FUTEBOL FEMININO E SEXUALIDADE

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FUTEBOL FEMININO E SEXUALIDADE
Revista das Faculdades Integradas Claretianas – Nº 2 – janeiro/dezembro de 2009
FUTEBOL FEMININO E SEXUALIDADE
Lívia Bonafé D’Ávila
Faculdades Integradas Claretianas
lí[email protected]
Osmar Moreira de Souza Júnior
Faculdades Integradas Claretianas
[email protected]
Resumo
O objetivo do presente estudo consistiu em analisar a forma como meninas praticantes de futsal que
participaram dos Jogos Regionais, entendem as questões relacionadas à sexualidade no contexto do futebol
feminino. O estudo foi desenvolvido por meio da aplicação de uma entrevista semi-estruturada a nove atletas
participantes do referido torneio. Os resultados indicam que todas as participantes já vivenciaram, ou
presenciaram episódios de preconceito no futebol feminino, incluindo preconceito de gênero e relacionado à
orientação sexual. Os dados revelam ainda que existe uma confusão entre os conceitos de orientação e
identidade sexual que, muitas vezes, são discutidos pelas entrevistadas como tendo o mesmo significado.
Portanto, podemos concluir que os conceitos relacionados à sexualidade ainda não se apresentam de forma clara
em nossa sociedade, carecendo de maior clareza de sentidos e significados, o que dificulta uma re-significação
dos papéis vivenciados pelas mulheres futebolistas, em nossa sociedade.
Palavras-chave: futebol feminino – sexualidade – gênero – orientação sexual – identidade sexual
1 Introdução
Não é novidade para ninguém, que no Brasil o futebol1 é considerado esporte para homens. Também não
é nenhuma novidade que no país do futebol, as mulheres que praticam este esporte acabam sendo rotuladas de
“sapatões” ou outros adjetivos com conotação homossexual, de maneira pejorativa. As mulheres que optam por
praticar futebol no país devem estar dispostas a enfrentar uma série de barreiras recheadas de episódios de
preconceitos e discriminações principalmente de gênero.
Este tema torna-se relevante, na medida em que o futebol feminino no Brasil ainda carece de maiores
estudos, na tentativa de compreender como uma manifestação que conseguiu uma ascensão tão significativa do
ponto de vista do nível técnico, e também do aumento do número de participantes, ainda sofre com as condições
de estrutura tão precárias, e com os estigmas, discriminações e preconceitos, que deixam a modalidade à
margem da sociedade. O estudo justifica-se ainda pela escassez de publicações que se lancem ao desafio de
entender o universo da sexualidade dentro do futebol feminino, visto que este é um tema extremamente
polêmico e desafiador para qualquer pesquisador2.
1
Para o presente estudo a distinção entre as modalidades futebol e futsal é irrelevante, portanto não estaremos preocupados em fazer esta
distinção ao citar uma ou outra modalidade.
2
O termo pesquisador assume o sentido vinculado aos gêneros masculino e feminino, assim como durante todo o texto utiliza-se esta concepção
terminológica generalizada para facilitar a fluência da leitura.
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Enfim, o estudo é resultante do desenvolvimento de uma pesquisa de iniciação científica, sendo que o
interesse pelo tema surgiu em função da história de vida da pesquisadora, praticando o futebol por alguns anos
e
convivendo
com
situações
que
se
relacionavam ao preconceito e à discriminação ligados às questões de gênero, bem como convivendo com o
orientador que foi seu treinador durante a implementação de um projeto esportivo-social, desenvolvido de forma
voluntária do período de 2002 até 2008.
Segundo Hult (1994 apud KNIJNIK; VASCONCELLOS, 2003a, p. 2), a participação feminina no esporte
sempre foi alvo de muitas controvérsias. Há algumas décadas, as mulheres eram proibidas de participar das
práticas esportivas, sob diversas alegações, que variavam desde sua fragilidade física, passando pela condição
materna, e até mesmo pelo fato do espaço esportivo fortalecer o espírito de guerreiro masculino, sendo
apontado como único lugar onde a supremacia masculina seria incontestável.
Em 1896, quando o barão Pierre de Coubertin trouxe as Olimpíadas de volta, mantinha-se o pensamento
de que atividades esportivas só eram indicadas para homens, pois, na época, o pensamento era de que o corpo
feminino não teria nascido para participar de competições esportivas, tornando então, o papel da mulher, dentro
das Olimpíadas, restrito às arquibancadas como torcedoras ou como responsáveis pela premiação dos vitoriosos.
Embora possamos afirmar que o universo esportivo configura-se em um espaço de dominação do sexo
masculino, não podemos perder de vista que, aos poucos, as mulheres estão conquistando o seu espaço neste
cenário. Contudo, é certo que algumas modalidades esportivas ainda se mantêm resistentes à presença das
mulheres, sendo que esta resistência adquire um caráter cultural, social e histórico, ou seja, uma modalidade
esportiva pode sofrer algum tipo de resistência à participação feminina em uma determinada cultura e não sofrer
em outra, ou ainda sofrer esta resistência em uma determinada época ou período histórico, e deixar de sofrer
em outro período.
O objetivo do presente estudo consiste em analisar a forma como meninas praticantes de futsal que
participaram da 52ª edição dos Jogos Regionais da 4ª região do Estado de São Paulo, realizados no município de
Rio Claro, entendem as questões relacionadas à sexualidade no contexto do futebol feminino.
2 Futebol no Brasil: da origem elitista à presença feminina
De acordo com Máximo (1999), existem várias versões para a origem do futebol brasileiro, algumas nos
falam de holandeses jogando bola nas areias de Recife, em 1870, outras de ingleses improvisando rachas na
praia carioca da Glória, em 1874, outras, ainda,
dos marinheiros do navio Criméia jogando próximo da
residência da princesa Isabel em 1878, ou de funcionários de uma firma paraense de navegação, enfrentando os
de uma companhia de gás, na Belém de 1890, ou de empresários ingleses em partidas no interior de São Paulo,
mas, sem dúvida a versão mais aceita é a de Charles Miller.
Miller era paulistano, filho de ingleses, e depois de ter estudado na Inglaterra, onde conheceu o futebol
praticado nos recreios das escolas, retornou ao Brasil, em 1895, trazendo, na bagagem, camisa, calção,
chuteiras e duas bolas oficiais. Foi com jovens de “boas famílias” como a sua, até então interessados em
críquete, golfe, tênis e outros esportes, que Miller realizou a primeira partida de futebol que se tem noticia, de
forma oficial.
Charles Miller convidou seus amigos para o jogo, ensinando-lhes alguns fundamentos do futebol,
dividindo em dois times, escalando um deles para juiz e outro para bandeirinha, e lá foram fazer historia na
várzea do Carmo (MÁXIMO, 1999). Como podemos perceber, o futebol brasileiro, em sua origem, só era
praticado por nobres.
Segundo Betti (2004), enquanto o futebol foi praticado pelas camadas altas, conservou seu caráter
amador, que estava de acordo com sua origem aristocrática inglesa, e fez parte das competições freqüentadas
pela “boa sociedade”. Lentamente as camadas mais baixas iniciaram sua participação nas famosas “peladas”,
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nas quais os meninos pobres, principalmente negros, que não iam à escola, desenvolviam suas habilidades
futebolísticas.
O autor lembra ainda que em 1904, no subúrbio de Bangu, no Rio de Janeiro, havia uma fabrica de
tecidos, cujos dirigentes ingleses fundaram um clube, mas em virtude da distância, não conseguiam completar
as equipes e eram obrigados a recorrer aos operários da fábrica para que os times ficassem completos. Logo
foram concedidos privilégios especiais aos bons jogadores, como licenças para treinar e promoções mais rápidas.
O clube Bangu passou a se tornar mais importante do que a fábrica, e jovens operários passaram a ser
contratados não apenas para trabalhar, mas porque jogavam bem. Desta forma, operários e homens negros,
pertencendo a clubes que tinham status, foram admitidos nas equipes de clubes socialmente reconhecidos, cujos
jogadores eram quase todos estudantes de direito e medicina.
Alguns clubes e federações passaram a exercer uma forte resistência contra esta popularização do
futebol, exemplo disso foram algumas medidas propostas por ligas organizadoras, que exigiam que os
participantes comprovassem o exercício de uma profissão, ou posse de uma fortuna, e também assinatura dos
atletas na súmula, quando a maioria dos jogadores das classes pobres eram de analfabetos. Muitos clubes
contrataram professores para alfabetizar seus atletas e criaram para eles falsos empregos (BETTI, 2004).
Betti (2004) acrescenta que a popularidade do futebol passou a atrair cada vez mais público, elevando o
status dos clubes, que concentravam interesses financeiros cada vez maiores e dependiam do desempenho de
suas equipes. Para melhorar esse desempenho, foi necessário buscar jogadores nas camadas mais baixas, nas
quais havia craques talentosos que praticavam o futebol com dedicação e nele viam uma possibilidade de
ascensão social. A partir de então se abre caminho para a profissionalização do esporte que seria implantada em
1933. O futebol já era, então, um fenômeno social do Brasil.
Segundo Salles, Silva e Costa (1996), antes do surgimento do futebol, os esportes da elite brasileira,
eram o remo e a equitação, obtendo também as atenções das mulheres. Com a chegada do futebol, estas duas
modalidades foram perdendo espaço como esportes preferidos pela sociedade, deixando também de ser os
esportes prediletos das mulheres, que passaram a ser vistas nos estádios trajadas como se estivessem em uma
festa de gala. Fica assim registrado o primeiro contato das mulheres com o futebol no Brasil, como torcedoras
recatadas e comportadas nas arquibancadas dos estádios.
Porém, este contato logo foi interrompido, pois devido á apropriação do futebol pelas camadas
populares, houve uma inibição da presença feminina, no meio futebolístico. Havia uma ordem implícita inibidora
da presença da mulher nesse espaço, ditando códigos excludentes para o sexo feminino.
De acordo com Souza Júnior e Darido (2002), o principal empecilho para o atraso da participação das
mulheres no futebol, foi o preconceito ao longo do último século quanto a esta prática. Outro motivo, apontado
por Faria Júnior (1995) referiu-se à pouca participação e à falta de oportunidades nas escolas, em função de
uma Educação Física injusta, machista, burguesa e branca.
Faria Júnior (1995) apontou ainda, que foram utilizados argumentos biológicos para afastar as mulheres
do futebol. Tendo em vista que a classe médica era uma das principais referências da área de Educação Física,
até meados do século XX, podemos assumir que o discurso da medicina era incontestável perante a sociedade da
época. Em um artigo intitulado “Por que a mulher não deve praticar o futebol”, publicado em 1940, por Ballariny
(FARIA JUNIOR, 1995), da Escola de Medicina, o médico afirmava que o futebol masculinizava as mulheres, pois
desenvolveriam pernas grossas, tornozelos rechonchudos, joelhos deformados e até lesões mamárias.
Do ponto de vista psíquico, Faria Junior (1995) afirmou que o futebol foi considerado como um
agravante do espírito agressivo e combativo, qualidades incompatíveis com o gênio e com o caráter feminino,
que estariam relacionados a atributos como a fragilidade e a passividade.
Segundo Moura (2003), neste período as mulheres já sofriam restrições para praticar alguns esportes. O
professor da Escola Nacional de Educação Física e Desportos da Universidade do Brasil, Waldemar Areno, dividiu
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em três grupos os “desportos femininos”, começando por “indicados”, “permitidos com reservas” e “contraindicados”. Os esportes mais indicados pelos especialistas eram a natação, o tênis e o voleibol, sendo assim,
referindo-se aos contra indicados, ele afirmou: “é evidente que o futebol não pode fazer parte dos desportos
femininos, nem mesmo como grande jôgo” (Revista Brasileira de Educação Física, 01/1947: 31-3). Ele o contraindicava até para futuras profissionais, que certamente não poderiam ministrar aulas de Educação Física para a
comunidade em geral, pois eram “proibidas” de praticar “esportes masculinos”.
A luta diária das mulheres contra certas limitações, dentro do futebol e de outros esportes era bem
visível, buscando uma maior vivência no campo esportivo, até então dominado apenas pelos homens.
Em 1940, o médico Hollanda Loyola escreveu um artigo na Revista Brasileira de Educação Física, falando
sobre a pratica do futebol pelas mulheres, na cidade do Rio de Janeiro, conforme segue:
Há cerca de uns três meses um grupo de moças dos mais conceituados clubes esportivos dos
subúrbios de nossa capital iniciou a prática do futebol feminino entre nós [...] teem as nossas
patrícias disputado várias partidas entre vários clubes... A imprensa esportiva explorou-a
habilmente através de um noticiário minuncioso e de uma propaganda, intensa, aumentando o
entusiasmo do público e o ‘elan’ das jogadoras (LOYOLLA, 1940 p. 20 apud MOURA, 2003 p. 30).
Souza Júnior e Darido (2002) descreveram que, durante a época da ditadura militar, o Conselho Nacional
dos Desportos (CND) baixou uma deliberação (Deliberação CND 7/65) que proibiu a prática de determinadas
modalidades esportivas às mulheres, incluindo o futebol, o futebol de salão e o futebol de praia. Portanto, o
preconceito em relação à prática desta modalidade pelas mulheres era tão evidente que foi necessária a criação
de uma lei para impedir sua prática, convertendo, assim, o já existente preconceito, em uma ação
discriminatória, legitimada pelo Estado.
A situação do futebol feminino no país mudou apenas na década de 1980, quando o próprio CND
reconhece a necessidade de incentivar a prática, pelas mulheres, das diversas modalidades esportivas
existentes.
3 Futebol feminino e cultura
De acordo com Moura (2005), nos Estados Unidos, diferente da cultura brasileira, o futebol se apresenta
como uma área reservada para mulheres. Esse esporte é muito requisitado pelas universitárias, atraindo um
grande publico, tendo, então, uma aceitação bem favorável, chamando a atenção da mídia. Alavancado pelas
vitórias dentro de grandes competições, consagrações e medalhas, o futebol feminino subiu para um nível de
esporte profissional. Em 2001 foram transmitidos jogos ao vivo, pela emissora de televisão a cabo norteamericana TNT, da liga profissional de futebol feminino (WUSA). Para o futebol feminino, foi um ponto positivo,
pois significa que o esporte se tornou referência de espetáculo hegemônico, como por exemplo, beisebol,
basquetebol, futebol americano, que são os maiores espetáculos esportivos daquele país.
Estes dados mostram que a representação que temos dos esportes enquanto manifestações masculinas
ou femininas, não são fundamentados em aspectos naturais, mas, pelo contrário, são construções culturais
sujeitas a modificações históricas e sociais.
Goellner (2005) aponta que a pouca visibilidade conferida às mulheres no futebol brasileiro decorre da
aproximação entre o futebol e a masculinização da mulher e naturalização de uma representação de feminilidade
que estabelece uma relação linear e imperativa entre mulher, feminilidade e beleza. Por estarem profundamente
ligados, estes argumentos acabam por reforçar alguns discursos direcionados para a privação das mulheres em
algumas modalidades esportivas como o futebol.
Um episódio que nos ajuda a entender estas afirmações de Goellner, refere-se à estratégia utilizada pela
Federação Paulista de Futebol (FPF), para realizar o Campeonato Paulista de Futebol Feminino de 2001,
denominado de Paulistana. Preocupada em dinamizar o futebol na sua versão feminina a FPF promoveu uma
seleção de atletas a fim de direcioná-las aos principais clubes de futebol do estado.
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A imprensa fez uma grande cobertura do evento, ressaltando que um dos principais objetivos da FPF era
o “embelezamento” do torneio feminino, criando uma vitrine que, segundo o presidente da entidade, Eduardo
José Farah, “uniria a imagem do futebol à feminilidade”.
Knijnik e Vasconcelos (2003b) afirmam ainda que o processo de busca de atletas realizado pela
federação estava apoiado em realçar a beleza das candidatas, prova disso é que os cartazes de divulgação da
“peneira” estampavam uma famosa modelo trajando uniformes esportivos, convocando garotas entre 17 e 23
anos para participação no processo. O objetivo desta estratégia de marketing era mostrar que é possível jogar
futebol e possuir características femininas, aliás os próprios dirigentes destacavam que seria um campeonato
tecnicamente “bom e bonito”.
Knijnik e Vasconcelos (2003a) afirmam que houve um reforço, no contexto do futebol feminino, da
desvalorização da qualidade da pessoa, do feminino em si, e a valorização daquilo que já ocorre no processo de
socialização, ou seja, a beleza feminina estereotipada, incoerente inclusive com suas qualidades técnicas.
Além da questão estética vinculada à exploração do corpo feminino com apelo ligado à erotização, fica
clara a opção estratégica relacionada à imagem de um corpo feminino, buscando desvincular a imagem do
futebol feminino aos estigmas da futebolista “masculinizada” estigmatizada como “sapatão” que se faz presente
no imaginário social.
4 Desmistificando preconceitos de gênero
Cláudio Picazio et al. (1999 apud AREIAS, 2006 p. 73-74) descreve quatro aspectos da sexualidade que
considera básicos para um entendimento mais apropriado das questões relacionadas ao gênero. Estes aspectos
referem-se ao sexo biológico, identidade sexual, orientação do desejo sexual e papel sexual.
Sexo biológico deve ser entendido como uma característica genética, segundo a qual as pessoas podem
ser classificadas em mulher, homem ou hermafrodita, em função de suas características sexuais biológicas.
Orientação do desejo, ou orientação sexual, refere-se ao sentimento de atração direcionado à pessoa
com quem desejamos nos relacionar amorosa e sexualmente. Diante dela as pessoas podem ser classificadas
como homossexual, heterossexual ou bissexual. Diz-se homossexual quando uma pessoa tem desejo de
relacionar-se afetiva e sexualmente com alguém que possua sexo biológico igual ao seu. Heterossexual é quem
possui desejo de relacionar-se afetiva e sexualmente com alguém de sexo diferente do seu. E bissexuais são
aquelas que têm desejo de relacionarem-se afetiva e sexualmente com quem lhe inspire atração (afetivo-sexual)
independente do sexo biológico.
A Identidade sexual está intimamente ligada ao sexo biológico. Apesar da classificação biológica das
pessoas enquanto homens ou mulheres, pode ocorrer do indivíduo não se identificar com seu sexo biológico. Ou
seja, uma mulher pode ter uma identidade sexual não correspondente a seu sexo biológico, sendo esta a
identidade masculina. Espera-se que mulheres tenham uma identidade sexual feminina e que homens tenham
uma identidade sexual masculina, no entanto, nem sempre isso acontece.
Papel sexual consiste na classificação atribuída às pessoas como femininas ou masculinas de acordo com
o papel que exercem na sociedade (atitudes, comportamentos, etc.), considerados femininos ou masculinos.
“Esses papéis variam de acordo com a época e cultura” (PICAZIO et al., 1999 apud AREIAS, 2006, p. 74) e o
que é considerado feminino por nossa cultura ou hoje, pode ser considerado masculino em outra cultura ou em
outro período histórico. O futebol, no Brasil, por exemplo, é considerado um esporte masculino, que deve ser
praticado por homens, já nos Estados Unidos, esse mesmo esporte é considerado feminino, sendo
majoritariamente praticado por mulheres.
De acordo com Areias (2006), a prática social, a vida em sociedade, faz com que muitas vezes sintamos
necessidade de expressarmos nossa identidade sexual através de comportamentos ligados ao papel social
correspondente a ela.
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As mulheres (sexo biológico feminino), por exemplo, demonstram sua identidade sexual feminina,
se adotarem comportamentos sociais femininos, mesmo que sintam vontade de adotar
comportamentos sociais masculinos. Assim, tentam demonstrar diante da sociedade, sua
satisfação interna de sentir-se mulher através de comportamentos designados femininos. Em
nossa sociedade convencionou-se a ligação entre essas duas coisas, ou seja, que para ‘sentir-se
mulher’ deve-se ter um comportamento social feminino, sendo que, na realidade, a identidade
sexual (o sentir-se mulher internamente) está ligada a sentir-se confortável ou não com seu corpo
(sexo biológico), o que não tem ligação com a obrigação de ter que sentir-se bem adotando um
papel social feminino. “Tudo o que associamos a ‘coisa de homem’ ou ‘típico de mulher’ faz parte
dos papéis sociais e sexuais que a pessoa está exercendo ou adquirindo” (PICAZIO et al., 1999,
p.22). A mulher que se comporta de uma maneira correspondente a sua condição feminina, ou
seja, ao papel social que se espera da mulher, é socialmente aceita e estimulada a continuar
comportando-se dessa maneira. Quando a mulher resolve comportar-se de uma maneira que, em
relação aos comportamentos sociais esperados de uma mulher, causa estranheza, a ela é muitas
vezes atribuído o rótulo de homossexual (AREIAS, 2006).
Picazio et al. (1999 apud AREIAS, 2006, p. 75) admite que pessoas que desempenham papéis sexuais
diferentes dos habituais, como a mulher que joga futebol, passa a carregar o estigma de homossexual. Os
autores acrescentam ainda que uma mulher não é homossexual apenas por jogar futebol, não importando o
quão “masculina” ela pareça, o que define sua homossexualidade é o desejo de se relacionar com pessoas do
mesmo sexo. Portanto, não há, necessariamente, correspondência entre os papéis sexuais e a orientação do
desejo sexual.
Estas conceituações nos auxiliam no entendimento e interpretação adotados pela FPF, em 2001, e ainda
hoje presentes em nosso imaginário social, de que a imagem da mulher futebolista estaria diretamente ligada à
homossexualidade e ao rótulo pejorativo de “sapatões”, quando, na verdade, temos uma confusão entre a
orientação do desejo, a identidade e o papel sexual exercido por estas mulheres. Deste modo, a partir da
identificação destas mulheres com papéis que não correspondem àqueles relacionados ao seu sexo biológico a
sociedade desqualifica-as para o exercício de sua cidadania em todos os sentidos.
Por fim, Goellner (2005) afirma ainda que é possível compreender que a associação entre esporte e “a
masculinização da mulher” atravessa décadas e, mesmo que em muitas situações as atletas tenham saído das
zonas de sombra, ainda hoje são recorrentes algumas representações discursivas que fazem apologia da beleza
e da feminilidade como algo a ser preservado, em especial naquelas modalidades esportivas consideradas como
violentas ou prejudiciais a uma suposta natureza feminina.
Goellner (2005) enfatiza ainda que em se tratando de um país como o Brasil, onde o futebol é
declaradamente incorporado à identidade nacional, torna-se necessário pensar, o quanto este ainda é para as
mulheres um espaço não apenas a conquistar, mas, sobretudo, a re-significar alguns dos sentidos que a ele
estão incorporados de forma a afirmar que esse espaço é também seu. Um espaço de sociabilidade e de
exercício de liberdades.
5 Metodologia
O estudo baseia-se em uma abordagem qualitativa de pesquisa. A pesquisa qualitativa consiste na
metodologia adotada pelas ciências sociais, que sustenta que os fenômenos humanos e sociais são muito
complexos e dinâmicos, o que torna quase impossível o estabelecimento de leis gerais, como na física ou na
biologia. O objetivo desta metodologia de pesquisa consiste no entendimento de um fato particular, ao invés da
sua explicação causal. Além disso, o contexto particular em que ocorre o fato é um elemento essencial para a
sua compreensão (ANDRÉ, 1995).
De acordo com Negrine (1999), uma das linhas mestras que norteia o paradigma qualitativo, se sustenta
na crença de que as generalizações não são possíveis, isso significa que as inferências que se produzem a partir
do processo investigatório se traduzem em hipótese de trabalho, que se refere a um contexto particular. Nesse
sentido, o planejamento naturalista está direcionado a desenvolver conhecimento ideográfico, com a finalidade
de buscar diferenças entre os objetos.
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A base desse tipo de investigação está centrada na descrição, análise e interpretação das informações
recolhidas durante o processo de investigação, procurando entendê-las de forma contextualizada. Isso significa
que nas pesquisas de corte qualitativo não há preocupação em generalizar os achados.
A coleta de dados da pesquisa consistiu na realização de entrevistas semi-estruturadas com nove atletas
que participaram da 52ª edição dos Jogos Regionais da 4ª região, realizados em Rio Claro, em 2008. As
entrevistadas participaram dos torneios de futsal feminino da 1ª e 2ª divisões, representando nove diferentes
cidades da região. As entrevistas foram realizadas por ambos os pesquisadores e gravadas por meio de gravador
de áudio, e posteriormente transcritas integralmente com o intuito de favorecer a análise dos dados.
A opção por uma entrevista semi-estruturada reside na possibilidade de se interferir nas respostas
dos/as participantes, buscando facilitar o entendimento das questões e ao mesmo tempo aprofundar os temas a
serem analisados por meio de outras perguntas não previstas inicialmente. De acordo com Triviños (1987) a
entrevista semi-estruturada, ao mesmo tempo que valoriza a presença do investigador, possibilita que o
informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação.
5.1. Roteiro da entrevista semi-estruturada
1.
Nome:
2.
Idade:
3.
Desde que idade você joga futebol?
4.
Onde você começou a jogar e onde você já jogou?
5.
Qual o posicionamento de sua família em relação à sua participação no futebol?
6.
Você já sofreu algum tipo de preconceito ou discriminação por jogar futebol? Descreva alguma
situação.
7.
Você já presenciou algum episódio de preconceito ou discriminação no futebol feminino?
8.
Qual a sua opinião sobre as questões relacionadas à sexualidade no ambiente do futebol
feminino?
9.
Em sua opinião, a homossexualidade no futebol feminino está em que proporção em relação à
sociedade, de uma maneira geral: menor, igual ou maior? Justifique.
10. Você acredita que existe alguma relação entre a prática do futebol feminino e a homossexualidade?
Justifique.
6 Resultados e discussão
As primeiras questões das entrevistas foram referentes ao nome da entrevistada e a cidade pela qual
estava disputando os Jogos. O nome das cidades não será identificado no estudo, referindo-se apenas ao
número da entrevista de acordo com a ordem cronológica de sua realização. Quanto ao nome das atletas, optouse por substituir os verdadeiros nomes por nomes fictícios, com o objetivo de preservar a identidade das
entrevistadas: 1. Bruna; 2. Mariana; 3. Aline; 4. Juliana; 5. Vanessa; 6. Paula; 7. Gabriela; 8. Marcela e 9.
Carolina
A idade das entrevistadas variou entre 17 e 21 anos, sendo uma de 17 anos, duas de 18, três de 19,
duas de 20 e uma de 21 anos. A concentração nesta faixa etária justifica-se pelo fato do torneio em questão ser
realizado na categoria sub-21, sendo permitida apenas a participação de atletas que tenham entre 15 e 21 anos.
Com relação à idade de início da prática do futebol, devemos considerar que seria impossível determinar
exatamente qual o momento em que as atletas começaram a praticar o futebol, pois, além da dificuldade de
resgatar este fato por meio da memória, não existe um elemento que marque claramente este episódio, ou seja,
começar a jogar futebol deveria ser entendido como o primeiro chute que a garota deu em uma bola, quando ela
participou da primeira “pelada” com a família, quando ela deu alguns chutinhos no gol, com o pai de goleiro, ou
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algum outro episódio semelhante? Portanto, não iremos analisar uma idade específica, mas sim a faixa etária na
qual as garotas recordam ter tido os primeiros contatos com o futebol. Para facilitar a análise, iremos dividir
estas faixas etárias em três categorias: aquelas que começaram com até 8 anos de idade, as que começaram
entre 9 e 10 anos e as que iniciaram com 11 anos ou mais.
Na faixa etária de 8 anos ou menos, tivemos três atletas, entre 9 e 10 anos foram duas e a partir dos 11
anos quatro garotas. Este resultado indica que a maioria das garotas iniciaram seu contato com o futebol de
forma mais sistemática com idades acima dos 11 anos, o que indica que as meninas acabam iniciando-se na
prática do futebol mais tarde do que os meninos, pois, apesar de não termos dados científicos para comprovar a
idade em que os meninos iniciam esta prática, supõe-se, por meio de análise empírica, que eles iniciam esta
prática bem antes dos 11 anos de idade. Entendemos que este “atraso” das meninas para o ingresso na prática
do futebol deve-se a aspectos culturais, pois até os 9 ou 10 anos, as crianças são ainda bastante submissas às
determinações de seus pais, que, provavelmente, são involuntariamente “contaminados” por valores de uma
sociedade extremamente machista em relação à prática do futebol. Após os 11 ou 12 anos de idade, quando as
pessoas tornam-se um pouco mais independentes dos pais e tomam suas próprias decisões, é que as garotas
começam a fazer realmente aquilo que gostam, e, neste caso, a decisão de jogar futebol pode aparecer como
uma escolha pessoal.
O local de início da prática do futebol mais indicado pelas entrevistadas foi a escola, com cinco
indicações, aparecendo também a rua, com duas citações, escolinha de futebol, com uma e uma indicação
também para a equipe de futebol (masculina).
Em estudo realizado por Souza Júnior (1991), no qual foi ministrado um programa de aulas de futebol
para alunas de 5ª série do Ensino Fundamental, de uma escola estadual do município de Rio Claro, foi revelado
por meio de entrevistas, que nenhuma das participantes da pesquisa havia tido contato com o futebol na escola,
Tódaro (1997) em outro estudo, desta vez com atletas da seleção brasileira de futebol feminino, reforça estes
resultados, ao indicar que as mesmas começaram a jogar futebol nas ruas, em praias, ou clubes e não nas
escolas. Já em outros dois estudos realizados por Souza Júnior (2000 e 2001), com alunas que participavam de
um torneio de futebol escolar e com alunas de 7ª série do Ensino Fundamental, foi constatado que a escola era o
local mais indicado para início da prática do futebol. Estes dados vão de encontro aos dados do atual estudo e
indicam que a prática do futebol pelas meninas nas escolas é um fenômeno bastante recente, pois a modalidade
está presente nas aulas de Educação Física apenas a partir do final da década de 1990, e principalmente depois
da virada do século XX para o XXI.
Questionadas sobre o posicionamento da família em relação à sua pratica do futebol, sete das nove
meninas entrevistadas, apontaram que a família acompanha ou apóia, enquanto uma diz que a família era contra
no início, passando a aceitar, posteriormente, e uma indica que a família não é contra, mas, ao mesmo tempo,
esta entrevistada manifestou que sente falta de um maior apoio. Estes dados indicam que o futebol feminino
passou a ser mais aceito pelas famílias atualmente, como indica o depoimento da entrevistada Gabriela:
“Na minha família todo mundo sempre apoiou muito, minha mãe sempre esteve em todos os jogos, meu
pai também. Meu pai é um dos representantes do time, inclusive. Ele acompanha bastante. Minha irmã, meu
cunhado, todo mundo sempre esteve presente. Minha mãe, quando eu saí de casa para jogar, foi uma das
primeiras a falar: ‘É o que você quer? É o que você gosta de fazer? Vai em frente, não perca essa oportunidade’.
É uma das que mais me incentiva, está sempre presente.”
As questões de números 6 e 7, da entrevista, procuravam analisar se as meninas já sofreram ou
presenciaram algum tipo de preconceito ou discriminação, no meio do futebol feminino. Todas as entrevistadas
indicaram ter vivenciado ou presenciado algum tipo de preconceito ou discriminação, sendo que os mais comuns
estão relacionados à questão da orientação sexual, como nos casos em que afirmam que as meninas que jogam
futebol são chamadas de “sapatonas” ou “macho-fêmea” e à questão do gênero, como nos casos em que
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Futebol feminino e sexualidade
afirmam ter ouvido dos meninos que futebol não é coisa para meninas, e que elas deveriam estar lavando louça
ou pilotando o fogão.
“(...) às vezes a gente chega nos lugares, a gente esta juntas e com a camiseta escrito futebol, você
ouve algum comentário: ‘é sapatona, não sei o que’, então sempre tem um comentário aqui, um ali. (...)”
(Bruna)
“(...) sobre essa posição de machismo ‘vai limpar o fogão, vai pilotar o fogão’ certas coisas as vezes
deixa muito chateada.” (Gabriela)
Outro ponto que chama a atenção refere-se ao preconceito existente na sociedade, que acaba
misturando conceitos como a orientação do desejo sexual com a identidade sexual. Esta confusão fica clara em
passagens como aquelas em que as entrevistadas afirmam que amigas que tem o cabelo curto, sofrem mais
discriminação: “Eu acho que é ruim assim, menina de cabelo curto, amiga minha já é bem tratada diferente só
nesse ponto” (Paula). Esta situação revela que a aparência é um dos critérios para se interpretar a orientação
sexual das pessoas, resultando em julgamentos preconceituosos e atitudes discriminatórias.
“(...) única coisa é que as vezes amigos meus vem perguntar se tal menina é namorada de tal
menina, mas eu prefiro não comentar, eu falo, a vida não é minha, não tenho que me meter, eu penso assim”.
(Bruna)
Analisando o depoimento da entrevistada Bruna, descrito acima, fica apenas uma questão para
refletirmos: seria viável imaginarmos esta mesma situação, invertendo-se os papéis? Ou seja, será que
poderíamos imaginar uma menina perguntando a um amigo que joga futebol, se dois companheiros de time são
namorados? Parece-nos que não, e isso reflete que existe, sim, muito preconceito quanto à orientação sexual
relacionado ao futebol feminino.
Questionadas em relação ao que pensam sobre as questões relacionadas à sexualidade no ambiente do
futebol feminino, a maioria das entrevistadas remeteu imediatamente a questão à homossexualidade, sem que
este
tema
ao
menos
houvesse
sido
mencionado
pelos
entrevistadores.
Tal
situação
revela
que
a
homossexualidade encontra-se bastante presente na percepção das pessoas em relação ao futebol feminino.
Uma preocupação recorrente nas respostas das participantes refere-se à tentativa de justificar que não
pretendem julgar ninguém, que cada pessoa deve ser respeitada pelas suas escolhas, mas que estas escolhas
não poderiam interferir nos aspectos técnicos do futebol. Esta preocupação fica evidente em várias entrevistas
como apresentamos a seguir:
“Eu acho que não tem nenhum problema, desde que não afete dentro de quadra, se a menina souber
separar fora de quadra e dentro, não vejo nenhum problema, mas isso não ocorrendo dentro de jogo, Não vejo
nenhum problema.” (Vanessa)
“Eu acho assim, a opção de cada um é individual, só acho que na hora que esta um grupo reunido na
quadra, acho que tem que saber separar as coisas. Se esta ali dentro, ninguém é obrigado a ver nada que não
queira, e todo mundo sabe que é diferente. Não é uma coisa tão natural. Só que temos que respeitar a opinião
de cada um, se elas estão felizes assim, a gente não tem que se meter com isso. A vida é particular de cada
um.” (Bruna)
“Como em toda modalidade esportiva, existem muitas vezes no time que não são tão focadas em um
objetivo. Não tão concentrados no que querem fazer que realmente é jogar futebol, e as vezes acabam
atrapalhando times como o nosso, que querem realmente chegar em algum lugar, quer realmente mostrar que o
futebol, não é como era antigamente, um monte de gente de cabelo curtinho, apenas tentando jogar. Não, hoje
é possível sim ter um futebol realmente feminino.” (Gabriela)
Nesta última resposta, evidencia-se ainda uma confusão de significados, onde se misturam os conceitos
de sexo biológico, identidade sexual e orientação do desejo sexual, pois a entrevistada revela estabelecer uma
ligação linear entre a aparência da pessoa, seu sexo biológico e sua orientação sexual, indicando ainda que tais
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aspectos possuem uma relação de causa e efeito, ou seja, cabelo curtinho torna-se sinônimo de não-feminino.
Além disso, o discurso mostra-se preconceituoso, na medida em que a identidade sexual, relacionada à
aparência, desqualifica estas garotas, inclusive para a prática do futebol.
Questionadas em relação à proporção em que a homossexualidade se encontra no futebol feminino em
relação à sociedade de uma maneira geral, a maioria das entrevistadas (cinco) afirmou que esta proporção
estaria igualada, enquanto três entrevistadas acreditam que a homossexualidade estaria mais presente no
ambiente do futebol feminino, e uma afirmou que, fora do futebol feminino esta proporção seria maior do que
dentro. Novamente, fica claro que existe uma confusão entre os conceitos de orientação e identidade sexual,
como fica claro nas afirmações a seguir.
“No futebol, pelo que o povo fala, o jeito que se veste, a aparência, jeito mais masculino, tem mais
[homosexualidade].” (Carolina)
Por outro lado a resposta da entrevistada Aline, revela uma maior clareza na distinção entre orientação
do desejo e identidade sexual:
“Eu acho que tem mais fora do que no futebol, tem muitas meninas que tem até jeito de homem, cabelo
curtinho, mas quando você vê não tem nada a ver uma coisa com a outra, tem jeito de homem e gosta de
homem, não é porque esta no futebol que é [homossexual].”
Na última questão, o tema era a relação entre a homossexualidade e a prática do futebol feminino. A
grande maioria das entrevistadas fez questão de afirmar que não haveria uma ligação direta, dependendo muito
mais da “cabeça de cada pessoa”
“Eu acho que não, acho que depende da cabeça de cada um, ela vai virar se ela tiver uma cabeça fraca,
se ela não é, ela vai virar, ela não vai virar, não existe isso, eu acho que ela já nasce, se ela gosta de mulher,
ela vai gostar desde pequena, então acho que a mãe não pode acreditar que ali dentro vai fazer ela virar, só que
ela tem que acreditar na cabeça da filha dela, tem que fazer a filha dela estar com uma cabeça.” (Bruna)
Estas respostas acabaram não esclarecendo o ponto central da questão, pois ao afirmar que depende da
cabeça de cada pessoa, as entrevistadas acabaram fugindo do foco que seria a influência do ambiente,
independentemente da formação ou personalidade de cada pessoa. Estas respostas abrem margem para se
interpretar a influência do ambiente em qualquer um dos sentidos.
No entanto, estas respostas indicam que as entrevistadas valorizam mais aquilo que chamam de “cabeça
de cada uma” e, talvez, possamos interpretar como os valores e a maturidade de cada pessoa, do que a
influência do meio ambiente.
7 Considerações finais
O futebol é um esporte que possui mais de 110 anos de história em nosso país, contudo esta história
pode ser aplicada apenas à população brasileira do sexo masculino, tendo em vista que a aproximação da
mulher com o universo do futebol tem uma história bem mais curta, contando com momentos de discriminação e
preconceito implícitos e explícitos, como a criação de uma lei que proibiu as mulheres de praticarem o futebol,
em 1965, ou como o Campeonato Paulista de Futebol Feminino de 2001 que proibia a participação de garotas de
cabelos curtos, através de seu regulamento e os dirigentes admitiam publicamente que usariam a beleza e a
feminilidade como critérios de escolha das atletas que participariam do torneio em questão.
É impossível estabelecer algum tipo de análise do futebol feminino, em nosso país, sem levar em
consideração toda esta construção histórica que permeia o imaginário coletivo de valores sexistas, em relação ao
papel que a mulher deveria exercer em nossa sociedade. Assim sendo, inicialmente somos obrigados a admitir
que existe uma ideologia que sustenta valores culturais que, de alguma maneira, marginalizam a mulher
praticante do futebol, em nosso país.
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Futebol feminino e sexualidade
Alguns dos dados deste estudo apenas confirmam resultados já apresentados em outras pesquisas
recentes dentro desta mesma linha de estudos, ou seja, a idade relativamente maior do que aquela em que os
meninos tem o seu primeiro contato com o futebol, a escola como principal local do início e da prática do futebol
pelas meninas e o apoio ou ao menos a inexistência de oposição por parte das famílias, em relação às garotas
praticarem o futebol, são fatores que já foram abordados em outros estudos recentes como, Souza Júnior e
Darido (2002).
Com relação à vivência das entrevistadas, referente a sofrer ou presenciar episódios de preconceito no
ambiente do futebol feminino, todas afirmam já haver presenciado ou sentido tais situações, sendo que estes
episódios poderiam ser classificados dentro de duas categorias que incluem, por um lado, o preconceito
relacionado às questões de gênero, como os papéis sexuais socialmente determinados, “lugar de mulher é na
cozinha” e, por outro lado, o preconceito ligado à orientação do desejo sexual, “mulher que joga futebol é
sapatão”.
Embutidos nestes episódios de preconceito, podemos encontrar uma certa confusão entre os conceitos
de sexo biológico, orientação do desejo sexual, identidade sexual e papel sexual. Aliás, esta confusão foi um dos
pontos mais marcantes nas entrevistas, sendo que em geral as entrevistadas não demonstravam clareza ao
tratar de aspectos relacionados à aparência física ou modo de se vestir das pessoas – que estaria ligado à
identidade sexual – e a atração sexual ou afetiva por pessoas do mesmo sexo biológico, que estaria ligado à
orientação do desejo sexual.
Esta confusão entre categorias de análise distintas também pode ser entendida como responsável pela
pouca visibilidade conferida às mulheres no futebol brasileiro descrita por Goellner (2005), pois, a aproximação
que o senso comum prevê entre o futebol e a masculinização da mulher, e o estereótipo de feminilidade que
estabelece uma relação linear entre mulher, feminilidade e beleza não admitem que uma mulher possa ter uma
identidade sexual que tende para o “pólo masculino”, gostando de jogar futebol e, para o espanto dos
preconceituosos de plantão exercerem uma opção heterossexual. Tal configuração é rechaçada de forma
categórica pois subverte a lógica do referencial da heteronormatividade.
Portanto, podemos concluir que os conceitos relacionados à sexualidade ainda não se apresentam de
forma clara em nossa sociedade e, da mesma forma, no universo do futebol feminino aparecem sem uma clareza
de sentidos e significados, o que dificulta uma re-significação dos papéis vivenciados pelas mulheres futebolistas
em nossa sociedade.
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