A retirada de crianças nas situações urgentes

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A retirada de crianças nas situações urgentes
RETIRADA DE CRIANÇAS NAS SITUAÇÕES URGENTES
Resumo: O presente trabalho procura fazer a articulação entre as perspectivas da Justiça e das Ciências
Humanas relativamente às situações de retirada urgente da criança em perigo, chamando a atenção para a
necessidade de encontrar alternativas e estratégias adequadas, no sentido de evitar os danos psicológicos
consequentes às rupturas afectivas. Realça a importância da formação e comunicação entre os técnicos
envolvidos e aborda o conceito de vinculação, fundamental para o desenvolvimento da criança.
Palavras-chave: retirada de crianças; risco das rupturas afectivas; vinculação
INTRODUÇÃO
No actual modelo legal de protecção de crianças e jovens em perigo, vigente desde
Janeiro de 2001,1 existem procedimentos de maior exigência na sua concretização,
como sejam os relativos à retirada urgente duma criança ou jovem, em situação de
perigo iminente para a vida ou integridade física, e haja oposição dos detentores do
poder paternal ou de quem tenha a guarda de facto.
As ciências humanas, atentas aos danos psicológicos causados aquando duma incorrecta
actuação nessa retirada, têm reflectido e chamado a atenção dos comportamentos a
evitar, apontando algumas condutas e cuidados a ter em conta, no seguimento aliás dos
princípios que regem a lei de protecção de crianças e jovens em perigo, nomeadamente
ao seu uso como o último recurso a adoptar, conscientes da sua importância e riscos,
após esgotar as alternativas de colocação na família alargada, do afastamento do
agressor da residência e do acompanhamento da criança com o progenitor de melhor
referência. Procuraremos fazer a articulação destes saberes, no sentido de tentar
encontrar respostas mais adequadas para estas situações.
1 - Da Situação Jurídica Concreta:
Dispõe o artigo 91º da Lei de Protecção:
1- Quando exista perigo actual ou iminente para a vida ou integridade física da criança
ou do jovem e haja oposição dos detentores do poder paternal ou de quem tenha a
guarda de facto, qualquer da entidades referidas no art. 7º 2 3ou as comissões de
protecção4 tomam as medidas adequadas para a sua protecção imediata e solicitam a
intervenção do tribunal ou das entidades policiais.
2- As entidades policiais dão conhecimento, de imediato, das situações referidas no
número anterior ao Ministério Público ou, quando tal não seja possível, logo que cesse
a causa da impossibilidade.
3- Enquanto não for possível a intervenção do tribunal, as autoridades policiais retiram
a criança ou o jovem da situação de perigo em que se encontra, e asseguram a sua
1
Introduzido pela Lei 147/99 de 01de Setembro, Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em
Perigo, adiante referenciada apenas por LP
2
Artigo 7º da LP : “ A Intervenção das entidades com competência em matéria de infância e juventude é
efectuada de modo consensual com os pais, representantes legais ou com quem tenha a guarda de facto da
criança ou do jovem, consoante o caso, de acordo com os princípios e nos termos do presente diploma “
3
Entidades – as pessoas singulares ou colectivas públicas, cooperativas, sociais ou privadas que, por
desenvolverem actividades na área da infância e juventude, têm legitimidade para intervirem na
promoção dos direitos e na protecção da criança e do jovem em perigo – al.d) do artigo 5º da LP
4
De futuro cpcjp.
1
protecção de emergência em casa de acolhimento temporário, nas instalações referidas
no artigo 7º. Ou em outro local adequado
4- O Ministério Público, recebida a comunicação efectuada por qualquer das entidades
referidas nos números anteriores, requer imediatamente ao tribunal competente
procedimento judicial urgente nos termos do artigo seguinte.
Por seu turno dispõe o artigo 92º da mesma Lei:
1- O tribunal, a requerimento do Ministério Público, quando lhe sejam comunicadas as
situações referidas no artigo anterior, profere decisão provisória, em quarenta e oito
horas, confirmando as providências tomadas para a imediata protecção da criança ou
jovem, aplicando qualquer uma das medidas previstas no artigo 35º ou determinando o
que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem.
As situações mais comuns de necessidade de retirada urgente de que temos
conhecimento são as comunicadas pelos hospitais, sobretudo os pediátricos, quando
chamados a tratar os danos graves causados nas crianças ou jovens e, por dever de
ofício,5 desaconselharem que estas, após a alta clínica, possam ser entregues aos
cuidados dos seus pais ou a quem exerça de facto o respectivo poder paternal. Outra
situação, também comum, é a comunicada através de infantários ou de creches, de
crianças com indícios de maus tratos físicos, negligência ou abandono e, perante a
oposição dos familiares ao acolhimento fora da família, o direito à protecção dessa
criança obriga que se tomem comportamentos protectores mais enérgicos ou mesmo
eventualmente conflituosas.
Assim, são requisitos deste tipo de situações: 1º - Situação de perigo actual ou iminente
para a vida ou integridade física da criança ou jovem; 2º - Que haja notória necessidade
de a acolher retirando-a à família; 3º- Que a família se oponha a essa retirada para ser
acolhida.
Quando a lei atribui ás instituições de infância e juventude e ás cpcjp municipais a
tarefa de tomarem as medidas adequadas à retirada da criança ou jovem, quer chamar
atenção para a competência destas entidades de base, onde diariamente as crianças
passam grande parte do tempo, e a sua importância na detecção precoce dos sinais e
situações de perigo mais graves. Nesses casos os contactos certos, incluindo com a
cpcjp devem ser feitos de imediato, no sentido de avaliar a situação e identificar a
família alargada, ou o centro de acolhimento temporário (por si ou através do serviço de
emergência pelo número 144) para a eventual colocação das crianças em risco,
assegurando os respectivos procedimentos.
Relativamente a estas instituições importa referir que entendemos ser dever desses
infantários e creches levar as crianças ao hospital mais próximo, mesmo sem
consentimento ou conhecimento dos pais, quando constatados sinais sérios de indícios
fortes de maus tratos físicos, abusos sexuais ou violência doméstica para a atempada e
competente avaliação de indícios e recolha de prova bastante.
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Art. 65º da LP “ as entidades com competência em matéria de infância e juventude comunicam às
comissões de protecção as situações de perigo de que tenham conhecimento no exercício das suas funções
sempre que não possam, no âmbito exclusivo da sua competência, assegurar em tempo a protecção
suficiente que as circunstâncias do caso exigem”; e artigo 242º do Código Processo Penal, sbre denúncia
obrigatória de situação crime.
2
Na verdade, entendemos que tal dever emerge, por um lado, da natureza pública destes
tipos de crime que, uma vez conhecidos têm de ser denunciados à justiça6 (incluindo o
abuso sexual no interesse da criança vítima) 7 , garantidos os procedimentos cautelares e
recolha de prova e, por outro, o dever autónomo de intervenção na primeira linha do
sistema de protecção como instituições de infância e juventude que efectivamente são,
face ao disposto no artigo 7º da LP.
Ao fazer intervir a entidade policial no procedimento será, quanto a nós, fazer intervir
uma entidade de autoridade, na impossibilidade e ausência duma ordem judicial, para
tornar exequível e seguro o momento da retirada, mais do que uma entidade com
competência específica para a efectuar. Assim, sugere-se que a polícia não seja a
interventora na mediação com a família biológica, mas simples autoridade presente,
como garantia de segurança e do bom funcionamento do procedimento em execução.
Aconselha-se mesmo uma polícia desfardada, não na frente, mas na rectaguarda dos
intervenientes no procedimento da retirada.
Quanto à intervenção das cpcjp, pelo facto de trabalharem as famílias na base da
aceitação e com o seu consentimento expresso, por um lado, e da não oposição do
jovem8, por outro, não nos parece adequado que sejam elas as primeiras responsáveis a
mediarem o procedimento da retirada. Contrariamente, entendemos que devem
resguardar-se perante a comunidade, como entidade administrativa consensual e não de
poder ou exercício de autoridade que não têm nem devem ter.
Assim, quanto a nós, quem deve mediar em primeira linha a retirada da criança ou
jovem deve, de preferência, ser a técnica social já conhecida da família, ou a pessoa “
tutora “, caso exista, ou seja a pessoa já conhecida e aceite pela criança ou jovem e sua
família por lhes ter dado apoio anteriormente, em situações sociais diversas. Importante
é que já seja conhecida e aceite nessa família como figura mediadora, procurando
estabelecer uma relação de confiança, no sentido de tentar evitar as retiradas
traumáticas.
Ao Ministério Público cabe o papel da “mediação” entre as entidades anteriormente
referidas que avaliam, preparam e acolhem a criança e disso lhe darão conhecimento e a
apresentação dessa comunicação por este ao Sr. Juiz que a deverá apreciar, legalizandoa ou não e, depois, feitas as notificações necessárias, ordenará a autuação e distribuição
como processo de protecção. Neste particular é aconselhável o contacto o mais informal
e imediato possível entre as entidades que avaliam, preparam e acolhem de urgência e
dão conhecimento da situação de perigo da criança ou do jovem e o MºPº da comarca,
no sentido de todos garantirem o melhor cumprimento possível deste complexo
procedimento
2 – Da Comunicação da Situação Urgente de Perigo
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Artigo 178º n.º 4 do Código Penal
Artigo 242º do Código Processo Penal que dispõe : “ a denúncia é obrigatória para os funcionários
… quanto aos crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas “
8
Art. 9º e 10º -“ A intervenção das cpcjp depende do consentimento expresso dos pais, e da não oposição
da criança ou jovem com idade igual ou superior a 12 anos.
7
3
Nos termos do artigo 91º da LP, são duas as situações de comunicação neste
procedimento: na primeira deve funcionar bem a comunicação da situação de perigo
iminente para a vida e integridade física entre as entidades referidas no número anterior
para concretizar o acolhimento e, depois de acolhida a criança, a segunda comunicação
é da situação do acolhimento urgente ao tribunal para apreciar e legalizar ou não esta
retirada, em contexto de oposição dos familiares.
Quanto à primeira, as instituições de infância e juventude (infantários, creches escolas
hospitais, centros de saúde, ipss9, lares, etc.)., devem ter muita atenção aos sinais de
perigo e avaliação dos mesmos bem como a determinação bastante na comunicação a
quem pode ajudar nesse procedimento do acolhimento temporário: às cpcjp, à
emergência da segurança social, aos centros de acolhimento temporário ( Cats), à
Misericórdia, à Polícia e ao Ministério Público
Pelo que respeita à comunicação ao tribunal o qual descreve a situação de perigo e o
acolhimento da criança ou jovem, deve ser feita por via fax, com prévio contacto
telefónico ao MP, contendo, se possível, o contacto telefónico dos familiares do
acolhido para o tribunal os contactar de imediato. Para a eficácia deste procedimento é
importante o trabalho prévio de identificar nomes e telefones das pessoas a envolver no
procedimento tais como o MP, CPCJP, CDSS10 Misericórdia; CATS, Emergência;
Núcleos Apoio Criança na Saúde, etc.
Por entender que o Ministério Público, tanto nesta como noutras áreas, deve ter uma
acção dentro do tribunal e outra na comunidade, a quem lhe incumbe nos termos da lei
servir, o contacto com o Ministério Público, no momento do procedimento da retirada, é
aconselhável, para ajudar a avaliar a situação concreta e para garantir que a
comunicação desta situação urgente a tribunal (que a deverá legalizar ou não – artigo
92º da LP) terá especial atenção e apreciação no prazo legal das quarenta e oitos horas
após conhecimento desta·. Assim, os contactos directos da Segurança Social, MP.
CPCJP, Emergência, Centros de acolhimento temporário com emergência, facilitam a
intervenção em rede e a parceria no procedimento.
Recebida a comunicação no tribunal o MP deve apresentar ao juiz de turno o expediente
e deve, por fax, dar conhecimento à entidade comunicante da decisão tomada. Se
possível contactar de imediato com os familiares telefonicamente e no sentido de lhes
dar conhecimento informal de que o tribunal vai de imediato ouvir os progenitores ou
quem tenha a guarda de facto e apreciar a situação.
3 – Da vinculação e dos riscos das rupturas afectivas precoces
As observações de Bowlby sobre as consequenciais da privação materna precoce,
publicadas em 1951 no relatório «Maternal Care and Mental Health» a pedido da OMS,
foram determinantes no desenvolvimento da sua Teoria da Vinculação. Segundo essa
teoria, considera que a criança evidencia uma predisposição instintiva para manter a
proximidade com a mãe ou substituto (figura de vinculação), para protecção e
segurança, contribuindo esta interacção para o desenvolvimento de sistemas
9
Instituições particulares de solidariedade social.
Centros Distritais de Segurança Social.
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4
representacionais fundamentais para o desenvolvimento da Personalidade e podendo a
sua perda ter graves repercussões. Baseou-se nos registos feitos por Anna Freud e
D.Burlingham, durante a II Guerra Mundial, sobre comportamentos atípicos em
crianças institucionalizadas, e nos trabalhos de Spitz sobre a «Depressão Anaclítica» na
criança como resultado da separação precoce da mãe. Baseou-se ainda nas suas próprias
observações, ao estudar os antecedentes de delinquentes adultos, presos por furto,
constatando, na grande maioria, uma história de perdas afectivas precoces. Estes
estudos, juntamente com o contributo de outros autores (como Ainsworth, e Winnicot),
levaram-no a formular a hipótese de que a privação precoce de cuidados maternos (a
perda da figura a quem a criança se vinculou), seria determinante no desenvolvimento,
podendo levar a atrasos de desenvolvimento, depressão ou perturbação no
funcionamento futuro da personalidade (relações interpessoais e adaptação social). Estas
consequências dependeriam da intensidade, frequência e duração da separação, sendo o
período mais vulnerável a partir dos 6 meses de idade. Apoiou-se ainda nos trabalhos
de Spitz, segundo o qual, a criança, após os 6 meses de idade já conserva os traços
mnésicos do rosto materno (ou figura de vinculação que pode não ser a mãe), entrando
em angústia pela sua perda, podendo desenvolver um estado de depressão, apatia e
alheamento, com graves consequências no desenvolvimento, se não houver reparação
afectiva (restabelecimento de uma vinculação gratificante e estável) em tempo útil,
sendo a 1ªinfância um período particularmente sensível às perdas afectivas,
principalmente quando efectuadas de forma traumática e repetidas ao longo do tempo.
Como dizia João dos Santos «a mãe é a primeira especialista da criança» e os técnicos
apenas se podem limitar a ajudar a continuar esse processo educativo, quando, por
qualquer razão, existem falhas ou perturbações. A personalidade não se corrige,
constrói-se, sendo fundamentais os primeiros anos como base de suporte para a sua
evolução. Quando não é mesmo viável encontrar soluções adequadas na família
biológica, é essencial promover a integração da criança, o mais rapidamente possível,
numa família adoptiva ou «tutora» que lhe forneça o suporte afectivo necessário para o
seu desenvolvimento, de forma duradoura e vinculativa, ao longo da vida.
4-Como executar a retirada e o acolhimento minimizando os danos?
4.1-Avaliação das Alternativas à Retirada:
Parece-nos que a tendência protectora tem simplificado em demasia situações que são
complexas: vê no acolhimento institucional ou na retirada à família o fim do percurso
protector, e não uma solução transitória. Isto é grave, porquanto a institucionalização ou
retirada, só por si, podem ser actos de violência e não uma verdadeira protecção.
Antes mesmo de considerar a forma como a criança é retirada da família, é importante
reflectir sobre a possibilidade de se terem analisado e avaliado todas as alternativas
possíveis a essa retirada. Assim, seria aconselhável a análise prévia (por técnicos com
preparação adequada) dos factores de risco envolvidos nas situações denunciadas, e da
possibilidade de evitar, ou atenuar, os mesmos, sem a retirada da criança (ex. retirada do
agressor e não da vítima; lares de protecção para a criança e mãe em risco; integração na
família alargada; supervisão regular por um «tutor» -técnico especializado na orientação
e apoio de famílias em risco; apoios sociais ou psiquiátricos para as famílias …).
Em qualquer dos casos, seria desejável promover alternativas à retirada que, não só
trariam menos custos económicos e sociais como e, principalmente, trariam menos
custos para a criança do ponto de vista emocional.
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São numerosos os exemplos de crianças que foram retiradas e institucionalizadas por
«negligência dos pais», passando por várias famílias de acolhimento ou várias
instituições, com rupturas e perdas sucessivas, chegando à adolescência com um enorme
vazio afectivo ou uma grande revolta que acaba por se manifestar, muitas vezes em
padrões alterados de comportamento (furto, agressão), repetindo com frequência o
percurso dos seus pais e a incapacidade para «dar afecto» porque nunca o receberam de
forma segura e vinculativa… Não teria sido mais adequado ter integrado estas crianças
na família alargada, ter tentado avaliar o que se passava com os pais e tentar encontrar
outras soluções e apoios para os mesmos, com vista à reintegração da criança, evitando
as rupturas? Claro que estas alternativas implicam dar prioridade à segurança da
criança, que tem de ser sempre salvaguardada, mas temos de pensar também na
segurança afectiva…
Se calhar, em vez de utilizarmos demasiado facilmente o termo «família incapaz»
deveríamos ter meios para avaliar e identificar quais os possíveis factores que
contribuem para essa «incapacidade», devendo ser esses os alvos da nossa intervenção
multidisciplinar, sendo fundamental a articulação entre os técnicos, a sua formação e
adequada gestão de recursos. Saúde e Justiça podem e devem estar ligadas neste difícil
percurso. Sem dúvida que é importante «crescer para o Direito» mas ainda é mais
importante o «Direito a crescer»…
Se um dos progenitores é alcoólico, agressivo ou abusador, porque não obrigar este a
retirar-se de casa até conseguir uma reabilitação eficaz com ajuda psiquiátrica e social?
Porquê retirar continuamente a criança, dupla vítima, forçando-a a romper vínculos que
talvez ainda pudessem ser reparados?
Temos milhares de crianças institucionalizadas no nosso País, nem sempre nas melhores
condições de acompanhamento. Para alem dos custos económicos que isto representa
temos os custos em termos de afecto, ou melhor de desafecto.
É que os filhos de quem teve uma perda ou perturbação no processo vinculativo poderão
ser filhos do vazio, com todas as consequências que isso implica num perpetuar de
comportamentos disfuncionais.
4.2 –Será possível retirar sem traumatizar?
Relativamente à retirada, propriamente dita, também seria importante que houvesse
formação e preparação prévia dos técnicos sobre o modo de efectuá-la, uma vez que é
essencial avaliar a existência de vínculos afectivos, ter em conta a idade da criança,
dado que existem idades em que o risco traumático é enorme (principalmente entre os 6
meses e os 3 anos), sendo necessário desenvolver estratégias de modo a efectuar esta
retirada do modo menos lesivo possível (em qualquer idade).
Embora não haja soluções ideais, seria importante encontrar forma de explicar à criança
(e família) que ela não vai cortar os laços afectivos com os pais mas irá apenas,
temporariamente, para um «lar» onde se sentirá protegida e onde terá mais condições de
educação e apoio, uma vez que os pais se encontram com «problemas ou dificuldades»,
só até a situação estar resolvida, permitindo os contactos com eles (nos caso em que tal
seja viável). Esta informação deveria ser transmitida de forma gradual, após trabalho
prévio de mediação com a família, por um técnico gestor de caso (Assistente Social ou
Educador Social) que já tenha estabelecido uma relação de confiança com o menor,
simbolizando a figura de um «tutor» que lhe garanta protecção. A retirada deve ser
sempre o último recurso e, se possível, transitória, no sentido de permitir um trabalho
com a criança (reparação terapêutica, suporte afectivo) e, simultaneamente com a
6
família, com vista à eventual reinserção, quando viável. Quando essa reinserção não é
possível, nem sequer na família alargada, então há que encontrar famílias de afecto
(tutoras) para estas crianças, que as possam cuidar, de forma duradoura, ao longo do
seu crescimento. Cortar laços, sem dar alternativas vinculativas, significa estar a traçar
um destino vazio de afecto que trará custos a curto e a longo prazo, como nos provaram
os trabalhos de Bowlby.
A retirada não deve ser brusca nem traumática, devendo efectuar-se preferencialmente
em casa, com privacidade. As retiradas na escola, para além de serem traumáticas para a
criança (que pode desenvolver mecanismos fóbicos) são perturbadoras para os colegas.
4.3-Que respostas depois da retirada?
Após a retirada há que reflectir também sobre as instituições ou famílias de
acolhimento onde as crianças são integradas, quando não é possível recorrer à família
alargada Esta última situação deveria ser a solução preferencial, desde que se cumpram
as condições adequadas e haja laços afectivos com a criança, podendo considerar-se a
eventual possibilidade de subsídios para apoio económico, uma vez que muitas vezes
esta é uma das razões impeditivas de tal solução… Em qualquer das opções encontradas
seria desejável que se mantivesse o mesmo técnico (Tutor ou gestor de caso) a orientar a
situação, não só para supervisionar a sua integração mas para mostrar à criança que ela
tem sempre alguém que a protege, mantendo algum tipo de «vínculo» …
No que respeita às instituições seria importante atender a alguns aspectos:
1º- A necessidade de selecção e formação adequada dos técnicos envolvidos,
permitindo, se possível, a criação de vínculos, funcionando como «tutores». Esta
vinculação «reparadora» permitiria à criança menor sofrimento e melhor aceitação das
orientações e terapias propostas, uma vez que se sentiria especial para alguém.
2º- É essencial promover protecção, privacidade, garantia dos direitos individuais e,
principalmente, promover um suporte afectivo. Seria importante o apoio
Psicoterapeutico regular, pelo que é fundamental o acompanhamento por Psicólogos e
Pedopsiquiatras ,com experiência nesta área.
3º- Detectar sinais de alarme e orientar para as respectivas terapias e intervenções.
4º- Favorecer a preparação da criança para a reintegração social/familiar (dar um rumo)
através de cursos profissionais ou outras alternativas.
5º- Evitar rupturas sucessivas com transferências repetidas de instituição para
instituição.
6º- Evitar, sempre que possível, a separação de irmãos e permitir os contactos com a
família sempre que seja viável e a criança o deseje (Manter laços…)
7º- Procurar estratégias de apoio à família, tendo em vista a hipótese de reintegração e
não partir do princípio que a criança vai ficar sempre na instituição.
8º-Cada criança deveria ter um processo confidencial, onde estivessem registados dados
pessoais e familiares importantes para sua orientação (há muitas vezes um total
desconhecimento por parte de quem acompanha o menor à consulta).
Relativamente às famílias de acolhimento, trata-se de um conceito polémico que tem
vindo a ser desvirtuado com a tentativa de «profissionalização», havendo incertezas
quanto às «motivações» que movem estas famílias e por quanto tempo. Sabendo que as
rupturas sucessivas de laços podem ser muito prejudiciais para o desenvolvimento
7
afectivo da criança e, sabendo que algumas desta famílias estão mesmo motivadas para
a «adopção» da criança com a qual estabelecem um vínculo, seria de reflectir sobre a
possibilidade de criar o conceito de «família tutora» que desse o apoio definitivo à
criança, ao longo do seu crescimento, eventualmente mantendo o contacto com a família
de origem, situação que deveria ser supervisionada por Técnico especializado.
Conclusão
A retirada urgente de uma criança do seio familiar é sempre uma situação de último
recurso e, se possível transitória, que só deve ser decidida por uma equipa devidamente
preparada para analisar a situação de risco e avaliar as hipóteses de alternativas mais
adequadas, desenvolvendo estratégias de apoio às famílias. É fundamental ter em conta
o conceito de vinculação e de reparação afectiva e ter a noção dos riscos da ruptura de
vínculos. A articulação entre as cpcjp e as instituições de apoio é essencial mas seria
interessante desenvolver a figura de «tutor» ou «gestor de caso» como participante
activo ao longo do processo de mediação familiar e apoio à criança.
O importante é dar esperança, dar afecto, dar um rumo. Fazer sentir à criança que ela é
importante para alguém, criando vínculos e evitando as rupturas sucessivas que vão
perpetuar um vazio afectivo e um risco transgeracional.
Ajudar a crescer para o Direito …com Direito a crescer…
Alda Mira Coelho – Pedopsiquiatra H. S. João.
Maia Neto – Procurador geral Adjunto na CNCJP
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8
Teresa Magalhães, Maus Tratos em Crianças e Jovens – Guia prático para profissionais
Quarteto Editora.
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