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CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE
n.1 (2013)
As representações da guerra medieval. As Tapeçarias de
Pastrana como ponto de partida
Inês Meira Araújo
Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
[email protected]
Resumo
As representações da guerra continuam a ser consideradas como fontes históricas pouco credíveis para o estudo
da História Militar, sendo utilizadas, em geral, meramente como ilustração de uma ideia ou posição. A partir de
um objeto de estudo específico, as Tapeçarias de Pastrana, pretendemos mostrar o que é possível esclarecer,
questionar ou concluir no campo da história militar medieval através da iconografia. Assim, foi efetuado um
levantamento do armamento representado nestas tapeçarias, tendo em vista um entendimento mais completo
do equipamento militar português do final da centúria de quatrocentos e, mais concretamente, das armas
envergadas nas campanhas no Norte de África. As tapeçarias, estudadas em conjunto com as fontes narrativas e
arqueológicas contemporâneas, trazem novas informações, sobretudo, no que diz respeito à tipologia de armas
utilizadas, mas, também, à estratégia e tática de guerra nas conquistas das cidades de Arzila e Tânger.
Abstrat
The representations of war continue to be considered as unreliable historical sources for the study of military
history, being used, in general, merely to illustrate an idea or position. Based on specific objet of study, the
Pastrana Tapestries, we pretend to present what can be clarified, questioned or concluded in the field of
military history through iconography. Thus, a survey was carried out on the armaments represented in these
tapestries, aiming at a more complete understanding of the Portuguese military equipment at the end of the
15th century and, more specifically, of the weapons used in the North African campaigns. The tapestries,
studied in conjunction with the archaeological and contemporary narrative sources, provide new information,
especially with regard to the types of weapons used, but also to the strategy and tactics of war on the conquest
of the cities of Asilah and Tangier.
As representações de guerra e dos seus combatentes datadas do período medieval são escassas e
muito dispersas em termos geográficos e cronológicos. A iconografia da guerra em geral, e da Idade
Média em particular, é, ainda, um campo de investigação praticamente inexplorado do panorama da
História da Arte nacional, mas também internacional. Da mesma forma, o estudo da iconografia e
iconologia da guerra medieval, que se liga claramente à concepção do guerreiro e do cavaleiro ideal,
continua pouco desenvolvido em Portugal.
Na sua generalidade, os estudos de História Militar não utilizam as obras de arte como fonte
histórica, mas apenas como forma de complemento às fontes escritas e arqueológicas, ou vêem-nas
simplesmente como uma forma de ilustração de uma ideia ou posição. Muitas vezes, tal como
acontece, por exemplo, com a cronística, as suas informações são ainda vistas com desconfiança e
apreensão, devido à latente importância da mão e recreação que o artista impõe na sua obra. Assim
como, as convenções artísticas do período e a influência do próprio encomendante poderiam ditar
uma maior tendência para a recreação e criatividade do que propriamente para a fidelidade.
Por isso, decidimos encarar este trabalho como um ponto de partida, já que materializa um primeiro
passo para ilustrarmos o que é possível concluir, questionar ou abrir novas perspetivas no campo da
História Militar Medieval a partir da iconografia. Neste artigo pretendemos ver as representações
artísticas, e tomando as Tapeçarias de Pastrana como exemplo, como uma fonte histórica per se,
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embora nunca de forma isolada, pois apenas com o complemento das fontes escritas e arqueológicas
foi possível um estudo completo.
Concentrámos, assim, a nossa análise sobre um objeto de estudo específico – a série das Tapeçarias de
Pastrana –, em vez de efetuarmos um inventário geral das figurações bélicas existentes no nosso país,
um estudo que ainda está, em parte, por desenvolver. Este arrolamento foi desencadeado pela
exposição Pera Guerrejar. Armamento Medieval no Espaço Português (Barroca e Monteiro, 2000), onde
foram apresentados as principais obras de arte de origem portuguesa, mas não só, com
representações militares datadas do período medievo. Nesta mostra foram considerados vários
suportes artísticos (iluminura, tumulária, tapeçaria, pintura), assim como artefatos arqueológicos.
Embora uma parcela considerável das representações da guerra existentes em Portugal tenha sido
aqui exposta e estudada, consideramos que muitas obras ainda estão por descobrir e muita
investigação ainda há a fazer, nomeadamente no que diz respeito ao discurso iconológico presente,
assim como um estudo comparativo entre estas obras e outras estrangeiras do mesmo período.
Ainda que no nosso país os objetos de estudo existentes sejam em número reduzido, consideramos
imprescindível o desenvolvimento de um trabalho, primeiramente de inventariação e catalogação,
seguido de um estudo comparativo, abrangendo o discurso iconográfico e iconológico, perspetivando
um caráter evolucional, sobretudo no que diz respeito ao armamento individual.
O estudo do investigador espanhol Alvaro Soler del Campo, La Evolucion del Armamento Medieval en
el Reino Castellano-Leones y Al-Andalus (siglos XII-XIV) (Soler del Campo, 1993), trabalho
imprescindível no campo da iconografia da guerra medieval, vem confirmar a viabilidade de um
trabalho com estas caraterísticas. Soler del Campo procedeu, primeiramente, a uma descrição do
armamento ofensivo e defensivo, procurando as analogias e disparidades existentes entre o
armamento cristão e muçulmano. Ao mesmo tempo, delineou o processo evolutivo deste
equipamento, entre os séculos XII e XV, utilizando a iconografia como fonte principal.
Outro exemplo de um estudo que congrega a História da Arte e a História Militar, embora numa
cronologia um pouco mais avançada, é a obra Artists and Warfare in the Renaissance da autoria de J. R.
Hale (Hale, 1990). Este trabalho focaliza-se nas representações da guerra alemãs e italianas e procura
compreender o impacto que os aspetos visuais e emocionais da guerra conferiram sobre os programas
pictóricos: a representação do guerreiro, mas, também, dos teatros de guerra, das campanhas, das
conquistas e derrotas. Da mesma forma, tem como objetivo compreender o porquê de as matérias da
guerra, e mais concretamente o combatente em si, se tornarem objeto de interesse estético e matéria
de representação artística.
As Tapeçarias de Pastrana formam uma série de quatro peças de tapeçaria que retrata a conquista de
duas cidades magrebinas, Arzila e Tânger, pelo rei português D. Afonso V, em 1471. Três tapeçarias
dizem respeito a Arzila, O desembarque em Arzila, O cerco a Arzila e O assalto a Arzila. A tapeçaria
remanescente retrata a cidade de Tânger, denominando-se A entrada em Tânger. Verificámos que os
estudos profundos sobre estas tapeçarias datavam, na sua maioria, de inícios e meados do século XX,
e que, apesar de representarem a tomada pelas armas de duas cidades marroquinas, nenhum destes se
focava apenas na análise do armamento e combate apresentados. Excepção feita ao artigo da autoria
do Tenente-Coronel Nuno Varela Rubim, com uma investigação dedicada à artilharia nas Tapeçarias
de Pastrana (Rubim, 1987).
Estas tapeçarias mostram-se como um dos maiores legados da arte portuguesa dos finais da Idade
Média e uma das fontes principais de estudo das ações militares em Marrocos, mas, ao mesmo tempo,
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formam um dos mais importantes núcleos de tapeçaria no contexto europeu do período, em grande
parte devido à representação de um acontecimento contemporâneo, sem recorrer abertamente a
alegorias mitológicas.
Mais que um levantamento do armamento representado, pretendemos com este trabalho mostrar o
que as Tapeçarias de Pastrana trouxeram de novo, clarificaram ou questionaram no que à História
Militar Medieval diz respeito, mas também como complementam a informação transmitida,
principalmente, pelas fontes escritas. Procurámos descortinar a força das convenções artísticas do
período e se estamos perante armamento típico da cronologia em estudo ou se é uma mera recriação
do artista responsável pelos cartões. Tendo em consideração o número muito alargado de
personagens representadas e o armamento individual e coletivo que nos é apresentado, decidimos
restringir o estudo às principais conclusões retiradas relativamente ao equipamento militar através
da observação do núcleo de tapeçarias. Iremos, também, cingir a análise ao equipamento cristão,
ainda que exista uma representação numerosa do armamento muçulmano.
As Tapeçarias de Pastrana e o equipamento militar português
Nas Tapeçarias de Pastrana vemos, genericamente, duas tipologias de proteções de cabeça: o chapéude-armas ou chapéu-de-ferro e a celada (simples e compósitas). Ambas são caraterísticas da centúria
de Quatrocentos, e as tapeçarias levam-nos a crer que constituíam as defesas preferidas pela hoste
régia portuguesa, sobretudo no que diz respeito ao chapéu-de-armas. Com efeito, para além destas
proteções, surgem nas tapeçarias apenas a gorra e o elmete, embora num número muito mais
reduzido de personagens. Não foi representada nenhuma celada com uma cauda pontiaguda em placa
na zona da nuca, como era usual na Alemanha, França e Inglaterra (Agostinho, 2006: 47), o que pode
comprovar a sua fraca popularidade em Portugal.
Na cronística contemporânea, a primeira referência à celada é tardia, mais propriamente na Crónica de
D. Duarte de Menezes, e no arsenal régio de Lisboa o número de bacinetes é claramente superior ao
das celadas, entre 1438 e 1448 (Monteiro, 2001: 45). Já no que se refere aos chapéus-de-armas, não
existe qualquer referência a este termo na cronística, nem ao seu nome mais genérico, capacete. Esta
ausência pode ter a ver com o fato de estas armas continuarem com as denominações de proteções
antigas, como bacinetes e celadas (Agostinho, 2006: 54).
No que diz respeito às defesas de cabeça, destaca-se a representação de uma proteção que não é citada
nas fontes narrativas portuguesas do século XV, o elmete ou elmeto, peça constituída por uma
estrutura hermética, dividida em três partes principais: o casco que protegia a zona da cabeça e nuca,
a viseira, que era móvel e formava uma pequena saliência na fronte, e a babeira. Formava, assim, um
capacete arredondado, adaptando-se à anatomia do corpo, com uma ligeira projeção, formando uma
espécie de bico (Bradbury, 2004: 252). A descrição da peça encaixa perfeitamente na representação da
defesa de cabeça de um homem de armas apresentado na ala direita da tapeçaria O assalto a Arzila
(FIG. 1): o capacete arredondado, as peças da frente que se estendem desde as laterais do rosto, como
se vê nas juntas, até ao pescoço como uma babeira e uma viseira, e na nuca o artista não se esqueceu
de colocar o chamado rondel ou rodela, uma peça circular usada, ainda sem certezas, como reforço da
estrutura do capacete (Ashdown, 1995: 219-223).
Não existe qualquer referência ao termo elmete ou elmeto na cronística (Agostinho, 2006: 34-54) e
não é possível enquadrá-la em nenhum dos campos tipológicos de proteções de cabeça medievais de
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João Gouveia Monteiro (Barroca e Monteiro, 2000: 246). Possivelmente, esta defesa seria pouco
usada na Península Ibérica, a favor de outras mais cómodas e arejadas, como as celadas, e por isso não
existiria uma denominação concreta para a mesma. Ou, por outro lado, ser uma defesa mais
caraterística do século XVI, embora as tapeçarias venham comprovar a sua utilização na centúria
anterior.
As couraças ou brigandines, também chamadas solhas ou fojas, são utilizadas desde os finais do século
XII, e diziam respeito a defesas de tronco constituídas por pequenas placas de metal que eram depois
colocadas em tecido ou couro. Podemos dizer que representavam peças de armamento de defesa
pessoal, mas ao mesmo tempo um objeto de vestuário perfeitamente inseridos no gosto da época,
revestidos por tecidos usados pelas estirpes mais altas sociedade, como a seda e o veludo, de cores
diversificadas. Eram decorados por cravos que embelezavam as peças, mas que serviam, também, de
suporte à estrutura interior de placas. Sobre o corpo, por baixo do brigandine, vestiam uma loriga em
malha. O brigandine está representado num número esmagadoramente superior ao arnês completo,
ao peitoral ou ao perponte. As Tapeçarias de Pastrana vêm, assim, comprovar a preferência do exército
português pela utilização de equipamento ligeiro, possivelmente menos eficaz na proteção, mas mais
económico e confortável, em detrimento, por exemplo, do arnês em placa, envergado, principalmente,
por personagens de estirpe elevada, onde se incluem o rei (FIG. 2) e o príncipe herdeiro.
Entre outros detalhes de armamento revelados por estas obras, no que se refere às proteções de
corpo, está a utilização da babeira em placa e do camal em malha como defesas de pescoço e nuca. Da
mesma forma, mostram os diversos elementos que formam as proteções dos membros superiores e
inferiores, assim como a tipologia de defesa escolhida, e que muitas vezes são utilizadas em
simultâneo: o arnês em placa, a malha metálica ou o tecido.
Os arneses de pernas podiam ser totais, isto é, que envolvessem toda a perna, sendo articulados por
dobradiças, rebites ou fivelas. Podiam ser, também, parciais, cobrindo apenas a parte dianteira da
perna. Vemos em algumas personagens que as placas do arnês são presas com tiras de couro e fivelas
e que por baixo vestem calças em tecido. Dentro destes arneses de perna parciais, teremos, ainda, de
referir os que protegem somente os gémeos, deixando a retaguarda da coxa a descoberto. Fato
curioso é que em todas as personagens que é possível observar a parte de trás das pernas, existe uma
fusão entre o arnês total e parcial. Já que numa perna, geralmente a direita, o arnês cobre toda a
superfície do membro, atrás e à frente, e na outra, normalmente a perna esquerda, é visível apenas na
dianteira e, por vezes, na traseira mas apenas até meio da perna (FIG. 3). E esta é uma fórmula que
se repete em diferentes figuras, e noutras obras do mesmo período, tomando como exemplo a pintura
de Vittore Carpaccio, datada de 1510, Jovem cavaleiro numa paisagem. Este acontecimento é de difícil
explicação, mas poderá ter a ver com alguma formação tática utilizada no campo de batalha, como por
exemplo colocando um dos joelhos no chão e esticando a sua lança na direção do inimigo. Esta era
uma formação empregada pelos piqueiros suíços que se tornaram mercenários muito requisitados em
toda a Europa, e constituía a principal estratégia contra as cargas de cavalaria pesada (Araújo, 2012:
103-104).
No que respeita às defesas exteriores individuais os broquéis, pequenos escudos redondos envergados
pela infantaria na centúria de quatrocentos, são completamente deixados de parte a favor de outras
tipologias de proteção. Nestas, desenham-se escudos mais caraterísticos de épocas anteriores ao
século XV, bem como as proteções geralmente associadas aos exércitos muçulmanos, as adargas. E
estas têm clara preponderância quando comparadas aos escudos tipicamente cristãos.
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A presença do reino nasrida de Granada até 1492 perto da fronteira castelhana, assim como os
contatos comerciais e militares com o Norte de África, levaram a uma convivência próxima entre
cristãos e muçulmanos, o que terá, com certeza, conduzido a uma influência no armamento de ambos
os povos. Existe, pois, uma coexistência entre o armamento cristão e o muçulmano nos vários reinos
ibéricos (Barroca e Monteiro, 2000: 15-36). A grande eficácia da adarga poderá explicar a sua adoção
pelos cristãos.
As espadas são um dos elementos que melhor nos transmite o conhecimento profundo do artista em
relação ao armamento, pois este faz questão de demarcar as especificações tipológicas de cada arma.
Em vez de transmitir uma mensagem simples, isto é, representar apenas espadas sem qualquer
individualização morfológica, o artista inclui, para além dos diferentes punhos, pomos e guardas, as
particularidades das lâminas: comprimento, largura, formato, ponta em bico ou arredondada e,
sobretudo, no aspeto real da folha, através da definição da seção e da goteira.
Segundo refere Luís Miguel Duarte, as armas brancas e as lanças seriam as armas ofensivas
preferidas do exército português durante a centúria de quatrocentos (Duarte, 1999: 292-302). As
Tapeçarias de Pastrana reforçam essa premissa. Embora o número de lanças seja claramente superior,
sabemos que os combatentes que observamos com lanças possuíam também espadas e adagas. A
preferência por estas armas tem a ver, sobretudo, com o modelo predominante de combate que
imperava nos exércitos medievais desde o século XIV e continuará pelos séculos seguintes. Ou seja,
um número elevado de homens apeados que conseguiam vencer a cavalaria pesada nos campos de
batalha escolhidos e preparados previamente, esperando que os cavaleiros atacassem em primeiro
lugar. A infantaria armada de lanças ou picos era apoiada, na maioria das vezes, pela neurobalística ou
bocas-de-fogo nas laterais, ou por filas de besteiros. Esta nova forma de fazer a guerra foi considerada
por alguns autores como uma «revolução militar», ainda que não haja consenso sobre este assunto
(Ayton e Price, 1998: 1-23).
Apesar de estarmos perante um cerco nas três tapeçarias de Arzila, vemos esta «nova forma de
guerra», onde a preponderância da infantaria, ou dos homens de armas que lutam desmontados, é
evidente. O número de homens armados com lança é esmagadoramente superior aos equipados com
outro tipo de armas e apenas as duas personagens principais da composição, o rei e o príncipe, se
encontram montados.
Desde finais do século XIII, com o surgimento da alabarda, várias foram as armas de haste que foram
sendo criadas, juntando diversos elementos de diferentes armas. A sua nomeação é, neste momento,
confusa e as fontes escritas não são muito precisas na indicação específica destas armas. Em Portugal,
estas armas de haste não parecem ter sido muito populares, pelo menos durante o século XV. A
cronística não faz menção a este equipamento, dando primazia a uma única arma de haste, a lança. Na
Carta de Quitação de 1455, são mencionadas apenas mais duas armas desta tipologia: a bisarma e a
foucinha ou foucinho (Monteiro, 2001: 48).
O grande número de armas de haste que se desenvolveram neste período cronológico e as raras
menções nas fontes escritas, assim como o reduzido número de artefactos arqueológicos e
representações iconográficas, dificulta-nos muito a sua identificação. As peças que surgem nas
tapeçarias são muito semelhantes, sendo constituídas por uma haste, com um comprimento próximo
dos dois metros, com um conto na extremidade inferior. Na ponta superior vemos um ferro de
grandes dimensões, com um gume. Apresenta um desnível arredondado, que forma uma ponta
bicuda, para perfurar, como se de uma lança se tratasse. O ferro parece ser espesso e pesado.
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Na terminologia portuguesa possuímos vários vocábulos para identificar este tipo de armas de haste:
alabarda, bisarma, archa, falcata, foucinha, foice de guerra. Consideramos que o termo mais próximo
da arma que nos é apresentada nas Tapeçarias de Pastrana, uma delas transportada pelo próprio rei
(FIG. 4), é a bisarma. Este vocábulo vem, provavelmente, do francês guisarme, que foi também
adotado pela língua inglesa. Outro nome atribuído a esta mesma arma é fauchard. As armas a que são
atribuídas estas nomenclaturas na bibliografia estrangeira são muito semelhantes às que surgem nas
tapeçarias (Ashdown, 1995: 320-328), pelo que decidimos, assim, denominá-las. Embora continue a
ser uma questão em aberto.
As armas de propulsão muscular que vemos nas tapeçarias suscitam vários problemas de
interpretação, sobretudo devido à escassez de referências em fontes documentais. A sua utilização
como armas especificamente de lançamento ou, em simultâneo, como armas de haste, ao mesmo nível
das lanças, é um problema que ainda não se encontra bem esclarecido. Também em termos
morfológicos continuamos com sérias dúvidas. Podem, no entanto, as Tapeçarias de Pastrana
contribuir com algumas respostas.
As Tapeçarias de Pastrana apresentam dois tipos de armas de arremesso principais: as azcumas ou
ascumas e as azagaias. Estas são facilmente confundíveis com lanças devido à sua haste longa. São
constituídas por um ferro, não de forma lanceolada, mas antes em arpão, mais tradicionais das
atividades cinegéticas ou de pesca do que propriamente dos conflitos bélicos. Devido a estas
parecenças, e à utilização em batalha em formas de luta semelhantes às da lança, alguns autores
inscreveram-nas nas tipologias de armas de haste, em vez de armas de propulsão muscular.
Vemos duas armas de arremesso de haste longa: uma utilizada pelos portugueses, fora das muralhas,
outra pelos muçulmanos, intramuros. Ambas têm uma caraterística que nunca surge mencionada nas
fontes escritas nem em obras especializadas. Tal como acontecia nas flechas ou nos virotes das bestas
vemos também nestas armas as aletas colocadas na extremidade contrária à folha, uma caraterística
partilhada pelos dardos.
Considerando a extensão da haste das armas apresentadas, decidimos dividi-las em três tipologias
diferentes. A primeira diz respeito às armas de propulsão muscular de haste curta ou média com
aletas de formato arrendado e que vamos considerar como dardos. Já no que se refere às armas de
haste longa, tendo em conta as descrições da cronística, vamos considerar que as armas de propulsão
muscular utilizadas pela hoste cristã são denominadas ascumas, enquanto as do exército muçulmano
são as azagaias. Ambas possuem aletas de formato mais angular. No entanto, sem um estudo
específico sobre estas armas, não podemos ter certezas sobre estas designações.
Já no que às armas de propulsão neurobalística diz respeito, vemos apenas a utilização da besta,
embora seja difícil definir com certeza as tipologias representadas. Durante a centúria de
quatrocentos existiam três bestas principais. Embora muito semelhantes na estrutura geral
divergiam na forma como eram armadas, o que aumentava ou diminuía o seu alcance e poder de
penetração: a besta de «armar ao cinto», a besta de polé, torno ou armatoste e a besta de garrucha
(Monteiro, 1998: 534).
Estes três tipos de besta são de difícil distinção nas representações artísticas, pois o detalhe atribuído
a estas armas é muito restrito. Como vemos em todos os casos representados nas Tapeçarias de
Pastrana, as bestas são reduzidas às suas linhas primaciais: estribo, arco, corda, noz, coronha e
gatilho. Não conseguimos observar em nenhum dos besteiros se possui um gancho no cinto que
colocaria na corda e, com o pé no estribo, prenderia na noz – besta de «armar ao cinto»; se existe
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algum sistema de roldanas que era colocado nas laterais da arma que, através de manivelas,
distendiam a corda – besta de polé; ou uma alavanca com garras que era puxada de forma a esticar a
corda até à noz – besta de garrucha (Barroca e Monteiro, 2000: 73-74).
Apenas uma personagem parece trazer alguma luz a esta problemática: na tapeçaria O assalto a Arzila,
no friso inferior da ala esquerda, junto ao palanque, surge uma figura com uma celada prateada e um
penacho branco, e que se baixa, parecendo apoiar a mão direita sobre uma coronha, enquanto o braço
esquerdo desaparece, como se tentasse puxar algo. Talvez uma alavanca de uma besta de garrucha?
Observamos, ainda, duas aletas de virotes sobre a anca direita da personagem.
Relativamente às armas de propulsão pirobalística, pesadas e ligeiras, as Tapeçarias de Pastrana
constituem uma das mais importantes fontes históricas, já que as fontes narrativas são silenciosas na
nomenclatura das armas, assim como na descrição das caraterísticas tipológicas das mesmas (Barroca
e Monteiro, 2000: 223-243). As tapeçarias mostram-nos as armas utilizadas, o seu aspeto físico, os
materiais de que eram constituídas, através da cor, forma e textura, e o método de carregamento e
disparo. Transmitem, ainda, uma conceção sumária de como eram utilizadas em termos táticos e
estratégicos em campo de batalha, e sobretudo nos assédios a cidades amuralhadas.
A adaptação do armamento individual português ao território magrebino
O levantamento do armamento representado nas Tapeçarias de Pastrana permitiu um maior
entendimento do equipamento utilizado pelas hostes portuguesas durante a segunda metade do
século XV, mas, sobretudo, nas campanhas no Norte África. As conquistas portuguesas no Magrebe
são frequentemente consideradas como uma forma de treino da hoste real, um lugar de experiência de
novas táticas e estratégias de guerra e de armamento, que depois serão levados a cabo nos confrontos
militares na Europa nos anos seguintes, como na Batalha de Toro (1476). Assim, observando estas
tapeçarias, algumas questões surgem: o armamento utilizado nos combates travados na Europa, nesse
período, é o mesmo que foi levado para o Magrebe? A tática de guerra aplicada nos dois campos,
europeu e magrebino, é semelhante ou apresenta modificações? Existiu uma adaptação do exército e
do seu equipamento a um território menos conhecido, com um clima e ambiente completamente
diferentes?
Relativamente à conceção tática da conquista de Arzila, as fontes são muito silenciosas. As Tapeçarias
de Pastrana dão algumas achegas sobre estas problemáticas, mas ainda não as suficientes para
reconstituir totalmente a expedição. A tapeçaria O desembarque em Arzila segue quase à letra o que
nos descrevem as fontes escritas. Apenas na tapeçaria O cerco a Arzila é possível observar o arraial já
montado, mas com pormenores que não nos são descritos. De fato, vemos uma operação anfíbia, em
que ao fundo as embarcações cercam a cidade por mar, enquanto em terra, o exército a circunda. É
possível vislumbrar que o cerco foi estabelecido a toda a volta da fortaleza privando os defensores,
assim, de todos os bens essenciais. No entanto, tal como na cronística, também nas tapeçarias a
pormenorização da campanha é incipiente.
Sabemos através da carta de quitação ao almoxarife do armazém régio de Lisboa, datada de 1455
(Monteiro, 2001), que os bacinetes constituíam uma das defesas mais utilizadas no exército do reino
português neste período. Isto é, como nos explica João Gouveia Monteiro, seria uma estrutura
fechada, com proteção de cabeça e de nuca. Esta defesa deixava apenas a cara a descoberto, sendo,
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então complementada por uma viseira móvel (Monteiro, 1998: 533). No entanto, observando as
tapeçarias não sentimos a presença de nenhuma proteção de cabeça desta tipologia.
As proteções de cabeça mais representadas nas Tapeçarias de Pastrana, as celadas e os chapéus-dearmas, são descritas como equipamento típico das campanhas portuguesas no Norte de África. Esta
associação tem a ver com o seu caráter arejado e fresco por se mostrarem defesas abertas, e também,
no caso do chapéu de ferro, pela proteção da face do sol e do pó, através de uma aba. As tapeçarias
corroboram esta posição, já que a esmagadora maioria dos combatentes enverga proteções abertas,
levando à conclusão que existiu um abandono do bacinete e da barbuda.
No entanto, consideramos pouco provável ter existido uma ponderação sobre a tipologia de
equipamento a utilizar em determinadas condições climatéricas. Esta premissa prende-se,
nomeadamente, com a comparação das tapeçarias com outras obras do mesmo período cronológico,
onde a utilização das proteções de cabeça abertas em confrontos no continente europeu é evidente.
Da mesma forma, o surgimento de uma defesa de cabeça fechada de forma hermética, o elmete, ainda
que com apenas um exemplo, vem reforçar a posição de que não existiu uma adaptação ao teatro de
guerra.
As proteções de corpo com componentes mistos, combinando tecido, placa e malha metálica, são
caraterísticas, sobretudo, do século XIV. Porém, continuaram a ser utilizadas durante o século XV,
como é visível nas tapeçarias. Poderemos estar perante uma forma de adaptação do armamento
português do período a diferentes campos de batalha. Tendo em conta que o clima magrebino é bem
mais quente, estas proteções mais leves e arejadas seriam de mais fácil tolerância para os guerreiros.
Ou, mais provavelmente, estaremos perante o uso contínuo dos brigandines até aos finais do século
XV, por constituírem proteções mais baratas do que o arnês de placas. Consideramos que se fosse
uma tentativa de adaptação ao terreno, todos os combatentes envergariam esta proteção, desde a
categoria mais elevada até à mais baixa, o que de fato não se verifica.
Embora seja uma proteção geralmente associada à infantaria, o brigandine não lhe era exclusivo.
Exemplo disso são os célebres Painéis de S. Vicente, onde vemos que esta peça é envergada por
membros da alta nobreza. Evidentemente que o brigandine usado por um soldado de infantaria de
baixa categoria seria bem diferente do utilizado por um combatente de categoria social elevada. Esta
diferenciação não é evidente nas tapeçarias, revelando uma forte coesão no equipamento da hoste real,
o que indica uma aproximação nítida ao processo de profissionalização do exército, caraterística
absoluta dos tempos renascentistas que aí vêm.
A aquisição do equipamento total de um guerreiro ultrapassaria o seu rendimento anual ou o que
recebia como pagamento numa campanha régia (Ayton, 2010: 241-242). Devido ao fato de as camadas
mais baixas do exército não terem possibilidade de pagar esta despesa, o poder régio foi forçado a
criar as soldadas e as contias, de forma a assegurar que as hostes estavam equipadas devidamente.
Assim, os nobres acontiados recebiam uma verba por parte da coroa de forma a manterem um
exército equipado e pronto para integrar o exército nas campanhas. Já os nobres mais abastados
tinham séquito próprio a quem tinham de assegurar o armamento. Os de menores posses eram vistos
como «cavaleiros de um escudo e uma lança», pois não tinham liquidez para manter um séquito e
muitas vezes nem para o próprio equipamento (Barroca e Monteiro, 2000: 46-47). Assim,
consideramos, mesmo com esta intervenção régia, que o armamento continuaria a ser muito desigual.
As defesas de corpo constituídas por placas que vemos nas tapeçarias são a resposta aos virotes
furtivos dos besteiros, já que em contexto de cerco a luta corpo-a-corpo é diminuta, a besta seria a
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arma mais temida pelos sitiadores, alvos fáceis quando expostos no arraial. A verdade é que no caso
específico das tapeçarias em estudo, o exército muçulmano não mostra a utilização de armas de
propulsão neurobalística. Não sabemos se devido ao fato de os magrebinos não possuírem armas
deste tipo, hipótese que achamos pouco provável, ou se o artista decidiu não as representar nesse lado
da barricada. Assim, as proteções de corpo apresentadas pelos portugueses, apesar de desenhadas
para a proteção contra aquelas armas, defenderiam, também, contra as armas de fogo, as de propulsão
muscular, e outras armas pessoais, como a lança e a espada.
O armamento de corpo utilizado nas campanhas norte africanas era, por isso, o mesmo que se
envergava nos conflitos na Europa, já que as proteções tinham uma esperança de vida bem elevada,
pois podiam ser recuperadas diretamente por ferreiros ou outros artesãos especializados. Portanto, a
guerra em Marrocos, embora com um campo de batalha, um clima, e um opositor bem diferentes, não
foi planeada de forma divergente em relação aos combates com os inimigos europeus. Até porque, as
proteções corporais, tal como as armas ofensivas, eram extremamente dispendiosas, pelo que teriam
de se adaptar a qualquer campanha militar.
A existência de armamento idêntico para a grande maioria das personagens tem a ver, não com uma
adaptação ao Norte de África, mas antes com a produção do próprio artista. A composição mostra-se
mais apelativa e uniforme, criando focos de interesse para o observador em vários pontos da
tapeçaria.
Conclusões
Tendo em conta as estratégias de guerra utilizadas, as proteções de corpo adaptavam-se ao fim a que
se destinavam, sobretudo durante o século XV. Na Europa vemos uma divisão geográfica com
diferentes defesas: as armaduras italianas caraterizadas por linhas arredondadas, ideais para a defesa
contra espadas e lanças; já nas áreas geográficas acima dos Alpes, vemos proteções mais onduladas,
desenhadas, sobretudo, para a proteção em relação aos projéteis de arcos e bestas (Ayton, 2010: 265).
Nuno Varela Rubim, seguindo a posição defendida por Reinaldo dos Santos (Santos, 1925: passim),
considera o armamento das tapeçarias de origem substancialmente borgonhesa, com influência
nórdica, sobretudo no que diz respeito aos arneses do rei e do príncipe, próximas do estilo chamado
Gótico. No entanto, consideramos que o armamento representado é, na generalidade, de origem ou
de influência italiana, embora se tenha de admitir alguns elementos típicos do armamento alemão.
Apesar de existirem oficinas de armeiros em Portugal, os grandes centros produtores de proteções
individuas eram Milão e Brescia e, na Alemanha, Augsburg, Nuremberga, Landshut, e Innsbruck
(Smith, 2010: 67-73).
Tendo conhecimento da existência de produção nacional de armamento, ficamos sem grandes pistas
no que diz respeito à importação deste tipo de material. Sousa Viterbo refere as armaduras vindas da
Biscaia e as armas de fogo provenientes da Alemanha, sobretudo da Boémia (Monteiro, 2001: 30). No
entanto, conhecemos uma relação estreita de importação de material bélico entre Portugal e a
Flandres, facto facilmente justificável por um lado pelo papel predominante da Flandres na produção
de armamento neste período e por outro, a existência de uma feitoria portuguesa nesta zona da
Europa. Para além destes, também se verifica no reino português a atividade de armeiros sevilhanos e
castelhanos, assim como italianos, e, possivelmente ingleses, pela presença de mercenários desta
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nacionalidade aquando das guerras de 1384 e 1385, que resultaria, com certeza, na existência de
comércio de armas (Monteiro, 2001: 30).
No que diz respeito ao armamento de corpo vemos, de forma mais marcada, as formas arredondadas
italianas, sobretudo na zona dos peitorais. Contudo, as proteções de cabeça não são apenas oriundas
desta região. Embora o elmete e as celadas sejam, na sua generalidade, de origem italiana, os
chapéus-de-armas não eram ali muito populares e, quando utilizados, raramente apresentavam
babeiras (Edge e Paddock, 1998: 105). Assim, não podemos precisar o local de produção, pois vemos
armas com diferentes tipologias e com diferentes origens geográficas.
Na Idade Média não existe um exército permanente. As unidades militares eram recrutadas ad hoc,
por períodos geralmente curtos e para campanhas específicas, tendo em conta o seu dever de vassalo
ou súbdito a um senhor (Martins, 2011: 16), ou, como se verifica no século XV, conforme um
contrato estipendiário de serviço militar. Assim, para além das dificuldades provocadas pela
inexistência de uma estrutura de grupo ou de comando, também o material de guerra das hostes não
poderia ser homogéneo e linear. De fato, cada soldado armava-se como podia e com o que tinha para
cada campanha. Ainda que nos finais da Idade Média, a produção em larga escala tenha diminuído o
preço de aquisição, o equipamento militar mostrava-se extremamente dispendioso. O armamento
envergado revelava muito da condição social e económica do guerreiro, tal como a sua posição dentro
da hierarquia militar (Ayton, 2010: 257).
Também o cavalo de guerra utilizado era sinónimo do status do combatente. No caso das figuras
representadas nas tapeçarias, o caráter de liderança e a alta estirpe militar do rei e do seu filho são
visíveis nos cavalos que montam e nos arneses brancos que envergam, provas evidentes do seu
elevado estatuto militar.
Ainda que representando um exército relativamente idealizado para o tempo, já que as figuras das
tapeçarias apresentam uma certa homogeneidade no armamento, nota-se o contraste entre os
guerreiros mais abastados, com proteções mais complexas e completas, e os guerreiros de origens
mais modestas, com defesas mais simples. Ainda assim, a desigualdade do armamento da hoste não é
muito evidente nas tapeçarias. Seria muito problemático para o artista individualizar cada
personagem e o seu armamento, carecendo de um grande conhecimento sobre o muito variado
equipamento para representar múltiplas tipologias, sobretudo as defesas mais antigas, a que muitos
ainda recorriam, e as produzidas durante os finais do século XV. Este acontecimento pode, também,
ter outra causa. As tapeçarias poderão ser uma forma de mostrar que o exército português se
encontrava equipado com o melhor que se utilizava nos finais da Idade Média, e para aquele clima em
específico, e que as assimetrias entre os homens, independentemente da sua posição na hoste, não
existiam. Assim, estas obras mostravam um exército idealizado, equilibrado, em que todos os homens
tinham armamento próprio e de caraterísticas semelhantes.
No caso particular dos objetos iconográficos, outras problemáticas se levantam. O artista, embora
possua conhecimentos de armamento, não é um armeiro. Por isso pode seguir as diretrizes de um
cliente ou, do equipamento utilizado pelos combatentes, mas pode também ter sido influenciado por
outras obras artísticas, como a gravura, que circulava então pela Europa e que funcionava como
modelo para novas obras. Podemos, pois, estar perante representações de armamento autêntico, mas
ao mesmo tempo idealizado, já que não era propriamente o utilizado pelas hostes portuguesas.
A terminologia atribuída a muitas das armas representadas continua ainda em discussão, já que as
caraterísticas diferenciadoras das peças são, muitas vezes, ténues e a falta de informação, sobretudo
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descritiva, dificulta muito o trabalho. Da mesma forma, a inexistência de uma iconografia rica em
representações de guerra e dos seus intervenientes não nos permite efetuar um cruzamento entre a
palavra e a imagem, ou, no caso arqueológico, entre a palavra e o artefacto. Assim, têm de ser
utilizados termos genéricos, que muitas vezes se referem a armas de caraterísticas bem diferentes,
sem especificação a que tipologias de proteção pertencem.
Apesar da clara carência de pormenorização em muitos aspetos, as tapeçarias trazem algo que a
cronística nunca conseguiria atingir: o impacto da imagem, particularmente a imagem em grande
escala. A crónica descreve, a tapeçaria mostra. Ainda que subsistam várias problemáticas de
nomenclatura, o equipamento representado é efetivamente o utilizado pelo exército português
durante o século XV. Elementos como a decoração, a cor e as formas do armamento são na maioria
das vezes esquecidas nas fontes escritas, e as Tapeçarias de Pastrana vêm dar essa informação. A
fidelidade histórica destas obras de arte é comprovada pela representação das cidades magrebinas,
especialmente no caso de Arzila, pois houve uma preocupação em manter a traça da fortaleza, ainda
que com um toque europeu. A escassez de fontes sobre a pirobalística, defesas exteriores ou armas de
arremesso, tal como os raros artefactos arqueológicos que chegaram até nós, sublinham a
importância destas tapeçarias.
A observação do armamento representado nas tapeçarias não fica terminada. Não apenas porque nos
ficámos pelo armamento terrestre cristão, deixando de parte o equipamento muçulmano e as
embarcações portuguesas. É necessário ainda um estudo comparativo entre as Tapeçarias de Pastrana
e outras obras do mesmo período. Desse modo, obteremos respostas mais concretas sobre as
caraterísticas do equipamento militar utilizado nos finais do século XV e compreender se o
armamento representado se encontra dentro dos cânones artísticos da época. Este estudo profundo
iria, também, auxiliar a enquadrar as tapeçarias no seu tempo e, possivelmente, a alcançar respostas
mais concretas sobre o autor dos cartões e local geográfico da indústria responsável pela manufatura
das Tapeçarias de Pastrana.
Várias questões ficam por responder sobre a tomada de Arzila e Tânger mas, também, sobre as
Tapeçarias de Pastrana. É, ainda, necessário um estudo conjetural, a partir de mapas e plantas das
cidades, utilizando as táticas e estratégias de guerra do período como referência. Para isso seria
essencial o estudo das fontes do outro lado do Mediterrâneo que poderiam trazer respostas a várias
destas questões, tal como uma investigação arqueológica de grande escala.
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FIG. 1. Elmete, último quartel do século XV, pormenor da tapeçaria O assalto a Arzila, atribuída à
oficina de Pasquier Grenier, Tournai; lã e seda; 369 (esq.) / 355 (dir.) x 1108 (sup.) / 1099 (inf.) cm;
Colegiada de Nossa Senhora da Assunção, Pastrana (Guadalajara).
FIG. 2. D. Afonso V, último quartel do século XV, pormenor da tapeçaria O assalto a Arzila, atribuída
à oficina de Pasquier Grenier, Tournai; lã e seda; 369 (esq.) / 355 (dir.) x 1108 (sup.) / 1099 (inf.) cm;
Colegiada de Nossa Senhora da Assunção, Pastrana (Guadalajara).
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FIG. 3. Arnês de perna parcial, último quartel do século XV, pormenor da tapeçaria A entrada em
Tânger, atribuída à oficina de Pasquier Grenier, Tournai; último quartel do século XV, lã e seda, 404
(esq.) / 387 (dir.) x 1108 (sup.) / 1082 (inf.) cm; Colegiada de Nossa Senhora da Assunção, Pastrana
(Guadalajara).
FIG. 4. D. Afonso V empunhando uma bisarma, último quartel do século XV, pormenor da tapeçaria
O desembarque em Arzila, tapeçaria atribuída à oficina de Pasquier Grenier, Tournai; último quartel do
século XV; lã e seda; 308 (esq.) / 357 (dir.) x 1108 (sup.) / 1107 (inf.) cm; Colegiada de Nossa
Senhora da Assunção, Pastrana (Guadalajara).
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