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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.095
RESISTINDO COM HUMOR: CHARGES, POESIAS E CONTOS SATÍRICOS NOS
PERIÓDICOS ANARQUISTAS DE PORTO ALEGRE E DE BUENOS AIRES (18971930)
Caroline Poletto
Instituição: Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS - RS (Mestrado)
“Esta falta de moderación, esta desobediencia, esta rebeldía del
espíritu humano contra todo límite impuesto ora en nombre de
Dios, ora em nombre de la ciencia, constituyen su honor, el
secreto de su poder y de su libertad. Al buscar lo imposible,
siempre el hombre ha realizado y reconocido lo posible, y
aquellos que sabiamente se han limitado a lo que les parecia
que era lo posible jamás han dado un solo paso adelante”.
Mijail Bakunin
Pretende-se, nessa breve apresentação, trabalhar com o aspecto simbólico dos
periódicos anarquistas e anticlericais de Porto Alegre (A Luta1, Lúcifer2, O Syndicalista3) e de
Buenos Aires (La Protesta Humana4, La Antorcha5), que circularam entre o final do século
XIX e as três primeiras décadas do século XX; analisando tão somente aquela parte do
periódico que é contemplada por uma “leitura rápida”, pelos leitores superficiais (onde cabem
as charges, desenhos, piadas, paródias, caricaturas, poesias e contos); ou seja, à parte do
periódico em que o leitor não precisa dispensar tempo excessivo para realizar a leitura, uma
vez que tal leitura não contempla as matérias extensas. Portanto, procura-se dar significado
àquela parte dos periódicos que geralmente é deixada em segundo plano pelos pesquisadores,
apesar de todo o seu significado e relevância para a análise histórica. Vale ressaltar ainda que
o aspecto visual representado pelo desenho tem uma grande importância nos periódicos desse
período, uma vez que ele é um forte elemento doutrinador, dotado de crítica mordaz, irônica,
satírica e principalmente humorística do comportamento humano; ainda mais num contexto
rodeado por analfabetos. Tal pesquisa, ao mesmo tempo em que revela a presença do discurso
crítico na parte analisada dos periódicos, também demonstra a possibilidade da realização de
estudos comparados entre elementos de contextos espaciais distintos, uma vez que a
historiografia brasileira, em particular, carece de estudos comparativos com a região platina, o
que, certamente, causa um déficit na historiografia nacional. Quer-se assim ampliar os
horizontes a fim de que estes possibilitem uma maior compreensão acerca das produções da
imprensa operária em suas especificidades, dos discursos produzidos em Buenos Aires e em
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Porto Alegre, duas capitais de extrema relevância dentro do contexto político, econômico e
social da América Latina.
Ao analisar os aspectos simbólicos desses periódicos, representados principalmente
pelo desenho, pela ironia e pela crítica dotada de humor e sarcasmo, faz-se uma tentativa de
aproximação e caracterização da própria identidade anarquista, uma vez que em qualquer
grupo social se encontra uma variada utilização de símbolos que são reconhecidos pelo grupo.
Esses sistemas simbólicos são utilizados tanto na legitimação da ordem estabelecida como na
identificação do grupo. No caso dos periódicos anarquistas os símbolos têm um importante
papel na formação da identidade anarquista, de forma que estudar esse “universo simbólico”
é fundamental para a compreensão dos sujeitos e do próprio contexto histórico em questão;
além disso, os elementos que caracterizam essa simbologia dão forma à um imaginário social
específico cujo estudo é fundamental nas perspectivas históricas atuais. Para Baczko (1985) o
imaginário faz referência a todas as construções coletivas de interpretação e organização
social a partir de símbolos e representações; sendo que o conjunto das representações
elaboradas pela sociedade forma o que se denomina de “imaginário social”. É imprescindível
desvendar tal imaginário, pois:
O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado,
jogo de espelhos onde o verdadeiro e o aparente se mesclam. [...] Persegui-lo como
objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar
a chave para desfazer a representação do ser e parecer. Não será este o verdadeiro
caminho da história? Desvendar um enredo, demonstrar uma intriga, revelar o
oculto, buscar a intenção? (PESAVENTO, 1995, p.24)
Pretende-se que o presente estudo também seja uma revelação no sentido de
demonstrar a importância que os desenhos, as piadas e os contos humorísticos têm nesses
periódicos, tendo, muitas vezes, um alcance mais profundo e significativo ao seu público
leitor do que as matérias mais sérias e extensas. No entanto, muitos são os historiadores que,
embalsamados à um paradigma tradicional, não conseguem enxergar sentido nos aspectos
mais descontraídos e divertidos desses periódicos, considerando-os enquanto elementos
desnecessários e desprovidos de significados e funções e não enquanto elementos de crítica
social.
Antes de analisarmos os elementos supracitados, vale a pena ressaltar que o jornal, nas
décadas em questão, era o meio mais ágil de circulação de informações e de idéias e, por isso,
apresentava um valor maximizado se comparado ao jornalismo atual. O surgimento da
imprensa operária representava, portanto, um indício da organização desse operariado bem
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como de alternativas e possibilidades de divulgação de suas angústias e anseios fora dos
mecanismos ditos “oficiais”.
O surgimento da imprensa operária já corresponde a um certo nível de
desenvolvimento do movimento operário, pois a publicação de um jornal mesmo
que pequeno, requer pelo menos que algumas pessoas tenham adquirido consciência
política em relação ao grupo social que defendem. Precisam de recursos materiais e
técnicos, e, acima de tudo um público receptor que possa acolher e apoiar a
publicação. (JARDIM, 1996, p.30).
Tal público em questão não recebia apenas textos estáticos e sérios, mas, além destes,
desenhos, charges, piadas; tais elementos tinham o intuito tanto de divertir como de informar
e formar o leitor, mesmo que esse não percebesse de imediato tal efeito formador. Certos
temas aparecem com maior freqüência nesses elementos textuais humorísticos e visuais,
como, por exemplo, o anticlericalismo e o anticapitalismo.
Lúcifer, 21/11/1907, Anno I, nº4, p.5
La Protesta, 01/05/1929, Año XXXII, nº 6253, p.1
Além dos desenhos acima já explicitarem uma crítica direta (sem deixar dúvidas ou
duplo sentido) eles ainda reforçam a crítica nas suas legendas: a primeira delas trazendo um
diálogo entre um macaco e um padre (“Perdão, reverendo: sois verdadeiramente vós que
negais minha parternidade?”), e a segunda utilizando o termo vagabundo para caracterizar os
membros do Vaticano (El vagabundo en la ciudad del Vaticano). O que demonstra que as
charges e os desenhos além de provocarem o humor, apresentam um conteúdo tão rico e
denso quanto os outros textos trazidos nos periódicos, como os editorias e matérias extensas.
Fica claro que o texto imagético não é neutro e nem mero “tapa buraco”, mas sim um
transmissor de posicionamento crítico sobre personagens e fatos políticos. Há muito o texto
verbal deixou de ser considerado a única forma de texto. As imagens, o som, os gestos, a cor,
a textura são elementos legíveis. Segundo Bakhtin (1986), a charge (que é bifocal e
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carnavalesca) informa e opina sobre o seu tema por meio da representação de um “mundo às
avessas”, promovendo através da própria inversão de valores sociais, uma visão mais nítida da
realidade. No exemplo em questão, a inversão de valores está exatamente no papel do clero, o
qual é retratado com aspectos negativos, enquanto que os valores da época o consideravam
enquanto instituição positiva, representante da bondade humana. Portanto, a charge cumpre
um ritual ambivalente, porque conjuga elementos díspares, uma vez que aponta a ordem
instituída pelo reverso de sua aparência séria. De forma que, é tendo esta consciência de que
as charges são ambivalentes e díspares, que se pode analisá-las sem que haja prejuízo da sua
intenção real. Apesar de ser uma comunicação condensada, as charges e os demais desenhos
humorísticos transmitem uma série de informações de forma direta e, na maioria das vezes, de
forma simples, a fim de que a grande maioria dos leitores consiga entender a mensagem (nos
periódicos operários a simplicidade das charges e desenhos humorísticos é evidente, uma vez
que elas atacam de forma direta o elemento principal da temática que aspiram a criticar. O
capitalismo, assim como o clero, também é atacado através de elementos imagéticos:
Lúcifer 15/12/1907, Anno I, nº5, p.01
A Luta 16/01/1909, Anno III, nº 41, p.01
O periódico Lúcifer representa, através de um desenho assustador e horripilante, os
males que são associados ao clericalismo, como a corrupção, a mentira, o egoísmo, o embuste
e a fraude. Cada um desses males representa um galho da árvore e, a árvore em si seria o
clericalismo, formado pelo conjunto de galhos, ou seja, pelo conjunto dos males. Já nas raízes
da árvore, ou seja, na sua base, estão elementos que sustentam o capitalismo, como as
indústrias e o comércio, os quais, indiretamente, sustentariam também o próprio clericalismo,
ou seja, formariam o contexto propício para a sua existência e permanência.
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O periódico A Luta, da mesma maneira que o Lúcifer, também faz uso de uma figura
horripilante para representar o “Diabo Moderno” (título do desenho). Tal Diabo é apresentado
suspendendo (empurrando) três elementos: o obscurantismo, o militarismo e o capitalismo. O
obscurantismo, através da mentira, oprime a consciência; o militarismo com sua prepotência
oprime o direito e, por fim, o capitalismo, permitindo o roubo e a exploração, contribui para a
miséria do povo.
Em ambos os desenhos os monstros são alegorias para problemas políticos e sociais e
são representados através do horripilante, do feio, do extraordinário. Tais elementos,
justamente pela sua anormalidade, causam curiosidade nos leitores e os chamam para o
periódico; de forma que os aspectos imagéticos são, também eles, estratégias empregadas nas
construções dos relatos. Os periódicos, através das linhas macabras, pretendem confrontar-se
com aquilo que os inquieta. E, a inquietude transposta nesses desenhos é tamanha que
representa múltiplas críticas, de forma que transmite a noção de quantos aspectos da esfera
social podem ser criticados num único desenho, o que evidencia a dimensão que os elementos
imagéticos podem atingir em determinadas ocasiões.
O Syndicalista, 01/05/1924, Ano VI, nº02
La Antorcha, 07/10/1927, Año VII, nº255
No entanto, há que se observar que muitas vezes os objetivos dos periódicos (mesmo
que sejam ambos libertários) podem variar e, dessa maneira, o enfoque apresentado nos
desenhos e charges também se modifica. Por exemplo, enquanto que o periódico libertário de
Porto Alegre O Syndicalista, vinculado à Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS)
tinha uma postura favorável à busca pela liberdade de uma forma não violenta, o periódico
portenho La Antorcha tinha na ação direta e violenta uma das suas principais bandeiras de
luta. Tal diferença é percebida nos desenhos, uma vez que a ilustração do Syndicalista traduz
a busca pacífica pela liberdade (representada por um homem atingindo-a), já La Antorcha
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apresenta um operário com uma arma, significando a crença na ação direta enquanto meio de
atingir a liberdade e a emancipação humana.
Passando dos desenhos aos textos humorísticos, mais especificamente às piadas,
percebe-se que o humor e a ironia permeiam tais escritos, de forma que eles abordam
estereótipos e vários mecanismos de representação dos sentidos, se configurando, por isso
mesmo, numa excelente fonte para o estudo das representações sociais. Seguem-se algumas
dessas piadas a fim de esclarecer os estereótipos e representações sociais trazidos pelos
periódicos anarquistas.
Estilhaços
- Conheces algum bicho mais velho que a raposa?
- Conheço: é um padre.
- E mais velho que um padre?
- Um político.
- E mais velhaco que um político?
- Desconheço. (A Luta, 25/10/1908, Ano III, nº38 p.04)
Uma queixa ao bispo
- Padre, porque roubaste esta carteira?
- Sr. Bispo, estava embriagado, não sabia o que estava fazendo.
- Mas porque, no dia seguinte, passados os vapores do vinho, não a restituístes?
- Ai de mim Sr. Bispo; tornei a beber...para esquecer a má ação da noite anterior.
(Lúcifer, 12/10/1907, Anno 1, nº 3 p.3)
Discussão entre um leigo e um padre
Padre – ao outro. Precisa converter-te de que Deus foi muito prodigo quando te pôs
as orelhas.
Leigo – É verdade eu as tenho muito grande para um homem, mas por tua vez tu as
tens bem pequenas para um asno. (Lúcifer 20/04/19011, Anno 4, nº 9 p.2)
As três piadas estereotipam os padres (que representam o clero). Denunciam
diretamente a corrupção, a injustiça e o obscurantismo que os anarquistas acreditavam
existirem nessa instituição. Segundo eles, o obscurantismo não permite a evolução dessa
instituição (clero), fazendo com que a mesma se torne estática no tempo e ultrapassada,
antiga, sem sentido numa sociedade que evolui constantemente (por isso o padre é qualificado
enquanto “velhaco”, “antigo”, na primeira piada). A segunda piada alerta para dois vícios
sociais presentes nas posturas dos padres: a corrupção e o alcoolismo. A crítica é direta, não
deixa dúvidas. Já a terceira piada, desmoraliza totalmente a figura do padre, quando o
compara com um asno, alguém desprovido de racionalidade e, portanto incapaz de contribuir
para a emancipação humana. Tais piadas não objetivam apenas ao riso, mas também a
denunciar os abusos e irracionalidades da instituição clerical, ao mesmo tempo em que
aguçam o raciocínio, a capacidade de ler nas entrelinhas e a perceber as ambigüidades. São,
portanto, elementos do discurso, e, por isso mesmo, servem à determinada ideologia (no caso
em questão, à ideologia anarquista); são interessantes para o estudo por mostrar de que forma
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o autor se posiciona frente à realidade, a imagem que faz de si e do outro, partindo daquilo
que foi ou deixou de ser enunciado. O que se enuncia nessas piadas é a representação social
do clero enquanto instituição corrupta e ilógica, de forma clara e cômica. Apresentam uma
visão sintetizada do problema (no caso, o clero) e, por isso, são, em sua maioria, desprovidas
de complexidades, pois questionam somente os pontos centrais dos problemas e não as
múltiplas facetas deste. São, portanto, fáceis de ser entendidas por qualquer leitor; ao
contrário do que ocorre com as matérias extensas, as quais, muitas vezes, são complexas e
apresentam uma multiplicidade de questões, não centralizando sua abordagem em apenas um
ponto como ocorre nas piadas. Nesse sentido, elas se configuram enquanto um elemento
essencial para a compreensão das manifestações culturais e ideológicas, de forma que o seu
estudo tem muito a revelar ao campo social e histórico, uma vez que é possível rebelar-se
também através do riso e do humor.
Além do humor, o sarcasmo e a ironia também aparecem com muita freqüência nos
periódicos libertários, de forma que deixar de considerar tais elementos textuais causaria um
sério déficit na produção historiográfica, impedindo a captura de importantes elementos da
representação cultural e social. Apresentam-se alguns textos presentes nos periódicos
anarquistas cuja ironia e sarcasmo constituem a sua essência.
Hablemos de la Argentina
La Argentina no es más que un país decapitado que digiere.
Ah!, el desprecio del pobre, el asco del obrero, la delicia de atormentar al débil. Por
las venas del poseedor argentino corre la sangre torquemadesca de los aventureros
que sepuntaban a los “infieles” americanos en las minas o los quemaban vivos. Se
adora la cruz crucificando al prójimo. Se adora la propriedad expropriando los
tuétanos del prójimo. (La Antorcha, 10/05/1930, año IX, nº 299 p.01).
200%
Segundo um telegrama do Correio a da Adams Company, de New York, anunciar
distribuir o colossal dividendo de 200% (duzentos por cento).
Naturalmente essa elevada porcentagem é o fruto do esforço do diretor daquela
companhia.
Duzentos por cento! Isso não é roubo...Roubar é um indivíduo que tenha fome se
apossar de um pão, fato que ainda não está legalizado.
É ainda a ordem! (A Luta, 01/07/1907, Anno I, nº 20 p.04)
Proteção à indústria
Diz-se que projetam as autoridades da terra, logo que seja promulgada a respectiva
lei, expulsar todos os bicheiros estrangeiros.
Será proteção à indústria nacional? (A Luta, 17/01/1907, Anno I, nº 9 p.03)
Entre um moribundo e uma feira
De quem são todos aqueles retratos que estão dependurados na parede?
- São dos benfeitores deste hospital; vê, aquele deixou cinqüenta contos, aquele
sobre o canto cento e sete!...
- Eu deixarei muito mais, exclama o moribundo, esforçando-se para rir.
- E que cousa deixarás? Pergunta a feira com olhos cheios de cobiça.
- Eu ao hospital deixarei...a pele! (Lúcifer, 20/04/1911, Anno 4, nº 9 p.3)
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Os textos utilizam-se da ironia e do sarcasmo para criticarem a sociedade capitalista, a
injustiça social e a cobiça do clero. A ironia consiste em dizer o contrário do que realmente se
pensa, e isso fica bem ilustrado na seguinte passagem do periódico “A Luta”: “roubar é um
indivíduo que tenha fome se apossar de um pão”. Tal passagem irônica expressa
profundamente o sentimento de asco à sociedade capitalista, onde os que realmente roubam
ficam impunes enquanto aqueles que apenas prezam por sua existência são condenados. O
diálogo entre um moribundo e uma freira denuncia, por sua vez, através de um enunciador
irônico (o moribundo), a cobiça existente nos elementos do clero (representado na figura da
freira), a qual não se importa com o moribundo (enquanto ser), mas somente com o que ele
lhe deixará (o material). Esse, ao afirmar que deixará algo valioso está utilizando-se da ironia,
pois o que de fato deixará não tem valor algum para a freira e, ao dizer que deixará a sua
própria pele está fazendo uso do sarcasmo, uma vez que zomba de forma cruel com a freira ao
romper com a sua expectativa de receber alguma recompensa material. Também há sarcasmo
quando o periódico “La Antorcha” afirma a seguinte e cruel (cruel porque real) comparação:
“se adora a cruz crucificando ao próximo, se adora a propriedade expropriando os tetos do
próximo”. Para certos lingüistas o sarcasmo não é apenas uma forma lingüística, estando
também ligado à cognição social; pois, para a compreensão literal de uma mensagem
sarcástica exige-se a detecção dos exageros e distorções lógico-lingüísticas necessárias à sua
compreensão, bem como uma correta percepção do estado mental e intenção do emissor (dos
periódicos anarquistas no caso em questão). Vale ressaltar que os periódicos anarquistas não
circulavam apenas entre aqueles que acreditavam nos ideais libertários, mas também entre os
periódicos opositores, burgueses ou socialistas e, devido à esse público heterogêneo, a
utilização do sarcasmo é também estratégica, uma vez que tem também como objetivos ferir a
sensibilidade do leitor que o recebe, atacando cruelmente seus pontos fracos.
Portanto, tanto a ironia como o sarcasmo podem e são usados com o objetivo de
denunciar, criticar ou censurar algo e, dessa forma, são elementos essenciais da análise do
discurso jornalístico. O aspecto cruel do sarcasmo é tão importante para a análise textual
quanto a beleza rítmica das poesias.
A Morte de Francisco Ferrer
Rubra a manhã surgiu, lembrando as guilhotinas
Acordado, Ferrer, entre os muros do Forte
E o continuo unir das massas assassinas
Alta a fronte viril, caminha para a morte.
Os soldados, embaixo, armam as carabinas.
Ferrer passa tranqüilo. Uns lamentam-lhe a sorte,
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E olham-lhe a fixidez das mãos fortes e finas,
E o sereno desprezo esplendido do porte
E Ferrer pensa – e lembra os filhos infelizes...
Súbito, ergue e agitando a cabeça insubmissa,
Tendo o lábio a sorrir, a fala fitando os juízes:
- Venceu a vossa lei às leis da humanidade;
- Mas, se hoje, me matais em nome da justiça,
morrereis amanhã em nome da verdade.
Luiz Gabardo (A Luta, 13/10/1910, Anno 4, nº 60, p.3)
Metal Sonante
Sabes quem sou?...eu chamo-me dinheiro;
Sou rei dos reis e deles é meu reino;
Encaro o mal que faço ao mundo inteiro;
Bem como a cobra encara o seu veneno.
E sabe de onde vim? Das priscas eras,
Sou filho da esperteza; a iniqüidade
E as trevas amo, e sou pior que as feras,
Se roubo mil, dou um por caridade!
Vou para o trust, o ideal liberticida,
O lúgubre fator da ruína alheia,
Em cujo reino um pão vale uma vida,
E mais que a vida vale um grão de areia.
Gomez Ferro (Lúcifer, 20/04/1911, Anno 4, nº 9, p.5)
Ambas poesias fazem uso de versos livres, não obedecendo à regras rígidas, uma vez
que a beleza da poesia está justamente no caráter livre e dinâmico que ela apresenta. A
primeira poesia faz referência à execução do educador Francisco Ferrer6, cujos ideais de
educação libertária foram seguidos por uma série de escolas operárias surgidas nas primeiras
décadas do século XX. A segunda poesia, por sua vez, realiza uma crítica ao sistema
capitalista, denunciando os males que a busca incessante pelo dinheiro traz à humanidade:
desigualdade, injustiça, individualismo. Ambas possuem formato rítmico, de forma que a sua
musicalidade transmite, de maneira simples e prazerosa, as denúncias sociais que objetivam
espalhar: a injustiça da execução de Ferrer e a exploração do capitalismo através do dinheiro.
Exatamente por apresentarem denúncias sociais essas poesias são enquadradas no gênero
“literatura de resistência”.
A poesia de resistência cresceu junto com a ‘má positividade’ do sistema. [...] A
poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da
sociedade. Daí vêm as saídas difíceis [...] Essas formas estranhas pelas quais o
poético sobrevive em um meio hostil ou surdo, não constituem o ser da poesia, mas
apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo
capitalista. [...] a poesia moderna foi compelida à estranheza e ao silêncio. Pior, foi
condenada a tirar só de si a substância vital. (BOSI, 1993, p. 143)
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O que Bosi tenta expressar é que a poesia moderna tenta sobreviver no meio hostil do
capitalismo, denunciando a irracionalidade deste e expressando em seus versos a esperança
necessária para a mudança. Tal esperança aparece na primeira poesia, quando o executado
entende que o amanhã, o porvir, será diferente: “Mas, se hoje, me matais em nome da justiça,
morrereis amanhã em nome da verdade”. Já a segunda poesia não apresenta o caráter
esperançoso, mas faz uma crítica severa ao senhor do capitalismo: o dinheiro. Ambas poesias
não se traduzem apenas enquanto versos bonitos e desprovidos de significado, mas sim versos
profundos, que apontam os problemas sociais existentes bem como as preocupações dos seus
autores em prol de um futuro melhor; utopia essa que faz parte da identidade anarquista.
A partir dessa pequena amostragem dos elementos que constituem a parte mais
simbólica da imprensa libertária de Buenos Aires e de Porto Alegre acredita-se ter
demonstrado a riqueza de informações que tais elementos textuais e visuais fornecem para a
análise do discurso social, evidenciando uma necessidade urgente de um estudo mais
complexo e detalhado (neste artigo há apenas pequenas pinceladas). Tentou-se, portanto,
ressuscitar alguns fragmentos da imprensa libertária, cujo conteúdo é por demais válido para a
aprendizagem social, uma vez que é necessário resgatar os princípios que fizeram com que
homens e mulheres sonhassem com uma sociedade mais justa e livre para todos; princípios
esses que tem sua importância e valor maximizados no contexto atual, em que nos países
subdesenvolvidos o efeito do egoísmo do capitalismo internacional passa como o vento sobre
o deserto, arrasa e seca tudo o que encontra pelo caminho, não deixando nada, nem mesmo
esperanças. Mudanças são necessárias a fim de que a humanidade se configure “humana”, no
sentido solidário da palavra. “Hoy somos condenados a combatir este cúmulo de horribles y
vergonzosas obscuridades que aún obstruyen nuestro cerebro hasta el punto de hacernos
dudar algunas veces de la posibilidad de un porvenir más humano”. (BAKUNIN, 2005 p.36)
Notas
1
O periódico anarquista “ A Luta” circulou em Porto Alegre nos anos de 1906 a 1911. Depois reapareceu na
cidade de Pelotas no ano de 1916. Seus exemplares encontram-se no Núcleo de Pesquisa Histórica da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NPH), em Porto Alegre.
2
O periódico anticlerical “Lúcifer” circulou na cidade de Porto Alegre entre os anos de 1907 e 1911. Apesar de
trazer alguns textos de anarquistas clássicos como Bakunin e Kropotkin, esse periódico é, em sua essência,
anticlerical e não anarquista, embora simpatize com os ideais ácratas. Seus exemplares encontram-se no Museu
de Comunicação Hipólito José de Costa, em Porto Alegre.
3
“O Syndicalista” circulou em Porto Alegre no período de 1919 a 1927. Era um órgão da Federação Operária
do Rio Grande do Sul. Seus exemplares encontram-se no Núcleo de Pesquisa Histórica da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (NPH), em Porto Alegre.
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“La Protesta Humana” foi fundada no ano de 1897 em Buenos Aires. Mantém a sua circulação até os dias
atuais, se configurando num dos principais periódicos anarquistas, tanto pela qualidade dos seus escritos como
pelo seu tempo de duração. A partir de novembro de 1903 “La Protesta Humana” abreviou seu nome e passou a
se chamar “La Protesta”. Os exemplares referentes aos anos de 1897 a 1902 encontram-se na Web (em formato
digital), no do site da Universidade de Los Angeles, Califórnia – UCLA. Outros exemplares encontram-se na
Federación Libertária Argentina (F.L.A.), em Buenos Aires.
5
O periódico “La Antorcha” circulou em Buenos Aires durante os anos de 1921 a 1930 e é considerado um dos
periódicos anarquistas mais radicais, devido ao seu amplo apoio à sabotagem, ação direta e ao uso da violência.
Seus exemplares encontram-se na Federación Libertária Argentina (F.L.A.), em Buenos Aires.
6
Francisco Ferrer Guardia nascido em 10 de janeiro de 1849 foi um pensador anarquista catalão, criador da
Escola Moderna (1901), um projeto prático de pedagogia libertária.
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