PAÍSES Iraque Os Estados Unidos sobre um barril de pólvora
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PAÍSES Iraque Os Estados Unidos sobre um barril de pólvora
PAÍSES Iraque Os Estados Unidos sobre um barril de pólvora BERNARDO CERDEIRA (Brasil) A SITUAÇÃO NO IRAQUE descrita na mídia internacional é uma mostra da contradição entre propaganda e realidade. O governo dos EUA apregoa os crescentes avanços do Iraque em direção à estabilidade e as vitórias da “democracia”. No entanto, a realidade não poderia estar mais longe desta imagem idílica. H á pouco mais de um mês, foram realizadas eleições no país árabe, que foram louvadas como “livres” e “democráticas”. No entanto, a realidade não poderia estar mais distante desta imagem idílica. A dura verdade é que os sete anos de guerra no Iraque levaram o imperialismo a se meter num atoleiro político e militar do qual vem procurando sair, buscando incessantemente formas de minimizar os estragos. Essa árdua tarefa exige pressões e negociações com os diversos atores da contenda: os setores da burguesia iraquiana, os países árabes, Irã, Turquia, os países imperialistas e suas multinacionais e, principalmente, a resistência das massas populares. Tudo isso gera choques e contradições que fazem do Iraque qualquer coisa, menos um país estável. COMO OS EUA TENTAM DIMINUIR O IMPACTO DA DERROTA? O objetivo dos EUA com a invasão do Iraque foi derrotar e varrer o governo e o regime de Saddam Hussein e o partido Baas, destruir um país relativamente independente, ocupá-lo e manter bases miO governo de Barack Obama enfrenta uma difícil encruzilhada no Iraque. 40 CORREIO INTERNACIONAL PAÍSES litares permanentes para controlar de forma direta a segunda maior reserva de petróleo do mundo e, a partir daí, toda a estratégica região do Oriente Médio. Para isso, queriam moldar um novo regime político e um governo títere que servissem de cobertura “legal” para a ocupação e ajudassem a garantir a “estabilidade” do país. A primeira parte do plano, até a ocupação, foi relativamente fácil. Mas, depois, tudo saiu mal para o imperialismo, que enfrentou uma crescente resistência armada das massas, principalmente da população sunita. O auge da resistência se deu em 2006 e 2007, quando as tropas dos EUA sofriam mais de 80 atentados por dia e tinham centenas de mortos e milhares de feridos por ano. Nesses sete anos de guerra, os ocupantes tiveram mais de quatro mil soldados mortos e 30 mil feridos. Diante desse fracasso, os EUA mudaram de tática, ainda durante o segundo mandato do governo Bush. Passaram de uma política de guerra total para uma tática de negociação e concessões para obter a colaboração de setores da burguesia iraquiana. Em 2006, conseguiram a colaboração da burguesia xiita (a população xiita é maioria no país) para que governasse em aliança com a burguesia curda e tentasse derrotar ou controlar a resistência. Os EUA e os partidos xiitas também aceitaram conceder uma autonomia relativa para o Curdistão. Por outro lado, houve uma concessão econômica: a participação de xiitas e curdos na divisão da renda obtida com o petróleo. A ironia da história é que esse pacto obrigou os EUA a fazer concessões a partidos aliados do Irã, país de maioria xiita e declarado inimigo pelos EUA. O Irã deu seu aval ao acordo, conquistando, assim, uma grande influência sobre o Iraque. No governo, os partidos xiitas organizaram milícias que desataram uma onda de repressão em massa, matando milhares de sunitas, não só membros da resistência como também cientistas, intelectuais, professores universitários etc. O objetivo era desencadear o terror entre a população sunita que apoiava a resistência. A repressão colocou o país à beira da guerra civil. No entanto, a resistência continuava a causar importantes baixas entre as tropas de ocupação. Foi preciso avançar nas negociações e fazer mais concessões. Em 2008, os EUA fizeram um acordo não oficial com as MAIO DE 2010 A resistência militar à ocupação se mantém ativa. milícias sunitas dos Conselhos Despertar, até então parte da resistência, que incluía o pagamento de cerca de 60 milhões de dólares mensais aos milicianos para que estes deixassem de atacar as tropas norte-americanas e passassem a combater a Al-Qaeda e a resistência. Ao mesmo tempo, o imperialismo fortaleceu e treinou as forças armadas iraquianas, aumentando seu efetivo para 200 mil soldados. Com essa política combinada de negociações e pressões, o imperialismo conseguiu diminuir os ataques da resistência e os massacres por parte das milícias xiitas e evitar a transformação da guerra de libertação nacional em uma insurreição contra os invasores. E conseguiu também o mais importante para suas desgastadas tropas: sair do patrulhamento direto das ruas, onde se expunham aos ataques e às bombas da resistência. Com a vitória de Obama nas eleições norte-americanas e a ascensão dos democratas ao governo de Washington, a política do imperialismo aprofundou a negociação, buscando evitar um maior desgaste político e um aumento do custo da guerra. Segundo o economista burguês Paul Krugman, a guerra do Iraque custou até agora ao Estado norte-americano cerca de três trilhões de dólares e sua prolongação e os efeitos posteriores devem custar mais três trilhões. O maior número de soldados norteamericanos no Iraque, 166 mil, foi alcançado em outubro de 2007. Obama propôs a definição de um plano, formalizado através do protocolo SOFA (por suas siglas em inglês), para a retirada das tropas norte-americanas, começando com uma retirada parcial de 30 mil soldados. Atualmente, permanecem 96 mil soldados. O plano prevê a saída de 50 mil em 1º de setembro de 2010, chegando à retirada total até o fim de 2011. UMA COLÔNIA DOS EUA ADMINISTRADA POR UMA DITADURA O regime político instalado no Iraque é uma das ditaduras mais brutais do mundo e se baseia na combinação entre a ação das tropas de ocupação e o governo títere. Segundo denunciam organizações de Direitos Humanos, “as forças de ocupação dos Estados Unidos no Iraque mantêm presos mais de 160 mil cidadãos iraquianos em mais de 50 prisões e campos de detenção, incluídos 28 campos dirigidos pelas forças ocupantes”. Há 520 mulheres detidas como reféns em lugar de seus filhos ou maridos que conseguiram escapar. Nas prisões das forças de ocupação também estão presas mais de 900 crianças menores de 15 anos. A elas se somam outras 1.400 crianças menores de 15 anos encarceradas em prisões do governo iraquiano. Segundo a Cruz Vermelha, o número de presos é de 71 mil, mas outros milhares 41 PAÍSES se encontram em centros de detenção onde as forças ocupantes não permitem as visitas desta organização. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha protestou repetidamente porque lhe foi negado o acesso a qualquer centro, sem contar os cárceres secretos. O número total de centros de detenção é desconhecido. Recentemente, o conselho presidencial do Iraque informou a ratificação de sentenças de morte para cerca de 900 presos, entre eles 17 mulheres, que aguardam nos corredores da morte. Nenhum teve um processo justo. A Associação Iraquiana dos Advogados denunciou publicamente que não pode visitar os presos. Desde 2003, centenas de advogados defensores dos presos foram assassinados. A existência de tantos presos políticos é uma demonstração clara do cenário anti-democrático em que foram realizadas as eleições parlamentares de 7 de março, em um país ocupado por quase cem mil soldados estrangeiros. Sem contar que a constituição prevê a proibição do antigo partido Baas, do expresidente Saddam Hussein, e de todos os políticos suspeitos de ligações com esta organização. Baseados nessa lei, em nove de janeiro deste ano, a Comissão Responsabilidade e Justiça do Iraque tentou excluir 458 candidatos acusados de vínculos com o Partido Baas. UM PAÍS SAQUEADO: A EXPLORAÇÃO DO PETRÓLEO PELAS MULTINACIONAIS O regime político ditatorial e seu governo títere estão a serviço de entregar a enorme riqueza do petróleo às companhias imperialistas. Entre o fim de 2009 e o início de 2010, o governo de Maliki concedeu grandes reservas às multinacionais. O Iraque tem 115 bilhões de barris em reservas (a segunda maior do mundo, depois da Arábia Saudita). Em novembro de 2009, o governo cedeu os direitos de exploração do enorme campo petrolífero de Qurna Oeste, na província de Basra, sul do Iraque, à um consórcio formado pela Exxon Mobil e a Shell. As reservas comprovadas de Qurna Oeste equivalem a 8,7 bilhões de barris. O contrato firmado pelo consórcio com o governo iraquiano tem a duração de 20 anos. O regime iraquiano vai pagar até 50 bilhões de dólares às empresas para atualizar o campo. Além disso, pagará 1,90 dólares por cada barril extraído. No mesmo mês, o governo firmou um contrato com a British Petroleum (BP) e com a China National Petroleum Corporation (CNPC) para ceder os direitos de exploração do campo de Rumaila, que tem reservas de 17 bilhões de barris. Os acordos são classificados como contratos “por prestação de serviços”, o que permite que não passem pelo Parlamento. Outro consórcio formado pela norteamericana Occidental, pela italiana Eni e pela sul-coreana Kogas fechou um acordo provisório para explorar o campo de Zubair, com reservas de quatro bilhões de barris. Este ano, o ministro de Petróleo do Iraque, Hussein Shahrastani, anunciou a atribuição de sete campos petrolíferos às companhias Lukoil (Rússia), Statoil (Noruega), Petronas (Malásia), Japex (Japão), Gazprom (Rússia), TPAO (Turquia), Kogan (Coréia), Sonangol (Angola) e Total (França). O resultado deste leilão é que um total de 45 bilhões de barris, mais de 35% das reservas conhecidas do país, foi entregue às multinacionais. Depois da guerra, da ocupação e de passar a ser colônia dos EUA, o Iraque sofre um verdadeiro saque da sua principal riqueza, o petróleo. As tropas de ocupação dos EUA realizaram um verdadeiro genocídio no Iraque. 42 FOME, DESEMPREGO E DESTRUIÇÃO Depois de sete anos de ocupação militar e guerra, o Iraque é um país destruído. As tropas dos EUA mataram mais de um milhão de iraquianos, segundo dados dos próprios institutos norte-americanos. Três milhões de iraquianos sofrem os efeitos do uso de urânio empobrecido e armas químicas pelas tropas norte-americanas. A miséria e a fome se alastram. Dez milhões de iraquianos, mais de 30% da população, vivem em absoluta pobreza. A maioria é formada por jovens. Há uma massa de dois milhões de indigentes: viúvas, órfãos e pessoas forçadas a se deslocar dentro do próprio país. O índice oficial de desemprego é de 30%, mas muitos economistas estimam que esta cifra beire os 50% da população economicamente ativa. A privatização das estatais causou o fechamento de empresas e demissões em massa, deixando muitos sem possibilidade de encontrar outro emprego. A ocupação destruiu grande parte dos serviços públicos essenciais: água, energia elétrica, saúde, comunicações etc. A guerra, a ocupação, a pobreza e a repressão provocaram a maior crise migratória do Oriente Médio e uma das maiores do mundo. Atualmente existem cerca de 4,8 milhões de iraquianos refugiados, dos quais aproximadamente dois milhões são refugiados em outros países e 2,8 milhões tiveram que se deslocar dentro do Iraque, fugindo de condições extremas em seus lugares de origem. Todo este quadro de pobreza provoca enormes problemas sociais, tais como a delinqüência, o tráfico de pessoas (mulheres e menores), a prostituição etc. O fracasso do sistema educacional aumenta o analfabetismo e diminui os níveis de educação, devido à falta de recursos e à insegurança crônica provocada pela violência. A OCUPAÇÃO MILITAR CONTINUA SENDO O CENTRO DO PROBLEMA A “estabilidade” sob a ocupação é uma ilusão. A repressão política do governo e das tropas de ocupação; os enfrentamentos armados entre as diversas facções burguesas sob o manto da disputa “religiosa”; a crescente deterioração das condições de vida, o desemprego, a fome e a miséria; a espoliação do petróleo pelo governo não permitem uma estabilidade do Iraque. CORREIO INTERNACIONAL PAÍSES Além disso, apesar de ter retrocedido, a resistência continua viva. Os três principais grupos –a Frente Jihad Libertação e Redenção Nacional (baasistas), a Frente Jihad e Mudança (islâmicos moderados) e a Frente Jihad e Reforma (islâmicos mais radicais)– rechaçaram o processo eleitoral por considerar que seria realizado numa situação de ocupação militar estrangeira. A resistência também condenou os atentados e os assassinatos de civis, declarando publicamente que seu objetivo são exclusivamente as tropas ocupantes e que não atacam iraquianos. Existem ainda outros grupos, como a Associação de Ulemás Muçulmanos, dirigida pelo sheik Harez Al-Dari, e o Congresso Fundacional Nacional Iraquiano. O desafio da resistência é reagrupar-se e retomar a luta. Mas, acima de tudo, o grande elemento que concentra todas as insatisfações do povo iraquiano é a ocupação do país pelas tropas norte-americanas. Por isso, os EUA vivem uma contradição permanente: precisam retirar-se do Iraque por problemas políticos, militares e econômicos, mas, ao mesmo tempo, é possível que todas as contradições já citadas exijam que a retirada seja adiada para depois de 2011 ou que não se realize totalmente. Por outro lado, mesmo na hipótese de uma retirada “total”, esta seria das “tropas de combate”, mas 30 a 50 mil militares continuariam em suas bases. Ou seja, apesar de ter sido obrigado a mudar de tática, os Estados Unidos não mudaram sua estratégia: manter bases permanentes no Oriente Médio para garantir o acesso às maiores reservas de petróleo do mundo e controlar possíveis reações das massas a este saque permanente. A maior prova disso são as ações das Forças Armadas dos EUA para consolidar as cinco bases norte-americanas no país, verdadeiras cidades com toda a infra-estrutura e comodidades para os seus soldados. Outra evidência dessa estratégia de ocupação permanente é o aumento de 25% do número de mercenários provenientes das companhias privadas de segurança desde o anúncio de Barack Obama de que iria começar a retirar algumas unidades militares. O número de mercenários atingiu a impressionante cifra de 160 mil homens. É este quadro que faz com que o Iraque seja um grande barril de pólvora sobre o qual estão sentados os Estados Unidos. A grande questão colocada é se a resistência das massas voltará a atuar incisivamente, aproximando mais uma vez a chama da pólvora. CRISE E IMPASSE NAS ELEIÇÕES DE SETE DE MARÇO A o redor de 63% da população compareceram às urnas para eleger os 325 deputados do Conselho de Representantes, o Parlamento iraquiano. O resultado apontou a coalizão Al-Iraqiya, do ex-primeiro ministro Alawi, como a mais votada. Mas o atual primeiro-ministro, o xiita Nuri Al-Maliki, contestou o resultado da apuração e pediu uma recontagem dos 2,5 milhões de votos de Bagdá. O tribunal eleitoral aceitou o recurso. Até o momento em que este artigo foi escrito, o impasse provocava um vazio de governo. Além disso, a recontagem não garante o fim da crise já que, conforme a lei, o próximo primeiro-ministro deve ser eleito pela maioria dos membros do Conselho de Representantes, o que torna possível diferentes resultados a depender das alianças. As eleições são um claro retrato da crise do Iraque. Apesar da existência de diversos partidos, pode-se dizer que havia três grandes blocos nas eleições. De um lado estavam os partidos e coligações que buscavam aparecer como laicos. Em geral, essas formações foram apoiadas pelos EUA e pelos países árabes. Entre eles: • A coalizão Movimento Nacional Iraquiano, também conhecido como Al-Iraqiya, chefiada pelo xiita laico Iyad Alawi e pelo sunita Saleh Al-Mutlak. Elegeu 91 deputados. • A Aliança pela Unidade do Iraque, do ministro do Interior Yawad al-Bulani (xiita) e do sheik Ahmed Abu Risha (sunita), presidente dos Conselhos do Sahua (Despertar) do Iraque. Elegeu quatro representantes. • Um terceiro partido foi Al-Ahrar, do clérigo xiita Ayad Yamaleddín, que acusa o Irã e seus partidos de sectarismo xiita e defende um Estado laico. Do outro lado estavam os partidos islâmicos xiitas apoiados pelo Irã que fizeram parte da Aliança Iraquiana Unida e que chegou ao governo com as eleições de 2005. Em 2010, a AIU se apresentou dividida em dois blocos: MAIO DE 2010 • A Coligação do Estado de Direito, cuja principal força política é o partido Dawa, do primeiro-ministro Nuri Al-Maliki. Elegeu 89 parlamentares. • A Aliança Nacional Iraquiana, que tem como principal força política o Conselho Supremo Islâmico do Iraque (CSII), liderado pela família Al-Hakim, cujo braço militar é a milícia Báder. Participaram dessa coligação Ahmed Chalabi, o ex-primeiro ministro Ibrahim al-Yaafari e Muqtada al Sader, dirigente do Exército de Mahdi. A ANI elegeu 70 deputados. Por fim, havia também os partidos do Curdistão, que no governo atual dividem o poder com os partidos xiitas. Entre eles estão: • A Aliança do Curdistão, formada pela União Patriótica do Curdistão, dirigida por Jamal Talabani, presidente do Iraque, e pelo Partido Democrático do Curdistão. A coligação ficou em quarto lugar ao eleger 43 deputados. • Movimento pela Mudança (Goran), que elegeu oito deputados; União Islâmica do Curdistão, com quatro deputados; e o Grupo Islâmico do Curdistão, dois deputados. Além desses blocos, a Frente do Acordo Iraquiano (al-Tawafuq), uma força sunita, elegeu 6 parlamentares e outros grupos minoritários elegeram 8. Nouri al-Maliki, primeiro-ministro do Iraque. 43
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