a história de um soldado brasileiro

Transcrição

a história de um soldado brasileiro
A HISTÓRIA DE UM SOLDADO BRASILEIRO
JOBER ROCHA
2010
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AVISO AOS LEITORES
Este livro é uma obra de ficção. Os personagens, diálogos e acontecimentos foram
criados a partir da imaginação do autor, porém, transcorreram em locais
verdadeiramente existentes e passaram-se antes, durante ou após batalhas reais
travadas pela Força Expedicionária Brasileira – FEB, que lutou em território italiano
durante o período de 16 de julho de 1943, quando o primeiro escalão desembarcou em
Nápoles, até 01 de maio de 1945, quando cessou a guerra no ‘front’ italiano. Todos os
nomes de civis e de militares, citados como pertencentes ao Exército Brasileiro e a
instituições públicas e privadas, bem como acontecimentos e personagens que fazem
parte da História do Brasil, são verdadeiros. Entretanto, qualquer semelhança com
acontecimentos ou pessoas, vivas ou mortas, terá sido mera coincidência.
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PRÓLOGO
Caro leitor, as páginas apresentadas a seguir fazem parte de um diário por mim
encontrado, recentemente, dentro de um armário trancado e abandonado no depósito
de materiais do Terceiro Batalhão de Infantaria, localizado em Venda da Cruz, no
Município de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro. Como oficial temporário,
naquele dia, comandava uma equipe que procedia a limpeza do referido depósito,
objetivando abrir espaço para vários caixotes que chegariam de outras Organizações
Militares. Constatei que alguns armários de madeira imprestáveis, carcomidos pelo
tempo e pelos cupins, teriam de ser retirados dali para serem queimados, em área
própria, nos fundos do batalhão. Como um dos armários estivesse fechado à chave,
antes de queimá-lo, forcei sua fechadura. Dentro encontrei um grosso caderno com
capa de couro. Ao folhear rapidamente suas páginas, já amareladas pelo tempo,
constatei tratarem de relatos diários sobre a vida de um militar daquele batalhão. Pelo
mau estado de conservação percebi que o diário permaneceu esquecido, ali dentro, por
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dezenas de anos; o que, de certa forma, o manteve preservado, embora os cupins
houvessem destruído partes da capa e de algumas páginas.
Guardando o diário para posterior observação mais detalhada, mandei colocar fogo
aos armários e dei minha missão por encerrada.
Mais tarde no alojamento lembrei-me do diário e, ao tornar a abri-lo e examiná-lo
com mais detalhes, vi que tratava de relatos que abrangiam o período de março de
1942 a setembro de 1946, e que incluíam a participação de seu autor em combates
travados no território italiano durante a Segunda Guerra Mundial. Em nenhuma parte
do caderno encontrei o nome do dono daquelas memórias; razão pela qual dei ao
presente relato, o simples nome de ‘A História de um Soldado Brasileiro’.
Considerando o grande volume de páginas tomei a liberdade de resumir algumas
passagens que me pareceram muito extensas, e de abreviar algumas outras cuja pouca
clareza de exposição deixaria os leitores confusos. Mantive a seqüência cronológica dos
relatos, dando nova redação a alguns trechos escritos certamente sob forte emoção póscombate. Assim, reuni os relatos diários e condensei-os anualmente iniciando a
narração em 1942 e terminando em 1946, ano em que imagino ter o diário sido
esquecido dentro daquele armário. Procurei ainda dar um tom coloquial para tornar a
leitura mais agradável e menos cansativa.
Muito do que é relatado referente à vida e aos pensamentos do autor foi obtido
através do rascunho de várias cartas, dirigidas ao seu pai e a sua namorada,
encontradas entre as folhas do diário.
O que verdadeiramente me levou a divulgar o referido diário da forma como o faço
agora, foi o sentimento por mim vivenciado, após lê-lo integralmente, de que devia pelo
menos isso ao seu autor.
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Conforme os leitores poderão constatar emocionados, sua dedicação incondicional
ao serviço da pátria e seu sofrimento, tanto durante a guerra quanto após seu retorno
ao Brasil, foram relegados e esquecidos, por parte daqueles a quem pretendeu
defender.
Esta estória narrando a história dramática deste herói anônimo, certamente será
muito parecida com outras estórias de veteranos da Segunda Guerra Mundial,
quaisquer que sejam suas nacionalidades. O que, todavia, será sem dúvida diferente,
infelizmente para nós, é a forma como o nosso país tratou, naquela ocasião, os heróis
que retornaram vivos do conflito, bem como os familiares daqueles que não
retornaram e cujos restos mortais ficaram sepultados durante muitos anos na cidade
italiana de Pistoia, ou foram dados como desaparecidos. Leis e regulamentos em
benefício dos ex-combatentes e de seus familiares, só foram promulgados cerca de
quinze anos após haver terminado o conflito. Enquanto outros paises souberam
recompensar a dor e o sofrimento de seus soldados, o Brasil desmobilizou os dele ainda
mesmo na Itália, deixando-os totalmente desamparados, após seu retorno àquela
ingrata pátria que com o risco da própria vida foram defender em solo europeu.
A permanência de uma ditadura Getulista em nosso país, a principio prógermânica, certamente fez com que o governo não desse nenhum apoio aqueles
militares que haviam combatido as ditaduras nazi-fascistas, e que agora retornavam
vencedores. A quase totalidade daqueles ex-combatentes chegados ao Brasil após
sofrerem as agruras do ‘front’ italiano, não concordava com o Estado Novo Getulista.
Em que pese o Marechal Eurico Gaspar Dutra haver sido eleito, em janeiro de 1946,
como resultado final das eleições de 1945/1946, constatou-se que o comando da política
nacional e sua base eleitoral, como também a estrutura dos interesses políticos do PSD
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e do PTB, respectivamente lideranças rurais e proletariado, continuavam firmemente
nas mãos de Getulio Vargas.
Com isto os interesses dos ex-combatentes, considerados verdadeiros heróis pela
população, foram relegados e esquecidos pelo governo, só sendo retomados após a
eleição de Juscelino Kubitschek.
Finalmente, à memória deste desconhecido soldado de infantaria, que deixou para
as futuras gerações o relato de suas vicissitudes em solo italiano, dedico todo o trabalho
que tive ao compilar, transcrever e tornar público o presente livro.
O Autor
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ÍNDICE
08
1942
26
1943
37
1944
61
1945
105
1946
7
1942
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Diário escrito no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo. RJ.
Hoje faz vários meses que, pela primeira vez, adentrei o portão da guarda do quartel
do Terceiro Regimento de Infantaria, de São Gonçalo, localizado, segundo nos
disseram, em área de antiga fazenda pertencente a uma família inglesa.
No ano de 1935 foi criado neste local o 14º Regimento de Infantaria, com sede na
Chácara Paraíso, nome da fazenda naquela ocasião. Quatro anos depois, o 14º
Regimento passou a denominar-se Terceiro Regimento de Infantaria, de São Gonçalo,
em substituição ao Terceiro Regimento de Infantaria, da Praia Vermelha, que havia
sido extinto logo após pegar fogo, ao ser bombardeado durante a Intentona Comunista
de 1935.
O terreno é muito amplo e abrange até um pequeno morro ao fundo, chamado
Morro do Cruzeiro, de cima do qual avistamos a Baia de Guanabara, o porto do Rio de
Janeiro, a estação das barcas em Niterói e a fabrica de fósforos do Barreto, bairro
próximo ao quartel. Possui diversas árvores frutíferas, destacando-se as mangueiras e
as goiabeiras.
Durante o dia nossas atividades são acompanhadas por milhares de pios e cantos de
centenas de pássaros que habitam e circulam por aquelas árvores. Certo dia, enquanto
eu trocava de roupa no alojamento preparando-me para a atividade de educação física,
notei um pássaro amarelo que me pareceu um Bem-te-vi, pousando na janela do
alojamento e ficando, por alguns minutos, olhando-me fixamente. Com a chegada de
outros companheiros alçou vôo para uma das mangueiras próximas, de onde ficou
cantando até eu perdê-lo de vista. Pequenos macacos e micos também são freqüentes
nos galhos das árvores.
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Entrando pelo terreno do quartel vê-se, logo em frente, uma alameda de palmeiras
que conduz ao prédio principal, antiga sede da fazenda. À esquerda, e ao fundo deste,
encontram-se alojamentos que dão frente para o campo de futebol. À direita existem
novos alojamentos e um pátio para exercícios e formaturas.
A comida do rancho é de muito boa qualidade e servida com fartura.
Após seis meses de exercícios diários e de boa alimentação, já somos verdadeiros
soldados atletas. Praticamos várias modalidades de esporte; entretanto, a mais
concorrida é o futebol, praticamente jogado por todos.
Por vezes subimos correndo o Morro do Castro, localizado quase em frente ao
quartel, onde existem duas enormes pedras que, por formarem interessante figura, são
alvo de piadas e gozações dos soldados.
Aqui dizem que em caso de tentativa de tomada do quartel por forças externas,
temos de tomar rapidamente o Morro do Castro, que domina o mesmo. Esta é a razão
do treinamento de subi-lo correndo, como fazemos.
Já fiz diversos amigos e, a julgar por nossas afinidades, creio que todos seriamos
capazes de dar a própria vida em defesa da dos demais, tão forte é a amizade que nos
une.
Muitos companheiros, sabendo que moro no próprio quartel, convidam-me para
visitar suas casas nos fins de semana. Alguns, inclusive, sabendo que curso a Faculdade
de Direito, já deixaram claro que têm irmãs solteiras que querem me apresentar.
Pelo que sei a guerra que convulsiona a Europa, aos poucos, chegará ao Brasil. Em
maio um navio chamado Parnaíba foi atacado por submarinos alemães nas
proximidades da Ilha de trindade. Com este já são seis os navios brasileiros atacados.
Alguns oficiais falam que nosso país talvez venha a participar do conflito enviando
tropas para a Europa.
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Na Faculdade de Direito meu desempenho tem sido razoável, considerando o pouco
tempo que disponho para os estudos. Felizmente a presença não é obrigatória, pois
embora o Cel. Mazza, comandante do quartel, tenha me dispensado de várias
atividades, não é sempre que consigo assistir às aulas. Meus professores são muito
bons, todos catedráticos e com vasta cultura jurídica.
Em que pesem todas as dificuldades, tenho conseguido me sair bem nas provas
escritas e orais. Para tal, agradeço muito a ajuda de um amigo que fiz, creio que
professor assistente, formado há dois anos atrás na própria faculdade, chamado
Ranieri Mazzilli e que conhecendo minha condição de soldado tem procurado me
ajudar, fornecendo material para leitura e orientando sobre os assuntos importantes a
estudar.
A faculdade foi fundada, em 03 de junho de 1912, sob o nome de Faculdade de
Direito Teixeira de Freitas, na cidade do Rio de Janeiro.
Em 1915, fundiu-se com a Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro e, em
25 de março do mesmo ano, passou a funcionar em Niterói com o nome de Faculdade
de Direito do Estado do Rio de Janeiro. No ano de 1921, passou a denominar-se
Faculdade de Direito de Niterói, com sede na Rua Visconde do Rio Branco 15, no
centro de Niterói. Seu fundador foi o professor Doutor Joaquim Abílio Borges,
escolhido para ser seu primeiro diretor. A faculdade já conta, pois, com trinta anos de
funcionamento.
O município de São Gonçalo, onde está situado o quartel, foi fundado, em 06 de
abril de 1579, por Gonçalo Gonçalves e o Distrito de São Gonçalo foi emancipado de
Niterói em 1890. Esta emancipação, posteriormente, foi revogada e somente em 1923 o
município foi finalmente emancipado definitivamente.
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No local exato da sua fundação encontra-se a Igreja de São Gonçalo do Amarante,
santo da devoção do fundador. Ao tempo da sua colonização, era habitado pelos índios
Tamoios.
A Capela de São João, o Porto do Gradim e a Fazenda da Luz, em Itaóca, são os
principais marcos do passado colonial de São Gonçalo. Até a Revolta da Armada
constituía uma freguesia de Niterói, porém, quando da eclosão da revolta (1893), a
capital (que era Niterói) tendo sido transferida para Petrópolis, permitiu a
fragmentação de algumas freguesias próximas, passando a constituir o município de
São Gonçalo.
Pelo que percebo o município passa por um período de grande desenvolvimento.
Muitas novas empresas planejam instalar-se aqui e o clima é de grande expansão das
atividades empresariais.
Em abril os jornais noticiaram a detenção de diversos cidadãos de nacionalidade
alemã, acusados de espionagem. Foram enviados a um campo de concentração na Ilha
das Flores, próxima do litoral de São Gonçalo.
Em meados de agosto o rádio noticiou que o governo havia transmitido uma
declaração de guerra aos governos da Alemanha e da Itália. Ao final do mês foi
declarado o estado de guerra em todo o país. Em setembro foi decretada a mobilização
geral.
Pelo rádio tem tocado, muito, um samba do carnaval deste ano chamado ‘Ai que
saudades de Amélia’, de autoria de Mario Lago e Ataulfo Alves. Também toca bastante
‘Aos pés da cruz’, ‘Emilia’ e ‘Praça Onze’, este último de Herivelto Martins e Grande
Otelo.
Soubemos, pela imprensa, de um ataque aéreo britânico à cidade alemã de
Dusseldorf, bem como da invasão da França, pela Alemanha.
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Carta escrita no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo. RJ.
“Pai, já faz quase seis meses que fui incorporado como recruta no Terceiro
Regimento de Infantaria, em Venda da Cruz, São Gonçalo. Entretanto, somente agora
encontro tempo para lhe contar alguma coisa sobre minha nova situação como soldado
e como militar.
Como você já sabe, pelo fato de estar matriculado na Faculdade de Direito de
Niterói, fiz minha inscrição para o serviço militar também em Niterói, de modo a poder
conciliar as duas atividades.
A vida de recruta nestes primeiros meses é muito dura, pois são tantas as atividades
e tantas as coisas que temos de aprender que, durante o dia, não conseguimos pensar
em outra coisa a não ser naquilo que fazemos no momento. À noite, entretanto, lembrome sempre com saudades de você e da mamãe e me transporto, em pensamento, para
nossa casa. Vejo-me chegando de mansinho e abrindo a porta da frente. Você e mamãe
estão sentados à mesa do jantar e dividem o que têm para a ceia daquele dia. Ela olha
na minha direção, porém, não me vê chegando. Noto que seus olhos estão úmidos e que
se esforça para não chorar. Vou até meu quarto e encontro-o igual como estava no dia
em que parti. Parece que nada mudou em nossa casa desde aquele dia. Tento
permanecer ainda um pouco mais junto de vocês, porém, o sono chega inexorável e sou
conduzido às profundezas do inconsciente.
Quando acordo de manhã tenho a sensação de que os abandonei e sinto-me muito
mal. Desejaria permanecer para sempre ao lado de vocês, mas o destino me conduziu à
carreira de advogado, e somente consegui matricula nesta faculdade em Niterói.
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Conforme já lhe havia dito, seria impraticável estudar em Niterói e residir em
subúrbio distante no Rio de Janeiro.
A travessia de barcas e a utilização de dois ônibus, sairia muito caro, além de tomar
muito tempo. Por outro lado, a necessidade de prestar o serviço militar obrigatório,
também dificultaria meu curso em qualquer faculdade que exigisse a presença diária.
Na faculdade de Niterói não há a necessidade da presença todos os dias, sendo apenas
necessário efetuar as provas escritas e orais.
A razão desta carta é para tranqüilizá-los com respeito a minha atual situação
Estou bem e já fiz alguns bons amigos.
Nosso comandante, o coronel Adriano Saldanha Mazza, ao saber que eu havia
passado nos exames para a Faculdade de Direito de Niterói, prometeu dispensar-me de
algumas atividades para que eu tenha mais tempo livre para estudar.
O Terceiro Regimento de Infantaria, de São Gonçalo, substituiu o Terceiro
Regimento de Infantaria da Praia Vermelha, cuja história recente foi palco de
sangrentos acontecimentos. Folheando documentos da época, que encontrei aqui no
quartel, fiquei sabendo que, na madrugada do dia 27 de novembro de 1935, o Terceiro
Regimento rebelou-se, estando os rebelados a serviço da implantação de um regime
comunista no Brasil.
Os rebeldes do regimento eram chefiados por três capitães que conseguiram, após
violentos combates no interior do quartel, dominar quase totalmente a unidade. Na
manhã do dia 27 restava apenas um núcleo de resistência legalista, situado no pavilhão
do comando onde se encontrava o coronel comandante do regimento.
A reação dos legalistas impediu que os rebelados deixassem o quartel para outras
missões, pré-determinadas pelo plano da insurreição, que incluíam o assalto ao palácio
presidencial do Catete.
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Nas últimas horas da madrugada, acionados diretamente pelo comandante da
Primeira Região Militar, general Eurico Gaspar Dutra, o Batalhão de Guardas e o
Primeiro Grupo de Obuses, tomaram posição nas proximidades do quartel rebelado e
iniciaram o bombardeio.
Durante toda a manhã do dia 27, desenvolveram-se intensos combates. O prédio do
Terceiro Regimento transformou-se em uma verdadeira fortaleza, guarnecida pelas
metralhadoras dos rebeldes que ocuparam, ainda, as elevações vizinhas.
Explosões de granadas de artilharia reduziram o edifício a escombros e o quartel
começou a pegar fogo. A infantaria legalista, então, avançou em direção ao prédio em
chamas.
As 13:30 horas os amotinados apresentaram sua rendição e deixaram o edifício
destruído pelos bombardeios. O edifício, em escombros, foi abandonado e, pouco tempo
depois, o Terceiro Regimento da Praia Vermelha, considerado como traidor do
Exército e da pátria, foi extinto.
Anos após este episódio foi recriado em Venda da Cruz, São Gonçalo, do outro lado
da Baia de Guanabara, em local distante, talvez com receio das autoridades de que no
futuro pudesse, novamente, rebelar-se.
Os militares que participaram da Intentona Comunista foram expulsos das Forças
Armadas e julgados e condenados a penas diversas, conforme a gravidade de suas
ações.
Pai, iniciei a elaboração de um diário sobre este novo período da minha vida, na
faculdade em Niterói e no quartel em São Gonçalo, para que, mais tarde, após ter sido
um advogado famoso, caso o destino não permita vir a conhecer meus netos, eles
possam saber alguma coisa sobre a vida de seu avô, sobre as cidades que conheci
quando jovem e sobre as experiências pelas quais passei.
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Muitos avós não têm a felicidade de poder conhecer seus netos. Entretanto, se
deixarem por escrito algum relato sobre suas existências, estes poderão, no futuro
quando já estiverem maiores, conhecê-los com mais intimidade e em maior
profundidade.
Bem, fico por aqui e logo que o tempo permita tornarei, novamente, a escrever-lhes.
Um beijo para a mamãe e um forte abraço do filho que os ama”.
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Diário escrito no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz.São Gonçalo.RJ.
Estive baixado por quase uma semana no posto médico do quartel, com muita febre
e vômitos. Os médicos não chegaram a um acordo sobre o que tive, e o fato é que
melhorei sem a ajuda deles. Neste período perdi duas importantes provas na faculdade,
às quais tive de fazer em segunda chamada.
Os professores, embora competentes e profundos conhecedores das matérias que
lecionam; talvez mesmo por isso, não estão interessados em averiguar o que não
sabemos, mas, sim, aquilo de sabemos. As provas, portanto, são muito objetivas e
versam apenas sobre a matéria dada.
O final das atividades deste ano no quartel foi coroado com uma marcha de,
aproximadamente, trinta quilômetros e um acampamento onde aprendemos alguns
rudimentos de infantaria: exercícios de mobilidade, armar barracas, cavar trincheiras,
fazer patrulhas, atirar com os fuzis Mosin-Nagant e Mauser 08 e com as metralhadoras
Madsen e HotchKiss.
Na faculdade fui aprovado em todas as matérias, passando, assim, para o segundo
ano.
Alojado no quartel aproveito para, nos fins de semana, conhecer os pontos turísticos
de Niterói; já que São Gonçalo quase não os tem.
A história de Niterói remonta ao final da guerra entre portugueses e franceses na
capitânia do Rio de Janeiro, quando Estácio de Sá, objetivando evitar que o cacique
Ararigbóia (cobra da tempestade ou cobra feroz), que o havia ajudado contra os
franceses, retornasse para a capitania do Espírito Santo.
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Estácio de Sá, então, ofereceu-lhe qualquer uma das regiões da Guanabara.
Ararigbóia teria, então, escolhido a região das águas escondidas (Niterói, em TupiGuarani). O cacique trouxe, a seguir, sua tribo para a Vila de São Lourenço dos Índios.
No ano de 1819, esta passou a chamar-se Vila Real da Praia Grande. Em 1834
passou a ser a capital da província do Rio de Janeiro e, em 1835, passou a denominarse Nictheróy.
Diversas capelas erguidas na chamada Aldeia de São Lourenço dos Índios, deram
origem a diversos bairros de Niterói: São Francisco Xavier (Saco de São Francisco),
São Domingos (bairro do mesmo nome), São João de Icaraí (Icaraí), Nossa Senhora da
Boa Viagem (Boa Viagem), São Sebastião de Itaipu (Itaipu), São Pedro do Maruí
(Maruí, no Barreto) e Nossa Senhora da Conceição (Centro).
No episódio da Revolta da Armada (1893/1894), contra a presidência do Marechal
Floriano Peixoto, perdeu a condição de capital para a cidade de Petrópolis. Terminada
a Revolta, no ano de 1903 voltou a ser a capital.
Na gestão do prefeito João Ferraz (1906/1910) foram feitas diversas construções e
embelezamentos, que modificaram muito a paisagem urbana da cidade, como, por
exemplo, a pavimentação da Alameda São Boaventura e da Avenida da Praia de Icaraí,
a construção do jardim do Gragoatá, a construção da sede da prefeitura (Palácio
Ararigbóia) e a urbanização do Campo de São Bento.
A obra de desmonte do Morro do Campo Sujo ou Morro Dr. Celestino (área de
esgotamento sanitário da cidade) possibilitou o surgimento de um centro político no
Município de Niterói, representado pela Praça da República e pela construção dos
edifícios da Câmara Municipal, do Palácio da Justiça, da Biblioteca Pública e da Escola
Normal (Liceu Nilo Peçanha)
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Quando de folga no quartel, costumo ir a Niterói, onde tomo banho de mar em
frente ao trampolim da praia de Icaraí, praia esta cujas areias são finas e quase
brancas, de tão limpas. Inúmeras conchas, estrelas do mar e siris habitam aquelas
areias. A água é transparente e podemos avistar cardumes de peixes pequenos que
nadam entre os banhistas. Muitos jovens costumam saltar do primeiro estágio do
trampolim, mas o segundo estágio é destinado apenas àqueles mais corajosos.
Icaraí é um local muito agradável. Casas e palacetes dão frente para a praia, onde
pescadores recolhem suas redes abarrotadas de peixes.
Os moradores adquirem os peixes quase de graça, diretamente dos pescadores,
porém, os maiores vão para os restaurantes dos hotéis.
Muitos costumam pescar com vara na beira do mar, aonde os peixes chegam, em
busca de alimentos. Por várias vezes observei tartarugas caminhando pelas areias,
procurando um bom lugar para depositar seus ovos.
Na saída da praia costumo parar um pouco, sentado em uma mesa no bar da Praça
Luzitânia, ao final da praia, para tomar uma cerveja. Nesta praça existe um
monumento que consiste em uma esfera, sustentando uma cruz de malta e uma placa
de bronze com os dizeres: ‘Monumento comemorativo da primeira travessia do Oceano
Atlântico, de Portugal ao Brasil, pelos aviadores portugueses Capitão-de-Mar-eGuerra Sacadura Cabral e Almirante Gago Coutinho- 1922’.
Às vezes assisto a uma partida de futebol no Estádio Caio Martins. No ano passado,
havia sido inaugurado um monumento, no local, em homenagem ao jovem Caio
Martins, dando, assim, nome ao estádio. Segundo noticia dos jornais, como escoteiro
que era, havia falecido em desastre de trem na Serra da Mantiqueira, após ajudar a
salvar vários passageiros feridos. Para perpetuar o heroísmo deste acontecimento, o
governador resolveu dar seu nome ao estádio.
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Como torço pelo Flamengo, assisti a duas partidas do meu time no Caio Martins.
Uma foi em fevereiro, contra o Fluminense Atlético Clube, de Niterói, na qual o placar
foi Fluminense 2 e Flamengo 1. O time do Flamengo era formado por: Martinho,
Pedro, Barradas, Biguá, Jocelino, Médio, Lupércio, Jacir, Nahib, Vicente e Jarbas. O
autor do gol foi Vicente. A outra partida foi em junho, contra o Canto do Rio. Nesta
fomos vencedores por 5 a 2. Nosso time era composto por: Jurandir., Domingos,
Norival, Biguá, Quirino, Jaime, Valido, Zizinho, Perilo, Nandinho e Vevé. Os gols
foram de Zizinho, Vevé, Nandinho, Valido e Gerson (contra)
Depois da partida de futebol costumo passear pelo Campo de São Bento, em Icaraí,
admirando as árvores, os pássaros e os micos que correm pelos galhos, além das bandas
de música que tocam no coreto.
Certo dia, sentado em um destes bancos, em meio àquela paisagem deslumbrante,
meu pensamento, como ondas, vagava entre as lembranças de minha juventude em
casa com meus pais e os questionamentos sobre tudo aquilo que o destino me
reservaria, como futuro advogado em Niterói.
Em algumas ocasiões tomo o bonde em frente ao quartel e vou até o Rodo de São
Gonçalo. Lá, o bonde retorna e faz o trajeto de volta, passando de novo em frente ao
quartel e indo até a estação das barcas, em Niterói.
Em outras ocasiões vou andando do quartel até o Ponto Cem Réis, onde, então, tomo
um bonde para Icaraí. Durante a caminhada passo em frente ao mercado de frutas do
Barreto, que possuí um palco armado na frente, onde compro bananas que serão o meu
almoço daquele dia.
A Praça do Barreto possui um lago com um chafariz e duas estatuas de deusas
gregas e é cercada por uma mureta baixa, onde as pessoas costumam sentar-se para
descansar.
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Ao lado da praça estão localizados o Bazar Coelho, o Foto Brasil, a Padaria Pão
Quente, o Clube Cinco de Julho e a sede do Byron Futebol Clube, cujo campo fica ao
lado da Fabrica Fluminense de Tecidos.
Às vezes paro no Armazém Brasil, do seu Miranda, que chamo carinhosamente de
Dodoca, onde compro um pouco de queijo e de goiabada. O armazém fica na Rua
General Castrioto 511 e, quando de folga, gosto de ir até lá conversar com seu
Miranda. Ele é maçom e uma vez me convidou para ingressar na maçonaria.
Aos domingos assisto missa na Igreja de São Lourenço da Várzea (onde está
colocada a imagem de São Lourenço, vinda de Portugal em 1897), ou na igreja de São
Lourenço dos Índios (com sua arquitetura jesuítica do século XVII, o retábulo-mor que
é um precioso exemplar da arte barroca do fim do século XVI, bem como outras peças
históricas em bom estado de conservação) e, logo a seguir, tomo o bonde no qual passo
a manhã toda circulando. Vou ao Largo do Marrão, ao Largo do Quartel, ao
Viradouro, a Santa Rosa, ao Canto do Rio e ao Cubango.
Algumas vezes salto em Icaraí e vou ao Cinema Icaraí, inaugurado há dois anos.
Freqüento também, nos fins de semana, o Cine Central ou o Cine Odeon, situados
ambos na Rua Visconde do Rio Branco, próximo das barcas, no centro de Niterói. O
Cine Mandaro, no Largo do Marrão, em Santa Rosa, passa ótimos filmes de ‘cow boy’.
Quando não tenho tempo, nem vontade de ir à Niterói, freqüento os cinemas Palace,
no Largo do Barradas e o Cine Brasil, no Barreto.
Aos sábados, eu e alguns amigos costumamos pescar no rio Bomba, que corta o
bairro de Venda da Cruz, onde está localizado o quartel do Terceiro Regimento.
Um dia, passeando de bonde, sentei-me próximo a uma jovem lindíssima que viajava
sozinha. A certa altura, não me contendo mais, perguntei-lhe qual o seu destino. Ela,
com um sorriso maravilhoso, respondeu que saltaria em São Domingos. Ràpidamente
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respondi-lhe, inventando uma estória, que este também era o meu destino, pois, sendo
militar deveria ir ao Forte do Gragoatá, localizado próximo, entregar uma mensagem
urgente e secreta. Acompanhei-a até seu destino e, a partir daí, passamos a nos
encontrar aos fins de semana.
Letícia é maravilhosa. Filha única, seus pais faleceram em um acidente com a barca
da Companhia Cantareira, na travessia entre o Rio e Niterói, há muitos anos atrás.
Parece que uma barca, a primeira a ter luz elétrica, apresentou um curto circuito
durante a travessia, pegou fogo e afundou, matando várias crianças e os pais de Letícia.
Desde aquela ocasião reside em São Domingos, com a avó viúva.
Estuda no Rio de Janeiro para ser professora e pensa em trabalhar, depois de
formada, na capital, Niterói, ou no interior do Estado.
Em 01 de dezembro, fui com Letícia e a avó ao Rio de Janeiro assistir a um filme. Eu
preferia assistir ‘Aconteceu em Havana’, com Carmem Miranda e Cezar Romero, no
Cine Rian, em Copacabana, ou ‘O mistério do quarto secreto’, no Cine Odeon. Sua avó
queria ver ‘Canção do Hawai’, com Betty Grable, no Cine Rex; porém, acabamos por
fazer a vontade de Letícia, indo assistir ‘Lua de mel, lua de fel’, com Robert
Montgomery, no Cine Metro Passeio. Acabou que todos nós gostamos muito da
comédia. Não sei se Letícia quis mandar algum recado, dissimulado, para mim, através
do filme.
No Teatro Serrador levava a peça ‘Bicho do Mato’. No Teatro Rival estava em
cartaz a comédia ‘Galinha Verde’. No Teatro João Caetano encenava-se a peça ‘2ª
Frente’ e no Teatro Carlos Gomes a ‘Comédia da Vida’.
A ida ao teatro, para nós, que vivemos do outro lado da baía é quase impraticável.
Os espetáculos, em geral, começam as 20:00 horas e é muito complicado, para quem
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mora em Niterói, ir ao Rio de Janeiro, a partir do anoitecer, utilizando as barcas que
fazem a travessia da Baia de Guanabara.
Na véspera do natal ouvi, pelo rádio, que o Presidente da República criou uma
Força Expedicionária, cuja missão seria a de participar do atual conflito que está se
estendendo pelo mundo todo.
23
Carta escrita no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo. RJ.
“Pai, estou definitivamente apaixonado. Conheci a mulher mais linda do mundo.
Estamos namorando e em breve lhe enviarei uma foto dela, tão logo a tenha. Estou
certo de que mamãe ficará feliz quando a conhecer. Não sei como foi entre você e a
mamãe, mas, eu, não consigo mais viver sem ela.
Pretendemos nos casar na Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, no bairro de
Santa Rosa, logo que eu me formar na faculdade. Ela também está para se formar
como professora e ficaremos residindo em Niterói, ou iremos para o interior
dependendo das oportunidades. Emprego para advogado e para professora é o que não
falta neste país.
O nosso casamento será bem simples, apenas você, mamãe, a avó de Letícia e alguns
amigos da faculdade e do quartel, além de algumas colegas de Letícia, do Instituto de
Educação. Após o casamento, faremos uma recepção na casa da avó dela, em São
Domingos.
No início pretendemos ficar morando com sua avó, até que possamos alugar um
imóvel em algum outro lugar. Não pretendo ficar muito tempo incomodando a avó
dela, pois acho que facilmente conseguirei minhas causas e, em breve, já estarei em
condições de manter a mim e a Letícia sozinho.
Quando a nossa situação melhorar, traremos vocês dois para viverem conosco. Se
ambos trabalharmos o dia inteiro, precisaremos de vocês para ficar tomando conta dos
netos, que certamente serão muitos.
Não poderei passar o natal e o ano novo em casa como gostaria, porém, estarei
pensando em vocês com muito carinho.
Tenho me saído muito bem na faculdade e já estou praticamente no segundo ano.
24
Aqui pelo quartel dizem que o Brasil enviará uma tropa para lutar na Europa.
Antes de conhecer Letícia não me importaria em ir, mas, agora, não sei. Desejo me
formar o mais breve possível para podermos nos casar e iniciar logo a minha vida
profissional.
Aceitem um forte abraço do filho que os ama”.
25
1943
26
Diário escrito no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo.RJ.
No quartel agora já somos veteranos engajados. Uma nova turma de conscritos
iniciou o ano de instrução e a nossa turma, agora mais antiga, ficou encarregada dos
serviços de guarda do quartel.
As aulas começaram na faculdade, e o segundo ano parece ser muito mais difícil que
o primeiro. Espero que o Cel. Mazza mantenha, durante este ano, o apoio que me deu
no ano anterior.
Finalmente Letícia me convidou para conhecer sua avó, no sábado. Ao sair do
quartel passei no mercado do Barreto, onde comprei dois buquês de flores, um com
rosas vermelhas e o outro com rosas amarelas.
Tomei o bonde para as barcas, ali mesmo, em frente ao mercado. Das barcas fui
andando até São Domingos.
Durante o caminho pensava em como a vida havia sido generosa para comigo. Uma
carreira promissora, uma bela namorada que me amava e pais maravilhosos, que
também me amavam. Perdido nestes pensamentos, quando dei por mim já estava em
frente à casa dela.
Após haver tocado a campainha, Letícia veio ao portão, acompanhada por uma
senhora idosa com os cabelos bem brancos. Cumprimentei-a e entreguei-lhe o buquê de
rosas amarelas, entregando para Letícia o de rosas vermelhas. Vi que as duas gostaram
muito do presente, pelos olhares que trocaram.
Entrando na casa, a mesa já estava posta. A decoração do interior, embora simples,
era de muito bom gosto. A avó havia sido professora em sua juventude e fora ela que
influenciara Letícia a seguir a mesma carreira.
27
Após o almoço, totalmente diferente daquele a que eu estava acostumado no quartel,
pedimos licença a sua avó e fomos passear pelas ruas do bairro.
Seguimos conversando até a Praia da Boa Viagem, onde paramos para contemplar a
velha igreja, no alto da ilha do mesmo nome.
Naquela ilha existem dois monumentos coloniais. Um é a igreja de Nossa Senhora da
boa Viagem. Abaixo da igreja, e oculta pela vegetação, acham-se as ruínas de uma
antiga fortificação que, no final do século XVII, foi erguida com o nome de Forte da
Barra e, tempos depois, passou a denominar-se Forte da boa Viagem.
O forte ofereceu tenaz resistência às tentativas de invasão do Rio de janeiro, pelas
esquadras de corsários que assediaram a cidade.
Daquele local continuamos andando até chegar ao Forte do Gragoatá, onde,
identificando-me no portão da guarda, entramos para uma visita.
Ficamos um bom tempo de mãos dadas admirando a entrada da Baia da
Guanabara, o porto do Rio de Janeiro, a estação de hidroaviões próxima da estação das
barcas e as barcas da Cantareira que, com suas grandes rodas formadas de pás de
madeira girando na parte de trás da embarcação, seguiam lentamente seu rumo, ora
para Niterói, ora para o Rio. Admiramos também os velhos canhões do Forte,
apontados para o fundo da baia e para o porto.
O forte está localizado na antiga praia de São Domingos, assim denominada devido
à capela de São Domingos, erguida em 1652. O nome de Gragoatá vem da palavra
gravatá, vegetação predominante no local, porém seu primeiro nome foi Forte de São
Domingos.
Dizem que sua primitiva fortificação data de 1610, sendo o segundo forte mais
antigo de Niterói.
28
Segundo dizem, cruzava fogos com a Bateria da Boa Viagem e com a Bateria da Ilha
de Vilegaignom. Parece que, junto com a Bateria da Boa Viagem, fez fogo sobre a
esquadra do corsário francês René Duguay-Trouin, em setembro de 1711.
No Portão da Guarda, logo na entrada do forte, existe uma inscrição informando,
em latim: “Sendo Pedro II Imperador Constitucional do Brasil, foi acabada esta
fortificação, no quadragésimo ano da independência da pátria-1863”.
Durante a Revolta da Armada (1893-1894), o forte foi ocupado por um batalhão de
estudantes da antiga Escola Politécnica e das escolas militares, sob o comando de um
tenente que manteve a defesa do governo de Floriano Peixoto.
Na madrugada de 9 de fevereiro de 1894, os revoltosos da marinha desembarcaram
na ponta da Armação, em Niterói, tentando tomar de assalto ao Forte de Gragoatá,
onde o Batalhão de Estudantes, apoiado pela Fortaleza de Villegaignom e pela
Fortaleza da Ilha das Cobras, resistia ao fogo do Encouraçado Aquidabã e do
Cruzador República.
Uma granada vinda de um dos navios matou, naquela ocasião, vários estudantes,
sem que o forte, embora bastante destruído pelo fogo dos revoltosos, se rendesse.
Ao cair da tarde retornamos, passando em frente à oficina das barcas da
Cantareira, localizada em frente a Praça de São Domingos, e seguimos para a casa de
Letícia.
No portão, antes de me despedir, trocamos alguns beijos abraçados. Confesso que
não tinha a menor vontade de voltar para o quartel.
Na faculdade as matérias estão cada vez mais difíceis, porém, pude contar com
amigos que me ajudavam, emprestando livros, resumo das matérias e, mesmo,
fornecendo indicações sobre os assuntos que deveriam cair nas provas, ouvido dos
próprios professores nas conversas pelos corredores da faculdade.
29
Os jornais noticiaram outros cinco afundamentos de navios brasileiros. Ao todo já
são cerca de vinte embarcações afundadas, tanto nas costas brasileiras quanto em
outros locais. Os nomes de alguns são: Baependy, Itagiba, Araraquara, Arará, Anníbal
Benévolo, Buarque, Olinda, Cabedelo, Arabutã, Cairú, Comandante Lira, Gonçalves
Dias, Alegrete, Paracuri, Pedrinhas, Tamandaré, Barbacena e Jacira.
Pelas ruas de Niterói e de São Gonçalo ocorreram várias manifestações populares
contra a campanha submarina alemã nas águas territoriais brasileiras.
Soubemos também pela imprensa que os aliados desembarcaram na Sicília e que
bombardearam Roma, além de a Itália haver declarado guerra à Alemanha.
No quartel já se fala em organizar listas de voluntários para compor a Força
Expedicionária. Muitos são os que se apresentaram.
Embora deseje ir com meus companheiros, o pensamento em meus pais e em Letícia
retira qualquer iniciativa de me apresentar como voluntário.
Esta semana faleceu um sargento da minha companhia em decorrência de uma
queda, ao saltar andando do bonde em frente ao quartel. Quem viu o acidente disse que
ele tropeçou e bateu fortemente com a cabeça no chão. Ficou um dia na enfermaria do
quartel e morreu na manhã do dia seguinte.
Seu enterro foi no cemitério do Maruí Grande, na Rua General Castrioto 409, no
Largo do Barradas, próximo do quartel.
Por fim, chegou o dia das provas finais na faculdade. Com a ajuda dos colegas
consegui um resultado satisfatório e passei para o terceiro ano.
Cada vez mais sonho com o meu futuro de advogado criminalista, defendendo meus
clientes no Fórum de Niterói ou no de São Gonçalo.
Com a baixa do exército ao final deste ano, espero, no futuro, poder me dedicar com
mais afinco aos estudos.
30
Em um domingo de sol fui com alguns colegas do quartel, visitar a Fortaleza de
Santa Cruz, localizada em um bairro chamado Jurujuba. Fomos de bonde até São
Francisco e, de lá, seguimos a pé até a fortaleza, passando por Charitas e pelas praias
de Adão e Eva, até o início da estrada ligando Jurujuba à fortaleza, que ficou pronta
este ano. Até então o único acesso a fortaleza era por mar.
Segundo fiquei sabendo, em 1555, os franceses montaram duas bocas de canhão
naquele local, para controlar a entrada da Baia da Guanabara.
Ocupado o terreno em 1584 pelos portugueses, estes ergueram ali uma bateria de
canhões, denominada Nossa Senhora da Guia. Em 1599 a bateria repeliu o ataque da
esquadra do almirante Oliver Van Noort.
Após a expulsão total dos franceses pelos portugueses, estes ergueram no local a
Capela de Santa Bárbara e, em 1612, já contando com 20 peças de artilharia, o local
passou a ser denominado Fortaleza de Santa Cruz da Barra. Sua guarnição, naquela
ocasião, consistia em um capitão, um alferes, vinte soldados e um bombardeiro.
Em 06 de agosto de 1710, repeliu a esquadra de cinco navios e mil homens do
corsário francês Jean François Duclerc, logo a seguir aprisionado e morto no Rio de
Janeiro.
Em setembro de 1711, quando da invasão de 18 navios e 5764 homens da esquadra
do corsário francês René Duguay-Trouin, que viera vingar a morte de Duclerc, o
governador Francisco de Castro Morais desguarneceu a fortaleza, traiçoeiramente,
permitindo que a esquadra entrasse na baia e tomasse a cidade do Rio de Janeiro. A
Fortaleza foi tomada e ficou em poder dos invasores até novembro de 1711, quando,
após haverem cobrado um resgate pago pelos cofres públicos e pelos moradores da
cidade, retiraram-se do Rio de Janeiro.
31
Em 1870, foram construídas as três baterias denominadas ‘25 de Março’, no piso
inferior, ‘2 de Dezembro’, no piso intermediário e ‘Santa Tereza’, no piso superior.
No ano de 1885 possuía 145 peças de grosso calibre e era guarnecida por um
batalhão de artilharia a pé, servindo, também, para fazer o registro dos navios que
entravam na Baia da Guanabara.
Durante a Revolta da Armada a fortaleza disparou contra navios revoltosos e
também contra a Fortaleza de Villegaignom, que havia aderido à revolta. Foi, porém,
tomada de assalto por uma companhia de fuzileiros navais dos revoltosos.
No ano de 1910, passou a ser guarnecida pelo Primeiro Grupo de Artilharia de
Posição, sucedido em agosto de 1917, pelo Primeiro Grupo de Artilharia de Costa, ao
final da primeira Guerra Mundial.
No ano de 1922 abriu fogo contra o Forte de Copacabana, durante a Revolta dos
Tenentes.
Em 1924 disparou 33 tiros de canhão contra o cruzador São Paulo (amotinado sob a
liderança do tenente da marinha Cascardo) que, com o fogo de seus canhões, forçou a
saída da barra da Baia da Guanabara rumo a Montevidéo, onde os rebeldes
solicitaram e obtiveram asilo político.
Os locais mais importantes que visitamos na fortaleza, foram: a capela de Santa
Bárbara, as baterias de artilharia, o farol, o mastro da bandeira (uma peça única de
Pau Brasil, entalhada com degraus), o relógio de sol (em pedra e com algarismos
romanos), a cisterna, o salão de pedras (paiol), os pátios e galerias em cantaria de
granito, o local dos enforcamentos (no pátio da cisterna), o paredão de fuzilamentos (na
galeria 25 de março), as celas dos calabouços, as masmorras (em três alturas diferentes,
de modo a que os prisioneiros nunca pudessem ficar de pé) localizadas em frente ao
local das forcas (para que os condenados vissem a morte daqueles que os antecederam)
32
e a cova da onça (local de torturas, onde os prisioneiros ficavam presos junto ao teto,
pelos braços, aguardando sua vez e vendo aqueles que os antecediam serem
torturados).
Em uma das paredes da capela de Santa Bárbara existe um túmulo, embutido, que a
lenda afirma pertencer a jovem Iracema, filha do capitão Potyguara, comandante da
fortaleza. Apaixonada por um cabo que ali servia, e não podendo casar-se com ele por
imposição de seu pai, teria se atirado ao mar, do alto do paredão da fortaleza, em
dezembro de 1906.
Outro túmulo, também embutido na parede da capela, é atribuído como pertencente
a um dos dois oficiais (malquistos pela guarnição por espancarem seus soldados), que
foram mortos pelos seus subordinados no pátio da fortaleza. O episódio teria ocorrido
em 07 de novembro de 1905, quando os dois oficiais (tenente Pedro Fernandes Torres e
major Diogo Freire), acusados de maus tratos à tropa, foram assassinados. A guarnição
revoltosa prendeu, ainda, todos os demais oficiais. A Fortaleza de São João, naquela
ocasião, abriu fogo contra Santa Cruz, sendo também organizada uma tropa para
marchar contra a mesma. Assediada pela tropa que chegava, os revoltosos se
renderam. Não ficamos sabendo a qual dos dois oficiais pertencia o corpo enterrado na
capela.
Anteriormente a este episódio, a fortaleza já se havia rebelado outra vez. Em janeiro
de 1892, sob a liderança de um sargento chamado Silvino, foram aprisionados todos os
oficiais e libertados os prisioneiros. O sargento tinha por objetivo a restituição do
governo ao marechal Deodoro da Fonseca. O movimento sedicioso foi debelado pelo
coronel Moreira César (nome de ruas em Niterói e em São Gonçalo) que, tendo tomado
de assalto o Forte do Pico, que domina a fortaleza, também este em poder dos
33
revoltosos, desceu sobre a mesma enquanto ela era bombardeada por navios, sob o
comando do próprio Ministro da Marinha, Almirante Custodio José de Melo.
Na fortaleza soubemos que ali já estiveram presos: André Artigas (1820), José
Bonifácio de Andrada e Silva (1823), Onofre Pires e José de Almeida Corte Real
(líderes farroupilhas que estiveram presos em 1836 e que se evadiram em 1837), Bento
Gonçalves (1837), Pedro Ivo Veloso da Silveira (líder da Revolução Praieira),
Fructuoso Rivera (primeiro presidente do Uruguai, que esteve preso em 1851), Euclides
da Cunha (1888) e Juarez Távora, Alcides Teixeira e Estilac Leal (que dela fugiram em
1930, descendo por uma corda até o mar).
O Forte do Pico que também visitamos, após uma íngreme caminhada até o topo do
morro situado atrás da fortaleza, teve sua construção iniciada em 1715 e terminada em
1770. Em 1775, foi fundado o Forte de São Luis, nas proximidades do Forte do Pico,
sob cujo portão está escrito: “Josepho I. Imperante Fidel.mo Portugaliae Rege,
Provident.mo Príncipe, Arx Hoec, Divo Aloísio Socrata. Fundata est.1775”.
Em 1891 os dois fortes foram ligados, passando a constituir um único conjunto.
O forte protegia, além da entrada da barra, a Fortaleza de Santa cruz de possíveis
ataques. Em 1918, na presidência de Wenceslau Brás, foi concluída a construção de
outra fortificação, na parte mais elevada do morro, onde foram instalados obuses de
280 mm, importados da Alemanha.
Terminado o passeio, ao final da tarde, retornamos exaustos para o quartel em
Venda da Cruz.
No rádio, ouço com freqüência a marcha carnavalesca ‘China Pau’, de João de
Barro e Alberto Ribeiro; bem como ‘Laurindo’, samba de carnaval de Herivelto
Martins; além de ‘Pra machucar meu coração’ e ‘Cinco horas da manhã’, sambas de
Ary Barroso.
34
Carta escrita no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo. RJ.
“Pai, o final do ano se aproxima e, com ele, a hora da minha baixa do exército. No
ano que vem pretendo conseguir uma vaga na casa de dona Maria Júlia Braga, que
hospeda estudantes carentes no bairro de São Domingos. Fica na Rua Professor
Hernani de Melo, que é próxima da casa de Letícia. Assim, também, poderei vê-la com
mais assiduidade.
Na faculdade estou me saindo bem e já estou, agora, no terceiro ano. Já sou quase
advogado. Algum dia quando já estiver advogando pretendo ir, com você e mamãe, ao
fórum para que assistam a uma sessão do tribunal do júri, na qual eu esteja
defendendo um cliente. Vocês poderão ver, então, seu filho aplicando todo o
conhecimento, aprendido na faculdade com os professores, e todo o sentimento,
aprendido em casa com vocês, na defesa de um ser humano.
Aqui no quartel abriu um voluntariado para participar da Força Expedicionária
Brasileira, porém, não me ofereci, pensando em vocês e em Letícia.
Vários companheiros alistaram-se como voluntários e o clima é de euforia e de
patriotismo. Os que não se alistaram passaram a ser vistos como medrosos, porém,
afirmo-lhes que este não é o meu caso, como vocês devem saber muito bem.
Envio um beijo para mamãe e aceite um forte abraço do filho que os ama”.
35
Diário escrito no Terceiro Regimento de Infantaria. Venda da Cruz. São Gonçalo.RJ.
As baixas foram suspensas e todos os soldados engajados foram enviados para fazer
exames médicos e físicos na Vila Militar. Estão selecionando os mais aptos, física e
intelectualmente, para fazerem parte da Força Expedicionária Brasileira.
Meu exame médico e físico foi excelente e, por ser universitário, fui escolhido para
fazer parte da força combatente. Isto, sem dúvida, mudará bastante meus planos.
Terei de trancar a matrícula na faculdade para retornar ao curso, somente, após minha
volta ao Brasil. Também muda minha situação perante Letícia, pois a nossa pretensão
de casar, no máximo em dois anos, terá de ser adiada.
Seremos transferidos para a Vila Militar, onde iniciaremos treinamento de
adaptação às normas, técnicas e armamentos norte-americanos, já que o modelo
adotado pelo Brasil, até agora, era o francês.
Em uma manhã chuvosa, junto com aqueles companheiros da minha companhia que
haviam sido selecionados, tomamos um bonde em frente ao quartel e rumamos para a
estação das barcas, no centro de Niterói. Lá, embarcamos em uma barca da Cantareira
com destino a Praça XV de Novembro, de onde nos dirigimos, em outro bonde, até a
estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, próxima do Ministério da Guerra.
A seguir, embarcamos em um trem que nos deixou na Vila Militar, no subúrbio de
Deodoro e dali nos dirigimos, marchando, para o Regimento Escola de Infantaria, onde
ficamos alojados.
O novo quartel é imenso e bem instalado. A Vila Militar possui inúmeros quartéis
situados em uma área imensa. Uma grande avenida arborizada separa os vários
quartéis e inicia-se na estação da estrada de ferro, de onde nos dirigimos para nosso
quartel.
36
1944
37
Diário escrito no Regimento Escola de Infantaria, na Vila Militar. Deodoro.RJ.
Segui para a Vila Militar junto com meus companheiros, para re-completar um
Regimento de Infantaria integrante da Força Expedicionária Brasileira.
Iniciamos, a partir daí, intenso treinamento sobre técnicas de patrulha, embarque e
desembarque de navios através de escadas de corda, progressão no terreno, construção
de abrigos e trincheiras, manuseio e emprego das armas de infantaria norteamericanas, rastejo sob fogo real, etc.
Nossos exercícios são realizados no Campo de Gericinó e no Morro do Capistrano,
na Vila Militar.
A partir de determinada data, as saídas foram suspensas e passamos a fazer
deslocamentos simulados, como se fossemos embarcar naquele dia. Diziam que aquilo
era para enganar possíveis agentes alemães (denominados de Quinta Coluna), que
poderiam informar aos submarinos inimigos a data de nossa partida por mar.
Finalmente o grande dia, tão esperado, chegou e o nosso deslocamento, hoje, será
verdadeiro.
38
Carta escrita no Regimento Escola de Infantaria, na Vila Militar. Deodoro.RJ.
“Querida Letícia, há vários dias estamos incomunicáveis no quartel. Passamos os dias
em
treinamentos
estafantes,
preparando-nos
para
as
eventualidades
que
encontraremos no ‘front’ europeu. Todos nós levamos muito a sério estes treinamentos,
pois sabemos que deles poderá depender a nossa sobrevivência.
Sinto muito a sua falta e, um dia desses, após o jantar, sentei-me em meu beliche e
escrevi um verso para você. Lamento não ser um poeta como Machado de Assis para
poder perpetuá-la em versos, como ele fez com a esposa Carolina. Entretanto, saiba
que você estará para sempre em meu coração. Ao verso, dei o nome de A Flecha
Mágica e pretendo mantê-lo sempre comigo, junto a sua foto, aonde quer que o destino
me leve nesta campanha na Itália. Você o encontrará em uma folha anexa a esta carta.
Ao lê-lo, lembre-se de que, embora flechado por Cupido, não sou um poeta e,
portanto, não consigo expressar da forma mais adequada tudo aquilo que de belo
imagino.
Aceite um beijo carinhoso, e até breve”.
39
A FLEXA MÁGICA
Ledo engano, caro amigo sonhador,
Esperar achar abrigo em algum lugar do mundo,
Tão logo Cupido lhe atire a flecha mágica do amor.
Isto só fará aumentar ainda mais o seu desejo,
Como aconteceu comigo, em um segundo,
Impelindo-me, quase louco por um beijo,
Aos pés daquela a quem me destinou o Criador.
40
Diário escrito em Tenuta di San Rossore, Itália.
Viajei para a Itália no segundo escalão. Nossa saída deu-se em vinte e dois de
setembro de 1944, a bordo do navio transporte americano General Mann.
No cais do porto, esperando a partida dos navios, ouvíamos pelos alto-falantes a
‘Canção do Expedicionário’, marcha de Spartaco Rossi e Guilherme de Almeida. A
seguir tocou ‘Atire a primeira pedra’, do carnaval deste ano.
Neste dia conheci uma bebida nova que era distribuída, à vontade, aos nossos
soldados. Chamava-se Coca Cola e tinha um gosto estranho.
Quando o navio partiu, iniciaram-se os acordes de ‘Dos meus braços não sairás’, de
Roberto Roberti. Logo que ouvi as primeiras notas daquela canção, não me contive e
meus olhos ficaram marejados de lágrimas. Lembrei-me, na ocasião, de uma conversa
que tivera com Letícia no ano anterior, em Niterói, quando ela demonstrou receio de
que eu fosse para a guerra. Naquela oportunidade, recordava-me no convés do navio
com lágrimas nos olhos, beijando-lhe amorosamente a face e apertando-a entre os
braços, afirmara:- Não tenha medo que dos meus braços não sairás!
O navio foi comboiado pelos cruzadores Rio Grande do Sul, do Brasil, e Memphis,
dos Estados Unidos, além dos contratorpedeiros Trumpeter e Cannon, também
americanos.
Nosso escalão é comandado pelo General Oswaldo Cordeiro de Farias e compõe-se
de 5.133 homens.
O navio é muito limpo e bem organizado. Durante a viagem foram feitos vários
exercícios de salvamento, de ataque de submarinos, de ataque aéreo, etc.
41
A comida é de boa qualidade e em abundância. Temos duas refeições ao dia e,
estando bem alimentados, estamos todos animados com relação ao futuro. O banho,
entretanto, é com água salgada, deixando no corpo uma sensação de sujeira.
Folheando o Jornal do Brasil, a bordo, soube que o escalão da FEB que nos
antecedera, enfrentando intenso fogo de artilharia inimiga, e sem perder um só
combatente, tomou Camaiore, situada na zona dos Apeninos. Soube também, que o
ministro da guerra, o general Gaspar Dutra, havia partido, na véspera, de avião, com
destino à Europa em viagem de inspeção à FEB, operando no ‘front’ italiano.
No Cine Pathé passava o filme ‘Por quem os sinos dobram’. No Cine República, o
filme ‘Tarzan, o vingador’. No Teatro Ginástico a peça ‘Bodas de Sangue’, com
Dulcina e Odilon. No João Caetano as peças ‘As lavadeiras’ e ‘Toca pro pau’, esta com
Oscarito e Beatriz Costa.
Embora tivesse partido há apenas poucas horas, já começava a sentir uma saudade
imensa do meu país e das pessoas queridas que deixara para trás, fato este que me
provocava um nó apertado na garganta.
Meu animo começou a decair logo que desembarquei no Porto de Nápoles, a seis de
outubro de 1944.
O porto está todo destruído, navios emborcados ou afundados e apenas com as
chaminés aparecendo à flor da água.
Desembarcando, fomos cercados por uma multidão de habitantes locais, famintos.
Desesperados pediam qualquer coisa que tivéssemos. Infelizmente, não dispúnhamos de
nada para minorar o sofrimento daquelas pessoas, já que carregávamos conosco
apenas o saco A.
De Nápoles, nos dirigimos para o porto de Livorno, em embarcações de
desembarque americanas denominadas LCI.
42
Eram aproximadamente cinqüenta embarcações, deslocando-se próximas uma das
outras e com velocidade, em um mar bastante agitado. As ondas que venciam eram
enormes e a grande maioria de nós começou a enjoar. Em breve o chão da embarcação
e os uniformes estavam todos vomitados.
Durante a travessia pensava em quantas vezes a Itália já havia sido assediada, tanto
por povos mais desenvolvidos quanto por povos bárbaros. Em todas essas ocasiões
soubera sair-se bem. Torcia para que suas obras de arquitetura e de arte pudessem ser
preservadas da destruição, em prol das gerações seguintes; já que o poder de
destruição dos exércitos atuais é, milhares de vezes, maior que o dos exércitos daquele
passado distante.
Em Livorno recebemos uniformes americanos, pois passamos a integrar o IV Corpo,
do Quinto Exército dos Estados Unidos (este sob o comando do General Mark Clark)
que, além da Divisão de Infantaria Expedicionária Brasileira, é constituído por: uma
Divisão Blindada Norte-Americana, uma Divisão Sul-Africana e outra Divisão Inglesa;
bem como da Décima Divisão de Montanha Norte-Americana.
A nossa divisão é uma das 20 divisões aliadas presentes no ‘front’ italiano
Comparando a qualidade do fardamento americano que recebemos, com a do nosso,
sentimos que se esta guerra depender da qualidade dos uniformes já está ganha.
De Livorno seguimos de caminhão para um acampamento em Tenuta di San
Rossore, onde recebemos o armamento que utilizaríamos.
Recebi um fuzil semi-automático Garand com capacidade de oito tiros, em calibre
30-06. Granadas e outros petrechos seriam recebidos na linha de frente, antes das
missões.
43
Carta escrita em Tenuta di San Rossore. Itália.
“Pai, finalmente, cheguei à Itália. O estado de devastação que vejo por toda parte e a
miséria humana com que me defronto diariamente, são inimagináveis para quem vive
aí no Brasil. As famílias se desagregam todos os dias. Mães são separadas de filhos e
pais vendem as filhas para que a família sobreviva. Contingentes enormes de seres
humanos mendigam pelas ruas, não medindo as conseqüências dos seus atos, no afã de
obterem alimentos, agasalho e dinheiro.
O frio também é impossível de ser imaginado no Brasil. Se não houvéssemos
recebido uniformes e agasalhos norte-americanos, sem dúvida alguma, já teríamos
morrido de frio, pois os nossos são de péssima qualidade e não protegem contra as
temperaturas daqui.
A cor dos nossos uniformes brasileiros é muito parecida com a dos alemães. Quando
chegamos a Nápoles, muitos italianos pensavam que fôssemos prisioneiros alemães.
Ainda não conhecemos ao inimigo que viemos enfrentar; porém, sem agasalhos
adequados, apenas o frio já seria suficiente para nos dizimar, tal a intensidade com que
tem nos assolado, acostumados que estamos com sol durante o ano todo.
Ao embarcar para cá, mamãe não pode estar presente ao cais para nossas
despedidas por se encontrar enferma, segundo você me relatou. Como está seu estado
agora? Conte-me, também, o que você achou de Letícia? Não é a mulher mais bonita
que já viu, depois de mamãe, é claro.
Ainda não posso relatar nada sobre a guerra, em si, pois não participei de nenhum
contato com o inimigo. Estou bem disposto e procurarei sempre me cuidar para poder
voltar ao convívio de vocês e aos braços de Letícia. Sinto saudades de vocês e também
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do sol que fazia ai, do calor, da comida, da calma, da conversa despreocupada, da
ausência de maldade e da inocência das pessoas.
Embora tenha acabado de chegar, sinto uma falta imensa de estar próximo de vocês.
Não imagino quanto tempo irá durar esta guerra, mas torço para que não dure muito.
Tenho grandes planos para o futuro, ao lado de vocês e de Letícia, e pretendo logo
poder colocá-los em prática. Está guerra não pode demorar muito.
Um beijo para mamãe e aceite um forte abraço do filho que sempre os amará”.
45
Diário escrito em Monte Castelo, Itália
Segundo nos informaram a frente em que atuaremos tem uma extensão de cerca de
dez quilômetros e localiza-se na região dos Montes Apeninos. A FEB está combatendo
contra nove divisões alemãs e três divisões italianas.
Nosso Quartel General estará situado em Porreta-Terme, localizada próximo da
cidade de Pistoia e situada no vale de um pequeno rio chamado Reno. A área é cercada
por montanhas sob controle alemão e tem um perímetro de aproximadamente quinze
quilômetros.
As posições alemãs são bastante privilegiadas, submetendo-nos a uma constante
vigilância e dificultando qualquer movimentação da nossa parte. O rigoroso inverno, o
frio intenso e as chuvas torrenciais, prejudicam bastante nossas tropas. As estradas
esburacadas e a lama impedem o deslocamento de viaturas e da artilharia.
As forças Alemãs que defendem Monte Castelo, segundo soubemos, totalizam
aproximadamente 9.000 homens e constituem a força mais combativa de toda a frente
Apenina.
Ficamos sabendo, também, sobre o primeiro contato de nossas tropas com o inimigo,
em meados de setembro, no vale do rio Serchio, ao norte da cidade de Lucca. As
primeiras vitórias ocorreram, no mesmo mês, com a tomada de Massarosa, Camaiore e
Monte Prano, onde se defrontaram com a Décima Sexta Divisão SS Alemã.
Todavia, em outubro, na região de Barga, nossa Força Expedicionária sofreu seus
primeiros reveses.
O comandante do meu pelotão é um segundo-tenente, que morava na Tijuca antes
de vir para a Itália. Ele também cursava direito ao sair do Brasil, porém, na Faculdade
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Nacional, e gosta muito de conversar comigo, pois, considera-me um intelectual
perdido no meio desta guerra.
Um dia, à noite, sentados no que restava da varanda de uma residência abandonada
em razão de haver sido destruída por um impacto de artilharia, conversávamos sobre
aspectos e dificuldades da profissão de advogado.
Perguntou-me se achava que o advogado deveria defender uma pessoa
verdadeiramente culpada. Respondi-lhe que pensava não ser função do advogado fazer
justiça, mas que esta função era, tão somente, da autoridade judicial. Aleguei que o
individuo pode ser verdadeiramente culpado e ter suas razões, e que estas serão
argüidas e defendidas pelo advogado, cabendo ao juiz analisar se são razões válidas ou
não. Acrescentei que existem advogados que se gabam de nunca haver perdido uma
causa e a explicação que encontro para o fato é que, simplesmente, defenderam apenas
réus comprovadamente inocentes.
Falamos também sobre a sociedade e sobre o paradoxo com que o advogado se
defronta, em tempos de paz e em tempos de guerra. Matar alguém que não nos tenha
feito nada, em tempos de paz, é crime qualificado que pode conter agravantes. Em
tempos de guerra, pode ser ato de heroísmo digno de medalha e de reconhecimento por
parte dos superiores e da sociedade. Roubar do inimigo, seja lá o que for, é também
meritório. Grande parte das matanças, realizadas durante a guerra, são premeditadas
pelos chefes militares, sem que a premeditação constitua agravante e sem que as
matanças constituam crime.
Durante estes períodos em que conversávamos, despreocupados, sobre valores
morais da sociedade, parecíamos dois estudantes sentados em um bar próximo da
faculdade, em Niterói, tomando cerveja e filosofando sobre a vida, sobre as coisas e
sobre as instituições.
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Como a vida poderia ser diferente, se os homens não almejassem o que pertence a
outros homens, se a inveja e a ambição não dominassem o dia a dia daqueles que detém
o poder no mundo.
Milhões de seres humanos perderam suas vidas, ao longo da história, simplesmente
a serviço de causas cujas origens, motivações e conseqüências desconheciam
inteiramente.
Como poderia ser diferente a história do nosso futuro, se todos nós fizéssemos parte
de uma única nação, com apenas uma única língua, uma só moeda e um só governante.
Todos trabalhando pelo progresso do planeta, convivendo em harmonia, sem disputas
territoriais, raciais, religiosas, sociais, militares e financeiras.
A única restrição que víamos, numa situação como esta é que, caso fosse possível a
humanidade viver desta forma, a profissão de advogado talvez não fosse mais
necessária.
Em meados de novembro, nos deslocamos para Granaglione, aonde chegamos sob
uma forte chuva.
O terreno estava todo enlameado e os alemães nos mantiveram sob fogo de
morteiros durante muito tempo. Daquele local, nos dirigimos para Guanella, que ficava
em frente ao Monte Castelo, forte reduto alemão.
Monte Castelo situa-se a aproximadamente 62 quilômetros à sudeste de Bolonha, a
977 metros de altitude. As temperaturas costumam ser extremamente baixas.
Em uma manha com o céu claro e sem nuvens, pela primeira vez avistei uma
aeronave alemã. Tratava-se de um Messerschmitt BF 109, segundo disseram na
ocasião, que sobrevoou a área de grande altura, certamente tirando fotografias de
nossas tropas. Ao ser perseguido por alguns P-47 do Grupo de Caça Brasileiro, afastouse a grande velocidade.
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Na noite de 28 para 29 de novembro, nossa artilharia preparou o terreno para a
invasão do monte, batendo as posições inimigas com seus obuses de 105 e de 155 mm.
Nos dias 24 e 25 de novembro, um destacamento norte-americano (Task-Force 45),
junto com um batalhão de infantaria e um esquadrão de reconhecimento, brasileiros,
haviam infrutiferamente tentado tomar a posição alemã. No dia 25 tudo indicava que a
operação teria êxito, já que alguns soldados norte-americanos conseguiram alcançar o
cume de Monte Castelo, após conquistarem o Monte Belvedere, vizinho deste.
Os alemães pertencentes a 232 ª Divisão de Infantaria encarregada da defesa dos
montes Castelo e Della Torracia, entretanto, promoveram uma contra-ofensiva violenta
e conseguiram tomar de volta as posições perdidas, obrigando os brasileiros e os norteamericanos a abandonarem aquelas posições já conquistadas, a exceção do Monte
Belvedere.
No dia 29 de novembro às oito horas da manhã, tentamos, pela segunda vez,
dominar as defesas alemãs. Nesta nova ofensiva a formação do ataque seria efetuada
por três batalhões da 1ª DIE, sendo apoiada por três pelotões de tanques dos Estados
Unidos. Entretanto, na véspera, 28 de novembro, os alemães haviam efetuado um
contra-ataque contra o Monte Belvedere, onde estavam os americanos, deixando sem
defesa o flanco esquerdo. Este fato levou a que a 1ª DIE pensasse em adiar o ataque.
Entretanto, como as tropas já se encontravam em suas posições, o ataque foi mantido.
Assim, a nova tentativa teve início naquela manhã. O tempo estava muito ruim, com
chuva e céu encoberto, dificultando o apoio do Grupo de Caça Brasileiro e tornando
impraticável a participação dos tanques. Os combatentes alemães, pertencentes aos
1.043, 1.044 e 1.045 Regimentos de Infantaria, impediram o avanço das nossas tropas.
Muito bem aferrados ao terreno em suas casamatas no alto do morro, varriam nossas
tropas com o fogo de metralhadoras, fuzis e até mesmo de canhão 88.
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A quantidade de mortos e feridos foi grande naquele primeiro dia. Permanecemos
na tentativa durante três dias, sendo continuamente alvejados pelos alemães. Nossos
tiros, mesmo os de artilharia, nenhum efeito faziam sobre eles, já que estavam bem
protegidos em suas trincheiras e casamatas camufladas.
O terreno, que deveríamos percorrer até o cume do morro, era quase que
totalmente desabrigado, íngreme e escorregadio, deixando-nos bastante expostos aos
disparos inimigos.
Por várias vezes tive de socorrer companheiros feridos e retirar mortos da linha de
fogo.
Em determinados momentos, quando os disparos cessavam de ambos os lados, faziase um silêncio sepulcral, apenas cortado por um ou outro gemido de feridos. Nenhum
pio ou canto de pássaro, nenhum latido de cachorro, nenhum mugido de vaca. Parecia
que o universo todo havia parado de girar e, mudo, contemplava a imbecilidade
humana. Nestes momentos, ambos os lados aproveitavam para recolher seus mortos e
feridos, durante aquela trégua tácita entre ambos os exércitos.
No ar sentíamos o cheiro característico do odor da pólvora, misturado ao odor do
sangue e do suor. Creio que jamais me esquecerei deste cheiro, pois ele impregnou meu
corpo inteiro e também a minha alma.
Às vezes, penso que os soldados inimigos que estamos combatendo, certamente,
entre eles próprios, deverão ser pessoas com boas qualidades, amistosos e amáveis,
como nós, entre nós mesmos.
A situação de conflito entre nossos países, entretanto,
nos coloca na posição de antagonistas, sem que ao menos nos conheçamos. Talvez, em
outra situação, pudéssemos ser grandes amigos.
Na guerra o soldado com alguma experiência em combate, perde o medo da morte.
Não que, em razão disto, se arrisque desnecessàriamente ou se exponha de maneira
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temerária ao perigo, mas, de tanto conviver com ela passa apenas a respeitá-la e não
mais a temê-la.
Não podendo mais sustentar as posições já atingidas, fomos obrigados a recuar e
houve um retraimento geral.
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Carta escrita em Monte Castelo, Itália.
“Querida Letícia, desde que saí do Rio de Janeiro, tenho pensado muito em você.
Embora a vida de um simples soldado seja muito dura aqui onde estou, a sua
lembrança e a recordação dos momentos em que estivemos juntos, me conforta e anima
para enfrentar tudo aquilo por que ainda terei que passar, antes de poder retornar
para junto de você.
Às vezes, por volta do meio-dia, quando o sol está a pino, fico imaginando o que
você estará fazendo naquele momento; pois sei que aí já amanheceu. Vejo-a tomando a
barca da Cantareira, junto com suas amigas do Instituto de Educação, desembarcando
na praça XV de Novembro e caminhando até o Tabuleiro da Baiana, para tomar o
bonde com destino a Praça da Bandeira ou a Tijuca.
Sei que sua formatura será neste final de ano, e sinto não poder estar presente para
desejar-lhe boa sorte na carreira de professora. Peço-lhe, entretanto, que converse
sempre com seus alunos alertando-os para a insensatez das guerras. Reconheço que
será apenas uma gota de água no oceano, mas o oceano é feito de gotas. Um dia, quem
sabe, as gotas terão a consciência de que são elas que formam o oceano.
Outras vezes, fico me lembrando de nossos passeios pelo bairro de Icaraí e suas
adjacências. Vejo-me de mãos dadas com você diante da Basílica de Nossa Senhora
Auxiliadora, onde pretendíamos nos casar ao som da antiga melodia ‘Salve Regina’,
que ouvíamos sendo tocada pelos quatro grandes sinos da igreja, durante aquelas
tardes de verão em que por ali passeávamos.
Um dia, após retornar de uma patrulha, avistei pousada em um galho próximo uma
ave amarela, parecida com um Bem-te-vi que já havia visto no parapeito de uma janela
do alojamento do Terceiro Regimento. Não poderia ser o mesmo, pois estávamos a
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milhares de quilômetros de distância de São Gonçalo. Não se espantou com a minha
presença e ficou me olhando, fixamente, como se desejasse, também, dizer-me algo.
Naquela ocasião tive um mau pressentimento, porém, com a chegada dos demais
companheiros ela acabou voando em direção a um vale que se estendia bem a nossa
frente.
O comandante do meu pelotão, fiquei sabendo, estudava Direito ai no Rio antes de
vir para a guerra. Quando nos formarmos pretendemos montar um escritório de
advocacia para trabalharmos juntos.
Gostaria de possuir o dom de escrever, para poder dizer-lhe, em novos versos ou em
prosa, tudo aquilo que sinto por você. Falar da saudade que sinto do seu perfume, do
toque cálido da sua mão e dos seus lábios, da maciez de seus cabelos.
Por vezes sinto, insuportavelmente, sua ausência e, se não estivesse a milhares de
quilômetros de Niterói, certamente desertaria para ir correndo ao seu encontro, a fim
de estreitá-la em meus braços e sufocá-la de beijos carinhosos.
Com certeza nenhum de meus companheiros sente por suas mulheres, noivas ou
namoradas, alguma coisa parecida como a que sinto por você.
Às vezes fico pensando que se houvesse nascido alguns anos antes, ou depois,
certamente não teria sido convocado para esta guerra e poderíamos, talvez, já estar
casados e residindo em algum bonito lugar deste nosso vasto país.
E o poema que lhe enviei, gostou dele? Aqui, infelizmente, não disponho de
tranqüilidade para pensar em fazer um outro.
Espero que este conflito acabe logo e que eu possa voltar para o seu lado, entretanto,
se algo de mal me suceder, quero que prometa prosseguir com a carreira de professora
e com sua vida, ao lado de alguma outra pessoa que, tenho certeza, você saberá
encontrar e que irá fazê-la muito feliz.
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Nesta eventualidade quero que saiba que, esteja eu onde estiver, estarei sempre
torcendo por sua felicidade.
Você foi a minha primeira e única namorada e, por isto, jamais irei esquecê-la e aos
momentos felizes que passamos juntos, onde quer que me encontre.
Tenho tomado cuidado, me alimentado bem e aguardo ansioso o término desta
guerra para estar novamente com você.
Tenho planos de ter muitos filhos e, como ambos trabalharemos fora, penso em
levar meus pais para perto de nós, de modo a poder contar com a ajuda e supervisão
deles nos cuidados com as crianças. Quando a situação melhorar, contrataremos
empregadas para cuidar de nossos filhos.
Sua avó também poderá morar conosco, caso queira. Poderíamos nos reunir todos
em uma imensa casa, em algum bairro tranqüilo, onde viveríamos pacatamente a nossa
vida em família. Sonho com isto todos os dias.
Envio um beijo para sua avó e, para você, um abraço apertado e um beijo
apaixonado”.
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Diário escrito em Monte Castelo, Itália.
No dia 05 de dezembro, o General Mascarenhas de Morais havia recebido ordens do
IV Corpo do Exército dos Estados Unidos de capturar e manter os montes Della
Torracia e Belvedere.
No dia 12 de dezembro, sob o comando do General Zenóbio da Costa, fizemos uma
nova tentativa de chegar ao cume, porém, como nas demais, de maneira infrutífera em
razão do pesado fogo de artilharia alemã. Chovia intensamente e uma forte neblina
restringia a visibilidade. Disparos de artilharia antecipados alertaram o inimigo, que
passou a efetuar violenta barragem de artilharia e de morteiros.
Por volta das 13 horas o ataque foi suspenso, em razão de termos os dois flancos
expostos e, por volta das 15 horas, o General Zenóbio passou o comando da frente para
o coronel Caiado de Castro e nossas tropas retraíram para a linha de partida, embora
tivéssemos chegado a conquistar Zolfo, a cerca de 300 metros do cimo, e atingido
Abetaia.
Tivemos neste dia, também, grandes perdas em mortos e feridos. Cerca de 150
baixas, com 20 mortos. De tanto recolher companheiros mortos e feridos, meu
uniforme está todo sujo de sangue.
Creio que só conseguiremos atingir o topo do monte se antes, efetivamente,
tomarmos o Monte Belvedere, mais elevado, que cobre nosso flanco esquerdo.
Após o frustrado ataque do dia 12 e com a chegada forte do inverno, com
temperaturas beirando aos vinte graus centígrados negativos, a frente estabilizou-se e
tivemos alguns dias de descanso.
Durante este período, fiquei conhecendo um oficial norte-americano cuja mãe era
brasileira e que falava português, em razão de haver passado a infância no interior do
55
Estado de São Paulo. Viera da cidade americana de Detroit para o front da Itália.
Disse-me que seu país produzia, naquele esforço de guerra, uma aeronave por dia e um
navio por semana.
A mim, que vim de um país que não produzia praticamente nada, além de produtos
agrícolas, aquelas informações pareciam soar como fanfarronice do americano.
Olhando em volta, porém, constatei que tanto os caminhões e jipes que usávamos,
quanto às armas e munições que carregávamos, a comida que comíamos, a roupa e o
calçado que vestíamos, os medicamentos que tomávamos, os canhões, os aviões , os
navios, em suma, tudo aquilo que utilizávamos era fabricado nos Estados Unidos.
Afirmou, ainda, o oficial, que toda a população norte-americana, abrangendo homens e
mulheres, encontrava trabalho nas indústrias e na agricultura, não existindo
desempregados.
Considerando as informações ouvidas do oficial, e o fato de que os parques
industriais europeu, russo e japonês, encontravam-se praticamente destruídos, em
razão dos bombardeios aéreos e dos disparos de artilharia, bem como da guerra ter
sido travada em seus territórios, imagino que os Estados Unidos, certamente,
despontarão como a única potência mundial após o termino deste conflito.
Os norte-americanos são muito profissionais. Para todas as eventualidades têm uma
norma de procedimento, já testada, para fazer face àquela situação; diferentemente de
nós, que improvisamos durante todo o tempo. Entretanto, nosso improviso por vezes dá
certo e o procedimento que adotamos, na ocasião, é até melhor que o deles. Noto que
existe um acentuado racismo entre brancos e negros nas tropas americanas. Ouvi falar
que existem divisões inteiras formadas por militares negros e por descendentes de
japoneses, a 92ª e a 442ª, respectivamente, comandadas por oficiais brancos, porém,
nunca vi nenhuma das duas em ação. A altura dos militares americanos é, visivelmente,
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maior do que a dos nossos militares. A dos militares alemães também é maior do que a
nossa, a qual se assemelha mais com a dos italianos.
Pela observação que tenho feito do comportamento do soldado alemão, percebo que
é muito profissional e aguerrido.
Aferra-se ao terreno com disposição, só deixando uma posição em último caso.
Aqueles feitos prisioneiros comportam-se, perante nossos oficiais e subalternos, como
se fossem nossos soldados e não nossos prisioneiros. Creio que sabem, entretanto, que o
fim da guerra está próximo e que eles a perderam.
Os italianos não gostam dos soldados alemães, pois estes os tratam com desdém,
muito embora houvessem sido aliados até pouco tempo atrás, antes de a Itália declarar
guerra à Alemanha. Já pelos soldados brasileiros têm simpatia e afinidade, talvez
porque um grande contingente de italianos tenha emigrado para o Brasil, no passado, e
nossas origens, de um modo geral, sejam latinas.
A resistência italiana, formada pelos ‘partisanos’ ou ‘partigiani’ consiste em um
movimento armado de oposição ao fascismo e a ocupação da Itália pela Alemanha.
Baseia-se em uma estrutura de guerrilhas e surgiu quando a Itália foi invadida pela
Alemanha, embora alguns acreditem que já existia desde 1922, quando teve inicio a
ascensão do fascismo. Da resistência italiana fazem parte tanto ‘partisanos’ que são
católicos, quanto comunistas, liberais, socialistas, monarquistas e anarquistas, dentre
outros.
Os ‘partisanos’ odeiam os alemães, sobretudo pelo que estes fizeram as suas
famílias.
Cerca de vinte deles colaboram com nossas tropas, como guias, nas regiões
montanhosas de Belvedere, Torre de Nerone, Monte Castelo e outras.
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Os ‘partisanos’ são muito violentos com os prisioneiros alemães que fazem.
Geralmente os matam, após torturá-los. Muitos deles tiveram as mães, esposas e filhas
abusadas pelos soldados.
Utilizam o armamento que caí em suas mãos, quer seja de origem alemã, italiana ou
norte-americana.
Por conhecerem muito bem a região, são mestres na realização de emboscadas e
exímios atiradores.
Creio que nos ajudam não porque gostem de nós, porém, como uma maneira de,
mais rapidamente, poderem expulsar aqueles invasores de seu território.
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Carta escrita em Monte Castelo, Itália.
“Pai, nossa situação, agora, é bastante tranqüila. O inverno ainda tem fustigado
nossas tropas, porém, já estamos mais acostumados e sabemos como enfrentá-lo. Já
tivemos alguns contatos com o inimigo a que viemos enfrentar; porém, nada de muito
importante.
A paisagem daqui é muito bonita. Para mim que nunca havia visto neve, vê-la cair
de dia ou de noite é um espetáculo magnífico.
Por vezes quando a artilharia inimiga começa a bombardear nossas posições e nos
atiramos ao solo, sentimos a neve deslocada pelas explosões cair com força sobre nossas
costas, como se nos cumprimentassem por havermos escapado vivos daquela vez.
Os civis italianos com os quais tenho tido contato, são muito cordatos e educados,
embora extremamente pobres. Eu diria até que, embora sejamos invasores de sua
terra, gostam da nossa presença, pois percebem que os ajudamos como amigos e não
como conquistadores.
Os alemães, com freqüência, requisitam todos os alimentos disponíveis encontrados
com os italianos. Isto, também, faz com que estes não gostem deles. Todavia, para nós,
sempre oferecem um pouco de vinho ou de ‘grappa’, aguardente produzida em suas
propriedades.
Quando a temperatura é muito baixa, o álcool parece não fazer nenhum mal ao
organismo. Pelo contrário, parece que o corpo sente necessidade dele para esquentarse.
Alguns povoados são muito antigos, com casas de pedra e ruas estreitas. Sentimos o
peso dos anos naquelas construções.
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Às vezes, quando nos deslocamos pelos campos, sinto-me como um legionário das
hostes romanas, atravessando o país para combater os inimigos do império.
A paisagem dos campos e dos bosques é extremamente bela e penso que a estamos
destruindo com esta guerra, através de nossas bombas, morteiros e obuses. Em muitos
lugares as crateras das explosões são tantas que, em razão da chuva que cai com
freqüência, formam-se inúmeros lagos que congelam com as baixas temperaturas do
inverno.
Tenho me cuidado e alimentado bem. Não se preocupem comigo, pois aprendi a me
cuidar. Como vai mamãe? Seu estado de saúde melhorou? Espero que se recupere logo,
pois esta guerra não deve demorar muito e em breve estarei aí. Logo que chegue ao
Brasil, pretendo levá-los a Niterói para que fiquem conhecendo Letícia e a avó dela.
Tenho certeza de que gostarão muito delas, pois são pessoas tão simples quanto nós.
Por ocasião desta visita, pretendo tratar das providências para o nosso casamento,
que deverá ser em seguida. Fiquei tanto tempo longe de Letícia que não pretendo mais
abandoná-la, por um segundo mais, tão logo chegue aí.
Aqui distante, passei a entender o quanto é importante na vida do ser humano o
contato familiar. Como é importante estar entre pessoas que nos amam e a quem nós
amamos, em um local tranqüilo, sem violência e sem maldade, onde todos se querem e
apenas buscam a felicidade.
Imagino que este seja o sonho de todo ser humano normal, porém, poucos
conseguem atingi-lo durante sua existência. Fico imaginando que este talvez não tenha
sido o projeto do Criador para conosco, simples mortais. Em razão do nosso orgulho e
egoísmo desmedidos, julgamos que o mundo foi feito para nós e acreditamos que a ele
viemos apenas para viver e sermos felizes. Entretanto, como tão poucos conseguem
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atingir este objetivo, creio que nossa análise sobre as razões da criação do Universo está
totalmente errada.
Envio um beijo para mamãe e aceite um forte abraço do filho que os ama”.
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1945
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Diário escrito nas cercanias de Abetaia, Itália.
Minha missão, a partir do início de janeiro, passou a ser a de participar de
patrulhas de reconhecimento e de ataque em uma frente de quase 18 quilômetros que
se estende pela região de Belvedere a Castelnuovo.
As patrulhas, normalmente, são feitas à noite; porém, também participei de
patrulhas pela manhã.
Em uma destas, ao me aproximar rastejando de uma pequena construção em ruínas,
deparei-me com quatro soldados alemães que preparavam suas refeições em um
fogareiro improvisado. Eles tinham deixado suas armas encostadas em um tronco e
pareciam despreocupados. Ao me aproximar mais vi que haviam percebido minha
presença e corriam para apanhá-las. Se eu estivesse portando um fuzil de ferrolho
Springfield, como muitos de nós carregávamos naquela ocasião, igual ao Mauser 98 K
usado por eles, também de ferrolho, talvez tivesse morrido naquela manhã. Como
portava um Garand, semi-automático, fuzilei os quatro logo que alcançaram suas
armas. Ao me aproximar vi que três deles já estavam mortos e o quarto agonizava.
Recolhi as armas e munições e vistoriei a construção em busca de mapas, documentos
ou qualquer outra coisa de interesse.
Ao voltar para fora constatei que o quarto já havia morrido.
Embora fossem as primeiras pessoas que eu matara, não senti naquela ocasião nada
de especial, como, por exemplo, remorso ou compaixão. Senti-me, apenas, bastante
eufórico, como se fosse um ser quase imortal.
O fato de saber que eu fora capaz de abater aqueles quatro alemães, certamente
soldados antigos e com experiência naquela guerra, trouxe-me uma calma e uma
alegria que se mantiveram comigo durante muito tempo.
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Em uma das patrulhas em que participei, durante a noite, passamos por uma
casamata que nos pareceu vazia e seguimos em frente. Pouco depois, foram lançados
diversos artefatos (very light) que iluminaram todo o campo a nossa volta. Da casamata
que havíamos ultrapassado partiram rajadas de metralhadoras MG 42 e disparos de
fuzis em nossa direção.
O procedimento padrão, neste caso, era ficar totalmente imóvel para não ser
identificado pelo inimigo, que nos confundiria com um tronco de árvore ou outro
qualquer obstáculo do terreno. Porém, dada a grande quantidade de ‘very lights’
lançada, a noite ficou clara como o dia. Os que ficaram imóveis foram abatidos. Lanceime dentro de um córrego, cujas águas geladas me incomodaram bastante, onde
permaneci até que as luzes se apagaram e a noite escura, novamente, tomou conta do
terreno.
Na imobilidade, percebi que dois outros companheiros também se encontravam
dentro do córrego. Fazendo contato silencioso entre nós, resolvemos retornar até a
casamata, visando, talvez, surpreender seus ocupantes. Rastejando devagar por sobre o
leito do pequeno riacho, saímos em um ponto mais abaixo. Dali, com cuidado, seguimos
na direção da casamata.
Talvez pensando que haviam abatido a todos os membros da nossa patrulha, os
alemães que a guarneciam voltaram para o interior de seu abrigo, dada à intensidade
do frio que fazia naquela ocasião.
As casamatas daquele tipo, incrustadas nas pedras, possuíam uma sala onde havia
beliches e vigias para as armas. Tinham, ademais, uma sala subterrânea com a entrada
camuflada por feno ou capim onde se escondiam, principalmente nos dias mais frios.
Olhando de fora, parecia que a casamata estava totalmente vazia.
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Como, agora, sabíamos que eles estavam ali, entocados, entramos devagar, cada um
com uma granada MK II na mão, e fomos até a entrada da sala subterrânea.
Encontramos a porta do alçapão, que abrimos apenas o suficiente para atirar as três
granadas.
A explosão que se seguiu foi enorme, pois pareceu que as três granadas explodiram
ao mesmo tempo. Nós, que nos encontrávamos no piso superior, fomos sacudidos pela
explosão. Como a noite estava muito escura e não tivéssemos nenhuma luz para
iluminar o local, fomos embora sem saber quantos soldados inimigos havíamos matado
naquela ocasião.
Retornando ao terreno onde havíamos sido emboscados, encontramos dois de
nossos companheiros feridos e os demais mortos, inclusive o sargento comandante da
patrulha.
Recolhemos as ‘Dog Tags’ (placas de identificação) dos mortos e, com os feridos nos
ombros, voltamos para nossas posições.
Imobilizados pelo frio e pela neve, passamos vários dias no acampamento. Neste
período, um sargento do nosso pelotão, cujo irmão é piloto do Grupo de Caça formado
por aviadores brasileiros que operam em Tarquinia, contou-me sobre a vida do irmão,
de quem sente muito orgulho, e sobre seu trabalho como piloto neste grupo, que faz
parte do 350º Grupo de Caça da Força Aérea Norte-Americana.
Disse que seu irmão serve na Base Aérea de Tarquínia, a pouco mais de dois
quilômetros da cidade de Tarquínia, que está localizada a 150 quilômetros ao norte de
Roma. Pilota uma aeronave P-47, em operações de bombardeio picado e ataque à
tropas e equipamentos terrestres. O motor deste avião, disse ele, possui 2.300 HP, com
18 cilindros que formam uma verdadeira couraça protetora do piloto. A estrutura do
avião era muito forte, segundo dizia. Vários companheiros do irmão já haviam passado
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por milagrosos retornos do campo de batalha, em que qualquer outro aparelho teria
sido destruído.
Citou o caso de um deles que, em um mergulho de baixa altitude, quando
metralhava uma instalação industrial, sem querer havia colidido com sua asa direita
em uma chaminé que lhe cortou mais de metro e meio da asa. Assim mesmo, retornou à
base e fez o pouso normalmente.
Outro companheiro do irmão foi acertado no motor, tendo dois dos cilindros voado
para espaço com a explosão, deixando, em seguida, os pistões trabalhando ao ar livre.
O incêndio que se seguiu, em razão do óleo derramado, foi contornado e o avião
continuou voando por mais meia hora, pousando em um campo de emergência.
O Grupo de Caça dos brasileiros possuía quatro esquadrilhas: A (vermelha), B
(amarela), C (azul) e D (verde). Cada esquadrilha possuía seis aeronaves (1,2,3,4,5,6).
Na fuselagem de cada avião (notadamente no nariz) era pintada uma letra e um
número, indicando qual era aquela aeronave e de qual esquadrilha. A aeronave de
número 1 era a do comandante, a número 2 do subcomandante, e os demais números
seriam dos pilotos, obedecendo à ordem de antiguidade.
Ele tinha receio que seu irmão pudesse ser abatido e feito prisioneiro dos alemães,
que removiam os prisioneiros para campos de concentração na Alemanha, onde estes
sofriam com o clima, a falta de alimentos e medicamentos e aonde eram, além disto,
torturados.
Em nosso acampamento certo dia, tive a oportunidade de conversar com um
prisioneiro alemão, nascido no Brasil, em Santa Catarina.
Seu pai era funcionário diplomático da Alemanha e servira muitos anos em nosso
país. Tendo ele nascido em Santa Catarina, havia feito o preliminar e o curso primário
66
naquele Estado. Com o retorno dos seus pais para a Alemanha, terminara seus estudos
em Berlim e alistara-se no Exército Alemão.
Conhecendo nosso povo, falando nossa língua e tendo no Brasil nascido, era para ele
muito difícil lutar contra nós. Possuía exata compreensão sobre a situação da guerra
naquele momento, e achara melhor forçar sua captura por nossas tropas, para, quem
sabe, poder retornar um dia ao Brasil, ao invés ser feito prisioneiro pelos americanos,
vir a morrer ou talvez ser ferido, próximo do fim do conflito que antevia para breve.
Um colega dele, também prisioneiro, um dia conseguiu evadir-se do local onde era
mantido prisioneiro.
Passados alguns dias, seu corpo foi trazido por alguns ‘partisanos’ que colaboravam
conosco, que o haviam encontrado escondido em um bosque e o matado, ao tentar
reagir à captura.
Na região onde atuávamos, por vezes, éramos alvo dos tiros de franco-atiradores (ou
‘snipers’ como os denominavam os americanos). Visavam atingir principalmente os
oficiais mais graduados. Após as primeiras vitimas, os oficiais passaram a não mais
usar suas divisas durante os deslocamentos. Do nosso lado também utilizávamos estes
atiradores contra o inimigo.
Os fuzis, comumente utilizados pelos franco-atiradores, possuíam lunetas de grande
alcance. Os atiradores agiam sozinhos ou em duplas.
A arma mais utilizada pelos nossos era o fuzil Springfield em calibre 30.06. Os
alemães utilizavam o fuzil Mauzer 98-K e os italianos o fuzil Carcano.
Vários militares de ambas as partes perderam a vida vitimas dos disparos mortais
de franco-atiradores.
Em certa ocasião, após uma nevada em que ficamos imobilizados, como fazia um dia
bonito e claro, o céu estava azul e fazia sol, um companheiro levantou-se do seu abrigo
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e, caminhando com dificuldade sobre a neve que estava alta, dirigiu-se para um tronco
de arvore caído no terreno, onde pretendia sentar-se para apanhar um pouco de sol. Na
metade do trajeto, entre o abrigo e o tronco, foi atingido por um disparo certeiro na
cabeça. Ficou ali caído até o anoitecer, pois não podíamos retirá-lo de onde estava, já
que sempre que o tentávamos éramos alvo de novos disparos.
Para caçar um franco atirador, nada melhor que outro franco-atirador. Como são
atiradores de precisão, quase nunca erram o primeiro disparo. Ficam em sua posição
por dias seguidos, apenas aguardando que um alvo se aproxime ao alcance de sua
arma. Após o disparo, estão sempre mudando de posição para evitar serem
descobertos.
Em 19 de fevereiro, com o arrefecimento do inverno, o V Exército Norte Americano
determinou nova ofensiva para conquistar Monte Castelo. Esta ofensiva incluiria todas
as tropas aliadas, objetivando, após a tomada do monte, o deslocamento das tropas
para o Vale do Pó, até a fronteira com a França.
Em 21 de fevereiro de 1945, por volta das seis horas da manhã, iniciamos a quarta
tentativa de tomar Monte Castelo, através de uma operação denominada Encore (Uma
vez mais)
As tropas brasileiras, entretanto, seriam utilizadas para a conquista do Monte
Castelo e a expulsão dos alemães.
Na véspera, a 10º Divisão de Montanha norte-americana atacou e tomou o Monte
Belvedere e a região de Gorgolesco, cobrindo assim parte do flanco esquerdo de nossas
tropas.
Também na véspera, tivemos uma trágica noticia. Nosso capelão, capitão Antonio
Álvares da Silva, “Frei Orlando”, tinha sido vitima de um tiro acidental de um
‘partisano’ e havia falecido aos trinta e dois anos, quando se dirigia de Docce para
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Bombiana, a fim de levar assistência espiritual e religiosa aos soldados que
participariam do ataque.
Terminada uma reunião para tratar assuntos relativos à Capelania, Frei Orlando
deveria regressar à Riola, onde estava situado o Posto de Comando, porém, não
dispunha de viatura naquela ocasião. Decidiu ir a pé e, ao chegar a cerca de trezentos
metros de Bombiana, encontrou um capitão do seu batalhão, que lhe ofereceu uma
carona.
Depois de andarem alguns quilômetros o veículo, um jipe, passou por cima de uma
pedra e ficou preso. Os ocupantes da viatura desceram da mesma, inclusive um
‘partisano’ que ia junto. Este procurou remover a grande pedra sob o eixo traseiro com
a coronha do fuzil. A arma estava carregada e, com o movimento, disparou, atingindo,
em cheio, o coração do Frei Orlando que teve morte imediata.
O fato causou enorme tristeza entre nossas tropas, onde a quase totalidade era
formada por católicos.
Antes das missões perigosas, a maioria dos soldados religiosos procurava pedir
proteção e conforto aos seus deuses. No caso de perecerem, esperavam que a divindade
os tratasse com benevolência, em que pesem as mortes ou outras quaisquer atrocidades
que houvessem praticado.
O Batalhão Uzeda subia pela direita, o Batalhão Franklin pelo centro e o Batalhão
Sizeno Sarmento aguardava, na posição que alcançara a noite, o momento de juntar-se
aos outros.
Nossa subida foi precedida de maciço ataque de artilharia e de intenso bombardeio
por parte do 1º Grupo de Aviação de Caça, formado por oficiais aviadores brasileiros,
em seus P-47 ‘Thunderbolt’. Olhando através de binóculos os aviões em mergulho,
lembro-me dos números A-4 e B-2, pintados no nariz de dois deles. Na ocasião,
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imaginei que o irmão do nosso sargento poderia ser um daqueles pilotos que nos
ajudavam metralhando e bombardeando os alemães.
Esta tentativa, embora rechaçada com fúria pelos alemães, foi diferente das
anteriores, já que os inimigos entrincheirados no cume do morro agora sofriam ataques
também de americanos e brasileiros, que haviam se apoderado do Monte Belvedere e
do Pico Della Torracia que dominavam Monte Castelo.
Por volta das 17 horas a nossa artilharia bombardeou a cota 930, que representava o
cume do monte.
A montanha parecia arder como um vulcão em erupção, tamanha a quantidade de
explosivos lançada pela artilharia. Todavia, como as casamatas alemãs eram muito
bem construídas, aqueles impactos causavam pouco efeito no alto do morro.
Durante a subida meu pelotão foi duramente castigado pelas metralhadoras alemãs.
Vários companheiros ficaram caídos pelo caminho. Aos poucos, fui tentando ganhar
altura. Minha preocupação não era a de atirar, mas sim a de galgar o terreno
escorregadio do monte.
Perto das 18 horas, com o céu bastante escuro, consegui, finalmente, chegar ao topo.
A resistência alemã já havia diminuído bastante, com muitos inimigos em retirada.
Poucos ainda permaneciam entocados em suas magníficas defesas.
Na posição em que me encontrava, pude perceber o clarão que saia da boca de uma
metralhadora alemã, muito bem camuflada.
Dirigi-me, cautelosamente, por um ângulo que me ocultava e aproximei-me
devagar, com uma granada de mão. Já bem próximo, puxei o pino de segurança e
atirei-a pela seteira da casamata.
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A explosão que se seguiu atirou para fora alguma coisa que passou voando pela
seteira. Dando a volta, entrei pela parte de trás, aonde uma escada de madeira com
alguns degraus conduzia ao local da metralhadora.
No chão, deitados em posições estranhas, visualizei dois corpos, um deles sem a
cabeça. Vasculhando a casamata, deparei com algumas fotografias contendo a imagem
de mulheres e crianças, bem como algumas cartas em alemão. Recolhi-as, mais pela
sensação de que aquele material me aproximava da vida civil, onde o carinho e a
afetividade imperavam entre as pessoas. Não imaginava o que faria com aquelas coisas,
porém, não queria que permanecessem ali dentro, onde apenas a morte reinava.
Saindo daquele local encontrei a cabeça do soldado caída do lado de fora da casamata,
próxima da seteira.
Seguindo em frente, ao passar por Abetaia, onde paramos para descanso, pude ver
cerca de dezessete corpos congelados de soldados brasileiros, mortos durante a
tentativa frustrada de 12 de dezembro, em frente à casamata alemã que dominava
aquela região.
Os alemães, talvez antevendo que perderiam a posição de Monte Castelo,
conservaram-nos no local para que fossem resgatados por nós, quando por aqui
passássemos.
Na guerra, onde os indivíduos muitas vezes perdem sua condição racional e humana,
deparamo-nos com alguns episódios que nos emocionam e que parecem indicar que,
por baixo de toda aquela selvageria, uma pequena luz divina continua brilhando no
coração dos soldados.
Tais gestos parecem querer deixar bem claro que nós, os soldados, embora
combatamos e nos matemos uns aos outros, não somos totalmente maus. Que ainda
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somos capazes de demonstrar sentimentos e que não estamos completamente
embrutecidos.
A história das guerras relata inúmeros episódios de cavalheirismo entre soldados
inimigos. Creio, todavia, que tais episódios são protagonizados por soldados
profissionais, isto é, aqueles que consideram a profissão de soldado como um emprego a
que foram conduzidos, apenas, por vocação. Estes não combatem por ideologia, religião
ou sectarismo, mas pelo simples prazer do combate, pela emoção única de colocar a
vida em risco. O soldado que participa de conflitos por haver sido convocado, tende a
se deixar levar pela ideologia da guerra, pela emoção e pelo sentimento e, neste sentido,
vê no oponente um ser maligno ao qual precisa destruir a todo custo. Por isso, muitas
vezes, é protagonista de cenas de barbárie contra militares e civis inimigos.
Após algumas horas de descanso prosseguimos nosso caminho. Com cerca de uma
hora de marcha, nosso pelotão foi surpreendido por uma guarnição alemã de um
canhão de 75 mm e de várias metralhadoras, que defendia uma posição mais elevada à
frente. O primeiro disparo do canhão acertou em cheio o sargento de uma companhia,
que praticamente foi pulverizado. Lançado a distância, seus restos espalharam-se por
vários metros. O matraquear das metralhadoras MG 42 colheram, também, vários dos
nossos soldados.
Aferrados ao terreno, pensávamos em como sair daquela posição vulnerável em que
nos encontrávamos. A situação era tão aflitiva que um soldado, próximo a mim,
desesperou-se e, ao levantar-se para fugir dali, foi mortalmente alvejado pelas
metralhadoras.
Felizmente, um disparo de morteiro, partido de um outro pelotão, na retaguarda do
nosso, atingiu diretamente a posição alemã, calando-a.
Prosseguimos, em seguida, após recolher nossos mortos e feridos.
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Em algumas ocasiões de perigo, o ser humano, por não dispor de domínio sobre a
situação, entra em pânico e perde, totalmente, o controle de si mesmo.
Por duas vezes presenciei fatos dessa natureza. Na primeira vez, observei um
soldado que, ao ter o local onde se abrigara bombardeado pela artilharia alemã,
largara sua arma e saíra correndo pelo terreno, gritando histericamente. Foi
encontrado horas depois de haver cessado o bombardeio, sentado em um tronco de
arvore caído, murmurando palavras desconexas. Levado para a retaguarda foi
recambiado para o Brasil, tendo sido dado como louco.
A tensão gerada durante os momentos de combate, e o medo não dominado nestas
ocasiões, produz, com relativa freqüência, episódios como estes. Com isto, alguns
soldados procuram ir ficando para trás, deixando as posições avançadas para os
demais companheiros. Outros atiram a esmo, ou mesmo não atiram.
Em contrapartida, muitos são os que tomam a iniciativa e a dianteira, partindo em
direção ao inimigo com disposição.
Outro aspecto, que pude também perceber algumas vezes, é a falta de liderança por
parte de alguns oficiais e graduados em determinados momentos perigosos. Nestas
ocasiões, felizmente, outros lideres de fato substituem aqueles lideres de direito, e a
tropa passa a contar com estes lideres naturais para sair daquela situação aflitiva.
Terminado o confronto, os lideres de direito muitas vezes voltam a assumir a antiga
liderança.
Outras vezes, envergonhados pelo comportamento frente ao perigo,
solicitam sua substituição ou transferência. O fato é que, continuando na mesma
posição, suas lideranças estarão para sempre comprometidas.
É na guerra, onde cada um depende dos demais, que a alma humana
verdadeiramente se revela. As virtudes e os vícios se desnudam em toda a sua
plenitude. Ninguém consegue esconder dos demais companheiros, seu caráter e sua
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maneira de ser. Assim, cada um procura a companhia daqueles que lhe são iguais em
caráter, tanto para ser por eles protegido, quanto para protegê-los.
Ninguém pode saber como irá reagir em uma situação real de combate antes que ela,
efetivamente, ocorra. O comportamento de nossos lideres, no entanto, é fundamental
para infundir coragem à tropa. Qualquer vacilo no comando pode ser interpretado,
pelos soldados, como a perda do controle da situação, dando ensejo ao surgimento de
desconfiança na ação que será empreendida, bem como ao medo de suas conseqüências.
Na vida militar a liderança é imposta pelo regulamento. Quando esta liderança, além
de imposta, é conquistada pelo seu detentor, nos deparamos, certamente, com uma
tropa quase invencível e capaz das missões mais temerárias.
Nosso comandante de pelotão é uma dessas pessoas. Líder nato sabe como conduzir
seus homens e como protegê-los. Suas ordens, muitas vezes, são comunicadas apenas
com um olhar ou através de um sinal. Nossa integração com ele é tanta que, em muitas
ocasiões, antecipamos suas ordens. Da parte dele, conhece, pessoalmente, cada
integrante do pelotão e está sempre pronto a ouvir cada um, isoladamente, a qualquer
momento. Antes da ação, explica, detalhadamente, aquilo que faremos e consulta a
todos do pelotão se estão de acordo com o procedimento adotado. Defende seus
soldados como se fossem seus filhos, perante o comandante da companhia e perante o
comandante do batalhão.
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Carta escrita nas cercanias de Abetaia, Itália.
Pai, estou preocupado com a falta de notícias de mamãe. Em sua última carta você
me disse que ela estava acamada e que o médico tentava descobrir o que ela tinha.
Espero que não seja nada de grave e que ela se restabeleça logo.
Você deveria tentar interná-la no hospital do IAPTEC. Dizem que as equipes
médicas de lá são muito competentes.
O tratamento em casa normalmente é muito precário, pois, não é possível uma
supervisão constante do paciente pelo médico.
Os médicos daqui utilizam muito um medicamento conhecido como penicilina,
fabricado nos Estados Unidos. È excelente, dizem, para infecções de qualquer tipo.
Veja se existe por aí este medicamento. Tentarei obtê-lo aqui e ver se é possível enviá-lo
para você.
Outro remédio que é muito utilizado para dores chama-se aspirina. Também é útil
para abaixar a febre. Não sei se o encontrará por aí, mas tente. Às vezes, alguns pilotos
de linhas aéreas trazem, de fora do Brasil, estes medicamentos para quem os esteja
necessitando.
Não tenho noticias também de Letícia. Espero que a formatura dela tenha sido
muito alegre e que já tenha obtido emprego em alguma escola em Niterói.
Só falta, agora, eu me formar para podermos nos casar e dar-lhes um neto ou uma
neta, como tenho certeza é o desejo da mamãe.
Por aqui nada de novo. Apenas o frio incomoda muito, pois, com o terreno molhado
e pelo fato de muitas vezes dormirmos ao relento, acordo me sentindo mal e tremendo
de frio. Mesmo me agasalhando bem e colocando palha dentro dos ‘boots’ (coturnos),
não consigo parar de tremer. Creio que pode ser também um pouco de febre, embora
75
não me sinta doente. Em breve, entretanto, isto tudo será coisa do passado e estaremos
todos juntos, comemorando eventos tão importantes quanto casamento, nascimentos, e
aniversários.
Sinto não poder estar aí com vocês para dar mais atenção à mamãe e cuidar um
pouco dela, nessa fase tão difícil da vida de vocês.
Logo que a guerra terminar e após retornar ao Brasil, pretendo leva-los até Niterói,
para que conheçam Letícia e a avó dela.
Daremos um passeio juntos por Icaraí e levarei vocês para conhecerem o Terceiro
Regimento de Infantaria, em Venda da Cruz, onde passei dois anos maravilhosos.
Passaremos um dia agradável e, caso faça sol, poderemos até caminhar pela beira
d’água, na praia de Icaraí, como eu fazia outrora com Letícia. Levarei vocês para
conhecerem a Faculdade de Direito e, ao final da tarde, retornaremos para o Rio na
barca da Cantareira.
Da Praça XV de Novembro, tomaremos um bonde até a estação da Estrada de Ferro
Central do Brasil, de onde vocês seguirão para casa de trem.
Esperando que esse dia chegue breve, fico por aqui enviando um beijo para mamãe
e um forte abraço do filho que os ama”.
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Diário escrito em Castelnuovo, Itália.
A 23 de fevereiro, dirigimo-nos para a região de La Serra, objetivando ajudar
tropas americanas retidas em Possione.
Com a nossa chegada os alemães ofereceram tenaz resistência, porém, acabaram
por perder a posição e nos apoderamos da linha Roncovechio-Seneveglio.
Nesta região coberta por um bosque com muitas arvores, havia um cruzamento
entre duas estradas vicinais.
O comandante do nosso pelotão resolveu parar para um bivaque (descanso da
tropa) antes de seguir adiante rumo a Castelnuovo, tendo o pelotão se acomodado por
entre as arvores que ladeavam o cruzamento.
Pouco tempo depois, ouvimos o ronco de motores distantes que pareciam o de um
carro de combate e de alguns caminhões. Observando uma das estradas com o uso de
binóculos, verificamos tratar-se de um tanque Panter V alemão, seguido por dois
caminhões.
Nosso comandante ordenou que preparássemos uma emboscada, o que foi feito
ocupando ambos os lados da estrada, onde montamos um dispositivo destinado a
surpreendê-los quando passassem por nós.
De nossos postos observávamos os veículos se aproximando. Ao passarem por nós,
um disparo de rojão certeiro penetrou a blindagem lateral do tanque, explodindo em
seu interior.
Com disparos de metralhadora e de fuzil, além do lançamento de
granadas, acertamos os caminhões que transportavam tropas e munições.
Alguns soldados saltaram das carrocerias para abrigarem-se, mas foram por nós
abatidos.
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Em determinado momento, as munições transportadas em um dos caminhões
explodiram, lançando para o ar pedaços do caminhão e de corpos de soldados.
Felizmente, não tivemos nenhuma baixa durante este episódio.
Em seguida, procuramos, por entre os destroços e nas roupas dos mortos, algum
detalhe que pudesse ser de importância sobre as operações que se desenvolviam
naquele setor. Nada encontrando, seguimos em frente.
Ao nos deslocarmos pela estrada enquanto partíamos, olhando para trás contemplei
os restos daquele carro de combate e dos caminhões destruídos, bem como os cadáveres
dos soldados alemães que matáramos. Um cheiro de pólvora, de combustível e de
sangue pairava no ar. No silencio reinante apenas se ouviam nossos passos e o ruído do
equipamento que carregávamos, balançando de encontro aos nossos corpos.
A cinco de março estávamos nas cercanias de Castelnuovo, onde deparamos com
inúmeros campos minados cuja travessia era dificultada pela resistência inimiga.
Ao atravessar um destes campos que já havia sido mapeado, um companheiro meu,
que já me havia salvado a vida várias vezes, caminhando pouco a frente teve a
infelicidade de pisar em uma mina Schuhmine (de madeira) que não havia sido
descoberta, pois os detectores apenas detectavam minas magnéticas.
Seguindo atrás dele vi quando foi atirado para o ar já sem a perna, que ficou caída
próxima.
Do local do corpo de onde sua perna havia sido extraída esguichava tanto sangue,
que me atingiu no peito e no rosto quando fui ajudá-lo. Embora conseguisse colocá-lo
nos ombros e tirá-lo dali, não conseguiu sobreviver em razão da grande quantidade de
sangue perdida.
A partir deste momento meu ódio pelos soldados alemães foi tão intenso, que
prometi a mim mesmo jamais fazer prisioneiros.
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Com o anoitecer ligaram holofotes em direção a Castelnuovo e a nossa tropa
penetrou na cidade.
Percorrendo as ruas da cidade, éramos alvejados por todos os lados. Um carro de
combate alemão, estacionado na esquina de uma rua lateral, metralhava tudo aquilo
que se mexesse, dificultando nossa progressão no terreno.
Um dos nossos conseguiu arrastar-se sem ser visto e colocou, sob o tanque, uma
carga explosiva. A explosão que se seguiu levantou o veículo a alguns centímetros do
solo, fazendo com que seu canhão dobrasse. Um outro, portando um lança-chamas,
dirigiu seu jato de fogo para o veículo que incendiou.
Próximo, ficamos esperando que seus ocupantes saíssem do carro para então alvejálos, porém, ninguém saiu de dentro do tanque.
Do alto da torre de uma igreja, alguns atiradores alemães atingiram um capitão e
dois sargentos.
Trouxeram, então, um canhão de campanha que destruiu a torre com dois disparos.
Logo ao primeiro tiro, um dos ocupantes da torre foi lançado ao espaço, pela força do
impacto do projétil.
Em uma residência que tomei de assalto, encontrei dois sargentos alemães a mesa,
no porão, jantando. Ao me verem apontando-lhes o fuzil, levantaram as mãos em sinal
de rendição, pois, creio que já consideravam a guerra perdida e até desejassem se
entregar. Fiz pontaria no peito do primeiro e disparei. Ao ver o que eu havia feito, o
segundo tentou um gesto de reação; porém, acertei-lhe um disparo que o atingiu na
coxa. Caído ao chão enterrei-lhe a baioneta no peito, o que o fez estremecer. Ficou,
mesmo depois de morto, olhando-me fixamente com seus olhos de um azul muito
intenso, como a perguntar: - Por que?
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Saindo dali caminhei por um quarteirão cujas lojas estavam todas destruídas. Ao
parar, agachado em uma esquina, para observar possíveis inimigos entrincheirados em
algum dos lados do cruzamento, fui surpreendido por um soldado alemão que, saindo
de trás da porta de uma loja, tentou atingir-me na cabeça com o que me pareceu uma
pá de cavar trincheira. Desviei do golpe e atraquei-me com ele na calçada, onde
lutamos por alguns minutos, ambos segurando a pá de trincheira. Largando uma das
mãos enfiei os dedos em seus olhos com tanta força que senti escorrer um liquido
viscoso em minha mão. Ele gritou de dor, largou a pá e colocou ambas as mãos nos
olhos machucados. Peguei aquela pá e vibrei-a, seguidas vezes, em sua cabeça, até vê-lo
imóvel e com a face ensangüentada. Deixando-o no chão caído, atirei a pá sobre seu
corpo e segui em frente, em busca do meu pelotão.
Convivendo com a morte, diariamente, sou levado a crer que ela não é o fim de tudo.
Com ela o ser humano termina, porém o ser espiritual começa.
A morte parece ser apenas uma mudança no estado físico da matéria, que talvez
tenha sido classificado pelos sábios, erroneamente, como apenas sólido, líquido e
gasoso. Eles, imagino, esqueceram-se do quarto estado, o etéreo.
Morrer, no meu ponto de vista, assemelha a libertar-se de um estado físico e passar
a outro, e não a consumir-se, já que pela Lei da Conservação da Energia isto seria
impossível. Muitos dos companheiros mortos apresentam no rosto sinais de extrema
tranqüilidade, como se tivessem deixado para trás, além de seu próprio corpo todos os
seus problemas.
Acredito que o ar de tranqüilidade que apresentam seja decorrente de tudo aquilo
que contemplam, naquela ocasião, do outro lado da existência, após passarem pela
fronteira da vida e penetrarem no território da morte.
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Neste território, tenho a absoluta convicção de que a vida, sob a forma espiritual,
continua seu caminho, como também os restos mortais, que ficaram para trás são, por
sua vez, novamente incorporados ao ciclo da vida.
Estou, ainda, convencido de que ao final da existência todos nos encontraremos
novamente. Nesta ocasião, certamente, não saberei o que dizer àqueles inimigos que
matei em solo italiano.
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Carta escrita em Castelnuovo, Itália.
“Querida Letícia, há muito não tenho recebido notícias suas.
Desejo muito saber sobre sua formatura e se já obteve emprego em alguma escola de
Niterói.
Sonho acordado com os passeios que fazíamos pelo Campo de São Bento naqueles
domingos ensolarados.
Lembro-me daquele beijo que trocamos, sentados em um banco da Praia das
Flechas vendo, ao longe, os pescadores em suas canoas jogarem as redes no mar.
Também recordo, com saudade, daquelas caminhadas ao entardecer pelas areias da
Praia de Icaraí, quando andávamos de mãos dadas desde o início da praia, na Pedra da
Itapúca, até o seu final, no Canto do Rio. Ao passar em frente ao trampolim, avistavamos alguns rapazes saltando do primeiro estágio e, mais a frente, junto a uns coqueiros
quase no final da praia, algumas crianças pequenas junto de suas mães e babás
brincando de cavar buracos com suas pás de madeira.
Com freqüência avistávamos pequenos siris correndo pelas areias brancas ou
penetrando em pequenos buracos que cavavam rapidamente. Ao caminharmos, nossos
passos faziam um estranho ruído ao deslocarem a areia. Às vezes andávamos com os
pés dentro da água fria e, em algumas ocasiões, molhávamos nossas roupas com a
quebra de uma onda aos nossos pés. O que eu não daria para reviver estes momentos.
Por aqui nada de novo, exceto uma febrezinha que me ocorre durante a noite.
Como pela manhã me sinto bem, não procuro auxílio médico; até porque, se buscar
apoio médico, eles podem descobrir outras coisas mais e acabarem por me obrigar a
baixar ao hospital. Enquanto der, vou-me agüentando. Com isto, não perco nenhum
dos acontecimentos que ocorrem por aqui.
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Por vezes, após nevar com intensidade, a camada de neve que se forma sobre o solo é
tão espessa que quase não conseguimos nos deslocar, visto não dispormos das
conhecidas raquetes, próprias para caminhar sobre a neve.
Nestas ocasiões permanecemos estacionados onde quer que nos encontremos, e
aproveito a oportunidade para escrever para você e para meus pais. Isolados na neve, e
na falta de uma comida quente, somos obrigados a nos contentar com o conteúdo das
rações K, B ou C.
Em uma dessas oportunidades, enquanto lhe escrevia, avistei novamente aquela ave
amarela sobre a qual já lhe falei em outra carta. Desta vez ela chegou bem perto de
mim e, mais uma vez, parecia querer dizer-me algo. Achei que aquilo tinha a ver com
você ou com meus pais e fiquei um pouco sobressaltado.
Preocupa-me muito o estado de saúde de minha mãe. Papai não tem dado notícias e
temo que ela tenha piorado. Se souber de algo me escreva.
Como as cartas demoram a chegar e muitas vezes se extraviam, procure enviar-me
pelo menos uma linha todos os dias. Assim, sempre terei você perto de mim, mesmo que
seja através, apenas, de algumas palavras.
Por aqui não temos jornais que nos informem sobre os fatos e acontecimentos que
são notícias no Brasil. Estamos totalmente isolados com respeito ao que ocorre por aí.
Da mesma forma, sobre o desenrolar desta guerra, temos apenas as notícias que
ouvimos através da BBC de Londres, cujas transmissões captamos via rádio.
Aguardando ansioso o dia em que nos encontraremos novamente, aceite um
carinhoso beijo e não deixe de mandar notícias”.
83
Diário escrito em Montese, Itália.
Em 14 de abril de 1945, por volta das 13 horas, após forte ataque de nossa artilharia
sobre Montese, partimos da base em que nos encontrava-mos, em Montaurígola, na
direção da localidade que deveríamos tomar de assalto e conquistar. A região de
Montese é constituída por bosques, colinas e vários rios, estando situada próxima de
Bolonha e de Modena. Naquela tarde a reação inimiga foi também muito forte e
tivemos que deter, momentaneamente, nossa ação. Nesta ocasião, sofremos pesadas
baixas. Dois companheiros de meu pelotão foram atingidos por disparos de
metralhadora. Um deles recebeu vários impactos no peito que quase o cortaram ao
meio. Ainda ficou durante alguns minutos agonizando. Estando ao seu lado pude
confortá-lo, naqueles momentos, segurando sua mão. Olhando seu rosto contraído pela
dor, pude ver o exato momento em que partia, quando então sua fisionomia relaxou,
seus olhos se fecharam e sua face adquiriu aquela tranqüilidade típica daqueles que
conhecem o outro lado.
Em razão da densa fumaça que tomou conta da região, tanto em decorrência das
explosões de nossa artilharia quanto da artilharia deles, meu pelotão foi se deslocando
em direção ao objetivo e, sorrateiramente, conseguiu atingir as primeiras posições
alemãs. Enquanto a fumaça permanecia no ar, os alemães mantinham-se agachados no
fundo das suas trincheiras. Talvez pensassem que só atacaríamos quando ela se
dissipasse.
Atirei em um soldado que, sentado em uma delas, levantou-se logo que me viu. Após
vê-lo cair, segui em frente protegido pela fumaça.
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Passada esta primeira linha de defesa, começamos a subir as elevações de Montese.
Ao chegar ao cume de uma elevação, fomos detidos pelos disparos oriundos de uma
grande casa que parecia uma posição fortificada.
Com o uso de lança rojões de 2.36 polegadas, de fuzis metralhadores BAR cal 30.06, de
metralhadoras Browning cal.50 e de morteiros de 60 mm., conseguimos vencer a
resistência daquele ponto forte e prosseguimos.
Entrando na cidade, propriamente dita, o combate passou a se efetuar de casa em
casa. Naquelas estreitas ruas recebíamos disparos vindos de várias casas, disparos estes
que vitimaram diversos dos nossos.
Ao fugir dos tiros inimigos, entrei em uma casa vazia. Depois de alguns minutos lá
dentro percebi que, da casa ao lado, soldados alemães disparavam contra nossas
tropas. Subindo até o andar de cima, constatei que havia uma varanda na parte de trás,
e que esta era contígua à varanda da casa ao lado onde estavam os alemães, pois
pareciam casas geminadas.
Pulando para a varanda do lado desci, devagar, a escada que dava acesso ao térreo.
Visualizei três soldados que agachados com seus fuzis, atrás da janela aberta,
procuravam alvos na rua.
De onde estava atirei nos três. Pude notar o olhar de surpresa que demonstraram,
enquanto caiam ao solo após terem sido atingidos. Depois de confirmar que estavam
mortos, prossegui pelas ruas da cidade.
Em uma praça, abrigado atrás de um coreto, deparei com um tanque Panter IV
fechando uma das ruas que desembocava na praça. Fazia disparos mortais contra as
nossas tropas, que para ali se dirigiam. Pude observar de longe, quando um dos nossos
disparou um rojão em sua direção, que acabou por atingi-lo na lagarta. O disparo,
embora não mortífero, incendiou o tanque por fora. Este, impossibilitado de se
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locomover em razão da lagarta destruída, foi alvo das chamas. Antes que seus
tripulantes tivessem tempo de abrir a portinhola de escape, foi sacudido por violenta
explosão interna que abalou toda a vizinhança. Ao passar pelos seus restos calcinados,
ainda pude sentir o calor que desprendia daquela massa de aço retorcida.
Finalmente a resistência dentro da cidade foi silenciada, o que não impediu que a
artilharia alemã despejasse cerca de três mil granadas de obus, sobre a mesma, durante
a noite. Na manhã seguinte, ainda sob bombardeio, a cidade nos pertencia totalmente.
Na guerra, ocorrem inúmeras situações onde a nossa vida depende, exclusivamente,
do comportamento ou da ação de um ou de vários companheiros. Este fato acarreta o
surgimento de uma amizade indestrutível, entre aqueles que vivenciaram tais situações.
Somos muito mais que simples companheiros de infortúnio, pois estamos dispostos a
nos sacrificar uns pelos outros.
Em muitas situações fui salvo por um companheiro, ao abater um inimigo que ia me
atingir, ou a me avisar sobre um alemão escondido em uma posição onde eu não o
havia percebido. Da mesma forma, também evitei que companheiros meus fossem
mortos, ao manter fogo cerrado sobre o inimigo, enquanto eles se evadiam da posição
vulnerável em que se encontravam.
Em certa ocasião, ao ter nosso pelotão fustigado por um carro de combate, cuja
metralhadora martelava sem parar nossa tropa com risco de dizimá-la, pude esgueirarme por trás dele e abater sua guarnição com uma granada atirada para o interior do
veículo, através da portinhola de escape do carro.
Distante da pátria, o soldado luta apenas para sobreviver e permitir que seu grupo
sobreviva, eliminando tudo o que represente uma ameaça para ambos. Por isto, não é
vitima de sentimentos de remorso, pena ou compaixão, pelos atos que é compelido a
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praticar. Na manhã seguinte já se esqueceu dos inimigos que matou na noite anterior e
a luta prossegue, inexoràvelmente, até que seja ele o próximo a tombar.
Embora os soldados sofram com a guerra, pelo menos estão acostumados à violência
e possuem um lado que os apóia, alimenta e cuida de sua saúde.
As populações civis nas zonas de conflito, entretanto, estão por sua própria conta e
risco, não tendo ninguém a velar por elas e a protegê-las. Elas são, com isso, quem mais
sofre com a situação de guerra.
Em muitas aldeias, ou propriedades isoladas, soldados combatentes de ambas as
partes, por vezes, maltratam, matam e até abusam de mulheres, tomam animais,
alimentos e bebidas; além de roubarem qualquer coisa que represente riqueza e que
seja fácil de carregar e ocultar.
A pena para estes crimes, caso sejam descobertos, muitas vezes é a morte;
entretanto, sua aplicação dependerá do fato de serem descobertos e de não serem
acobertados por superiores imediatos.
Estes, certamente, são os motivos do acentuado ódio dos ‘partisanos’ aos
estrangeiros que ocupam seu país e seus ‘paesi’ (povoações), não importa se amigos ou
inimigos.
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Carta escrita em Montese, Itália.
“Pai, foi com enorme tristeza que soube do falecimento de mamãe. Pelo que você
relatou em sua carta, os médicos não atinaram com sua enfermidade e ela definhou até
morrer. Senti muito não poder estar ao seu lado nesta hora tão difícil. Imagino como
deve ter sido terrível para você, que a amava muito, vê-la naquele estado e não poder
fazer nada.
Fico imaginando você, sozinho, tendo que providenciar tudo para enterrar os restos
mortais dela. Onde eles estão enterrados?
Logo que chegar ao Brasil, após o término da guerra, providenciarei um jazigo de
mármore para seu túmulo.
Como você viverá a partir de agora? Quem cuidará de você? Maldita hora em que
fui convocado para esta guerra, tendo que deixar vocês ai no Brasil, sozinhos, para,
junto com meus companheiros mais próximos, e fazendo parte de um exército de
pessoas que nem conheço, lutar contra pessoas outras que também desconheço.
Gostaria de estar lutando por vocês, aí no meu país, diariamente, ajudando-os em
tudo aquilo que precisam para ter uma vida feliz nestes poucos anos que lhes restam.
O pior de tudo é saber o que ocorre com vocês sem poder fazer nada, sem poder
ajudá-los de nenhuma forma, tendo apenas que me conformar com esta situação. Estes
pensamentos apenas fazer aumentar meu ódio contra os inimigos que enfrento; pois
foram eles, em última análise, que começaram tudo isto.
Não digo ódio dos soldados inimigos, em si, que, tanto quanto nós, também
desconhecem as verdadeiras motivações das guerras; mas sim dos povos a que
pertencem, que nada fizeram para impedir seus dirigentes de promovê-las.
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Os indivíduos, por não se interessarem, normalmente, pela política, deixam a cargo
de seus representantes a tomada de decisões que, muitas vezes, representando apenas o
interesse de pequenos grupos, arrastam o povo inteiro para um conflito em que o
próprio povo será, em última análise, o grande sofredor e perdedor.
Por aqui nada de novo. Sigo meu caminho pensando apenas no dia em que
retornarei ao Brasil, quando então poderei ficar ao seu lado e junto de Letícia para
sempre. Pretendemos levá-lo para residir conosco, assim que nos casarmos. Desta
forma você poderá contar com a nossa presença e a dos netos, diariamente.
Conto com você para que os conduza, pelas mãos, a alguma pracinha arborizada
onde, sentado em um banco sob a sombra de uma árvore, tomará conta deles enquanto
brincam no gramado com outros meninos, jogando bola, correndo por entre as plantas
ou sentados a sua volta ouvindo estórias.
Na volta para casa, você comprará algumas balas ou pirulitos para eles que, ao
chegarem, dirão para a mãe que não estão mais com fome e que querem dormir.
Letícia, então, alertará você para que não compre mais guloseimas para eles antes
do almoço e, no dia seguinte, como bom avô, você fará tudo aquilo, novamente.
Após o almoço, você irá levá-los ao colégio próximo e, ao final da tarde, estará no
portão esperando-os na hora da saída.
No caminho para a casa, carregando suas pastas, você contar-lhes-á alguma coisa
sobre o tempo em que o pai deles estava na guerra.
Eles, certamente entusiasmados, dirão que também serão soldados quando
crescerem.
Você, então, lhes dirá que, para os pais, a pior coisa que pode acontecer é ver os
filhos irem para a guerra.
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Falará sobre as noites de insônia, passadas em claro, imaginando o que estaria
acontecendo com aquele menino de quem você tanto gosta e cujo retorno, para junto de
si, não tem certeza se irá acontecer.
Mencionará a agonia de passar semanas sem receber resposta às cartas que enviou,
ouvindo pelo rádio noticias sobre bombardeios com inúmeros mortos, feridos e
desaparecidos, naquele longínquo cenário de guerra.
Dirá do receio de receber a visita de um militar fardado, batendo em seu portão, a
qualquer hora do dia. Aquela visita, você de longe imediatamente saberá do que se
trata e lágrimas incontroláveis escorrerão pelo seu rosto, sem que ninguém precise lhe
dizer nada.
Fará menção a um sentimento contraditório, que carrega dentro de si: de um lado o
orgulho de ter um filho participando do conflito, trabalhando pelo esforço de guerra e,
de outro, a inveja que sente daqueles pais cujos filhos não foram convocados.
Enfim, dirá que sente muito orgulho do pai deles, seu filho, porém, que jamais
desejaria que eles, seus netos, trilhassem o mesmo caminho.
Sem dúvida não irão entender seu ponto de vista, porém, nesta hora, vocês já
estarão chegando a casa, para o banho, o jantar e a cama.
Cuide-se bem e aceite um forte abraço do filho que o ama”.
90
Diário escrito no Hospital de Nápoles, Itália.
Em 27 de abril de 1945, tendo a frente vários carros de combate M-8, tanques
Sherman M4 e algumas viaturas de meia-lagarta M-3, os brasileiros iniciaram o ataque
a Collechio.
Aproximadamente por volta das 13 horas, ao atingirmos a ponte
Scodogna, fomos alvo de violenta barragem de fogos inimigos que obrigaram os
veículos a se deter. Atrás de um carro de combate que nos protegia, ouvíamos os
disparos de armas leves inimigas, fuzis e metralhadoras, atingirem as paredes de aço do
veículo como pipocas estourando dentro de uma panela. Um destes veículos, próximo
ao que servia de escudo ao meu pelotão, sofreu um impacto direto de morteiro alemão,
incendiando-se. Enquanto contemplava aquela cena, a portinhola de acesso ao interior
do carro de combate se abriu e pude ver um soldado ainda vivo, porém, bastante
queimado, tentando, sem conseguir, deixar o interior do veículo que ardia em chamas.
Corri para ajudá-lo e quando o peguei pelos braços, na tentativa de puxá-lo, as mangas
de sua jaqueta queimada, com as carnes e os ossos de seus braços dentro, também
queimados, soltaram-se e ficaram em minhas mãos. Ele caiu de volta para o interior do
carro e eu fiquei segurando seus, braços dentro dos braços da jaqueta, sem saber o que
fazer com eles. Deixando-os com todo o cuidado sobre o terreno gelado, segui em
frente com o pelotão.
A partir daí progredimos através das colinas e dos montes existentes na região, onde
havia vários bosques cobertos de neve. Ao atravessar um destes, fomos surpreendidos
por uma emboscada do inimigo que, por detrás das árvores, nos alvejaram. Ao avançar
para procurar abrigo, deparei-me com um soldado alemão que, parado atrás de uma
árvore, me mantinha sob sua mira. Ele não atirou, tentando, talvez, me fazer seu
prisioneiro. Meu fuzil, que trazia seguro na mão direita, abaixada, tinha uma bala na
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câmara e estava destravado. Mesmo sem fazer pontaria, virei lentamente o cano em sua
direção e apertei o gatilho. Embora atingido na barriga pela bala, em um ato reflexo,
também comprimiu o gatilho. Senti o deslocamento daquela bala, passar bem rente ao
meu rosto. Como o pelotão resistisse bem aos alemães estes foram, aos poucos,
retraindo e abandonando o bosque, conosco em seu encalço.
Ao saírem em campo aberto foram imediatamente, alvo de nossos disparos. Creio
que foram todos atingidos, pois constituíam um alvo fácil.
Considerando o longo tempo em que já combatiam e sabedores do que os esperava
ao fim daquela guerra praticamente perdida, com seu país quase totalmente arrasado
pelos bombardeios aliados, creio que para eles foi uma situação até mesmo procurada,
pois não ofereceram muita resistência.
Nas cercanias de Gaiano, ao percorrer uma estrada que descia rumo às linhas
inimigas, fomos alvo de muitos disparos de morteiro e de metralhadora antiaéreas
alemãs.
Eu caminhava à esquerda, um pouco distante dos demais companheiros, quando
uma súbita explosão, próxima de mim, atirou-me ao solo. Perdi, instantaneamente,
toda a visão e a audição. Em questão de segundos pareceu-me não mais estar ali,
naquela guerra. O silencio era total e, de uma posição mais alta, via-me no solo caído.
Ao lado do meu corpo enxerguei minha mãe, sorrindo para mim e tentando dizer-me
algo.
Quando acordei, duas semanas depois, encontrava-me no 7Th Station Hospital, em
Livorno. Este hospital era o mais próximo da linha de frente e, após quatorze dias em
coma, em uma manhã fria e com o sol penetrando por entre as nuvens, despertei para
tomar ciência daquilo que me ocorrera, através de enfermeiras brasileiras que ali
trabalhavam.
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Um disparo de morteiro que explodira bem próximo havia me decepado parte do
braço e da perna, além de arrancar o olho e a orelha esquerdos; bem como ocasionado
traumatismo craniano e vários ferimentos menores na boca e no nariz. Dado como
morto naquela ocasião, fui, no entanto, conduzido ao hospital de Livorno.
Um fato estranho, ocorrido comigo naquele hospital, e que nenhum médico soube
explicar, é que, no período em que permaneci em coma, tinha absoluta consciência do
que se passava ao meu redor, embora, segundo me disseram depois, mantivesse o olho
direito cerrado. Via os médicos e as enfermeiras entrando e saindo do quarto,
ministrando medicamentos e conversando entre si. Conquanto me esforçasse, na
oportunidade, não conseguia me comunicar com eles para dizer-lhes que estava bem.
A enfermaria onde me encontrava possuía quatro outras camas, ocupadas por
militares norte-americanos. Embora feridos, todos podiam falar. Conversavam muito
entre si, talvez falando sobre suas cidades e seus familiares.
Eu, enquanto os escutava em silencio sem entender o que diziam, pensava em Letícia
e em meu pai. O que estariam fazendo naquele momento? Será que pensavam,
também, em mim? Será que nos encontraríamos, novamente, algum dia? Que notícias
teriam desta guerra, lá no Brasil?
Poucos dias depois, um dos meus companheiros de infortúnio foi retirado em uma
maca, daquela enfermaria, por haver falecido durante a noite. Em seguida, outro veio
preencher seu lugar. Este, todavia, estava em estado de coma e bastante ferido, segundo
parecia, pois o ir e vir de médicos em sua cabeceira era bastante intenso.
O Sétimo Hospital, em Livorno, era a maior e mais bem equipada Unidade
Hospitalar daquele setor do Teatro de Operações Italiano e, também, a que possuía
maior contingente de médicos brasileiros.
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Ali fui carinhosamente tratado pela enfermeira-chefe brasileira Elza Cansanção de
Medeiros e pelas enfermeiras Acácia Cruz, Hilda Ribeiro, Jacy Chaves e Lygia
Fonseca, dentre outras, que se mostraram incansáveis nas atividades necessárias à
minha recuperação.
Após um mês naquele hospital, fui transferido para o General Hospital Headquarter
Building, em Nápoles, onde me encontro redigindo estas notas. Neste novo hospital,
disseram-me, teria melhor atendimento e poderia ter uma recuperação mais rápida.
Aqui fiquei sabendo, através das enfermeiras Carlota Mello, Lucia Osório e Nair
Paula de Mello, que nossas tropas haviam aprisionado em Colechio e Fornovo a 148ª
Divisão de Infantaria Alemã, comandada pelo general Otto Freter Pico, além de
remanescentes da Divisão Bersaglieri Italiana, comandada pelo general Mario Carloni.
Havíamos feito um total de 26.000 prisioneiros, segundo me informaram no hospital.
Disseram-me que Benito Mussolini havia sido morto em 25 de abril e pendurado pelos
pés, junto com a amante, na Praça Sire Raul, em Milão.
Em 30 de abril Adolf Hitler se suicidara em Berlim, que havia sido tomada pelos
Russos.
Soube também ali que a guerra acabara, no princípio de maio de 1945, na Itália, com a
rendição de todas as tropas alemãs e italianas.
Após tantas notícias boas recebi uma má, que me deixou arrasado durante vários
dias. O Tenente, comandante do meu pelotão, após nossas tropas haverem tomado
Collechio, morrera em decorrência da explosão de uma carga colocada sob uma pistola
alemã, Luger, caída ao solo. Ao apanhá-la, talvez como uma lembrança que desejasse
trazer para o Brasil daquela guerra, a carga detonou matando-o.
Acabara-se, assim, tragicamente, o sonho que acalentávamos de sermos sócios na
banca de advocacia em Niterói.
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Os alemães eram mestres em preparar armadilhas deste tipo, principalmente em
cadáveres de soldados mortos, que, ao serem tocados, explodiam.
O Ministério da Guerra, em 06 de junho de 1945, ordenou que as unidades da FEB
ainda na Itália se subordinassem não mais ao comando do V Exército Norte
Americano, porém, ao comandante da Primeira Região Militar, sediada na cidade do
Rio de Janeiro; o que significou a dissolução do contingente brasileiro.
Em junho, nossas tropas começaram a deixar a Itália, rumo ao Brasil. Ao final do
ano, praticamente todos já haviam partido.
A enfermeira Lucia Osório providenciou a recuperação da minha mochila, onde
guardo o diário que sempre me acompanhou. Com o diário em mãos e um lápis que
também obtive por seu intermédio, reiniciei a elaboração das memórias desta guerra..
No hospital eu me locomovia em uma cadeira de rodas, usada, que a enfermeira
Nair Mello havia conseguido obter emprestado. Estava praticamente surdo, pois havia
perdido um ouvido e do outro escutava muito pouco. Conforme pude constatar, ao me
olhar, pela primeira vez depois do acidente, em um espelho, meu rosto estava bastante
deformado. A ausência do olho e da orelha esquerdos, além de uma cicatriz que descia
da testa ao queixo, dava-me uma aparência horrível. Fui submetido a tratamento
psiquiátrico, visando me conformar com meu novo corpo e minha nova aparência;
porém, sabia que minha vida jamais seria a mesma.
Deslocando-me pelos corredores na cadeira de rodas, podia alcançar um pátio
externo onde se reuniam outros pacientes, além de enfermeiras e médicos, para pegar
um pouco de sol e respirar ar puro.
Ali encontrei alguns brasileiros, vítimas de ferimentos graves, como os meus, que
aguardavam, também, o dia da alta. Alguns deles foram para hospitais nos Estados
Unidos, dar continuidade aos seus tratamentos.
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Certo dia no jardim onde costumava apanhar sol, fiquei conhecendo um piloto da
RAF que se encontrava naquele hospital convalescendo de pequeno ferimento. Falava
português e, ao ficar sabendo que eu era oriundo do Terceiro Regimento de Infantaria,
de São Gonçalo, abraçou-me efusivamente para surpresa minha.
Contou-me que sua família era toda de Niterói e descendente de ingleses. Ele
morava na Estrada Fróes da Cruz, número 643, entre os bairros de Icaraí e do Saco de
São Francisco, em Niterói, com sua mãe, irmãos e irmãs.
Chamava-se Daniel Causer e era tenente da RAF. Disse-me que seu irmão, Malcolm
Causer, havia servido no Terceiro Regimento de Infantaria e, tão logo fora possível,
alistara-se, como filho de ingleses que era, na Marinha Britânica, por ser exímio um
navegador e nadador e gostar das coisas do mar.
Como Sub-Oficial, aos vinte e dois anos, participara de várias missões a serviço da
Inglaterra.
Em uma delas, em companhia de um marinheiro chamado Harry Smith, dirigiu um
torpedo humano que afundou o cruzador Bolzano, munido de canhões de oito
polegadas, último com que a Itália entrou na guerra.
Seu ousado ataque, o segundo realizado com torpedos humanos na guerra, acabou
com a carreira do Bolzano, fundeado no Porto de Spezzia.
Contou-me Daniel que na escuridão de 21 de junho de 1942, um torpedo de dois
lugares foi arriado de um navio inglês nas águas ao largo de Spezzia. Malcolm e
Harry, trajando escafandros, subiram sobre o torpedo e partiram para o porto.
O navio que os deixou foi alvo das poderosas baterias alemãs que defendiam a
entrada do porto e, logo em seguida, os holofotes começaram a varrer a superfície do
mar.
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Os dois terminaram a missão, conforme previsto, afundando o cruzador, porém,
foram feitos prisioneiros dos alemães. Fotografias aéreas feitas no dia seguinte
mostravam o navio com a maior parte do costado debaixo d’água.
Tempos depois, havendo fugido da prisão onde se encontrava e conseguindo chegar
à Inglaterra, foi novamente enviado em missão de comandos navais na costa da
Noruega. Ali, nas águas geladas do Mar do Norte, sofreu um naufrágio.
Na companhia de dois outros membros da unidade afundada, aliais os únicos
sobreviventes, conseguiu alcançar à costa norueguesa em zona ocupada pelos nazistas.
Esquivando-se a perseguição movida pelos alemães, viu seus dois companheiros
sucumbirem ao frio e à fome.
Malcolm, conforme seu irmão me relatou, resistiu de maneira assombrosa, durante
onze dias, a todas as dificuldades para, finalmente, atingir a Suécia onde foi internado.
Durante um mês, esteve na eminência de perder ambas as pernas, em razão de
gangrena por congelamento.
De volta à Inglaterra, já havia sido destinado, novamente, para outra missão no
Mediterrâneo.
No dia da sua alta, Daniel perguntou-me se desejava alguma coisa, ou mandar
algum recado para alguém no Brasil, pois, através da embaixada Britânica no Rio de
Janeiro, poderia fazer chegar minha mensagem.
Agradeci-lhe, porém, dizendo que não seria necessário, pois esperava, em breve, ter
alta e embarcar para o Brasil.
Uma coisa que pude perceber é a seriedade com que os militares americanos e
britânicos enfrentaram esta guerra. Creio que tinham muito mais consciência do que
nós, sobre os interesses mundiais envolvidos no conflito.
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Em nosso país distante, havíamos nos envolvido naquela guerra, mais por um
oportunismo político que por uma ameaça imediata. Também não éramos uma
potencia belicosa que almejasse o domínio de territórios, recursos naturais e recursos
humanos. Seguíamos como um país dependente, produtor de matérias primas, pouco
ou nada industrializado, separado das potências mundiais por um oceano e por
florestas. Achávamos que ali era a verdadeira localização do paraíso na Terra, e até
afirmávamos que Deus era brasileiro. Não imaginávamos, sequer, o que representava a
escassez de alimentos e de recursos naturais para as nações em guerra; bem como a
ganância das elites dominantes destas nações, sobre a conquista e a posse de tais
recursos aonde quer que, no mundo, eles se encontrassem.
No hospital, deitado na cama, por vezes pensava em como minha vida havia se
modificado em tão pouco tempo. Daquele jovem feliz, religioso e confiante no futuro,
com uma mulher a quem amava e por quem era amado, transformei-me em um ser
disforme que já havia matado cerca de duas dezenas de outros seres humanos e cujo
futuro, tanto profissional quanto amoroso, havia se encerrado para sempre.
Muitos de meus companheiros de pelotão, a começar pelo meu comandante, estavam
mortos, feridos ou mutilados como eu.
A guerra, embora ganha pelos aliados, havia deixado um saldo de milhões de
mortos, feridos e desaparecidos; bem como de cidades inteiras arrasadas e campos
totalmente despovoados e sem cultivo.
A recuperação da destruição física, moral, cultural e espiritual, de inúmeros países,
levará, sem dúvida, bastante tempo. As seqüelas de um conflito como este não se
apagam, facilmente, da memória dos sobreviventes.
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Os únicos a ganharem com a guerra são aqueles que enriqueceram com a destruição
geral e que enriquecerão, novamente, com a reconstrução de tudo aquilo que foi
destruído.
Os soldados não são mais que inocentes agentes da guerra, defendendo interesses
cujos beneficiários desconhecem, mobilizados através das mais variadas mensagens,
quer de patriotismo, de coragem ou de defesa dos valores tradicionais da civilização.
Milhões de vidas humanas foram e estão sendo inutilmente sacrificadas com esta
guerra, apenas para que algumas poucas famílias possam continuar desfrutando das
posições importantes que sempre ocuparam no mundo dos negócios e da política.
Antes do inicio das guerras entre as nações, suas populações são levadas a crer que
estas serão travadas apenas para proteger seus cidadãos e seus interesses. Todavia, os
cidadãos que são protegidos das guerras são aqueles que dela não participam, por
serem seus idealizadores, e os interesses a serem defendidos são os daqueles que detém
toda a riqueza e todo o poder.
Enquanto a população da Terra não se conscientizar de que todos nós pertencemos
a uma única espécie criada pelos desígnios desconhecidos do Criador, que possuímos
uma vida breve, que habitamos um planeta minúsculo (e com recursos naturais finitos)
a viajar pelo universo desconhecido; e decidirem abolir as fronteiras (acabando com o
sentimento de nacionalidade, que desune e torna antagônicas as pessoas), unificar as
religiões (que também desunem os seres humanos, por fazerem estes acreditar que seu
Deus é diferente e mais poderoso que o Deus do outro irmão) e as línguas (que também
desunem, na medida em que impedem ou dificultam a comunicação entre as pessoas),
abdicar da concentração excessiva da riqueza em mãos de poucos (que constitui um
fator de injustiça social que gera revolta), não nos livraremos do fantasma das guerras.
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Não creio que algum dia, venhamos a chegar à unanimidade de pensamento com
relação a esta questão.
Por muito tempo, ainda, continuaremos a nos matar como inimigos, nos campos de
batalha.
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Carta escrita no Hospital de Nápoles, Itália.
“Querida Letícia, finalmente acabaram-se as lutas e os sofrimentos para os nossos
soldados. Para mim acabou um pouco antes, pois fui ferido e encontro-me, atualmente,
em tratamento em um hospital americano em Nápoles. Estou em um quarto amplo,
com uma grande janela que se abre para um jardim ensolarado.
Por duas vezes, ao acordar pela manhã e olhar para a janela aberta, avistei aquele
pássaro amarelo que já havia visto em outras ocasiões, pousado no patamar. Nestas
duas ocasiões notei que ele cantava, emitindo alguns sons, enquanto me observava
deitado na cama. Com a entrada de enfermeiras, voou para as árvores existentes no
jardim.
Disseram-me que em fevereiro já poderei estar no Brasil. Como você já deve saber,
minha mãe faleceu.
Tenho tido poucas notícias da parte de meu pai, que há muito não me escreve. Não
tenho a menor idéia de como ele estará se saindo, sem a mamãe ao seu lado.
Embora desejoso de estar com você, reconheço que certamente não estará
preparada para receber-me de volta. A guerra deixa muitas cicatrizes no corpo e na
alma daqueles que dela participam. Não sou mais aquele afável e tranqüilo cidadão que
acreditava nas virtudes humanas e na providência divina. Aprendi que o homem é
capaz dos atos mais baixos e vis e das piores maldades, e que o criador não interfere na
ordem natural das coisas. Também não sou mais aquele jovem saudável que você
conheceu e por quem se apaixonou. Aqueles tempos acabaram-se para sempre e aquele
jovem não existe mais, a não ser nas suas e nas minhas lembranças.
Temo muito reencontrá-la, pois sei que você não gostará daquilo com que ira se
deparar.
101
Ao chegar, pretendo ficar uns meses junto ao meu pai, apoiando-o neste momento
difícil. Com o passar do tempo, verei o que pretendo fazer.
Reconheço que aquilo que imaginamos para o nosso futuro, muitas vezes não se
cumpre, continuando apenas como sonhos não realizados. Temos que ter a sabedoria
de reformular nossos objetivos e recomeçar de novo, não importa se estes outros
objetivos continuarão sendo apenas novos sonhos.
No hospital onde me encontro, quase diariamente morrem companheiros
internados, de várias nacionalidades. Espero não ter nenhuma complicação que leve
meu estado a piorar, embora, constantemente, tenha tido febre ao cair da tarde.
Alguns aviadores brasileiros do Grupo de Caça ‘Senta à Pua’ encontram-se
baixados no hospital. Às vezes relatam um ou outro episódio, ocorrido com eles, nos
céus da Itália. Outras vezes, falam sobre acidentes com companheiros que vieram a
falecer.
Nestas ocasiões suas vozes ficam embargadas e seus olhos umedecem, relembrando
aqueles trágicos acidentes. Compartilho da dor que sentem, pois também já chorei a
morte de, alguns, bons companheiros.
Aceite um carinhoso beijo daquele que sempre a amará”.
102
Carta escrita no Hospital de Nápoles, Itália.
“Pai, está bem próximo o dia do meu retorno. Meses atrás, ao ser ferido, vi
claramente mamãe sorrindo e me acenando. Tenho certeza de que ela está bem, aonde
quer que esteja, pois, da forma como me sorriu, pude perceber que estava feliz. Temo
por você, sozinho e já idoso. Lamento, profundamente, não poder estar aí para
compartilharmos, juntos, nossas dores pela perda da mamãe.
Meus ferimentos, graças a Deus, foram leves e você não precisa se preocupar, pois
estou bem.
Não tenho planos para o futuro, desejando apenas estar em sua companhia,
enquanto pudermos, para desfrutarmos um do outro.
Tenho algumas economias que pretendo usar para fazer um bonito túmulo para
mamãe, além de algumas obras aí em casa.
Há muito não recebo noticias de Letícia. Imagino que já deve ter arranjado um
emprego em alguma escola municipal. Boa professora como é certamente os colégios
públicos irão querer contar com seus serviços, já que eles proporcionam um ensino da
melhor qualidade, melhor mesmo que o dos colégios particulares.
Foi uma pena que mamãe e Letícia não tenham se conhecido nesta existência. Não
tenho dúvidas de que ambas gostariam muito uma da outra. O temperamento delas era
muito parecido, pois ambas eram calmas, agradáveis, inteligentes e bondosas.
A você que continua sendo uma pessoa religiosa peço que reze ao Criador pedindo
por ela, mais para tranqüilizar a si próprio do que pelo benefício que ela poderia obter.
Em que pese acreditar na existência de um criador, não creio que ele interfira na vida e
na morte de quem quer que seja.
103
Imaginamos o Criador agindo, segundo nossas crenças e valores; entretanto, quem
somos nós, simples mortais, para tentar determinar como pensa, age e julga o Criador.
Quão pobre de espírito seria este, e quão imperfeita teria sido sua criação, caso
necessitasse de louvações, de orações, de pedidos e de oferendas para estabelecer seus
desígnios e para processar seus atos.
Convivendo algum tempo na guerra, tenho a convicção de que as coisas acontecem,
inexoravelmente, quando têm que acontecer. Se todas as mães e todos os pais de ambos
os lados do conflito, rezar ao Criador pedindo por seus filhos combatentes (o que
certamente fazem) estes, independentemente da quantidade de orações feitas,
continuarão a morrer em decorrência dos tiros, das bombas e dos acidentes. Caso
contrário seria possível uma guerra sem mortes. Nunca soube de nenhuma.
Se o Criador quisesse interferir na contenda, tê-lo-ia feito antes que ela se iniciasse,
impedindo-a, e não somente por ouvir os apelos de pais e mães dos combatentes. Como
diria Voltaire, podemos imaginar quatro alternativas: ou o Criador quer e não pode (é
bom, mas não tem poder), ou pode e não quer (tem poder, mas não é bom), ou não quer
e não pode (não é bom e não tem poder), ou quer e pode (é bom e tem poder).
Em minha opinião acredito na última hipótese, porém, sei que todos nós temos algo
a aprender, nesta e em outras existências. Por este motivo o Criador, embora podendo,
não interfere, modificando suas leis imutáveis em benefício de quem quer que seja.
Esperando que você se conforme com o sucedido, aguardo noticias suas e aceite um
forte abraço do filho que o ama”.
104
1946
105
Diário escrito na enfermaria do Terceiro Regimento, em Venda da Cruz, SG.RJ.
Finalmente, em 22 de junho de 1946, cheguei ao Rio de Janeiro, após quase dois
anos na Itália. Papai não estava me esperando no aeroporto.
Em minha cadeira de rodas, que havia ganhado de presente ao deixar o hospital,
dirigi-me para o ponto de táxi. Embarcando, dei ao motorista o endereço para onde
desejava ir.
Após cerca de uma hora e meia de viagem, chegamos à rua na qual eu brincava
quando criança. Nada ali havia mudado para mim. A rua continuava de terra batida e
as casas, embora modestas, apresentavam flores nos pequenos jardins que possuíam.
Várias crianças correram em direção ao carro, quando este parou em frente à casa de
meu pai.
Quando desci e sentei-me na cadeira de rodas que o motorista havia retirado da
mala, notei que recuaram ao olharem para mim.
Chamando a porta, ninguém atendeu. Pouco depois uma vizinha veio em minha
direção e contou-me que meu pai havia falecido logo após a morte de minha mãe.
Estavam ambos enterrados no pequeno cemitério, próximo dali.
No mesmo carro que me trouxera até ali, voltei para o centro da cidade, após passar
pelo cemitério onde contemplei os túmulos de meu pai e de minha mãe, separados
apenas por uma fileira de arbustos com flores amarelas.
Hospedei-me no andar térreo de um hotel na Rua do Lavradio e permaneci
encerrado no quarto durante vários dias, apenas saindo para fazer as refeições.
No restaurante, notava a sensação desagradável de quantos me fitavam sentado à
mesa.
Assim, transcorreram-se dois meses.
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Desde que chegara ao Rio de Janeiro, sentia-me na obrigação de visitar a família do
tenente comandante do meu pelotão, de quem além de subordinado era amigo.
Um dia, tomando coragem, embarquei em um táxi e dirigi-me à rua, no bairro da
Tijuca, cujo endereço ele havia me dado certa ocasião.
Não foi difícil localizar sua casa. Tocando a campainha, uma senhora com
aproximadamente 50 anos veio até o portão atender.
Ao identificar-me como sendo da mesma companhia e do mesmo pelotão de seu
filho, abraçou-me carinhosamente e mandou que entrasse.
Em casa estavam, apenas, ela e sua filha, cuja idade regulava com a do meu amigo e
comandante.
No início, apresentaram um comportamento muito tímido, porém, com o
transcorrer da conversa pediram-me que relatasse, com detalhes, a nossa vida nos
campos de batalha da Itália. Pediram-me, também, que falasse sobre as condições em
que ocorrera a morte do filho e irmão.
Com respeito a esta, disse apenas aquilo que ouvira dizer no hospital de Nápoles.
Com relação ao nosso dia a dia, falei-lhes da nossa amizade, iniciada tão logo nos
conhecemos. Disse-lhes que eu também estudava Direito e pretendia ser seu sócio,
quando a guerra terminasse e ambos concluíssemos o curso.
Contei-lhes das inúmeras situações difíceis que vivenciamos juntos e das incontáveis
vezes em que havíamos salvado a vida um do outro. Lamentei estar no hospital quando
soube de sua morte, pois, se estivesse ao seu lado, talvez pudesse ter evitado aquele
triste desfecho.
Discorri sobre as inúmeras ocasiões em que conversávamos sobre nossos entes
queridos. Naqueles momentos, ambos ficávamos com os olhos marejados pela saudade
que sentíamos de casa e dos familiares que deixáramos.
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Falei-lhes sobre as misérias da guerra que fazem com que, aos poucos, nos
transformemos e nos tornemos insensíveis à dor e ao sofrimento, nosso e dos demais.
Disse-lhes da emoção de ver companheiros feridos morrer em nossos braços, sem
que possamos fazer outra coisa, além de segurar suas mãos e torcer para que resistam
um pouco mais, até a chegada do socorro médico.
Falei do espírito de solidariedade que, muitas vezes, faz com que um companheiro se
sacrifique ou, até mesmo, dê a vida pelo outro.
Mencionei o fato de, durante o tempo em que permaneci no ‘front’ não haver visto
nenhum ateu entre os infantes combatentes. A proximidade diuturna com a morte
impede, em todos nós, a dúvida quanto à existência de um criador.
Elas me ouviam em silêncio e, quando parei de falar, a mãe começou a soluçar.
Disse-me, então, que sempre tivera um pressentimento de que alguma coisa ruim
ocorreria com seu filho, logo após a partida dele do Brasil.
Falou das inúmeras vezes em que não conseguia conciliar o sono, pensando no que o
filho estaria fazendo e por quais dificuldades estaria passando.
Disse-me das centenas de ocasiões em que fora à igreja orar pela volta do filho, salvo
e com saúde. Mencionou as centenas de velas que havia acendido nas igrejas, os terços
que havia rezado e as novenas de que participara; tudo aquilo em vão.
Não podia compreender porque o criador havia deixado de atender aos seus pedidos
e permitira que um filho tão bom, trabalhador e patriota (pois havia sido voluntário)
tivesse aquele trágico destino.
Sem saber o que dizer-lhe, afirmei, na ocasião, que jamais poderemos compreender
os desígnios do Criador. Muitas vezes temos um objetivo na vida que não corresponde
ao objetivo que o Criador tem para conosco.
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Com a chegada do marido, de volta do trabalho, despedi-me de todos e retornei para
o meu hotel.
Um dia pela manhã resolvi ir a São Domingos, em Niterói, apenas para passar em
frente à casa de Letícia, contando que, com um pouco de sorte, talvez pudesse
contemplá-la no jardim regando algumas plantas, ou mesmo vê-la caminhar pela
calçada com seu porte esguio e seu andar macio e elegante.
Tomei um táxi na porta do hotel e dirigi-me a Praça XV de Novembro. Lá chegando
peguei uma barca para Niterói onde, novamente, embarquei em um táxi que me levou
até São Domingos.
Passei, por várias vezes, em frente à casa de Letícia, que me pareceu totalmente
deserta.
Por fim, não me contendo, pedi ao motorista que parasse. Descendo, com esforço,
toquei a campainha.
Como ninguém atendesse, dirigi-me a casa ao lado. Lá, uma senhora informou-me
que a avó de Letícia havia falecido meses antes e que esta, tendo recebido notícias de
que seu namorado, ou noivo, havia falecido na guerra, mudara-se dali para uma cidade
no interior do Estado, onde havia obtido emprego como professora. Não sabia dizer
para que município fora, pois Letícia mudara-se sem deixar endereço.
Embarcando novamente no táxi, pedi ao motorista que rumasse para o Terceiro
Regimento de Infantaria, em Venda da Cruz.
Ao trafegar pela Rua Dr. March e contemplar as lojas e as pessoas circulando, era
como se aquele passado de militar, servindo no Terceiro Regimento, voltasse ao
presente, fazendo com que aqueles anos passados nos campos de batalha da Itália não
houvessem ocorrido.
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Ao contemplar os muros do quartel, o portão da guarda e a alameda com palmeiras
que conduzia ao prédio principal, meus olhos encheram-se de lágrimas.
Lembrei-me de quando, apenas dois anos antes, eu percorria aquelas alamedas
correndo junto com outros companheiros durante as atividades de ginástica. Recordeime dos dias de corte de cabelos na barbearia do quartel quando, reunidos por
companhias, ficávamos longas horas conversando sobre nosso futuro e sobre
amenidades. Notava naquelas ocasiões, que, por estudar Direito, os colegas tinham um
pouco de inveja de mim; já que muitos eram analfabetos, a maioria tinha apenas o
curso primário e alguns poucos haviam cursado o ginásio.
Identificando-me no portão da guarda, pedi para falar com o comandante do
quartel.
Este já não era mais o antigo Coronel Mazza e, embora também coronel, chamavase Oscar Rosa Nepomuceno da Silva.
Atendeu-me com cortesia e, sabendo de minha situação, ofereceu-me hospedagem no
quartel, por uns meses, até que minha vida se regularizasse. Deu-me uma cama e um
armário de madeira, em um canto vazio da enfermaria.
O pouco que havia economizado, gastei mandando fazer dois túmulos de mármore
para meus pais e comprando uma cadeira de rodas nova, pois a antiga era muito
incomoda e me tinha sido dada, em caráter provisório, lá no hospital de Nápoles.
Recomendaram-me, naquela ocasião, que, logo que fosse possível, adquirisse uma
mais moderna.
No quartel fiquei sabendo através de alguns companheiros que haviam servido ali e
que, tendo dado baixa após o seu retorno da Itália, lá compareciam para matar as
saudades do Terceiro Regimento, que grande parte dos militares mantidos na ativa
após retornarem da guerra, estavam sendo objeto de discriminação, em maior ou
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menor intensidade, nas novas unidades para onde haviam sido designados, por parte de
alguns militares que não haviam participado do conflito mundial.
Alguns dos que não haviam tomado parte nos combates da Itália, encaravam aos
veteranos que chegavam com certa inveja e injustificado temor.
Achavam, talvez, que os veteranos ocupariam seus lugares nas funções mais
importantes, dada suas experiências de guerra.
Muitos que já eram oficiais antes de partirem para a guerra, tiveram, ao voltar, de
matricular-se na Escola de Formação de Oficiais. Vários outros foram preteridos na
carreira.
Como disse um filósofo, a natureza humana é de tal ordem que, em condições
normais, cada um preocupa-se apenas consigo e com os seus.
Um dia, resolvi descer, na cadeira nova, a Rua Dr. March, em direção a Rua
General Castrioto. Pretendia fazer uma visita ao seu Miranda, com quem costumava
conversar quando servia como soldado no Terceiro Regimento.
Descendo em direção ao armazém do Miranda, ia contemplando as lojas que se
estendiam pela Rua Dr. March.
Fazia tão pouco tempo que percorrera, pela última vez, aquele caminho, porém,
para mim, tudo tinha agora um aspecto diferente. As pessoas com as quais cruzava em
minha cadeira, não tinham a mínima idéia de por onde eu havia andado e o que havia
feito. Muitas delas sentiam-se visivelmente incomodadas, quando tinham que ceder o
lugar ou desviar-se do caminho da minha cadeira de rodas.
O calor e o sol forte que faziam obrigavam-me a andar devagar com a cadeira, que
era movimentada pela minha própria mão agindo sobre a roda direita. Nenhum dos
passantes que trilhavam o mesmo caminho meu, se ofereceu para empurrá-la.
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A calma existente naquele recanto do mundo era muito diferente da tensão diuturna
que eu vivenciara nos últimos dois anos, há milhares de quilômetros dali.
No trajeto cruzei com vários militares fardados que retornavam, andando, para o
quartel do Terceiro Regimento. Eram todos jovens e alegres como eu fora, também, há
apenas alguns anos antes.
Olhando aquelas vitrines que expunham artigos que me faziam falta, mas que não
poderia adquirir com o meu soldo, senti uma tristeza enorme por tudo aquilo que o
destino me havia reservado.
Absorto em meus pensamentos, quando dei por mim já me encontrava em frente ao
armazém do Miranda.
Ao entrar com a cadeira, notei que me olhou, porém, vi que não havia me
reconhecido. Ao chegar mais próximo e perguntar o que eu desejava, percebi que só
então me reconhecera, pois seus olhos azuis encheram-se de lágrimas e, dando a volta
ao balcão, aproximou-se de mim e me abraçou. Ficamos abraçados, chorando, durante
vários minutos. Em seguida, cerrou as portas e mandou-me entrar em sua casa, que
ficava nos fundos do armazém.
Passei o dia contando-lhe sobre minha vida e meus infortúnios, durante e depois da
guerra. Disse-me, naquela ocasião, após ouvir-me, que, através das lojas maçônicas
espalhadas pelo interior do Estado, poderia tentar localizar Letícia. Agradeci-lhe e
declinei do favor. Certamente ela já teria refeito sua vida, até mesmo casado, talvez
tivesse um filho. Eu, na vida dela, seria somente um fardo a mais para carregar e
desejava que mantivesse, com relação a mim, apenas boas recordações.
Miranda pediu a esposa, dona Totinha, que mostrasse o filho que havia nascido no
ano anterior. Com o bebê no colo e olhando-me firmemente, disse emocionado: - Este
será militar, em sua homenagem!
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Despedi-me do Miranda sabendo, naquele momento, que nunca mais voltaria ali.
Minha carreira, como advogado, era coisa do passado. Com a dificuldade de
locomoção que tinha e com o meu aspecto físico, dificilmente conseguiria clientes.
Talvez nem conseguisse me formar advogado, com as limitações que apresentava.
Sem objetivo na vida, com a reduzida pensão que recebo e que me obriga a morar
de favor nas dependências do quartel, praticamente sem amigos e sabendo que causo
repugnância àqueles que me vêem, desejaria ter ficado nos campos de batalha da Itália,
junto com meus companheiros mortos e com os inimigos que matei. Talvez o Criador
fosse um pouco condescendente comigo e me permitisse re-encontrar meu pai e minha
mãe.
Neste dia finalizo este diário que me acompanhou, durante os últimos anos, por
lugares tão distantes. Não há mais razão para continuar a redigi-lo, pois sei
inteiramente seu conteúdo, não possuo descendentes para quem deixá-lo e, certamente,
ninguém se interessará pelo que contém; já que fala, tão somente, sobre a vida de um
simples soldado de infantaria, até então sobrevivente aos apelos da morte para um
encontro pessoal, encontro este, finalmente, marcado para hoje.
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