Sentimento do mundo

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Sentimento do mundo
Sentimento do mundo
1
SENTIMENTO DO MUNDO
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
"Sentimento do mundo" é primeiro poema e o que deu nome ao livro. Ele nos revela a visão-demundo do poeta: não é alegre, antes, é cheia da realidade que sempre nos estarrece, porque, por
mais que sonhemos, a realidade geralmente é dura e muito desafiante.
O poeta inicia (estrofe 1) indicando suas limitações para ver o mundo: Tenho apenas duas mãos;
mas aponta, em seguida, alguns elementos auxiliares que o ajudarão a suprir suas deficiências de
visão: escravos, lembranças e o mistério do amor (versos 3 a 5); escravos podem ser os meios
escusos de que nos utilizamos para tocar a vida e decifrá-la e dela nos aproveitarmos. O pessimismo
denuncia-se com as mortes do céu e do próprio poeta, na estrofe 2. Apesar da ajuda incompleta dos
companheiros de vida ("Camaradas"), o poeta não consegue decifrar os códigos existenciais e pede,
humilde, desculpas. Nas duas últimas estrofes, Drummond pinta uma visão de futuro bem negativo,
mas bem real: mortos, lembranças, tipos de pessoas que sumiram nas batalhas da vida ("guerra", na
estrofe 3). Conclui, na estrofe 5, que o futuro ("amanhecer") é bem negro, tenebroso. Feita só de
dois versos, sintetiza seu sentimento do mundo.
2
CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e
comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
O poema começa com a saudade profunda de seu lugar de nascimento, traçado em quatro belas, mas
sofredoras estrofes. Confessa (estrofe 3) que aprendeu a sofrer por causa de Itabira; mas,
paradoxalmente: "A vontade de amor (...) vem de Itabira"; vale dizer que o amor nasce e é servido
no sofrimento. De Itabira vem a explicação de Drummond viver de "cabeça baixa" (estrofe 3, verso
6). Afinal, apesar das negatividades, o poeta sente uma incomensurável saudade de sua cidade natal.
3
POEMA DA NECESSIDADE
É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.
É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.
As necessidades do poeta são postas no poema, como se assim, a carência delas fosse suprida. Mas
não se pode esperar que o canto do poeta transformasse as pessoas: "A poesia é incomunicável". E
no entanto, o poeta crê na necessidade de mudar o mundo e credita muito valor ao poema. Mas o
coração do poeta é mais vasto que o mundo.
Em "Poema da necessidade", o discurso tem uma enunciação fundamentalmente determinista e
apocalíptica.
Utilizando-se do recurso da anáfora (repetições), o poeta anuncia o “fim do mundo”, num cotidiano
frenético.
4
CANÇÃO DA MOÇA-FANTASMA DE BELO HORIZONTE
Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
na madrugada da serra.
Eu sou a Moça-Fantasma. O meu nome era Maria,
Maria-Que-Morreu-Antes.
Sou a vossa namorada
que morreu de apendicite,
no desastre de automóvel
ou suicidou-se na praia
e seus cabelos ficaram
longos na vossa lembrança.
Eu nunca fui deste mundo:
Se beijava, minha boca
dizia de outros planetas
em que os amantes se queimam
num fogo casto e se tornam
estrelas, sem ironia.
Morri sem ter tido tempo
de ser vossa, como as outras.
Não me conformo com isso,
e quando as polícias dormem
em mim e foi-a de mim,
meu espectro itinerante
desce a Serra do Curral,
vai olhando as casas novas,
ronda as hortas amorosas
(Rua Cláudio Manuel da Costa),
para no Abrigo Ceará,
não há abrigo. Um perfume
que não conheço me invade:
é o cheiro do vosso sono
quente, doce, enrodilhado
nos braços das espanholas.
– Oh! deixai-me dormir convosco.
E vai, como não encontro
nenhum dos meus namorados,
que as francesas conquistaram,
e cine beberam todo o uísque
existente no Brasil
(agora dormem embriagados),
espreito os Carros que passam
com choferes que não suspeitam
de minha brancura e fogem.
Os tímidos guardas-civis,
coitados! um quis me prender.
Abri-lhe os braços... Incrédulo,
me apalpou. Não tinha carne
e por cima do vestido
e por baixo do vestido
era a mesma ausência branca,
um só desespero branco...
Podeis ver: o que era corpo
foi comido pelo gato.
As moças que’ ainda estão vivas
(hão de morrer, ficai certos)
têm medo que eu apareça
e lhes puxe a perna... Engano.
Eu fui moça, Serei moça
deserta, per omnia saecula.
Não quero saber de moças.
Mas os moços me perturbam.
Não sei como libertar-me.
Se o fantasma não sofresse,
se eles ainda me gostassem
e o espiritismo consentisse,
mas eu sei que é proibido
vós sois carne, eu sou vapor.
Um vapor que se dissolve
quando o sol rompe na Serra.
Agora estou consolada,
disse tu do que queria,
subirei àquela nuvem,
serei lâmina gelada,
cintilarei sobre os homens.
Meu reflexo na piscina da Avenida Paraúna
(estrelas não se compreendem),
ninguém o compreenderá.
Neste poema Drummond parte do que seria uma lenda urbana para abordar, na imagem metafórica
do espectro noturno assombrado pela solidão pós-morte, o seu isolamento e o de toda humanidade.
Assumindo a voz dramática dessa alma que vaga pelas ruas da cidade mineira em busca da
comunhão amorosa desconhecida em vida, o gauche assume uma sutil máscara heterônima,
marcada pelo halo do fantástico, como se sua solidão também fosse um espectro fantasmagórico a
transitar pela desconcertada modernidade do mundo caduco.
A reflexão poética sobre a solidão, tecida por Drummond nesse poema, mescla-se com o
questionamento sobre o próprio sentido do existir e já guarda, de certa forma, um embrião do
pessimismo metafísico que dominará sua escrita a partir de Claro Enigma.
O poeta-moça-fantasma se defronta diante de uma transcendência vazia, pois a morte e a possível
vida espiritual não surgem como solução para o enigma da existência, com o reencontro com o
Criador, porém como um intolerável castigo, a expiação de uma solidão eterna, “Oh! Deixai-me
dormir convosco”, distante das benesses gloriosas das promessas do paraíso que imperam no
imaginário judaico-cristão.
Ultrapassar a fronteira da morte e encontrar a eternidade não propicia à Moça-Fantasma a
onisciência sobre o sentido do existir, a comunhão adiada com a humanidade, o contato amoroso
desconhecido, mas a consciência da incomunicabilidade plena de um ser ainda repleto de paixões
irrealizadas.
Essa alma passa a desvelar o abandono eterno do gênero humano, excluído agora de sua substância
corpórea, a transpassar corpos viventes plenos de vida e jamais conseguir com eles comungar.
Esse ser etéreo, que se apresenta sensivelmente aos homens, não causa pavor ao poeta, mas apenas
uma inquietante identificação.
Resgatando a dimensão simbólica da escuridão como elemento soturno, opressor, de erupção do
medonho, o ambiente da noite ressurge na trajetória dessa aparição das ruas desertas da província
mineira.
Metáfora da comunhão adiada de Drummond com a humanidade, a Moça-Fantasma é aquele ente
que, apartado do mundo dos vivos, sofre por perder a dimensão humana de ser vivente que, nem em
vida, nem na morte, consegue o encontro com o outro. “Morri sem ter tido tempo / de ser vossa,
como as outras”.
“Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte” é uma alegoria de uma mundana-fantasma
representando as vicissitudes da vida ingrata das mulheres de rua. A originalidade está na forma de
representação e na forma poética feliz com que Drummond realizou o projeto alegórico. Com esse
projeto, Drummond consegue mexer com o imaginário popular e mundano sempre atento aos
percursos do amores marginais ou clandestinos. O espectro da moça-fantasma assume a narrativa
em primeira pessoa numa intenção de apresentar uma mensagem necessária como se fosse uma
purgação: “Agora estou consolada, disse tudo que queria, subirei àquela nuvem, serei lâmina
gelada”.
5
TRISTEZA DO IMPÉRIO
Os CONSELHEIROS angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“bus-co a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”,
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristóvão,
a dor cada vez mais forte dos negros
e sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone
automático.
A relação irônica do modernismo com a História, prato preferido de Oswald de Andrade, aparece na
poesia de Drummond.
É um poema social de crítica aos ideais burgueses.
6
OPERÁRIO DO MAR
Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso
político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes,
nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma
significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim
tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande
anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de
perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados
Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no
campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário?
Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos
entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos.
Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair
em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está
caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há
nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal.
Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o
milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou,
e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e
confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e
estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele
no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio
atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa,
as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão.
Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?
O poema número 6 da obra Sentimento do mundo faz o autor escapar da linguagem poética material
(versos) e se apropriar dessa linguagem poética sem versos, mas bastante poesia imaterial, em belo
painel-definição explicita a grande diferença social entre operários e não-operários. Esta belíssima
crônica poética, de base surrealista, tão em voga nos anos 30 e 40, serve bem para duas
constatações:
1ª) o sentimento socialista de Drummond que iria espraiar-se cinco anos após Sentimento do
mundo, na publicação de Rosa do povo, em 1945;
2ª) a visão-de-mundo onírica e bem poética de um operário universalizado em São Pedro; ele anda
sobre águas por graça de Deus, enquanto burgueses se espantam por não poderem realizar a mágica;
isto é, aos humildes: a magia divina, aos prepotentes: a inveja.
Esta crônica poética também pode permitir que se compare a "apreensão do mistério da palavra"
nos poemas explícitos de Drummond diante desta prosa poética; por exemplo: "minhas lembranças
escorrem" ("Sentimento do mundo", estrofe 1, verso 4) e "feixes escorrem" (das mãos do operário,
em "O operário no mar", linha 26). O mistério poético de lembranças escorrem é bem mais
profundo do que peixes escorrerem imaginariamente das mãos do operário.
"Operário no mar" é um texto discursivo em prosa, sem aparato versificatório e de um grande
sentido poético. No fundo aparece como uma grande parábola poética que mede a distância entre o
operário e o burguês, e declara uma nítida separação de classes, como se percebe na passagem: “Ele
sabe que não é meu irmão”. Um poema em prosa carregado de símbolos: “Esse é um homem
comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega
desígnios e segredos no mar”.
Pela leitura fica clara a distância entre o eu poético burguês e o operário. Mas há uma mudança,
uma ligeira metamorfose: em seu caminhar frontal e “firme”, a figura do operário se impõe.
Caminha, é insistente em suas lutas e transforma muita coisa, quase faz milagres. É uma alusão à
luta trabalhista, a qual, com o tempo, conseguirá suas vitórias, entre elas, o derretimento de gelos, a
derrubada de preconceitos, e o milagre da aproximação, a humanização.
7
MENINO CHORANDO NA NOITE
Na noite lenta e morna,
morta noite sem ruído,
um menino chora.
O choro atrás da parede,
a luz atrás da vidraça
perdem-se na sombra dos passos abafados,
das vozes extenuadas,
e, no entanto,
se ouve até o rumor da gota de remédio
caindo na colher.
Um menino chora na noite,
atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora,
em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.
E vejo a mão que levanta a colher,
enquanto a outra sustenta a cabeça
e vejo o fio oleoso
que escorre pelo queixo do menino,
escorre pela rua, escorre pela cidade,
um fio apenas.
E não há mais ninguém no mundo
A não esse menino chorando.
Drummond tem um enorme sentido social e uma vontade de que a utopia da fraternidade e
solidariedade seja possível no mundo. Nesta sensibilidade enquadra-se o poema "Menino chorando
na noite" que classifica-se como um poema de ternura, enquanto nele se sublinha a força da criança,
como símbolo de vida, tendo em vista sua dor e os cuidados que a ele são prestados.
Um poema bastante emotivo onde o poeta sofre com o sofrimento do outro. As lágrimas caindo
simbolizam a dor intensa e universal. Ser triste dói.
8
MORRO DA BABILÔNIA
À noite, do morro
descem vozes que criam terror
(terror urbano, cinqüenta por cento de cinema,
e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral,
Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro,
o quartel pegou fogo, eles não voltaram.
Alguns chumbados, morreram.
O morro ficou mais encantado.
Mas as vozes no morro
não são propriamente lúgubres.
Há mesmo um cavaquinho bem afinado
que domina os ruídos da pedra e da folhagem,
e desce até nós, modesto e criativo,
como uma gentileza do morro.
Espaço carioca, onde o poeta aborda a violência e a gentileza (música) envolvendo os moradores.
Em “Morro da Babilônia” temos fundamentalmente um poema social. Se por um lado, por vezes, na
noite, as vozes que vêm do morro provocam terror, por outro lado, também, as vozes do morro não
são necessariamente lúgubres pois dele vem, de vez em quando, o som de um cavaquinho bem
afinado, “que é uma gentileza do morro”...
9
CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos
de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Neste poema, Drummond evidencia claramente o sentimento comungado por todos, simples
mortais. É nele que Drummond fala do "amor que se refugiou no mais baixos dos subterrâneos, do
medo que esteriliza o braço, no medo da morte e do depois da morte, e principalmente, no medo dos
ditadores e no medo dos democratas". O poema escrito há pelo menos 60 anos contrasta com a
página amarela e triste da nossa história que insiste em não virar, e se tornar passado de nossas
vidas.
Em “Congresso internacional do medo” Drummond com verdade e ironia coloca o medo como o
grande dominador de nossa sociedade: “Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou
mais abaixo do subterrâneos. Cantaremos o medo que esteriliza os abraços...”
10
OS MORTOS DE SOBRECASACA
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.
Neste poema Drummond enaltece o “soluço de vida” que destila um simples retrato.
O passado configurado no álbum de fotografias dos antepassados. Embora, inicialmente, as pessoas
do presente zombem dos mortos, nos últimos versos a ironia dá lugar ao intenso sentimento. Esse
poema é uma antecipação da poesia que vai falar da família e da memória. Não há como se desfazer
do passado, da memória, mesmo que as fotos se acabem um dia. As lembranças boas e belas que
nos acontecem ficam.
O poema "Os mortos de sobrecasaca" estabelece uma tensão entre o estado de fixidez inerente à
natureza do objeto fotografado e o movimento sugestivo e peculiar fornecido pela figura do verme
que desliza sua concretude formal sobre a imagem química desbotada pelo tempo. O tom de sépia
descrito pelo espectador no poema, metáfora recorrente para representar os estragos do tempo no
papel "perecível" que registra a "eternidade" do estado de fixidez, sublinha a ideia de que a
fotografia, neste caso consequência do rito familiar, fornece a possibilidade de realização de
experiências óticas. Ou seja, o envelhecimento progressivo do papel de registro (primeira sugestão
de movimento através do tempo) se rebela contra o estado já envelhecido e estático dos personagens
da fotografia (natural e já registrado / congelado no momento do ato).
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BRINDE DO JUÍZO FINAL
Poetas de camiseiro, chegou vossa hora,
poetas de elixir de inhame e de tonofosfã,
chegou vossa hora, poetas do bonde e do rádio,
poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil.
Em vão assassinaram a poesia nos livros,
em vão houve putschs, tropas de assalto, depurações.
Os sobreviventes aqui estão, poetas honrados,
poetas diretos da Rua Larga.
(As outras ruas são muito estreitas,
só nesta cabem a poeira,
o amor
e a Light.)
Neste poema Drummond mostra a sobrevivência da poesia, e dos “poetas honrados”, além da morte
e de todas as catástrofes.
Em "Brinde no juízo final", o texto é modernista e homenageia os poetas populares contra os
acadêmicos. Mostra a impotência da poesia burguesa no mundo capitalista. Fala que a poesia não é
feita só de temas nobres, consagrados, mas de termos e temas banais. Drummond faz um brinde a
essa poesia considerada, anteriormente, ridícula.
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PRIVILÉGIO DO MAR
Neste terraço mediocremente confortável,
bebemos cerveja e olhamos o mar.
Sabemos que nada nos acontecerá.
O edifício é sólido e o mundo também.
Sabemos que cada edifício abriga mil corpos
labutando em mil compartimentos iguais.
Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador
e vem cá em cima respirar a brisa do oceano,
o que é privilégio dos edifícios.
O mundo é mesmo de cimento armado.
Certamente, se houvesse um cruzador louco,
fundeado na baía em frente da cidade,
a vida seria incerta... improvável...
Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis.
Como a esquadra é cordial!
Podemos beber honradamente nossa cerveja.
No poema número 12, o autor continua detendo-se alegoricamente no problema social das
diferenças humanas.
Drummond aqui destila uma ironiazinha sobre a segurança no mundo: o poeta cria uma situação em
que um grupo bebe cerveja no terraço de um edifício enquanto todos olham o mar. “O edifício é
sólido, o mundo também (...) O mudo é mesmo “de cimento armado”(...) Podemos beber
honradamente nossa cerveja”.
Portanto, "Privilégio do mar" é uma crítica à alienação burguesa. O poeta inclui-se entre os
alienados que, se não atingidos, não se mobilizam e desfrutam de certa tranqüilidade, privilegiados
em suas moradias.
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INOCENTES DO LEBLON
Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe emigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
Ainda no enfoque da visão social, o poeta fala da riqueza: "inocentes" significa os que querem
ignorar; por isto fingem e se aproveitam.
Crítica à alienação dos burgueses que “tudo ignoram, ou seja, enquanto a guerra acontece, “os
inocentes passam um óleo suave nas costas, e esquecem.”
14
CORAÇÃO DO BERÇO
O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
(longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.
Mas também a carne não tem importância.
E doer, gozar, o próprio cântico afinal é indiferente.
Quinhentos mil chineses mortos, trezentos corpos
[de namorados sobre a via férrea
e o trem que passa, como um discurso, irreparável:
tudo acontece, menina,
e não é importante, menina,
e nada fica nos teus olhos.
Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
O grito mais alto ainda é suspiro,
os oceanos calaram-se há muito.
Em tua boca, menina,
ficou o gosto do leite?
ficará o gosto de álcool?
Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância).
Um dos poemas mais interessantes e fortes do livro. De intensa carga negativa que reforça as ideias
contidas nos anteriores, como o reforço do mundo ser um “mundo caduco” (em "Elegia 1938" e
"Mãos dadas"), “tempo em que não se diz mais: meu amor” (em "Os ombros suportam o mundo"),
tudo está decomposto e nada mais tem importância, pois a vida é tênue, pequena, frágil e ligeira,
não adiantando gritar, pois nenhum grito será ouvido; as pessoas não se solidarizam mais: “Os
homens não me repetem / nem me prolongo até eles”; há uma frieza nas relações pessoais: “Os
lábios serão metálicos”, e o mundo está acabado e sem importância. Através deste poema
Drummond transmite a mensagem de que desde o berço o destino está marcado: o amor, a carne, a
vida e os beijos não têm a importância imediata que a sociedade de consumo lhe dá.
No poema é elaborado um tipo de conhecimento baseado no determinismo e nas experiências
negativas centradas num tipo de discurso dogmático: "o amor não tem importância(...) nem a carne
não tem importância(...)". Tudo isto, à primeira vista parece uma antífrase profetizante que nos
mostra um poeta descrente da autenticidade do amor a partir dos comportamentos mecanizados e
formalizados adotados pelos homens de seu tempo, que priorizavam a mecanização sobre os
sentimentos puros e naturais.
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INDECISÃO DO MÉIER
Teus dois cinemas, um ao pé do outro, por que não se afastam
para não criar, todas as noites, o problema da opção
e evitar a humilde perplexidade dos moradores?
Ambos com a melhor artista e a bilheteira mais bela,
que tortura lançam no Méier!
O pessoal e autobiográfico que toma forma no cotidiano e se corporifica no mundo que nos entorna,
espraiando-se, universalizando-se.
16
BOLERO DE RAVEL
A alma ativa e obcecada
enrola-se infinitamente numa espiral de desejo
e melancolia
Infinita, infinitamente...
As mãos não tocam jamais o aéreo objeto
esquiva ondulação evanescente
Os olhos, magnetizados, escutam
e no círculo ardente nossa vida para sempre está presa
está presa...
Os tambores abafam a morte do Imperador..
A música “Bolero de Ravel”, foi criada instintivamente pelo maestro Maurice Ravel (1875-1937),
que queria fornecer um exercício prático que envolvesse todos os nypes musicais e uma orquestra
(cordas, percussão, metais e sopro). Trata-se de uma canção repetitiva, que apenas retorna ao seu
tema a todo instante, e a cada repetição, intensifica um pouco mais a sua força.
Drummond trabalha as características da canção no seu poema, principalmente ao citar: “infinita,
infinitamente”, “ espiral de desejo” e “círculo ardente”.
Seu valor intrínseco está na capacidade contrastiva que o poeta estabelece entre a alma ativamente
aplicada ao desejo e à vida e o obstáculo, a distração ou o barulho que prendem ou abafam a entrega
profunda à vivência a ser protagonizada pelo homem vivo. A dinâmica da vida é destacada com
leveza e verdade.
17
LA POSSESSION DU MONDE
Os homens célebres visitam a cidade.
Obrigatoriamente exaltam a paisagem.
Alguns se arriscam no Mangue,
outros se limitam ao Pão de Açúcar,
mas somente Georges Duhamel
passou a manhã inteira no meu quintal.
Ou antes, no quintal vizinho do meu quintal.
Sentado na pedra, espiando os mamoeiros,
Conversava com o eminente neurologista.
Houve uma hora em que ele se levantou
(em meio a erudita dissertação científica).
Ia, talvez, confiar a mensagem da Europa
aos corações cativos da jovem América...
Mas apontou apenas para a vertical
e pediu ce cocasse fruit jaune.
Neste poema 17, Drummond indica o membro da Academia Francesa de Letras, em 1884, Georges
Duhamel, pedindo uma risível fruta estragada; como se isso fosse, como diz o título do poema, ter o
mundo nas mãos.
É nada mais nada menos que uma ironia forte a um cientista estrangeiro que larga sua teoria
científica para aderir ao apelo tropical de um mamão.
18
ODE AO CINQUENTENÁRIO DO POETA BRASILEIRO
Esse incessante morrer
que nos teus versos encontro
é tua vida, poeta,
e por ele te comunicas
com o mundo em que te esvais.
Debruço-me em teus poemas
e nelo percebo as ilhas
em que nem tu nem nós habitamos
(ou jamais habitaremos!)
e nessas ilhas me banho
num sol que não é dos trópicos,
numa água que não é das fontes
mas que ambos refletem a imagem
de um mundo
amoroso e patético.
Tua violenta ternura,
tua infinita polícia,
tua trágica existência
no entanto sem nenhum sulco
exterior – salvo tuas rugas,
tua gravidade simples,
a acidez e o carinho simples
que desbordam em teus retratos,
que capturo em teus poemas,
são razões por que te amamos
e por que nos fazes sofrer…
Certamente não sabias
que nos fazes sofrer.
É difícil explicar
esse sofrimento seco,
sem qualquer lágrima de amor,
sentimento de homens juntos,
que se comunicam sem gesto
e sem palavras se invadem,
se aproximam, se compreendem
e se calam sem orgulho.
Não é o canto da andorinha, debruçada nos telhados da Lapa,
anunciando que a tua vida passou à toa, à toa.
Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino,
diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado.
Não são os carvoeirinhos raquíticos voltando encarapitados nos burros velhos.
Não são os mortos do recife dormindo profundamente na noite.
Nem é tua vida, nem a vida do major veterano da guerra do Paraguai,
a de Bentinho Jararaca
ou a de Christina Georgina Rossetti:
és tu mesmo, é tua poesia,
tua pungengente, inefável poesia,
ferindo as almas, fogo celeste, ao visitá-las;
é o fenômeno poético, de que te constituíste o misterioso portador
e que vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos mundos, das armadas exuberantes
e das situaçãoes exemplares que não suspeitávamos.
Por isso sofremos: pela mensagem que nos confias
entre ônibus, abafada pelo pregão dos jornais e mil queixas operárias;
essa insistente mas discreta mensagem
que, aos cinquenta anos, poeta, nos trazes;
e essa fidelidade a ti mesmo com que nos apareces
sem uma queixa, no rosto entretanto experiente,
mão firme estendida para o aperto fraterno
- o poeta acima da guerra e do ódio entre os homens -,
o poeta ainda capaz de amar Esmeraldas embora a alma anoiteça,
o poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte
- mas haverá lugar para a poesia?
Efetivamente o poeta Rimbaud fartou-se de escrever,
o poeta Maiakovski suicidou-se,
o poeta Schmidt abastece de água o Distrito Federal…
Em meio a palavras melancólicas,
ouve-se o surdo rumor de combates longínquos
(cada vez mais perto, mais, daqui a pouco dentro de nós).
E enquanto homens suspiram, combatem ou simplesmente ganham dinheiro,
ninguém perecebe que o poeta faz cinquenta anos,
que o poeta permanece o mesmo, embora alguma coisa de extraordinário se houvesse passado,
alguma coisa encoberta de nós, que nem os olhos traíram nem as mãos apalparam, susto, emoção,
enternecimento,
desejo de dizer: Emanuel, disfarçado na meiguice elática doa abraços,e uma confiança maior no
poeta
e um pedido lancinante para que não nos deixe sozinhos nesta cidade em que nos sentimos
pequenos à espera dos maiores acontecimentos.
Que o poeta nos encaminhe e nos proteja
e que o seu canto confidencial ressoe para consolo de muitos e esperança de todos,
os delicados e os oprimidos, acima das profissões e dos vãos disfarces do homem.
Que o poeta Manuel Bandeira escute este apelo de um homem humilde.
O belo elogio do poema 18 é a palavra drummondiana a Manuel Bandeira, nascido em 1886 e que,
em 1936, completava 50 anos de vida. Drummond pede que "seu canto confidencial (a poesia de
Bandeira) ressoe acima dos vãos disfarces do homem"!
Trata-se de um poema terno e profundo: Este incessante morrer que nos teus versos encontro é tua
vida. (...) a violenta ternura, a gravidade simples, a acidez e o carinho simples, a fidelidade a si
mesmo, a fraternidade, o poeta acima da guerra e do ódio, a acidez e carinho que (...) a sua
pungente, inefável poesia, ferindo as almas, sob a aparência balsâmica, queimando as almas, fogo
celeste, ao visitá-las (...) Por isto sofremos pelas mensagens que nos confias.
19
MÃOS DADAS
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Neste poema o poeta reafirma a sua consciência da existência de outros homens, seus
companheiros. Com eles é que se sente de mãos dadas, e renunciou aos seus temas pessoais: uma
mulher, uma história, a paisagem vista da janela. Não mais se refugiará na solidão porque o que lhe
interessa é o tempo presente em que se acha inserido, e os homens que o cercam.
O poema "Mãos dadas" anuncia a utópica e festiva solidariedade humana. Como um ativista dos
direitos humanos Drummond muitas vezes nega a influência do mundo moderno em sua obra, é o
fugir do individual e o olhar para o coletivo e a solidariedade.
Como vimos, em "Mãos Dadas", Drummond diz: "Não serei o poeta de um mundo caduco /
também não contarei o mundo futuro.". Isto é, o poeta não é arcaísta nem invencionista. E
prossegue: "Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem da janela / Não distribuirei
entorpecentes ou cartas de suicidas." O poeta afirma que não há espaço para o lirismo
contemplativo, o escapismo romântico ou o pessimismo decadentista em sua poesia.
20
OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
O sentimento do mundo que dá título ao livro começa a fazer presente neste poema. O poeta fala na
renúncia dos seus desejos e inquietações pessoais, que só o deixarão na mais absoluta solidão: não
importa a sua própria vida, o tempo que passa e a velhice que avança, em face dos problemas do
mundo, dos quais ele tem uma dolorosa consciência. Sente-se solidário com os que ainda não se
libertaram do sofrimento. Sua vida se impõe como uma ordem: ela deve continuar, para enfrentar a
realidade de um mundo que ele imagina carregar nos ombros e que não deve pesar mais do que a
mão de uma criança.
Um poema profundo de grande significação ontológica e existencial. Seu núcleo é o que o poeta
chama de “absoluta depuração” e nele está presente mais uma vez o clima estóico e depurado da
vida. Com a sombra de Ricardo Reis e tudo, das doutrinas da Stoá e até e Epicuro.
21
DENTADURAS DUPLAS
Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica?...)
Resovin! Hecolite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada...
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poéticosofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.
Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.
Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
feéricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!
Sátira bem construída e bem humorada, o poema nos mostra que através das dentaduras chega a
focalizar a evanescência da vida que se vai aos poucos: "admiráveis presas, mastigando lestas e
indiferentes a carne da vida".
Há associações surpreendentes, influência surrealista e o deboche do próprio envelhecimento do eulírico.
Portanto, o tema deste poema dedicado a Onestaldo de Pennafort, é a velhice.
22
REVELAÇÃO DO SUBÚRBIO
Quando vou para Minas, gosto de ficar de pé, contra a vidraça do carro,
vendo o subúrbio passar.
O subúrbio todo se condensa para ser visto depressa,
com medo de não repararmos suficientemente
em suas luzes que mal têm tempo de brilhar.
A noite come o subúrbio e logo o devolve,
ele reage, luta, se esforça,
até que vem o campo onde pela manhã repontam laranjais
e à noite só existe a tristeza do Brasil.”
Este poema nos remete à ideia de que o mundo tem sentimento. As luzes são precárias e a aurora
traz a visão das frutas, fatia saborosa da vida.
O título do poema reflete o inusitado efeito estético das luzes do subúrbio aos olhos daqueles que o
observam durante uma viagem noturna.
O ambiente noturno interiorano é triste e contrasta com o ambiente suburbano, cheio de luzes. O
“eu” lírico vê tristeza e simplicidade no cenário do subúrbio.
Ao lermos o poema percebemos que a viagem do “eu” lírico rumo a Minas Gerais dura
aproximadamente um dia.
23
A NOITE DISSOLVE OS HOMENS
A noite
desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda, sem esperança...
Os suspiros acusam a presença negra que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho na noite.
A noite é mortal, completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes cintilantes!
nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.
Aurora, entretanto eu te diviso,
ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes,
vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram mas que avançam
na escuridão
como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes
se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma inocência, um perdão
simples e macio...
Havemos de amanhecer.
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.
Apesar da consciência da plena incomunicabilidade dos homens, destinados a uma transcendência
vazia, Drummond tenciona o ensaio de um movimento rumo à enigmática humanidade, um
deslocamento que se tornará mais vigoroso na imagem
Essa imagem luminosa, a cromática da claridade do amanhecer e da mão redentora em poemas que
desvelam um esforço de superar seus temores através de uma escrita poético-filosófica, propicia ao
gauche vislumbrar um utópico futuro fraterno e superar seus temores no plano estético da criação
lírico-meditativa, e surge no segundo movimento do poema “A Noite dissolve os homens”.
Todo primeiro movimento textual desse poema parece ser marcado pela imagística sombria da
escuridão noturna, (A noite desceu. Que noite!), metáfora, no macrocosmo, dos horrores do avanço
nazi-fascista, da alienação das massas, do totalitarismo do Estado Novo, e, no microcosmo, do
sentimento de culpa, medo e solidão do gauche. Entretanto, a claridade esperançosa de uma futura
aurora surge como saída para o legado de impasses até agora experienciados.
A diluição do que havia de mais humano e grandioso nos homens dissolvidos nesse período trevoso,
reificados e petrificados com o medo espalhado pela noite, encontra uma possibilidade de
renascimento tal como a fênix que emerge das cinzas.
É um importante poema de sentido sociológico e político. Ele se destaca pelo contraste que
estabelece entre a noite "mortal, completa, em reticências que dissolve os homens" e a esperança da
aurora que será o termo da espera: "Minha fadiga encontrará em ti seu termo... minha carne
estremece na certeza da tua vida..."
Este poema foi dedicado ao pintor Cândido Portinari.
24
MADRIGAL LÚGUBRE
Em vossa casa feita de cadáveres,
ó princesa! ó donzela!
em vossa casa, de onde o sangue escorre,
quisera eu morar.
Cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico,
é o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada.
Dentro, vossas mãos níveas e mecânicas tecem algo parecido com um véu.
O mundo, sob a neblina que criais, torna-se de tal modo espantoso
que o vosso sono de mil anos se interrompe para admirá-lo.
Princesa: acordada, sois mais bela, princesa.
E já não tendes o ar contrariado dos mortos â traição.
Arrastar-me-ei pelo morro e chegarei até vós.
Tão completo desprezo se transmudará em tanto amor...
Dai-me vossa cama, princesa,
vosso calor, vosso corpo e suas repartições,
oh dai-me! que é tempo de guerra,
tempo de extrema precisão.
Não vos direi dos meninos mortos
(nem todos mortos, é verdade,
alguns, apenas mutilados).
Tampouco vos contarei a história
algo monótona talvez
dos mil e oitocentos atropelados
no casamento do rei da Ásia.
Algo monótono... Ásia monótona...
Se bocejardes, minha cabeça
cairá por terra, sem remissão.
Sutil flui o sangue nas escadarias.
Ah, esses cadáveres não deixam
conciliar o sono, princesa?
Mas o corpo dorme; dorme assim mesmo.
Imensa berceuse sobe dos mares,
desce dos astros lento acalanto,
leves narcóticos brotam da sombra,
doces unguentos, calmos incensos.
Princesa, os mortos! gritam os mortos!
querem sair! querem romper!
Tocai tambores, tocai trombetas,
imponde silêncio, enquanto fugimos!
... Enquanto fugimos para outros mundos,
que esse está velho, velha princesa,
palácio em ruínas, ervas crescendo,
lagarta mole que escreves a história,
escreve sem pressa mais esta história:
o chão está verde de lagartas mortas...
Adeus, princesa, até outra vida.
"Madrigal lúgubre" é um tocante e trágico poema em tempo de guerra.
Poema lírico, pastoril, que valoriza um cenário alegre, bucólico, matinal e amoroso. O adjetivo lhe
traz feições funéreas e macabras.
Nesse poema, o eu-lírico fala da frustração afetiva e insatisfação sexual. É um texto de intensa
sátira, em que acusa a necessidade subjetiva do amor.
Com um olhar desencantado sobre seu século repleto de crises e falências morais, o mineiro
itabirano constrói o lirismo reflexivo amargo e irônico deste poema.
Em "Madrigal lúgubre" o desencanto amargo com os horrores provocados pela omissão da elite
burguesa dominante, representada metonimicamente na imagem da princesa encastelada num
mundo artificial, já assume o tom do grotesco no próprio título que unifica no mesmo plano a forma
poética do Madrigal, composição engenhosa e elegante, um galanteio dirigido às damas e o
vocábulo lúgubre, que se refere ao fúnebre, lutuoso, triste, desencantado.
ó princesa! ó donzela
em vossa casa, de onde o sangue escorre
quisera eu morar
Ao desconstruir as expectativas do que seria a função galanteadora do Madrigal, Drummond
prepara o ambiente da crítica moral dirigida à apodrecida elite burguesa dominante, seja essa
cooptada pelo jogo de interesses econômicos internacionais, ou seja, diretora da máquina do mundo
capitalista. Os detentores do poder e seu falido projeto civilizador são simbolizados na imagem da
princesa omissa, de beleza longínqua que habita um mundo ilusório, à margem da espessura da vida
real, e que tece com "mãos níveas e mecânicas (...) algo parecido com um véu", alienador, mas que
não consegue ocultar a crueldade de sua civilização. "O mundo, sob a neblina que criais, torna-se
de tal modo espantoso / que o vosso sono de mil anos se interrompe para admirá-lo".
As imagens grotescas da lama e dos detritos humanos, gerados por essa elite omissa, surgem no
verso de abertura do poema, que desvela o inumano soerguimento desse mundo artificial e alienado
das minorias hegemônicas detentoras do poder. A metafórica "casa feita de cadáveres" de onde o
sangue escorre, a sociedade capitalista, se erigiu através da destruição da dignidade humana, da
exploração física da mão-de-obra dos estratos mais inferiores da pirâmide social e se sustenta
através da morte de anônimos combatentes de guerra a expandir os mercados consumidores das
elites nas conquistas dos campos de batalha. Essa semântica do dejeto humano (os cadáveres)
transita pelos demais versos com algumas variações vocabulares (meninos mortos, mutilados, dois
mil e oitocentos atropelados).
Não vos direi dos meninos mortos
(nem todos mortos, é verdade,
alguns apenas mutilados).
Tampouco vos contarei a história
Algo monótona talvez
Dos mil e oitocentos atropelados
No casamento do rei da Ásia (...)
Mas volta, com pungência crítica, na incômoda consciência culposa da princesa-burguesia na quarta
estrofe, onde surge a imagem grotesca e surrealista do sangue criminoso de séculos de exploração
social a fluir pelas escadarias desse castelo-mundo capitalista.
Sutil flui o sangue nas escadarias
Ah, esses cadáveres não deixam
Conciliar o sono princesa?
Mas o corpo dorme; dorme assim mesmo.
É interessante notar como Drummond assume a função de porta-voz dessas sobras humanas que
regressam dos campos de batalha ou que são exterminadas nas invasões das cidades européias, com
certo ar de compaixão por serem tão estigmatizadas quanto ele.
A "sujeira" desse mundo é representada, escatologicamente, na imagem do "palácio em ruínas", que
se corrói despertando a necessidade de despertar a velha princesa (a burguesia alienada) para a
construção de um novo momento histórico-social mediante os gritos e o despertar dos mortos (os
cidadãos alienados) pelo soar das trombetas. Este despertar retumbante surge como uma clara
releitura social da passagem bíblica do livro “Apocalipse” (o juízo final) do Novo Testamento,
como metáfora da esperança utópica de reação popular contra o atual estado caótico da sociedade.
Princesa, os mortos! Gritam os mortos!
Querem sair! Querem romper!
Tocai tambores, tocai trombetas,
Outras manifestações grotescas da imundice moral desse mundo em decomposição surgem no sexto
verso da segunda estrofe na imagem do "jornal sujo, embrulhando fatos, homens e comida
guardada". Há uma possível alusão aos tabloides da imprensa oficial, que compactuavam com a
sujeira moral de seu tempo por distorcer os fatos, embrulhar a divulgação verídica das profundas
iniquidades sociais.
Além disso, há uma clara referência aos jornais usados, sujos, que aquecem o frio dos sem tetos
(embrulhando os homens) e guardam os restos de refeições lançadas ao lixo (embrulhando comida).
Num gesto de desespero, nesse madrigal fúnebre e desencantado, o poeta almeja uma reconciliação
com a distante princesa-burguesia ("arrastar-me-ei pelo morro e chegarei até vós"), mas somente
vislumbra esse acerto de contas num futuro utópico. “Adeus, princesa, até outra vida”.
25
LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO
Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das onze horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Novamente a persona-lírica fala da miséria humana e dos horrores da guerra (como em "Madrigal
lúgubre"), contrasta passado e presente usando a figura feminina como contraponto: uma mulher
chamada Clara.
As exclamações triplas substituem as reticências, tão comuns neste livro. Pedem que com urgência
e espanto se observe que a vida foi modificada, e que o nosso mundo não é mais o mesmo. E que a
mudança é recheada de horror.
26
ELEGIA 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações no encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas de dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Neste poema o poeta volta a falar de um "mundo caduco", da existência de uma "grande máquina",
sobre caminhar "entre os mortos", e usa a segunda pessoa do sinhgular como se estivesse falanddo
consigo mesmo: "A literatura estragou tuas melhores horas de amor", e sentencia de modo
inusitado: "Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição / porque não podes
sozinho dinamitar a ilha de Manhattan.". Esta ilha, referência à cidade de Nova Iorque, símbolo de
um capitalismo tão injusto.
Ao contemplar a realidade e mergulhar profundamente na sua existência buscando integrar-se à
humanidade, vemos muitas vezes no livro Sentimento do mundo, o eu-lírico desdobrando-se na
terceira pessoa, ou mesmo num "tu" problemático, como se fosse uma poética de auto-referência,
cheia de seriedade e paradoxal humor diante da realidade que parece tão errada, mas que exige uma
percepção prática. Drummond conversa com seu leitor, irmana-se. Mostra-nos talvez que a
eternidade é uma palavra expressa, porém de obscura compreensão.
"Elegia" era o nome dado pelos gregos a um tipo cujo tema estava ligado à morte. Seu tom era,
portanto, sempre triste, de lamentação. O ano de 1938 identifica-se com um período de grande
desenvolvimento industrial e uma grave crise social e política, que teria como uma das suas
decorrências a Segunda Guerra Mundial. A esse quadro o poeta refere-se como um “mundo
caduco”.
27
NOTURNO À JANELA DO APARTAMENTO
Silencioso cubo de treva:
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.
Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.
Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.
Triste farol da Ilha Rasa.
Contemplação da noite e o farol da Ilha Rosa. Traz a ideia do fluxo da vida circulando.
Sentimento de sátira: poemas em que predominam a sátira e a ironia.
28
MUNDO GRANDE
Não, meu coração não é maior que o mundo.
Ê muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo.
Por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens.
as diferentes dores dos homens.
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que elo estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai’ inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos —— voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar.
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
— Ó vida futura! nós te criaremos
São os últimos versos do livro. Novamente as reticências, a menção do suicídio, talvez uma morte
coletiva que brotava a partir da incompreensão, da falta de solidariedade que o poeta constatava tão
presente entre os homens.
O poeta agora percebe que o mundo cresce entre o “amor e o fogo”, entre “a vida e o fogo”, cresce
todos os dias entre os homens, e que há esperança por trás de tanta maldade e sofrimento. Mas ele
agora sabe que todos nós precisamos uns dos outros para criar uma vida futura mais melodiosa e
agradável e fazer renascer as cidades submersas, onde nós poderemos fechar os olhos e esquecer,
para somente escutarmos a água calma batendo nos vidros, escorrendo nas mãos e inundando tudo
de verdades e vidas futuras.
Neste poema o poeta observa a noite. Percebemos a ânsia do eu-poético em enlaçar destinos (o
poeta / os outros), reunir os homens, nem que seja em forma de arquipélagos.
Drummond se reconhece no mundo que precisa ser salvo, mas reconhece também o fatal
distanciamento entre os homens. Transfigura-se então de poeta solitário em poeta solidário, recria o
mundo depurando-o, buscando sua essência. Ao silêncio contrapõe a imagem poética.

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