algum estímulo presente no meio ambiente.
Por estímulo, Watson entende toda modificação do ambiente que
pode ser captada pelo organismo por meio dos sentidos. Assim, as respostas são modificações que ocorrem no organismo em decorrência
desses estímulos, como, por exemplo, alterações na expressão facial,
mudanças na posição do corpo, ações ou movimentos de qualquer tipo.
Imaginemos um pequeno animal silvestre bebendo água na beira
de um riacho. Ao captar um ruído de passos de animal no mato, ele sai
correndo. Na linguagem comportamentalista, diremos que o ruído (estímulo) provocou, no animal, uma resposta: o ato de correr.
O que interessa à psicologia, entendida como uma ciência natural
e objetiva, é a relação entre estímulos e respostas — fatos exteriores
que pedem ser empiricamente observados. O que ocorre no interior do
organismo entre um dado estímulo e uma dada resposta não pode ser
observado e, portanto, não interessa aos psicólogos comportamentalistas. No exemplo do animal silvestre bebendo água, o comportamento do animal é explicado pela relação entre o estímulo (o ruído) e
a resposta desencadeada por ele (correr), e não a partir de determinado
estado interno do organismo.
Veja bem: isso não significa que Watson descarte a existência de processos internos no organismo. Ele apenas considera que tais processos
devem ser estudados pela fisiologia. À psicologia, segundo sua concepção, cabe o estudo das respostas do organismo aos estímulos do meio.
Assim, os problemas de que se ocupa o comportamentalismo são:
prever a resposta, quando se conhece o estímulo, e identificar o estímulo, quando se conhece a resposta. Ou seja, o estudo do comportamento
ieve possibilitar o conhecimento das relações estímulo-resposta, das
quais ele é o resultado. Assim, cabe ao comportamentalista descobrir
quais são os estímulos que provocam determinado comportamento.
De acordo com essa concepção, o comportamento animal ou humae sempre uma adaptação, uma reação aos estímulos, às alterações que
e
Processam no ambiente. Essa postura ambientalista opõe-se a qualu
er tipo de inatismo. Para Watson, não existem aptidões, disposições
nte
lectuais ou temperamentos inatos ou hereditários. O que existe é certa
""opensão para responder a certos estímulos de uma forma determinada.
Comportamento e aprendizagem
Para
o
comportamentalismo,
a
aprendizagem é um tema central. Ao enfatizar a influência dos fatores
externos e ambientais, essa concepção teórica afirma que o mais
importante na determinação do comportamento do indivíduo são as
suas experiências, aquilo que ele aprende durante a vida. Aliás,
podemos dizer que o comportamentalismo confunde-se com uma teoria
da aprendizagem, uma vez que sua preocupação básica é explicar como
os comportamentos são aprendidos.
Skinner, outro importante comportamentalista, cujo trabalho deu
continuidade a algumas das formulações de Watson, distingue dois tipos de aprendizagem: por condicionamento clássico e por condicionamento operante.
Quem foi Skinner?
Burrhus Frederic Skinner, psicólogo norte-americano, nascido em
1904, foi o criador do que ele denominou "análise experimental do
comportamento ", método que permite prever e controlar
cientificamente o comportamento humano.
Doutorou-se em Harvard, em 1931, e depois de
alguns anos lecionou na Universidade de Minnesota e
na Universidade de Indiana, da qual foi presidente.
Regressou a Harvard como professor e pesquisador em
1947.
Skinner interessou-se pela análise da aprendizagem
verbal, pelo adestramento de pombos, pelas máquinas
de ensinar e pelo controle do comportamento mediante
reforço positivo.
Até a sua morte, em 1980, desenvolveu trabalhos
de aplicação tecnológica dos princípios da análise experimental do comportamento no campo do ensino e no
trabalho psicoterapêutico. Além disso, dedicou-se à
elaboração de uma filosofia, o behaviorismo, que se vincula ao movimento de análise experimental do comportamento.
A aprendizagem por condicionamento clássico envolve um tipo de
comportamento determinado, que é sempre provocado por um estímulo
também determinado. Ela envolve uma reação do organismo ao meio e
não uma ação do organismo sobre o meio.
Digamos que alguém dê um sopro em seus olhos. Você automaticamente irá piscar. Piscar é uma reação, uma resposta a um estímulo. Não
se pode dizer que tenha sido uma resposta aprendida. No entanto, se
toda vez que alguém sopra em seus olhos soa uma campainha, pode
chegar um momento em que você piscará ao ouvir tal campainha, mesmo na ausência do sopro. Dizemos, então, que você aprendeu a piscar
quando ouve determinado som.
Em relação à primeira parte do nosso exemplo, podemos dizer que sopro é
o estímulo que provoca a reação de piscar. Essa reação, como •Á dissemos, é
um tipo de resposta não aprendida, é um reflexo do orga-J :srno. À medida que
o sopro é associado a um som determinado, esse orn passará a servir como um
estímulo que também provoca a resposta de piscar. Nesse caso, o som é
chamado pelos comportamentalistas de estímulo condicionado, porque, por si
mesmo, ele não provoca a reação He piscar, mas apenas quando é associado a
outro tipo de estímulo (o sopro) que automaticamente desencadeia tal reação.
Esse é um exemplo de aprendizagem por condicionamento clássico em
que estão envolvidos um estímulo condicionado e uma resposta que é
simplesmente uma reação do organismo. Esse tipo de aprendizagem não
implica nenhuma iniciativa por parte de quem aprende. Ou seja, a pessoa
aprende a piscar quando ouve um som determinado porque sua reação original
acabou se associando a um novo estímulo.
Já a aprendizagem por condicionamento operante se dá de forma bastante
diferente, apoiando-se não em reações
provocadas por estímulos, mas em
comportamentos emitidos pelo próprio
organismo que são seguidos por algum tipo
de conseqüência.
Se o comportamento é seguido por uma
conseqüência agradável, ele tende a se
repetir. Ao contrário, se a conseqüência for
desagradável, o comportamento tem menos
probabilidade de se repetir. Essas
conseqüências,
chamadas
pelos
comportamentalistas
de
reforçadores,
"modelam"
o
comportamento
dos
indivíduos, sendo responsáveis pela criação
dos hábitos.
Segundo a concepção de Skinner, a grande
maioria dos comportamentos das pessoas é
aprendida por condicionamento operante. A
birra de uma criança, por exemplo, é um
comportamento aprendido. Se a
criança chora e esperneia e a mãe (ou
outro adulto) lhe dá algo que ela deseja
(como um doce, Urr> brinquedo, um
refrigerante), o comportamento da criança
é reforçado e tende a se repetir em outras
,c
asiões. Da mesma forma, uma criança pequena que sozinha leva o copo de
água à boca, tende a repetir esse comportamento se for elogia-e beijada pela
mãe. Mas, se a mãe a repreender todas as vezes (temerosa de que a água seja
derramada), ela provavelmente deixará de er esse comportamento.
Para Skinner, a
birra é um
comportamento
que se aprende.
Pesquisando a criança: condicionamento e
modelagem do comportamento
A idéia de que os comportamentos e as habilidades do indivíduo
são sempre aprendidos a partir da influência do ambiente serviu de base
para pesquisas psicológicas que tinham como objetivo estabelecer um
método que permitisse prever e controlar cientificamente o comportamento humano ou animal.
Para que você saiba um pouco sobre as pesquisas que auxiliaram a
produção de conhecimentos relativos a como os comportamentos são
aprendidos, destacaremos aqui as pesquisas mais conhecidas de Watson
e Skinner.
A aprendizagem de comportamentos emocionais: uma
pesquisa de Watson
Interessado em saber como as crianças aprendiam comportamentos
emocionais, Watson realizou uma pesquisa com crianças de 4 meses a 1
ano de idade que haviam sido criadas em hospitais e nunca tinham
visto nenhum dos animais ou objetos utilizados no experimento.
Vários animais foram apresentados às crianças no laboratório e em
um jardim zoológico. Suas reações eram todas anotadas pelo pesquisador. O resultado dessas situações foi sempre o mesmo: não se verificou
nenhuma manifestação de medo nas crianças.
, •» Wm £m
■?;i^'
'***//*/
As crianças,
a princípio,
não têm medo
dos
Watson já havia verificado
que situações como exposição a um
ruído forte, perda do equilíbrio ou sensação de dor provocavam rea>o
ções de medo nas crianças. Para ele, essas seriam as situações
originais
' __
que suscitariam medo.
Como explicar o medo de tanta coisa que muitas crianças mais velhas e
até mesmo adultos sentem? Watson afirma que medo de cachor-de
escuridão, de insetos, e outros tipos de medo, é um sentimento
r
°"rendido através de condicionamento. Ele resolveu verificar se era
ossível produzir, em laboratório, uma reação de medo.
O sujeito da experiência foi uma criança de 11 meses que originai-te
nj|0 demonstrava medo a animais peludos, como o coelho e o - to
branco. Quando, no laboratório, era apresentado à criança um rato
branco e ela o tocava, um ruído forte — de uma barra de aço golpeada
com um martelo — era produzido. A criança manifestava então reações
de medo: estremecia e começava a chorar.
Após várias repetições desse procedimento, a criança passou a
apresentar reações de medo diante do rato branco quando este lhe era
apresentado sozinho (sem o ruído). Watson verificou, ainda, que tal reação estendia-se a outros animais ou objetos que lembravam o rato branco: um coelho, um cão, um casaco de peles ou um chumaço de algodão.
Você pode reconhecer nessa experiência uma situação experimental de
aprendizagem por condicionamento clássico. Um estímulo que
originalmente não provocava a resposta de medo (o rato branco) foi
associado a outro que naturalmente a provocava (um ruído forte), tornando-se, assim, um estímulo condicionado. A reação de medo a animais peludos foi, portanto, aprendida pela criança.
Com esse experimento, Watson procurava comprovar a sua tese de
que a maioria das reações emocionais das pessoas é aprendida a partir da
influência do ambiente. Procurava também explicar "como as pessoas
aprendem", explicitando os princípios do condicionamento clássico.
Modelagem do comportamento: as pesquisas de Skinner
Skinner, por sua vez, interessou-se fundamentalmente pela aprendizagem por condicionamento operante, realizando pesquisas inicialmente com ratos, depois com pombos e, por último, com pessoas.
Para estudar o problema da programação do reforço no condicionamento operante, Skinner utilizava em suas pesquisas com ratos uma
caixa em cujo interior havia um dispositivo (uma pequena barra de
metal) que, quando acionado,
liberava água ou comida. Essas
caixas, com isolamento contra
ruídos e controle rigoroso de
temperatura e iluminação (para
evitar que sons, a luz ou o
calor interferissem em seus
experimentos),
ficaram
conhecidas como "caixas de
Skinner".
Os experimentos consistiam em programar de modos diferentes a
liberação de reforçadores e estudar como cada programação afetava o
comportamento do animal (qual era mais eficiente para levar à aprendizagem de um comportamento novo; qual era mais adequado para manter esse comportamento por mais tempo; qual representava a melhor
forma de extinguir um dado comportamento, etc).
Uma das formas utilizadas, para obter a aprendizagem de um novo
comportamento (no caso, pressionar a barra de metal), era colocar o
rato na caixa de Skinner após ter sido privado de água por certo tempo.
Supunha-se que a privação faria da água um excelente reforçador, já
que obtê-la resultaria para o rato na satisfação de uma necessidade.
Adotava-se, então, o seguinte procedimento: inicialmente, toda vez
que o rato se aproximava da barra de metal, o pesquisador liberava-lhe,
por meio de um dispositivo, um pouco de água. Após determinado
tempo, estando o rato próximo à barra, a água só era liberada se ele a
tocasse com o focinho ou a pata. Em seguida, reforçava-se (pela liberação da água) apenas o comportamento de tocar a barra com a pata e,
depois, o de pressioná-la para baixo. Após várias sessões, verificava-se
que o rato tinha aprendido a pressionar a barra de metal para obter água.
Esse procedimento é conhecido como modelagem do comportamento. A modelagem é obtida proporcionando-se reforçadores após
respostas que gradativamente se aproximam da resposta que se deseja
obter do animal (no caso, a pressão na barra).
Tal método envolve os princípios do condicionamento operante (o
comportamento emitido pelo animal, se reforçado, tende a se repetir) e
tem sido utilizado pelos comportamentalistas em uma série de situações, tanto na prática terapêutica clínica quanto no campo do ensino.
O que há em comum nos experimentos de Watson e Skinner é a
tentativa de controlar o comportamento pela manipulação de elementos
do ambiente que precedem (os estímulos) ou sucedem (os reforçadores)
ao comportamento. Além disso, os experimentos de um e de outro visam conhecer os princípios pelos quais o comportamento humano é
aprendido durante a vida.
Assim, os princípios descobertos ou sistematizados mediante situações experimentalmente controladas são os mesmos que explicam os
comportamentos aprendidos em situações cotidianas. Conforme a
perspectiva comportamentalista, pode-se dizer que pais e educadores,
por exemplo, modelam o comportamento da criança por meio de procedimentos que correspondem ao condicionamento operante.
Fonte: Nossas crianças. Abril Cultural, 1970. v. 5
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a
influência do comportamentalismo na escola
A ênfase dada pelos comportamentalistas à questão da aprendizagem é resultado do pressuposto de que o ambiente e a experiência são
determinantes do comportamento. Os processos e fatores internos ao
indivíduo não são levados em conta, e o próprio desenvolvimento é
explicado como decorrente da aprendizagem.
Melhor dizendo, para os comportamentalistas, desenvolvimento e
aprendizagem são processos coincidentes. Aquilo que chamamos de
desenvolvimento nada mais é do que o resultado das aprendizagens
acumuladas no decorrer da vida do indivíduo. Por isso, os dois processos não se distinguem.
A idéia de que os comportamentos humanos são aprendidos em
decorrência de contingências ambientais e a noção de modelagem do
comportamento têm influenciado as práticas educativas. De acordo
com Skinner, ensinar é planejar/organizar essas contingências de modo
a tornar mais eficiente a aprendizagem de determinados conteúdos e
habilidades. A utilização de reforçadores e a organização da aprendizagem por pequenos passos são princípios decorrentes dessa abordagem.
Uma das marcas deixadas pelo comportamentalismo na educação
escolar foi a valorização do planejamento do ensino, tendo chamado a
atenção para a necessidade de se definirem com clareza e operacionalmente os objetivos que se pretende atingir, para a organização das seqüências de atividades e para a definição dos reforçadores a serem utilizados telogios, notas, pontos positivos, prêmios, etc).
O próprio Skinner interessou-se pelo processo de
ensino-aprendi-zagem (reveja o boxe 'Quem foi Skinner?'). Nas suas
"máquinas de ensinar", o aluno é colocado diante de um painel onde
aparece uma questão relativa a algo que ele já conhece e, ao mesmo
tempo, uma nova informação concernente ao mesmo tema. O aluno
deve responder à questão apresentada e, se acertar, a máquina passará
automaticamente para a questão seguinte, que será referente à
informação dada imediatamente antes. Se não acertar, não poderá
prosseguir, devendo retornar a algum passo anterior.
Por meio desse procedimento, organiza-se a aprendizagem da
criança "passo a passo", em ordem crescente de dificuldade, seguindo
os princípios da modelagem do comportamento, e cada resposta certa
da criança constitui um reforço para a aprendizagem.
A chamada "instrução programada" derivou das máquinas de
Skinner. As questões apresentadas às crianças são impressas e as resistas corretas aparecem em outra página, em um gabarito. As questões
3 intercaladas por pequenos textos informativos sobre os quais a nança
deverá responder no passo seguinte. De acordo com o comportamentalismo, esse procedimento permite que o ensino tenha uma progressão gradual, que respeita o ritmo de cada aluno e torna o processo
de ensino-aprendizagem mais eficiente.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Segundo o texto, defina:
•
•
•
•
estímulo;
resposta;
condicionamento clássico;
condicionamento operante.
2. Elabore um texto sucinto sobre as diferenças e semelhanças existen
tes entre as abordagens inatista-maturacionista e comportamentalista. Depois, troque seu texto com um colega e, juntos, discutam sobre
essas abordagens.
Exercitando a análise
1. A classe, orientada pela professora, deverá fazer um levantamento de
materiais de ensino organizados segundo os princípios da instrução
programada. Há vários projetos desenvolvidos nessa linha, tanto
para a instrução das crianças nas séries iniciais quanto para a instrução de professores em formação. Sugerimos alguns títulos.
JOULLIÉ, V, MAFRA, W. Didática de Ciências através de módulos
instrucionais. 2". ed. Petrópolis: Vozes, 1980.
POPHAM, W. J., BAKER, E. L. Como estabelecer metas de ensino. Porto
Alegre: Globo.
_______ . Sistematização do ensino. Porto Alegre: Globo, 1976.
. Como ampliar as dimensões dos objetivos de ensino. Por
to Alegre: Globo, 1976.
. Como planejar a seqüência de ensino. Porto Alegre: Glo
bo, 1976.
_______ . Táticas de ensino em sala de aula. Porto Alegre: Globo.
_______ . Como avaliar o ensino. Porto Alegre: Globo.
O material conseguido deve ser distribuído à classe para um trabalho
de análise, feito em grupos. Cada grupo deve realizar as propostas de
auto-instrução apresentadas. Observem atentamente as instruções, os
objetivos, os fluxogramas das atividades, os textos e os exercícios
propostos.
Fm seguida, analisem o material, procurando identificar os
pressu-nostos e princípios do comportamentalismo nele presentes.
Após
omparação e discussão das análises feitas pela classe, cada aluno
deverá escrever um pequeno texto sobre a instrução programada
0mo alternativa metodológica, destacando, de maneira fundamentada, seus aspectos positivos e negativos.
1 A seguir você tem reproduzido o 'Módulo instrucional 1' de um projeto de ensino de Didática de Ciências para o curso de formação de
professores desenvolvido na década de 70 pelas professoras Wanda
Mafra e Vera Joullié, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro.
Leia o módulo e resolva os exercícios. Observe atentamente as instruções, os objetivos, os fluxogramas das atividades, os textos e exercícios propostos.
Em seguida, analise-o, procurando identificar os pressupostos e princípios do comportamentalismo nele presentes. Compare e discuta a
sua análise com a análise feita pelos colegas e escreva um pequeno
texto sobre a instrução programada como alternativa metodológica,
destacando, de maneira fundamentada, aspectos positivos e
negativos desse procedimento.
Módulo Instrucional 1
A criança, a ciência, a tecnologia
Introdução
Este é o módulo instrucional 1, de Didática de Ciências, isto é, um
esquema de trabalho que lhe proporcionará o domínio de vários conhecimentos com relação ao assunto aqui tratado.
Este módulo apresenta o conteúdo "A Criança, a Ciência e a
Tecnologia", em sua parte fundamental. Ele lhe oferecerá oportunidades de aprendizagem dos seguintes aspectos:
a) curiosidade científica natural da criança;
o) base de experiências que precede o conhecimento científico;
c) ciência e tecnologia.
Os referidos aspectos são importantes em sua formação profissional porque se constituem em embasamento para a compreensão das reações e interesses infantis em relação ao estudo de Ciências nas séries
""ciais do 1? Grau.
. .^em conhecê-los, você não poderá planejar conscientemente suas
' Cidades didáticas. Este é o objetivo final deste módulo e, ao concluíf , yocê terá que demonstrar sua competência. Para que o objetivo
^"al seja alcançado você terá que atingir os objetivos intermediários.
d
°s eles são importantes para que você trabalhe gradativamente e
com segurança.
A "Visão geral", que vem a seguir, lhe dará uma idéia objetiva do
trabalho a ser realizado.
Visão geral do módulo instrucional 1
Objetivos
intermediários
Atividades
Avaliação
1. Conceituar Ciência e
Tecnologia, estabelecendo sua interligação.
1. Procure o significado
de Ciência e Tecno
logia em BUARQUE
DE HOLLANDA FER
REIRA, Aurélio, No
vo Dicionário Auré
lio,
Editora
Nova
Fronteira, RJ, 1975.
2. Estude o texto n? 1;
"Ciência e
Tecnolo
gia" ou discuta com
um colega sobre Ciên
cia e Tecnologia: con
ceitos, diferenças, in
terligação.
Resolva o exercício
n° 1, do Módulo 1.
2. Distinguir a curiosidade científica das
crianças de sua curiosidade geral.
1. Estude o texto n? 2:
"Curiosidade
infantil"
ou analise a ficha de
consulta n? 1.
Resolva o exercício
rf. 2, do Módulo 1.
3. Constatar a existência
de uma base de
experiências científicas
e tecnológicas que
precede o estudo de
Ciências.
1. Estude o texto n? 3:
"Base de experiências científicas e tecnológicas" ou entreviste
seu professor:
fenômenos
científicos
e aspectos tecnológicos
que cercam a criança: a
influência da Tecnologia
na vida atual.
Resolva o exercício
n? 3, do Módulo 1.
Objetivo 1, Módulo 1
Atenção: Se você tiver acertado a questão I da pré-avaliação, está
dispensado deste objetivo. Siga para o objetivo 2, na página 37. Caso
contrário, siga o fluxograma abaixo.
Fluxograma das atividades
Leia o objetivo intermediário n? 1,
ao final da página.
Procure o significado de Ciência e Tecnologia em
BUARQUE DE HOLLANDA FERREIRA, Aurélio.
Novo Dicionário Aurélio. Editora Nova Fronteira, Rio
de Janeiro, 1975.
i.
JZ
Estude o texto n. 1:
Ciência e Tecnologia
Ou
Discuta com uma colega
sobre Ciência e Tecnologia:
conceitos, diferenças,
interligações.
Resolva o exercício
do Módulo 1.
Consulte seu professor.
NÃO
SIM
Objetivo intermediário n?l: "Conceituar Ciência e
Tecnologia, estabelecendo sua interligação".
35
WÊÊÊ
Texto n? 1, Módulo 1
Ciência e Tecnologia
Já não se pode viver sem Ciência. Dia a dia, ela progride e se expande,
ampliando produções, criando medicamentos, processando dados,
palmilhando o espaço, aperfeiçoando a comunicação, estudando o cérebro humano, extraindo e beneficiando os recursos naturais, planejando... prevendo... pesquisando...
Cada vez mais a sociedade necessita de cientistas, e o homem, de!
conhecimentos científicos para progredir e manter-se vivo.
A ciência estuda os mais diferentes fenômenos, sejam de natureza
física, sejam de natureza química, sejam de natureza biológica. Ela busca
o conhecimento puro, através de pesquisas, experiências, observações.
Por outro lado, a Tecnologia aplica os fenômenos científicos, coloca-os em prática, para uso humano. Ela é essencialmente utilitária,
como o provam o ferro a carvão evoluindo para o ferro elétrico, a iluminação de velas evoluindo para a iluminação elétrica, a comunicação à
base de sinais evoluindo para os satélites retransmissores, a cura pelo
uso de ervas evoluindo para os mais sofisticados produtos farmacêuticos, o transporte animal evoluindo para as naves espaciais. Assim sendo, a Tecnologia progride paralelamente às novas descobertas da Ciência, oferecendo mesmo, aos estudiosos, recursos para aperfeiçoar e ampliar as verdades científicas.
Estamos em plena era tecnológica. Atualmente toda a vida social
depende de uma tecnologia que nasce da Ciência.
As oportunidades do futuro estão reservadas às pessoas que desenvolverem uma atitude científica. Prepare-se.
Texto elaborado por
Edith Costa
Marília Lessa
Vera Joullié
Wanda Mafra
Exercício n? 1, Módulo 1
Isto é urna avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto
e, a seguir, verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
Boa sorte!
Marque o que melhor completa cada afirmação:
1. Ciência cuida
36
(a)
(b)
(c)
(d)
da aplicabilidade dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
do estudo dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
da evolução do homem através dos tempos.
dos principais fenômenos físicos.
2.
Tecnologia cuida
(a)
(b)
(c)
(d)
da aplicabilidade dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
dos estudos dos fenômenos físicos, biológicos e químicos.
da evolução do homem através dos tempos.
dos principais fenômenos físicos.
a A Tecnologia é essencialmente utilitária porque
(a)
(b)
(c)
(d)
depende do resultado das pesquisas científicas.
estimula a pesquisa dos fenômenos científicos.
completa o estudo dos fenômenos científicos.
aplica os resultados das pesquisas científicas.
Objetivo 2, Módulo 1
Atenção: Se você tiver acertado a questão II da pré-avaliação, está dispensado
deste objetivo. Siga para o objetivo 3, na página 40. Caso contrário, siga o
fluxograma abaixo.
Fluxograma das atividades
Leia o objetivo intermediário n? 2, ao final da página.
3Z
JZ
Estude o texto n? 2:
Curiosidade infantil.
T
IL
Analise a ficha
de consulta n? 1.
OU
~1
Resolva o exercício n? 2, do Módulo 2.
4.
M/
Consulte seu professor.
NACk
SIM
Objetivo intermediário n?2: "Distinguir a curiosidade
_ científica das crianças de sua curiosidade geral".
«, 1.. 4., ivioaulo 1
Curiosidade infantil
A criança, desde cedo, manifesta intensa curiosidade por tudo que vê
ouve, sente e pensa. E a fase geralmente conhecida como "idade do
POR QUÊ?". As inúmeras perguntas que as crianças fazem incessantemente refletem uma grande necessidade de explorar, conhecer, entender
a si própria e ao mundo que a cerca. É o caso de perguntas como:
— Por que a gente tem que dizer "obrigado" quando ganha alguma
coisa?
— Por que eu não posso ir à escola sem uniforme?
— Por que o papai vai trabalhar todos os dias?
Grande parte das perguntas das crianças, no entanto, é de natureza
científica. Através delas, nota-se que os interesses são muitos e diversificados. Elas demonstram isto quando perguntam:
— O que é que segura a lua para ela não cair do céu?
— Por que é que eu tenho que tomar vacina?
— Por que é que a mamãe rega as plantas todo dia?
— De onde vem a água da chuva?
Podemos assim constatar que Ciências constitui uma disciplina
automotivada. O próprio conteúdo do estudo responde às indagações
infantis.
E imprescindível que o professor aproveite esta vontade de saber.
As perguntas, porém, devem ser selecionadas: umas respondidas de
imediato — aquelas que apresentam sentido limitado; outras — aquelas
que oportunizam um estudo mais profundo, seja por se incluírem na
programação do professor, seja por se ligarem à realidade de vida dos
alunos — deverão ser respondidas através do desenvolvimento de atividades variadas.
Ficha de consulta n? 1, Módulo 1
Curiosidade infantil
CARACTERÍSTICAS DA
CRIANÇA DE 6 A 12 ANOS
• Necessidade de conhecer a si mesma. •
• Necessidade de explorar, conhecer •
e entender o mundo que a cerca.
•
CONSEQÜÊNCIA
Curiosidade intensa e extensa.
Grande incidência de perguntas.
Fase do "por quê".
CURIOSIDADE GERAL
CURIOSIDADE CIENTÍFICA
• Por que tenho que agradecer quan • ,O que é que segura a lua no céu pra
do ganho um presente?
ela não cair?
• Por que o papai trabalha todo dia? • Por que a mamãe rega as plantas i
• Por que eu tenho que tomar vacina?
todo dia?
• Por que não posso ir à escola sem
uniforme?
PERGUNTAS
RESPOSTAS
EXEMPLOS
• Quando foi que o ho
mem chegou à lua?
• Por que o homem não
voa?
sentido limitado
Imediata
sentido amplo
Através do desenvolvi- • Como é que o peixe
mento de uma série de não se afoga?
• Por que existem fo
atividades.
lhas vermelhas?
Exercício n? 2, Módulo 1
Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto
e, a seguir, verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
Boa sorte!
____________________________________
1. Marque apenas as afirmações corretas:
(a) A curiosidade da criança se manifesta a partir de seu ingresso na
escola.
(b) As perguntas infantis demonstram interesse da criança por si própria e pelo mundo que a cerca.
(c) Dentre as inúmeras perguntas infantis, grande parte reflete curiosidade eminentemente científica.
(d) A curiosidade científica infantil se limita aos fenômenos da natureza.
2. Marque'o que melhor completa a afirmação:
Ciências é uma disciplina automotivada porque:
(a) desperta a curiosidade infantil.
(b) aumenta a curiosidade infantil.
(c) opõe-se à curiosidade infantil.
(d) responde à curiosidade infantil.
3. Coloque C ou G conforme as perguntas reflitam curiosidade científi
ca ou geral da criança.
( ) Por que você está de vestido novo?
( ) Por que a água do mar é salgada?
'
( ) Afinal, de onde vêm os bebês?
( ) Para que as pessoas pintam o cabelo?
( ) Por que eu tenho que lavar as mãos tantas vezes?
( ) Quando é que começam as férias?
**• Faça a correspondência:
(a) perguntas de resposta imediata
(b) perguntas que favorecem estudos mais profundos (
) quantas patas tem a mosca?
( ) o que é esturjão?
( ) por que as folhas são verdes?
( ) e verdade que a baleia é mamífero?
Objetivo n? 3, Módulo 1
Atenção: Se você tiver acertado as questões III e IV da pré-avalia-ção,
está dispensado deste objetivo. Consulte seu professor. Caso contrário, siga o
fJuxograma abaixo.
Fluxograma das atividades
Entrada
Leia o objetivo intermediário n? 3, ao final da página.
2.
3L
JL
Estude o texto n? 3:
Base de experiências
científicas e tecnológicas.
IL
Entreviste seu professor:
fenômenos científicos e aspectos
tecnológicos que cercam
a criança; a influência
da tecnologia na vida atual.
OU
\k
Resolva o exercício 3, do Módulo 1.
4.
^Y
Consulte seu professor.
NAO
SIM
Objetivo intermediário n ?3: "Constatar a existência de
uma base de experiências científicas e tecnológicas que
precede o estudo de Ciências".
Texto n? 3, Módulo 1
Base de experiências científicas e tecnológicas
40
E importante reconhecer que, pelas coisas que dizem, as crianças
demonstram muito do que percebem, antes mesmo de estudar Ciências. Basta
lembrar que elas "vivem" Ciências vinte e quatro horas por dia, não apenas
nos hábitos higiênicos, na preservação da saúde, na ali-
entação, mas também através de todas as aplicações tecnológicas que
envolvem a vida atual: luz elétrica, elevador, transportes, materiais utilizados em casa e na escola, brinquedos os mais diversos, medicamentos, geladeira, liqüidificador...
Disto resulta uma soma de madurezas que se constitui em rica base
. experiências precedendo o conhecimento científico que as explica e
que somente o estudo trará.
Isto se caracteriza quando a criança diz:
_ Trago o meu suco na garrafa térmica porque ele fica bem geladinho.
_ Mamãe, só vou naquele dentista que tem motor a jato, porque não dói.
_ Bota uma lâmpada de 100 velas no meu quarto pra ele ficar mais
claro.
— Meu carrinho não anda mais porque a pilha gastou.
Tecnologia e Ciência, nas séries iniciais do 1? Grau, se forjam no
ambiente em que a criança vive, em suas condições de percepção, em
seu interesse próximo e imediato.
A escola deve aproveitar esta curiosidade, bem como aquela soma
anterior de vivências, a prontidão para o estudo e a compreensão da
Ciência e da Tecnologia em seus estágios iniciais.
Exercício n? 3, Módulo 1
Isto é uma avaliação. Você deverá realizar o exercício proposto
e, a seguir, verificar suas respostas no gabarito, ao final deste
módulo. O desempenho desejado é o acerto de todas as questões.
Boa sorte!
1. Marque o que melhor completa a afirmação:
A criança, ao entrar na escola, já apresenta uma base de experiências científicas e tecnológicas. Isto acontece porque:
(a) as crianças possuem curiosidade científica.
(b) os interesses infantis são muitos e diversificados.
(c) desde que nasce, a criança está em contato com Ciências e Tecnologia.
(d) toda a vida social depende, atualmente, da Ciência e da Tecnologia.
2. Marque as afirmações que refletem a base de experiências científicas
e tecnológicas que precede o estudo de Ciências:
(a) Bota a roupa no sol que ela seca depressa.
(b) Estou cansado de tanto correr!
(c) Mamãe, bate as claras na batedeira que é mais rápido e você não
se cansa.
(d) Vou abrir a gaiola pro passarinho ficar livre.
(e) Papai, me compra uma bicicleta de corrida?
(f) Não preciso dar corda no meu relógio porque ele é automático.
Gabarito dos exercícios, Módulo 1
Exercício n? 1
1 —b
2 —a
3 —d
Exercício n?2
\ 1 —b, c \2 —
d
13 — (G), (C), (C), (G), (C), (G) |4
— (b), (a), (b), (b)
Exercício n?3
1 —C
2 — a, c, f.
(Joullié, V. & Mafra, W. Didática de Ciências através de módulos
instrucionais. 2! ed. Petrópolis: Vozes, 1980.)
Trabalho de campo
1. Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas
após o estudo do capítulo anterior. Destaque, agora, nas respostas
fornecidas por pais e professores, os aspectos que as associam a uma
visão comportamentalista do processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança.
Sugestão de leituras
NERI, A. L. O modelo comportamental aplicado ao ensino. In: PENTEADO, N. M. A. (org.). Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros,
1980.
SKINNER, B. F. Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1982.
Capítulo 4
A abordagem piagetiana
"Papai, por favor, corte este pinheiro — ele faz o vento. Depois que você
cortar ele, o tempo vai ficar bom e a mamãe me leva para um passeio."
"Mamãe, quem nasceu primeiro, você ou eu?"
(Helen Bee, A criança em desenvolvimento.)
Ouvir crianças pequenas dizerem coisas como essas do trecho transcrito acima normalmente nos desconcerta, ao mesmo tempo que nos encanta e diverte. Nossa atenção se volta então para o modo peculiar que a
criança tem de pensar sobre as coisas e de estabelecer relações entre elas.
Às peculiaridades do pensamento e da lógica das crianças despertaram o interesse de Jean Piaget, que se preocupou principalmente com
a questão de como o ser humano elabora seus conhecimentos sobre a
realidade, chegando a construir, no decorrer de sua história, sistemas
científicos complexos e com alto nível de abstração. Ele acreditava que
muito da resposta a essa indagação poderia ser encontrado no estudo do
desenvolvimento do pensamento da criança.
Quem foi Piaget?
Jean Piaget nasceu em 1896, em Neuchâtel, na Suíça, e faleceu em 1980, aos 84 anos de idade.
Desde menino Piaget interessou-se por questões científicas,
estudando moluscos, pássaros, conchas marinhas e mecânica.
Aos 10 anos, publicou as observações que fez sobre um pardal
parcialmente albino e, aos 11 anos, começou a trabalhar como
assistente do diretor do Museu de História Natural de sua cidade.
Concluiu seus estudos em Ciências Naturais em 1915 e, em
1918, doutorou-se nessa mesma área.
Interessado também por filosofia, encontrou na leitura da
obra de Bergson, A evolução criadora, elementos que o ajudaram
o formular a questão à qual se dedicaria por toda a vida: explicar
a rorma pela qual o homem atinge o conhecimento Iógico-abstrato
que o distingue das outras espécies animais.
Embora se tratasse de uma questão tipicamente filosófica, a
Piaget interessava abordá-la cientificamente. Ao longo de seu trabalho, assumiu, então, o desafio de construir uma teoria do conhecimento baseada na biologia e em que as especulações filosóficas estivessem ancoradas na pesquisa empírica. O elo que Piaget encontrou
entre a filosofia e a biologia foi a psicologia do desenvolvimento.
A elaboração da teoria explicativa da gênese
do conhecimento no homem levou Piaget a
formular propostas teóricas e metodológicas
inovadoras quanto à natureza dos processos de
desenvolvimento da criança e que contrariavam as
teses do inatismo-maturacionismo e do
com-portamentalismo.
O fundamento básico de sua concepção do
funcionamento intelectual e do desenvolvimento
cognitivo éode que as relações entre o organismo e
o meio são relações de troca, pelas quais o organismo adapta-se ao meio e, ao mesmo tempo, o
assimila, de acordo com suas estruturas, num processo de equilibrações sucessivas. Determinar as
contribuições das atividades do indivíduo e das
restrições do ambiente na aquisição do conhecimento foi o foco do seu trabalho experimental. No período de 1921
a 1925, Piaget concentrou-se na coleta de dados que permitissem
esboçar os princípios e os fundamentos de sua teoria do
conhecimento. Abordou temas gerais, como a relação entre
pensamento e linguagem (1923), o desenvolvimento, na criança,
do julgamento e do raciocínio (1924), da representação do mundo
(1926), da causalidade física (1927) e do julgamento moral
(1927). Esses estudos foram retomados, revistos e aprofundados
ao longo das décadas seguintes.
No período de 1925 a 1931, com o nascimento de seus três
filhos, Piaget dedicou-se à observação meticulosa do desenvolvimento dos bebês, elaborando análises sobre a construção do real
e o desenvolvimento da inteligência.
Na década de 30, ajudado por seus colaboradores, concentrou a
pesquisa na gênese das noções de quantidade, número, tempo,
espaço, velocidade, movimento, mensuração, lógica e probabilidade. Na década de 40, abordou o desenvolvimento da percepção.
A partir dos anos 50, Piaget voltou-se para a sistematização
teórica da epistemologia genética, deixando a seus colaboradores
os estudos em psicologia. Em 1955 fundou o Centro Internacional
de Epistemologia Genética, onde reuniu cientistas de diferentes
áreas (matemáticos, biólogos, psicólogos, lógicos) interessados
em pesquisar problemas epistemológicos.
Na década de 70, já trabalhando exclusivamente nas pesquisas do
Centro de Epistemologia, Piaget dedicou-se à investigação dos
mecanismos de transição que impulsionam e explicam a evolução do
desenvolvimento cognitivo.
Sua vasta produção é um marco de enorme importância para a
psicologia e para os estudos do homem no século XX.
Procurando compreender como o homem elabora o conhecimento, Piaget
desenvolveu o que chamou de psicologia genética. A palavra genética, que
ele próprio aplicou à sua psicologia, refere-se à busca das origens e dos
processos de formação do pensamento e do conhecimento.
A infância é considerada como um período particular do processo de
formação do pensamento, que só se completa na idade adulta. É importante,
então, não confundir as contribuições dadas por Piaget à compreensão do
desenvolvimento cognitivo da criança com uma "psicologia da criança". Ele
não se dedicou a estudar o pensamento infantil motivado por um interesse pela
infância em si e também não elaborou» sua psicologia genética movido pelo
interesse por questões propriamente psicológicas. O centro de seu trabalho e de
todos os seus estudos é o desenvolvimento do conhecimento.
A formação de Piaget em Ciências Naturais levou-o a buscar compreender
o conhecimento com base na biologia. Fm sua concepção conhecer é organizar,
estruturar e explicar a realidade a partir daquilo que se vivência nas experiências
com os objetos do conhecimento. >
No entanto, experiência não é a meuma rniga qnp conhecimento. Este
Diessupõe a organização da experiência num sistema de relações. Por
exemplo, "a humanidade atravessou alguns milênios sem perceber a
rela-çãoentre~vida e calor do sol; conhecer algo a respeito do calor solar seria
inserir o calor sentido na pele num sistema de relações que permite
compreendê-lo como condição de existência da vida" (Chiarottino, 1988).
Conhecimento e adaptação: os processos de
assimilação e acomodação
Mas como se dá a inserção de um objeto desconhecimento num sistema
de relações? Segundo Piaget, isso ocorre fundamentalmente Por meio da ação
do indivíduo sobre o objeto. Ao agir sobre o meio, o indivíduo incoxparaasi
elementos que pertencem ao meio. Através des-^Ê-Efpcesso de incorporação,
chamado por Piaget de assimilação, as coisas e os fatos do meio são inseridos
em um sistema de relações e adquirem significação para o indivíduo.
Ao ler estas páginas, por exemplo, você está assimilando o que está
escrito (objeto de conhecimento), conforme vai estabelecendo relações
c
°m as idéias e os conhecimentos que já possui. As idéias e os conceitos
do texto são organizados e estruturados a partir do que você já conhece.
.
Só assim o texto tem algum sentido para você.
Segundo Piaget,
os reflexos, como
o de preensão,
possibilitam ao
bebê lidar com
elementos do
ambiente,
assimilando-os.
46
Mas, ao mesmo tempo que as idéias e os conceitos do texto são
incorporados ao sistema de idéias e conceitos que você possui, essas
idéias e conceitos já existentes são modificados por aquilo que você leu
(assimilou). Esse processo de modificação que se opera nas estruturas
de pensamento do indivíduo é chamado por Piaget de acomodação.
Tal modo de conceber o funcionamento cognitivo é decorrente do
modelo biológico em que Piaget se baseou. Segundo esse modelo, a
inteligência é um caso particular de adaptação biológica. Um organismo adaptado ao meio é aquele que mantém um equilíbrio em suas trocas com o meio. Ou seja, é aquele que interage com o ambiente mantendo um equilíbrio entre suas necessidades de sobrevivência e as dificuldades e restrições impostas pelo meio. Essa adaptação torna-se possível
graças aos processos de assimilação e de acomodação (que, juntos,
constituem o mecanismo adaptativo), comum a todos os seres vivos.
Assim, a inteligência é assimilação por permitir ao indivíduo incorporar os dados da experiência. É também acomodação, pois os novos
dados incorporados acabam por produzir modificações no funcionamento cognitivo da pessoa. Logo, "a adaptação intelectual, como qualquer adaptação, é exatamente o equilíbrio progressivo entre o mecanismo assimilador e a acomodação complementar" (Azenha, 1994: 26JT
Ao mesmo tempo que, por meio do processo de assimilação/acomodação, o indivíduo adapta-se ao meio (elaborando seu conhecimento sobre
ele), o seu próprio funcionamento cognitivo vai se estruturando, se organizando. Uma das primeiras formas de organização cognitiva é o esquema.
A noção de esquema
A criança, ao nascer, é dotada de reflexos que são
reações automáticas desencadeadas por certos estímu1-los.
Esses reflexos (como o de sucção e o de preensão)
possibilitam ao bebê lidar com o ambiente. É através
deles que elementos do meio ambiente (como a chupeta, o
seio materno, a mamadeira, o patinho de borracha, etc.)
vão sendo assimilados pela criança. A assimilação, como
vimos, provoca uma transformação dos reflexos, que
gradativamente vão se diferenciando e se tornando mais
complexos e flexíveis, deixando de ser simples respostas
estereotipadas a estímulos determinados. Esse processo
dá origem a esquemas de ação, tais como pegar, puxar,
sugar, empurrar, etc.
Para entender o que é um esquema de ação, pensemos
no esquema de preensão. Um bebê pode pegar;— por
exemplo, um pequeno cubo de madeira, uma boi a mamadeira ou o dedo
de alguém. Relativamente a cada um desses objetos, a ação de pegar
apresenta pe quenas diferenças quanto aos movimentos que a criança
realiza. No entanto, em todas essas situações a ação da criança apresenta
determina-
das características que permitem chamá-la de pegar e que a diferenciam He
outras ações, como puxar, balançar ou empurrar. O esquema de ação t
justamente, o que é generalizável em uma ação, o que permite reconhecê-la e
diferenciá-la de outras ações, independentemente do objeto a que se aplica.
É por meio dos es- È j
quemas de ação que a criança
começa a conhecer a
realidade, assi-milando-a e
atribuindo-lhe
significações. Quando pega
a
mamadeira,
ela
a
relaciona a seu esquema
"pegar" e atribui-lhe o
sentido de um objeto "que
se pega". Mas a criança
também aplica à mamadeira
o esquema "sugar". Essas
assimilações
provocam
transformações
nos
esquemas
"pegar" e "sugar", à medida que eles são acomodados ao objeto mamadeira.
Os esquemas "pegar" e "sugar" acabam então por se coordenar.
Vê-se que, mediante sucessivas assimilações e acomodações, o bebê vai
conhecendo os objetos de seu mundo imediato. Eles são organizados em
objetos "para olhar", "para pegar", "para sugar", "para empurrar", "para
morder", "para olhar e pegar", "para pegar e sugar", "para pegar e morder", e
assim por diante.
A organização do real por meio da ação marca o início do desenvolvimento cognitivo da criança. De acordo com Piaget, os esquemas de ação
ampliam-se, coordenam-se entre si, diferenciam-se e acabam por se
interiorizar, transformando-se em esquemas mentais e dando origem ao
pensamento. Esse desenvolvimento contínuo dos esquemas se dá no sentido
de uma adaptação cada vez mais complexa e diferenciada à realidade.
A noção de equilibração
O processo de desenvolvimento depende, na perspectiva piage-üana, de
fatores internos ligados à maturação, da experiência adquirida P ela criança em
seu contato com o ambiente e, principalmente, de um Processo de
auto-regulação que ele denomina equilibração.
Para Piaget, a equilibração é uma propriedade intrínseca e constj*tMtiva da vida mental. Por meio dela é que se mantém um estado de
■RUüíbrio ou de adaptação em relação ao meio, Toda vez que, em nossa
re
lação com o meio, surgem conflitos, contradições ou outros tipos de
dificuldade, nossa capacidade de auto-regulação ou equilibração entra
A organização do
real, por meio da
ação, marca o
início do
desenvolvimento
cognitivo da
criança.
em ação, no sentido de superá-los. Quando, por exemplo, um bebê tenta
pegar um objeto pendurado sobre o berço, o objeto pode oferecer alguma resistência a seu esquema de pegar, que, em desequilíbrio, obriga-o
a modificá-lo ou a coordená-lo com outro esquema, como o de puxar.
Essa atividade da criança — a acomodação ou coordenação de seus
esquemas de ação — é desencadeada graças à sua capacidade de
auto-regulação, com o objetivo de compensar a resistência oferecida
pelo objeto e alcançar um novo estado de equilíbrio.
Quando falamos em alcançar um novo estado de equilíbrio, queremos destacar que o processo de equilibração não consiste numa volta ao
estado anterior, mas leva a um estado superior em relação ao inicial. No
caso de nosso exemplo, o fato de a criança não conseguir pegar o objeto
já indica que seus esquemas precisam ser aperfeiçoados. A
reequilibra-ção, por meio da acomodação ou da coordenação de seus
esquemas, implica uma ultrapassagem da situação anterior, uma
abertura para novas possibilidades de ação.
A concepção sobre estágios de desenvolvimento
Poderíamos dizer, então, que o desenvolvimento, na concepçãg
piagetiana, é fundamentalmente um processo de equilibrações sucessl^ vas
que conduzem a maneiras de agir e de pensar cada vez mais comple- —. xas e
elaboradas. Esse processo apresenta períodos ou estágios definidos-,"V
caracterizados pelo surgimento de novas formas de organização mental.
Os estágios se sucedem numa ordem fixa de desenvolvimento, sendo um
estágio sempre integrado ao seguinte. Além disso, cada estágio se caracteriza
por uma maneira típica de agir e de pensar e constitui uma forma particular de
equilíbrio em relação ao meio. A passagem de um estágio a outro se dá
através de uma equilibração cada vez mais completa. Ou seja, a criança passa
de um estágio a outro de seu desenvolvimento cognitivo s*^ quando seus
modos de agir e pensar mostram-se insuficientes ou inade-i*»J quados para
enfrentar os novos problemas que surgem em sua relaçãa^^ com o meio.
Essa insuficiência é compensada pela atividade da criança, que acaba por
engendrar modos mais elaborados de ação e pensamento.
O modelo de desenvolvimento cognitivo de Piaget destaca quatro
períodos principais: o sensório-motor (do nascimento até aproximadamente
os 2 anos de idade), o pré-operatório (dos 2 aos 7 anos), o operatório concreto
(dos 7 aos 11 anos) e o operatório formal (dos 11 aos 15 anos).
Os estágios do desenvolvimento cognitivo
O período sensório-motor
48 O desenvolvimento cognitivo se inicia a partir dos reflexos que gra_
os 2
dualmente se transformam em esquemas de ação. Do nascimento até
„n0s de idade, aproximadamente, a criança passa do nível neonatal, marcado
pel° funcionamento dos reflexos inatos, para outro em que ela já é capaz de
uma organização perceptiva e motora dos fenômenos do meio.
De início, reflexos inatos respondem aos estímulos do meio. Luz, sons,
contrações faciais. A cabeça volta-se para a direção de onde vêm oS sons.
Calor, frio, fome, cheiros, choros... O corpo reflete o mundo e ainda não se
diferencia dele.
A criança age sobre o mundo. Ela repetidamente chupa o dedo, suga a
pontinha da manga da roupa: movimentos não intencionais, centralizados no
seu próprio corpo, se repetem sempre. O reflexo inato de sugar assimila,
incorpora novos elementos do meio (o dedo, a roupa) e a0 mesmo tempo vai
sendo transformado por eles (acomodação), pois sugar o seio é diferente de
chupar o dedo, que também é diferente de sugar a própria roupa.
"Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por
conseguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, combiná-los,
separá-los e juntá-los", afirma Piaget (1983: 14). A consciência da criança
sobre o meio externo se expande lentamente,
| conforme suas ações se
deslo| cam de seu próprio corpo para | os objetos. A mão agarra, ache| ga o objeto ao corpo, à boca que
experimenta, empurra-o para longe de
si. As pernas agitam-se em es^emeios.
Puxar, empurrar, contrair, distender,
apanhar, largar, juntar, espalhar, apertar,
f]g| afrouxar, são ações que também se
repetem. Os olhos acompanham os
movimentos.
O centro não é mais o corpo da criança,
já que por intermédio dessas ações a criança
manipula os elementos do meio. As
ações"agora são repetidas devido aos efeitos
interessantes que produzem, analisa Piaget.
Aos poucos, meios e fins vão sendo diferenciados e as ações começam a
ganhar intencionalidade. A descoberta casual de que a argola agarrada Produz
movimentos e sons num brinquedo suspenso acima do berço leva a criança a
repetir o movimento. Ela age para atingir um propósito. Os movimentos
ficam mais complexos, mais amplos, como engatinhar, Pôr-se de pé, andar.
Nesse percurso o eu e o mundo tornam-se progressivamente distintos. O
indivíduo e os objetos diferenciam-se e organizam-se no plano das ações
exteriores, e a permanência dos objetos vai sendo c°nstruída. O brinquedo,
que ao ser retirado da criança deixava de e*istir para ela, passa a ser
procurado. A criança começa a perceber ^e os objetos, as pessoas, continuam
existindo mesmo quando estão ÍOra do seu campo de visão.
A criança repete
seus atos, devido
a seus efeitos
interessantes,
que ganham
intencionalidade.
49
Formam-se as primeiras imagens mentais dos objetos ausentes do
meio imediato. São elas que possibilitam o desenvolvimento da função
simbólica, mecanismo comum aos diferentes sistemas de representação
(jogo, imitação, imagens interiores, simbolização). Com o desenvolvimento da função simbólica, a partir do segundo ano de vida, o eu e o
mundo reorganizam-se num novo plano: o plano representativo.
A criança reproduz, ou imita, utilizando gestos ou onomatopéias, o
comportamento e os sons de um modelo ausente, representando-o de
alguma forma simbólica no jogo do faz-de-conta. Por meio de uma imagem mental, um símbolo, começa a imaginar fatos, objetos, pessoas,
acontecimentos que ocorreram em outras ocasiões, procurando relembrá-los. O espaço e o tempo se ampliam, à medida que o desenvolvimento da função simbólica a libera de agir somente em situações do
meio imediato. Ela torna-se capaz de imaginar ações ou fatos sem
praticá-los efetivamente.
O período pré-operatório
Representando mentalmente o mundo externo e suas próprias
ações, a criança os interioriza. E nesse período que ela se torna capaz de
tratar os objetos como símbolos de outras coisas. O desenvolvimento da
representação cria as condições para a aquisição da linguagem, pois a
capacidade de construir símbolos possibilita a aquisição dos significados sociais (das palavras) existentes no contexto em que ela vive.
Nesse momento, a criança deverá reconstruir no plano da representação aquilo que já havia conquistado no plano da ação prática.
Assim, a diferenciação entre o eu e o mundo, que já tinha se completado no plano da ação, deverá ser elaborada no plano da representação.
Centrada no seu próprio ponto de vista, a criança ainda não é capaz de
se colocar no lugar do outro nem de avaliar seu próprio pensamento.
Ela não considera mais de um aspecto de um problema ao mesmo tempo, fixando-se sempre em apenas um deles.
Ao repartir o refrigerante com o irmão, a criança só considera a
partilha justa se o líquido ficar em altura igual nos dois copos, mesmo
que um deles seja visivelmente mais estreito. Ela considera apenas uma
dimensão do problema (a altura do líquido no copo), a mais evidente em
termos perceptivos. Não é ainda capaz de raciocinar levando em conta
as relações entre as várias dimensões envolvidas (a largura e o formato
do copo), e o tipo de percepção que tem dos objetos determina o tipo de
raciocínio que faz sobre eles.
Nas explicações que dá, o seu ponto de vista prevalece sobre as
relações lógicas. Ela diz coisas como "Ficou de noite porque o sol foi
dormir", "Quem fez aquele rio foram os homens que moravam ali".
Ações humanas explicam os fenômenos naturais, elementos da natureza praticam ações humanas, são dotados de intencionalidade e qualidades humanas.
Como a noção de permanência dos objetos, que leva muito tempo ra Ser
elaborada no nível sensório-motor, os processos de raciocínio lógico e
os conceitos demoram também um longo tempo para se desenvolver, a
partir desses primeiros raciocínios (pré-lógicos) de que a criança se
torna capaz com a representação.
O período das operações concretas
É apenas ao final do período pré-operatório, após equilibrações
sucessivas, que o pensamento da criança assume a forma de operações
intelectuais. As operações são ações mentais voltadas para a cons
tatação e a explicação. A classificação e a seriação, por exemplo, são
ações mentais. Essas ações
são sempre reversíveis, ou T
seja, têm a propriedade de
voltar ao ponto de partida.
*A criança torna-se capaz
de compreender o ponto de
vista de outra pessoa e de
conceitualizar algumas rela
ções. Portanto, é nessa fase
que são estabelecidas as bases
para o pensamento lógico, >
próprio do período final do de
senvolvimento cognitivo.
J
HOJE A PROFESSORA
ENSINOU QUE DOIS MAS
DOIS SÃO QUATROÍ
,
Ao final do
período
pré-operatório, o
pensamento da
criança começa a
assumir a forma
de operações
intelectuais.
V kAANDOU VÁRIOS ALUNOS
AO QUADRO-NEGRO PARA
SO^^ARE^V DOIS MAIS <■
DOIS IGUAL A QUATRO. )
F
onte: Nossas crianças. Abril Cultural, 1970. v. 4.
A reversibilidade do pensamento possibilita à criança construir
noções de conservação de massa, volume, etc. O pensamento reversível
pode ser definido como a capacidade de levar em consideração uma
série de operações que, revertidas, conduzem ao estado inicial. E o que
ocorre, por exemplo, com a noção de conservação de líquidos: uma
cr
iança, num nível operatório, é capaz de compreender que a quantidade
de refrigerante contida em um copo permanece a mesma quando
despejada em outro mais alto e mais estreito, embora o nível do líquido
s
e torne mais elevado. Essa capacidade está relacionada à possibilidade
51
de ela representar mentalmente a operação inversa — o líquido
retornando ao copo original — e, desse modo, compreender que a quantidade se mantém invariável, a despeito das alterações perceptíveis. Assim, se for repartir o refrigerante com o irmão, despejando-o em dois
copos de formatos diferentes, essa criança terá condições (diferentemente de uma criança menor) de considerar as múltiplas dimensões envolvidas no problema, estabelecendo relações entre altura e largura do
copo e quantidade de líquido.
Assim, por meio das operações — inicialmente só aplicáveis a objetos concretos e presentes no ambiente — os conhecimentos construídos anteriormente pela criança vão se transformando em conceitos.
O período das operações formais
Apenas na adolescência é que o indivíduo se torna capaz de pensar
abstratamente, refletindo sobre situações hipotéticas de maneira lógica.
As operações mentais que aplicava só a objetos podem ser aplicadas,
agora, também a hipóteses formuladas em palavras.
O pensamento sobre possibilidades, sobre acontecimentos futuros,
sobre conceitos abstratos apresenta-se cada vez mais articulado. O adolescente não tem mais necessidade de estar diante dos objetos concretos ou de
operar sobre eles para relacioná-los. Ele transforma os dados da experiência em formulações organizadas e desenvolve conexões lógicas entre elas.
O adolescente torna-se, enfim, capaz de pensar sobre o seu próprio
pensamento, ficando cada vez mais consciente das operações mentais
que realiza ou que pode ou deve realizar diante dos mais variados problemas. Essa consciência a propósito do próprio pensamento "pode ser
presumida pelo seguinte tipo, muito citado, de perguntas de adolescen- >
tes: 'Eu me surpreendi pensando acerca do meu futuro e então comecei
a pensar por que estava pensando no futuro, e aí comecei a pensar por
que eu estava pensando sobre por que eu estava pensando no meu futuro'" (Evans, 1980: 116).
pesquisando a criança: o método clínico
Em 1919, trabalhando com Simon na padronização dos testes de
inteligência, Piaget voltou sua atenção para as respostas tidas como erradas dadas pelas crianças que participavam dos testes. Começou a se
preocupar com quais seriam as razões das falhas das crianças em compreender determinadas coisas, com qual seria o tipo de raciocínio implícito em suas respostas.
Indagando-se sobre os processos de pensamento que estariam por
trás das respostas erradas, Piaget desenvolveu um "método de observação que consiste em deixar a criança falar, anotando-se a maneira
pela qual ela desenvolve o seu pensamento. A novidade consiste em
deixar a criança falar, seguindo suas respostas: guiada por elas, a criança é encorajada a falar cada vez mais livremente. Dessa forma, é possível obter em cada domínio da inteligência um procedimento clínico
de exame que é análogo ao que os psiquiatras adotaram como meio
para a elaboração do diagnóstico. E a resposta da criança que determina parcialmente o próximo passo do experimentador" (Azenha,
1994: 105).
Piaget chamou esse tipo de procedimento de método clínico. Em
algumas investigações, a criança era incentivada a agir sobre objetos e
depois a falar sobre o que havia feito.
Uma das situações mais famosas utilizadas por Piaget começava
com duas bolas iguais feitas com massa de modelar. Pedia-se à criança
que as segurasse e perguntava-se se havia ou não a mesma quantidade
de massa nas duas bolas.
Quando a criança respondia afirmativamente, mudava-se a forma
de uma das bolas, passando-a para a forma de um^ salsicha, por
exemplo, e novamente se perguntava à criança se havia na salsicha a
mesma quantidade de massa que na bola. Algumas crianças diziam que
sim, explicando que havia a mesma quantidade porque se se fizesse de
novo uma bola, esta seria igual à primeira. Outras, mais novas, davam
explicações como "esta tem mais porque é mais comprida",
referindo-se à salsicha.
Por meio de situações desse tipo, Piaget procurava compreender a
maneira de pensar da criança em diferentes idades. Para ele, não interessava se a criança acertava ou errava ao responder, mas sim a maneira
como pensava no problema proposto. Seu objetivo era apreender o tipo
de operação mental que a criança realizava (no caso desse exemplo, ele
investigava as noções de conservação e a reversibilidade do pensamento da criança).
Assim, com base nas pesquisas realizadas através do método
clíni-Co e também na observação direta de seus próprios filhos,
especialmen-te nos dezoito primeiros meses de vida, Piaget, auxiliado
por inúmeros colaboradores, foi gradativamente elaborando sua teoria
sobre o desenvolvimento cognitivo da criança.
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a
influência da abordagem piagetiana na escola
Vimos que, na concepção piagetiana, o desenvolvimento da criança é um processo que depende essencialmente da equilibração, que é a
capacidade natural de auto-regulação do indivíduo. As estruturas cognitivas da criança são elaboradas e reelaboradas continuamente a partir
da sua ação (física ou mental) sobre o meio.
De acordo com esse quadro teórico, a aprendizagem praticamente
não interfere no curso do desenvolvimento. A ênfase nos processos
internos e na atividade construtiva da própria criança resulta em uma
concepção que considera a aprendizagem como dependente do processo de desenvolvimento. Ou seja, aquilo que a criança pode ou não
aprender é determinado pelo nível de desenvolvimento de suas estruturas cognitivas.
Segundo Piaget, tudo o que é transmitido à criança sem que seja
compatível com seu estágio de desenvolvimento cognitivo não é de
fato incorporado por ela. A criança pode imitar mecânica e externamente o adulto, mas não compreende (e, portanto, não conhece) o que
está fazendo.
As formulações de Piaget têm tido grande influência sobre a prática pedagógica, inclusive no Brasil. Ao destacarem o papel ativo da
criança no processo de elaboração do conhecimento, têm sido responsáveis por idéias como: o papel fundamental da escola é dar à criança
oportunidades de agir sobre os objetos de conhecimento; o professor
não deve ser aquele que transmite conhecimentos à criança, mas sim
um agente facilitador e desafiador, de seus processos de elaboração; a
criança é quem constrói o seu próprio conhecimento.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
i Abaixo estão relacionados os principais conceitos da teoria
pia-getiana. Dê o significado de cada um deles.
• adaptação;
• assimilação;
• acomodação;
• equilibração;
• esquema;
• estágio de desenvolvimento.
2. Sintetize as principais idéias de Piaget acerca do processo de desenvolvimento.
3. Faça uma comparação, apontando as semelhanças e diferenças, entre
as maneiras como o desenvolvimento é visto pelas abordagens
pia-getiana, inatista-maturacionista e comportamentalista. Compare
sua resposta com as de seus colegas, num debate que envolva a classe
toda.
Refletindo sobre as informações do texto
Comente uma das afirmações abaixo:
• "Pelo próprio fato de todo conhecimento ser, ao mesmo tempo,
acomodação ao objeto e assimilação do sujeito, o progresso da
inteligência (desenvolvimento psicológico) opera no duplo senti
do da exteriorização e da interiorização, e seus dois pólos serão o
domínio da experiência física e a conscientização do próprio fun
cionamento intelectual" (Piaget, A construção do real na criança).
' "Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por conseguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los,
combiná-los, separá-los e juntá-los. Nesse sentido, o conhecimento
não é nem uma cópia interior dos objetos ou acontecimentos do real,
nem o mero reflexo desses objetos e acontecimentos que se
imporiam ao sujeito. Ele é uma compreensão do real, construída a
partir de modos de ação do sujeito sobre o meio, dependendo dos dois
— sujeito e objeto — ao mesmo tempo" (Piaget, A epistemologia
genética).
"Cinqüenta anos de experiência ensinaram-nos que não existem
conhecimentos resultantes de um simples registro de observações,
sem uma estruturação devida às atividades do indivíduo. Mas,
tampouco, existem estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o
55
funcionamento da inteligência é hereditário, e só gera estruturo
mediante uma organização de ações sucessivas, exercidas sobre os
objetos" (Piaget. Apud: Piatelli-Palmarini, Teorias da linguagem
teorias da aprendizagem).
Pesquisa de campo
Você já deve ter ouvido falar em construtivismo. Essa palavra, que
vem ganhando destaque entre os educadores brasileiros desde a década
de 70, origina-se na teoria piagetiana:
"Uma concepção construtivista da inteligência, como acentua
Piaget, incluiria a descrição e a explicação de como se constróem as
operações intelectuais e as estruturas da inteligência, que, mesmo
não determinadas por ocasião do nascimento, são gradativamente
elaboradas pela própria necessidade lógica" (Azenha, M. G.
Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro).
Converse com alguns professores da Ia. à 4* série e da pré-escola.
Pergunte-lhes como definem o construtivismo e o que pensam de sua
relação com a educação. Anote suas respostas.
Confronte as respostas dos professores com a definição acima. Elabore, a partir desse confronto, três conclusões a respeito da relação entre as teorias psicológicas e a prática dos professores.
Exercitando a análise
Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas
ao final do estudo do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas
dadas por pais e professores aspectos que as associam a uma visão piagetiana de desenvolvimento.
Sugestão de leituras
AZENHA, M. G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São Paulo:
Ática, 1994.
CASTRO, A. D. Piaget e a pré-escola. São Paulo: Pioneira, 1986.
EVANS, R. I. Jean Piaget: o homem e suas idéias. Rio de Janeiro:
Fo-rense-Universitária, 1980.
PIAGET, J., INHELDER, B. Psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989.
RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. A teoria de Jean Piaget e a educação. In: PENTEADO, W. A. P. Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros, 1986.
Filme recomendado
Os transformadores, documentário apresentado pela TV Cultura (episódio Piaget).
Capítulo 5
A abordagem
histórico-cultural
O interesse em explicar como se formaram, ao longo da história do
homem, as características tipicamente humanas de seu comportamento
e como elas se desenvolvem em cada indivíduo constitui a base da abordagem histórico-cultural em psicologia, desenvolvida por um grupo de
psicólogos soviéticos liderado por L. S. Vygotsky.
O princípio orientador da abordagem de Vygotsky
é a dimensão sócio-histórica do psiquismo. Segundo
esse princípio, tudo o que é especificamente humaA no e distingue o homem de outras espécies origina-se de sua vida em sociedade. Seus modos de
perceber, de representar, de explicar e de atuar
sobre o meio, seus sentimentos em relação ao
mundo, ao outro e a si mesmo, enfim, seu fun,
cionamento psicológico, vão se constituindo
|
nas suas relações sociais.
A criança, analisam Vygotsky e seus colaboradores, não nasce em um mundo "natural". Ela
nasce em um mundo humano. Começa sua vida em
meio a objetos e fenômenos criados pelas gerações
que a precederam e vai se apropriando deles
conforme se relaciona socialmente e parti cipa das
atividades e práticas culturais.
Desde o nascimento, a criança está em constante
interação com os adultos, que compartilham com ela seus
modos de viver, de fazer as coisas, de dizer e de pensar,
integrando-a aos significados que foram sendo produzidos e
acumulados historicamente. As atividades que ela realiza,
interpretadas pelos adultos, adquirem significado no sistema de
comportamento social do grupo a ^e pertence.
Nesse processo interativo, as reações naturais — herdadas
biologi-camente — de resposta aos estímulos do meio (tais como a
percepção, a Memória, as ações reflexas, as reações automáticas e as
associações
L. S. Vygotsky.
simples) entrelaçam-se aos processos culturalmente organizados e vão se transformando em modos de ação, de relação e de representação caracteristicamente humanos.
"Podemos dizer que cada indivíduo
aprende a ser homem", escreveu Leontiev
um dos psicólogos que integravam o grupo
de Vygotsky.
Assim, de acordo com a perspectiva
his-tórico-cultural, a relação entre o homem
e o meio físico e social não é natural, total e
diretamente determinada pela estimulação
ambiental. E também não é uma relação de
adaptação do organismo ao meio.
Questionando as teorias psicológicas
de seu tempo, entre as quais aquelas que se
apoiavam em modelos biológicos para explicar o desenvolvimento humano (como as
que já estudamos até aqui), Vygotsky destacava que, diferentemente das outras espécies, o homem, pelo trabalho, transforma o
meio produzindo cultura.
A transformação do biológico em histórico-cultural
criança nasce em
um mundo
humano,
Q uso
jg instrumentos
Quando sente fome, um animal procura comida na natureza, e seu
comportamento, nesse caso, é orientado exclusivamente pelas suas possibilidades e características biológicas (um predador age diferentemente de um herbívoro) e pelas resistências ou facilidades que o ambiente
lhe impõe (abundância ou escassez de alimento, por exemplo).
Já o homem cria instrumentos. Pode-se considerar instrumento
tudo aquilo que se interpõe entre o homem e o ambiente, ampliando e
modificando suas formas de ação. São instrumentos, por exemplo, a
enxada, a serra, o arado, as máquinas, usados no trabalho. Criados pelo
homem para lhe facilitarem a ação sobre a natureza (o arado, para arar a
terra; a serra, para cortar as árvores e transformá-las em madeira, etc),
os instrumentos acabam transformando o próprio comportamento humano, que deixa de ser uma ação direta sobre o meio, controlada apenas
pela relação entre as necessidades de sobrevivência e o ambiente. 0
instrumento amplia os modos de ação naturais do homem e seu alcance.
Assim, da mesma forma que atua sobre a natureza, transformando-a, o
homem atua sobre si próprio, transformando suas formas de agir.
Segundo a abordagem histórico-cultural, a relação entre homem e meio é
sempre mediada por produtos culturais humanos, como o instru-*^
mento
e o signo, e pelo "outro".
Quem foi Vygotsky?
Lev Semenovich Vygotsky nasceu em 1896 em Orsha, Bielo-Rússia,
e faleceu prematuramente, aos 38 anos, em 1934, vítima de tuberculose.
Concluiu seus estudos em Direito e Filologia na Universidade de
Moscou, em 1917. Posteriormente estudou Medicina. Lecionou
literatura e psicologia em Gomei, de 1917 a 1924, quando se mudou
novamente para Moscou, trabalhando, de início, no Instituto de
Psicologia e, mais tarde, no Instituto de Defectologia, por ele fundado.
Dirigiu, ainda, um Departamento de Educação para deficientes físicos e
retardados mentais. De 1925 a 1934, Vygotsky lecionou psicologia e
pedagogia em Moscou e Leningrado. Nessa ocasião, iniciou estudo
sobre a crise da psicologia, buscando uma alternativa dentro do
mate-rialismo dialético para o conflito entre as concepções idealista e
mecanicista. Tal estudo levou Vygotsky e seu grupo — entre eles A. R.
Luria e A. N. Leontiev — a propostas teóricas inovadoras sobre temas
como: relação entre pensamento e linguagem, natureza do processo de
desenvolvimento da criança e o papel da instrução no desenvolvimento.
Vygotsky foi ignorado no Ocidente e teve a publicação de suas
obras suspensa na União Soviética de 1936 a 1956. Hoje, no entanto, a
partir da divulgação feita, seu trabalho vem sendo profundamente
estudado e valorizado.
A morte prematura de Vygotsky interrompeu uma carreira
brilhante, da qual podemos resgatar hoje importantes contribuições. A
atualidade dos temas tratados por ele é o sinal mais evidente de que
estamos diante de uma obra da maior significação.
O fundamento básico de suas hipóteses de que os processos
psicológicos superiores humanos são mediados pela linguagem e
estruturados não em localizações anatômicas fixas no cérebro, mas em
sistemas funcionais, dinâmica e historicamente mutáveis, levou-o,
juntamente com Luria, por volta de 1930, a se interessar pelo fenômeno
da instalação, perda e recuperação de funções ao nível do sistema
nervoso central. Estes estudos foram continuados por Luria, após sua
morte.
(Extraído de Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/Edusp, 1988.)
O uso de signos
0 signo é comparado por Vygotsky ao instrumento e denominado por ele
"instrumento psicológico". Tudo o que é utilizado pelo homem P ara
representar, evocar ou tornar presente o que está ausente constitui Urn signo: a
palavra, o desenho, os símbolos (como a bandeira ou o ernblema de um time
de futebol), etc.
Enquanto o instrumento está orientado externamente, ou seja, para a
Codificação do ambiente, o signo é internamente orientado, modifi-Car|do o
funcionamento psicológico do homem.
E através dos
signos que
realizamos
muitas de nossas
ações.
Utilizamos os signos para desempe_
nhar diversas atividades. Anotar um
compromisso na agenda, fazer uma lista
de convidados, colocar rótulos em objetos,
usar palitos para fazer contas, contar uma
história, seguir uma partitura musical,
fazer a planta de uma construção são
formas de utilização de signos que'
ampliam nossas possibilidades de memória, raciocínio, planejamento, imaginação, etc.
De acordo com a concepção
históri-co-cultural,
é
importante
considerar que a utilização dos
instrumentos e dos signos não se limita à
experiência pessoal de um indivíduo.
Quando utilizamos um martelo, por
exemplo, estamos incorporando a nossas
ações as experiências das gerações precedentes, uma vez que o próprio martelo, o
modo de manipulá-lo e a finalidade de seu
uso nos são transmitidos nas nossas
relações com o outro. O acesso à escrita,
às notações musicais, às convenções gráficas e à palavra, por sua vez,
também se faz na interação com outras pessoas, sendo uma
incorporação de experiências anteriores de determinado grupo cultural.
No caso da linguagem, que é o sistema de signos mais importante para
o homem, os significados das palavras são produto das relações
históricas entre os homens.
O papel do outro e a internalização
60
A apropriação dos instrumentos e dos signos pelo indivíduo ocorre
sempre na interação com o outro.
"O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de uma outra pessoa", escreveu Vygotsky. "Essa estrutura humana
complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social"
(1984: 37).
Desde o nascimento, a criança tem com o mundo uma relação
mediada pelo outro e pela linguagem. O adulto ensina a criança a utilizar os objetos — ele agita o chocalho diante dela, ajuda-a a pegá-lo,
ensina-a a chutar a bola, a comer com talheres, a tomar banho, a
vestir-se, a falar ao telefone. O adulto aponta, nomeia, destaca, indica os
objetos do mundo para a criança, ao mesmo tempo que atribui
significações aos seus comportamentos. Quem já viu um adulto lidando
com um bebê, sabe que o adulto fala o tempo todo, dando nomes para os
objetos, dirigindo a atenção da criança e interpretando tudo o que ela
faz.
Aos poucos a criança aprende a falar e passa a utilizar a própria Imagem para regular suas ações, conferir sentido às coisas. Ela pode, ao
gU
exer no botão da televisão, por exemplo, dizer "Não pode!". Ou, quan-I1
tropeça, falar "Caiu!". Ou, quando vê um prato de sopa, falar "Papá!".
É na sua relação com o outro que a criança vai se apropriando das
unificações socialmente construídas. Desse modo, é o grupo social J|e
por meio da linguagem e das significações, possibilita o acesso a f
irmãs culturais de perceber e estruturar a realidade.
A partir de suas relações
com o outro, a criança
recons-trói internamente as
formas culturais de ação e
pensamento, assim como as
significações e os usos da
palavra que foram com ela
compartilhados. A esse processo
interno de reconstrução de uma
operação externa, Vygotsky dá o
nome de inter-nalização.
Na internalização, a atividade interpessoal transforma-se
para constituir o funcionamento
interno (intrapessoal) (Góes,
1991).
Desse modo, a abordagem histórico-cultural considera que toda
funçãr/psicológica se desenvolve em dois planos: primeiro, no da relação entre indivíduos e, depois, no próprio indivíduo. O processo de desenvolvimento vai do social para o individual, ou seja, as nossas maneiras de pensar e agir são resultado da apropriação de formas culturais de
ação e de pensamento.
Logo, para Vygotsky as origens e as explicações do funcionamento
psicológico do homem devem ser buscadas nas interações sociais. É aí
que o indivíduo tem acesso aos instrumentos e aos sistemas de signos
que possibilitam o desenvolvimento de formas culturais de atividade e
permitem estruturar a realidade e o próprio pensamento.
Pesquisando a criança: o papel do signo no
desenvolvimento
Ao estudar o desenvolvimento da criança, as patologias e a deficiência mental, Vygotsky baseou-se em observações e experimentação
e
m situações variadas. Ele defendia a idéia de que o trabalho experimental não devia limitar-se a modelos de laboratório divorciados das
atuações naturais da vida, podendo ser realizado em situações de brincadeira, de aprendizado, nas conversações informais, na escola, na família ou em um ambiente clínico.
A criança
conhece o mundo
por meio de suas
relações com os
outros.
Nas situações experimentais por ele criadas, seu objetivo fundamental
era o de estudar o processo de constituição da atividade mediada. Ou seja,
para Vygotsky interessava investigar os modos como a criança utilizava os
signos para executar tarefas envolvendo, por exemplo, a atenção a memória, a
percepção; os modos de participação do outro na resolução dessas tarefas; e os
modos como a própria situação estimuladora ia sendo ativamente modificada
no processo de resposta a ela.
Nessas condições, os dados fundamentais do experimento não eram as
respostas dadas pelas crianças, e sim os modos pelos quais elas chegavam às
respostas e as condições em que elas as elaboravam. Assim, as questões
centrais a que o experimentador voltava sua atenção eram: O que a criança
está fazendo? Como ela tenta satisfazer às exigências da tarefa que lhe foi
proposta? De que recursos lança mão? Que tipo de ajuda solicita, e a quem? O
que é um obstáculo, uma dificuldade para ela na situação? Como ela utiliza as
pistas e as ajudas que lhe são oferecidas durante a realização da atividade
experimental?
Nos estudos desenvolvidos por Vygotsky e seu grupo, o observador
desempenhava um papel diferente do exercido nos outros estudos que vimos
até aqui. Como mediador da elaboração da criança, o experimentador era mais
que um mero observador. Sua participação constituía um dos dados da
pesquisa. Ele interagia com a criança, falando com ela, acolhendo suas
dúvidas e comentários, propondo a ela caminhos alternativos para a solução
da situação-problema, oferecendo-lhe, inclusive, materiais que pudessem ser
utilizados de modos diversos para o cumprimento da tarefa. Ele também
conversava com a criança sobre as soluções encontradas, procurando ouvir
dela própria a explicação de como tinha chegado à solução das tarefas.
Um experimento desenvolvido por Leontiev para estudar o papel
desempenhado pelos signos mediadores no desenvolvimento da atenção
voluntária pode ilustrar a forma como trabalhava o grupo de pesquisa de
Vygotsky.
A atenção, assim como a percepção e a memória, é uma atividade
psicológica com a qual nascemos. Como o de outras espécies, nosso
organismo é dotado de mecanismos neurológicos inatos que permitem
selecionar estímulos do ambiente apropriados à sobrevivência. Nascemos com
mecanismos de atenção involuntária, que nos permitem perceber e responder
automaticamente a ruídos fortes, objetos em movimento e mudanças bruscas
do ambiente.
No entanto, ao longo de nosso desenvolvimento, tornamo-nos cat pazes
de dirigir a atenção não só para os estímulos ligados a nossa sobrevivência,
mas também para situações ou elementos que nos interessam. Por exemplo, ao
lermos determinado livro, dizemos que ele "prende nossa atenção", quando
somos capazes de ignorar, durante a leitura, os ruídos do ambiente ou o
movimento das pessoas em torno de nós. E, na escola, uma criança pode
permanecer alheia a tudo o que a professora está explicando ou escrevendo na
lousa, a despeito da sua movimentação pela classe, do som da sua voz ou do
fato de ser diretamente solicitada a prestar atenção.
Ao dirigirmos deliberadamente nossa atenção para estímulos do
meio que consideramos relevantes, transformamos aquele mecanismo
biológico de atenção involuntária em um mecanismo de atenção voluntária, em uma atividade psicológica controlada por nós mesmos. Essa
transformação, segundo Vygotsky, está relacionada ao significado dos
estímulos, o qual vai sendo produzido em nossas relações sociais e nas
nráticas culturais dos grupos a que pertencemos.
Assim, para estudar como um elemento auxiliar externo pode controlar e direcionar a atenção da criança, Leontiev utilizou um jogo infantil tradicional na Europa, o das palavras proibidas, equivalente ao
nosso jogo do "sim, não e porquê".
O pesquisador participava do jogo fazendo perguntas às crianças,
que deveriam responder sem utilizar determinadas palavras, como, por
exemplo, azul e vermelho.
Num primeiro momento, o pesquisador formulava perguntas como
"Qual a cor de sua blusa?", "Qual a cor do céu?", "Qual a cor da
maçã?", e as crianças respondiam a elas. Num segundo momento, ele
fazia as mesmas perguntas mas entregava às crianças cartões coloridos
que elas poderiam utilizar, se quisessem e como quisessem.
Com a introdução dos cartões (como recurso auxiliar para a execução da tarefa), procurava-se verificar se as crianças os utilizavam ou
não como suportes para sua atenção e memória e de que modos o faziam. Algumas crianças não utilizavam os cartões, outras separavam os
que apresentavam as cores proibidas e os consultavam antes de responder à pergunta, cometendo assim um número menor de erros.
Ej>se resultado foi interpretado como um indicador de que elementos mediadores externos, os cartões, incorporados à atividade da criança, ampliavam sua capacidade de atenção e memória, possibilitando a
ela ter maior controle voluntário de sua própria atividade.
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência
da abordagem histórico-cultural na escola
Como vimos, o desenvolvimento é entendido por Vygotsky como
um processo de internalização de modos culturais de pensar e agir. Esse
processo de internalização inicia-se nas relações sociais, nas quais os
adultos ou as crianças mais velhas, por meio da linguagem, do jogo, do
razer junto" ou do "fazer para", compartilham com a criança seus sistemas de pensamento e ação.
Embora aponte diferenças entre aprendizado e desenvolvimento,
Vv
gotsky considera que esses dois processos caminham juntos desde o
Primeiro dia da vida da criança e que o primeiro — o aprendizado —
suscita e impulsiona o segundo — o desenvolvimento. Ou seja, tudo
^auilo qUe a criança aprende com o adulto ou com outra criança mais
'e'ha vai sendo elaborado por ela, vai se incorporando a ela, transformando seus modos de agir e pensar.
Assim, segundo Vygotsky, o conhecimento do mundo passa pelo
outro, sendo a educação "o traço distintivo fundamental da história do
pequeno ser humano. A educação pode ser definida como sendo o de
senvolvimento artificial da criança. Ela é o controle artificial dos processos de desenvolvimento natural. A educação faz mais do que exercer
influência sobre um certo número de processos evolutivos: ela
rees-trutura de modo fundamental todas as funções do comportamento"
(1985: 45).
Os processos de aprendizado transformam-se em processos de desenvolvimento, modificando os mecanismos biológicos da espécie.
Sendo um processo constituído culturalmente, o desenvolvimento psicológico depende das condições sociais em que é produzido, dos modos
como as relações sociais cotidianas são organizadas e vividas e do acesso às práticas culturais.
Em razão de privilegiar o aprendizado e as suas condições sociais
de produção no processo de desenvolvimento, Vygotsky colocou em
discussão os indicadores de desenvolvimento utilizados pela psicologia
da época.
Para avaliar o desenvolvimento de uma criança, os psicólogos consideravam apenas as tarefas e as atividades que ela era capaz de realizar
sozinha, sem a ajuda de outras pessoas. Procedendo assim, os psicólogos, segundo Vygotsky, apreendiam apenas seu nível de desenvolvimento real, isto é, "o nível de desenvolvimento das funções mentais da
criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de deserP
volvimento já completados"- (Vygotsky, 1984).
Ao considerarem apenas o desenvolvimento real, problematizava
Vygotsky, os psicólogos voltavam-se para o passado da criança. Ou
seja, apreendiam processos de desenvolvimento já concluídos.
No entanto, destacava ele, nas situações de vida diária e mesmo na
escola, era possível perceber que as atividades que a criança realizava
sozinha, por exemplo, comer com a colher, amarrar os sapatos, montar
uma torre com peças de tamanhos diversos, escrever, foram antes compartilhadas com outras pessoas.
Sua proposta, então, era a de que se trabalhasse também com os
indicadores de desenvolvimento proximal, que revelariam os modos de
agir e de pensar ainda em elaboração e que requerem a ajuda do outro
para serem realizados. Os indicadores do desenvolvimento proximal
seriam as soluções que a criança consegue atingir com a orientação e a
colaboração de um adulto ou de outra criança.
Segundo sua análise, o aprendizado (a atividade interpessoal) precede e impulsiona o desenvolvimento, criando zonas de desenvolvimento proximal, ou seja, processos de elaboração compartilhada.
Observar a atividade compartilhada da criança possibilita olhar
para o seu futuro, pois "o que é o desenvolvimento proximal hoje será o
nível de desenvolvimento real amanhã — ou seja, aquilo que a criança é
capaz de fazer com assistência hoje ela será capaz de fazer sozinha amanhã" (Vygotsky, 1985).
Além disso, o desenvolvimento proximal como desenvolvimento
elaboração possibilita a participação do adulto no processo de 6
rendizagem da criança. Para consolidar e dominar autonomamente as
Yvidades e operações culturais, a criança necessita da mediação do 3 tr0
O mero contato da criança com os objetos de conhecimento ou ° esmo
sua imersão em ambientes informadores e estimuladores não "arante a
aprendizagem nem promove necessariamente o desenvolvimento, uma
vez que ela não tem, como indivíduo, instrumental para reanizar ou
recriar sozinha o processo cultural (Oliveira, 1995). Portanto, é no
campo do desenvolvimento em elaboração que a oarticipação do
adulto, como pai, professor, parceiro social, se faz necessária.
Conforme alertava Vygotsky, "o bom aprendizado é somente aquele
que se adianta ao desenvolvimento" (1984: 101).
O papel da escolarização
O modo como Vygotsky concebia e analisava o desenvolvimento
humano levou-o a discutir explicitamente o papel da escolarização. Diferentemente de outros psicólogos, Vygotsky considerou as
espe-cificidades das relações de conhecimento produzidas na escola,
distin-guindo-as das relações de conhecimento cotidianas.
Em nossas sociedades, a escola é uma instituição encarregada de
possibilitar o contato sistemático e intenso das crianças com o sistema
de leitura e de escrita, com os sistemas de contagem e de mensuração,
com os conhecimentos acumulados e organizados pelas diversas disciplinas científicas, com os modos como esse tipo de conhecimento é
elaborado e com alguns dos variados instrumentos de que essas ciências
se utilizam (mapas, dicionários, réguas, transferidores, máquinas de
calcular, etc).
As relações de
conhecimento
travadas na
escola têm uma
natureza distinta
das demais.
65
Embora chegue à escola já dominando inúmeros conhecimentos e
modos de funcionamento intelectual necessários à elaboração dos conhecimentos científicos sistematizados, durante o processo de educação escolar a criança realiza a reelaboração desses conhecimentos mediante o estabelecimento de uma nova relação cognitiva com o mundo e
com o seu próprio pensamento.
O estudo da aritmética, por exemplo, não começa do zero. Ao chegar à escola a criança já passou por experiências anteriores relativas a
quantidades, determinação de tamanho, operações de divisão, adição etc.
O mesmo acontece quanto à escrita e às operações mentais utilizadas em
situações do cotidiano. Nas brincadeiras, nas tarefas da casa, nas compras
que faz para a mãe, a criança, imitando os mais velhos, "escreve",
classifica, compara, seria, estabelece relações entre os elementos de uma
situação, etc. Nessas situações, sem que ela própria e seus parceiros
sociais percebam, os conhecimentos vão sendo elaborados ao ritmo da
própria vida, entrelaçados às emoções, às necessidades e interesses
imediatos da atividade em que está envolvida. _„ Na escola, as
condições se modificam. Ali as relações de conhecimento são
intencionais e planejadas. A criança sabe que está ali para apropriar-se
de determinado tipo de conhecimentos e de modos de pensar e de
explicar o mundo, organizados segundo uma lógica que ela deverá
apreender.
—Ç> A professora acompanha a criança: orienta sua atenção, destacando elementos das situações em estudo considerados relevantes à compreensão dos conhecimentos nelas implicados; analisa as situações para
e com a criança e leva-a a comparar, classificar, estabelecer relações
lógicas; demonstra como usar determinados procedimentos da
matemática e da escrita; ensina a utilizar o mapa, os equipamentos de
laboratório, etc.
A criança, por sua vez, raciocina com a professora. Segue suas explicações e instruções, reproduz as operações lógicas realizadas por ela,
mesmo sem entendê-las completamente. Nessas situações compartilhadas com a professora, a criança aprende significados, modos de agir e
de pensar, e começa a elaborá-los. Ela também re-significa e reestrutura
significados, modos de agir e de pensar, e começa a se dar conta das
atividades mentais que realiza e do conhecimento que está elaborando.
Nesse sentido, destaca Vygotsky, a educação escolarizada e o professor têm um papel singular no desenvolvimento dos indivíduos.
Fazendo junto, demonstrando, fornecendo pistas, instruindo, dando
assistência, o professor interfere no desenvolvimento proximal de seus
alunos, contribuindo para a emergência de processos de elaboração e
de desenvolvimento que não ocorreriam espontaneamente.
A escola, possibilitando o contato sistemático e intenso dos indivíduos com os sistemas organizados de conhecimento e fornecendo a
eles instrumentos para elaborá-los, mediatiza seu processo de desenvolvimento.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1 Faça um resumo do que você compreendeu sobre o papel do signo e
' das interações sociais na formação do funcionamento psicológico
humano.
2. Conceitue mediação e internalização.
3. Compare a abordagem histórico-cultural do desenvolvimento humano
com
as
abordagens
apresentadas
pelo
inatismo-matura-cionismo, pelo comportamentalismo e pela teoria
piagetiana. Enumere as semelhanças e diferenças entre essas
abordagens e confronte-as com as relacionadas por seus colegas,
numa discussão envolvendo a classe.
Pesquisa de campo
Converse com alguns professores da V. à 4? série e da pré-escola.
Pergunte-lhes como vêem o papel da escola e seu papel de professores
no desenvolvimento da criança. Anote suas respostas.
Confronte o que pensam os professores com as reflexões de Vygotsky
acerca da relação entre escolarização e desenvolvimento.
A seguir, apresente três conclusões a respeito da influência das teorias psicológicas do desenvolvimento na prática dos professores.
Exercitando a análise
1> Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas ao
final do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas dadas pelos
dois grupos aspectos que as associam a uma visão histórico-cultural
de desenvolvimento.
2. Leia o texto 'O renascimento de Josela', de Silvia Adoue, publicado
na revista Ande,x\°. 7, 1984.
Em pequenos grupos, discutam o papel da professora no processo
vivido por Josela. Num debate da classe, apresentem a análise
elaborada pelo grupo.
Sugestão de leituras
GÓES, Maria C. R. de. A natureza social do desenvolvimento psicológico. Cadernos Cedes, n? 24. Campinas: Papirus, 1991.
LEITE, Luci B. As dimensões interacionista e construtivista em Vygotsky
e Piaget. Cadernos Cedes, n? 24. Campinas: Papirus, 1991.
OLIVEIRA, M. K. Vygotsky — Aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1993.
_______ . O pensamento de Vygotsky como fonte de reflexão sobre a
educação. Cadernos Cedes, n? 35. Campinas: Papirus, 1995.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
Filmes recomendados
O enigma de Raspar Hauser, dirigido por Werner Herzog. 'As
borboletas de Zagorsky', episódio do documentário Os transformadores,
apresentado pela TV Cultura de São Paulo.
Capítulo 6
As abordagens sobre
desenvolvimento e aprendizagem e a prática pedagógica*
Quando estudamos as principais abordagens teóricas acerca do desenvolvimento e da aprendizagem, logo emerge a questão da relação
entre a psicologia e a prática pedagógica. Afinal, para que servem as
teorias psicológicas, nos perguntamos.
É muito comum ouvir dizer que certo professor é construtivista,
outro é vygotskyano, outro behaviorista. Mas o que isso significa? O
que é adotar determinada perspectiva teórica?
■Essas questões fazem pensar na necessidade de compreender e
explicitar a relação entre a teoria e a prática. O que é uma teoria? Para
que ela serve?
Nos capítulos anteriores, mostramos que a abordagem inatista, por
exemplo, foi construída a partir do interesse pelo problema das diferenças individuais. E que Piaget elaborou sua psicologia genética a partir de
suas preocupações com a gênese e o desenvolvimento do conhecimento.
Considerando esses dois exemplos, podemos dizer que as teorias
foram elaboradas para descrever, explicar, interpretar, compreender
certos aspectos da realidade (nesses casos, as diferenças individuais e o
conhecimento). E, ainda, que as teorias constituem um corpo de conhecimentos sistematizados sobre a realidade, uma espécie de lentes através das quais se olha o mundo.
E a prática, o que é? É a aplicação de uma teoria? Caso fosse, poderíamos dizer, por exemplo, que um pai, quando elogia o filho para
incentivá-lo a se comportar da forma que ele considera adequada, está
a
PÜcando a teoria comportamentalista. No entanto, a maioria dos pais
que têm esse tipo de conduta nunca ouviram falar em
compor-tamentalismo. Como poderiam, então, estar aplicando essa
teoria?
Mesmo no meio escolar, onde provavelmente as teorias são mais
conhecidas, não nos parece correto afirmar que a prática seja aplicação
d
a teoria. Começamos este livro falando da complexidade dás relações
que ocorrem na escola, da diversidade de fatores presentes no seu cotidiano. Crianças que brigam, choram, inventam, aprendem, perdem o
lápis, faltam à aula; professores que perdem a paciência, riem, explicam, passam tarefas, contam história, recebem ou não recebem salários
Todas essas ações são formas de atividade humana, são práticas culturais cotidianas, e não aplicações de alguma teoria. São parte da realidade e, assim, tão complexas e multifacetadas quanto a própria realidade
Vivemos as práticas cotidianas em geral irrefletidamente, só parando para pensar sobre elas quando algum problema ou algum descompasso se manifesta. Os problemas e descompassos suscitam questões
que requerem explicações.
Quando nos debruçamos sobre a realidade tentando compreendê-la
e explicá-la, estabelecemos um novo modo de relação com nossas práticas cotidianas. Olhamos para o que fazemos e somos, analisamos e
refletimos sobre o vivido, procurando organizá-lo.
Nesse processo de busca de compreensão, vivemos outra prática
cultural, a "prática da teorização", e produzimos um conhecimento de
natureza distinta do conhecimento baseado na vivência cotidiana. No
esforço para explicar as questões e problemas surgidos no cotidiano,
nos obrigamos a "parar para pensar", a olhar de longe as situações vividas, tentando apreender seus aspectos essenciais, suas contradições, o
modo como seus elementos se articulam, as transformações por que
passam. Procuramos organizar as nossas vivências e nosso próprio processo de reflexão sobre elas em um sistema explicativo coerente.
Por tudo isso, não dá para considerar a prática como aplicação da
teoria, nem a teoria como algo que se aplica à prática. A prática é a base
da teoria (que também é uma prática humana de produção de conhecimento). E a teoria elaborada é uma reflexão organizada e sistematizada sobre
aspectos da prática que nos ajudam a analisá-la, problematizá-la e
redefini-la. Nesse sentido, teoria e prática articulam-se dinamicamente.
Considerando desse modo a relação entre teoria e prática, podemos
dizer que as teorias psicológicas são lentes através das quais olhamos a
prática pedagógica e que nos ajudam a compreendê-la.
Certamente o modo como o professor lida com a complexidade da
prática é determinado pela compreensão que ele tem sobre ela, podendo
essa compreensão ser instrumentalizada e mediada pela teoria. Nesse sentido, dizemos que o professor não aplica teorias, mas articula teoria e prática, à medida que seus conhecimentos teóricos o ajudam a compreender
o que ocorre em sala de aula, marcando suas decisões e seus modos de agir.
Os diferentes modos de olhar
Das quatro principais abordagens existentes na psicologia sobre o
desenvolvimento e a aprendizagem, três delas, como vimos, se apoiam
de alguma forma em modelos biológicos: a inatista-maturacionista, a
comportamentalista e a piagetiana. A outra, a abordagem
histórico-cul-tural, questiona os modelos biológicos, considerando-os
inadequados
para explicar o pensamento humano, que teria sua origem nas relações
sociais mediadas pela linguagem.
As abordagens maturacionista e piagetiana priorizam o processo de
desenvolvimento como objeto de estudo e enfatizam o papel de fatores
nternos, como a maturação ou a equilibração, na determinação desse processo. Já os comportamentalistas, considerando que comportamentos,
habilidades e pensamentos são aprendidos, destacam a preponderância de
fatores externos, como os estímulos e os reforçadores, no processo de
aprendizagem. Para Vygotsky, tanto o desenvolvimento quanto a aprendizagem decorrem das condições sociais em que o indivíduo está imerso.
Cada uma dessas perspectivas prioriza, em suas investigações e
reflexões, aspectos distintos da vida psíquica e apresenta explicações
bastante diferentes sobre os processos de desenvolvimento e de aprendizagem.
Qual delas seria, então, a "certa" ou a "melhor"? Você talvez até já
tenha simpatizado mais com uma delas, em razão de seu próprio modo
de pensar sobre o homem e a criança. Ou, o que é muito provável, estará
supondo que cada uma explica certo aspecto do desenvolvimento e da
aprendizagem.
Com base em sua experiência, você pode achar que algumas crianças são mesmo mais inteligentes que outras ("Pode ser hereditário!");
que, de fato, as crianças da mesma idade são muito parecidas ("É a
maturação"); ou, ainda, que às vezes "esse negócio de reforço funciona"; e, também, que as interações sociais são fundamentais.
Cada uma das abordagens explica um pouco?
De fato, podemos dizer que cada abordagem apresenta contribuições diferentes e importantes em relação aos aspectos da vida mental.
No entanto, adotar o ponto de vista de que cada uma explica um pouco
do processo de aprendizagem e desenvolvimento não é algo tão simples
como pode parecer.
Pensemos, por exemplo, no problema do erro na escola. Todos nós
sabemos que as crianças cometem erros em relação à escrita, aos conceitos, etc. Como interpretá-los?
Na perspectiva comportamentalista, o erro é tomado como um
comportamento inadequado, portanto a ser eliminado. Logo, o professor deve se empenhar para não reforçá-lo positivamente, evitando, assim, que o erro, ou o comportamento inadequado, se fixe.
Já na perspectiva piagetiana, o erro é considerado como parte do
Processo de construção do conhecimento. O erro que a criança comete
(como no caso da conservação, de que falamos no capítulo 4) pode ser
resultado de sua própria atividade assimilativa, da aplicação dos seus
es
quemas mentais (ou de ação) a determinado objeto ou conteúdo.
Quando a atividade assimilativa resulta em erro, e principalmente se de
torrna repetida, ocorre uma desequilibração das estruturas cognitivas da
criança. Isso faz com que ela, por meio de sua atividade cognitiva, mo-
difique (acomode) seus esquemas, o que resulta em uma reequilibração
e, portanto, no aperfeiçoamento de sua maneira de agir e de pensar e em
um nível mais complexo de conhecimento sobre o objeto. Logo, o erro
deve ser respeitado como um momento do processo de elaboração do
conhecimento.
-%» As "dificuldades de aprendizagem" apontadas pelos professores
também têm diferentes interpretações. Na abordagem maturacionista
"as dificuldades de aprendizagem" são consideradas a partir da relação
de dependência do aprendizado ao desenvolvimento. Assim, se uma
criança encontra dificuldade em aprender o que é ensinado na escola,
isso talvez se deva à falta de "maturidade" da criança ou a algum atraso
em seu desenvolvimento.
ÍJ, A abordagem histórico-cultural, por sua vez, considerando que a
aprendizagem produz desenvolvimento, vê as "dificuldades de aprendizagem" como relativas às condições em que a relação de ensino é produzida. Uma vez que tanto o desenvolvimento quanto a aprendizagem
são processos que ocorrem no plano das interações sociais, as "dificuldades de aprendizagem" são enfocadas não como algo inerente à criança, mas às suas condições de produção no contexto interativo em que
ela se insere.
A atividade da criança como foco de análise
Os exemplos considerados acima indicam que as abordagens teóricas da psicologia são, muitas vezes, opostas ou contraditórias. Problemas como o erro e as dificuldades de aprendizagem são interpretados de
modos bastante diferentes, dependendo da perspectiva teórica que se
adote. Isso porque cada uma delas apresenta princípios explicativos.de
natureza distinta, como a maturação e a hereditariedade, o condicionamento, a equilibração e a mediação por signos, decorrentes, por sjia vez,
de diferentes concepções a propósito do ser humano e da criança.Desse modo, a análise da atividade da criança a partir de diferentes
abordagens teóricas nos parece ser o caminho mais adequado para apurar nossa compreensão sobre suas especificidades.
Por isso, na segunda parte deste livro, você será convidado a olhar
para a atividade da criança — seus processos de elaboração conceituai,
suas brincadeiras, desenhos e escrita — na situação de produção na escola e em outros contextos, a partir das contribuições de Piaget e de
Vygotsky. Guiados pelas indicações de ambos, vamos nos aproximar do
desenvolvimento da atividade da criança, prestando atenção ao que ela
faz e diz e às relações que estabelece com outras crianças e com os
adultos.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Reproduza o quadro a seguir em seu caderno e preencha-o:
Abordagem
Abordagem
inatista-maturacionista comportamentalista
Papel dos fatores
internos e externos
no desenvolvimento
Relação entre
desenvolvimento e
aprendizagem
Principais
representantes
Contribuições para
a prática pedagógica
Refletindo sobre o texto
Neste capítulo, fizemos algumas considerações sobre como as teorias psicológicas se relacionam com a prática pedagógica. Agora, em
pequenos grupos, sintetizem o que foi visto até o momento,
orientando-se pelos itens do quadro acima.
Exercitando a análise
1. Reveja as situações que você observou na escola (atividade do capítulo 1) e destaque uma que, do seu ponto de vista, pode ser explicada
sob a perspectiva de uma das abordagens teóricas estudadas até agora. Esboce a interpretação da situação com base na perspectiva teórica escolhida e justifique-a.
2. Reveja as perguntas que você enumerou (também como atividade do
capítulo 1) e tente responder a elas com base nas quatro abordagens
estudadas.
Seminários e debates
Apresentamos a seguir uma relação de textos que abordam, sob
difen entes perspectivas, questões relativas ao desenvolvimento e à
^Prendizagem, tais como a inteligência da criança, as dificuldades e
a
Prendizagem e os atrasos no desenvolvimento.
73
CARRAHER, T. N. et alii. Cultura, escola, ideologia e cognição — Continuando
um debate. Cadernos de Pesquisa, n? 57, maio/86. São Paulo: Fundação
Carlos Chagas.
FREITAG, B. Piagetianos brasileiros em desacordo? Contribuições para um
debate. Cadernos de Pesquisa, n? 53, maio/85. São Paulo: Fundação
Carlos Chagas.
MORO, M. L. A construção da inteligência e a aprendizagem escolar de
crianças de baixa renda — Uma contribuição para o debate. Cadernos de
Pesquisa, n? 56, fev./86. São Paulo: Fundação Carlos Chagas.
PATTO, M. H. S. Criança da escola pública: deficiente, diferente ou mal
trabalhada?. Revendo a proposta de alfabetização. Projeto Ipê. São Paulo:
SE/CENP, 1985.
. A criança marginalizada para os piagetianos brasileiros; de
ficiente ou não?. Cadernos de Pesquisa, n? 51, nov./84. São Paulo:
Fundação Carlos Chagas.
SMOLKA, A. L. B. O trabalho pedagógico na diversidade (adversidade) da sala
de aula. Cadernos Cedes, n? 23. São Paulo: Cortez, 1989.
_______ et alii. A questão dos indicadores de desenvolvimento:
apontamentos para discussão. Caderno de Desenvolvimento Infantil, n? 1,
1994. Curitiba: Centro Regional de Desenvolvimento Infantil da Pastoral
da Criança/CNBB.
Com a classe organizada em grupos, cada um deles deve ficar responsável pela leitura, estudo e apresentação de um dos textos.
Procure destacar os pontos mais importantes do texto e identificar, com
base nesta primeira parte do livro, a abordagem teórica adotada ou criticada
pelos diversos autores.
Depois da apresentação de cada grupo (que pode ser feita em mais de
uma aula), faça com os colegas um debate sobre as questões tratadas nos
textos e sobre os diferentes modos de ver a criança e o trabalho pedagógico
presentes na psicologia.
Sugestão de leitura
SMOLKA, A. L. B., LAPLANE, A. F. O trabalho em sala de aula: teorias para
quê? Cadernos ESE, n? 1, nov./93. Rio de Janeiro: Faculdade de Educação
da Universidade Federal Fluminense.
Filme recomendado
Crescer e aprender — Um guia para pais, documentário realizado pelo
Unicef e apresentado pela TV Cultura de São Paulo.
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Unidade 2
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elaboração
conceituai
Introdução
A
palavra integra nossas relações com a criança já a partir
de seu nascimento. Falamos com a criança muito antes
que ela comece a falar ou, mesmo, a nos entender. Como
pais, tios, avós, irmãos, sabemos que em certo momento ela vai
começar a falar e encaramos esse fato como algo natural e próprio do
ser humano.
Em nossas relações cotidianas, vamos compartilhando com a
criança em crescimento as palavras que conhecemos e por meio das
quais nomeamos, organizamos e participamos do mundo em que vivemos. Esse compartilhamento também nos parece corriqueiro e natural,
e muitas vezes divertido, pois acabamos nos surpreendendo com algumas das coisas que as crianças nos dizem.
Quando a criança chega à escola, nós, educadores, continuamos
ensinando-lhe novas palavras, como adição, subtração, fração, substantivo, verbo, sílaba, ponto final, pátria, cultura, monarquia, república,
escravidão, sistema circulatório, célula, oxigênio, atmosfera, energia,
clima, relevo, etc. Essas palavras expressam relações complexas que os
homens, ao longo de sua história, foram estabelecendo entre os elementos do mundo, no seu esforço para conhecê-los e explicá-los. Por tudo
isso, consideramos necessário que a criança as conheça e saiba
utilizá-las adequadamente. Esforçamo-nos, então, para que ela as
aprenda. E esse aprendizado também nos parece natural.
"Assim, como adultos, ou membros mais velhos dos grupos sociais
de que a criança faz parte, não temos o hábito de nos interrogar acerca
dos modos pelos quais ela, criança, se relaciona com as palavras. O que
é a palavra para a criança? Como é que ela se apropria das palavras e
como elabora seus significados? Que papel, afinal, nós, adultos, desempenhamos nesse processo?
Entretanto essas questões têm, há muito tempo, preocupado filósofos, lingüistas, psicólogos, educadores, que têm se voltado, cada um em
seu campo de estudo, para a busca de explicações e respostas a elas.
Nesta segunda unidade, vamos tematizá-ías a partir das perspectivas de Piaget e de Vygotsky.
No capítulo 7, vamos problematizar as funções da palavra e nos
aproximar dos modos como esses dois autores analisam e explicam
suas relações com o pensamento.
No capítulo 8, focalizaremos como cada um deles descreve e explica o processo de elaboração da palavra pela/na criança.
No capítulo 9, vamos discutir o papel da escola na elaboração da palavra pela criança, tendo em vista essas duas importantes contribuições.
Capítulo 7
A relação entre pensamento e
linguagem
Campinas, agosto de 1987.
Numa sala de aula da 3a. série de uma escola pública da periferia, a
diretora entra e comunica à professora e aos alunos que, na semana seguinte, a escola toda deverá comemorar a Semana da Pátria.
— "Todas as manhãs vamos hastear a bandeira, cantar o
Hino e um dos professores falará sobre a data. "
Voltando-se para a professora:
— "Prepare as crianças."
, A saída da diretora, têm início os comentários.
Juliana (para Fabiana) — "A tia vai dar desenho pra gente
pintar, né?!"
Eli (para o colega ao lado) — "Que negócio que ela falou da
bandeira ? "
Eli (para a professora) — "A gente vai enfeitar a classe com
bandeirinha verde e amarela? Foi isso que ela falou?"
Cláudio (comentando com Sérgio) — "A gente vai ter que
cantar o hino..."
Sérgio — "Mas é lá fora. Dá pra ficar de olho nas meninas da
4fsérie, meu!"
Elaine (para a professora) — "É sete de setembro, né, tia?!"
João (para Sérgio) — "É feriado..."
A professora, diante dos comentários suscitados pelo comunicado, e procurando identificar de que modo atender à solicitada
"preparação das crianças" para o evento, escreve na lousa —
SEMANA DA PÁTRIA — e pergunta para a classe:
— "O que significa Semana da Pátria?"
Sérgio — "Semana é semana. Segunda, terça, quarta... "
Proff— "É isso mesmo. E Pátria? O que é Pátria?" As
respostas disparam rapidamente, com firmeza. Fabiana
— "Pátria é coisa de soldado."
Ronaldo — "É isso que eu ia falar. É coisa de polícia, de bombeiro. Eles desfilam lá na cidade. Passa na TV também. "
Juliana — "A gente sempre pinta o desenho do soldadinho
com a bandeirinha e escreve em cima — Semana da Pátria. "
Proff — "Então Pátria é coisa de soldado ? Quem aqui tem
Pátria ? "
Sérgio — "Povão não tem Pátria, dona."
Proff— "Por quê?"
Sérgio — "A gente não tem casa, não tem dinheiro, o pai vira
e mexe tá desempregado... A gente não tem nada. Não tem Pátria
também."
(Episódio extraído do Projeto de Pesquisa sobre os Processos de
Elaboração Conceituai na Escola, elaborado e desenvolvido por
Roseli A. C. Fontana de 1987 a 1991.)
Para as crianças,
o 7 de Setembro
tem diversos
significados.
Situações como essa acontecem nas salas de aula. E, ao acontecerem, surpreendem, porque levantam questões acerca de nossas relações
com a palavra...
O que dizemos, o que queremos dizer ao enunciar a palavrapátrial
O que o outro quer dizer quando enuncia pátrial
Na situação que inicia o capítulo, podemos perceber que a palavra
pátria não tem um sentido só. Na fala da diretora, na fala da professora,
na fala das crianças, ela assume nuances distintas, que são marcadas
pela situação em que foi enunciada.
Sobre o que fala a diretora? Para quê? A quem se
dirige?
Ela comunica um evento
às crianças, determina a
presença delas e da professora
nesse evento, revela expectativas com relação a tarefas a serem assumidas pela
professora (preparação) e
pelas crianças (afinal, são elas
as pessoas que devem ser
preparadas para o evento). E
nesse contexto e na situação de
autoridade escolar que ela diz
a palavra pátria. Sobre o que
falam as crianças? A quem se dirigem? Para que dizem o que dizem?
Elas compartilham entre si e com a professora os modos como se
relacionam com as palavras da diretora. Algumas procuram obter mais
esclarecimentos, levantando suposições e pedindo confirmações acerca
do que pode vir a acontecer na escola: "A tia vai dar desenho pra gente
pintar, né!?"; "A gente vai enfeitar a classe com bandeirinha verde e
amarela?". Outras procuram confirmar com a professora as informa-
cões
que relacionam com aquilo que foi dito pela diretora: "É sete de
setembro, né, tia?!". Outras, ainda, procuram esclarecer aspectos do
comunicado que não conseguiram entender: "Que negócio que ela falou da
bandeira?".
Os dizeres das crianças se cruzam e trazem para a interlocução outros
elementos e outras possibilidades de significação do comunicado da diretora.
Por exemplo, João, ouvindo de Elaine a referência ao 7 de Setembro, fala do
feriado, desencadeando para seus colegas outras possibilidades de leitura da
fala da diretora. Cláudio, ao ouvir a referência ao Hino, enfatiza "o cantar lá
fora", que é "lido" por Sérgio como a possibilidade de paquerar.
No processo de elaboração das palavras pelas crianças, o evento
comunicado pela diretora vai se revestindo de nuances e sentidos diversos
daqueles destacados por ela. Desenhos, bandeirinhas, feriado, paquera... tudo
isso é Semana da Pátria também.
Ao perguntar "o que é pátria?", a professora apresenta às crianças outro
modo de relação com a palavra. Ela desloca as crianças da relação de uso da
palavra para uma relação de reflexão sobre a palavra.
Para responderem à professora, as crianças precisam refletir sobre o que
pensam que a palavra pátria significa. Precisam explicitar o seu modo de
pensar.
O dizer da professora imprime uma direção à atividade intelectiva das
crianças. Pela palavra ela age sobre suas elaborações. Ela destaca a palavra
pátria, transformando-a no foco da atividade das crianças. Ela pergunta sobre
seu significado, questiona o significado apresentado pelas crianças pedindo
que justifiquem as relações que estabelecem entre a palavra pátria e outras
palavras, como soldado e povão.
É em resposta a ela que as crianças selecionam e articulam os fragmentos
de suas experiências, orientadas pela palavra pátria. Na resposta a ela,
organizam a compreensão da palavra a partir do lugar social que ocupam:
alunos na escola, espectadores nos desfiles, marginalizados no processo de
produção e circulação dos bens culturais na sociedade em que vivem.
Ao prestarmos atenção à linguagem em funcionamento nas interlocuções,
vamos nos dando conta da complexidade da palavra.
Ela é múltipla e diversa, conforme diz o poeta:
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra e te
pergunta, sem interesse pela resposta pobre ou
terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?
(Carlos Drummond de Andrade)
Pela palavra nomeamos o mundo e somos nomeados. Objetos, co-res e
formas, modos de ser, de dizer e de fazer, o que existe e o que poderá existir,
tudo tem nome, tudo pode ser nomeado. Pátria também é
nome. Nome de quê? "Pátria é coisa de soldado", dizem as crianças
("... mil faces secretas...").
Nomeados nos tornamos Ana, João, Marina, Mariana, Beto ou Rafael
pai, filho, irmão, a professora, a "tia", a criança impossível, o herói.
Mas a mesma palavra que serve para nomear, instituir, também serve para negar: "Você não é mais a minha mãe!", resmunga ou grita a
criança contrariada. "Povão não tem pátria", diz Sérgio.
As palavras nos permitem compartilhar experiências, pensamentos, sentimentos, e também ocultá-los, pois é pela palavra que mentimos, que "desconversamos" ("Trouxeste a chave?").
Por elas e com elas agimos com o outro e sobre o outro: apontamos
dirigimos a atenção, pedimos, prometemos, damos ordens, negociamos, discutimos, polemizamos, trapaceamos.
"... mil faces secretas sob a face neutra..."
Por elas e com elas nos aproximamos do outro. Acolhemos sua
palavra, ouvimos e reconhecemos nos seus modos de dizer os fragmentos da realidade a que dirige sua atenção, os modos como apreende a
realidade e como a organiza. Aprendemos.
Por elas e com elas nos opomos ao outro. Recusamos sua palavra.
Lutamos com elas e contra elas. E também aprendemos.
Por entre elas nos perdemos do outro e o buscamos por entre os
caminhos nos quais procura ocultar-se.
Por entre elas e com elas vamos nos apropriando da história ou
sendo colocados à sua margem; vamos nos apossando das crenças, dos
gostos, dos valores, enfim, dos modos de viver, de pensar e de conhecer
do nosso tempo.
No jogo das palavras, construímos a nossa própria identidade, dizemos o mundo e nos dizemos no mundo. "Povão não tem pátria,
dona!" Mas também é pela palavra que interrogamos essa mesma identidade e suspeitamos dela: "Eu, quem eu era? De que lado eu era?"
(João Guimarães Rosa).
Afirmação e negação, encontro e desencontro, verdade e trapaça,
centro e margem. Como as palavras chegam a ser palavras? Como seus
significados e sentidos se produzem e circulam nas interlocuções?
Como elas se tornam parte de nós?
Essas questões são intrigantes e tão grandes quanto o homem. Desde os gregos elas vêm sendo formuladas e discutidas, e rediscutidas, e
novamente formuladas.
Na psicologia, como em outras áreas do conhecimento, essas questões têm sido respondidas de modos diversos.
O que a psicologia nos diz
A linguagem como comportamento
Watson e Skinner consideram a linguagem como comportamento:
o comportamento verbal.
Como todo comportamento, as palavras são respostas aprendidas
por associação e reforçamento. A palavra e seu significado se unem a
partir de relações externas. O elo entre a palavra e seu significado se
forma pela reiterada percepção simultânea de determinado som e de
determinado objeto. Assim, a palavra tem significado conforme remete
ao objeto a que foi associada.
A conexão entre palavra e significado pode fortalecer-se, enfraquecer, ser extinta ou ampliada em razão das contingências reforçadoras
que acompanham as respostas dadas pelo indivíduo. Por exemplo, a
uma criança que já relaciona a palavra fruta ao elemento laranja, podemos ensinar o emprego generalizado dessa palavra, associando-a a outros elementos, como maçã, pêra, mamão, banana, por meio da modelagem de suas respostas. Do mesmo modo, também podemos extinguir
conexões entre palavra e significado consideradas inadequadas pelo
processo de controle das respostas por contingências externas.
Nesse quadro de referências, as palavras sofrem mudanças puramente externas e quantitativas. Elas são associadas a outros elementos e
eventos do meio ou têm parte de suas conexões extinta.
Como as conexões entre palavra e significado são externas (são
objetivas, no dizer dos comportamentalistas), podemos aferir o grau de
correção, de adequação com que a criança utiliza a palavra.
A linguagem como função da inteligência
Segundo Piaget, "a linguagem só é acessível à criança em função
dos progressos de seu pensamento" (1975: 345).
Até os 2 anos de idade, aproximadamente, a linguagem tem um
papel insignificante no desenvolvimento da criança, porque suas formas de agir sobre o mundo e de compreendê-lo são individuais e
construídas no plano da ação imediata. A criança se relaciona com o
mundo e o elabora por meio dos seus sentidos e de seus movimentos
(período sensório-motor).
Da inteligência sensório-motora deriva a função simbólica, que
permite à criança desprender-se do seu contexto imediato. A função
simbólica, vista como possibilidade de representação, é analisada por
Piaget como um processo individual que cria condições para a aquisição e o desenvolvimento da linguagem.
"A função simbólica", afirma Piaget, "é um mecanismo individual
cu
ja existência prévia é necessária para tornar possível [...] a constituição ou aquisição das significações coletivas" (1975: 14).
Nessa afirmação de Piaget, fica evidenciada sua concepção de linguagem. A linguagem integra-se à função simbólica. Ela não é sua causa e sim seu resultado. Ela também é apenas um caso particular das
formas de simbolização.
"A linguagem é certamente um caso particular, especialmente importante, não o nego, mas um caso limitado no conjunto das manifestações da função simbólica" (Piatelli-Palmarini, 1979: 248). Ela diz
res-Peito aos sistemas de signos coletivos que transmitem ao indivíduo
uma
série de conceitos, um sistema pronto de classificações e de relações, que vão
sendo apreendidos e elaborados por ele de acordo com seus esquemas de ação
e de pensamento.
Assim, no processo de aquisição da linguagem, os significados das
palavras não são diretamente incorporados pela criança. As palavras não se
imprimem nela como se se tratasse de uma placa fotográfica. Ela elabora
ativamente as palavras com base em seus esquemas de assimilação,
construindo significados que nem sempre correspondem aos significados
utilizados por nós, adultos.
Se atentarmos, por exemplo, nas definições que as crianças deram de
pátria, na situação descrita no início deste capítulo, vamos perceber que elas
diferem da definição que um adulto em geral lhe dá (pátria = país onde
nascemos), ou da que aparece num dicionário, em que é enfatizado o sentido
genérico de terra natal, país onde nascemos, lugar de origem, nação, além do
sentido afetivo de comunidade moral e histórica. Na fala das crianças, o
sentido da palavra pátria está relacionado a suas experiências anteriores, na
escola e fora dela (desenhos para colorir, classe enfeitada, os desfiles, os
soldados), a suas condições imediatas de vida (falta de moradia, falta de
dinheiro, desemprego) e até mesmo a interesses pessoais projetados na
comemoração escolar (a pa-quera, o feriado).
Essas diferentes formas de entendimento entre crianças e professora,
segundo Piaget, resultam das diferenças qualitativas entre o pensamento
infantil e o pensamento adulto.
Somente o desenvolvimento do pensamento operatório (tratado no
capítulo 4) é que vai possibilitar ao sujeito apreender as relações lógicas, de
abstração (atividade mental por meio da qual identificamos e separamos os
elementos que compõem um todo) e de generalização (processo mental
inverso e complementar da abstração que nos possibilita agrupar vários
objetos singulares de acordo com os caracteres comuns que neles
reconhecemos), contidas nas palavras.
Como no pensamento operatório o conhecimento não se constrói mais a
partir de operações sobre o objeto imediato, e, sim, sobre proposições e
hipóteses enunciadas verbalmente, a palavra torna-se uma condição
necessária, embora não suficiente, do conhecimento lógico-abstrato.
Para termos uma idéia mais clara das relações entre o conhecimento
lógico-abstrato e as palavras, tal como vistas por Piaget, vamos pensar no
processo de elaboração de conhecimento que, ao longo da leitura deste texto,
você está vivendo.
Todas as explicações e suposições elaboradas por Piaget estão sendo
apresentadas a você através de conceitos (assimilação, acomodação,
pensamento operatório, etc). Mesmo quando procuramos exemplificar com
algumas situações o que estamos expondo, é por meio das palavras que o
fazemos. Durante a leitura você não está observando crianças, nem está em
interação direta com elas. Você está elaborando as informações que damos
num plano inteiramente abstrato. Como destaca o próprio Piaget, é difícil
imaginar como se desenvolveriam relações de conhecimento dessa natureza
sem o emprego da palavra. No entanto, a
formalização dessas idéias não se limita à palavra. Para apreender e
laborar de maneira lógica os conceitos que estamos utilizando, seu
iquismo está trabalhando intensamente. Você está realizando várias
operações de pensamento. São essas operações que lhe possibilitam
apreender a lógica do que estamos informando. Ou seja, a lógica depende do modo de pensar construído e não da palavra em si, embora esta
seja uma condição necessária à elaboração desse tipo de conhecimento.
"O progresso da linguagem não traz em si um correspondente
progresso em operações, ao passo que o inverso é uma realidade",
afirma Piaget.
No processo de desenvolvimento psicológico dos indivíduos a palavra passa, então, da condição de um mero apêndice das estruturas de
pensamento para a condição de parte integrante do pensamento abstrato
(Freitag, 1986).
Uma vez que a linguagem segue o desenvolvimento do pensamento
até tornar-se parte dele, as formas como as palavras são usadas e os
significados atribuídos a elas refletem os níveis de desenvolvimento
cognitivo, permitindo-nos considerá-la como um mapa do pensamento.
A linguagem como atividade simbólica constitutiva
Na abordagem histórico-cultural, a palavra não é analisada como
uma das nossas funções simbólicas, mas como nosso sistema simbólico
básico, produzido a partir da necessidade de intercâmbio entre os indivíduos durante o trabalho, atividade especificamente humana. Para agir coletivamente o homem teve que criar um sistema de signos que permitisse
a troca de informações específicas e a ação conjunta sobre o mundo, com
base em significados compartilhados pelos indivíduos (Kohl: 1993).
Vista dessa perspectiva, a linguagem é um produto histórico e
significante da atividade mental dos homens, mobilizada a serviço da
comunicação, do conhecimento e da resolução de problemas.
Não se trata de algo que se acrescenta às representações, ações e
desenvolvimento individuais, como considera Piaget. Ela é constitutiva
(é a base) da atividade mental humana, sendo, ao mesmo tempo, um
processo pessoal e social: tem origem e se realiza nas relações entre
indivíduos organizados socialmente, é meio de comunicação entre eles,
mas também constitui a reflexão, a compreensão e a elaboração das
próprias experiências e da consciência de si mesmo.
Como produção cultural humana, a palavra não se desenvolve em
n
ós naturalmente. É nas nossas relações com o outro, nas nossas
interações, que ela vai sendo incorporada a nossas funções biológicas, a
nossos modos de perceber e de organizar (conhecer) o mundo.
Nascida num mundo humano repleto de símbolos e de signos, a
criança, desde seus primeiros momentos de vida, está mergulhada em
u
m sistema de significações sociais. Os adultos procuram ativamente
fazer com que a criança incorpore os significados, objetos e modos de
a
gir criados pelas gerações precedentes.
Imagery
Mesmo sabendo que a criança ainda
não a entende, a mãe fala com ela
?fl
BI- "envolvendo-a em um colo de palavras
ternas e quentes", observa poeticamente
Giani Rodari, jornalista e educador
italiano. A mãe fala à criança dando
significado a seus movimentos choros e
P
risos.
-1
^*'*
'
J
Pela palavra da mãe, o choro transforma-se em chamado, e o movimento
frustrado de agarrar, inscrito no ar pelas
mãos de um bebê voltadas para um
objeto qualquer, transforma-se em gesto
de apontar. A mãe, observando as
tentativas da criança para agarrar o objeto, A criança ainda
entrega-o a ela,
interpretando seu movimento: "Ela quer esta bola". não entende, mas
Nesse
momento um significado é atribuído pela mãe ao movimento do " "T ela
bebê,
transformando-o em gesto. A transformação do movimento em apresentando-ihe
gesto produzida pelas pessoas que cercam a criança vai sendo incorpo-o mundo.
rada
por ela ao longo de experiências semelhantes. Nesse processo, a ^mmmmmmmmt
criança passa a utilizar o movimento de pegar não mais como uma tentativa de agarrar o
objeto, mas como um gesto dirigido às pessoas que a cercam. O movimento de agarrar
suaviza-se e tem agora outro significado, "Quero aquela bola", e outro destinatário, o
adulto.
É pela interpretação e nomeação feitas pelo outro
que os movimentos do corpo convertem-se em gestos,
apuram-se e tornam-se mais complexos. Os
movimentos transformados em gestos são meios de
comunicação, modos de manifestar e apreender desejos, intenções, emoções, informações, formas de
direcionar e controlar (reciprocamente) os comportamentos dos sujeitos envolvidos na interação. Pela
imitação, pela repetição, no ritual das relações sociais
cotidianas, a criança aprende a dizer o que quer e a
entender o outro pelo gesto.
O mesmo acontece com o balbucio, que se
transforma em esboço de fala. E a mãe ou alguém mais
velho do que a criança e em interação com ela que
atribui inicialmente significados a eles.
O universo da linguagem chega à criança mediado
pelos outros membros de seu grupo social. A mãe fala
A criança aprende a dizer o que quer e a à criança nomeando o mundo. Ela nomeia, aponta,
entender o outro pelo gesto. compartilha significados com a criança. Nessas
relações, o mundo vai-se povoando de objetos, de
cores e de formas, de gente diversa, com nomes e modos de ser, de
84
Ef
povoa-se de palavras, pois tudo o que se percebe, tudo o que se sente,
dizer e de fazer também diversos. O mundo
tudo o que se faz, tudo o que se é e também o que não se é, tudo o que se
deseja e imagina, tem nome, pode ter nome, é dito, pode ser dito...
Nesse sentido, a linguagem não é algo estranho à criança que ainda não fala. Seu desenvolvimento não depende apenas de fatores intrínsecos à criança ou de seus modos de ação sobre o objeto. Depende
das possibilidades que essa criança tem (ou não), nas suas relações
sociais, de se aproximar, de compartilhar e de elaborar os conteúdos e
as formas de organização do conhecimento histórica e culturalmente
desenvolvidos e materializados nas palavras.
A elaboração do mundo tem como intermediário o outro. Por sua
mediação, revestida de gestos, atos e palavras, vamos nos integrando à
cultura, vamos aprendendo a ser humanos. Pela palavra do outro, por
sua presença, pelo seu reconhecimento e encorajamento a cada pequeno
evento que indica nossa progressiva humanização, nos reconhecemos.
Somos nomeados e nomeamos...
A palavra, portanto, não é apenas adquirida por nós no curso do
desenvolvimento. Ela nos constitui e nos transforma. Com suas funções designativa e conceituai, a palavra é mediadora de todo nosso
processo de elaboração do mundo e de nós mesmos. Ela objetiva esse
processo, integra-o e direciona a atividade mental por nós desenvolvida. "O desenvolvimento intelectual da criança", diz Vygotsky, expressando um ponto de vista contrário ao defendido por Piaget, "depende
do seu domínio dos meios sociais de pensamento, ou seja, da linguagem" (1979: 73).
Nesse processo, palavra e pensamento fundem-se. Uma palavra
sem significado é um som vazio, afirma Vygotsky, da mesma forma que
um pensamento que não se materializa em palavras se perde. A palavra
não é apenas expressão ou comunicação do pensamento.- Ela é um ato
de pensamento. E por meio das palavras que o pensamento passa a existir. Nas palavras ele encontra sua realidade e sua forma. "Esqueci a palavra que pretendia dizer, e meu pensamento, privado de sua substância,
volta ao reino das sombras", reflete Vygotsky, citando o poeta russo
Mandelshtam.
Não se trata, portanto, de vestir as palavras com o pensamento,
considera Vygotsky, nem de vestir o pensamento com palavras. Pensamento e palavra se articulam dinamicamente na prática social da
linguagem.
Nesse sentido, as palavras não são formas isoladas e imutáveis.
Elas são produzidas na dinâmica social, seus significados não são estáticos. Uma palavra que nasce para designar um conceito vai sofrendo
modificações, vai sendo reelaborada no jogo das práticas e das forças
sociais.
Por exemplo, a palavra cultura (do latim colere, "cultivar") inicialmente estava ligada às práticas agrícolas, significando o cuidado com
Plantas e animais. Pensadores romanos ampliaram esse significado,
passando a palavra a designar também o cultivo pessoal, o refinamento
dos costumes, a educação elaborada de uma pessoa. Na Idade Moderna,
com novas experiências incorporadas ao seu significado, a palavra cultura passou a designar tanto uma classificação geral das artes, da religião, dos valores de uma sociedade como a idéia de civilização ou, ainda, a totalidade da vida social dos povos, englobando suas práticas materiais e simbólicas.
De modo similar ao que acontece na história social, o significado
das palavras e das relações e generalizações nelas contidas também se
transforma no processo de desenvolvimento das crianças.
"Quando uma palavra nova é aprendida por uma criança, o seu desenvolvimento mal começou...", destaca Vygotsky (1987: 71). Acompanhar esse desenvolvimento foi uma tarefa fascinante a que Vygotsky,
tal como Piaget, também se propôs.
Enquanto Piaget procurou mapear o desenvolvimento do pensamento por meio da linguagem, descrevendo minuciosamente o papel
desempenhado pela palavra em cada um dos estágios da formação do
pensamento lógico, Vygotsky procurou retratar o movimento de articulação entre palavra e pensamento nas situações e tarefas com que as
crianças defrontam nas suas relações sociais.
A relação entre o pensamento e a palavra, analisa Vygotsky, "não é
uma coisa mas um processo, um movimento contínuo de vaivém do
pensamento para a palavra, e vice-versa. Nesse processo, a relação entre o pensamento e a palavra passa por transformações..." (1987: 104).
No capítulo seguinte, vamos tratar das relações entre pensamento
e linguagem ao longo do desenvolvimento da criança.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Releia o texto considerando as relações entre pensamento e linguagem
vistas por Piaget e por Vygotsky. Reflita sobre as seguintes questões:
• Como a linguagem é concebida por eles?
. Que funções da palavra são enfatizadas em seus trabalhos?
• De que modo cada um deles explica o desenvolvimento da palavra
nos indivíduos?
Refletindo sobre as informações do texto
Segundo Piaget, a linguagem reflete o pensamento. A partir da concepção de Vygotsky, essa relação é verdadeira ou não? Justifique sua
resposta com base nos dados do texto.
Exercitando a análise
Você conhece o livro Palavras, palavrinhas e palavrões, de Ana
Maria Machado (Editora Codecri)? Nele, essa escritora brasileira, autora
de fascinantes obras de literatura infantil, conta, com muita sensibilidade
e humor, a história de uma menina que gostava muito de palavras e
estava sempre querendo aprender palavras novas...
Leia o livro e escreva um comentário sobre ele, tendo em vista as
seguintes questões:
• Como as crianças se relacionam com as palavras?
• Como os adultos participam dessas relações?
Trabalho de campo
Após a leitura do livro de Ana Maria Machado, comece a escutar
com atenção falas de crianças, observando seus modos de dizer. Nos
seüs
estágios, nas suas relações familiares, em contato com a
vizinhan-?a> aproxime-se das crianças, ouça-as e converse com elas.
Registre ;sses momentos, anotando a situação em que a interlocução (a
relação er°al) aconteceu, quais as pessoas envolvidas e as falas de cada
uma j^as. Não se esqueça de registrar as idades das crianças e as datas
das observações.
Sugestão de leituras
Vamos apurar nossa sensibilidade e nossa relação com a palavra
Só assim poderemos entrar em sintonia com a palavra da criança, com
seu aparente nonsense. Para isso vamos ler, ler muito... Poesias (Drummond, Cecília Meireles, Mário Quintana, Fernando Pessoa, etc), contos, romances, novelas, crônicas (Clarice Lispector, Drummond, Mário
de Andrade, Machado de Assis, Graciliano Ramos, etc), literatura infantil (Ana Maria Machado, Sylvia Orthof, Lygia Bojunga Nunes,
Bar-tolomeu de Queiroz, etc).
O humor nos mostra especialmente a ambigüidade da palavra. Fique atento aos quadrinhos e charges dos jornais. Leia, entre outras, produções como as de Quino (Toda Mafalda. Lisboa, Edições D. Quixote,
1978), Ziraldo (As anedotinhas do bichinho da maçã, Ed. Melhoramentos), Eva Furnari, a criadora da Bruxinha.
Para ajustar a sensibilidade aos modos de ser e de dizer da criança e
à sua fantasia, leia A gramática da fantasia, de Giani Rodari (Editorial
Summus), e a maravilhosa História sem fim, de Michael Ende (Editora
Martins Fontes), que também foi filmada e existe disponível em vídeo
(o filme tem o mesmo título do livro).
Capítulo 8
A criança e a palavra
Como a criança elabora a palavra ao longo de seu desenvolvimento?
Tanto Piaget quanto Vygotsky consideram que os modos de elaboração da palavra não permanecem imutáveis ao longo do desenvolvimento infantil.
Sendo a linguagem para Piaget uma função do pensamento, seu
trabalho trata das formas que ela assume e do papel que ela desempenha
em cada um dos estágios do desenvolvimento do pensamento lógico. A
fala da criança é, assim, enfocada a partir do processo do pensamento.
Para^Vygotsky, a palavra e o pensamento articulam-se na atividade
de compreensão e comunicação envolvida nas relações sociais. O foco
da análise é, então, colocado no processo como um todo, interessando
apreender as atividades intelectuais envolvidas, os modos como a palavra dirige essas atividades e as condições de interação em que elas vão
sendo produzidas.
Piaget e o papel da linguagem no desenvolvimento do
pensamento lógico: do símbolo individual aos conceitos
Até os 2 anos aproximadamente, a criança passa por uma série de
transformações que a dotam dos pré-requisitos para a aquisição e elaboração da linguagem.
Nesse período, o desenvolvimento da criança passa do nível
neonatal, marcado pelo funcionamento dos reflexos, para o de uma organização perceptiva e motora dos fenômenos do meio. A consciência
Que a criança tem do meio externo se expande lentamente, tornando-se 0
e
u e o mundo progressivamente diferenciados.
E no curso dessas relações que a permanência dos objetos vai sendo construída pela criança. O brinquedo, que ao ser retirado da criança
de
ixava de existir para ela, passa a ser procurado. A criança começa a
perceber que os objetos, as pessoas, continuam existindo mesmo quando estão fora do seu campo de visão. Formam-se as primeiras imagens
mentais dos objetos ausentes do meio imediato, as quais possibilitam o
desenvolvimento da função simbólica, mecanismo comum aos diferentes sistemas de representação (j°g°> imitação, imagens interiores, sim.
bolização, linguagem verbal).
O desenvolvimento da função simbólica
Com o desenvolvimento da função simbólica, a partir do segundo
ano de vida, o eu e o mundo da criança reorganizam-se num novo plano: o plano representativo.
A criança reproduz, imita por meio de gestos ou de sons
(onomatopéias) o comportamento de um modelo ausente. Ela representa simbolicamente um objeto por outro no jogo do faz-de-conta.
Empregando uma imagem mental, um símbolo, a criança relembra
fatos, objetos, pessoas, acontecimentos que ocorreram em outras ocasiões. O espaço e o tempo dilatam-se. O desenvolvimento da função simbólica exime-a de agir somente em situações do meio imediato. Ela passa
a se relacionar com ações ou fatos sem praticá-los efetivamente. Pela representação mental do mundo externo e de suas próprias ações, a criança
os interioriza. Ela começa a distinguir significantes (imagens que representam fatos, pessoas ou objetos) e significados (fatos, objetos ou pessoas ausentes à percepção imediata, aos quais as imagens se referem).
O desenvolvimento da representação cria as condições para a aquisição da linguagem. A capacidade de construir símbolos, desenvolvida
na representação, possibilita a aquisição das significações coletivas (a
linguagem social). As palavras da linguagem social, que vão sendo adquiridas pela criança, passam a acompanhar as imagens mentais e os
símbolos que ela utiliza inicialmente.
As relações da criança com as palavras se processam gradualmente, da mesma forma que a passagem da ação motora para a ação
interiorizada.
A criança não consegue de imediato utilizar as palavras em toda a
sua complexidade lógica. Ela utiliza a linguagem de forma imitativa,
simbólica e pré-conceitual.
Vejamos como isso acontece.
Os primeiros esquemas verbais
As primeiras palavras usadas pela criança reúnem sob uma mesma
denominação vários objetos e situações que a interessam ou que fazem
parte de sua experiência. Ela pode, por exemplo, usar uma onomatopéia
clássica, como bruuuuu, para designar o carro que passa pela rua, qualquer meio de transporte que apareça em sua frente, pessoas ou animais
que se movimentam na rua, brinquedos que se movimentam, assim
como para manifestar o desejo de andar de carro, etc. O mesmo pode
acontecer com a palavra mama, utilizada para designar a própria mãe,
roupas da mãe no armário, qualquer mulher acompanhada de uma
•riança, ou mesmo para externar o desejo que sente de algo.
Essas primeiras palavras, que Piaget chama de primeiros esquemas
verbais, têm um forte caráter imitativo (elas são onomatopéias ou imitação de palavras usadas na linguagem adulta) e não têm um significado
fixo (seu significado oscila, conforme as situações com que a criança
defronta).
Tais características, segundo Piaget, são indicadores do tipo de
pensamento dominante na criança nesse período, o pensamento
sin-crético. Ela agrupa vários acontecimentos e objetos numa mesma
designação, independentemente das relações lógicas existentes entre
eles. Para formar esses agrupamentos, ela leva em consideração apenas
seu próprio ponto de vista, suas experiências.
Assim, a criança pode reunir na expressão bó
tanto a bola quanto um cubo com o qual ela brinca
ou o tapete da sala onde ela brinca com a bola,
sendo o elo entre os significantes apenas sua experiência pessoal em relação a eles.
A criança, nessa fase, também não considera
simultaneamente as múltiplas dimensões de um
objeto ou de um acontecimento. Aspectos particulares são tomados pelo todo, enquanto dimensões
relevantes são esquecidas ou negligenciadas, do
mesmo modo que cada aspecto ou dimensão específica dos objetos ou
dos fatos é enfocada separadamente. Por exemplo, a criança pode
utilizar a mesma designação para um cachorrinho de pelúcia com
olhos de vidro verdes e para o botão redondo e verde de uma roupa.
De posse desses primeiros esquemas verbais, ela aprende
rapidamente a falar palavras-frases, como Papá (Quero comer, Vou
comer), frases de duas palavras, como Nenê dá (para pedir algo), e
frases completas, que, inicialmente, são ordens ou expressões de desejo, enunciando uma ação possível, ligada ao ato imediato e presente.
Dessas frases, a criança passa para a construção de representações
verbais, evocando e reconstituindo acontecimentos não mais ligados ao
ato imediato. Por exemplo, ela enumera, para si mesma ou para uma
outra pessoa, coisas que viu ou utilizou para brincar, os alimentos que
consumiu numa das refeições, algum tempo depois de ter vivido tais
situações. Ela conta fatos vividos ou presenciados por ela, como um
gafanhoto pulando no jardim (Fanhoto, fanhoto sal-tar-.) ou a saída da
tia (Ti Madena no automove, parti no automove), como exemplifica
Piaget.
A construção das primeiras representações verbais se dá por meio
da
"arrativa. Na narrativa, a linguagem deixa de acompanhar simples-
Os primeiros
esquemas verbais
não têm um
significado fixo,
oscilando
conforme a
situação vivida.
91
A narrativa
torna-se um
recurso de
comunicação
para a criança.
mente o ato para reconstituir uma ação passada. A palavra deixa de ser parte
do ato para tornar-se um signo, uma evocação do ato, passando a ter a função
de representação (no sentido de nova apresentação) e também de comunicação
— a criança dirige essas narrativas a si mesma ou a outra pessoa.
Da narrativa, a criança passa para a descrição, que é nas palavras de
Piaget, "umà narrativa que se
prolonga até atualizar-se". Na
descrição, a palavra acompanha a
ação em curso, mas não faz parte
dela, como na linguagem inicial. A
palavra descreve, reapresenta o que
foi percebido na situação; não mais
enuncia ações possíveis, mas
denomina os elementos envolvidos
na situação. A criança nomeia, para
si mesma ou para outras pessoas,
objetos ou pessoas que a cercam
{boneco, pedra, gato, papai,
mamãe, vovó), partes desses objetos
ou dessas pessoas (nariz, boca, etc), ações, etc.
Piaget destaca como indicador relevante das transformações da relação
da criança com a palavra o aparecimento da pergunta O que é?, que se
relaciona ao mesmo tempo com o nome de objetos ou pessoas particulares e
com o conceito ou a classe do objeto designado (isto é, o conjunto composto
por todos os elementos referidos pela palavra).
A nomeação, nessa fase, oscila entre a generalidade (conceito) e a
individualidade. Piaget relata um episódio envolvendo sua filha mais velha,
Jacqueline, quando tinha 3 anos e 2 meses.
Ao cruzar com um homem na rua, a criança pergunta ao pai:
— "Este senhor é um papai?"
— "Que é que é um papai? "
Jacqueline responde:
— "É um senhor. Ele tem muitas Luciennes (nome de sua irmã mais
nova) e muitas Jacquelines. "
— "Que é que são Luciennes?"
— "São meninas pequenas e as Jacquelines são meninas
grandes."
(Episódio extraído do livro A formação do símbolo na criança. p.
289.)
Ao nomear o senhor como "um papai", a criança o inclui em uma
Q2
classe genérica — a classe dos pais, composta por homens que têm fi____ lhos. No entanto, ao explicitar o conceito de pai, define-o a partir da sua
«xperiênda particular: "um senhor que tem Luciennes e Jacquelines". \
classe, analisa Piaget, é uma espécie de indivíduo-tipo que se repete
em vários exemplares.
Do mesmo modo, o indivíduo particular, convertido em indivíduotipo, tem menos individualidade. Isso se evidencia na maneira como
Jacqueline define "o que são Luciennes". Ela não enfatiza a singulari
dade da própria irmã, nem a relação particular de parentesco que as liga.
Ela refere-se à irmã como um exemplo típico de uma categoria genérica
_ a das meninas pequenas.
O mesmo acontece no episódio a seguir.
Rafael, 3 anos, ao ganhar do pai a camiseta da Seleção Brasileira de Futebol, exclama: "Oba, pai! O Romário!".
E, ao encontrar na escola várias crianças com a camiseta da
seleção, comenta com a mãe: "Viu quanto Romário?".
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)
A criança pensa por imagens, e são as imagens que marcam a significação que ela atribui às palavras. O nome do indivíduo-tipo — um jogador específico — é utilizado por ela para denominar um grupo de
jogadores e as camisetas utilizadas por eles.
Como a criança generaliza com base na percepção imediata de semelhanças e não a partir de considerações lógicas ou relacionais, suas
categorias oscilam entre a generalização e a individualização.
Os ensaios de generalização e individualização também aparecem
em relaÇão às estruturas da língua.
Beto, aos 5 anos, utiliza a expressão "tavo" por estava, em
frases como "Eu tavo com fome ", "Eu tavo com sono ", em que ele
próprio é o sujeito. Corrigido pela mãe, ele resiste: "Não, mãe. Eu
sou menino. Menina é que fala tava".
Regina, 7 anos, ao aprender na escola a classificação das palavras segundo o gênero, pergunta à mãe ao fazer um exercício
escolar: "Mamãe, eu sou feminina porque sou menina, e mamãe...
éfemulher?"
(Episódios extraídos da experiência familiar de uma das autoras.)
A criança também considera expressões relacionais, como mais
escuro ou maior, como atributos absolutos e não comparativos. Assim,
Para ela mais escuro significa "muito escuro", do mesmo modo que
maior significa "muito grande".
O caráter imitativo e sincrético das primeiras palavras da criança, a
nao-generalização e a não-individualidade das primeiras representações verbais estão mais próximos dos símbolos individuais do que dos
c
°nceitos utilizados na linguagem adulta. Daí Piaget considerar os mo-0s
de elaboração da palavra pela criança como pré-conceitos.
O desenvolvimento da elaboração conceituai das palavras
Nós, adultos, utilizamos a linguagem conceitualmente. Os conceitos supõem uma definição fixa, que depende de uma convenção social
estável. Ou seja, nossas palavras não se restringem a designar determinado objeto ou acontecimento. Aplicando-se a um conjunto de elementos da realidade, elas generalizam a informação sobre o objeto,
incluin-do-o em uma categoria.
Como essa generalização se baseia numa correspondência lógica
ela não muda ao sabor das situações. Os traços comuns definidores de
uma categoria de objetos tornam-se estáveis. O caráter generalizante e
estável da palavra nos possibilita transmitir o pensamento a outra pessoa e sermos por ela compreendidos, bem como considerar o ponto de
vista do outro e sua experiência.
Por exemplo, ao dizer a palavra relógio, não temos em mente apet nas determinado relógio, e sim um tipo, uma categoria de objetos a que
essa palavra se aplica. Do mesmo modo, aqueles que nos escutam não
têm em mente um relógio específico, e sim esse tipo de objeto, que é o
que lhes permite compreender o sentido generalizante dessa palavra.
Entre os significados das palavras que utilizamos, há graus de
generalização distintos, que nos permitem estabelecer relações lógicas
entre os objetos e eventos do meio, incluindo uma categoria em outra.
Podemos nos referir, por exemplo, ao cachorro que temos em casa
como bassê, animal doméstico, ser vivo. Ao utilizarmos tais palavras,
estamos incluindo o objeto dado — o cachorro — em um sistema de
categorias, hierarquicamente organizadas, de contraposições abstratas:
um cão bassê não é um buldogue, nem um cachorro vira-lata; um
cachorro, como alguns outros animais, é um animal doméstico, em
oposição a outros animais que são selvagens; como animal, o cachorro
é um ser vivo e não um ser inanimado, etc. As expressões bassê,
animal doméstico e ser vivo mantêm entre si relações lógico-verbais
que independem das características particulares de cada objeto ou
evento em si.
vivo----------- inanimado
animal
animal
doméstico
vegetal
animal
selvagem
cachorro
bassê
"Roy"
ovelheiro
"Chiquinho"
A ausência de critérios lógicos na elaboração conceituai na criança
está exemplificada na situação de sala de aula que descrevemos e analisamos no capítulo 7. Naquela situação, observamos como as crianças
construíam o significado da palavra pátria: a partir das suas experiências e das imagens delas resultantes, sem considerar elementos logicamente pertinentes ao conceito estabelecido. Vimos também como esses
elementos flutuavam ao sabor da experiência pessoal imediata a que
eram relacionados. Por exemplo, o soldado é o elemento que define a
palavra pátria em razão de sua presença nos desfiles de 7 de Setembro
ou dos desenhos feitos na escola.
O desenvolvimento da capacidade de apreender conceitualmente a
linguagem social depende do desenvolvimento das operações de pensamento, considera Piaget. As operações são ações interiorizadas que visam à explicação e à constatação. Nelas, as ações são coordenadas e
reversíveis (conforme vimos no capítulo 4).
Inicialmente, as operações desenvolvem-se em relação a situações
imediatas. A criança ainda necessita do suporte perceptivo para apreender as relações lógicas, para considerar as relações de inclusão entre
parte e todo (classificação), para apreender outros pontos de vista além
da própria experiência individual (descentração). Ela elabora generalizações a partir de exemplos concretos.
As características dos modos de pensar da criança nesse período
não derivam das categorias lógicas da linguagem. A linguagem facilita,
segundo Piaget, a generalização do pensamento, mas não é sua fonte.
Piaget relata que diversos estudos possibilitaram perceber que as
crianças resolvem vários problemas, embora tenham dificuldade para
explicar verbalmente o raciocínio que lhes permite chegar à solução, ou
seja, elas não conseguem transpor em palavras toda a atividade mental
que já sabem colocar em atos.
Somente na adolescência, o indivíduo torna-se dotado do raciocínio dedutivo-hipotético, que lhe permite fazer considerações e raciocinar apenas no plano representativo, atingindo plenamente o pensamento operatório. Nesse estágio, no qual as operações não se constróem mais sobre os objetos, sobre as situações imediatas, mas sobre
proposições, a linguagem torna-se uma condição necessária do pensamento, passando a fazer parte dele. É nessa fase que os indivíduos tornam-se capazes de apreender conceitualmente a linguagem social.
Vygotsky e a elaboração conceituai —
o desenvolvimento do significado da palavra na criança
Diferentemente de Piaget, Vygotsky considera que a elaboração
conceituai pela palavra, desenvolvida culturalmente pelos indivíduos
c
°mo forma de refletirem cognitivamente suas experiências, não ocorre
naturalmente na criança. Ela começa nas fases mais precoces da
infân-Cla> por meio do emprego da função mais simples da palavra —
a no-
A palavra
desenvolve-se
gradualmente na
criança, desde os
seus primeiros
meses de vida.
meação —, e seu desenvolvimento depende das possibilidades que cada
indivíduo tem (ou não) de compartilhar e elaborar em suas interações os
conteúdos e as formas de organização dos conceitos.
As primeiras palavras
Segundo pesquisas conduzidas por vários psicólogos e apresentadas por Luria no livro Pensamento e linguagem (1987: capítulo 3), a função
denotativa (função de nomeação) da palavra desenvolve-se gradualmente na criança desde seus
primeiros meses de vida, entrelaçada com fatores
não-verbais.
Pouco a pouco, a criança responde ao que os
adultos dizem a ela voltando o olhar para os objetos
nomeados ou tentando alcançá-los. Inicialmente o
significado da palavra depende da situação em que a
criança se encontra ao ouvi-la, da pessoa que a
pronuncia, da entonação de voz utilizada, do emprego (ou não) de gestos, etc. Gradualmente, cada
um desses fatores situacionais enumerados vai deixando de ter influência decisiva na compreensão da
palavra. Por volta dos 3 anos de idade, ela reage de
modo seletivo ao objeto nomeado, independentemente da situação. O mesmo processo acontece
quanto à utilização da palavra. Diferentemente dos primeiros sons que
a criança emite, que são manifestações de seu estado emocional, suas
primeiras palavras são tentativas de reprodução dos sons assimilados da
fala do adulto. Essas primeiras palavras estão fortemente vinculadas à
atividade em que a criança está envolvida. Seu significado é difuso, uma
vez que seu referente (o objeto ou a pessoa que a palavra nomeia) muda
conforme a situação em que elas são pronunciadas.
96
Rafael, aos 8 meses, utilizava a expressão bá, para nomear o
irmão (Beto), a mãe e o pai sempre que estes se aproximavam dele,
e também para chamá-los quando estavam distantes, mas dentro de
seu campo visual. A expressão bá, acompanhada do gesto de apontar, era utilizada também com a finalidade de indicar, para qualquer
pessoa, algum objeto que ele desejava que alcançassem para ele.
Gradativamente, Rafael passou a utilizar a expressão bá apenas para referir-se ao irmão. Bá se diferenciou de mã e pá, que ele
começou a empregar para designar o pai e a mãe (e há que se destacar, nesse caso, a persistência do irmão em ensinar Rafael a dizer
as palavras mamãe e papai). Depois, novas palavras passaram a
indicar aquilo que ele desejava, até que, quando Rafael chegou aos
3 anos, o próprio irmão deixou de ser bá, passando a ser Beto.
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)
A função designativa da palavra, por mais simples que pareça, é
produto de um longo desenvolvimento. Inicialmente, a palavra está vinculada à situação em que é ouvida e utilizada. Ela passa a ter uma referência estável, embora conserve ainda sua ligação com a ação prática, somente quando a criança atinge mais ou menos os 3 anos (Luria: 1987).
A elaboração das funções analítica e generalizadora da
palavra
Quando a palavra adquire uma referência estável, o desenvolvimento de seu significado ainda não está concluído. Embora sua função
designadora pareça ser constante e a mesma para um adulto e uma
criança, permitindo que ambos se comuniquem, suas funções analítica
e generalizadora sofrem profundas transformações à medida que o indivíduo avança no domínio das operações intelectuais culturalmente desenvolvidas.
Vejamos uma situação que nos ajuda a perceber essas diferenças de
elaboração.
Voltando da escola, a mãe conversava com Eduardo, seu filho
de 3 anos.
Mãe: Quando a gente chegar em casa, vamos brincar?!
Filho (emburrado): Não quero... Mãe: Ah..., vamos jogar
bingo! Filho: Não quero! ' Mãe: Ih, bobinho. Bingo é uma
delícia! Filho (olhando espantado para a mãe): É de
comer?
(Episódio narrado pela mãe a uma das autoras.)
O adjetivo delícia, utilizado pela
mãe, tem uma referência
estável tanto para ela quanto
para a criança: ambos revelam,
na interlo-cução, que aplicam
esse
qualificativo
a
determinados tipos de situação
da realidade. E possível
perceber também, na dinâmica
enunciativa, que °s dois
elaboram a palavra delícia de
forma generali-zante: para a
mãe, delícia é Urn qualificativo
que se aplica a coisas ou
situações
que
produzem
deleite; para a criança, delícia é Urn qualificativo que se aplica a
alimentos gostosos. A diferença está no grau de generalização que a
palavra tem para cada um dos mterlocutores: mais amplo para a mãe e
mais restrito para a criança.
Em um diálogo,
mãe e filho
expressam
diferentes graus de
generalização de
uma mesma
palavra.
Como destaca Vygotsky, o conceito ligado a uma palavra sempre
representa um ato de generalização, qualquer que seja a idade da pessoa. Mas
essa generalização se amplia à medida que os contextos vão sendo
diversificados e as funções intelectuais complexas, como a abstração e a
generalização, vão sendo elaboradas e consolidadas. Nesse sentido, diz-nos
Vygotsky, "quando uma palavra nova é aprendida pela criança, o seu
desenvolvimento mal começou" (1987: 71).
Gustavo, de 6 anos, era o garoto menor da turma de futebol da rua.
Apesar da diferença de idade, os garotos de 8 a 10 anos o aceitavam,
porque era bom de bola e se enquadrava às exigências da turma: não
reclamava e esperava sua vez de jogar.
Um dia, ele contou para a mãe a grande dificuldade por que
passara para descobrir o significado de uma palavra muito utilizada
pelos meninos durante o jogo. A palavra era frangueiro. Ela lhe causava
estranheza porque ele a associava apenas a frangos ("Eu pensava que
era o lugar de vender frango"), e não ao futebol. Ele não podia
perguntar aos meninos o que eles queriam dizer com aquela palavra,
pois seria alvo de gozações.
Assim, decidiu ficar atento às situações do jogo para tentar
entender em que momentos a palavra era usada. O que acontecia
durante as jogadas para que alguém a pronunciasse?
Depois de observar por vários dias, Gustavo chegou à conclusão de
que a palavra estava relacionada ao goleiro que deixava passar a bola e,
na primeira oportunidade que teve, berrou: "Frangueiro! ".
— Daí, mãe, eu vi que eu tinha aprendido. Sabe por quê? Porque
eles viraram pra mim e disseram "Aí, Gutão! ".
(Episódio lembrado e relatado por Esteia, mãe de Guto, a uma das
autoras.)
No processo de elaboração do significado, o indivíduo explora o material
sensorial e opera intelectualmente sobre ele, orientado pela palavra em
funcionamento nas interações. A palavra aprendida, frangueiro, suscita
imagens (frango) e associações (lugar de vender frango) das quais a criança
lança mão para apreender seu sentido. Como o contexto não comporta essas
primeiras tentativas de significação, a palavra passa a dirigir as observações da
criança, que centra ativamente sua atenção nas situações do jogo e nas
enunciações nele envolvidas.
As situações não revelam por si mesmas os possíveis significados da
palavra frangueiro. É preciso analisá-las, compará-las. O que diferencia as
situações em que a palavra é empregada daquelas em que não é? Qual a
semelhança entre todas as situações em que a palavra é utilizada? Nesse
processo de observação e análise, algumas peculiaridades se fazem notar:
frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro, e não a outros jogadores;
frangueiro é uma palavra dirigida ao goleiro em determinadas situações, e não
em outras. A criança analisa e generaliza,
começando a ter uma idéia vaga do significado da palavra. Sente necessidade de usá-la, e, ao fazê-lo, o grupo confirma a adequação do significado esboçado, fortalecendo-o. A palavra agora lhe pertence: "Daí,
mãe, eu vi que eu tinha aprendido".
Funções intelectuais básicas — atenção, formação de imagens, associação, comparação, inferências — participam da elaboração do significado da palavra, associadas a ela. A palavra funciona como meio
para centrar ativamente a atenção, para abstrair e selecionar os traços
relevantes na situação considerada (análise), para estabelecer relações
entre esses traços e sintetizá-los (generalização).
Por pressupor a articulação entre funções intelectuais complexas,
como a generalização e a análise, que não podem ser dominadas na
aprendizagem inicial, o processo de elaboração conceituai
desenvolve-se na infância por meio do pensamento por complexos e
dos conceitos potenciais.
O pensamento por complexos e os conceitos potenciais
O pensamento por complexos cria as bases para a generalização.
Nesse tipo de pensamento a criança busca estabelecer relações entre os
elementos da realidade, unificar impressões dispersas. Por exemplo, ela
pode definir a palavra supermercado como o lugar onde a mãe compra
doces, bolachas, iogurte, sucos. Nesse caso, a palavra é elaborada com
base no sentido afetivo que o supermercado tem para a criança. Ela também pode definir a palavra como um lugar grande e movimentado aonde vai com os pais para fazer compras. Nessa situação, a palavra supermercado é elaborada com base na imagem direta do supermercado concreto e na situação real de compra.
No pensamento por complexos, a palavra evoca e agrupa uma série
de elementos e situações da realidade não apenas em razão das impressões subjetivas da criança, mas também das relações que de fato existem entre esses elementos nos seus contextos de uso (os supermercados
são realmente lugares de compra, onde doces, bolachas, iogurte e sucos
são encontrados).
Segundo Vygotsky, a diferença principal entre um pensamento por
complexos e um conceito está no tipo de relação que une os elementos
numa palavra. No pensamento por complexos as relações estabelecidas
são concretas, factuais e tão diversas quanto os contatos e as relações
que de fato existem entre os elementos da realidade. Diferentemente, o
conceito ancora-se em relações lógicas, cujo grau de generalização ultrapassa as relações imediatas.
Voltando ao exemplo do supermercado, ao procurarmos no dicionário essa palavra, encontramos uma definição como esta: "Loja de
a
uto-serviço, onde em ampla área se expõe à venda grande variedade de
"mercadorias, particularmente gêneros alimentícios, bebidas, artigos de
limpeza doméstica e perfumaria popular" (Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Nova Fronteira: Rio
de Janeiro, 1986). A definição conceituai da palavra supermercado
comporta o complexo elaborado pela criança, mas o ultrapassa em muito. Ela remete a um tipo de sistema de compra (auto-serviço), que é
parte de um sistema social de troca (o comércio), que é parte de um
sistema econômico (modo socialmente organizado de produção e distribuição). Na elaboração conceituai da palavra, as relações imediatas e
parciais integram-se e subordinam-se a relações lógico-verbais, que
abarcam muito mais elementos da palavra, generalizando-a.
Embora a busca de ligações seja o traço distintivo do pensamento
por complexos, para chegar a elas a criança dá seus primeiros passos na
análise: ela destaca alguns elementos na totalidade da experiência com
base no grau máximo de semelhança entre eles. Ela isola essa semelhança, tomando-a como atributo para definir a palavra.
No caso da palavra supermercado, por exemplo, um traço distintivo que costuma aparecer nas elaborações das crianças é a função social
de lugar de compra, ainda que por trás dessa idéia estejam relações
afetivas e a imagem imediata do próprio supermercado.
Podemos encontrar outro exemplo desse processo de elaboração
conceituai na situação de sala de aula descrita no início do capítulo 7.
Ao definirem pátria como "coisa de soldado", as crianças elaboram um
pensamento por complexos com base em elementos comumente presentes em eventos e situações da vida real (os desfiles, os desenhos) por
elas agrupados na palavra.
O trabalho mental de destacar um elemento da totalidade e tomá-lo
como critério para conferir o significado à palavra é uma característica
do pensamento analítico e também a marca distintiva dos conceitos potenciais. Eles resultam de "uma espécie de abstração isolante", segundo
as palavras de Vygotsky (1987: 67), uma vez que as características dos
elementos e situações da realidade não são consideradas em conjunto.
A palavra é elaborada com base em apenas uma semelhança percebida. Além disso, o elemento que foi privilegiado num dado momento
para dar significado à palavra não é estável, podendo ser substituído por
outro. Na elaboração da palavra pátria como um pensamento por complexos, por exemplo, o elemento destacado foi soldado, mas poderia ser
a bandeira, que também é um elemento recorrente nas atividades comemorativas relativas à Semana da Pátria e aparece com freqüência nos
enunciados das crianças.
A diferença entre um conceito e os conceitos potenciais está no
modo como o atributo (o critério) que os define é estabelecido. Num
conceito potencial, um atributo único é estabelecido com base na máxima semelhança entre os elementos ou situações designados pela palavra. Num conceito, distintos elementos são agrupados de acordo com
um conjunto de atributos comuns a todos os elementos que podem ser
reunidos sob sua denominação.
No conceito, a abstração — que caracteriza os conceitos potenciais
— e a generalização — que caracteriza o pensamento por complexos —
combinam-se. "Um conceito só aparece quando os traços abstraídos são
sintetizados novamente, e a síntese abstrata daí resultante torna-se o
principal instrumento de pensamento" (Vygotsky, 1987: 68). A palavra
cassa a ser usada com referência a categorias abstratas. Sua nova função
torna-se codificar a experiência, os objetos e situações do
mundo em
esquemas conceituais.
Para exemplificar essas características dos conceitos, basta recordarmos as definições dicionarizadas de supermercado e de pátria já
apresentadas neste capítulo. Elas envolvem as experiências que as crianças destacam em suas elaborações, mas as superam em generalidade.
O papel do outro no desenvolvimento da
elaboração conceituai
As mudanças nas formas de utilização e de compreensão das palavras ao longo do desenvolvimento da criança são produzidas nas suas
interações verbais com os adultos, crianças mais velhas e produtos culturais (livros, revistas, jornais, TV, propagandas, etc). Nessas relações,
a criança integra-se ao fluxo da comunicação verbal, adquirindo novas
palavras e ampliando as possibilidades de significação daquelas que já
conhece.
Beto, aos 7 anos, perguntou um dia à mãe:
— Frágil éperigoso?
A mãe, sem entender a indagação da criança, quis saber o motive da pergunta.
— Por que você está me perguntando isso?
— Éporque aqui nesta caixa está escrito CUIDADO, FRÁGIL.
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)
A criança lê ou ouve palavras desconhecidas em contextos compreensíveis e vai formando uma idéia vaga do seu significado, vai ajustando os significados elaborados de modo a aproximá-los dos conceitos
predominantes no grupo cultural e lingüístico de que faz parte.
Em suas relações, crianças e adultos compartilham palavras que
em termos práticos significam a mesma coisa para ambos. Ou seja, há
uma coincidência de conteúdo (aspecto da realidade ao qual a palavra
se aplica) entre as palavras utilizadas pela criança e pelo adulto. No
entanto, quanto à generalização e à abstração contidas na palavra, essa
coincidência não se verifica.
Mariana, de 7 anos, vinha encontrando grandes dificuldades
para resolver os problemas de Matemática na escola. A mãe, professora, dispôs-se a ajudá-la. Leram juntas o primeiro problema
da tarefa: "Mamãe foi ao supermercado e comprou 1 quilo de carne por 4 reais, 10 pães por 1 real e 2 litros de leite por 2 reais.
Quanto mamãe gastou?".
Após a leitura, a mãe perguntou à menina:
— Então, Mari, qual a continha que nós temos que fazer?
— De menos, mãe. A mãe,
surpresa, contestou:
— De menos... Por que de menos? Olha bem, a pergunta cio
problema é: quanto a mamãe gastou...
— Então, mãe!!! Quando a gente gasta a gente não fica com
menos dinheiro?
(Episódio relatado pela mãe de Mariana num curso para professores, ministrado pelas autoras.)
Se, por um lado, a coincidência de conteúdo da palavra permite a comunicação entre
adulto e criança, por outro, a diferença na elaboração do significado possibilita que a criança
desenvolva seus conceitos.
Ao interagir com a criança, os adultos ou as
crianças mais velhas apresentam a ela, de forma
deliberada ou não, significados estáveis ou
sentidos possíveis de determinada palavra no seu
grupo social. Embora não transmitam à criança
seu próprio modo de pensar, nem possam
"controlar" o modo de pensar dela, sua alocução
verbal interfere na atividade da criança de
diferentes formas.
A palavra do outro ajuda a criança a elaborar o
significado de novas palavras (como nos
episódios envolvendo Beto e Guto). Ao se
encontrar com aquelas que a criança já tem
elaboradas, explicita-as, confirma-as ou coloca-as em questão (como no
caso de Mari e da criança do episódio do bingo). A criança pode assumir a
palavra do outro, imitando-a, utilizando-a com sua ajuda, ou pode
recusá-la.
Adultos e
crianças podem
empregar a
mesma palavra
mas com
Rafael, aos 5 anos, conversando sobre o que gostaria
diferentes
significados. almoço, contesta da seguinte forma a sugestão da mãe:
de comer no
— Sopa, não! Eu quero comida!
— Mas a sopa é uma comida, Rafa!
— Tá bom, a sopa é uma comida, mas é uma sopa também!
(Episódio extraído da experiência familiar de uma das autoras.)
Comida e sopa são palavras que nomeiam coisas distintas para a criança.
Ela não estabelece entre as coisas nomeadas e as palavras utilizadas nenhuma
relação de inclusão. Na situação descrita, na qual se decidia sobre o que comer
no almoço, Rafael recusa a inclusão apresentada pela mãe: a sopa pode ser uma
comida, mas é uma sopa também. A '-^"~
sopa não perde a sua
peculiaridade, a sua condição de sopa.
As palavras não são apenas lógicas, do mesmo modo que a
interlocução não é apenas troca de informações. Nas relações sociais há
interesses em jogo. As palavras não são neutras, elas apenas têm uma
face neutra, conforme nos ensina o poeta. Com elas negociamos sentidos ("trouxeste a chave?").
É no movimento interativo, assumindo ou recusando a palavra do
outro, que a criança (e não só ela, mas qualquer um de nós) organiza e
transforma seus processos de elaboração do significado das palavras,
desenvolvendo-se. Nesse processo, ela apreende e começa a elaborar as
operações intelectuais complexas presentes na palavra, praticando o
pensamento conceituai antes de ter uma consciência clara da natureza
dessas operações.
O desenvolvimento da elaboração conceituai da palavra não é resultado de um processo individual e estritamente intelectual (cognitivo). Ele é resultado da prática social da criança nas diferentes instituições sociais.
Nesse sentido, aponta Vygotsky, o aprendizado precede o desenvolvimento.
Esse modo de conceber a relação entre desenvolvimento e aprendizado é oposto ao adotado por Piaget, que considera o desenvolvimento
condição para o aprendizado. Segundo Piaget, tudo o que a criança recebe do exterior, por transmissão familiar, escolar, educativa em geral,
constitui o aspecto psicossocial do desenvolvimento. Este só pode ser
explicado pelo desenvolvimento espontâneo (ou psicológico) da criança, que corresponde a tudo que ela aprende por si mesma, sem que lhe
seja ensinado, ao que ela descobre sozinha.
Vygotsky e Piaget apresentam dois modos distintos de olhar o humano em suas relações e transformações. Que facetas a prática pedagógica nos revela, quando a olhamos através de uma ou outra dessas duas
concepções? É o que veremos no próximo capítulo.
103
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Sintetize o desenvolvimento da linguagem na criança segundo a concepção de Piaget, destacando as características da linguagem e o papel desempenhado por ela ao longo do desenvolvimento da inteligência.
2. Sintetize o desenvolvimento da linguagem na criança segundo a concepção de Vygotsky, caracterizando os seguintes pontos: o papel da
palavra, o papel do outro e o papel do sujeito.
3. Enumere as semelhanças e as diferenças básicas entre o pensamento
de Piaget e o de Vygotsky acerca do desenvolvimento do significado
da palavra na criança. Faça um resumo comparativo do processo de
elaboração de conceitos pelo qual, segundo esses dois autores, a
criança passa.
Exercitando a análise
A seguir são descritos dois momentos de relação da criança com a
palavra. Procure analisá-los prestando atenção aos modos como a
criança elabora a palavra e aos modos de participação do outro na
situação.
Situação n? 1
Livro de Matemática da 1? série, página de problemas.
Mamãe está pendurando roupa no varal. Para cada peça ela
usa dois prendedores. Ela já pendurou seis peças de roupa.
Quantos prendedores usou?
Resposta: 12 (resposta da criança).
Por quê? "Pra roupa não voar" (resposta da criança).
Situação n° 2
A professora escreve na lousa "A mamãe afia a faca " e pede para
uma criança ler. A criança lê corretamente. Um adulto pergunta à
criança:
— Quem é a mamãe?
— E a minha mãe, né?
— E o que é "afia " ?
A criança pensa, hesita e responde:
— Sou eu, porque ela (a mamãe) diz: "vem cá, minha fia "'. A
professora, desconcertada, intervém:
— Não, afia é amola afaça!
(A criança na fase inicial da escrita. Ana L. B. Smolka. São Paulo:
Cortez; Campinas: Ed. da Unicamp, 1988.)
Em pequenos grupos, discutam as análises feitas. Depois, confrontem as análises dos grupos, complementando e apurando a argumentação.
Trabalho de campo
Os episódios descritos na atividade anterior apontam um caminho
interessante para um trabalho de observação e registro.
As práticas cotidianas dos adultos que trabalham com crianças são
marcadas pelas concepções que eles têm tanto a respeito do processo de
elaboração do conhecimento e da palavra como do seu próprio papel
nesse processo. Essas concepções determinam as condições de elaboração que eles possibilitam à criança e os modos como participam de suas
elaborações.
Com a classe dividida em três grandes grupos, observem como as
crianças elaboram as palavras em suas relações com os adultos e com
outras crianças, nas creches e nas escolas.
• O grupo 1 se encarregará de observar bebês e crianças de até 2 anos
de idade. Deverá ser observado como os adultos interagem com es
sas crianças e em que momentos; o que falam com elas e como falam
a elas. E também os comportamentos da criança, suas reações nãoverbais, as suas primeiras palavras.
Será interessante, ainda, dar atenção às relações entre as crianças
que já brincam juntas, as que disputam espaço e a atenção do adulto.
Como se dão essas relações?
• O grupo 2 observará as crianças dos diferentes ciclos da pré-escola.
Deverá estar atento às condições de interação verbal, aos modos de
participação do adulto e da criança. O trabalho ficará mais interessan
te se diferentes momentos da rotina escolar (as atividades de roda, os
brinquedos, os jogos ou desenhos, o lanche, a hora do parque, contar
e ouvir histórias, etc.) forem observados, assim como os momentos de
interação entre as crianças.
As questões que podem direcionar a atenção do grupo são as mesmas.
O grupo 3 observará as quatro séries iniciais do 1? grau. O trabalho
de observação deverá ser do mesmo tipo do desenvolvido pelos outros grupos.
Observação:
Para facilitar o trabalho de coleta de dados, cada grupo poderá organizar, com base nas informações contidas no texto e com a orientação do professor, um roteiro com questões ou itens aos quais deverão estar atentos.
As formas de registro poderão ser várias: em diário de campo, gravação em vídeo e gravação em áudio. O material gravado, depois de
ouvido e visto atentamente, deverá, pelo menos em parte, ser transcrito
Organizando e analisando os dados
A fase de observação e registro segue-se a de organização e análise
dos dados obtidos pelo grupo.
Lembrem-se de que o trabalho de análise envolve a comparação
dos dados, observando-se o que há de comum entre eles, sua classificação, o estabelecimento de relações (inferências e generalizações).
Isso sempre à luz dos princípios teóricos e dos objetivos que nortearam
a observação (nesse caso, os modos de elaboração da palavra pela
criança, as condições em que eles se processam e a participação que
neles tem o outro).
Convém que todo esse trabalho seja documentado num relatório
socializado com os outros grupos.
Havendo tempo, seria interessante organizar sessões de apresentação e debate do trabalho de cada grupo, sendo conveniente uma leitura
anterior do relatório do grupo que vai fazer a apresentação, anotações de
dúvidas, pontos a serem esclarecidos e questionamentos a serem feitos.
Sugestão de leituras
LURIA, A. Pensamento e linguagem — As últimas conferências. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1987. OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky. São
Paulo: Scipione, 1993. (Em especial
os capítulos 3, Pensamento e linguagem, e 4, Desenvolvimento e
aprendizado.)
PIAGET, J. A construção do real na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
_______ . A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar,
1975. VYGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins
Fontes,
1987. (Em especial os capítulos 5 e 6.)
Capítulo 9
O papel da escola
Certamente você já ouviu mais de uma vez a afirmação "Escola é
lugar de aprender". Crianças, jovens e adultos aprenderam, na escola, a
ler. a escrever, a contar e tiveram acesso a muitas informações e conceitos sobre o homem, a natureza, a sociedade, a língua que falamos. Os
conceitos que aprendemos na escola, nas diferentes disciplinas, são partes de teorias que buscam explicar e comprovar os fenômenos da natureza e os fatos sociais. Eles são organizados conforme uma lógica que
procura garantir-lhes coerência interna, e sua elaboração requer a utilização de operações complexas (como a comparação, a classificação, a
dedução, etc.) de transição de uma generalização para outras.
Ná pedagogia tradicional, que herdamos do século XIX, considerava-se que os conceitos científicos não tinham nenhuma história interna,
sendo transmitidos prontos à criança e memorizados tal qual por ela.
Grande parte dos métodos de ensino ainda utilizados em
nossas escolas baseia-se nessa concepção. Ensinam-se às
crianças os conceitos científicos, transmitindo-se a elas seu significado
por meio de definições. Essas
definições são, então, utilizadas
em uma série de exercícios para
treinamento e memorização.
Pela repetição dos exercícios, a
definição é fixada (memorizada) e utilizada (reproduzida)
Pela criança, além de reconhecida na fala de seus
interlocutores.
Nas
séries
iniciais, a quantidade de
informações
e
detalhes
fornecida é menor. A cada etapa da esco-larização, o mesmo conjunto
de informações vai sendo retomado e complementado. Conhecimento
e desenvolvimento são processos cumulativos: acumulamos
informações e significados.
Há diferentes
formas de se
apresentarem os
conceitos
científicos.
107
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cullural, 1970. v 2
Nesse modo de considerar o ensino, está contida uma concepção de
linguagem segundo a qual os significados das palavras estão fixados na
língua e se impõem ao indivíduo. Daí a importância atribuída à exposição das informações pelo professor (ou pelo livro didático), considerada determinante para o aprender. A expressão da criança e suas elaborações próprias não são levadas em conta. A história dos conceitos, as
transformações por que passam, os sentidos que evocam e provocam
nos alunos, as experiências anteriores dos alunos com essas palavras,
também não são tidos como questões relevantes, porque os atos de
compreensão e de expressão (fala) que não seguem a norma vigente são
considerados deformações da língua, erros.
Assim, o modo pelo qual a criança responde às questões escolares,
como a relativa à definição de pátria, por exemplo, revela se ela aprendeu (reconhece) ou não, se "entendeu" ou não a exposição do professor.
Alguns professores, ao ouvirem as crianças definindo pátria como
"coisa de soldado" e considerando que elas não entenderam o conceito,
podem achar graça dos seus dizeres, que passam a compor o anedotário
escolar. Outros vêem na resposta a revelação de que as crianças não
aprenderam aquilo que se esperava que tivessem aprendido, pois, sendo
alunos da 3? série, seguramente, nos anos anteriores, ouviram falar sobre o tema, tiveram acesso àquele conceito e, no entanto, não respondem de modo adequado à expectativa escolar.
Os dizeres das crianças julgados como "falta de entendimento" levam a conseqüências: criança que não entende e não aprende precisa
estudar mais, precisa prestar mais atenção, ou então "repete o ano".
No entanto, como procuramos destacar no capítulo 7, a palavra não
é transparente, nem tem um único significado. "Ela tem mil faces secretas sob a face neutra...", como disse Drummond.
Sua multiplicidade se deixa entrever nos dizeres espontâneos das
crianças (algo que acontece em todas as salas de aula, quer os professores queiram e reconheçam, quer não). Eles nos revelam como as crianças procuram ativamente apreender o sentido da fala do adulto relacionando com suas experiências o que foi dito, evocando sentidos nem
sempre esperados ou reconhecidos por nós.
Piaget e Vygotsky, dando importância à atividade do indivíduo no
processo de conhecimento, refutam os pressupostos da pedagogia
tradicional: os conceitos têm história interna, eles se desenvolvem na
criança. Por isso, seu ensino direto é impossível e infrutífero
Jfygotsky, 1987: 72).
Apesar dessa concordância, os dois focalizam e explicam de modo
diverso o que acontece com os processos de elaboração conceituai
quando a criança defronta com os conceitos científicos que lhe são
apresentados na escola.
Piaget, considerando a construção do conhecimento um processo
individual, prioriza o ponto de vista da criança. Ele diz, por exemplo,
que, quando ensinamos alguma coisa à criança, a impedimos de realizar
uma descoberta por si mesma. Vygotsky enfatiza a participação do outro no processo de conhecimento, que define como "internalização das
formas culturais de pensamento", e, de acordo com o conceito de zona
de desenvolvimento proximal, que elaborou, afirma que a criança fará
sozinha amanhã o que hoje faz em cooperação.
Escola é lugar de aprender a aprender, lugar de
aprender pensando...
A expressão do subtítulo acima, muito provavelmente, você também já ouviu. Ela reflete o deslocamento do foco do ensino, que se
transfere para a aprendizagem. Seu centro passa a ser a criança, em vez
do professor, e o processo de elaboração ativa do conhecimento, no
lugar da acumulação da informação pronta.
Embora Piaget não tenha formulado nenhuma proposta metodológica, nem tenha se proposto a estudar os aspectos psicossociais do
desenvolvimento — aqueles conhecimentos que a criança recebe do
exterior, por transmissão familiar, escolar, educativa em geral —, suas
idéias acerca do desenvolvimento infantil têm influenciado as
chamadas propostas ativas de ensino, servindo como fundamento para
uma série de procedimentos metodológicos adotados pelos professores.
Partindo do pressuposto que os conceitos científicos são objetos de
conhecimento que o sujeito constrói de acordo com o estágio de desenvolvimento em que se encontra, Piaget considera que os conceitos não
se ensinam. Tudo o que se pode fazer é criar situações para que a criança
possa formulá-los (Dienes-Golding, 1972). Essas situações deverão
possibilitar-lhe atuar sobre os objetos de conhecimento, e, pela atividade cognitiva, levá-la a estabelecer as relações de análise e de generalização, por meio das quais irá elaborar a palavra.
Nesse sentido, o ensino depende do desenvolvimento espontâneo
da criança, acompanhando-o. Apesar dos esforços que os professores
fazem para explicar os conceitos, a criança recebe as informações e ativãmente as transforma. "O processo de aprendizagem não é conduzido
QÇ Pelo professor, mas pela criança" (Ferreiro, 1982: 131).
___
i
■■■■^B
Segundo Emilia
Ferreiro, "o
processo de
aprendizagem
não é conduzido
pelo professor,
mas pela
criança ".
De acordo com esses
princípios,
o
ensino
calcado na verbalização é
visto como uma atividade
mecânica, que deve ser
substituída
pela
elaboração
espontânea
dos conceitos, condição
determinante
da
construção conceituai da
palavra. Deixa-se de
esperar da criança a
postura de ouvinte, valorizando-se sua ação e
sua expressão. Possibilitar
à criança situações em que ela possa agir e ouvi-la expressar suas
elaborações passam a ser princípios básicos da atuação do professor.
Apoiado nesse referencial teórico, o professor não vê como
desinformação ou falta de compreensão a diferença entre os significados elaborados pela criança e o conceito sistematizado. A diferença revela um erro construtivo, que é indicativo do desenvolvimento da criança, uma vez que suas palavras e ações mapeiam a especificidade do seu
pensamento.
Ao definirem pátria como "coisa de soldado", por exemplo, as
crianças revelam a especificidade de seu pensamento pouco
generalizante, preso a imagens e experiências vividas. A fala de Sérgio
enumerando algumas condições necessárias para se ter (ou não) pátria
— casa, dinheiro, trabalho — revela uma causalidade por identificação,
própria do pensamento pré-operatório.
Deixando de dar prioridade às funções informativa e instrucional, o
ensino tem sua função social redefinida: contribuir para o desenvolvimento dos indivíduos, possibilitando-lhes vivenciar modos de construir
conhecimento por si mesmos, modos de aprender pensando.
Escola é lugar de compartilhar conhecimentos
A relação entre os processos de elaboração conceituai em desenvolvimento na criança e o aprendizado de conceitos científicos na escola é tematizada explicitamente por Vygotsky.
Embora considere o processo de elaboração conceituai único e integrado, Vygotsky destaca a necessidade de diferenciarmos as condições em que a elaboração do conhecimento se dá nas relações cotidianas e nas relações de ensino vividas no contexto escolar.
Nas interações cotidianas, o adulto participa espontaneamente do
processo de utilização e de elaboração da linguagem pela criança. Ele e
a criança compartilham palavras, utilizando-as nas situações imediatas
em que estão envolvidos, aplicando-as a elementos nelas presentes. A
atenção de ambos está centrada na própria situação e não na atividade
intelectual que estão desenvolvendo enquanto a vivenciam.
Assim, pai e filho, por exemplo, podem utilizar a
palavraferramen-ta numa situação de trabalho, sem que se explicite,
para ambos, os sentidos que atribuem a ela. Para a criança, a palavra
ferramenta pode designar apenas o martelo, não incluindo a chave de
fenda ou o serrote. No entanto, como nesse contexto vivencial a
palavra e a situação se entrelaçam, e a maioria das palavras utilizadas
pelo adulto e pela criança designa os mesmos objetos ou eventos,
equivalendo-se funcionalmente, são raras as vezes em que ambos se
dão conta das diferenças de generalização e de abstração entre seus
modos de elaborar as palavras.
Essas diferenças aparecem ocasionalmente, quando a criança acaba
revelando, por um motivo ou outro, o modo pelo qual "compreende" a
palavra. Exemplos desse tipo de situação foram apresentados no capítulo 8.
Já nas interações escolarizadas, que têm uma orientação deliberada
e explícita no sentido da aquisição de conhecimentos sistematizados
pela criança, as condições de produção da elaboração conceituai modificam-se sob vários aspectos.
Na escola, a criança e o adulto interagem numa relação social específica — a relação de ensino. Sua finalidade imediata, a de ensinar e
aprender, é explícita para seus participantes, que nela ocupam lugares
sociais diferentes: a criança, no papel de aluno, é colocada diante da
tarefa de "compreender" as bases dos conceitos sistematizados ou científicos; o professor é encarregado de orientá-la.
Nes*sas condições, a participação do adulto é deliberada e explícita
tanto para ele quanto para a criança. Cabe ao adulto, no papel de professor, possibilitar à criança o acesso aos conceitos sistematizados, procurando induzir nela formas de raciocínio e significados. Cabe à criança,
no papel de aluno, realizar as atividades propostas, seguindo as indicações e explicações dadas.
No entanto, destaca Vygotsky, o papel do professor não implica
ensinar ou explicar diretamente o significado de uma palavra à criança.
Isso é impossível, assegura ele, porque "quando se explica qualquer
palavra, colocamos em seu lugar outra palavra igualmente incompreensível, ou toda uma série de palavras, sendo a conexão delas tão
ininteligível quanto a própria palavra" (Tolstoi. Apud Vygotsky, 1987:
72). Esse encadeamento de palavras que se substituem umas às outras
conduz apenas ao verbalismo vazio, "uma repetição de palavras pela
criança, semelhante à de um papagaio, que simula um conhecimento
dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo"
(idem, ibidem).
O que a criança necessita, aponta Vygotsky, é de oportunidades
Para adquirir novos conceitos e palavras na dinâmica das interações
verbais, mediadas pelo professor.
O professor participa ativamente do processo de elaboração
conceituai da criança. Nas relações que mantêm, ele utiliza novos con-
ceitos, define-os, apresenta-os em diferentes contextos de uso, propõe
atividades em que devem ser empregados. Destaca, recorta informações e significados em circulação na sala de aula, direcionando a atenção da criança para eles; induz à comparação entre informações e significados; possibilita a expressão das elaborações da palavra, organizando verbalmente seu pensamento; problematiza as elaborações iniciais
da criança, levando-a a retomá-las, a refletir sobre possibilidades não
consideradas, a refletir sobre seus próprios modos de pensar...
Na situação que vimos de conceituação da palavra pátria, é a professora quem conduz as crianças a explicitarem o significado que essa
palavra tem para elas. Inicialmente ela destaca a expressão Semana da
Pátria, tentando organizar os comentários espontâneos que se seguiram
à saída da diretora. Como Sérgio separa as duas palavras da expressão,
indicando o significado de semana, a professora destaca a palavra pátria, perguntando sobre seu significado.
Ao fazer a pergunta, ela interrompe os comentários entre as crianças e as conduz para uma elaboração refletida sobre a palavra.
Para a criança, pensar sobre seu próprio modo de utilizar a palavra
é uma atividade intelectual complexa e nova. Como a maioria de nós,
ela está acostumada a utilizar as palavras nas relações cotidianas, e não
a pensar sobre elas. Assim, o que a professora faz é levar as crianças a
desenvolverem um tipo de atividade intelectual que elas ainda não realizam por si mesmas.
Visando responder às solicitações da professora é que as crianças
começam a realizar esse trabalho intelectual, novo para elas. Mesmo
sem compreender completamente o que estão fazendo, elas buscam na
memória elementos das experiências vividas, sentidos da palavra já
internalizados que lhes possibilitem atender à solicitação feita. A pergunta da professora não é apenas o disparador da atividade intelectual
da criança. É a partir dela que as crianças selecionam os fragmentos de
suas experiências (soldados, desfiles, desenhos, bandeiras), articulam e
ordenam esses fragmentos na resposta, organizando verbalmente o pensamento, elaboram justificativas.
O contexto (a situação) em que a pergunta da professora foi feita (a
propósito das solenidades na escola para a comemoração da Semana da
Pátria) também orienta as respostas das crianças. Elas respondem levando em conta esse contexto quando privilegiam, inicialmente, elementos ligados às comemorações da Semana da Pátria, como o soldado,
os desfiles e os desenhos.
Nesse sentido, não se pode dizer que as respostas elaboradas pelas
crianças sejam decorrentes apenas da especificidade do seu modo de
pensar, como sugere Piaget, nem que sejam um mero reflexo de suas
vivências, simplesmente uma associação entre estímulos. Elas são uma
resposta ao outro numa relação social específica — a relação do ensino.
Ao possibilitar o acesso das crianças a atividades intelectuais ainda
não incorporadas por elas, a professora contribui para o desenvolvimento de seus conceitos iniciais, que são deslocados do processo de
utilização da palavra nas situações imediatas (que as crianças já dominam) para o de reflexão sobre a própria linguagem (uma atividade intelectual a ser desenvolvida pela criança).
A intervenção da professora contribui para o desenvolvimento
proximal das crianças, uma vez que atua sobre atividades psíquicas nelas emergentes, fazendo-as avançar no raciocínio e começar a se dar
conta dele para poder responder ao outro.
A professora ouve atentamente as crianças, mas não se limita a
isso. Ela questiona as relações por elas estabelecidas entre pátria e soldado, indagando sobre a inclusão delas próprias no conceito: "Quem
aqui tem pátria?", "Por que povão não tem pátria?". Em suas perguntas
estão embutidas referências às relações entre grupos na sociedade: se
pátria é coisa de soldado, em que conceito se encaixariam os indivíduos
que não são soldados? Ela consegue formular essas questões porque já
teve acesso, como adulta, a uma forma de elaboração mais
generali-zante do conceito de pátria.
Através de suas perguntas, ela não nega nem exclui as definições
iniciais das crianças. Ela as problematiza e as "empurra" para outro patamar de generalização. Leva as crianças a considerarem relações que
não foram incluídas nas suas primeiras definições, provocando
reelabo-rações na argumentação desenvolvida por elas.
As respostas dadas por Sérgio evidenciam esses esforços de
reela-boração. Buscando responder aos questionamentos da professora
e orientado pelas palavras dos colegas ("Pátria é coisa de soldado"),
Sérgio acaba destacando outro sentido possível da palavra.
Em sua primeira resposta, "Povão não tem pátria", Sérgio reafirma
a exclusão dos não-soldados do conceito de pátria. Mas explicita, delimita o grupo a que está fazendo referência. Não são quaisquer
não-soldados que não têm pátria. Quem não tem pátria é o "povão".
Para responder ao novo questionamento da professora (por quê?),
Sérgio acaba definindo, com base nas experiências de seu grupo social,
as condições necessárias para ter ou não pátria — dispor de casa, dinheiro, trabalho — e, ao mesmo tempo, a expressão povão como a negação dessas condições.
A elaboração da resposta, de Sérgio à professora revela outra
nuance do conceito. Pátria diz respeito a participação social, cidadania,
relações de poder. Quem não tem acesso aos processos de produção e
consumo da sociedade em que vive fica ou está à margem dela.
Embora Sérgio recorra a elementos de suas experiências vivenciais
para responder à pergunta da professora, ele os coloca num quadro de
generalização mais amplo. Ao fazer referência ao "povão" (um grupo
social específico) e suas condições de vida, ele utiliza na elaboração da
palavra pátria as relações entre grupos da sociedade. Ele não faz uma
análise completa e deliberada das relações sociais de poder (que são a
base das relações entre os grupos) na sociedade em que vive. Ele as
sugere, destacando um lugar social determinado: o dos despatriados.
A reelaboração resultante do encontro entre as perguntas da professora e as primeiras definições expressas pelas crianças- mostra corno
seus conceitos iniciais (e cotidianos) foram se aproximando das formulações científicas do conceito de pátria, elaboradas pela história, pe]a
sociologia, pela antropologia e pela política.
Nas formulações dos cientistas sociais, as relações de poder são visíveis quando se considera o sentido de nação e de identidade nacional
que a palavra pátria tomou a partir do século XIX na Europa, com a consolidação dos Estados nacionais. (Os professores da área de História
poderão fornecer detalhes desse período, além de explicar como os conceitos de pátria e de nacionalismo se relacionam. Poderão explicar também como esses conceitos foram sendo produzidos, como foram ganhando destaque e novos sentidos e a que setores da sociedade interessavam esses novos sentidos.) O sentido político, embora minimizado no
contexto escolar e nos livros didáticos, é que marca as solenidades da
Semana da Pátria e em especial os desfiles mencionados pelas crianças.
A aproximação entre as definições iniciais das crianças e as formulações científicas do conceito revela que o sentido político, o da relação entre pátria e poder, está presente nas elaborações que elas fazem. Os modos
como definem pátria dizem respeito ao lugar por elas ocupado na sociedade, à experiência histórico-cultural do grupo social a que pertencem. Assim, o que de início poderia parecer falta de compreensão ou especificidade do pensamento infantil pré-lógico é, na verdade, uma forma de
elaboração não só aceitável como também relativamente complexa.
Ao prestarmos atenção a essas possibilidades, vamos percebendo
que as palavras não são apenas modos de representação do mundo e do
pensamento ou instrumentos de comunicação. Elas são elemento de
interação e de constituição de identidades.
Vamos percebendo, também, que é nas relações sociais que a "neutralidade" das palavras se desfaz. Pois é aí que "chegamos perto das
palavras", apreendendo-as na linguagem viva, em funcionamento.
Ao considerarmos os conceitos em sua história, em sua relação
com a sociedade, em sua relação com a vida das pessoas que os utilizam, redefinimos a relação de ensino como relação de partilha e de
articulação de saberes. Nela, crianças e professores ensinam-se reciprocamente.
As crianças nos mostram como, a partir dos lugares sociais que
ocupam, compreendem as palavras, os conceitos que vamos trabalhar
com elas. Elas nos falam de algumas das faces secretas que conseguem
apreender nas palavras.
Nós, professores, como parceiros sociais da criança, tomamos
contato com os sentidos e saberes que ela traz para a sala de aula e,
levando-os em conta, participamos ativamente dos seus processos de
conhecimento e de desenvolvimento. Para isso, destacamos outros significados e sentidos além dos que ela já conhece, outros modos de organizar e articular os conhecimentos, tendo em vista chegar ao conhecimento sistematizado.
Nesse processo de entrecruzamento dos modos de conhecer se fazem presentes e atuantes as maneiras de dizer e pensar da criança, as
operações lógicas que ela realiza, as informações que o professor lhe
possibilita e, fundamentalmente, a dinâmica das relações sociais em
que o conhecimento é produzido, tanto na escola quanto fora dela.
A sistematização é uma tarefa que as crianças não podem realizar
sozinhas, pois requer o domínio de informações e de operações intelectuais que ainda estão fora de seu alcance. Elas necessitam da mediação
do professor para realizá-la.
Para isso, o professor, como adulto que já teve acesso a um conjunto
muito mais amplo de informações e de práticas culturais de conhecimento e de organização da atividade intelectiva, possibilita às crianças
o contato com diferentes situações de uso do conceito, destacando,
apontando as diferenças de que o conceito se reveste em cada situação.
O professor ensina (ajudando, fazendo junto) as crianças a compararem
suas definições iniciais com os sentidos históricos dos conceitos. Ele
problematiza os sentidos dicionarizados das palavras ou os tradicionalmente enfatizados nos livros didáticos e nas solenidades escolares.
A tarefa da sistematização exige que o professor, ele próprio, elabore ativamente os conceitos: que conheça sua história, que apreenda as
atividades intelectuais contidas ou envolvidas na sua elaboração, que
conheça os sentidos que têm nas práticas cotidianas das crianças com as
quais trabalha, que analise as possibilidades de articulação entre os seus
diferentes sentidos.
Essa elaboração de conceitos por parte do professor, porém, não é
uma tarefa que ele realize sozinho. Ela é mediada pela produção científica e pelos dizeres das crianças.
Nas relações de ensino compartilhadas, professor e crianças ensinam e aprendem. Eles aceitam o convite do poeta e contemplam juntos
as palavras. Eles aceitam juntos o desafio das palavras, mergulhando na
história, nas práticas sociais de conhecimento em que se constituem, em
busca das chaves...
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Compare as concepções de Piaget e de Vygotsky acerca do papel da
escola no desenvolvimento da elaboração conceituai, enumerando as
semelhanças e as diferenças entre elas.
2. Confronte sua lista com a dos colegas, ajudando a organizar uma síntese do levantamento feito pela classe.
Refletindo sobre os dados do texto
A partir dos elementos apresentados no texto, elabore uma pequena
reflexão considerando a seguinte questão: Professores para quê?
Exercitando a síntese
Retome os dados do relatório do trabalho de campo sugerido no capítulo anterior e complemente-o, utilizando informações e questionamentos possibilitados pelo presente capítulo. Reelabore sua primeira
versão, retomando os pontos que, depois dessa reflexão, considerar necessários.
Exercitando a análise
Vamos dividir a classe em dois grupos:
• Os alunos do grupo 1 deverão ler o texto "Ensinando Ciências e Estudos Sociais nas séries iniciais", de Terezinha Nunes Carraher e
David W. Carraher, publicado em Isto se aprende com o Ciclo Básico
(Projeto Ipê, curso II. São Paulo: SE/CENP, 1986).
• Os alunos do grupo 2 deverão ler "A elaboração conceituai: a dinâmica das interlocuções na sala de aula", de Roseli A. C. Fontana, no
livro A linguagem e o outro no espaço escolar: Vygotsky e a construção do conhecimento, de A. L. Smolka e M. C. Góes, editado pela
Papirus.
Nesses textos, os autores abordam situações de elaboração de conceitos em sala de aula ou experimentalmente.
Cada aluno deve ler atentamente o texto que coube ao seu grupo e
sintetizá-lo, destacando a concepção de elaboração de conhecimento
adotada pelo autor e suas implicações pedagógicas.
Cada grupo deve fazer uma síntese da sua leitura e apresentá-la à
classe.
Reunidos, os grupos devem debater sobre as posições defendidas nos textos,
tendo como referência a seguinte questão: Como ensinar às crianças? 116
Unidade
3
íA bnnOcKJGÍft) o
Introdução
rincar e desenhar são atividades fundamentais da criança.
Ela brinca e desenha na rua, em casa, na escola. Pela
brincadeira e pelo desenho, ela fala, pensa, elabora
sentidos para o mundo, para as coisas, para as relações.
Pela brincadeira, objetos e movimentos são transformados. As relações sociais em que a criança está imersa são elaboradas, revividas,
compreendidas. Brincando de casinha, de médico, de escolinha, de
roda, de amarelinha, de bolinhas de gude ou de pião, a criança se relaciona com seus companheiros, e com eles, num movimento partilhado,
dá sentido às coisas da vida.
Pelo desenho, a criança deixa suas primeiras marcas. Traços, rabiscos, círculos, que, aos poucos, vão assumindo formas mais definidas.
As marcas são nomeadas — pelos outros e por ela mesma — e começam a se tornar simbólicas. Pelo desenho é possível representar objetos,
pessoas, espaços. A criança desenha sozinha, com outros, para outros.
Pelo desenho ela fala de si e do mundo.
São essas as atividades da criança para as quais vamos, agora, dirigir o nosso olhar, procurando compreendê-las a partir das perspectivas
de Luquet (no desenho), Piaget e Vygotsky.
No capítulo 10, vamos apresentar as concepções de Vygotsky e de
Piaget sobre a brincadeira, sobre por que as crianças brincam e qual a
sua importância no processo de desenvolvimento.
No capítulo 11, acompanharemos as transformações por que passa
a brincadeira da criança, desde os primeiros jogos até aqueles com regras, e discutiremos o lugar da brincadeira na escola.
No capítulo 12, focalizaremos o desenvolvimento do desenho infantil com base nos pontos de vista de Luquet, Vygotsky e Piaget.
No capítulo 13, vamos olhar o processo de elaboração do desenho
pela criança, o papel que nele têm os outros e os modelos. E discutiremos algumas concepções sobre criatividade e desenho e sobre o trabalho com o desenho na escola.
Capítulo 10
O papel da brincadeira no
desenvolvimento da criança
Hora do recreio. No pátio, crianças correm, pulam, jogam bola,
brincam de amarelinha, de roda e fazem outras tantas brincadeiras.
Na sala de aula, crianças reunidas em pequenos grupos estão concentradas em jogos que a professora escolheu para ajudá-la a ensinar
algum conteúdo. Em outra sala (ou em outro momento), crianças preparam a encenação de um texto.
Na aula de Educação Física
as crianças jogam, pulam corda,
praticam esportes.
Na pré-escola, as crianças
brincam na aíeia, imitam bichos,
montam quebra-cabeças, inventam coisas com sucata, brincam de
faz-de-conta; enfim, passam boa
parte do tempo brincando.
A brincadeira se faz presente
na escola nas mais variadas
situações e sob as mais diversas
formas. Muitas também são as
concepções sobre o seu lugar e
sua importância na prática
pedagógica.
Uma concepção é aquela que pode ser traduzida na frase "Criança
vai à escola para aprender, e não para se divertir". De acordo com esse
ponto de vista, a brincadeira é pura diversão e, portanto, só deve ser
permitida na hora do recreio.
Outra concepção é a de que o criança tem necessidade de brincar,
mas que na escola é preciso separar brincadeiras e "tarefas sérias". As
brincadeiras estão presentes tanto na pré-escola como nas séries iniciais
do 1? grau, e o tempo ocupado por elas é determinado pela idade das
crianças ou pelo andamento da programação pedagógica.
A brincadeira faz
parte das
práticas
escolares das
crianças.
119
Existe ainda a concepção segundo a qual "brincando a criança
aprende", que pode ser traduzida em métodos educacionais que .valorizam a brincadeira e procuram evitar uma distinção rígida entre jogo e
"tarefas sérias". Nesse caso, os jogos podem ser introduzidos como recursos didáticos importantes, ou, então, especialmente na pré-escola,
todo o trabalho pedagógico pode basear-se na brincadeira.
Diante desse quadro, somos levados a perguntar: "Mas, afinal, qual
a importância da brincadeira na vida da criança e qual o lugar que ela
pode ou deve ocupar na escola?". É isso o que vamos procurar examinar
a seguir, com base na psicologia do desenvolvimento.
Por que as crianças brincam?
Todos nós já ouvimos, ou até já demos, algumas respostas à questão formulada acima, como: "Criança brinca para descarregar energia";
"Criança não trabalha, não precisa se preocupar com a sobrevivência e,
portanto, brinca para ocupar o seu tempo"; ou, ainda, "Criança brinca
por puro prazer".
Hoje, prestar atenção à brincadeira infantil e buscar explicações
(de senso comum ou científicas) para ela faz parte de nosso dia-a-dia.
Parece-nos natural que as crianças brinquem e que tenha sido sempre
assim.
No entanto, não foi sempre assim. Houve um tempo em que a idade
não era um critério de diferenciação social, e a criança partilhava os
trabalhos e as festas dos adultos. Conforme vimos no primeiro capítulo,
foi apenas nos séculos XV e XVI que nas sociedades ocidentais as
crianças foram afastadas das atividades adultas. E a idéia da infância
como um período particular somente se consolidou no século XVII,
acompanhada da elaboração de uma teoria filosófica sobre a especificidade infantil, que tornou possível o posterior aparecimento de uma psicologia da criança e de seu desenvolvimento.
A assimilação do real ao eu: a concepção de Piaget
A psicologia vem mostrando que a brincadeira tem um papel im
portante no desenvolvimento da criança e que ela satisfaz algumas d
suas necessidades. Mas que necessidades são essas? O que leva a criança a brincar?
Para Piaget, a brincadeira infantil é uma assimilação quase pura do
real ao eu, não tendo nenhuma finalidade adaptativa. A criança pequena
sente constantemente necessidade de adaptar-se ao mundo social dos
adultos, cujos interesses e regras ainda lhe são estranhos, e a uma infinidade de objetos, acontecimentos e relações que ela ainda não compreende. De acordo com Piaget, a criança não consegue satisfazer todas
as suas necessidades afetivas e intelectuais nesse processo de adaptação
ao mundo adulto.
Assim, a criança brinca porque é "indispensável ao seu equilíbrio
afetivo e intelectual que possa dispor de um setor de atividade cuja
motivação não seja a adaptação ao real senão, pelo contrário, a
assimilação do real ao eu, sem coações nem sanções [ ]" (Piaget e
Inhelder, 1989: 52).
A brincadeira é, então, uma atividade que transforma o real, por
assimilação quase pura às necessidades da criança, em razão dos seus
interesses afetivos e cognitivos.
Uma garotinha que havia feito diversas perguntas sobre o mecanismo dos sinos, observado num velho campanário de aldeia,
mantém-se imóvel e em pé ao lado da mesa do pai, fazendo um
barulho ensurdecedor. "Você está me atrapalhando um pouco, não
vê que eu estou trabalhando ? ", açode o pai. E a pequena: "Não
fale comigo, sou uma igreja". Da mesma forma, profundamente
impressionada por um pato depenado sobre a mesa da cozinha, a
criança é encontrada à noite, estendida em um canapé, a ponto de
a cuidarem doente e de a crivarem de perguntas, a princípio sem
respostas; depois, com voz fraca, ela acaba explicando: "Eu sou o
pato morto!".
(Episódio relatado por Piaget e Inhelder, em A psicologia da
criança.)
Para Piaget, situações como essas indicam que na brincadeira do
faz-de-conta (chamada por ele de jogo simbólico) as crianças criam
símbolos lúdicos que podem funcionar como uma espécie de linguagem interior, que permite a elas reviver e repensar acontecimentos interessantes ou impressionantes. As crianças, mais do que repensar, necessitam reviver os acontecimentos. Para isso recorrem ao simbolismo direto da brincadeira.
As relações sociais com o mundo adulto: a concepção de
Vygotsky
Vygotsky também analisa a emergência e o desenvolvimento da
brincadeira nas relações sociais da criança com o mundo adulto.
Segundo ele, na idade pré-escolar algumas modificações ocorrem no
desenvolvimento da criança. Como demonstra Leontiev, importante
psicólogo soviético, o mundo objetivo que a criança conhece está
continuamente se expandindo e, nesse período, já não inclui apenas os
objetos que constituem o ambiente que a envolve (como seus
brinquedos, sua cama ou os utensílios e objetos com os quais ela está
sempre em contato e sobre os quais pode agir), mas também °s objetos
com os quais os adultos operam e sobre os quais ela ainda não pode
agir.
Quem foi Leontiev?
Alexis N. Leontiev, nascido em 1903, foi um dos
mais importantes psicólogos soviéticos que trabalharam
com Vygotsky e Luria. Membro da Academia Soviética de
Ciências Pedagógicas, recebeu em 1968 o título de doutor
honoris causa pela Universidade de Paris.
Leontiev pesquisou principalmente a relação entre o
desenvolvimento do psiquismo humano e a cultura, ou
seja, entre a evolução das funções psíquicas e a
assimilação individual da experiência histórica.
Assim como Vygotsky, Leontiev criticou as concepções mecanicistas do comportamento humano. Sua
preocupação era encontrar um referencial materialista
histórico e dialético para a psicologia.
A defesa que Leontiev fez da natureza
sócio-histó-rica do psiquismo humano teve como base a
teoria marxista do desenvolvimento social. Teórico e
experimentador, Alexis Leontiev não se limitou ao trabalho de
laboratório. Preocupou-se com os problemas da vida humana em
que o psiquismo intervém. Seu campo de estudos compreendeu
principalmente a pedagogia, a cultura, o problema da personalidade. Criou a Faculdade de Psicologia da Universidade de
Moscou, da qual se tornou decano. Leontiev morreu em 1979.
(Adaptado de Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desen»
volvimento e aprendizagem. São Paulo: Icone/Edusp.)
A
situação
laginária da
•rincadeira é
decorrência
ação, afirma
12
Vygotsky.
Ou seja, a criança passa a se interessar por uma esfera mais ampla
da realidade e sente necessidade de agir sobre ela. Agir sobre as coisas é
a principal forma de que a criança
dispõe para conhecê-las, compreendê-las. Nesse período, ela tenta atuar
não apenas sobre as coisas às quais tem
acesso, mas esforça-se para agir como
um adulto: quer, por exemplo, dirigir
um carro ou fazer comida.
Surge, então, uma contradição
entre a necessidade de agir sobre um
número cada vez maior de objetos e o
desenvolvimento das capacidades físicas. Em outras palavras, surgem na
criança as necessidades não realizáveis
imediatamente, no dizer de Vygotsky, e
que se tornam motivo para as
brincadeiras. Isso não significa, porém,
que as crianças compreendem as motivações que as levam a brincar.
A brincadeira é, então, a forma possível de satisfazer a essas necessidades, já que possibilita à criança agir como os adultos (dirigindo um carro,
cuidando de um bebê, fazendo "comidinha") em uma situação imaginária.
Para Vygotsky, a situação imaginária da brincadeira decorre da ação
da criança. Ou seja, a tentativa da criança de reproduzir as ações do adulto em condições diferentes daquelas em que elas ocorrem na realidade é
que dá origem a uma situação imaginária. Isso significa que a criança
não imagina uma situação para depois agir, brincar. Ao contrário, para
imaginar, ela precisa agir. É o que vamos compreender melhor analisando uma situação real de crianças brincando, descrita a seguir.
Brincando de estação de trem
Algumas crianças brincam de estação de trem em uma pré-escola
na antiga União Soviética, observadas por um pesquisador.
Sete crianças estão brincando em uma sala grande. B é o chefe da estação. Ele está usando um boné vermelho e carrega um
disco de madeira em uma vara. Ele cercou uma área com cadeiras,
explicando que é a estação onde o chefe mora.
T, Le N são passageiros. Eles dispuseram as cadeiras em fila,
uma atrás da outra, e sentaram-se.
N: "Como podemos começar sem um condutor? Eu serei o
ma-quinista ". Ele vai para a frente e começa a resfolegar:
"Ssh-ssh-ssh ".
G é a garçonete do restaurante. Ela cercou um "restaurante"
com cadeiras em torno de uma mesinha, pôs uma caixa de papelão
sobre ela e encheu-a de pedaços de papel rasgados por ela e que
seriam o "dinheiro". Perto da caixa, ela dispôs ordenadamente,
em fileiras, pedacinhos de biscoito. "Veja como eu tenho um restaurante bem-fornido ", diz ela.
Ba: "Eu venderei as passagens... ohl Como se chama quem
faz isso?". "Caixa", diz o pesquisador. Ba: "Sim, sim, o caixa.
Dê-me um pouco de papel". Tendo obtido o papel, ela o rasga em
tiras e separa os pedaços maiores. "Aquelas são as passagens e
estes (os pedaços pequenos) o dinheiro, para dar o troco ".
B dirige-se a N: "Quando eu lhe der este disco, você imediatamente começa". N imita o som de descarga de uma máquina e os
passageiros ocupam seus lugares. De repente, B diz: "Os passageiros estão embarcando sem bilhetes e está na hora do trem partir". Os passageiros correm para o guichê de venda de passagens,
onde Ba está sentada, esperando. Eles estendem a ela pedaços de
papel e ela lhes dá, em troca, as passagens. Os passageiros voltam
a seus lugares. B aparece edáo disco aN.N imita o som de descarga, sopra, e eles "partem ".
G (com ar aborrecido): "Quando é que eles virão para comprar?". B: "Eu posso vir agora, o trem partiu e por isso eu posso".
Ele vai até o restaurante e pede um bolo. G lhe dá um e pergunta: "E o
dinheiro ?". B corre até o pesquisador e, tendo recebido um pedaço de
papel, volta e "compra " um bolo. Ele come com ar satisfeito. Ba mexe-se
na cadeira, olha para o restaurante, mas não se levanta. Em seguida, ela
olha novamente para o restaurante e para o pesquisador, e pergunta:
"Quando é que vou comer? Não há ninguém aqui agora", diz ela, como
que para se justificar. N observa: "O que é que está impedindo? Vá em
frente". Ba olha ao redor, depois corre para o restaurante, compra
rapidamente e volta depressa. G arruma de novo os seus bolos, mas não
se serve.
N assopra ruidosamente e grita: "Estação!". Ele e os passageiros
correm ao restaurante, compram bolos e voltam. B toma o disco de N e,
depois, devolve-o. N assopra e resfolega, e eles "partem" novamente.
Ba examina o restaurante, compra um bolo e o come. G: "Eu
também gostaria de comer, mas o que é que eu faço, compro ou me
sirvo?". B ri: "Compre de você mesma e pague-se". G ri, mas
imediatamente pega duas "moedas" e compra de si mesma dois pedaços
de bolo, explicando como se fosse para o pesquisador que está presente:
"Eles já compraram uma vez "■ Não recebendo resposta, ela se põe a
comer.
(Situação relatada por Leontiev, 1988: 136-7.)
Aprendendo a olhar a brincadeira
Comecemos por examinar quais são as características dessa brincadeira.
A primeira coisa que nos chama a atenção é que cada criança envolvida na
situação assume um papel definido: algumas são os passageiros, uma é o
maquinista, outra o chefe da estação, e assim por diante. Toda a ação das
crianças se desenvolve e se estrutura a partir desses papéis, configurando-se,
assim, uma situação imaginária. Ou seja, a criança que assume o papel de
chefe de estação, age como tal: é ela quem deve autorizar a partida do trem. O
mesmo ocorre com as crianças que assumem os outros papéis: elas agem como
passageiros, como maquinista, como bilheteiro.
Um segundo aspecto que podemos notar na brincadeira é a utilização que
as crianças fazem dos objetos: cadeiras tanto demarcam os espaços como
compõem o trem; pedaços de papel transformam-se em dinheiro e em
passagens; pedaços de biscoito viram bolo.
Essa transformação dos objetos é interpretada por Piaget como resultado
da utilização de esquemas habituais, contando não com a presença dos objetos
a que comumente se aplicam, mas de novos objetos que "não lhe convém [à
criança] do ponto de vista de uma adaptação efetiva" (Piaget, 1978: 127). Um
pequeno travesseiro, por exemplo, pode ser embalado como uma boneca; uma
caixa, empurrada como um carrinho; ou, ainda, como na situação acima,
cadeiras
podem se transformar em um trem. Desse modo, a criança transforma o
significado dos objetos de acordo com seus desejos, sem preocupação
de adaptar-se à realidade.
Assim, na brincadeira qualquer coisa pode transformar-se em outra, sem regras nem limitações. Essa possibilidade de livre transformação de significado dos objetos explica-se pelo predomínio da atividade
assimilativa da criança, ou seja, pela incorporação a seus esquemas de
ação e pensamento de objetos diferentes sem a correspondente transformação (acomodação) desses esquemas e com o único propósito de permitir à criança imitá-los ou evocá-los.
Vygotsky, no entanto, observou que na situação do faz-de-conta
não é qualquer objeto que pode substituir outro e que a criança, ao brincar, sempre submete seu comportamento a regras.
Se observarmos na brincadeira de estação de trem como se desenrolam as ações das crianças, notaremos que, ao contrário do que
habitualmente se diz sobre as brincadeiras das crianças — que nelas
tudo pode acontecer —, toda a ação das crianças é regulada pela situação imaginária, desenvolve-se de acordo com ela. Assim, o trem não
pode partir antes que os passageiros tenham comprado seus bilhetes e
que o chefe da estação tenha dado a devida autorização ao ma-quinista.
Da mesma forma, não se pode comprar bolo sem dinheiro, e os
passageiros que estão no trem só se dirigem ao restaurante quando o
trem pára na estação.
Brincadeira é coisa séria
Podemos notar, então, que a situação imaginária, longe de ser algo
criado livremente pelas crianças, sem nenhuma relação com a realidade, traz as marcas da experiência social das crianças, de suas vivências
e conhecimentos sobre a realidade.
Vygotsky dá um exemplo de duas irmãs, uma com 5 e outra com 7
anos, que resolveram "brincar de irmãs". Nessa brincadeira, elas fazem
tudo aquilo que enfatiza sua relação social de irmãs, passando a agir de
acordo com regras de comportamento próprias dessa relação, que não
são percebidas na vida real.
Essa situação, como a da criança que assume o papel de maquinista
de trem, mostra que aquilo que na vida real passa despercebido pelas
crianças torna-se regra de comportamento na brincadeira.
De acordo com Vygotsky, essas regras decorrem da própria situação imaginária. É o fato de assumir determinado papel que induz a
criança a submeter seu comportamento a regras.
A submissão a regras implica a superação da ação impulsiva. Para
esperar que o trem pare na estação para ir ao restaurante comprar bolo,
as crianças precisam evitar a ação impulsiva de obter um biscoito e
submetê-la às regras implícitas na situação imaginária. Segundo Vygotsky, essa submissão da criança a regras de comportamento é a razão
do prazer que ela experimenta na brincadeira.
Na situação de brincadeira, a criança supera a ação impulsiva também relativamente aos objetos. Crianças muito pequenas ainda não têm
essa capacidade: os objetos é que determinam o que devem fazer, porque sua percepção é sempre um estímulo para a atividade. Ou seja, a
criança pequena age de acordo com o que vê. Se vê um cabo de vassoura perto de uma lata, por exemplo, ela poderá usá-lo para bater na lata.
Ou então, se vê um biscoito, ela provavelmente o comerá.
De acordo com Vygotsky, "é no brinquedo que a criança aprende a
agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera visual externa, dependendo das motivações e tendências internas, e não dos incentivos
fornecidos pelos objetos externos".
Isso significa que na brincadeira os objetos perdem sua força
deter-minadora e a criança passa a operar com o significado das coisas.
Na brincadeira, um cabo de vassoura pode ser utilizado como um
cavalo, e biscoitos podem se transformar em pedaços de bolo vendidos
no restaurante de um trem.
Objetos e significados na brincadeira
^^^^
1 26
--------
Mas a criança não realiza a transformação de significados de uma
hora para outra. Como vimos, quando muito pequena, ela ainda não é
capaz de agir como se um cabo de vassoura fosse um cavalo. Isso porque os significados ainda estão ligados aos objetos concretos que a
criança conhece: cachorro significa seu próprio cachorro; relógio é o
relógio de parede da sala de sua casa; irmã é sua própria irmã.
Vygotsky vê a brincadeira infantil como um recurso que possibilita
a transição da estreita vinculação entre significado e objeto concreto à
operação com significados separados dos objetos. Na brincadeira, a
criança ainda utiliza um objeto concreto para promover a separação entre
significado e objeto. Ela só é capaz de operar, por exemplo, com o
significado de cavalo (sem se referir ao cavalo real) utilizando um obje-
to, como o cabo de vassoura, que lhe permita realizar a mesma ação
possível com o cavalo real: montar ou cavalgar.
Assim, não é qualquer objeto que pode substituir outro. Uma bola,
uma caneta ou uma mesa não poderiam representar um cavalo, porque a
criança não poderia agir com esses objetos como se fossem um cavalo,
não poderia montá-los ou cavalgá-los.
Já uma criança mais velha ou um adulto poderiam utilizar qualquer
um desses objetos para representar um cavalo. Um adolescente, por
exemplo, que estivesse relatando uma experiência a um amigo, poderia
tranqüilamente dizer: "Faça de conta que aquela mesa é o cavalo. Eu
estava aqui, mais ou menos a essa distância, quando ele disparou em
minha direção".
Isso porque crianças mais velhas, adolescentes ou adultos já podem operar com o significado, independentemente do objeto concreto.
Qualquer coisa pode simbolizar outra, e é possível até mesmo operar
com significados que dizem respeito a coisas que nunca foram vistas ou
experimentadas. E por isso que, se nos falam sobre violino, é possível
compreendermos o que dizem sem nunca termos visto um violino ou
ouvido o seu som. Para isso, basta conhecermos o significado da palavra violino.
É nesse sentido que a brincadeira infantil constitui uma transição:
ao agir com um objeto como se fosse outro, a criança separa do objeto
real, concreto, o significado. Mas, para realizar essa separação, ainda há
necessidade de um objeto substituto que possibilite a mesma ação que o
objeto real.
Da mesma forma que um objeto substitui outro, na brincadeira infantil uma ação também substitui outra. Quando a criança brinca de
montar a cavalo, sua ação de correr com um cabo de vassoura entre as
pernas, imitando um trotar, substitui a ação real de cavalgar.
Nesse caso, o significado também se separa da ação por intermédio
de uma ação diferente (como no caso dos objetos), e a criança opera
com o significado de sua ação: "montar" um cabo de vassoura adquire o
significado de cavalgar.
Na brincadeira, a criança opera com significados desvinculados
dos objetos e das ações; mas o fato de utilizar outros objetos reais
(como o cabo de vassoura) e outras ações reais (como "montar" um
cabo de vassoura) ajuda-a a realizar uma importante transição.
O papel da brincadeira no desenvolvimento da criança A
brincadeira e a função simbólica
Piaget e Vygotsky têm pontos de vista diferentes também quanto à
função da brincadeira no desenvolvimento infantil.
Para Piaget, o jogo simbólico é parte de uma função fundamental
do processo cognitivo da criança, a função simbólica. Essa função apa-
rece na criança mais ou menos aos 2 anos e permite que ela possa representar uma coisa (um objeto, um acontecimento, etc.) por intermédio de
outra coisa, como a linguagem, o desenho ou o gesto simbólico.
Como vimos, Piaget considera que a brincadeira não tem finalidade adaptativa, não provoca um aprimoramento dos esquemas mentais,
ou de ação, da criança. Sua importância para o desenvolvimento consiste no fato de possibilitar — pela aplicação de esquemas conhecidos a
objetos "inadequados" — a transformação do significado dos objetos e
a criação de símbolos lúdicos individuais. Num símbolo lúdico, como
pedacinhos de biscoito que representam bolo, um objeto é evocado por
outro, ao qual são atribuídas as qualidades daquele.
Assim, o jogo simbólico relaciona-se ao aparecimento da capacidade de representar eventos e objetos. E, com a representação, a criança
torna-se capaz de pensar em objetos que não estão presentes em seu
campo perceptivo, de lembrar-se de acontecimentos, de prever mentalmente o resultado de suas ações.
A função simbólica é, então, indispensável para a ampliação das
fronteiras da inteligência, embora, de acordo com Piaget, ela só progrida
com o desenvolvimento da própria inteligência. Ou seja, é à medida
que o pensamento da criança se desenvolve que sua linguagem, o desenho e o próprio jogo evoluem.
Portanto, embora o jogo simbólico seja importante para a constituição de símbolos que servem para representar objetos ou acontecimentos, ampliando o campo de ação da inteligência, seu desenvolvimento
está subordinado ao desenvolvimento da própria inteligência.
A criação de zonas de desenvolvimento proximal
Já para Vygotsky, a brincadeira tem um papel fundamental no desenvolvimento do pensamento da criança. Ao substituir um objeto por
outro, a criança opera com o significado das coisas e dá um passo importante em direção ao pensamento conceituai, que, como já vimos,
baseia-se nos significados, e não nos objetos. Por exemplo, o conceito
de escola para um adulto não se refere a uma ou várias escolas que ele
conhece, mas corresponde a uma generalização, a uma idéia de escola
que pode incluir múltiplos aspectos: seu caráter de instituição, sua função social, sua forma de organização em geral, etc.
Além disso, quando a criança assume um papel na brincadeira, ela
opera com o significado de sua ação e submete seu comportamento a
determinadas regras. Isso conduz ao desenvolvimento da vontade, da
capacidade de fazer escolhas conscientes, que estão intrinsecamente
relacionadas à capacidade de atuar de acordo com o significado de
ações ou de situações e de controlar o próprio comportamento por
meio de regras.
^^^^
E importante notar também que no jogo a criança faz coisas que
1 28
ainda não consegue realizar no cotidiano. Nas atividades cotidianas, a
-------- criança em idade pré-escolar age de acordo com o meio, os objetos e as
situações concretas, tendo dificuldade em controlar voluntariamente
seu comportamento e submetê-lo a regras. Quem conhece crianças dessa idade sabe que é preciso estar constantemente lhe dizendo o que fazer. É preciso sempre chamá-la para tomar banho, lembrá-la de escovar
os dentes, recomendar que guarde seus brinquedos, e assim por diante.
Ela ainda não decide antecipadamente o que vai fazer e só submete seu
comportamento a regras impostas obedecendo a uma autoridade exterior (os pais ou o professor).
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 2
A criança dessa idade tem no dia-a-dia dificuldade para fazer distinção entre o significado dos objetos e suas características. Uma criança que tenha aprendido a utilizar a palavra animal para se referir a mamíferos de quatro patas, provavelmente terá dificuldade em reconhecer
um inseto ou uma ave como animais. O significado da palavra animal
permanece ligado às características dos seres que concretamente ela
conhece como animal: as quatro patas, por exemplo.
É por-isso que, segundo Vygotsky, a brincadeira cria uma zona de
desenvolvimento proximal: "[...] no brinquedo, a criança sempre se
comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu
comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é
na realidade" (Leontiev, 1988: 122).
Assim, a brincadeira é a atividade "em conexão com a qual ocorrem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da
criança e dentro da qual se desenvolvem processos psíquicos que preparam o caminho da transição da criança para um novo e mais elevado
nível de desenvolvimento" (idem, ibidem).
Logo, a atividade de brincar é essencial para o desenvolvimento da
criança em idade pré-escolar.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Reproduza o quadro abaixo e preencha-o com as informações do
texto:
Piaget
Vygotsky
Por que as crianças
brincam
Como as crianças
brincam
Papel da brincadeira no
desenvolvimento
Trabalho de campo
1. Observe crianças brincando. Faça uma combinação entre as idades e
as situações seguintes:
Situações
Idades
Sozinhas
Com outras crianças
anos
Com adultos
De 1 a 3 anos
De 4 a 6
De 7 a 9 anos
De 8 a 11 anos
Combinando as diferentes faixas de idade e situações (por exemplo,
crianças de 1 a 3 anos sozinhas, de 1 a 3 anos com outras crianças e
de 1 a 3 anos com adultos), serão doze as condições para a observação. A classe deverá ser dividida em grupos, e a cada grupo será atribuída uma das condições. Durante as observações, prestem atenção
aos seguintes aspectos:
•
•
•
•
•
•
de que as crianças brincam;
com quem brincam;
que objetos ou brinquedos utilizam e como os utilizam;
que atividades realizam e como as realizam;
o que falam e a quem se dirigem;
como se relacionam durante a brincadeira.
Procurem registrar tudo o que puderem e bem rapidamente (as falas
das crianças merecem atenção especial e, na medida do possível, devem ser registradas literalmente).
Cada grupo deve organizar o seu registro e depois apresentá-lo para a
classe.
2. Com base nos resultados das observações de todos os grupos, organize com os colegas um painel sobre a brincadeira infantil. Na apresentação do painel, façam um debate sobre a brincadeira infantil, confrontando os modos como a vêem Piaget e Vygotsky.
Sugestão de leituras
KJSHIMOTO, T. M. O brinquedo na educação — Considerações históricas. O cotidiano da pré-escola. São Paulo: FDE, 1990. (Idéias, 7).
OLIVEIRA, Zilma M. R. de. L. S. Vygotsky: algumas idéias sobre desenvolvimento e jogo infantil. A pré-escola e a criança hoje. São Paulo:
FDE, 1988. (Idéias, 7).
PIAGET, J. A função semiótica ou simbólica. In: ________ . A psicologia
da criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
VYGOTSKY, L. S. O papel do brinquedo no desenvolvimento.
In:
_______ . A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes,
1984.
0
Capítulo 11
A brincadeira na vida e na
escola
Como vimos no capítulo anterior, Piaget e Vygotsky têm concepções diferentes sobre a importância da brincadeira para a criança. No
entanto, os dois concordam que a brincadeira evolui e se modifica.
Para Piaget, essa evolução acompanha o desenvolvimento da inteligência e do pensamento, enquanto para Vygotsky ela se deve a mudanças que ocorrem na interação da criança com o meio social, em razão das diferentes posições que ocupa e das diferentes tarefas que lhe
são colocadas.
Assim, cada um desses autores dirige sua atenção para aspectos
distintos do processo de evolução da brincadeira, reconhecendo nele
diferentes momentos.
A perspectiva de Piaget sobre o desenvolvimento da
brincadeira
Os primeiros jogos que a criança realiza são denominados por
Piaget jogos de exercício. Estes não comportam ainda nenhum
simbo-lismo e consistem na repetição, por puro prazer, de
comportamento que ela já aprendeu.
Depois de ter aprendido, a partir dos 7 meses, a repelir um
obstáculo para agarrar o objetivo, T. começa, entre 8 e 9 meses, a
sentir prazer nesse gênero de exercícios. Quando eu interponho,
várias vezes seguidas, a minha mão ou um cartão entre a sua e o
brinquedo que ele cobiça, T. chega a esquecer momentaneamente
esse brinquedo para limitar-se a repelir o obstáculo, rindo às gargalhadas. O que era adaptação inteligente converteu-se, pois, em
jogo por deslocamento do interesse para a própria ação independentemente de sua finalidade.
(Situação relatada por Piaget em A formação do símbolo na
criança.)
O jogo vai se tornando mais
elaborado e mais complexo à medida
que o bebê começa a combinar
ludicamente ações diferentes, passando de uma a outra ação sem empreender nenhum esforço que vise
adaptação ao meio ou aos objetos e
sem ter nenhuma finalidade determinada. O bebê repete certas ações
pelo prazer de exercitá-las.
Se num primeiro momento as
ações do bebê são repetidas, apli
cando-se aos mesmos objetos (co_______
mo, por exemplo, repetir com o travesseiro todos os movimentos que
habitualmente faz para dormir: deitar-se de lado, apoiando nele a cabeça, chupar-lhe as franjas, fechar os olhos, etc), chega um momento em
que outros e novos objetos começam a ser empregados.
Éapenas por puro
prazer que os
bebês repetem
certas ações.
J. (1 ano e 3 meses) vê uma toalha cujas bordas franjadas lhe
recordam vagamente as de seu travesseiro: apanha-a, retém uma
ponta na sua mão direita, chupa o polegar da mesma mão e deita-se
de lado, rindo muito. Conserva os olhos abertos mas pisca-os de tempos a tempos, como se quisesse fazer uma alusão aos olhos fechados
para dormir. Enfim, rindo cada vez mais, grita nana (= dormir).
(Situação relatada por Piaget em A formação do símbolo na
criança.)
Esse tipo de jogo dá origem ao
jogo simbólico (o faz-de-conta),
que surge na criança quando seu
pensamento torna-se capaz da
representação simbólica (mais ou
menos aos 2 anos). Diferentemente
do jogo de exercício, que não
supõe o pensamento nem a
representação mental de objetos
ou situações, o jogo simbólico,
conforme já observamos, implica
a representação de objetos e
acontecimentos ausentes.
De acordo com Piaget, o jogo
simbólico começa por comportamentos pelos Ojogo do faz-de-conta surge quando a criança torna-se capaz
quais a criança imita objetos, pessoas ou
de representar objetos e acontecimentos ausentes.
situações. Aos poucos, a brincadeira simbólica
com outras crianças (casinha, escolinha, etc.) começa a ter lugar, e o simbolismo lúdico vai se tornando mais
complexo. O símbolo lúdico pouco a pouco leva às representações adap133
tadas, em que verdadeiras dramatizações com papéis definidos ocupam
o lugar do faz-de-conta. Construções com madeira, pedras, modelagem,
etc. passam a ser utilizadas, substituindo as transformações mais rudimentares dos objetos que ocorrem no jogo de faz-de-conta.
Assim, o jogo simbólico se desenvolve na direção de uma atividade
mais construtiva, com finalidade de adaptação ao real. Os jogos de construção (em que a criança constrói maquetes e réplicas de objeto a partir
dos mais variados materiais), os jogos dramáticos (teatrinho, dramatização) e também os jogos com regras (bolas de gude, cartas, amarelinha, etc), todos eles se devem ao desenvolvimento do jogo simbólico.
Os jogos com regras aparecem por volta dos 7 anos, possibilitados
pela crescente socialização do pensamento da criança, que conduz à
substituição do símbolo lúdico individual pelas regras. Ao contrário do
simbolismo, a regra supõe relações interindividuais, pois é "uma regularidade imposta pelo grupo, e de tal sorte que a sua violação representa
uma falta" (Piaget, 1978: 148).
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 1.
Os jogos com regras são jogos de combinações sensório-motoras
(como corridas, bolas de gude, etc.) ou intelectuais (cartas, xadrez, etc).
Quase sempre há entre indivíduos competições que são reguladas por
regras estabelecidas pelo grupo, por acordo momentâneo ou por regras
transmitidas de uma geração a outra:
[...] os jogos de regras podem ter origem quer em costumes
adultos que caíram em desuso (de origem mágico-religiosa, etc),
quer em jogos de exercícios sensório-motores que se tornaram coletivos, quer, enfim, em jogos simbólicos que passaram igualmente
a coletivos mas esvaziando-se, então, de todo ou parte de seu conteúdo imaginativo, isto é, de seu próprio simbolismo.
(Piaget, 1978: 185)
A perspectiva de Vygotsky sobre o desenvolvimento da
brincadeira
De acordo com Vygotsky, as primeiras brincadeiras surgem da necessidade de dominar o mundo dos objetos humanos. Ao brincar, a crian-
ça tenta agir sobre os objetos, como os adultos. É por isso que a brincadeira de crianças mais novas caracteriza-se pela reprodução de ações
humanas realizadas em torno de objetos. Elas brincam de montar um
cavalo, de dirigir um trem, de alimentar, trocar ou banhar uma boneca.
Durante o desenvolvimento dessas brincadeiras, as relações humanas incluídas nessas ações começam a aparecer mais claramente. As crianças passam a brincar não apenas de dirigir um trem, mas reproduzem
as relações humanas em que o maquinista está envolvido. Já não importa
apenas a relação entre o maquinista e o trem (a ação de conduzir o trem),
mas também as relações entre o maquinista e seu ajudante, os passageiros, o chefe da estação e o funcionário que dá o sinal de partida.
Ao embalar a boneca, trocar sua roupa, dar-lhe banho ou
comidi-nha, a criança pequena assume o papel de mãe, preocupando-se
em reproduzir as ações maternas. Já a criança mais velha inclui essas
ações em um contexto de relações sociais mais amplo, em que não
importam apenas as ações que a mãe realiza com o filho, mas as
relações entre ambos. Ela ralha com a boneca, leva-a ao médico ou à
escola, o pai e outros irmãos podem aparecer, trazendo para o primeiro
plano as relações sociais em que mãe e criança estão inseridas.
Nas brincadeiras de grupo, as relações sociais são reproduzidas nas
relações das crianças entre si. Reguladas por regras implícitas de comportamento, essas relações são uma pré-condição importante para que,
aos poucos, as crianças tornem-se conscientes da existência de regras
na brincadeira. É sobre essa base que surgem os jogos com regras (como amarelinha, esportes, cartas).
Vygotsky afirma que "da mesma forma que uma situação imaginá
ria tem que conter regras de comportamento, todo jogo com regras
contém uma situação imaginária". O jogo de xadrez (que é um jogo
com regras), por exemplo, baseia-se em uma situação imaginária.
^—
■] 35
'o jogo de regras
estão presentes
imbém situações
imaginárias.
O cavalo, o rei, a rainha e
outras peças só podem ser
movidos no tabuleiro de maneiras específicas, determinadas por uma situação imaginária. O mesmo ocorre nos
jogos
com
cartas,
na
bata-lha-naval, no jogo de
bolas de gude e outros.
Assim, no contexto das
práticas histórico-culturais, a
brincadeira se desenvolve,
passando de uma situação
claramente imaginária, com
regras implícitas, para uma situação implicitamente imaginária, com
regras e objetivos claros.
Da mesma forma que a brincadeira, o papel que ela exerce no desenvolvimento infantil também se modifica. Na idade pré-escolar, a
brincadeira de faz-de-conta é a principal atividade da criança. Já na idade escolar, os jogos com regras e os esportes tornam-se mais importantes. Estes têm um papel específico no desenvolvimento, mas não são
tão fundamentais como o faz-de-conta na idade pré-escolar. A instrução
formal, culturalmente valorizada e estimulada, passa a ocupar então o
papel central no desenvolvimento da criança.
Brincando, aprendendo e sendo
36
_
Após tratar do papel da brincadeira no desenvolvimento infantil
em nossa sociedade, vamos retornar à questão do seu lugar na escola.
Brincar na escola não é a mesma coisa que brincar em casa ou na
rua. O cotidiano escolar é marcado pelas características, pelas funções e
pelo modo de funcionamento dessa instituição.
Na escola, como lugar essencialmente destinado à apropriação e
elaboração pela criança de determinadas habilidades e determinados
conteúdos do saber historicamente construído, a brincadeira é negada,
secundarizada ou vinculada a seus objetivos didáticos. Nesse último
caso, diz-se que brincar é uma forma de aprender, privilegiando-se assim a atividade cognitiva implícita na brincadeira, em detrimento de seu
caráter lúdico.
E na escola existe o professor, que é o adulto que conduz intencionalmente as relações de ensino, de acordo com objetivos e concepções
didático-pedagógicos. Concepções e objetivos que constituem, ao mesmo tempo, o crivo de seleção das atividades apresentadas às crianças e
a "lente" com a qual ele focaliza o que elas fazem e dizem. Diferentemente do adulto que em casa vê a criança brincar, ou brinca com ela e
para ela, "experimentando com o acaso" (Novalis), o professor relacio-
na-se com a brincadeira como um procedimento previsto em seu plano de ação
com as crianças.
No entanto, nas condições concretas do cotidiano escolar, como o brincar
se realiza?
Brincando na escola
Sala de jogos. Acompanhadas pela professora, as crianças do
jardim (5 anos) vão se acomodando nas mesinhas e escolhendo, nas
prateleiras, os jogos e materiais com que desejam ocupar-se.
O material disponível à exploração das crianças é constituído
basicamente por jogos pedagógicos — quebra-cabeças, jogos de encaixe
e montagem, placas de alinhavo, etc.
Nesse espaço, a professora não precisa orientar verbalmente a
atividade dos alunos. A própria organização das condições físicas da
sala indica o que é esperado deles, o que é permitido a eles nesse lugar e
momento da rotina escolar.
Na situação há possibilidades de escolha. Não há lugares
marcados, nem uma tarefa única para todos — cada criança escolhe
com que e com quem brincar, onde sentar.
A situação é um convite à exploração — os jogos estão à
disposição para serem manipulados, observados... Eles permitem/
incitam a atividade das crianças. Nos jogos há problemas implícitos a
serem solucionados: para que servem as peças? Como montá-las? A
criança obedece às sugestões dos brinquedos, aprendendo a usá-los
dentro das regras a que foram destinados.
Mas essa não é a única forma de explorá-los. Além de sua
experiência ou conhecimento desses tipos de jogos, as crianças também
exploram as peças que os compõem, elaborando outras possibilidades e
modos de brincar com elas.
É possível comparar as peças, juntá-las ao acaso, agrupá-las
segundo os mais diferentes critérios e até desenhar com elas,
percorrendo os múltiplos caminhos que o material oferece à sua
atividade.
Sem levar em conta figura e forma, Guilherme junta as peças de
um quebra-cabeça em pares. Ana, percebendo o contorno do
quebra-cabeça, uma borda azul e reta existente em várias peças, utiliza-o
como ponto de encontro para enfileirá-las, sem se importar com os
encaixes. Fernando engata quatro peças montando, empolgado, um
trenzinho, enquanto Júlio transforma a haste e as argolas, que
formariam o corpo do palhaço, no eixo e nas rodas de um avião.
Sentadas no chão, Carol, Elisa e Natália brincam de alinhavo.
Enquanto as mãos movimentam-se ritmadamente sobre as placas, elas
conversam.
Carol: "Eu era a costureira. Eu tava tão cansada, mas preciso
terminar este vestido ".
Elisa: "Eu também".
Natália: "Eu também. Épra festa de hoje à noite".
Carol: "É duro ser costureira. Dá uma dor na costa. Tem
que trabalhar muito. Este vestido é tão grandão, não acaba
nunca".
Natália: "A gente furava o dedo na agulha e não vai poder
ir na festa".
Elisa: "É... a madrasta não vai deixar. Ela vai com as filhas dela e a gente vai ficar sozinha trabalhando... ".
Carol: "Que nem Cinderela, né?".
(Episódio extraído do relatório de estágio de Fernanda Victor, aluna do curso de Magistério, 1993.)
Por meio de
•gos, na escola,
as crianças
reproduzem
diversas
loções sociais:
das trocas
'erpessoais, da
legociação, da
disputa.
8
As
crianças
brincam,
transformando
os
brinquedos,
reelaborando-os criativamente. Combinando os dados da experiência,
elas constróem uma nova realidade.
O movimento de alinhavar, treino motor objetivado
pedagogicamente,
adquire um novo significado
— o "gesto" de costurar —,
enquanto as crianças se
transformam em costureiras
e, em seguida, são impedidas
de irem à festa, em
Cinderelas.
Pelo gesto, pela palavra, a
placa de alinhavo é
convertida em símbolo para o
jogo, e as crianças imitam e
vivenciam um mundo que
querem conquistar. O
faz-de-conta impõe-se aos objetivos didático-pedagógicos,
redi-mensionando-os. Na brincadeira, conhecimento e fabulação,
experiência e simbolização entrelaçam-se.
Brincar na sala de jogos possibilita, também, o relacionamento entre as crianças. Algumas ficam sozinhas. Outras se agrupam, mas têm
dificuldade de se entrosar, não sabem exatamente o que fazer, ficam
observando os colegas. Há as que falam com os amigos, trocam peças e
idéias, num trabalho conjunto efetivo e equilibrado.
Otávio fica em dúvida sobre onde colocar a peça do
quebra-cabeça que tem nas mãos. Danilo, ao seu lado, lhe diz:
"Tá vendo o nome?" (apontando para aparte já montada do
quebra-cabeça). "Então, coloca a sua peça embaixo. "
(Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira.
aluna do curso de Magistério, 1993.)
Há grupos em que as relações são tensas, envolvendo disputa de
interesses, e com algumas crianças querendo se impor ao restante do
grupo. Como todas as crianças queriam o quebra-cabeça da árvore, estabelece-se entre elas a seguinte conversa:
Ricardo: "Ah, Carla! Dá o da árvore para mim. Eu quero fazê
primeiro, tá?".
Fabiana: "Não, não pode dar pra ele. Tem que acabar de
montar pra pegar o outro ".
Carla: "Eu vou ficar com o da árvore. Depois eu vejo pra
quem eu vou dar".
Ricardo: "Isso não vale!".
Carla: "Eu e minhas amigas vamos ficar de mal de você!".
(Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira,
aluna do curso de Magistério, 1993.)
No confronto das possibilidades, no exercício das trocas e negociações, vai se delineando a disputa entre os modos de ver e dizer o mundo
e o outro. Emergem, na dinâmica da brincadeira, as práticas sociais das
crianças, suas histórias em construção no jogo "real" e conflitante das
relações sociais.
O lugar da brincadeira na escola
Vista de perto, com enfoque na criança que brinca, a brincadeira na escola sejevela muito mais complexa, múltipla e contraditória do que leva em
conta o princípio didático-pedagógico que associa o brincar a aprender.
Brincar é, sem dúvida, uma forma de aprender, mas é muito mais
que isso. Brincar é experimentar-se, relacionar-se, imaginar-se, expressar-se, compreender-se, confrontar-se, negociar, transformar-se, ser. Na
escola, a despeito dos objetivos do professor e de seu controle, a brincadeira não envolve apenas a atividade cognitiva da criança. Envolve a
criança toda. É prática social, atividade simbólica, forma de interação
com o outro. Acontece no âmago das disputas sociais, implica a constituição do sentido. É criação, desejo, emoção, ação voluntária.
Quando perde sua dimensão lúdica, sufocada por um uso didático
que a restringe a seu papel técnico, a brincadeira esvazia-se: a criança
explora rapidamente o material, esgotando-o. Isso se dá quando, em vez
de aprender brincando, a criança é levada a usar o brinquedo para
aprender.
Esse uso da brincadeira como estratégia de aprendizagem
acentua-se nas séries iniciais do 1? grau. Incentivada e considerada
atividade fundamental da criança na fase pré-escolar, a brincadeira
costuma ser, então, deixada de lado, ou apenas tolerada. Nas
sociedades urbanas contemporâneas, ler, escrever e estudar tornam-se
as atividades fundamentais para as crianças em idade escolar, e os
jogos e as brincadeiras só têm lugar na prática pedagógica quando
auxiliam a elaboração e construção de conhecimentos sistematizados.
Nesse contexto, o jogo aparece (con)fundido com o "material concreto" utilizado nas aulas de Matemática, como recurso para a fixação
de regras ortográficas ou de conteúdos a serem memorizados, como
meio para a elaboração conceituai. Usam-se bingos, jogos de memória,
"coelhinho sai da toca" (para dar noções espaciais, como de domínios e
fronteiras), etc.
Os professores propõem aos alunos: "Vamos fazer um jogo?". Mas
o jogo sugerido pouco tem dos "jogos de verdade" com que as crianças
se divertem fora da escola. Nele não há ganhador ou perdedor, pois o
objetivo é aprender, e não jogar. Seu propósito não diz respeito à atividade do próprio jogo, e sim a uma necessidade e a uma lógica alheias a
ele: a necessidade de sistematização de determinado conhecimento e a
lógica do próprio conhecimento.
A culminância das atividades envolvendo jogos está, do ponto de
vista pedagógico, no que acontece depois do jogo. Está no registro e na
análise do que se fez, dos resultados obtidos, do que se observou durante o jogo, etc, e não no jogar em si.
Desfigurado, o jogo oscila entre a "ausência de sentido" e a "busca
de sentido". Ou as crianças não se envolvem, reclamam que os jogos
propostos são chatos, resistem ao registro e à análise, ou então brincam,
mas "sem prestar atenção ao que é importante". Professores e crianças
passam a desconfiar (por motivos distintos, naturalmente) da presença
do jogo na escola. Para que, então, o jogo na escola? Como lidar com
ele?
Ao possibilitarmos o jogo e observarmos as crianças brincando,
podemos nos ater a suas respostas (ao que elas fazem), identificando o
que elas conhecem (ou não), se desempenham as tarefas e se solucionam os problemas. Podemos, também, intervir na sua atividade, no sentido de ajustar suas respostas ao que delas esperamos durante o jogo. Os
dados observados, incluindo os "efeitos" de nossa intervenção, permitem a nós, professores, classificar as crianças segundo seu desempenho,
formando o grupo daquelas que conseguem montar o quebra-cabeça e o
daquelas que não conseguem, o das que agem prontamente e o das
dispersivas.
As respostas das crianças também podem nos servir de indicadores
do seu desenvolvimento: estas "já" montam o quebra-cabeça, aquelas
"ainda" não, etc. Nesse caso, continuamos classificando as crianças,
mas a classificação baseia-se no grau de proximidade ou distanciamento entre o que a criança faz e o que é esperado dela, de acordo com
as etapas do desenvolvimento apontadas pelas teorias da psicologia.
Nos dois modos acima descritos de utilizar o jogo, este serve como
instrumento de avaliação e, implicitamente, de seleção: a diversidade
que aparece entre as crianças é hierarquizada e analisada como desigualdade. Uma teoria psicológica adotada pelo professor pode, então,
levá-lo a colocar e sustentar "etiquetas" nas crianças.
É possível, no entanto, fazer do jogo um momento de conhecimento e de convivência com as crianças, que nos permite conhecer seus
modos e percursos de apropriação e elaboração do mundo, pois podemos voltar nosso olhar não apenas para aquilo que elas fazem, mas para
o como elas fazem. Quais são as elaborações das crianças? Em que medida respeitam ou transformam o projeto, a estrutura e a tática do jogo9
Que associações de idéias elas fazem no transcorrer da brincadeira9 O
que se mostra significativo para elas? Que elementos se tornam subitamente personagens, passando a agir por conta própria? Durante a brincadeira, o que elas dizem, a quem, quando, como? Como se relacionam
com o outro (real ou imaginado)?
Nesse processo o objeto de nossa atenção torna-se outro, bem
como nossas perguntas acerca da criança e de nossa prática. Buscamos
um novo sentido para o nosso trabalho pedagógico: conhecer a criança
para trabalhar com ela, para brincar com ela, para aprender com ela.
Aprender e ensinar a brincar
No parque, crianças de 4 anos brincam na areia. Uma delas se
aproxima da professora e oferece o "bolo de chocolate " que havia
feito com areia:
— Professora, experimenta. Fui eu que fiz— Hum! Que delícia! Ah, mas agora me deu sede. Você não
quer fazer um suco para mim?
— Tá bom.
A criança mistura água com um pouco de areia num copinho
de danone.
— Professora, olha o suco.
— Do que é?
— É de laranja.
— Que tipo de laranja?
— Laranja-lima.
A criança volta efaz outro bolo, só que agora com enfeites de
folha de árvore, e o oferece à professora.
— Você só sabe fazer doce?
— Não.
— Então eu quero um salgado.
— Eu vou preparar um salgadinho doce.
A criança volta com várias bolinhas de areia nas mãos.
— Obal Que salgadinho é esse?
— Bolinha de queijo.
A professora, fingindo comer o salgadinho, oferece-o a outra
criança:
— Quer uma, Mateus?
— Eu não!!! — responde Mateus.
— Ah! Nós come de mentirinha — diz a primeira criança.
(Episódio extraído do relatório de estágio de Juliana Nogueira,
aluna do curso de Magistério, 1993.)
A professora, ao aceitar o bolo de chocolate, aceita o convite que a
criança lhe faz para brincarem juntas. Quem comanda a brincadeira é a
criança, mas a professora, assumindo um papel na brincadeira, encoraja-a a explorar outras possibilidades e nuances da situação imaginada:
"Você não quer fazer um suco para mim?", "Você só sabe fazer doce?".
A atenção ou destaque que a professora vai dando a determinados
aspectos da brincadeira constituem a via pela qual ela interfere na atividade da criança, não para ajustá-la à sua própria maneira de considerar
o jogo, mas para, explorando com ela outras possibilidades,
enriquecê-lo em organicidade e duração.
Pelo fato de a brincadeira não ser uma simples recordação de impressões vividas, mas uma reelaboração criativa delas, e por consistir
sempre e apenas de materiais colhidos na realidade, o adulto tem nela
um importante papel. A vantagem de dispor de uma experiência mais
vasta, de um repertório mais amplo de formas para imitar lhe permite ir
mais longe com a imaginação. Ao compartilhar sua experiência inventiva com a criança, a professora "ensina-a" a brincar.
Na dinâmica do jogo, ela pode estimular e organizar as respostas
da criança, colocando ao seu alcance novos elementos e possibilidades
sígnicas.
Além de ensinar, nessa relação a professora também aprende.
Como destaca Rodari, no seu Gramática da fantasia:
[...] aprende-se com a criança a falar com as peças do jogo, a
compreender seus nomes e papéis, a transformar um erro em uma
invenção, um gesto em uma história [...]; mas também a confiar às
peças mensagens secretas (porque são elas que dizem à criança que
a queremos bem, que ela pode contar conosco, que nossa força é
sua).
(1982:93.)
Nesse terceiro modo de utilizar o jogo que descrevemos, o professor elabora um saber sobre as crianças (sobre as particularidades de
cada uma e sobre as regularidades no processo de como elas aprendem
e se desenvolvem) e um saber sobre sua prática (sobre as possibilidades de sua participação nos processos de aprendizagem e desenvolvimento de cada uma e de todas as crianças com quem interage).
Nesse saber elaborado no cotidiano do trabalho pedagógico, as teorias constituem um referencial importante para ajudar a perceber e compreender a complexidade, a multiplicidade e as contradições das relações de ensino.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Elabore um quadro-resumo acerca das diferenças e semelhanças
entre as concepções de Vygotsky e Piaget sobre o desenvolvimento da
brincadeira da criança.
Trabalho de campo
Observe crianças brincando na escola e anote tudo o que puder,
seguindo as mesmas orientações dadas no capítulo anterior. Elabore um
relatório de suas observações, discutindo, a partir dos subsídios do texto, questões relativas ao lugar do brinquedo na escola.
Exercitando a análise
O filme O Menino Maluquinho focaliza com sensibilidade a infância: os desejos, a família, as angústias, a escola, os amigos, as brincadeiras, as traquinagens.
Assista ao filme e, depois, organize um debate em classe. Troque
com os colegas opiniões e impressões sobre o filme e destaque aspectos, cenas, situações que possibilitem refletir sobre a brincadeira infantil, sua importância e seu desenvolvimento.
Sugestão de leitura
RODARI, G. Jogos no parque. In: _______ . Gramática da fantasia. São
Paulo: Summus, 1982.
Capítulo 12
O desenho infantil
Desenho:
presença
constante na
pré-escola.
A professora distribui folhas em
branco, lápis e giz de cera. Uma agitação
toma conta das crianças. E hora de desenhar. Elas falam umas com as outras,
contam sobre o que vão desenhar. Uma
olha o desenho da outra. Alguém diz que
não sabe fazer um gato. Gradativamente
as marcas no papel vão aparecendo:
ga-ratujas, bonecos, casinhas, animais.
Desenhos grandes, que ocupam toda a folha. Desenhos pequenos colocados em um
cantinho do papel. Monocromáticos ou
multicoloridos.
Atividade intensa e envolvente para
as crianças, o desenho na pré-escola tem
uma presença constante. É visto como
possibilidade de expressão, como incentivo à criatividade. Ou ainda como indicador do nível de desenvolvimento
cognitivo e afetivo das crianças. Tendo em
vista a alfabetização, o desenho é também
considerado uma forma agradável de trabalhar a coordenação motora
das crianças, sua capacidade de atenção e concentração, seus
conhecimentos sobre cores, formas, etc.
Na escola do 1? grau, a escrita, a leitura e os cálculos gradualmente
passam a ocupar o espaço do desenho e a determinar seu novo papel. As
crianças desenham para ilustrar um texto, para enfeitar seus cadernos,
para compor conjuntos numéricos. Desenham ainda nas aulas de Ciências ou Estudos Sociais, copiando dos livros o ciclo da água ou mapas
geográficos.
O desenho livre, a exploração das diversas possibilidades oferecidas pela atividade gráfica, quando ainda se mantém, ganha um espaço
restrito e delimitado: as aulas de Educação Artística. Estas podem ser
tanto um espaço para a atividade artística criativa, para o ensino de técnicas diferentes, quanto para a reprodução de modelos, por meio da
confecção de "trabalhos manuais", em que o trabalho de uma criança
seja semelhante aos das outras.
Elemento capaz de proporcionar a livre expressão e a criatividade,
o desenho se faz presente na escola como exercício da coordenação
motora ou treino de habilidades manuais, como ilustração ou apoio para
a compreensão de determinados conteúdos ou, ainda, como recurso
para a mera ocupação do tempo quando a programação do dia já foi
cumprida.
Entretanto, que concepções sobre o desenho sustentam sua
presença na escola? Qual o significado do desenho para a criança?
Como ele se desenvolve? E qual o seu papel no desenvolvimento e na
aprendizagem da criança? Esses são alguns aspectos que nos parecem
fundamentais quando se busca a construção de uma prática pedagógica
cientificamente fundamentada. Este capítulo pretende trazer elementos
que ajudem a compreensão e a reflexão sobre esses pontos.
Quando o traço no papel recebe um nome
Quando observamos uma criança muito pequena rabiscando ou
"desenhando", notamos facilmente que os traços não são nada mais que
a fixação no papel de seus movimentos das mãos, dos braços e, às vezes, até do corpo todo.
Os primeiros desenhos ou rabiscos infantis podem ser vistos mais
como gestos que imprimem marcas em uma superfície do que propriamente como desenhos.
De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento posterior do desenho
não é puramente mecânico nem tem explicação em si mesmo: é preciso
que, num dado momento, a criança descubra que os traços feitos por ela
podem significar algo.
Rafael, de 3 anos, está desenhando em sua casa. Sentado à
mesa, produz com o lápis movimentos mais ou menos circulares,
deixando marcas no papel. Num dado momento, olha para a sua
produção e exclama, dirigindo-se à sua mãe: "Olha, mãe! Eu fiz
um fusca! ".
(Episódio extraído das experiências familiares de uma das autoras.)
A criança, ao nomear o seu desenho depois que o fez, relaciona os
traços que produziu (que podem ou não assemelhar-se a algo real) a um
objeto concreto (no caso, um fusca). E, pelo ato de nomear, seu desenho
torna-se significativo.
A fala tem, assim, um papel fundamental na descoberta que a criança faz de que seus rabiscos podem significar algo, segundo Vygotsky. É
importante lembrar que, antes que a criança nomeie seu desenho, ele é
nomeado pelos adultos que a rodeiam (habitualmente perguntam à
criança o que ela desenhou ou dizem coisas como "Olha, você fez um
menininho!").
Embora a descoberta de que os traços do desenho podem representar objetos reais ocorra nos primeiros anos da infância, Vygotsky
observa que essa descoberta ainda não eqüivale à da função simbólica
do desenho.
A nomeação, feita inicialmente depois de pronto o desenho, passa
gradativamente a acompanhar o ato de desenhar. E muito comum
observarmos crianças que começam a fazer traços no papel e vão,
durante o ato de desenhar, nomeando o que estão fazendo. A decisão
quanto ao que desenhar não é tomada antecipadamente, mas no
decorrer do próprio desenho elas falam e nomeiam o que estão fazendo.
Depois, a nomeação começa a se dar no início do processo de desenhar. A criança diz "Vou desenhar uma flor" ou "Vou fazer uma casa",
antes de começar a desenhar.
Essa mudança relativa ao momento da nomeação no desenho demonstra que os primeiros traçados da criança ainda não representam
simbolicamente, em si mesmos, os objetos reais. É apenas pelo ato de
nomeação, pela utilização da linguagem falada que os desenhos ganham algum significado. Tanto é assim que muitas vezes o significado
passa a ser outro no decorrer do ato de desenhar. A criança pode explicar que está fazendo um gato e, antes mesmo de completar o desenho,
dizer "Isto é uma bruxa".
Por isso Vygotsky afirma que a "representação simbólica primária
deve ser atribuída à fala" e considera que o próprio desenho torna-se
simbólico pela utilização da linguagem oral. O desenho transforma-se
efetivamente em representação simbólica quando a nomeação passa a
se dar no início do ato de desenhar e a criança torna-se capaz de decidir
antecipadamente o que vai desenhar.
A criança desenha o que sabe e não o q
Rabiscos, bonecos formados por um círculo do qual saem dois traços, carro de perfil com quatro rodas, casinha com chaminé, árvores e
sol com raios. Essas e outras formas tomadas pelo desenho da criança
são vistas por Vygotsky em sua estreita relação com a linguagem. Para
ele, "o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a
linguagem verbal" (1984: 127), conforme já observamos
Os primeiros desenhos infantis, reproduzindo somente aspectos essenciais dos objetos, assemelham-se a conceitos verbais. Ao desenhar, a
criança tem a fala como base: ela conta uma história ou o que ela sabe
sobre os objetos. Vygotsky diz que a criança não se preocupa com a
representação da realidade, com a reprodução daquilo que vê. Ao contrário, ela tenta, por meio do desenho, identificar, designar, indicar aspectos determinados dos objetos. Ou seja, a criança não começa desenhando o que vê, mas sim o que sabe sobre os objetos.
3J
Fig. 1
*ar*U Ha
Na figura 1, por exemplo, o desenho mostra
traços que, antes de representar em detalhes o que a
criança quis desenhar (um carro-guincho), indicam
aspectos de um carro-guin-cho: duas formas
contendo duas rodas cada uma, ligadas por um traço.
Na figura 2, pes- Fig. 2 soas são representadas por
formas que indicam a cabeça, os braços e as pernas.
Isso implica certo grau de abstração, de generalização, do mesmo
modo que a palavra na linguagem verbal. Já vimos, em capítulos anteriores,
que o significado de determinada palavra não é um objeto concreto com
todas as suas características. O significado da palavracoelho, por exemplo,
comporta uma abstração, uma generalização que poderia ser expressa da
seguinte forma: "pequeno mamífero leporídeo, selvagem e doméstico"
(Dicionário Melhoramentos da língua portuguesa). Esse conceito verbal
não faz referência a todas as características de um coelho concreto, determinado, como cor, tipo de pêlo, tamanho, formato da cabeça, etc.
-3 Awwwuiív
O desenho da criança é uma espécie de conceito verbal: ele não reproduz
todas as características de um coelho determinado^mas os aspectos mais
relevantes para identificá-lo, como se pode observar nas figuras 3 e 4.
Se a criança desenha o
que sabe, um coelho sem as
quatro patas (figura 3)
significa que a criança não
sabe que um coelho tem
quatro patas? A afirmação de
Vygotsky de que as crianças
desenham o que sabem não
quer dizer que tenham tão
pouco conhecimento quanto
seus desenhos poderiam
fazer supor. Eles mostram,
isso sim, um elevado grau de
generalização, próprio do
conhecimento humano, que,
vimos, é sempre
d-*xübo^ como
elaborado na forma de
conceitos, de significados.
A idéia de que a criança desenha o que sabe, e não o que vê, não é
exclusiva de Vygotsky, tendo sido defendida também por Luquet, um dos
mais conhecidos estudiosos do desenho infantil, que distinguiu quatro estágios
na evolução dessa atividade.
O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet
O primeiro estágio
identificado por Luquet,
o do realismo fortuito,
começa por volta dos 2
anos. A criança descobre
uma semelhança qual
wp, quer entre seu traçado no
v«
i
?Ç.«^>" *1. ... .-
ÍS*.
papel (feito sem intenção
de representação) e um
objeto. Então, depois que
^LM. ..
fez o desenho, ela o no**
meia.
s
Rafael, aos 3 anos e meio, chamou de "gira-gira" o desenho acima,
depois de marcar sobre o papel o movimento de girar daquele brinquedo
(figura 5).
O segundo estágio, do realismo fracassado,
caracteriza-se pelas primeiras tentativas da criança de reproduzir algumas formas. Os elementos
de seu desenho são muitas vezes justapostos, em
vez de coordenados: um chapéu pode ser desenhado muito acima da cabeça, por exemplo. É
nessa fase que aparecem os primeiros desenhos de
figuras humanas, como aqueles em que há apenas
a cabeça e as pernas (figura 6).
O terceiro estágio, que começa mais ou menos aos 4 anos e pode estender-se até os 10 ou 12
anos, é o do realismo intelectual. Durante esse
período, aparecem o plano deitado (figura 7) e a
transparência (figura 8). Esses recursos demonstram que, de fato, a criança desenha o que sabe
sobre os objetos, e não o que vê.
Na figura 7, vêem-se inúmeros
detalhes no desenho de
uma rua, embora as
formas do skatista, da
moto, dos pedestres e dos
prédios
(representados
deitados)
não
correspondam ao modo
como são vis-tos na
realidade. Na figura 8, as
roupas do condutor de
trem são transparentes,
revelando
traços
do
personagem que não
poderiam ser vistos em
^vwnva.
O M«fff/(to
alguém vestido. Desenhos como o de um
feto dentro da barriga da mãe ou o de uma
árvore atrás de uma casa, da qual se vê o
tronco (e não só a copa), também são exemplos de transparência.
O quarto e último estágio, próprio da
adolescência, é o do realismo visual.
Caracteriza-o
o
aparecimento
da
perspectiva: a criança (ou o adolescente)
passa a representar o que vê a partir de
determinada perspectiva. Assim, uma árvore
atrás de uma casa tem apenas sua copa
desenhada; os
Fig. 8
objetos mais distantes são desenhados em tamanho menor. Um rosto de
perfil é desenhado com apenas um olho, e um caminhão de lado com
apenas duas (ou três) rodas (figura 9).
""" '
€L ^TATÍCKE^
Fig. 9
ano*
A criança é realista na intenção: a perspectiva de
Piaget
Piaget também admite na evolução do desenho infantil os estágios
identificados por Luquet. Ele considera que até os 8-9 anos o desenho
da criança "é essencialmente realista na intenção, [...] o sujeito começa
desenhando o que sabe de um personagem ou de um objeto, muito antes
de exprimir graficamente o que nele vê".
Assim como Vygotsky, Piaget considera que o desenho constitui
uma espécie de conceitualização, antes de se tornar cópia do real. (E
importante não esquecer as diferenças entre as concepções de Piaget e
as de Vygotsky sobre a formação de conceitos.) Como elemento da função simbólica, o desenho representa um esforço de imitação do real,
estando submetido ao desenvolvimento do próprio pensamento da
criança. Isso quer dizer que, embora realista na intenção, a semelhança
entre o desenho da criança e a realidade é determinada pelo nível de
conceitualização atingido, em cada estágio, pelo seu pensamento.
Piaget vê, portanto, a evolução do desenho como concomitante ao
desenvolvimento do pensamento e, principalmente, à evolução do conhecimento sobre o espaço. Isso porque o desenho envolve sempre a
representação de relações espaciais. Relações de vizinhança, de envolvimento ou de limites, de perspectiva ou de profundidade, todas implicam uma forma de organizar o espaço gráfico.
Vejamos, por exemplo, a representação da perspectiva, que, conforme os estágios propostos por Luquet, só aparece no desenho infantil
por volta dos 10 ou 12 anos. Se no plano perceptivo ela tem noção de
perspectiva muito antes dessa idade, por que demora tanto a
representá-la?
De acordo com Piaget, é porque existe uma diferença fundamental
entre ver em perspectiva e representar a perspectiva.
Para considerar um objeto de determinado ponto de vista não
é necessário estar consciente dele. Em compensação,
representar-se ou representar graficamente o mesmo objeto em
perspectiva supõe que se tem consciência, simultaneamente, do
ponto de vista sob o qual é percebido e das transformações devidas
à intervenção desse ponto de vista.
(Meredieu, 1974: 57.)
Assim, embora a criança pequena tenha um conhecimento prático
do espaço que a cerca, sabendo se localizar nos cômodos da casa, realizar sozinha pequenos trajetos na rua, prever a distância entre dois pontos para ir de um a outro, reconhecer a sua casa a partir de diferentes
perspectivas e distâncias, ela ainda não é capaz de representar, mentalmente ou graficamente, essas relações espaciais.
No plano das ações práticas e das percepções, ela tem um conhecimento do espaço que ainda não se traduz em uma compreensão
concei-tualizada das relações espaciais. A evolução do desenho seria,
então, concomitante ao processo de construção do conhecimento
relativo ao espaço. Seus diferentes estágios estariam, de acordo com
Piaget, vinculados aos diferentes níveis de estruturação do
conhecimento espacial, de compreensão das relações espaciais. É
importante lembrar que a estruturação do conhecimento espacial, por
sua vez, é simultânea ao desenvolvimento do pensamento.
Tanto Piaget quanto Luquet supõem que, embora durante a maior
parte da infância as crianças desenhem o que sabem, e não o que vêem,
chega-se ao realismo visual, tido como a etapa final do desenvolvimento do desenho. Eles consideram que as crianças, ao desenhar,
são realistas na intenção, ou seja, têm como objetivo a representação
realista do real. O fato de, apesar dessa intenção, elas não desenharem
aquilo que vêem deve-se ao seu nível de maturidade ou desenvolvimento cognitivo. Portanto, chegar a desenhar o que se vê seria,
para Piaget e Luquet, o resultado natural do processo de desenvolvimento do desenho.
O realismo visual é aprendido: a perspectiva
de Vygotsky
Florence de Meredieu, pesquisadora francesa de artes, em seu
trabalho sobre o desenho infantil, argumenta que a aprendizagem da
perspectiva (necessária ao realismo visual) não pode ser encarada como
natural. Ela considera que, "da Renascença até o Impres-sionismo, a
pintura esteve reduzida à representação do espaço per-ceptivo,
considerado como o único espaço verdadeiro" (1974: 40), chamando a
atenção para a concepção de ensino do desenho baseado na observação
e imitação do real.
A representação do real pelo desenho passa a ser considerada algo
natural, não se reconhecendo seu caráter convencional. A representação
do espaço perceptivo é apenas
[...] um dos aspectos de um modo de expressão convencional,
baseado em certo estado das técnicas, da ciência, da ordem social
do mundo em determinado momento. Cumpre então situar a perspectiva de maneira correta, tomando-a pelo que é: uma "simples
montagem" estética e não uma categoria do espírito.
(Meredieu, 1974: 41.)
Vygotsky também observa que a capacidade de desenhar o que se
vê não é algo que se desenvolve espontaneamente. Ele demonstra, empregando dados de outros pesquisadores, que a idade normalmente
identificada pelas teorias como aquela em que se chega ao realismo
visual coincide com o momento em que os desenhos começam a desaparecer.
De fato, poucas crianças atingem esse "último estágio" do desenvolvimento do desenho sem terem recebido algum tipo de treino ou
instrução especial. A maioria gradativamente abandona a atividade do
desenho e, quando desenha, não chega a ultrapassar as formas próprias
do estágio que Luquet denominou realismo intelectual. Quantos de nós
mesmos dizemos que não sabemos desenhar? E, se nos vimos obrigados a fazê-lo, produzimos geralmente algo que se assemelha ao desenho de uma criança de 8 ou 9 anos.
Ao que tudo indica, o realismo visual eqüivale, de fato, a um padrão estético convencional socialmente valorizado, não tendo sua
aprendizagem nada de natural. A partir de determinada idade, a criança
já não se contenta com seu desenho, como aponta Vygotsky. Seja por
não conseguir corresponder aos padrões socialmente valorizados, seja
por já não ser suficiente para atender às necessidades expressivas da
criança, o desenho acaba por ser abandonado.
A partir de certo momento, torna-se fundamental a aprendizagem
de técnicas, pois é apenas quando a criança ou o adolescente passam a
conhecer as diferentes técnicas e os diversos padrões estéticos constituídos culturalmente que sua própria habilidade poderá continuar a se
desenvolver, ajudando-a a expressar sua visão de mundo.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Organize um quadro-resumo com as etapas de desenvolvimento do
desenho discriminadas por Luquet.
2. Reproduza o quadro abaixo e, a partir das informações do texto,
complete-o.
Vygotsky
Piaget
Semelhanças
Diferenças
"Trabalho de campo
Observe pelo menos duas crianças de idades diferentes (uma de 2 e
outra de 5 anos, por exemplo) desenhando, em casa ou na escola. Caso
não surja naturalmente uma oportunidade para isso, convide crianças
conhecidas (parentes, vizinhos) para desenhar. Se for necessário, providencie o material: folhas de sulfite, lápis ou giz de cera. Peça às crianças
que lhe dêem ou emprestem um dos desenhos que elas fizerem para
você mostrar a seus colegas na escola ou para guardar.
Durante a observação, preste atenção à fala da criança: o que ela diz,
a quem, em que momento da produção de seu desenho. Se possível, faça
suas anotações na própria situação de observação, ou logo em seguida.
Elabore um pequeno relatório, analisando, a partir dos subsídios do
texto, o papel da fala na elaboração do desenho. Tente também classificar os desenhos que coletou, segundo os estágios propostos por Luquet.
Justifique sua classificação e, caso tenha encontrado dificuldades,
co-mente-as.
Exercitando a análise
1. Convide o professor de Educação Artística da escola para fazer uma
breve apresentação (se possível, ilustrada com reproduções de obras
famosas) da evolução histórica da pintura, com o objetivo de discutir
a questão do realismo nas representações gráficas. Faça anotações
durante a exposição do professor. Depois, com base nas anotações e
na releitura do capítulo, elabore um texto analisando o realismo no
desenho infantil.
2. Faça um desenho. Cada qual deve fazer pelo menos um e, depois, vocês
devem organizar uma exposição de seus próprios desenhos. Analisem a
exposição: Em que os desenhos que vocês produziram são diferentes dos
das crianças? Em que são parecidos? A partir dessa análise, discutam as
abordagens apresentadas no texto sobre a evolução do desenho. Todos os
adultos atingem a última etapa identificada por Luquet e Piaget? Por quê?
Sugestão de leituras
DERDYCK, E. Formas de pensar o desenho; o desenvolvimento do grafismo infantil. São Paulo: Scipione. (Coleção Magistério).
MEREDIEU, F. O desenho infantil. São Paulo: Cultrix, 1974.
Capítulo 13
Desenhando na escola
Numa sala de pré-escola, as crianças estão desenhando. Ivo pede a Toni
que lhe faça um desenho. Toni concorda, mas continua desenhando.
Ivo: Toni, você faiz um minininho desse pra mim, faiz? (Toni
concorda com a cabeça, e continua desenhando). Que que é isso, Toni?
Toni: Ué, maçã, aqui laranja e aqui é a banana (vai apontando).
Ivo: Nunca vi laranja assim, ó (mostra na folha de Toni).
Toni: ...Vai dando um giz, vai dando um cor de abacate (Ivo havia
pegado todos os lápis).
Ivo: Num tem cor de abacate.
Toni: O cor de abacate (tira o verde do monte que está com Ivo).
Toni desenha uma árvore com frutas. Ivo:
Toni, como que faiz árvore? Toni: Faz
árvore? Qué que eu faço? Ivo: Quero.
Toni: Cê qué amarrão ou azul? Ivo:
Quero... Toni: Cor de laranja ?
Ivo: Quero cor de aba... ó, é, é assim, assim, assim (mostra no
desenho de Toni).
Toni: Qué com fruta ?
Ivo: Quero com maçã, com... com...
Toni: Com laranja.
Ivo: E com...
Toni: Uva.
Ivo: Com uva!
Toni: Maçã. E com banana, não é?
Ivo: Cadê a banana?
Toni: A banana é aqui (aponta), e aqui é abacate. Abacate é mais
gostosa com açúcar. Ivo: Eu quero abacate.
Ivo: Pode pinta colorido?
Toni: Pode!
Ivo: Cor de abacate ? (Ivo pinta e Toni olha, debruçado sobre
a mesa).
Toni: Cor de abacate também. Faz as fruta também. Num esquece, tá bom?
Ivo: Eu num sei fazê fruta.
Toni: Fruta? Então deixa que eu faço.
(Episódio apresentado na dissertação de mestrado de Silvia Maria
Cintra da Silva, As condições sociais de produção do desenho,
Unicamp, 1993. Os comentários que faremos a seguir são de nossa
responsabilidade, embora inspirados nas belas análises feitas pela
autora no decorrer de sua dissertação.)
Toni aparece aqui como aquele que sabe, que serve de modelo, que
ensina e que faz para o outro. Nem por isso Ivo deixa de fazer uma
observação crítica sobre o seu desenho ("Que que é isso?", "Nunca vi
laranja assim"). O fato de dizer "Nunca vi laranja assim" demonstra que
Ivo espera que o desenho se pareça com aquilo que ele vê na realidade.
E talvez seja por isso que ele pede a Toni que lhe desenhe um
menini-nho. Toni "sabe desenhar", seus desenhos se parecem com o que
se vê. Ivo provavelmente ainda não consegue fazer o mesmo.
Depois de observar o desenho de Toni, Ivo não quer mais que este
lhe faça um menininho. Quer saber e aprender como se faz uma árvore.
Toni se propõe fazer por ele e para ele. Ivo aceita e começam, então, a
negociar as cores e os detalhes do desenho.
Ivo pinta sua árvore. Ainda aqui pede a ajuda de Toni: "Pode pinta
colorido?", "Cor de abacate?". A expressão cor de abacate, que no início fora utilizada por Toni sem que Ivo identificasse a que cor se referia
("Num tem cor de abacate"), é agora também utilizada por este.
Toni assume realmente o papel daquele que sabe e que ensina. Diz
a Ivo que faça as frutas e propõe-se desenhá-las quando este diz que
não sabe.
Se tivéssemos em mãos o desenho de Ivo, o que veríamos? Uma
árvore com frutas coloridas, pela qual poderíamos tentar avaliar sua
capacidade de desenhar. Qual o tema de seu desenho? A forma aproxima-se da realidade? As cores que utilizou estão "adequadas"?
A partir das respostas a essas perguntas, faríamos uma avaliação ou
uma apreciação do trabalho de Ivo e de sua capacidade de desenhar. A
avaliação provavelmente não corresponderia à realidade. Se comparássemos o seu desenho com o de Toni, poderíamos concluir que Ivo fez
uma cópia ou, então, que Toni é realmente o autor do desenho. Nesse
caso, não haveria nada a dizer sobre a capacidade de desenhar de Ivo,
sobre sua escolha de tema e a forma de seu desenho.
Analisando o processo de elaboração do desenho
■
Mas, quando observamos o processo de elaboração do desenho vivido por Ivo e Toni, o que apreendemos sobre eles, sobre como desenham e sobre como seu desenho vai sendo produzido?
Nesse processo, uma criança serve de modelo para a outra, tem
seus desenhos valorizados, já que "sabe fazer". Essa criança auxilia,
explica, ensina, ajuda a decidir e faz pela outra, a que pede ajuda e
explicações, a que aparentemente "não sabe", mas que critica e opina.
Durante a elaboração do desenho, há um partilhar de saberes, de informações e de experiências ("Nunca vi laranja assim", "Ó cor de
abacate", "Abacate é mais gostosa com açúcar"). Há também negociação envolvendo formas, cores, o que e como desenhar.
O desenho é
sempre resultado
das interações
sociais somadas ao
auxílio que o
indivíduo recebe e
aos materiais e
técnicas a que ele
tem acesso.
Quando observamos o processo de elaboração do desenho pelas
crianças, colocamos em questão a pretensa natureza individual dessa
forma de atividade. A participação do outro nesse processo é clara: um
adulto ou outra criança auxilia, fornece pistas ou instruções, opina, critica, elogia, incentiva ou faz junto.
Também nos modelos à disposição da criança, está presente a participação do outro. O desenho da professora, de um colega ou do irmão, as
gravuras dos livros, das revistas, das propagandas, etc, sugerem os temas,
as formas, as cores, evidenciam o que é socialmente valorizado como
belo, correto, bem-feito, indicam o que é saber e não saber desenhar.
Portanto, o processo de aprender a desenhar implica a interação da
criança com outros membros de seu grupo cultural e com modelos socialmente disponíveis. O desenho evolui à medida que a criança se
apropria das formas culturalmente constituídas de atividade gráfica.
O desenhar não é, assim, uma , atividade necessariamente solitária
e individual. Não é apenas o grau de maturidade ou o nível de desenvolvimento do pensamento que se manifestam nos desenhos da
criança. O que e como ela desenha emerge das interações sociais em
que ela está inserida. Depende do auxílio, das pistas e instruções que
recebe; da partilha de informações, opiniões, preferências; da sua
relação com os modelos, os materiais e as técnicas a que tem acesso.
E a criatividade, onde fica?
Será possível criar algo novo sem recorrer às nossas experiências
anteriores? Vygotsky afirma que a possibilidade de criação do homem
está apoiada em sua faculdade de combinar o antigo com o novo a
partir de elementos da sua própria experiência. A atividade criadora
encontra-se em relação direta não só com a riqueza e a variedade de
nossas experiências individuais, mas também com as experiências
socialmente produzidas pela humanidade. Cada grande invento, descoberta ou obra de arte produzidos pelo homem tem como base para
seu surgimento a enorme experiência acumulada social e culturalmente.
Vygotsky nos dá o seguinte exemplo da relação entre criação e
meio social:
Suponhamos que nas ilhas Samoa nascesse uma criança dotada das qualidades e do gênio de um Mozart. Que poderia fazer?
No máximo, ampliar a gama de três ou quatro tons para sete e
compor algumas melodias um pouco mais complicadas, mas seria
tão incapaz de compor sinfonias como Arquimedes de construir um
dínamo elétrico.
(Vygotsky. lmaginacion y ei arte en Ia infância.
México: Hispânicas, 1987.)
15*
Toda obra criadora parte sempre de níveis alcançados anteriormente (seja na arte, seja na ciência), e nenhuma descoberta ou obra original
aparece antes que estejam socialmente criadas as condições materiais e
psicológicas para seu surgimento.
Assim, antes de ser um potencial de certos indivíduos, a criatividade é algo que emerge de práticas sociais próprias de determinadas
épocas históricas e de determinados grupos culturais.
Logo, o desenvolvimento da criatividade depende das experiências, dos interesses e necessidades da criança, mas também de conhecimentos técnicos, das tradições e dos modelos de criação a que ela tem
acesso. O desenvolvimento do desenho criativo envolve a apropriação
pela criança da experiência cultural. Quanto mais ricas essas experiências, quanto mais variados os modelos a que tiver acesso, quanto mais
incentivos, auxílios, técnicas e materiais lhe forem proporcionados,
maior será a sua capacidade criativa.
Desenhando e aprendendo
Numa sala de pré-escola, a professora aproxima-se para ver os
desenhos das crianças: Esse aqui é a menina, é? Esse que é a menina? Que que é, as pernas da menina?
Eva: É.
P: Cê fez uma perna vermelha e outra verde? Que mais cê fez
aí? E a cabecinha dela ? Faz a cabeça pra ela.
Lu: E a boca?
P; Não, pra mim isso é o corpo... Faz o chão pra ela não ficar
voando.
Eva: Onde tá o chão ?
P: Onde é as pernas dela ? Mostra pra mim.
Eva: Aqui (mostra no desenho).
P: Então, então faz o chão pra ela não ficar voando.
Eva desenha um traço, o chão, sob as pernas da menina.
P: Isso, muito bem! Então aqui é aperninha dela? {indica com
o dedo).
Eva: É.
P: Aqui é os braços, a perna, agora faz a cabecinha dela.
[...]
P: Isso, Eva. Agora o olhinho, pra ela não ficar sem olho...
Eva risca em outro lugar da folha.
P: Aí não é o olho não, né? O que que é aí?
Eva: Aí é a cabeça!
P: Aí que é a cabeça? Então faz!
Lu: A oreia, cadê a oreia ?
Gil: Cadê a oreia?
P: Faltou a boca, ó (Eva desenha a boca). E o nariz? (ele faz).
Gil: E a oreia? isso que é oreia, faiz otra oreia aqui, ó (aponta
com o lápis no desenho de Eva).
Lu: É mesmo. Fica igual a um coelho! Cadê os cabelo? P:
O cabelo, ela esqueceu? Cê esqueceu do cabelo, Eva?
Eva: Aí, o nariz.
(Episódio apresentado na dissertação de mestrado de Silvia M. C. da
Silva, As condições sociais de produção do desenho, Unicamp, 1993.)
Desenhar na escola é desenhar com os outros e para os outros.
Crianças e professora participam da construção do desenho de Eva. Sugerem, apontam, indicam, comentam. O desenho de Eva vai se compondo, se transformando. E Eva vai "aprendendo" a desenhar, vai descobrindo o que é esperado de seu desenho, quais os padrões socialmente
valorizados como corretos, necessários e bonitos.
Esses padrões, no episódio descrito acima, aparecem na intervenção da professora, revelando suas concepções sobre o desenho infantil:
"Cê fez uma perna vermelha e uma verde?", "Faz o chão pra ela não
ficar voando", "E a cabecinha dela?".
A professora espera que o desenho da criança reproduza o mais
fielmente possível a realidade e atua tendo em vista esse resultado. Uma
menininha precisa ter pernas, braços, cabeça, olhos, cabelo, etc, suas
pernas não podem ser uma vermelha e outra verde. O espaço do papel
precisa ser delimitado, a criança precisa aprender a se orientar nele:
fazer o chão é necessário.
Há uma partilha de experiências sobre a atividade do desenho que
envolve o que a criança já sabe fazer e os conhecimentos e as concepções da professora e de outras crianças. É nesse jogo que o desenho vai
emergindo, trazendo em si as marcas da participação do outro.
A criança não desenha sozinha. Seu desenho não é desvinculado do
momento e do espaço em que é produzido. Ao contrário, constitui-se
sempre a partir de modelos e da participação do outro.
Numa sala de pré-escola, a professora trabalha com as crianças em um estudo de artes durante vários dias. Ela apresenta às
crianças produções gráficas típicas de diferentes países, como motivos chineses, russos, indianos, egípcios. Apresenta, ainda, reproduções de obras de artistas como Van Gogh, Goya e Picasso, além
de outras representativas da pintura renascentista e abstrata. As
crianças podem ver, conversar, perguntar... A professora informa,
explica, direciona a atenção das crianças para determinadas características dessas produções. Novos horizontes são abertos: amplia-se o conhecimento que já se tem, possibilidades interessantes
são descobertas. As crianças desenham e em seus desenhos exploram as novas descobertas. Reproduções de motivos egípcios, indianos, russos e chineses aparecem com grande riqueza de detalhes; obras famosas também são reproduzidas pelas tintas, pelos
lápis, pelas mãos, pelas cores, como você pode verificar na página
ao lado.
(Situação reconstituída a partir do relato de experiência da professora
Cristina Ruíino Jales, da EMEI Agostinho Pátaro, Barão Geraldo, Campinas, que gentilmente compartilhou conosco o material dela resultante.)
i
Que modelos estão sendo oferecidos
às crianças na escola? Que padrões de desenho estão sendo valorizados? Como se
dá a participação do professor e das crianças nessa atividade? Que materiais "estão
sendo utilizados pela criança?
A escola e o desenho
Para as questões formuladas acima, não
há uma única resposta. Os inúmeros modos
de lidar com o desenho infantil na escola refletem as diversas concepções que fundamentam o trabalho pedagógico cotidiano.
Não' oferecer modelos, não intervir,
deixar que a criança desenhe sozinha.
Direcionar a produção da criança, valorizando um único modelo e procurando
ensiná-la a "desenhar corretamente". Distribuir folhas mimeografadas para colorir
ou cobrir o pontilhado, determinando as
cores que devem ser utilizadas. Essas são
algumas práticas relativas ao desenho presentes no cotidiano escolar.
Quando a escola incentiva a criança a
desenhar livremente, a construir sozinha
seu próprio trabalho, com o objetivo de
possibilitar o desenvolvimento livre do desenho, da criatividade e da expressão, ainda assim os modelos e o outro estão presentes. Afinal, não há outros desenhos na
sala de aula? Não há gravuras, livros de
histórias, desenhos da professora e de outras crianças pelo ambiente? As crianças
não comentam, opinam, avaliam os desenhos umas das outras?
Para poder criar e se expressar, por meio do desenho, a criança se
apropria das experiências do seu ambiente, servindo-se de modelos e do
auxílio de outras pessoas. A experiência que ela tem é que lhe proporciona os meios para se expressar de modo criativo.
A preocupação com a correspondência do desenho à realidade revela não só a valorização de determinado padrão estético, mas também
o empenho da escola em desenvolver na criança habilidades de observação, concentração, discriminação visual, orientação espacial e coordenação motora. Também as folhas mimeografadas são utilizadas com
essa finalidade, considerada requisito para a aquisição da escrita.
Quando observamos uma criança desenhando, desde as suas primeiras gafatujas até as composições mais definidas, desde suas primeiras experiências de marcar o papel com os próprios movimentos até
produções com formas bem determinadas, descobrimos uma grande
evolução de suas capacidades de concentração, orientação espacial,
coordenação motora, etc.
Nesse mesmo processo, o caráter simbólico do desenho também
vai se constituindo, com base na linguagem. O simbolismo é a dimensão fundamental do desenho e se vincula mais estreitamente à elaboração da escrita e ao desenvolvimento da conceituação. A escrita, sendo
também essencialmente uma atividade simbólica, apresenta uma estreita ligação com outras formas de simbolização, como o desenho e a
brincadeira.
A relação de continuidade que há na pré-escola entre o desenho e a
escrita, na escola fundamental transforma-se em substituição do desenho pela escrita. O espaço para o desenho diminui e não há preocupação
em trabalhá-lo. A criança desenha do jeito que sabe e aquilo que já sabe.
As possibilidades de transformação, de evolução da atividade do desenho, via de regra, são mínimas. Deixadas a si próprias, gradativãmente
as crianças vão parando de desenhar.
Como criar em sala de aula, no 1? grau, condições e situações que
possibilitem a utilização e o desenvolvimento do desenho?
"O lápis é o melhor dos olhos..."
A afirmativa acima, que aparece em O segredo da observação, de
Ramacharaca, nos levou a descobrir, professora e crianças, o desenho
como um modo de guiar e instrumentalizar nossa observação.
Era o ano letivo de 1986, e estávamos em uma 3 f série do 1°
grau, de uma escola municipal, na periferia de Campinas.
Ao lado das salas de aula da escola havia muitas árvores e
arbustos que abrigavam um grande número de insetos. Freqüentemente, marimbondos, abelhas e percevejos de plantas (conhecidos pelas crianças como marias-fedidas) entravam na classe, produzindo alvoroço: os dois primeiros por causa da picada e os últimos por causa do mau-cheiro que desprendiam quando tocados.
Resolvida a problematizar com as crianças esse tipo de reação,
propus a elas uma questão: Por que a maria-fedida fede? Essa questão
foi o disparador para nosso estudo sobre insetos, que durou um semestre
inteiro.
Onde buscar a resposta ?
Antes de consultar os livros, decidimos fazer um trabalho de campo,
coletando insetos para observação.
Puçás improvisados, vidros de boca larga de vários tamanhos
(alguns com álcool), éter para anestesiar os insetos, pinças, lançamo-nos
ao trabalho, anotando o nome de todos os animais encontrados, além do
que faziam no momento da coleta, e tratando de conseguir pelo menos
um exemplar para identificação posterior.
Sacudimos as árvores e os arbustos, observamos folhas e flores,
reviramos pedras e galhos caídos, improvisamos uma armadilha com
uma lata perfurada contendo pedaços de frutas...
Em sala, começamos a estudar os exemplares coletados, atentando
para suas características gerais, número de patas, número de asas,
antenas, configuração do corpo, cor, formato, características como
dureza, transparência, existência de pêlos, etc.
Procurando explicitar e tematizar a atividade intelectual que
desenvolvíamos, propus à classe a leitura e o estudo do texto O segredo
da observação. Nele, o personagem central, contando como descobrira o
segredo da observação, dizia, destacando a importância do desenho: "o
lápis é o melhor dos olhos... ". A partir daí, o lápis passou a guiar nossa
observação.
'Todos queriam desenhar. Cada criança escolheu um exemplar e
trabalhando individualmente procurava representá-lo na folha de sulfite.
Alguns ampliavam o inseto, explorando todo o espaço do papel, outros
faziam reproduções diminutas.
As dificuldades emergiam, e com elas as frustrações: como marcar
no papel a variedade de formas observadas, as simetrias, as proporções?
"Oh, meu! Olha o tamanho dessa antena!"
"Ich! Tá torto! "
"Desse tamainho não dá nem pra saber que bicho é..."
Sentindo-se incapazes de representar pelo desenho algo que fosse o
mais parecido possível com o "real", algumas crianças queriam desistir.
A própria classe discutiu quanto a qual seria o papel do desenho:
"Esse desenho é pra gente saber mais sobre o inseto ".
Propusemos, então, o trabalho em conjunto, que favoreceu a
comparação entre os insetos e a atenção aos detalhes particulares de
cada tipo, a troca de técnicas, de modos de desenhar, entre os mais e os
menos habilidosos, a troca de informações ("presta atenção, aqui do
lado do corpo tem umfurinho "), enfim, a busca conjunta de um desenho
mais apurado e um grande conjunto de questões.
"O que é esse fiozinho enrolado que tem na borboleta?"
"Por que alguns insetos têm um tubinho que parece um alfinete e
outros não?"
"Por que esse tem a antena lisa e a desse outro parece feita de um
monte de pedacinhos emendados?"
Detalhes que haviam escapado num primeiro momento foram sendo
identificados...
O sentimento de incapacidade de desenhar foi sendo substituído por
comentários como "Eu aprendi com o Marcelo a fazer o gafanhoto". A
admiração diante das habilidades reveladas pelos colegas foi sendo
explicitada: "Nossa, a senhora viu como o Douglas é bom de desenho?
Olha que bonito que ficou o desenho dele!". A descoberta das próprias
habilidades e interesses foi sendo percebida: "Eu por mim ficava o dia
inteiro olhando e desenhando esses bichos. Você viu como a perninha
desse aqui é formada por um monte de bolinha? Olha! Parece até um
colarzinho... Por que será que é assim?".
Depois, os desenhos feitos pelas crianças foram confrontados com
desenhos e esquemas apresentados nos livros, evidenciando o muito que
eles haviam apreendido em suas observações (e que alegria: "Viu só?
Bem que eu te mostrei...!") e o que haviam deixado escapar. E, então,
voltar a desenhar complementando os detalhes era um novo prazer. Ede
novo aprender, pois agora já sabiam o que estavam desenhando, o
porquê das configurações de cada parte do inseto observado e seu
funcionamento no todo daquele organismo.
(Relato de experiência de uma das
autoras.)
■r' conhecimento,
possibilita
pessoal.
■:
o
a
■--...
Como instrumento de
trabalho e de conhecimento
em sala de aula, o desenho
revelou às crianças uma
competência em geral anulada
pelo
saber
acadêmico,
incentivando-as a aprender
pela observação.
Fazendo-se útil ao processo de
desenho
na
escola
fundamental
valorização da linguagem gráfica e das
habilidades a ela relacionadas, criando espaços
para o seu próprio desenvolvimento e condições de
interação e de realização
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
1. Elabore um resumo das informações do texto, enfocando:
a) o papel do outro e dos modelos no desenho da criança;
b) a criatividade no desenho infantil.
Trabalho de campo
1. Observe crianças desenhando na escola, de preferência quando reu
nidas em pequenos grupos. Lembre-se de contextualizar a sua obser
vação, anotando em que condições ocorre a atividade de desenhar (se
por solicitação da professora, verifique o que foi solicitado e como
foi dada a orientação; se por iniciativa das crianças, repare na manei
ra como surgiu a iniciativa), o modo como as crianças se organizam
para realizá-la, os materiais de que dispõem, etc.
Preste atenção a tudo o que as crianças fazem enquanto desenham,
como procedem, como utilizam o material, o que elas e o professor
falam e a quem se dirigem, as interferências do professor (nos desenhos ou no relacionamento entre elas). Anote rapidamente tudo o que
puder. Em seguida, organize o seu registro para torná-lo compreensível a otitras pessoas.
Faça um relatório sucinto, analisando a situação observada a partir
do que foi tratado neste capítulo: destaque aspectos da interação entre as crianças que parecem influenciar a elaboração do desenho;
aponte indícios de utilização de modelos pela criança (lembre-se de
que esses modelos podem não estar explicitamente presentes); analise
o modo de proceder do professor, procurando identificar em que
concepções sobre o desenho infantil ele ancora sua prática. Comente
todos os aspectos da situação que achar relevante para a compreensão do processo de elaboração do desenho pelas crianças.
2. Em pequenos grupos, entrevistem professores da Ia. à 4a. série, inves
tigando como, em que situações e com que finalidade as crianças
desenham em sala de aula. Com o auxílio de seu professor, elaborem
um roteiro para as entrevistas. Lembrem-se de buscar informações
sobre como as próprias crianças se relacionam com a atividade de
desenhar (se a apreciam ou não, quais os tipos de desenhos que fa
zem, etc).
Organizem os dados coletados, agrupando as respostas semelhantes,
mas citando também as menos freqüentes, e apresentem-nos para o
restante da classe. Discutam, com base neste capítulo e nos dados das
entrevistas, a situação do desenho no 1? grau.
Exercitando a análise
Quando falamos em literatura infantil, habitualmente nos referimos a textos (à sua qualidade, à beleza da história, etc.)- Raramente
prestamos atenção às ilustrações, às técnicas, aos traços, ao colorido
que as compõem. Quase sempre as vemos como simples apoio visual
do texto e quase nunca as apreciamos por si mesmas.
A seguir apresentamos uma relação de livros que, depois de lidos,
deverão ter suas ilustrações observadas com atenção. Note quanta variedade na sua produção gráfica: cores fortes, preto-e-branco, riqueza
de detalhes, simplicidade de traços, humor, etc.
Depois, reflita sobre os modelos de desenho habitualmente valorizados na escola e as características que se espera encontrar no desenho
infantil. Discuta com seus colegas.
• Bichos, bicho. Texto de Ciça e ilustrações de Ziraldo. São Paulo:
FTD.
• A pipa. Texto de Cristina Porto e ilustrações de Tenê. São Paulo:
FTD.
• O joelho Juvenal; Flicts; Meu amigo, o canguru. Textos e ilustrações de Ziraldo. São Paulo: Melhoramentos.
• Se as coisas fossem mães. Texto de Silvia Orthof e ilustrações de
Ana Raquel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
• Comboio, saudades, caracóis. Texto de Fernando Pessoa e desenhos de Cláudia Scatamacchia. São Paulo: FTD.
• Era uma vez duas avós. Texto de Nauim Aizen e ilustrações de
Patrícia Gwinner. Rio de Janeiro: EBAL.
• A bruxinha; Cabra-cega; Esconde-esconde. Textos e ilustrações
de Eva Furnari. São Paulo: Ática.
• Ida e volta. Juarez Machado. Rio de Janeiro: Agir.
• Mundo criado, trabalho dobrado. Texto de Elias José e ilustração
de Graça Lima. São Paulo: Atual.
• O dia em que um super-herói visitou minha casa. Texto de Sônia
Junqueira e ilustrações de Helena Alexandrino. São Paulo: Atual.
Sugestão de leituras
DWORECKI, S. Criança: evitando a perda da capacidade de figurar. O
jogo e a construção do conhecimento na pré-escola. São Paulo:
FDE, 1991. (Idéias, 10).
MOREIRA, A. A. A. O espaço do desenho: a educação do educador. São
Paulo: Loyola, 1984.
SILVA, M. S. C. AS condições sociais de produção do desenho. Dissertação de Mestrado, Unicamp, Campinas, 1993.
Unidade 4
lesenv
Ia escrita na
anca
i"■*
Introdução
utdoors, prateleiras de supermercado, rótulos, bancas de revistas,
jornais, letreiros, livros, placas de trânsito, cartas, cartões, convites,
folhetos informativos, lista telefônica, receitas, preces... A escrita,
com diferentes caracteres e funções, espalha-se pela cidade, permeando
nosso dia-a-dia. Dela lançamos mão, até sem perceber, para realizar
satisfatoriamente grande parte das atividades do cotidiano.
Em meio a essa multiplicidade de formas, cores, tamanhos e funções, as crianças, aos poucos e incidentalmente, vão prestando atenção
à escrita. Imitam-na, procuram entendê-la. Brincam de escrever e de ler,
escrevem e lêem de verdade.
Na escola, recebem informações sobre seu funcionamento, exercitam-na ao fazer traços na lousa, ao realizar tarefas (muitas vezes sem
sentido para elas), ditados, "redações". Utilizam-na nos bilhetinhos
para os colegas, nas marcas que deixam nas carteiras e paredes, nos
cadernos de recordação, nas tabelas dos campeonatos...
Como a criança se transforma num indivíduo "letrado"?
Essa é uma questão importante para o nosso trabalho como educadores, e a psicologia pode nos ajudar a refletir sobre ela, lançando luz
sobre aspectos dos processos de elaboração da criança que muitas vezes
passam despercebidos.
No capítulo 14, problematizamos as relações entre a alfabetização
e o desenvolvimento da escrita na criança.
No capítulo 15, focalizamos as relações da criança com a escrita.
Nos capítulos 16 e 17, o desenvolvimento da escrita na criança é
focalizado a partir dos estudos de Emilia Ferreiro (fundamentados em
Pi aget) e de Vygotsky e Luria.
No capítulo 17, voltamos às práticas de alfabetização, para
analisá-las e discuti-las à luz das contribuições desses autores.
Capítulo 14
A escrita e a alfabetização
Vivemos num mundo orientado pela escrita. Anúncios, rótulos,
propagandas, cartas, jornais, revistas, livros, documentos de identificação, placas de informação e de indicação estão o tempo todo presentes no nosso cotidiano. As crianças, desde muito cedo, convivem
intensivamente com a linguagem escrita. Como percebem e que sentido
fazem daquilo que os adultos chamam de escrita? O que é a escrita para
elas?
Raramente essas questões são objeto de nossa atenção, porque
estamos acostumados a ver e tratar as relações da criança com a escrita
como alfabetização.
Apesar de admitirmos, relativamente à linguagem oral, que a
criança se desenvolve em situações de comunicação e interação com os
outros, no que diz respeito à escrita nos comportamos de modo muito
diferente.
O ingresso na V. série
do 1? grau é um rito de passagem em nossa sociedade.
Consideramos ler e escrever
atividades que se aprendem
na escola e tratamos as
primeiras tentativas de
escrita de nossas crianças
como meras gara-tujas ou
como cópias inadequadas de
algo escrito. Vemos essas
tentativas como relevantes
apenas sob um aspecto: o
de, por meio delas, as
crianças aprenderem a manejar o lápis e a utilizar o espaço do papel,
desenvolvendo habilidades motoras que lhes serão úteis para aprender a
escrever.
O que é a escrita
para a criança ?
169
Por que isso acontece?
Para entendermos o nosso próprio modo de nos relacionarmos com a
escrita em nossa tão letrada sociedade, precisamos, ainda que brevemente,
refletir sobre o que é a escrita e sobre a história de sua escolarização.
Escrita e poder
A linguagem escrita, como a linguagem falada, é um sistema simbólico criado pelo homem. No fluxo da comunicação verbal, grupos
humanos passaram a utilizar linhas, pontos e outros sinais para representar, registrar, recordar e transmitir informações, conceitos, relações, produzindo assim a escrita.
Vários tipos de escrita (pictográfica, ideográfica, etc.) foram produzidos ao longo da história. Hoje, a escrita dominante é a alfabética.
A escrita alfabética é uma forma de representar a palavra falada
com base nos seus aspectos sonoros e nas possibilidades de uso das
letras do alfabeto. Por exemplo, para escrever a palavra gato, na nossa
língua, usamos quatro letras que correspondem às quatro unidades mínimas de som que compõem essa palavra no seu registro oral. As letras
g, a, t, o são grafismos (marcas) que representam aspectos sonoros da
palavra falada.
As letras grafadas no papel representam, mediante uma convenção
socialmente estabelecida, os sons da palavra falada (seu significante,
sua imagem sonora), e esta, por sua vez, designa os objetos, as ações e
os fatos da realidade. Nesse sentido, podemos dizer que a linguagem
escrita é mais complexa do que a linguagem falada, uma vez que a
representa.
Para que a escrita seja dominada, essa complexidade requer a
aprendizagem sistematizada e o treinamento específico de algumas habilidades e convenções, tais como: o conhecimento do conjunto de letras disponíveis para o registro dos sons da linguagem falada, suas relações com esses sons e as regras de combinação entre elas, o traçado que
as constitui, sua direcionalidade, e outros tantos detalhes.
No processo de divisão social do trabalho, o acesso a essa aprendizagem foi sendo controlado por algumas classes sociais, transformando
a escrita em privilégio, em índice de poder e recurso de dominação.
Embora desde a Renascença (século XV) a universalização da
aprendizagem da escrita e da leitura fosse uma reivindicação das classes excluídas do acesso à cultura letrada, somente com a criação dos
sistemas nacionais de ensino dos Estados modernos (século XIX) foi
que se concretizou a idéia de escola como a instituição encarregada de
iniciar as crianças no mundo da escrita e, com ela, criou-se o modelo de
alfabetização que conhecemos hoje.
Entre nós, brasileiros, o lema "Escolarizar para alfabetizar " é mais
recente ainda. Tendo sido uma bandeira do pensamento republicano,
consolidou-se a partir da última década de 30, quando a alfabetização
passou a ser claramente definida e defendida como um conhecimento a
ser possibilitado pela escola.
Ao passar para a esfera de responsabilidade da escola pública
mantida pelo Estado, o acesso ao domínio das convenções e complexidades dessa forma de linguagem foi ampliado, representando um
grande avanço em direção à meta de universalização da alfabetização.
No entanto, a ação da escola fixou-se de tal forma no treinamento
das habilidades específicas relativas à escrita e ao traçado de letras que
acabou relegando sua utilização como linguagem a um segundo plano.
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(CL toda. e a hovJpo.
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---------------------—
Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 5.
Alfabetização e desenvolvimento da escrita
Hl
Já na década de 20, Vygotsky criticava a não priorização da escrita
como linguagem. Para ele, o ensino da habilidade da escrita por si mesma corresponde ao domínio da habilidade técnica de tocar piano, em
que o aluno desenvolve a destreza dos dedos e a leitura simultânea da
partitura, sem se envolver na essência da própria música.
Embora ele considerasse necessário o ensino da escrita, sua crítica
dirigia-se ao modelo de ensino então adotado e que é, ainda hoje, dominante na prática escolar.
Nesse modelo, a escrita é considerada principalmente como um
código que permite representar graficamente a linguagem falada. Para
dominar esse código, as crianças necessitam treinar duas técnicas básicas: a codificação, que é a transformação dos sons da língua falada em
sinais gráficos, e a decodificação, que é a possibilidade de reconstituir a
palavra falada a partir dos sinais gráficos registrados.
Essas técnicas enfatizam os aspectos perceptivos (auditivos e visuais) e as habilidades motoras envolvidas no ato de ler e escrever, cuja
aprendizagem é feita de modo progressivo, hierarquizado e cumulativo.
As crianças precisam dominar passo a passo o traçado correto das letras, as correspondências entre os sons e as grafias, a discriminação de
sons e grafias semelhantes para chegar ao registro e à leitura de palavras, frases e textos.
Durante o processo de alfabetização, as crianças desenham letras,
copiam ou formam palavras com elas, escrevem palavras ditadas pela
professora, completam-nas, dominam a mecânica de decodificar o que
está escrito, independentemente do significado que as palavras escritas
ou lidas tenham para elas.
Esse modo de considerar o ensino da escrita leva a que todos os esforços se concentrem no treinamento de habilidades que possibilitarão à
criança sua utilização futura. Ou seja, só depois de terem dominado essas
habilidades é que elas poderão utilizar a escrita para registrar suas experiências e pensamentos, para se comunicar com outras pessoas... Até
então, elas escrevem para treinar a escrita e lêem para treinar a leitura.
Suas tentativas de "dizer por escrito" o que querem e o que pensam são
controladas. "E melhor que o aluno escreva uma linha certa do que uma
folha cheia de erros", dizem alguns professores alfabetizadores.
A escrita, privada de sentido e do seu funcionamento social, é convertida em fim último da aprendizagem escolar. E esta, em vez de ser
vista como parte imprescindível de um processo amplo, passou a ser
considerada o único e possível caminho de apropriação e de elaboração
da linguagem escrita.
A crítica a essa forma de ensino da escrita vem sendo feita desde o
início do século por psicólogos, pedagogos, lingüistas. Entre esses trabalhos críticos vamos destacar o de Vygotsky e Luria (1920) e o de Emilia
Ferreiro e seus colaboradores (1980), baseados nos pressupostos da teoria piagetiana de desenvolvimento.
Quem foi Luria?
Alexander Romanovich Luria (1902-1977) foi
colaborador de Vygotsky. Na década de 20, realizou
experimentos relativos ao estudo do desenvolvimento
da escrita e dos conceitos matemáticos na criança.
Pondo em questão o modo como a psicologia da
época abordava esses temas, conduziu extenso
trabalho de campo sobre o funcionamento
psicológico de moradores de vilarejos e áreas rurais
de uma região remota da Ásia central. Seu objetivo
era estudar como os processos psicológicos
superiores são construídos em diferentes contextos
culturais. Dedicou-se mais intensamente ao estudo
das funções psicológicas relacionadas ao sistema
nervoso central, tornando-se conhecido como um dos
mais importantes neuropsicólogos do mundo.
Quem é Emilia Ferreiro?
Emilia Ferreiro, psicóloga argentina, é doutora
pela Universidade de Genebra, onde foi orientando e
colaboradora de Jean Piaget. Suas pesquisas sobre
alfabetização foram realizadas principalmente na
Argentina e no México, onde é professora titular do
Centro de Investigação e Estudos Avançados do
Instituto Politécnico Nacional. Deslocando do "como se
ensina" para o "como se aprende" o foco da
investigação relativa à aprendizagem da escrita,
descreveu, no final da década de 70, a psicogênese da
língua escrita. Suas conclusões têm possibilitado aos
educadores o redimensionamento da compreensão
acerca das relações da criança com a escrita.
Esses estudos procuraram descrever como se origina e como se
desenvolve a escrita na criança. Por meio deles tornou-se possível conhecer:
• o que as crianças pensam sobre a escrita e como se relacionam com
ela, antes e durante a alfabetização;
• os processos envolvidos nas relações da criança com a escrita, que têm
inicio muito antes da alfabetização, acompanham-na e prolongam-se
para além dela, segundo a relevância da escrita no contexto social em
que vivem seus usuários;
• as especificidades da alfabetização, vista como um processo que, envolvendo sistematização de regras, mecanismos e funções da escrita,
acontece na relação de ensino do contexto escolar.
A seguir, vamos apresentar e comparar essas duas contribuições.
Primeiramente focalizaremos o modo como esses estudos explicam as
relações da criança com a escrita. A seguir abordaremos como eles
descrevem e analisam a escrita produzida pela criança. E finalmente
discutiremos as implicações dessas teorias para as práticas escolares de
alfabetização.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
No texto foram utilizados dois conceitos distintos para definir as
relações da criança com a escrita: alfabetização e desenvolvimento da
escrita na criança.
Com base nos dados do texto, compare os dois conceitos.
Lembre-se de que comparar é apontar semelhanças e diferenças entre os
elementos considerados.
Pesquisa bibliográfica
De tal maneira nos acostumamos às coisas que fazem parte do nosso cotidiano, que as consideramos naturais. Parece que elas sempre
existiram e sempre com as mesmas características. A escrita é um desses elementos.
Vivendo num mundo povoado por representações escritas, fica difícil imaginar como surgiram e como evoluíram ao longo da história
humana as formas de registro que utilizamos hoje.
Vamos fazer um pequeno estudo sobre a história da escrita. Um
roteiro básico pode ser o seguinte:
a) Identificar as condições históricas que possibilitaram o aparecimento
da escrita e quais foram suas finalidades sociais.
b) Resumir as etapas da evolução histórica da escrita, caracterizando
suas diversas configurações, até chegar à escrita alfabética.
c) Procurar informações sobre o funcionamento do sistema de escrita
alfabético, tendo em vista caracterizar o princípio fundamental que o
rege.
Para isso consulte outros livros didáticos ou livros especializados,
como os que são indicados neste capítulo nas sugestões para leitura e
pesquisa.
Você pode também recorrer a vídeos (neste capítulo sugerimos um)
e a seus professores de História, História da Educação, Português e
Metodologia da Alfabetização.
Exercitando a análise
Leia o livro O menino que aprendeu a ver, de Ruth Rocha (Editora
Melhoramentos). Nele a autora focaliza as relações da personagem
João com a escrita.
1 y^
Ao analisar o texto, observe se o livro fala da relação de alfabetização, do desenvolvimento da escrita na criança ou dos dois temas.
Sugestão de leituras
BARBOSA, José Juvêncio. A história da escrita. In: ___________ Alfabetização e leitura. São Paulo: Cortez, 1990.
CAGLIARI, L. C. O mundo da escrita. In: __________ . Alfabetização & lin
güística. São Paulo: Scipione, 1989.
GOMES JR., G. S. Escrita. Cadernos CEVEC, n? 4. São Paulo: Centro de
Estudos Educacionais Vera Cruz, 1988.
Filme recomendado
•
Escrita, direção de Fernando Passos, 1988. Distribuído pela Fundação
para o Desenvolvimento da Educação (FDE), São Paulo.
Capítulo 15
As relações da criança com
a escrita
Quando prestamos atenção aos comentários que as crianças fazem
sobre a escrita ou às suas tentativas de utilizá-la, percebemos que elas
não são indiferentes a essa forma de linguagem. Elas procuram imitá-la,
interpretá-la, entendê-la.
Olívia, de 3 anos, conversando com a mãe, diz:
— Na escola eu faço desenho, eu escrevo...
— Ah, é?! Como é que você escreve?
— É assim, ó.
E enquanto traça rabiscos em ziguezague no papel, ela vai
nomeando:
— Papai, mamãe, Olívia.
(Relato feito pela mãe da criança às autoras durante um curso para
professores.)
Escrever, para Olívia, é diferente de desenhar. Ao demonstrar para
a mãe o que é escrever, ela nomeia cada um dos rabiscos feitos no papel.
O ato de escrever, em casos assim, é relacionado pela criança à
tarefa de anotar palavras. Neste momento, trata-se apenas de um esboço
de apreensão da função representativa. Esta só será apreendida, de fato,
um pouco mais tarde.
Os ziguezagues traçados por Olívia, em linhas mais ou menos
retas, constituem a forma de grafismo utilizada pela maioria das
crianças de sua idade quando se pede a elas que escrevam. Esse dado
foi observado e analisado nos estudos de Luria e Emilia Ferreiro, como
um indicador da apreensão de algumas das características formais da
escrita pela criança. Observando os adultos quando escrevem, a criança
percebe que a escrita apresenta configurações (tais como o formato, a
distribuição no papel, etc.) que a distingue de outras formas de
representação gráfica. Ela imita, então, o formato externo da escrita do
adulto.
As características gráficas da escrita também orientam as "tentativas de leitura" das crianças.
Rafael, de 3 anos, olhando para a tampa da lata de Nescau,
onde estava escrita em relevo a palavra Nestlé, diz para o irmão de
9 anos:
— Olha, Beto!
E, passando o dedinho sobre as letras, vai pronunciando
pau-sadamente:
— Neeeeessscaaauuu!
(Episódio envolvendo os filhos de uma das autoras.)
Não são quaisquer traços que podem ser lidos. O formato dos traços em relevo na tampa da lata e o lugar onde foram impressos não são
arbitrários. Eles significam alguma coisa. Na interpretação de Rafael,
eles nomeiam.
Rafael, imitando o modo de ler de uma criança mais velha, compartilha a possibilidade de leitura com o irmão, que muitas vezes lê para
ele. Na imitação, ele reproduz a relação entre o texto escrito e a fala.
Nas duas situações observamos que a escrita, além de estar presente
no cotidiano das crianças, é compartilhada com elas por adultos e
crianças mais velhas: a mãe possibilita a Olívia explicitar o que pensa e
sabe sobre a escrita; o irmão, que lê, serve de modelo para Rafael.
Esses episódios cotidianos mostram processos não escolares de
elaboração da escrita em que a criança formula uma compreensão
incidental^e inicial dessa forma de linguagem.
Como as crianças chegam a essas elaborações iniciais da escrita?
A gênese da escrita na criança é vista de modos diferentes por
Emilia Ferreiro e Vygotsky.
A criança constrói a escrita
Emilia Ferreiro e seus colaboradores consideram que a escrita,
como toda representação, baseia-se em uma construção mental que cria
suas próprias regras.
"Escrever não é transformar o que se ouve em formas gráficas, assim como ler não eqüivale a produzir com a boca o que o olho reconhece visualmente", destaca Emilia Ferreiro (1985: 55). O sistema de escrita tem uma estrutura lógica, e compreendê-la não é uma tarefa simples.
Há várias relações e detalhes que a criança precisa apreender.
No caso do sistema alfabético, por exemplo, a criança deve compreender, entre outras coisas, que existe uma relação entre a letra escrita
(grafema) e o som pronunciado (fonema); que não há nenhuma relação
entre a forma da palavra escrita e as características físicas do elemento
da realidade nomeado por ela; que palavras com o mesmo significado
não são escritas da mesma forma; que elementos essenciais da
orali-dade, como a entonação, não são registrados na escrita, etc.
Esse conjunto de relações não é simplesmente aprendido pela
criança, mas construído ("reinventado") por ela.
Nas relações que mantém com a escrita no ambiente em que vive, a
criança elabora e testa hipóteses acerca da lógica de seu funcionamento.
Ela assimila a escrita interpretando-a de acordo com os conhecimentos
e modos de pensar que já desenvolveu e organizou no decorrer de sua
experiência de vida, produzindo "escritas" e "leituras" não compatíveis
com a escrita convencional.
Tal qual Olívia no episódio relatado anteriormente, ela começa diferenciando a escrita do desenho.
****i$r
A criança pode utilizar letras convencionais cujo traçado conhece,
para representar a escrita, sem estabelecer nenhuma diferenciação entre
as palavras, como na ilustração a seguir.
S
£
A
A
*
F
A
S
£
s
&
^
s£
A
SE
Fonte: Reflexões sobre alfabetização — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 22.
Em seguida, preocupa-se com a disposição das letras conhecidas
ou com o número de letras utilizadas, tentando marcar diferenças entre
as palavras que deseja (ou é solicitada a) registrar.
Fonte: Reflexões sobre alfabeüzaçao — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 23.
Conforme desenvolve a capacidade de prestar atenção às caracte
rísticas sonoras da palavra falada, a criança começa a estabelecer rela
ções entre as partes da palavra escrita e a quantidade de partes que reco
nhece na palavra falada. Ela passa, então, a representar cada sílaba com
uma letra.
*
i Kh
OA
k
h
S fclAimJ
Fonte: Reflexões sobre alfabeüzaçao — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 26.
As informações fornecidas por adultos leitores (inclusive a professora na escola) a respeito de especificidades da escrita não são mecanicamente acrescentadas às elaborações da criança.
Ela vai passando de uma forma de
escrita para outra, à medida que vai se
dando conta, por si mesma, das contradições entre sua interpretação da escrita
e a escrita convencional. Nesse processo, ela reelabora gradativamente suas
hipóteses, por meio de acomodações sucessivas, até chegar à lógica da escrita
alfabética.
nn nps *.
Cctfrljo
Fonte: Reflexões sobre alfabetização —
Emilia Ferreiro. Cortez, p. 29.
O conjunto dessas formas de escrita que nos parecem "erradas" do
ponto de vista convencional são, segundo Emilia Ferreiro, "erros construtivos": é passando por essas hipóteses que a criança vai construindo
(reinventando) a lógica do sistema alfabético. Nesse sentido, os erros
revelam o raciocínio da criança sobre o que é escrever e as etapas pelas
quais ela vai passando no processo de construção da escrita.
Nos estudos realizados por Emilia Ferreiro e seus colaboradores
com crianças de diversos meios sociais em diferentes países (Argentina,
México, Espanha, Brasil), as formas de escrita mostradas nas ilustrações acima apareceram de modo sistemático, regular e na mesma progressão. O que diferia de uma criança para outra era o tempo de duração
de cada etapa e o tempo de passagem de uma etapa para outra. As
regu-laridades observadas comprovavam, segundo ela, que o
desenvolvimento da escrita envolve uma série de concepções e de
relações cuja elaboração não pode ser atribuída à influência do meio,
nem à aprendizagem, mas, sim, ao desenvolvimento cognitivo da
criança.
Isso acontece, explica Emilia Ferreiro, porque a criança "é um sujeito que pensa. Um sujeito que assimila para compreender, que deve
criar a fim de assimilar, que transforma o que vai conhecendo, que
constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do conhecimento
dos outros" (1987: 103; o destaque é nosso).
A criança integra-se às práticas sociais de escrita
Já para Vygotsky e Luria, a escrita é mais do que um sistema de formas lingüísticas organizado segundo uma lógica com a qual o sujeito se
confronta, esforçando-se por compreendê-lo. Ela é uma forma de linguagem, uma prática social própria de membros de uma sociedade letrada.
A escrita nos confere o título de cidadãos. É por meio do registro legal,
nosso primeiro documento, que somos inscritos no rol de habitantes do país,
temos nossa nacionalidade definida.
A escrita nos faz ser classificados como alfabetizados ou analfabetos, e
arcar com as vantagens e desvantagens de pertencer a um ou a outro desses
grupos.
Como sistema de signos (conjunto organizado de marcas externas que
nos permitem representar ou expressar objetos, eventos e situações da realidade), a escrita age sobre nossos processos psicológicos, transformando-os.
Sua utilização, por exemplo, transforma nossa memória. Ao fazermos
uma lista de compras por escrito, ao anotarmos um endereço ou os
ingredientes e o modo de preparo de uma receita, não só liberamos nossos
neurônios da necessidade de reter mecanicamente algumas informações, como
também aumentamos enormemente a quantidade de informações que podemos
armazenar. A escrita nos permite esquecer informações que, tendo sido
registradas, podem ser recuperadas.
Ela também transforma nossa atenção, nossos modos de buscar informações. Pense, por exemplo, nos usos de placas informativas.
Por não ser nem natural (ela é produção cultural) nem arbitrária (escrever
não é marcar quaisquer traços sobre qualquer superfície), a elaboração da
escrita não começa dentro de cada um de nós. Apro-priamo-nos dos
conhecimentos das gerações que nos precederam para construirmos o nosso
conhecimento. Nesse sentido, a elaboração da escrita pela criança tem início
nas suas relações sociais (cotidianas e escolarizadas), contando sempre com a
participação do outro.
Nas sociedades letradas, como a nossa, a escrita vai sendo
gra-dativaménte apontada e destacada para a criança pelos adultos leitores.
Aline, de 3 anos, pega um pedaço de papel e pede à avó:
— Vó, faz Aline...
A avó escreve no papel: ALINE.
A criança não aceita e volta a pedir.
— Faz Aline, vovó.
A avó, na tentativa de entender e atender ao pedido da neta,
desenha uma menininha, e Aline mostra-se satisfeita.
Alguns dias depois, a criança faz de novo o mesmo pedido à avó. A
avó pega lápis e papel e desenha a menininha. A criança retruca:
— Assim não, vovó. A outra...
E, pegando o lápis, faz risquinhos no papel, enquanto diz:
— Assim, Aline, Aline pequenininha.
E, enquanto traça rabiscos maiores, vai dizendo:
— Aline grande...
(Episódio relatado por uma professora durante curso ministrado
pelas autoras.)
É na interação com a avó que Aline, ao tomar contato simultaneamente
com duas formas de simbolização — o desenho e a escrita —,
descobre a possibilidade de usar marcas para representar. A avó, ao escrever o nome da menina no papel, não determina os significados do
desenho e da escrita, mas desencadeia essa elaboração em Aline.
As crianças mais velhas também participam da progressiva integração da criança à comunicação escrita. Elas compartilham com as
mais novas suas relações com a escrita, lendo, desenhando e escrevendo para elas, ensinando-lhes os nomes das letras e a escreverem o próprio nome, brincando de escolinha, etc.
A elaboração ativa dos conteúdos
e formas de organização da escrita
depende, fundamentalmente, das
possibilidades que as crianças têm (ou
não) de utilizar e compartilhar a
escrita em suas interações.
Num país como o nosso, a grande
maioria das crianças tem contato
incidental com a escrita, por meio de
rótulos de produtos, de placas e
propagandas na rua, quando vai aos
supermercados, vendo TV... Elas
convivem com a escrita.
N
as grandes cidades, com o aumento de freqüência à pré-escola, a
utilização de papéis, lápis, tintas e o contato com a escrita têm se
intensificado e sido submetidos a um modo de organização mais
sistemático.
Essas crianças, assim, além de conviver com a escrita, a utilizam e organizam algumas de suas convenções no espaço das relações escolares.
Apenas um número reduzido de crianças brasileiras tem, na vida em
família, como Aline, oportunidade de conviver com leitores, papel,
lápis, livros de história, jornais, revistas.
Em algumas dessas famílias, os pais lêem
histórias para as crianças, escrevem
palavras com elas e para elas. Nesse caso,
essas crianças vão além da situação de
convivência com a escrita, passando a
utilizá-la. Assim, mesmo sem dominar
autônoma e convencionalmente a escrita,
elas começam a elaborar e a compreender,
desde muito muito cedo, seus princípios de
organização e sua natureza.
Nas relações que mantêm com a escrita, as crianças apropriam-se de técnicas
para sua utilização e de algumas de suas
lerta da leitura: momento de prazer.
convenções básicas — o nome de algumas letras, o
modo de traçá-las, a direcionalidade, etc. E apreendem também suas
funções sociais — para que, para quem, por que, e onde, e como se
escreve.
Elas brincam de escrever, como Rafael, que aos 3 anos e meio i
trega para a mãe um papel cheio de letras traçadas por ele, dizendo:
— Toma, mãe. Isso é uma carta pra você.
— Ah! Que bom, Rafa! Lê a carta pra mim!
— Não! Você é que lê! Eu escrevi a carta pra você!
(Episódio envolvendo uma das autoras e seu filho.)
Nesse episódio, a criança, que aprendeu a traçar algumas das letras
do seu nome com o irmão e os primos, utiliza esse conhecimento para
produzir alguma coisa "para ser lida", ou seja, algo que reúne
determinadas características daquilo que seus parceiros sociais mais
experientes tomam como objeto de leitura. Ela produz (essa é a intenção revelada por ela diante do produto pronto) uma carta, produto
cultural típico de uma sociedade letrada. A elaboração da função social
da escrita, mais do que de sua lógica interna, é o que se destaca nessa
atitude da criança.
Pela mediação do outro é que a lógica da escrita começa também a
ser elaborada. As crianças pedem a adultos (ou a crianças mais velhas)
que escrevam ou leiam para elas. Tentam escrever e ler, imitando o que
observam e fazendo suposições a respeito das características e das regras de funcionamento da escrita, e procuram verificar, entre aqueles
que são leitores, a adequação de suas suposições.
As crianças do pré exploram as letras de plástico, tentando
compor palavras. Uma das meninas, após justapor uma série de
consoantes, chama a professora e pede a ela que leia o que escreveu.
Ruth, a professora, vai emitindo sons correspondentes às letras justapostas.
A criança desmancha a combinação de letras e volta a fazer
uma nova justaposição de consoantes. Novamente ela pede à professora que leia o que escreveu e a professora repete o tipo de leitura que fez antes.
A criança então pergunta:
— Ruth, por que será que eu só consigo escrever em inglês?
(Depoimento da professora Ruth Jofily Dias, professora da EMEI
Meia Lua, do município de Paulínia, SP, a quem agradecemos a
autorização para a utilização desse episódio.)
Enquanto para Emilia Ferreiro o papel do adulto (inclusive o professor) deve ser o de possibilitar o desenvolvimento da escrita, criando
condições estimuladoras e conflitos cognitivos (situações em que a criança percebe contradições entre suas hipóteses e os princípios da escrita
convencional) para que ela descubra por si mesma as chaves secretas
do sistema alfabético (1985: 60), Vygotsky considera fundamental a
participação do outro no processo em que a escrita vai se tornando
parte da criança, destacando e diferenciando o papel do professor.
Vygotsky considera que o ingresso na escola representa para as
crianças um novo tipo de relação com a escrita, que, além de ser intensificada, passa a ser sistematizada.
Nessa instituição, todas as crianças são colocadas diante da tarefa
de interpretar convencionalmente a escrita. O papel do professor é diferente daquele desempenhado pelos adultos que com elas convivem diariamente. Na família, o adulto intervém ocasionalmente e, em geral,
quando solicitado. Na escola, a ação do alfabetizador é intencional e
explícita: ele proporciona à criança um contato sistemático com a escrita padronizada, que, entrecruzando-se com suas elaborações iniciais,
acaba por substituí-las.
Também diferentemente de Emilia Ferreiro, Vygotsky não considera que as relações da criança com a escrita sejam estritamente cognitivas. A escrita não é apenas objeto de conhecimento. Ela constitui o
conhecimento, sendo uma forma cultural de ação no mundo.
A palavra materializada sobre o papel não é um fim em si mesma.
Ela cria relações entre os indivíduos: "A criança aprende a ouvir, a entender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que quer pela escrita. Mas esse aprender significa fazer, usar, praticar, conhecer. Enquanto
escreve, a criança aprende a escrever e aprende sobre a escrita"
(Smolka,1988: 63).
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Reproduza e preencha o quadro abaixo, sintetizando as concepções
de desenvolvimento e aprendizagem da escrita adotadas pela
psi-cogênese (Emilia Ferreiro) e pela abordagem histórico-cultural
(Vy-gotsky e Luria).
Psicogênese
Abordagem
histórico-cultural
Concepção de escrita
A relação da criança
com a escrita
O papel do adulto e
do meio
Refletindo sobre as informações do texto
No-íexto apresentamos as seguintes afirmações:
"A criança constrói seu próprio conhecimento para apropriar-se do
conhecimento do outros" (E. Ferreiro).
"Nós nos apropriamos dos conhecimentos das gerações que nos
precederam, para construirmos o nosso próprio conhecimento"
(Vygotsky).
Explique e compare a duas afirmações, buscando no texto os argumentos que as sustentam.
Exercitando a análise
A partir das leituras e discussões sugeridas até aqui, analise a situação seguinte:
No ônibus havia um anúncio de chapéu, com um chapéu masculino desenhado em destaque. Abaixo, a marca do chapéu,
PRADA, escrita em maiúsculas e o endereço da firma. O avô,
encontrando um amigo, diz-lhe entusiasmado que estava justamente ensinando seu neto a ler e que ele aprendia com grande
facilidade. Apontando para o anúncio, objeto de treino desde o
início da viagem, o avô pede ao garotinho que leia o mesmo. O
garoto prontamente:
185
— PE - ERRE -A-DE-A.
— Muito bem, diz o avô, e o que está escrito?
— PE-ERRE-A-DE-A.
— Sim, muito bem. E isso é o quê? Leia lá.
— Chapéu.
(Episódio registrado por Nunes, T. no texto 'Leitura e escrita: processos e desenvolvimento', In: Alencar, E. iorg.). Novas-contribuições da psicologia aos processos de ensino e aprendizagem. São
Paulo: Cortez. 1992.)
TYabalho de campo
Vamos observar crianças de 2 a 7 anos, que ainda não estejam sendo alfabetizadas, e descrever o modo como se relacionam
cotidiana-mente com a escrita. Para isso, vamos nos dividir em dois
grupos.
• Cada um dos alunos do primeiro grupo deverá observar uma criança e descrever suas eventuais tentativas de uso do registro escrito,
para que ela o utiliza, e como ela se relaciona com a escrita presente no seu espaço doméstico.
• Cada um dos alunos do segundo grupo deverá observar uma criança não alfabetizada e descrever a relação que ela mantém com o
material escrito existente na pré-escola e a utilização que ela faz de
registros gráficos nesse contexto (para que e como).
Para um melhor aproveitamento desse trabalho de campo, sugerimos que cada criança seja observada mais de uma vez e que sejam observadas crianças de idades diferentes, dentro da faixa de idade indicada.
O seguinte roteiro poderá ser útil à observação e ao registro:
• Registre a idade da criança, o dia, o local, a hora e quanto tempo
durou a observação.
• Descreva a situação em que você observou a criança (onde ela
estava, o que fazia, quem a acompanhava, etc).
• Que tipo de material escrito chama a atenção da criança ou está
sendo explorado por ela? O que ela faz e o que diz em relação ao
material escrito? Que finalidade atribui a ele?
• Com quem ela compartilha sua exploração ou comentários? Como
o faz? Como o outro participa dessa situação? O que diz? O que
faz?
• Se a criança estiver numa situação de produção de escrita, descreva também o que ela está fazendo. Que material está utilizando
para isso? Que tipo de marcas produz? Em que condições as produz? Que significado ou função atribui a elas (está escrevendo o
que, para que, para quem) Como e com quem compartilha a atividade? Como o outro participa da atividade? O que faz, o que diz?
Peça à criança o material produzido. Se ela não quiser dá-lo, respeite sua decisão.
Se você dispuser de câmara de vídeo ou de gravador, poderá
utilizá-los na coleta dos dados. Mas não se esqueça de que o material
gravado também deve ser transcrito.
Organizando os dados analisados
• Cada grupo deve apresentar e confrontar os dados observados, levantar os pontos em comum nos relatos e organizar uma síntese
das observações feitas, para apresentar ao outro grupo. Convém
registrar também curiosidades, perguntas e dúvidas suscitadas pela observação.
• Reunidos os dois grupos, vamos comentar e comparar os resultados das observações e das análises de cada um, buscando identificar os pontos comuns e não comuns entre os dados coletados.
• As indagações que ficaram sem resposta devem ser afixadas na
sala, e os registros escritos deverão ser arquivados para utilização
nos próximos trabalhos.
Leitura e discussão
Vamos ler o texto de Maria Lúcia Castanheira, Da escrita no cotidiano à escrita escolar, publicado na revista Leitura: Teoria e Prática,
n? 20, de dezembro de 1992 (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, p.
34-45).
Após a leitura individual, cada aluno deverá fazer um breve comentário escrito sobre o texto. Nesse comentário deverá destacar três
pontos que considerou relevantes para sua reflexão sobre o modo como
a criança se relaciona com a escrita, comentar cada um deles e justificar
a escolha feita.
Sugestão de leituras
FERREIRO, E. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 1993.
SMOLKÀ, A. L. B. A linguagem como gesto, como jogo, como palavra.
Leitura: Teoria e Prática, Porto Alegre, Mercado Aberto, n? 5.
Filme recomendado
• A glória de meu pai, direção de Yves Robert, 1990.
•
Capítulo 16
O estudo experimental
da construção da escrita
pela criança
Como vimos no capítulo anterior, os estudos de Emilia Ferreiro e
de Vygotsky analisam de maneira diferente a relação das crianças com a
escrita.
Enquanto Emilia Ferreiro e seus colaboradores consideram a escrita
um objeto de conhecimento (isto é, como um alvo da atividade intelectual), que vai sendo construído de modo evolutivo pela criança,
Vygotsky a concebe como um produto cultural, uma prática social à
qual a criança vai se integrando, nas suas relações sociais.
Em suas análises Emilia Ferreiro procura demonstrar o papel ativo
do sujeito no processo de elaboração individual da escrita. A criança,
em suas relações com a escrita, vai, ativa e espontaneamente, elaborando e testando hipóteses a respeito de como se escrevem as palavras.
Sendo essas hipóteses de natureza cognitiva, elas dependem do desenvolvimento da inteligência da criança. As discrepâncias que a criança
percebe entre suas hipóteses e a escrita convencional leva-a a reelaborar
hipóteses e, pouco a pouco, apreender a natureza e a lógica desse sistema simbólico.
Para Vygotsky, o processo é inverso. A criança apropria-se
gra-dativamente do sistema de escrita e de suas funções sociais por
meio da observação da escrita em funcionamento, das tentativas de
utilizá-la que faz, pela imitação do outro, e da busca de informações
sobre seus elementos e sobre seu funcionamento. O processo, destaca
ele, acontece entre sujeitos e em cada sujeito.
Essas diferenças aparecem nas maneiras como Emilia Ferreiro e
Vygotsky conduziram seus estudos experimentais.
Emilia Ferreiro e seus colaboradores procuraram caracterizar e
descrever tanto a seqüência das hipóteses elaboradas pelas crianças a
respeito da natureza e dos princípios organizadores da escrita como
também os fatores envolvidos na passagem de uma hipótese para outra. Em
seus estudos, privilegiaram produções espontâneas, isto é, aquelas em que a
criança escreve tal como acredita que poderia oii deveria escrever certo
conjunto de palavras, sem a ajuda ou a orientação de outra pessoa.
Vygotsky e Luria, por sua vez, procuraram demonstrar a relação entre a
escrita e as atividades simbólicas no desenvolvimento da criança e recriar
experimentalmente o processo de simbolização na escrita, em situações
compartilhadas entre o experimentador e a criança.
Neste e no próximo capítulo, abordaremos de maneira mais detalhada os
procedimentos de pesquisa adotados por Emilia Ferreiro e Vygotsky.
A metodologia da pesquisa
Para estudar a construção da escrita pela criança, Emilia Ferreiro utilizou
o método clínico ou de exploração crítica desenvolvido por Piaget (do qual
tratamos nos capítulos iniciais deste livro). Foram submetidas à pesquisa
crianças de distintas classes sociais, de 4 a 6 anos, que ainda não conheciam os
princípios da escrita convencional.
Nesses experimentos, interessava:
• identificar os critérios em que as crianças se baseiam para aceitar ou
rejeitar algo que se considera adequado para ler;
• identificar os meios de que as crianças se utilizam para representar o
que querem e como diferenciam suas representações.
Foram propostas às crianças duas situações de leitura.
Numa delas, o experimentador oferecia às crianças um conjunto de
cartões contendo números isolados, conjuntos de números, conjunto de
números e de letras, letras isoladas, conjuntos de várias letras iguais, conjuntos
formados por letras diferentes, palavras escritas em letra cursiva, script ou
letra de imprensa. Ele pedia que separassem os cartões em dois grupos — o
dos que podiam e o dos que não podiam ser lidos — e explicassem, depois da
separação feita, os critérios de seleção utilizados.
Na outra situação de leitura, o experimentador apresentava pranchas com
figuras acompanhadas de texto e pedia às crianças que lessem o que estava
escrito e explicassem como tinham chegado àquela leitura.
Quanto às situações de escrita, o experimentador solicitava às crianças
que escrevessem palavras e frases ditadas por ele e, em seguida, lessem sua
produção, apontando a que marcas correspondia a leitura feita.
Alguns critérios foram adotados para a seleção das palavras e
frases ditadas: elas deveriam fazer parte do repertório de palavras
normalmente conhecidas pelas crianças, apresentar uma relação semântica entre si (isto é, fazer parte de um mesmo tema, como alimentos, animais, brinquedos, etc.) e não constar de manuais de
alfabetiza-ção (para evitar a reprodução de palavras memorizadas).
Assim, eram ditadas às crianças seqüências como: gato, borboleta,
cavalo, peixe, o gato bebe leite; lápis, lousa, giz, apontador, a professora
pega seu lápis, etc.
Por meio desses experimentos, Emilia Ferreiro e seus colaboradores identificaram três grandes etapas no processo de construção da escrita pelas crianças, ordenadas nesta seqüência:
• distinção entre o desenho (modo de representação icônico) e a escrita
(representação não icônica);
• diferenciação quantitativa e qualitativa dentro da escrita produzida
(intrafigural) e entre as escritas produzidas (interfigurais);
• afonetização da escrita (caracterizada pela atenção às relações existentes entre o contexto sonoro da linguagem e o contexto gráfico do
registro).
Vamos entender essas etapas.
As fases do processo de construção da escrita pela criança
A construção das primeiras formas de diferenciação: o
período pré-silábico
A distinção básica entre desenhar (modo de representação ligado
às características físicas e às formas dos objetos) e escrever vai sendo
construída pela criança, tanto nas situações de escrita quanto nas situações de leitura.
Para escrever o que lhe é pedido, a criança utiliza marcas diferentes das que produz ao desenhar. Ela traça linhas onduladas ou em
ziguezague, linhas interrompidas, bolinhas ou mesmo letras convencionais, horizontal ou verticalmente. Essas marcas não têm relação com
o registro sonoro da palavra e não se diferenciam entre si. Somente a
própria criança consegue interpretá-las e o faz de modo instável.
A situação a seguir, relatada por Emilia Ferreiro, é característica
dessa fase.
< (O
^|M
ia)
f
O que você desenhou?
Um boneco. Ponha o
nome. (Rabisco.) (a) O
que você pôs? Ale (=
seu irmão). Desenhe
uma casinha.
(Desenha.) O que é
isso? Uma casinha.
Ml w +
Ponha o nome.
(Rabisco.) (b)
O que você pôs?
Casinha.
Você sabe colocar o seu nome?
(Quatro rabiscos separados.) (c)
O que é isso?
Adriana.
Onde diz Adriana?
(Assinala globalmente.)
—
—
—
—
—
—
—
—
—
—
Por que tem quatro pedacinhos?
.... porque sim.
O que diz aqui? (1?).
Adriana.
E aqui? (2o).
Alberto (= seu pai).
E aqui? (3o).
Ale (= seu irmão).
E aqui? (4?).
Tia Picha.
Fonte: Reflexões sobre alfabetizaçãt) — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 21.
Nas situações de leitura, as crianças interpretam um desenho que
lhes é apresentado, mas afirmam que ele não pode ser lido. Para que se
possa ler, elas dizem ser necessário haver outros tipos de marcas, que
definem genericamente como letras ou números. Isso acontece porque,
de imediato, elas não vêem as letras e os números como objetos substitutos, isto é, como objetos que representam outros objetos. As letras e os
números são, para elas, objetos do mundo externo que se definem por
oposição ao desenho e, como qualquer objeto, têm um nome: letras,
números. Assim, ao apontarmos um texto, perguntando o que está escrito
ou dito ali, é comum que muitas crianças respondam "letras", nomeando aquilo que para elas é um objeto em si.
Posteriormente, as letras passam a dizer algo diferente delas mesmas. Elas passam a representar o nome das coisas.
Assim, colocando bolinhas e tracinhos junto ao desenho de um
leão, uma criança de 4 anos diz ter escrito algo. Quando o pesquisador
pergunta se aquela escrita pode ser lida, ela diz que sim e faz a seguinte
leitura: "diz o nome desse leão" (Ferreiro, 1986: 113). O nome, analisa
Emilia Ferreiro, é o escrito, e não a interpretação do escrito; portanto, o
que está escrito pode ser diferente do que é lido. Isso se evidencia nas
situações de leitura, nas quais a criança interpreta o texto escrito como
se fosse o nome da figura desenhada.
Nessa fase a escrita constitui um sistema independente, mas relacionado ao desenho. Embora as crianças distingam texto de desenho,
elas consideram que não se pode ler um texto sem imagens, porque,
nesse caso, faltam elementos para poder interpretar as letras, e, ao escrever, procuram associar escrita e desenho.
Como a escrita é o nome de algo ou de alguém, a criança procura
registrar, nas marcas que traça sobre o papel, propriedades que os portadores desses nomes têm.
Uma criança de 4 anos registrou do seguinte modo as palavras elefante e passarinho.
passarinho:
elefante:
\j^} KjLi
\j
ft nj $nr
fo u</Qs
Fonte: O construüvismo: de Piaget a Ferreiro
-Azenha. Ática, p. 64.
- Maria da Graça
Ao escrever elefante, ela disse para a experimentadora: "tem que
ser bem grande" (Azenha, 1994: 64-5).
Uma vez feita a distinção básica entre desenho e escrita, as crianças
começam a interpretar as propriedades formais da escrita. Comparando
as letras que compõem as palavras, elas estabelecem primeiramente critérios de diferenciação da escrita com base na quantidade mínima e na
variedade interna de caracteres.
Não basta que haja "letras" para que algo possa ser lido ou escrito.
É preciso uma quantidade mínima de caracteres (em geral por volta de
três a quatro) e que não se repitam sempre os mesmos caracteres.
Nos experimentos, cartões com um ou dois caracteres, como A, AS,
SO, eram classificados pelas crianças como não legíveis porque "são
muito curtinhos", "tem uma palavra só, não dá para ler", "onde há
pouquinhas não é para ler, aqui tem pouquinhas letras, tem duas". Também
os cartões com MMMMM, AAAAA eram considerados ilegíveis porque
"tem tudo a mesma coisa", "diz o tempo todo a" (Ferreiro, 1985: 41-4).
Na escrita, as crianças utilizavam também sempre mais de dois
caracteres e combinados de modos diversos.
—
•
te a
(D
(2)
(3)
h
(6)
Fonte: Reflexões sobre ulfabetização — Emilia Ferreiro. Cortez, p. 23.
A fonetização da escrita: do período silábico ao
período alfabético
A partir do momento em que as crianças começam a prestar atenção às propriedades sonoras da palavra, um novo tipo de hipótese começa a ser construído. Elas passam a estabelecer correspondência entre
partes da palavra falada e partes da palavra escrita.
A hipótese silábica é a primeira das hipóteses que a criança constrói sobre como se dá a relação entre a escrita e os sons da linguagem
falada. De acordo com ela, cada marca ou letra corresponde ao registro
de uma sílaba oral.
A criança escreve fazendo corresponder a quantidade de sinais gráficos com a quantidade de sílabas da palavra falada. Os exemplos a
seguir ilustram essa fase da construção da escrita.
VADE
por
ma-ri-nhei-ro
OFT
gi-gan-te
UR
por
ga-to
TZ
por
XNZ
por ja-ca-ré
por
bur-ro
(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)
Quando as letras começam a adquirir valores sonoros estáveis, a
criança passa a registrar com as mesmas letras as partes sonoras semelhantes das palavras, produzindo escritas como:
G O' por
ga-lo
GO
por
ga-to
RAL
por
Ra-fa-el
ABKE
por
a-ba-ca-te
ABKI
por
a-ba-ca-xi
IOA
por
pi-po-ca
(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)
Nessas escritas há correspondências quantitativas e qualitativas:
cada letra é usada de acordo com seu valor sonoro convencional e
corresponde a uma sílaba da palavra falada.
No entanto, a hipótese silábica cria, segundo Emilia Ferreiro, suas
próprias condições de contradição. As palavras monossflabas, por
exemplo, que deveriam ser escritas com uma só letra, entram em contradição com a hipótese da quantidade mínima de caracteres, e as palavras escritas pelos adultos têm sempre mais letras do que aquelas produzidas pelas crianças. Essas contradições vão desestabilizando a hipótese silábica. A criança precisa buscar um novo caminho. Ela começa a
agregar mais letras à escrita silábica, tentando aproximá-la da escrita
dos adultos. Produz, então, escritas como:
MAIONZ por maionese
BNCA por boneca
MAIZEA por maizena
(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)
Nessa etapa da construção da escrita, a criança usa simultaneamente a hipótese silábica e o princípio alfabético, configurando a hipótese
silábico-alfabética. Por exemplo, na escrita da frase
A Coca coa e oesa
por
A Coca-Cola é gostosa ou na
seqüência de palavras seguinte, escrita pela mesma criança,
ELFT
por
elefante
GAQE
por jacaré
ESA
por
onça
MAKO
por
macaco
LEÃO
por
leão
RA
por
rã
OELFTED
por
O elefante é gordo
(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)
podemos observar como algumas palavras são escritas de acordo com a
hipótese silábica e outras de acordo com a hipótese silábico-alfabética.
Nesse processo, no qual a criança vai apurando a relação entre o
registro escrito e o registro sonoro das palavras, ela descobre que a sílaba não pode ser considerada uma unidade, uma vez que se compõe de
elementos menores. A partir daí, ela começa a construir o princípio alfabético, último passo para a compreensão do sistema de escrita socialmente estabelecido.
A criança começa a se dar conta de que a escrita deve fazer o registro de fonemas da língua oral. Ela passa, então, a perceber a correspondência entre a letra escrita (grafema) e o som pronunciado (fonema).
Essa é a hipótese alfabética. Suas escritas têm nessa fase configurações
como as apresentadas a seguir:
DINOSAURU
SEREJA
TATUSSINHO
FAMÍLIA
CÃU
(Exemplos extraídos de Azenha: 1994.)
Nessa etapa, a criança escreve com legibilidade, mas, ao confrontar
o que escreve com a escrita convencional, ela começa a perceber que a
identidade de sons não garante a identidade de letras e que a identidade
de letras também não garante a identidade de sons. Ou seja, ela percebe
que o bo de boneca (bô) não é o mesmo bo de bode (bó), que o a de
arara (á) não é o mesmo a de banana (ã).Or de rato é diferente do r de
arara e do r de torrada. O som de ch pode ser representado diferentemente, como em chapéu ou baixo, da mesma forma que a letra x soa
diferentemente em lixo, táxi e exame.
Nesse emaranhado de possibilidades, a criança se dá conta de que
uma letra "vale" por vários sons ou que um mesmo som pode ser representado por várias letras, entrando, assim, no campo dos critérios ortográficos da escrita, que, segundo Emilia Ferreiro, não são mais aspectos
construtivos do sistema alfabético. O conteúdo ortográfico da escrita,
afirma ela, depende das informações do meio e do ensino sistemático.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Faça um quadro-resumo apresentando as fases da construção da
escrita pela criança e as características de cada uma delas, segundo
Emilia Ferreiro.
Refletindo sobre o texto
Retome as questões suscitadas pelo trabalho de campo desenvolvido no capítulo anterior. Quais dessas questões o estudo feito por Emilia
Ferreiro ajuda a explicar?
Exercitando a análise
Retome as amostras de escrita obtidas no trabalho de campo. Como
você analisa essas produções?
Em pequenos grupos, discutam as tentativas de análise, procurando comparar as amostras de escrita e destacando as regularidades que
percebem entre elas.
Reúnam as produções que não foi possível analisar ou que não se
enquadram na progressão estabelecida por Emilia Ferreiro.
Façam um resumo da discussão realizada pelo grupo que mencione
as regularidades observadas nas amostras de escrita. Problematizem
(transformem em questão) o que não foi possível enquadrar nas hipóteses de Emilia Ferreiro.
Sugestão de leituras
AZENHA, M. da G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São
Paulo: Ática, 1994.
FERREIRO, E., TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
WEISZ, T. Por trás das letras. São Paulo: FDE, 1992. (Um vídeo
complementa o material escrito.)
. Como se aprende a ler e a escrever ou prontidão, um proble
ma mal colocado. Revendo a proposta de alfabetização. São Paulo:
SE/CENP, 1985. (Texto organizado e elaborado a partir da obra de
Emilia Ferreiro.)
Capítulo 17
Da atividade simbólica à
simbolização na escrita
Enquanto Emilia Ferreiro documentou nos seus estudos experimentais a progressão de noções localizando os modos como a criança raciocina sobre a escrita, apontando percepções e distinções que ela constrói
individualmente, até chegar aos princípios (regras) de organização e funcionamento da escrita convencional, Vygotsky e Luria procuraram mostrar "o que leva a criança a escrever" (Vygotsky, 1984: 121).
Para explicar a gênese da escrita na criança, Vygotsky focaliza a
escrita como uma atividade simbólica.
Tal como as demais atividades simbólicas (gesto, desenho, jogo,
etc), a escrita envolve a representação de uma coisa por outra, a utilização de signos auxiliares para representar significados. O domínio dessa
habilidade complexa não nasce por si mesmo, nem é alcançado de maneira puramente mecânica e externa. Segundo Vygotsky, resulta de um
longo e unificado processo de desenvolvimento da atividade simbólica,
que começa com o uso do gesto como signo visual.
O gesto, movimento comunicativo das mãos, dos braços, das pernas, da cabeça, do rosto, do corpo todo, ganha sentido nas interações
com os outros. A criança aprende a dizer o que quer e a entender o outro
pelo gesto. Os gestos, no dizer de Vygotsky, são escrita no ar.
Depois, o jogo simbólico. O imaginário, feito gesto, feito palavra,
transforma as coisas. No jogo simbólico, uma coisa vale por outra: a
cadeira vira leão, a folha de jornal enrolada vira a espada do menino,
que vira herói...
A criança se movimenta, age, pensa, inventa criando e usando símbolos. Um significado tem vários significantes, várias significações: a
pedra pode virar elefante ou avião. Os objetos adquirem a função de signo
pelo gesto indicativo e pela nomeação. Gesto e palavra são interligados.
O brinquedo simbólico das crianças pode ser entendido como
um sistema muito complexo de "fala " através de gestos que comunicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar.
(Vygotsky, 1984: 123.)
O gesto e o jogo são marcados na areia, na terra, no papel. Explorando o
movimento, a criança produz traçados. São seus primeiros rabiscos Os gestos
da mão segurando lápis, giz, varetas, pincéis materializam a possibilidade de
registro do gesto comunicativo. Surge o desenho
Inicialmente "os traços constituem somente um suplemento à representação gestual" (idem, p. 122). Aos poucos, nas interações a criança
aperfeiçoa esse registro, e a representação pictórica e gráfica começa a
designar o mundo percebido e conhecido. Aos rabiscos, já feitos no papel, ela
dá um nome. Pouco a pouco, a nomeação passa a se dar no início da atividade,
e a criança nomeia o que vai desenhar. Pelo desenho, como pela fala, ela conta
uma história, comunica os aspectos essenciais dos objetos. O desenho como
linguagem gráfica é elaborado com base na linguagem verbal.
Gesto, jogo e desenho, mediados pela fala, constituem momentos
diferentes de um processo unificado de desenvolvimento da linguagem escrita.
Os gestos, o jogo e o desenho representam, de acordo com Vygotsky, a
pré-história da escrita, pois contribuem para a elaboração do simbolismo na
própria escrita.
Como a criança chega à compreensão de que a língua escrita é um
sistema de signos que não têm significado em si? Como apreendem e
elaboram a possibilidade de utilizar linhas, pontos, manchas feitas sobre o
papel como suporte para a memória e a transmissão de idéias?
A elaboração do simbolismo na escrita foi objeto de um estudo
experimental desenvolvido por Luria, que procurou compreender:
• como as crianças se apropriam da escrita em suas relações sociais;
• como elaboram, dentro da própria técnica da escrita, os princípios de
seu funcionamento como sistema de representação, capacitando-se,
gradualmente, para utilizá-lo deforma autônoma.
O estudo experimental do simbolismo na escrita
O procedimento metodológico
Segundo Luria, a simbolização na escrita consiste na transformação de
rabiscos não diferenciados em signos diferenciados. Para reproduzir
experimentalmente esse processo, ele colocou crianças de diferentes idades
que ainda não sabiam ler e escrever em uma situação na qual tinham a tarefa
de elaborar algumas formas simples de notação gráfica.
Partindo da função instrumental da escrita, isto é, do seu funcionamento
como suporte para a memória e a transmissão de idéias e conceitos, o
experimentador solicitava à criança que memorizasse uma série de frases
ditadas por ele, como:
1. Há cinco lápis sobre a mesa. 2. Há dois pratos. 3. Há muitas
árvores na floresta. 4. Há uma coluna no pátio. 6. A bonequinha.
(Luria, 1988.)
Propositadamente, entre as frases não havia relações semânticas, e
seu número era muito maior do que a capacidade natural de memorização das crianças.
Depois de ficar evidente para as crianças sua dificuldade em memorizar as sentenças, o experimentador sugeria que escrevessem ou registrassem de alguma maneira as frases numa folha de papel, como forma de ajudar na sua memorização.
Assim, o experimentador oferecia às crianças uma estratégia (o uso
de um signo auxiliar) e um modo de ação (a escrita) para a solução da
situação-problema. Embora tivessem familiaridade com o aspecto externo da escrita, as crianças desconheciam sua estrutura interna e suas
técnicas de utilização.
A partir daí começava o experimento, interessando ao experimentador apreender que formas de registro eram utilizadas pelas crianças e em que momento elas deixavam de ser simples brincadeiras, passando a funcionar como símbolos auxiliares da memória.
Analisando as produções das crianças, Luria e Vygotsky caracterizaram dois modos de elaboração da escrita: a pré-instrumental e a
instrumental.
A elaboração pré-instrumental da escrita: dos rabiscos
mecânicos às marcas topográficas
O primeiro tipo de elaboração evidenciado na situação experimental criada por
Luria foi a imitação do formato da escrita
do adulto por meio de rabiscos mecânicos
desprovidos de qualquer relação com os
conteúdos a serem representados. As crianças traçavam inúmeros rabiscos no papel antes mesmo de ouvirem a frase a ser
registrada e, diante da pergunta do experimentador acerca do significado dos rabiscos,
explicavam: "E assim que você escreve", "Isso é
escrever".
(Exemplo extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. In: Vygotsky,
Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, 1988.)
Obviamente esse tipo de registro não ajudava
a memorizar as frases, tanto que, ao tentar recordá-las, as crianças nem
olhavam para o papel.
O ato de escrever, nessa situação, era apenas externamente associado à tarefa de anotar uma palavra específica, segundo Luria. A criança imitava o gesto comunicativo dos adultos, sendo o escrever um ato
suficiente em si mesmo, um brinquedo.
O outro tipo de elaboração observado foi o registro em forma de
marcas topográficas. Distribuindo seus rabiscos pelo papel, as crianças
conseguiam lembrar parte das frases ou as frases inteiras, que associavam à sua posição no papel.
tlSLAIM
rtlvI0
<sS>Q/
v/""
«a^^*6"».
V^-"
(Exemplo extraído da dissertação de mestrado de Maria da Graça
Azenha B. Santos O grafismo infantil — processos e perspectivas.
Faculdade de Educação, USP, 1991.)
Ao reproduzir as frases, segundo Luria, as crianças davam a impressão de estar lendo. Olhavam para os rabiscos e podiam indicar repetidamente, sem errar, qual rabisco representava qual frase. Embora
essas marcas ainda não fossem signos, já eram mais do que simples
rabiscos imitativos. A relação da criança com elas era de outra natureza,
pois as marcas funcionavam como pistas auxiliares para recuperar a
informação. Em alguma medida, ajudavam na memorização e tinham
certa relação com um significado, embora ainda não determinassem
qual fosse esse significado.
Pelo fato de as marcas não serem diferenciadas, depois de algum
tempo seu significado era esquecido e elas voltavam à condição de rabiscos mecânicos.
Ainda assim, Luria considera as marcas topográficas como os primeiros rudimentos da escrita, pois reorganizam o comportamento da
criança, ajudando na memorização e na percepção da relação entre sinais e significados.
A elaboração da função instrumental da escrita: o processo de
diferenciação das marcas utilizadas
Das marcas topográficas, as crianças passavam a preocupar-se em
produzir nos seus registros algo que refletisse as diferenças entre as
frases proferidas.
Inicialmente, tentavam fazer isso marcando o ritmo da frase. Em
seus rabiscos, fixavam o efeito produzido pelo ritmo da fala, utilizando
marcas pequenas para registrar palavras isoladas e frases curtas e traçados longos e complicados para indicar as frases longas.
Este relato de Luria ilustra bem o efeito do ritmo da fala sobre a criança.
Demos a L., quatro anos e oito meses de idade, um certo número de palavras: mamãe, gato, cachorro, boneca. Ela anotou todas
com os mesmos rabiscos, que não diferiam uns dos outros. A situação mudou consideravelmente, todavia, quando lhe demos também
longas sentenças junto com palavras individuais: 1) menina; 2)
gato; 3) Z. está patinando; 4) Dois cachorros estão caçando o gato;
5) Há muitos livros na sala e a lâmpada está queimada; 6) garrafa;
7) bola; 8) O gato está dormindo; 9) Nós brincamos o dia inteiro,
depois jantamos e, em seguida, voltamos a brincar outra vez.
h,
tf
(Relato extraído de 'O
desenvolvimento da escrita
na criança'. In: Vygotsky,
Luria, Leontiev. Linguagem,
desenvolvimento e aprendizagem. 1988.)
Também
nessa situação,
conforme
analisou Luria, as
marcas
registradas
com
base no ritmo da
fala
não
apresentavam
diferenças significativas entre si,
de forma que
possibilitasse
uma
leitura
estável. No entanto, revelavam
uma mudança no
processo
de
simbolização da
escrita,
pois,
ainda que superficialmente, a criança estabelecia uma relação entre as
frases apresentadas oralmente e as características do seu registro.
Outro critério de diferenciação das marcas utilizadas pelas crianças
foi o conteúdo das frases. As crianças procuravam registrar quantidades,
tamanho, forma, cor e outras características dos elementos referidos.
Num de seus relatos de observação, Luria descreve o registro feito por
V., de 5 anos.
Pedimos a ele que anotasse as sentenças para que mais tarde
pudesse recordar. Começou imediatamente a produzir rabiscos dizendo:
"Éassim que você escreve". Obviamente, para ele, o ato de escrever era
puramente uma imitação externa da escrita de um adulto, sem qualquer
conexão com o conteúdo da idéia particular, uma vez que os rabiscos
não diferiam um do outro deforma essencial. Eis o registro:
1. O rato com um rabo comprido.
O sujeito (escreve): É assim que você escreve.
2. Há uma coluna alta.
O sujeito (escreve): Coluna...
3. Há chaminés no telhado.
O sujeito (escreve): Chaminés no telhado... É assim que você
escreve...
4.
Uma fumaça muito preta está saindo da chaminé.
Sujeito: Preta. Assim! (Aponta para o lápis e, em seguida, co
meça a desenhar rabiscos muito pretos calcando o lápis com força.)
5. No inverno há neve muito branca.
Sujeito: (Faz seus rabiscos costumeiros; em seguida, separa-os em
duas partes, aparentemente sem relação com a idéia de "neve branca".)
6. Carvão muito preto.
'Sujeito: (Novamente desenha linhas volumosas.)
i
V
<\
3
^^
5
,r
u
r^
(Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. In: Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, 1988.)
As marcas feitas pela criança adquiriam caráter expressivo apenas
em dois casos, nos quais "a fumaça preta" e "o carvão preto" foram
registrados por volumosas linhas pretas.
O efeito dessa forma distinta de registro evidenciou-se quando foi
pedido à criança que identificasse as frases apresentadas para memorização. Luria conta que, inicialmente, a criança nada dizia, parecendo
ter-se esquecido de tudo. No entanto, ao examinar seus rabiscos,
dete-ve-se em um deles, dizendo espontaneamente: "Isso é carvão".
Essa foi a primeira vez que tal leitura espontânea ocorreu nessa criança, e o fato de ela não só ter produzido algo diferenciado,
como ter sido capaz de recordar o que representava, confirma plenamente que havia dado o primeiro passo no sentido de usar a
escrita como um meio de recordar-se.
(Luria, 1988: 168.)
Outro exemplo citado por Luria mostra como um signo, pela diferenciação numérica, tem uma função expressiva:
Quando pedimos a Brina que escrevesse "O homem tem duas
pernas ", ela imediatamente declarou: "Então desenharei duas linhas", e uma vez tendo descoberto esta técnica, continuou a
usá-la. E combinou esse expediente com uma grosseira
representação esquemática do objeto. "A garça tem uma perna" foi
representada com uma linha que encontrava outras em ângulo
reto; "O cachorrão com quatro cachorrinhos " tornou-se uma linha
grande com quatro menores [...]
No teste de recordação [ela] não mais agiu simplesmente a
partir da memória, mas leu aquilo que havia escrito, cada vez
apontando seu desenho.
¥
"
v\
\> V
(Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. In:
Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, 1988.)
A marcas produzidas eram ainda confusas, mas, pela primeira vez,
a criança revelou-se capaz de "escrever" e de "ler" o que escreveu
Nesse momento, segundo Luria, tem-se uma escrita elementar,
uma vez que o registro feito apresenta uma função
instrumental.
Tendo apreendido a necessidade de utilizar
marcas diferenciadas em seu registro para poder
relacioná-las com o conteúdo do material a ser
memorizado, a criança elabora, então, um sistema
de marcas expressivas, por meio das quais forma
todo seu processo de recordação.
Nas tentativas de registro de cor, forma,
tamanho, quantidade, as crianças produziam
representações próximas da pictografia primitiva
(escrita através de desenhos). O desenho começa,
então, a convergir para a escrita, não como
desenho em si, mas como um elemento que
representa conteúdos determinados das frases
faladas pelo experimentador. O desenho constitui,
assim, um elemento auxiliar na produção de uma
escrita diferenciada.
(Extraído da dissertação de mestrado de Maria
da Graça Azenha B. Santos O grafismo infantil
— processos e perspectivas. Faculdade de Educação, USP, 1991.)
A criança quis escrever: 1. ônibus; 2. óculos; 3. menino;
4. árvore; 5. escola; 6. rua; 7. classe.
Da representação pictográfica, as crianças passam à escrita simbólica, inventando formas de representar informações difíceis de serem
desenhadas.
Na situação do experimento de Luria, elas resolviam o problema
do registro de maneiras diversas:
• "anotavam" outro objeto mais fácil de ser retratado e que se relaciona de alguma forma com aquele que foi referido pelo experimentador. Diante da frase "O lixo da chaminé é preto", a criança
comenta: "Preto. Uma caixa pequena. Eu não sei desenhar uma chaminé". Desenha uma caixa e pinta de preto.
• anotavam uma parte daquilo que era proposto.
S. N., de 7 anos e meio, foi instruída a escrever "Há mil
estrelas no céu ".
Primeiramente desenhou uma linha horizontal ("o céu ");
em seguida desenhou cuidadosamente duas estrelas e parou. O
pesquisador questiona: "Quantas mais você tem de desenhar?"
Ela: "Apenas duas. Eu me lembrarei que há mil".
faziam simplesmente uma marca arbitrária para representar o objeto.
Diante da frase "A menina quer comer", a criança desenha
uma menina efaz uma marca ao lado da menina, dizendo: "Aí está
— ela quer comer".
E, diante da frase "A noite é escura", a criança diz "Eu porei
um círculo para a noite " e desenha um círculo completo.
Fig. 1
(Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. In: Vygotsky,
Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, 1988.)
Para superar os limites que encontravam no desenho, as crianças
passavam do registro do conteúdo da fala para o registro de uma idéia.
Nesse processo, o desenho deixa de ser o desenho de alguma coisa para
ser o desenho de palavras. Esse procedimento aparentemente simples
envolve um grau considerável de desenvolvimento intelectual e abstração. A criança percebe que a fala também pode ser desenhada.
Ao longo das tentativas de utilização da escrita, as crianças, que
inicialmente não compreendiam o significado da escrita e tentavam
utilizá-la por imitação de uma atividade do adulto, foram elaborando e
aprimorando técnicas primitivas de registro, diferenciando-as gradualmente, até chegar ao significado funcional do símbolo.
Luria destaca que essas formas de elaboração da escrita não constituem etapas linearmente organizadas e universais. Ou seja, as crianças
não passam necessariamente por todas elas, nem elas acontecem na seqüência descrita.
Isso porque a elaboração da escrita, como função psicológica cultural, não é um processo individual e independente do contexto em que
se vive. Os percursos feitos pelas crianças variam conforme o acesso
que têm, ou não, a experiências concretas de utilização da escrita.
Com a alfabetização, inicia-se um novo período da elaboração da
escrita. A criança passa a se relacionar com a escrita de modo deliberado e sistemático. Passa a utilizar, juntamente com suas técnicas primitivas de registro, uma nova técnica, a escrita, que lhe é apresentada.
"Como escreve uma criança que, embora ainda seja incapaz de escrever, conhece alguns elementos do alfabeto? Como se relaciona com
essas letras e como (psicologicamente) tenta usá-las em sua prática primitiva?", pergunta Luria (1988: 180).
O processo de alfabetização: a relação entre a escrita primitiva
da criança e a escrita convencional
Luria observou que no processo de alfabetização as crianças diferenciavam também gradualmente os símbolos utilizados para produzir escrita
No início, tinham com a escrita convencional uma relação puramente
externa: elas conheciam letras isoladas, sabiam que podiam usá-las para
escrever, embora desconhecessem como.
Ao utilizar as letras para registrar algo, as crianças retornavam a fases de
escrita não diferenciada, mas utilizando as grafias aprendidas.
O seguinte registro de Luria exemplifica esse processo:
O pequeno V, um aldeão de seis anos, não era ainda capaz de
escrever, mas conhecia as letras A e I. Quando lhe pedimos para
relembrar e anotar algumas sentenças ditadas, ele facilmente fez o que
lhe fora pedido. Em seus movimentos, ele revelou confiança integral em
sua capacidade de anotar e relembrar as sentenças ditadas. Os
resultados estão nos registros seguintes:
1. Uma vaca tem quatro
pernas e um rabo.
Sujeito: Eu sei que ela tem quatro
pernas e isto (escreve) é "I".
2. O lixo da chaminé é preto.
(Escreve) E isto é "A".
3. Ontem à noite choveu.
Eis a chuva. Eis (escreve) "I".
4./JHá muitas árvores no bosque. (Escreve) Eis "A".
5. O barco a vapor está
navegando rio abaixo.
O barco a vapor vai assim (Faz
uma marca). Eis "I".
O resultado foi uma coluna de "is" e "as" alternados que nada
tinham a ver com as sentenças ditadas. Obviamente o sujeito não
aprendera ainda a fazer esta conexão, de tal forma que, ao executar a
tarefa de ler o que havia escrito, leu as letras (IeA) sem relacioná-las
deforma alguma com o texto.
(Extraído de 'O desenvolvimento da escrita na criança'. In:
Vygotsky, Luria, Leontiev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, 1988.)
No processo de alfabetização, a criança, interagindo com os usos e
formatos da língua escrita, pela mediação do adulto, de quem recebe
informações sobre o sistema convencional de escrita, tenta utilizar as
letras para ler e produzir textos. Ela imita o adulto nos atos de ler e
escrever e segue suas instruções. Ela confronta suas técnicas primitivas
de escrita com as regras da escrita convencional. Assim ela vai se apro
priando dos mecanismos da escrita simbólica culturalmente elaborada.
O domínio do sistema de escrita convencional vai substituindo, então,
suas técnicas primitivas de escrita.
___________
205
---------
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
Num quadro-resumo, indique as características do processo de
apropriação e de elaboração da escrita pela criança, segundo os estudos
de Vygotsky e Luria.
Exercitando a análise
1. Retome individualmente as amostras de produção de escrita que
você e seu grupo analisaram na atividade do capítulo anterior. Após
saber como Luria e Vygotsky caracterizam o desenvolvimento da escrita, que elementos você destacaria nessas produções? Registre sua
análise.
2. Em pequenos grupos, comparem as amostras de produção de escrita
e discutam as tentativas de análise feitas individualmente, destacando as regularídades observadas entre elas. Registrem os principais
pontos da discussão e os elementos das produções que confirmam a
abordagem de Vygotsky sobre o desenvolvimento da escrita.
3. Reúnam e problematizem as produções que não conseguiram analisar.
4. Em pequenos grupos, socializem o trabalho de análise feito e as
questões que foram por ele suscitadas.
Exercitando a comparação
1. Enumere as semelhanças e as diferenças entre os modos como Emilia
Ferreiro e Vygotsky/Luria descrevem e explicam o desenvolvimento
da escrita na criança. Para isso, baseie-se na leitura dos textos do
livro, nos exercícios de análise das amostras de escrita produzidas
pelas crianças e nas questões suscitadas por esses exercícios.
2. A partir da comparação feita, elabore um pequeno texto destacando
as semelhanças e as diferenças principais entre as duas abordagens.
3. Dividida em dois grupos, a classe deverá ler dois textos.
Os alunos do grupo 1 deverão ler 'Acesso ao mundo da escrita: os
caminhos paralelos de Luria e Ferreiro', de Maria Thereza Fraga
Rocco, em Cadernos de Pesquisa, n? 75, de novembro de 1990, publicado pela Fundação Carlos Chagas, de São Paulo. Aos alunos do
grupo 2 caberá 'Discutindo pontos de vista', de Ana Luiza Smolka,
que é o terceiro capítulo do livro A criança na fase inicial da escrita,
editado pela Cortez, de São Paulo. Nesses textos as autoras
comparam as abordagens de Emilia Ferreiro e Luria. Após a leitura,
cada aluno deve destacar as semelhanças e as
diferenças que as autoras vêem nos trabalhos d* I
■
seguir, compará-las numa discussão que envohJa
, 6 Ferreir° e' a
Após o debate, cada aluno deve retornai «£*?
,^
^
de 2 e acrescentar a ele um comeS" "^f lab(]rado na ativ>datexto e pela discussão com os colega" m°tlVado Pela le"ura do seu
Sugestão de leituras
LACERDA, Cristina B. F. de. É preciso fni*, u
SMOLKA, A. L., GÓES, M. cTde lln(S£
ÍT,?8™ 6SCrever be™? h:
8Uagem e
papo «eofar; V^otaty « a construção L u
° outro esPapirus, 1993.
"»"»Wfao rfo conhecimento. Campinas:
LURIA, AO desenvolvimento da escrita na criança Tn- v
cnanca
LURIA, LEONTIEV. Linsuagem H***™,»!
- In. VYGOTSKY,
deSmVolvment
Paulo: Ícone/Edusp T98?
° * aprendizagem. São
NOGUEIRA, Ana L. H. Eu leio, ele lê, nós lemos- processos de n
• * na
construção da leitura. In: SMOLKA, A.'L^ GÓES MTTT (orgs). A
linguagem e o outro espaço escolar- vXfcíi" f«o <fo conhecimento.
Campinas-Papirus 7993^
""^
SWARTZ, S., AMARO, L. (orgs ) Meu univpr™
r
são. São Paulo: Edart, 1976
~ Comunicação e expresVYGOTSKY, L. A pré-história da escrita In •
At
mente. São Paulo: Martins Z^ ml ---------------- ■**"**«**«*
20
Capítulo 18
Escrevendo e lendo na escola
Enquanto a brincadeira e o desenho praticamente inexistem na escola de 1? grau, a leitura e a
escrita têm ali presença constante. Leitura e escrita
são objeto de conhecimento (as crianças vão à
escola para aprender a ler e escrever) e instrumento para a apropriação de outros conhecimentos
(utilizando essas atividades, nós, professores,
ensinamos), além de instrumento de trabalho dos
professores, meio de comunicação na comunidade
escolar (presente em bilhetes, avisos, boletins,
murais, cartazes), registro, memória (nos planos,
projetos, documentos, atas).
Ainda em torno da atividade escolar, a leitura
e a escrita mediatizam as interações entre os
alunos, que comparam suas tarefas, trocam informações sobre elas, mandam bilhetes, copiam coisas de seu interesse nos cadernos, ficam em sala
durante o recreio para escrever no quadro-negro,
treinam a letra cursiva, lêem, mesmo quando não
solicitados pelos professores, desde o livro didático até materiais
proibidos no recinto escolar, cuidadosamente escondidos sob as
cúmplices carteiras.
Apesar dessa presença maciça e diversificada da leitura e da escrita
nas atividades que se realizam na escola, vivemos às voltas com altos
índices de analfabetismo funcional, evasão e repetência.
Por que o fracasso da escola em ensinar a escrita e
a leitura?
2QO ---O ingresso da criança na V. série do 1? grau é cercado de expecta-------- tivas, por parte da própria criança, de sua família e dos professores. Ela
tem um ano para dominar os segredos da escrita. Tudo o mais é interrompido em favor de seu ensino. A preocupação com os rudimentos da
escrita e da linguagem matemática preenche o tempo das crianças na
escola e fora dela. As brincadeiras, a hora do parque, os desenhos e a
roda da conversa presentes na pré-escola, bem como o tempo livre e
descompromissado em casa, cedem lugar às tarefas. A 1? série marca o
início da postura de seriedade. Agora se trata da escola de verdade, com
tarefa de casa, prova, exame e até, ou principalmente, repetência.'
Alguns pais cobram e acompanham de perto o desempenho dos
filhos. Outros, marcados em sua história de vida pelo "insucesso"
escolar ("Eu sou cabeça-dura"; "As letras não me entram"), torcem
pelo êxito dos filhos, mas temem seu fracasso ("Será que ele saiu igual
a mim?").
Muitos professores, angustiados com as condições de trabalho,
perguntam-se como trabalhar a escrita em salas com trinta, ou até quarenta alunos, nas precárias condições da escola pública brasileira, e
levando em conta as também precárias condições de vida e de trabalho
de muitas crianças.
Grande parte deles procura, ansiosamente, nos alunos, os "pré-requisitos" da alfabetização, mas ignora as experiências que essas crianças tiveram em relação à escrita. Espera-se, como bem apontou Emilia
Ferreiro (1982), que as crianças cheguem à escola sabendo pegar no
lápis, copiar da lousa, discriminar sons, "falar direito"... A ausência desses pré-requisitos as faz ser consideradas inaptas para aprender a ler e
escrever e condena-as às atividades do período preparatório, às vezes
por um ano inteiro (Smolka: 1988).
No início de março, enquanto nas demais classes as crianças
repetiam o a-e-i-o-u, na lf série M as crianças rasgavam páginas
de revistas, picavam as folhas com as mãos em pequenos pedaços,
para enrolar, depois, em pequenas bolinhas que seriam coladas na
copa de uma árvore que a professora desenharia numa folha de
papel. As crianças não tinham idéia desse "projeto ", ou seja: rasgar, picar e enrolar papel para quê? Para a professora o objetivo
era claro: era necessário treinar os movimentos dos dedos, para as
crianças poderem, posteriormente, segurar o lápis direito.
Aparentemente, então, nesta classe, as crianças estavam sendo "preparadas para aprender a ler e escrever", mas, de fato, implicitamente, o que ocorria era a negação desse conhecimento a
quem ainda não o possuía, devido a uma imagem que se tinha ou se
formou das crianças que compunham o grupo...
(Smolka, 1988.)
No período preparatório, as crianças também repetem inúmeras
vezes o a-e-i-o-u, "desenham" e cantam a "onda vai", enquanto movimentam o lápis no papel. Ao fazerem isso, o que estão aprendendo?
Estão escrevendo? Estão desenhando?
Certamente nãq estão escrevendo. O que a seqüência de vogais significa? A repetição de um mesmo símbolo em seqüência é escrita? Nos
estudos de Emilia Ferreiro, as crianças afirmaram que não. Uma condição de legibilidade, que elas apreendem e constróem nas suas relações
com a escrita, é a variedade de caracteres...
Certamente não estão desenhando, pois o a-e-i-o-u é constituído de
letras, de um tipo de traçado específico. A "onda vai" também não é
desenho, pois o desenho de uma onda pela criança tem as mais diferentes formas. (E muitas das crianças brasileiras, que moram no interior,
não conhecem o mar e as ondas a que o treino motor reporta.)
A repetição das vogais e da letra c disfarçada de onda não contribui
para o esclarecimento das crianças. Em vez de serem informadas de que
estão aprendendo a traçar as letras, elas são sutilmente levadas a crer
que estão treinando a escrita. Que conclusão lógica essas crianças podem tirar? A de que C = onda. No entanto, as crianças são recriminadas
ou consideradas incompetentes quando "não aprendem" o convencional
(Smolka e Góes, 1984).
Como o convencional tem
ensinado?
Cumprindo, ao longo
do
ano
dedicado
à
al-fabetização, seu papel
de
informar,
instruir,
insistir,
controlar,
os
professores ensinam letras,
sons, sílabas e a decifrar
palavras escritas, insistem
na memorização e fixação,
controlam a produção e a
disciplina. Fazem tudo isso
na crença de estarem direcionando a atenção e a
vontade
das
crianças.
Obrigadas a "copiar" uma série de letras e palavras, como, por
exemplo, o cabeçalho diariamente colocado na lousa, as crianças não
entendem o que fazem.
O cabeçalho, algumas vezes, é apresentado com lacunas a serem
preenchidas:
C_
D.
H
_, D__18DEA ______ DE 1994.
E A. E
SOL.
(Extraído do relatório de estágio de uma aluna de Pedagogia de
1994.)
Inúmeras vezes uma mesma lição da cartilha deve ser copiada classe e
também como lição de casa:
Mateus, de 6 anos e meio, entrou na 1 f série em 1990, numa escola
central de Campinas, São Paulo. Criança de classe média filha de
profissionais liberais, conhecia muita coisa sobre a escrita e era
interessada em ler.
Ao final do primeiro mês de aula, chorava copiosamente e não
queria mais ir à escola nem fazer a lição de casa. A mãe, desesperada,
não sabia o que fazer. Perguntando à criança o que estava acontecendo,
por que não estava gostando da escola, recebeu a seguinte resposta: "Eu
não agüento mais escrever a lição da lata, mamãe!". Havia um mês,
Mateus copiava em sala de aula e em casa, como tarefa, a primeira lição
da cartilha. A mãe procurou a professora, que explicou: "Eu só posso
mudar de lição quando todos tiverem aprendido direitinho, copiarem
sem erro, e acertarem o ditado. Com o tempo, as crianças vão ficando
mais rápidas".
(Depoimento da mãe da criança a uma das autoras, em 1992.)
Um procedimento comum entre alfabetizadores é se referirem às letras
relacionando-as com as lições da cartilha. O m vira "ma do macaco", o n vira
"na do navio", numa confusão absoluta entre letra, sílaba, palavra, nome de
letra, som de letra.
"Já fez as palavrinhas? Ma com o... na com o... Aqui (na lousa) eu fiz ma
com a. Olha o que você fez aí!" (Smolka, 1984). Numa situação como essa,
além de não se dar esclarecimento à criança, passam-se informações
inadequadas.
Diante dos resultados obtidos, as professoras angustiam-se com as
crianças que "não vão para a frente", que repetem uma ou mais vezes a V.
série, o que não é raro em nosso sistema escolar.
E as crianças?
As crianças chegam à escola desejosas de aprender, ansiosas por
escrever. Afinal, convivem com a escrita já há algum tempo, sabem que têm
algum conhecimento sobre ela, mas sabem também que desconhecem muita
coisa. "Eu não sei ler"; "Eu sei que tem coisa escrita, mas eu não sei muito
bem usar letra", dizem elas.
Elas têm expectativa de que os adultos lhes ensinem.
A criança, de 5 anos, pede à tia que escreva algumas palavras para
ela. A tia, professora e estudante de Pedagogia, sugere que ela mesma
escreva. A criança responde que não sabe. A tia insiste: "Escreva como
você acha que é!".
Depois de algum tempo, a criança volta com algumas letras
marcadas no papel e pede que a tia leia para ela.
zrita deve
abalhada
de forma
onal para
xter o seu
tido real.
Não... Va<cê lê pra mim o que escreveu... — a tia diz.
Viu só como eu não sei escrever? — a criança retruca.
(Depoimento de uma aluna do curso de Pedagogia, numa aula em
que se discutiam os estágios de Prática de Ensino, em 1994.)
As crianças trazem consigo experiências
diversas com a escrita, suposições acerca de
seu funcionamento, mas se vêem impedidas
de explicitá-las na escola. Querem aprender,
mas nem sempre a escola se dispõe a ensinar
a elas o que desejam.
Eu me lembro que esperava na maior
ansiedade a hora de entrar na escola. Só que,
quando entrei na 1 fsérie, chorava muito e não
queria ir mais. Eu queria escrever, não queria
ficar fazendo os rabisquinhos dos exercícios
do período preparatório... Eu já sabia
escrever o meu nome, que minha irmã tinha
ensinado, sabia algumas letras...
(Depoimento de uma aluna de Pedagogia, numa aula em que se
discutiam os estágios de Prática de Ensino, em 1994.J
O resultado desse desencontro entre as
crianças e a escola aparece no diálogo com
crianças de escola pública reproduzido por
Ana Luiza Smolka:
— Pra que você vem à escola?
— Para aprender a ler e escrever.
— Mas para que você vai aprender a ler e escrever?
— Pra tirar boa nota.
— Pra não ficar burro.
— Pra passar de ano.
— Pra não precisar pegar no serviço pesado quando crescer.
(A criança na fase inicial da escrita, 1988: 38.)
Não trabalhando a escrita de forma funcional, a escola faz com
que se perca o sentido real de sua aprendizagem, que passa a ser apenas
o de cumprir as exigências da própria escola (boa nota, passar de ano)
ou de ajudar num futuro remoto.
Pra quem, o que e por que escrevo?
12
*^~r
IP*
Uma sala de aula de 1 ? série, com 26 crianças ingressantes,
entre quase 7 e 8 anos de idade. Zona de periferia, quase rural. A
professora vem, desde o primeiro dia de aula, trabalhando o fun~
cionamento e a funcionalidade da escrita, no sentido de procurar
apontar para as crianças, tanto formal quanto informalmente, as
diversas possibilidades e funções dessa forma de linguagem. As crianças
participaram da confecção de vários tipos de versões do alfabeto — da
Xuxa, do Toquinho, de animais —, tendo esse material exposto como
referência e consulta na sala. Algumas palavras estão também pregadas
na parede, em ordem alfabética. O quadro de presença com os nomes
das crianças, o calendário, dois textos, são outros materiais dispostos na
sala. As crianças podem manusear livros de história e ouvem, quase que
diariamente, a leitura de um livro pela professora.
Mês de maio. A professora encoraja as crianças a escreverem uma
notícia para o jornal dos alunos. As crianças podem recorrer a qualquer
estratégia para montar a notícia — perguntar ao colega, copiar da
revista, consultar o material exposto na sala, pedir auxílio à professora,
etc.
Duas crianças conversam sobre a torneira do banheiro que está
quebrada, que foi consertada, mas que continua não funcionando.
Decidem escrever esta notícia para o jornal. Pat. e Ale. começam a falar
e a repetir lentamente "a torneira está quebrada".
Ale.: A gente quer escrever que a torneira está quebrada, tia. Como
que escreve?
Pat: A torne... é o "e", né, tia? , Proff:
Tem o "e".
Pat: Tá quebra... é o "a", né, tia?
Proff: Também tem o "a ".
Pat: escreve "EA". A professora pede para o Ale. ler.
Ale. Eeeee Aaaaaa.
Proff: Eu também leio "EA ". Vamos ver outro jeito. Torneira, como
será que escreve torneira (pronuncia bem devagar) ?
Pat: Tor... é o "o". (Faz a letra O.)
Ale.: Ne... é o "e". (Pat. faz a letra E.)
Pat: Ra... (faz a letra A).
Proff: Agora lê, Pat
Pat: Torneira.
Proff: Você acha que está escrito torneira aqui, Ale. ?
Ale.: Não sei, tia.
Proff: Então vamos ler juntos: OoooEeeeAaaa. Não está faltando
nada? Tttoorrr...
Ale.: É o "t", não é, tia?
Proff: Certo. Eu vou soletrar, vou dizer o nome das letras pra
escrever "torneira ".
As crianças conhecem quase todas as letras pelo nome e, quando
esquecem ou hesitam, é feita referência ao alfabeto exposto. A
professora vai atender outros grupos. Pat. e Ale. continuam
tentando escreyer. A professora retorna ao grupo deles, verifica o
que e como as crianças escreveram, acaba soletrando o resto da
frase para elas. As crianças agora seguem adequadamente, com o
dedo (fazendo corresponder dimensão sonora com extensão gráfica), o que foi escrito, lendo e mostrando para os colegas o resultado de sua produção.
(Episódio extraído de SMOLKA A. L., 'A atividade da leitura e o
desenvolvimento das crianças: considerações sobre a constituição
dos sujeitos leitores'. In: SILVA, E. T., ZILBERMAN, R. (orgs.). Porto
Alegre: Mercado Aberto,)
Ao tentar escrever sozinha, a criança analisa a escrita do ponto de
vista do conhecimento que ela já tem de suas convenções. "A torne... é
o 'e', né, tia?" — diz Pat. Ao indicar à professora o modo como elabora
a escrita, a criança possibilita que ela trabalhe a forma convencional,
ajudando-a a ir além do conhecimento até então elaborado.
A professora esclarece a criança, informa-a adequadamente ("Tem
o e"). Pede à criança que leia sua própria produção, lê para a criança,
pronuncia devagar o que as crianças querem escrever, soletra para elas.
O que a professora ensina nesse processo? Ela explicita a análise
fonológica para as crianças, mas com a participação delas. Informa sobre o lugar das letras nas palavras, esclarecendo o valor que têm de
acordo com a posição que ocupam. Aponta e nomeia as letras, que são o
instrumental necessário e convencional para dizer as coisas por escrito.
Trabalha o funcionamento da escrita, usando-a para registrar o que a
criança deseja e, escrevendo, interage com ela.
Nessa interação, a professora ensina, explícita e implicitamente, os
aspectos mecânicos e estruturais da escrita, ao mesmo tempo que demonstra para a criança que reconhece nela alguém capaz de aprender a
ler e a escrever. Também aprende a ouvir a criança, a entender o que ela
tem a dizer sobre a escrita, a "ler" o que ela registra sobre o papel. Nessa
relação, o conhecimento sobre a escrita é compartilhado, reconhecido e
elaborado.
No episódio apresentado, o domínio da escrita como código é apenas um dos objetivos apresentados às crianças. A atividade em que elas
estão envolvidas não se esgota no aprendizado do código. Sua finalidade é outra: escrever a notícia do jornal. Escreve-se para outros lerem. A
escrita é, nesse caso, possibilidade de interlocução. Ela tem significado
para as crianças porque responde a uma necessidade social; seu papel é
relevante. Essa é uma condição para que a escrita não se desenvolva
"como hábito de mão e dedos, mas como uma forma nova e complexa
de linguagem" (Vygotsky, 1984: 133).
O uso significativo da escrita desmistifica o acesso a ela. A criança
não se limita a memorizar, gravar ou fixar modos de escrever palavras.
Ela elabora e reelabora a linguagem escrita, escrevendo o que pensa e o
que quer expressar ou registrar para si e para o outro.
Ao escrever o que
pensa, sem copiar ou repe
tir
\
mecanicamente frases
de
cartilhas, a criança bus.
*"■■
ca classificar e sistematizar
os sons da língua de acordo
com a sua percepção. Os
"erros" que comete, embora
sejam
profundamente
reveladores
dos
seus
processos de aprendizagem, causam preocupação e ansiedade nos professores, que se interrogam acerca do que fazer.
Corrigir ou não corrigir? Essa é a questão que ainda ocupa os professores, interferindo na sua prática, no dia-a-dia da sala de aula, levando-os a dois extremos: corrige-se tudo, anulando a produção da criança
como um todo, ou não se corrige nada, confiando-se na "descoberta do
certo" que ela fará.
s
Escrevendo o que
pensa e o que quer,
a criança elabora a
linguagem.
O que é o erro? Os erros são todos iguais?
O caminho para as respostas às questões acima pressupõe a análise
da prcrdução das crianças.
Após a leitura do livro "Nosso trabalho é assim ", elaborado
por um grupo de crianças, a professora conversou com os alunos
sobre o tema TRABALHO. A partir da conversa, as crianças começaram a confeccionar seus próprios livros individuais, com recortes de figuras de revistas. Após o manuseio, a escolha, o recorte e a
colagem das figuras, as crianças ditavam para a professora ou
escreviam textos de acordo com o tema.
Uma criança escolheu fotos do peixe-boi e ditou o seguinte
texto para que a professora registrasse:
"Os peixes-bois estão em uma canoa especial porque os salva-vidas estão salvando eles pra eles não morrerem ".
Após a saída da professora para atender outras crianças, ela
escreve sozinha:
VÀ, ^WvytKc
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O-
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(Episódio extraído do relatório do Projeto de Incentivo à Leitura de
1984. O projeto, coordenada por Ana Luíza Smotka, foi desenvolvido
na Rede Municipal de Ensino de Campinas no período de 1983 a 1985.)
215
Analisando a frase escrita pela criança, o que se evidencia?, pergunta Smolka no relatório em que o episódio está registrado.,
Antes de destacar e analisar os erros, a autora sugere que se dê
atenção a um aspecto dessa produção. A criança comunica seu pensamento por meio da'escrita, e o faz com clareza. Ela consegue escrever o
"que queria ter escrito", e nós, leitores, conseguimos ler e entender o
que ela quer dizer.
"Molhe" em vez de mulher, o primeiro erro que chama a atenção,
se explica, destaca Smolka, por uma generalização comumente constatada nas séries iniciais. Fala-se "ovu" e escreve-se ovo, fala-se "carru" e
escreve-se carro, fala-se "ratu" e escreve-se rato. Diante disso, a criança conclui: o que se fala com u, escreve-se com o. Daí, "molhe", em vez
de mulher, como também "boraco", em vez de buraco. A criança erra
devido à preocupação em acertar (supercorreção). Esse erro revela as
elaborações que ela faz acerca da relação entre a oralidade e a escrita.
Essa relação entre oralidade e escrita aparece também na omissão
do r final. Fala-se "mulhé", omitindo-se o r final. Assim, a criança escreve como fala.
O mesmo acontece com "alimentano". E comum, sobretudo nas
classes populares, a omissão do d na pronúncia dos verbos no gerúndio.
Essa omissão, além de evidenciar a relação entre a oralidade e a escrita,
constitui outra marca: o modo de falar da criança, evidenciado na sua
escrita, não corresponde ao que é estabelecido como língua padrão, é
uma variedade dialetal.
Ao escrever "more" por morre, a criança revela as dificuldades,
compreensíveis, que os múltiplos valores fonéticos das letras trazem,
não só para ela, mas para todas as crianças no período inicial de apropriação da escrita convencional.
A repetição da preposição para no fim da frase também não é adequada à norma padrão, mas sua ocorrência se verifica por razão diferente da que leva à omissão do d nos verbos no gerúndio. Ela não revela um
modo de dizer da criança, e sim a diferença de tempo entre o pensamento
e seu registro por escrito. A criança pensa o que quer escrever. No
processo de fazer o registro, ela vai repetindo a frase lentamente, pára
nas palavras, repete-as, volta sua atenção para o esforço de analisar e
marcar as palavras. Com isso, perde a fluência da frase e retoma-a no
ponto em que parou.
O processo de pensamento pode ter sido "A mulher está alimentando o peixe-boi para ele não morrer", elaborado de acordo com a norma
padrão. Durante o registro, a criança parou no "ele", e provavelmente
repetiu "A mulher está alimentando ele...", completando, então, "para
não morrer".
A análise dessa produção mostra que existem diferentes tipos de
"erros" — dialetais, ortográficos, por generalização, por supercorreção
—, que, ocorrendo por diferentes razões, devem ser corrigidos e
trabalhados de maneiras diferentes. Eles revelam, também,
regularida-des no processo de elaboração da escrita. Juntos, os quatro
primeiros
erros analisados indicam que a criança está apreendendo a relação entre a oralidade e a escrita. Mas, para consolidar essa apreensão ela
precisa de tempo para elaborar, analisar, relacionar e não apenas memorizar.
O processo de elaboração, porém, não compete só à criança Nós
professores, também participamos dele ao analisar com ela sua produção, quando a ajudamos a perceber o curso de seu próprio processo de
elaboração.
Outros tipos de erros encontrados fartamente em relatos de experiência assemelham-se aos seguintes:
A casa é mal-assombrada.
(Projeto de Incentivo à Leitura, 1984.)
Mau e mal soam exatamente iguais e só o contexto esclarece quanto à ortografia correta. A criança comunica o que quer, mas precisa de
tempo para aprender a sutil diferença entre um termo e outro.
A professora pode mediar essa apreensão analisando com a criança
a forma utilizada por ela e as razões de sua adequação, ou não, ao contexto. Assinalar o erro ou escrever a forma adequada sem analisar com a
criança os critérios de adequação ou inadequação em nada contribui
para a elaboração e o domínio da língua escrita convencional.
O mesmo acontece na tentativa de escrita da palavra assombrada.
A criança recorta a palavra em alguns pedaços (a, sul) e usa elementos e
critérios que já conhece, que já viu escritos e que correspondem, em
alguma medida, à sonorização da palavra. Também nesse caso, assinalar o erro, corrigi-lo ou esperar que a criança descubra em que ele consiste não conduzem a nenhuma superação.
Um homem embaixo da árvore.
(Projeto de Incentivo à Leitura, 1984.)
O h no início da palavra homem não tem nenhum valor fonético,
assim como o m final, que, muitas vezes, não é pronunciado. O i em vez
de em indica problemas de nasalização e não-correspondência entre vogai escrita e falada. O i de embaixo também é geralmente omitido na fala,
e o x e o ch servem para representar o mesmo som. "Alvore" revela um
problema dialetal e de supercorreção. Em algumas regiões, o / é pronun-
ciado como r. Fala-se "borsa", "revórvi", e escreve-se bolsa, revólver.
Então, se a fala é árvore, imagina-se que a escrita correta seria "alvore".
Examinando com cuidado os erros cometidos pelas crianças, vamos confirmando as regularidades e as sistematizações próprias do processo de elaboração da escrita. Os erros revelam os modos como as
crianças procuram organizar as informações e os conhecimentos que
têm. Há neles uma lógica muito mais consistente do que à primeira vista
imaginamos. Constatá-los é importante. Mas para quê? O que fazer
com eles?
Alguns professores hesitam entre preservar o direito da criança de
errar e de se arriscar e problematizar suas produções, com receio de
inibi-las. Eis um relato que mostra esse dilema:
O trabalho com as frases foi bom até certo ponto. O que me
desconcertou foi o fato das crianças terem ficado nervosas, histéricas mesmo, porque já não se contentam com suas produções. O
que eu estava interpretando como agressividade gratuita, confusão
e bagunça, vejo agora que é outra coisa. Lêem, reconhecem
sílabas, percebem o significado, mas escrevem silabicamente ou
silábico-alfabeticamente e não ficam satisfeitas com o resultado.
Fica um clima tenso, de insatisfação. Por outro lado, minha postura radical de não corrigi-los nunca está sendo interpretada como
indiferença, pouco caso. Eles sabem que não escreveram certo e
ficam desconfiados, sentem-se enganados. Tenho que repensar minha atitude. [...] Com medo de inibir, passei para o extremo oposto
e não estou ajudando.
(Depoimento extraído do texto 'E na prática, a teoria é outra?', de
Telma Weisz, publicado no módulo ÍI do Projeto Ipê — Isso se
aprende com o ciclo básico. São Paulo: SE/CENP, 1986.)
Outro modo de olhar para os erros é não considerá-los como "negação de conhecimento" ou "afirmação da inteligência da criança e da sua
capacidade de pensar", porque eles são as duas coisas ao mesmo tempo.
Eles nos mostram até onde as crianças chegaram na elaboração da escrita, que hipóteses estão formulando, o quanto já apreenderam e compreenderam acerca de seus fundamentos, funções e princípios de organização. E também quais os pontos em que ainda devemos intervir junto
a elas, o que precisamos explicitar para elas e com elas, que informações podemos lhes dar para que avancem em suas elaborações e no
domínio da escrita.
Os erros indicam a um só tempo o que já não precisamos trabalhar
com as crianças, porque já é do domínio delas, e o que ainda exige
nossa intervenção, por estar em fase de elaboração.
As crianças esperam que nós, professores, exerçamos nosso papel
participando com elas do processo de elaboração desse conhecimento.
Afinal, somos reconhecidos pelos alunos como a pessoa que, na classe,
mais sabe (ou deveria saber) sobre a escrita, como se percebe neste outro depoimento:
As soluções que encontram para as palavras que constróem
são inúmeras. Ex.: O RATO GOTA Dl QIJO (O rato gosta de queijo) ou O COMETA PASO NA SIDADI (O cometa passou na cidade). E quando eles me mostram, eu não digo "está errado", mas
"está certo" seria mentira. Então eu pergunto: O que você escreveu? Eles lêem e emendam "está certo?" E eu: "Esse é o seu jeito... " Não insistem, mas algumas crianças como a Rosa e a
Ivanilda dizem que sabem que "falta alguma coisa" e ficam
em-burradas porque eu não digo. [...] a Ivanilda, muito crítica, só
quer escrever "certo". Não queria se arriscar a escrever "como
achava" e eu, conversando com ela, perguntei por quê. Ela disse
que sabia que estava errado o jeito que escrevia e que eu aceitava
porque era a professora dela. E perguntava: "Você acha, professora, que depois (o ano que vem) vão deixar eu escrever como eu
acho que deve ser?"
(Idem, ibidem.)
As crianças, na escola, não elaboram apenas a escrita em si, mas
também o papel da escrita na sociedade, a função da escola em relação
à socialização da escrita convencional, a expectativa social quanto a sua
aprendizagem, os papéis sociais de professor e aluno, em jogo nas relações de ensino...
Se a escola erra, como vimos anteriormente, quando não possibilita
à criança expressar o que já conhece sobre a escrita, erra igualmente
quando ignora ou torna secundário seu desejo de dominar de modo "eficaz" a escrita convencional.
Como facilitar, então, o aprendizado da língua padrão?
Trazendo a escrita para dentro da sala de aula, trabalhando-a em
suas funções e em todas as suas possibilidades; encorajando e ajudando
as crianças a falar, escrever, divulgar sua produção; lendo e escrevendo
para as crianças e com elas; expondo de forma organizada os trabalhos
realizados e utilizando a escrita como recurso de organização; esclarecendo e informando às crianças sobre a escrita, respondendo a suas perguntas e também corrigindo-as.
Já vimos que o antigo hábito de assinalar o erro não resolve. Ele
apenas evidencia o erro para a criança e para o professor. O erro assinalado não dá informações sobre a escrita, não diz nada ao professor sobre
os processos de elaboração da criança.
Se os diferentes erros se devem a diferentes razões, sua correção e
superação exigem procedimentos também diferentes. Mas só chegamos
a perceber isso quando fazemos da correção um momento de estudo dos
processos de elaboração do conhecimento vivido pelas crianças com
quem estamos trabalhando, quando buscamos discernir o que já domi-
nam e o que ainda não, que hipóteses estão formulando, em que lógica têm
sustentado sua produção. A análise dos acertos e dos erros, das adequações e
inadequações em relação à norma padrão indica os caminhos a seguir.
E planejar o caminho a ser apontado a cada criança envolve um
complexo trabalho de comparar palavras, analisar e dar atenção aos seus
detalhes e às regularidades observadas entre elas, pesquisar e sistematizar
essas regularidades. Esse trabalho deve ser feito junto com as crianças, porque
envolve habilidades intelectuais e informações que elas ainda não dominam.
Ao fazê-lo, compartilhamos com elas tanto os problemas e as dificuldades que
o domínio da escrita nos coloca quanto as buscas de soluções.
Vivida como linguagem, a escrita é código, técnica, significado, objeto
de conhecimento, forma de interlocução. É, enfim, um modo de agir, um
modo de dizer as coisas.
No exercício do dizer pela escrita as crianças aprendem e inter-nalizam
mais do que as relações e convenções lógicas de um sistema de representação.
Elas aprendem e internalizam modos de interação na sua realidade
sociocultural.
Sugestão de atividades
Exercitando a análise
1. Nas práticas cotidianas de sala de aula estão impressas as concepções
que o professor tem a respeito do processo de alfabetização e de elaboração da escrita pela criança.
•
•
•
•
O que é ler e escrever? O que é alfabetizar?
Para que se lê e se escreve? Para que se alfabetiza?
Como a criança aprende e apreende a escrita? Como ela se alfabetiza?
Com que e com quem a criança aprende a escrever e ler? Com que
e com quem ela se alfabetiza?
A seguir você tem um conjunto de episódios de sala de aula. Analise-os atentamente, procurando abordar cada uma das questões sugeridas acima. Para realizar a análise, releia todos os capítulos referentes
ao desenvolvimento da escrita na criança e todos os textos
complemen-tares que foram trabalhados pelo seu professor.
Situação n? 1
(22.02.86) Amanhã será a reunião dos pais. Escrevemos juntos'o bilhete. Primeiro resolvemos o que iríamos escrever. Contamos quantas palavras e perguntei sobre a primeira: REUNIÃO.
Escrevi e pedi que lessem. Qual a palavra que temos que escrever
agora? AMANHA. E liam tudo, até completar o bilhete, reler e copiar. No final sabiam todo o bilhete e identificavam as palavras
separadamente. Alguns disseram que tinham contado tudo errado.
É que no começo contaram nove palavras (oralmente): REUNIÃO
AMANHÃ 9 HORAS. TEM AULA ATÉ 9 HORAS.
Quando viram escrito, discordaram: tem só 7 porque "número
não é palavra, só quando fala".
(Situação retirada de um diário de classe de uma professora de 1!
série e transcrita por Telma Weisz no texto 'E na prática, a teoria é
outra?', publicado em Projeto Ipê — Isso se aprende com o Ciclo
Básico. São Paulo: SE/CENP, 1986.)
Situação n? 2
Era o nosso primeiro contato com as crianças. Para conhecer
e guardar os nomes das crianças, fomos escrevendo o nome de
cada uma na lousa, em letra script, seguindo a posição das crianças nas fileiras. A sétima criança da primeira fila disse que o nome
dela não era 'daquele jeito'. Foi, então, à lousa para mostrar como
se escrevia. Escreveu em cursivo. Mostramos, então, o que aconteceu quando se "juntavam" as letras do nome em script. Logo todas
as crianças queriam ir à lousa para mostrar como se escrevia o nome.
De repente havia mais de quinze crianças escrevendo na lousa (escrever
na lousa, em geral, não é permitido às crianças). Diante da perturbação
gerada (e, de certo modo, esperada) propusemos às crianças que cada
uma escrevesse o seu nome numa folha de papel e que aproveitassem a
oportunidade para desenharem e escreverem o que quisessem.
Neste mesmo contexto, uma criança "emburra " por causa da
disputa de algum material e se recusa afazer qualquer coisa. Um adulto
se aproxima da criança e pergunta:
— Por que você está bravo?
Nenhuma resposta.
— Você não quer conversar comigo?
A criança olha para o adulto sem responder.
O adulto pega o lápis e começa a escrever enquanto pergunta:
— Você quer que eu escreva alguma coisa para você?
— Não.
— Você quer saber o que eu estou escrevendo?
— Quero.
— Eu estou escrevendo a nossa conversa.
— O quê?
— Eu estou escrevendo o que a gente está falando. Você quer que
eu leia?
— Quero.
O adulto faz, então, a leitura do diálogo. A criança, ainda surpresa,
pergunta:
— Como é que sai igualzinho, tia?
O adulto faz uma nova leitura, acompanhando com o dedo o que
está escrito, e vai mostrando os travessões (quando cada um deles fala) e
os pontos de interrogação (quando cada um deles pergunta). Outras
crianças se chegam. A criança pega a folha, entusiasmada, e vai "lendo
", mostrando e explicando para os colegas o que está escrito na folha.
(Situação extraída do livro de Ana Luiza Smolka, A criança na
fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo.
São Paulo: Cortez/Ed. da Unicamp, 1988.)
Situação n? 3
Era também a classe de primeira série mais fraca da escola.
Nenhuma das trinta crianças cursou a pré-escola. A professora,
encorajada pela coordenação da escola, busca alternativas de trabalho
com as crianças.
A situação: as crianças estavam desenhando. Uma das crianças
desenha um revólver e quer escrever "o revólver atira ". Pede ajuda à
professora, que vai soletrando e apontando cada letra no alfabeto
exposto numa das paredes da sala de aula.
A criança continua:
— Quero escrever: "o revólver mata o moço ".
Novamente o processo de soletrar junto, o aluno percebendo que ele
"já sabia" escrever "o revólver".
Chegam à palavra "moço ". A professora fala "cê cedilha ",
procura no alfabeto e não encontra. De repente se dá conta de que não
se coloca o "cê-cedilha " no alfabeto. A criança não conhece, não sabe
qual éa letra, eaprofessora, então, escreve para a criança.
A professora se vira para atender outros alunos. A criança que
desenhou o revólver fala:
—... mata o moço, não. O ladrão.
E escreve, sozinha, na sua folha de papel: OLETAN.
(Situação extraída do livro de Ana Luiza Smolka, A criança na
fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo.
São Paulo: Cortez/Ed. da Unicamp, 1988.)
2. Você já leu o livro Uma professora muito maluquinha, de Ziraldo? Esse
livro, publicado pela Editora Melhoramentos, além de ser uma leitura
prazerosa, oferece um rico material de análise. Após tê-lo lido, procure
caracterizar as concepções de escrita e de alfabetização que orientavam o
trabalho pedagógico da "professora maluquinha".
IVabalho de campo
Vamos dividir a classe em quatro grupos.
O grupo 1 deve realizar entrevistas com professores alfabetizado-res,
prçcurando saber deles:
•
•
•
•
De que mais gostam no seu trabalho?
Quais as dificuldades que encontram?
Como alfabetizam as crianças e que materiais utilizam nesse trabalho?
O que pensam da correção da escrita da criança e como a realizam?
O grupo 2 deve realizar entrevistas com pais de crianças que estão sendo
alfabetizadas, procurando saber deles:
• O que esperam da escola em relação aos filhos?
• O que aprovam e o que desaprovam no trabalho dos professores de seus
filhos?
• Como acompanham a aprendizagem dos filhos?
• O que pensam do desempenho deles?
O grupo 3 deve realizar entrevistas com crianças em fase de alfabetização, procurando saber delas:
• O que acham da escola?
• Do que gostam e do que não gostam no trabalho escolar?
•
•
•
•
O que pensam sobre aprender a ler e a escrever na escola?
Já sabiam ler e escrever antes de entrar na escola? O que sabiam?
O que já aprenderam na escola?
O que gostariam de aprender na escola?
• Quais são as facilidades e as dificuldades que têm com a escrita?
O grupo 4 deve realizar observações em classes de alfabetização,
procurando apreender as condições e formas de interação vivenciadas
no trabalho de escrita e leitura com as crianças.
Nesse caso é importante observar:
• os tipos de materiais com que as crianças trabalham;
• como elas exploram, manipulam e organizam esses materiais;
• o acesso que as crianças têm (ou não) a material escrito ou informativo sobre a escrita (por exemplo, o alfabeto) dentro da sala de aula;
• os tipos de atividades propostas às crianças e como elas participam dessas atividades;
• com que finalidade se solicita à criança que escreva e como ela escreve
(sozinha, em grupos, com o auxílio do professor, faz cópias, ditado, etc);
• o que acriança escreve e para quem escreve (para si, para os outros, etc);
• a que tipo de material de leitura a criança tem acesso (cartilha,
livros escolares, livros de história, poesias, etc.)
• quem lê para ela, o que lê e em que condições;
• em que condições ela mesma lê (o que, como e para quem);
• em que intensidade o desenho e a brincadeira são explorados em
sala de aula, e como a criança os explora;
• como a leitura e a escrita da criança são corrigidas e que reações
essa correção desperta (indiferença, desânimo, temor, alegria,
vontade de retomar o trabalho, questionamento, etc).
Organizando e analisando os dados
Cada grupo deve reunir os dados obtidos e fazer a leitura atenta dos
registros. E, a seguir, analisar os dados, procurando identificar o que há
em comum e de diferente entre eles. Depois, agrupar, definir os critérios
desses agrupamentos e elaborar uma síntese deles para a apresentação
aos outros grupos.
Discutindo os dados
Reunidos os quatro grupos, vamos procurar cruzar o conjunto de
dados obtidos, tentando ver nas respostas das crianças, dos professores,
dos pais e no trabalho de sala de aula os pontos em que há convergências e aqueles em que há divergências.
Vamos registrar as convergências e divergências constatadas e buscar
nas leituras e no estudo que fizemos sobre a relação da criança com a escrita
elementos que nos ajudem a explicar e a problematizar esses dados.
Analisando sua própria experiência
Prepare uma aula de regência com a ajuda de suas professoras de
Prática de Ensino e de Metodologia da Língua Portuguesa e desenvolva-a numa classe da V. série.
Registre tudo o que você planejou e trabalhou com as crianças.
Descreva o material que utilizou e como o empregou em sua aula. Registre também as dificuldades que você sentiu como professora.
Anote os modos como as crianças participaram em sua aula: as
reações, perguntas e comentários feitos por elas, as dificuldades que
elas sentiram, as solicitações que dirigiram a você.
Peça à professora da classe em que você desenvolveu a regência
que lhe permita ficar com a produção escrita das crianças realizada em
sua aula.
Em seguida analise sua proposta de trabalho e a produção das
crianças, seguindo os tópicos de observação destacados no exercício 2
indicado para o grupo 4.
Em relação à produção das crianças, procure prestar atenção não só
ao modo como escrevem, mas também ao conteúdo de sua escrita. O
que você corrigiria nesses trabalhos e como o faria? Como você os devolveria às crianças? Que trabalho desenvolveria com elas a partir dos
dados obtidos nessa correção?
Finalmente, tente olhar para sua experiência tendo como ponto de
partida as perguntas relacionadas no exercício 1. Elabore um relato dessa experiência respondendo a duas questões: O que você aprendeu com
as crianças? O que as crianças aprenderam com você?
Depois de todo esse trabalho, que tal montar uma mostra da produção das crianças e das futuras professoras? Que tal reunir os relatos num
pequeno volume para que eles possam ser lidos pelos colegas e pelos
professores de outras disciplinas?
Sugestão de leituras
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psicologia da criança ? Campinas: Papirus, 1989.
Agradecimentos
A Ana Luiza e à Cecília, com quem aprendemos a olhar a
criança e a estudar o seu desenvolvimento. Pela leitura atenta,
pelas sugestões, pela oportunidade de escrever este livro.
A Adriana, que, refletindo sobre as relações entre teoria e
prática, inspirou várias passagens deste texto.
A Silvinha, pelos episódios e por tudo o que nos ensinou, com
seu trabalho, sobre o desenhar da criança.
Ao Jejferson, pela sugestão — inspirada — do título.
A todas as professoras que compartilharam conosco as
belezas, os sobressaltos e as surpresas de seu fazer cotidiano na
sala de aula.
A Cristina, pela preciosidade dos desenhos que nasceram de
seu trabalho apaixonado e comprometido com as crianças.
As alunas do curso de Magistério e de Pedagogia, com quem
trabalhamos — ensinando e aprendendo — e que souberam ver e
compartilhar alguns dos mais belos episódios que relatamos neste
texto.
As mães que, encantadas, nos contaram histórias sobre seus
filhos.
Ao Wilson e à Vitória, da Atual Editora, pela forma como
acolheram este trabalho, pela possibilidade de diálogo, pelas
sugestões.
A Beth e ao Bernardo, amigos queridos, pela força, pelo apoio,
pela torcida. Pelo modo sempre especial de se colocarem ao nosso
lado.
As nossas famílias, pela solidariedade e pela paciência durante
o trabalho de elaboração deste livro.
As crianças que, falando, brincando, desenhando, escrevendo e
sendo, nos brindaram com os fragmentos do cotidiano que dão vida
e movimento a este texto.
Créditos de abertura de unidades
Unidade 1
Unidade 2
Stock Photos
Leonardo Carneiro/Abril Imagens
Unidade 3
Unidade 4
Karine Dilthey/Keystone
Bill Binzen/ Fran Heye Asociates
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