Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro - Entrevista
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Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro - Entrevista
1 Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 2 Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 3 CARTA DOS EDITORES Manutenção da pesquisa com diminuição de investimentos Neste primeiro semestre de 2015, também o primeiro de um novo mandato de uma presidente reeleita democraticamente, foram apresentadas para a população brasileira situações imaginadas e outras não desejadas. Entre as imaginadas estão o reconhecimento de que o país atravessa uma crise e que o Estado faria algo para tentar amenizá-la; entre as não desejadas estão os cortes de investimentos públicos anunciados pelo Governo Federal em várias áreas, especialmente na de educação. Ao mesmo tempo, acompanha-se um processo pelo qual as dificuldades para a progressão na carreira docente de nível superior estão aumentando e as exigências de pesquisa, produção e publicações se ampliaram. Até a participação dos professores em cargos administrativos – que existem em número muito inferior à quantidade de docentes – tem peso maior, em alguns casos, nos processos de evolução na carreira, do que atribuições eminentemente de ensino. Essa situação nos leva a uma reflexão. Como administrar as duas situações? Como continuar com a prática docente e publicações de qualidade em um cenário de maior cobrança e de declínio de investimentos? Ainda não é possível vislumbrarmos uma resposta em curtíssimo prazo. No entanto, a disposição de todos que participam do processo de seleção, edição e publicação da revista Cambiassu é a de continuidade do trabalho com a melhor qualidade possível, na expectativa de participarmos do processo de produção e difusão do conhecimento com ampliação do acesso a produtores e leitores. Assim foi feito em mais esta edição. Boa leitura e até a próxima. Carlos Agostinho A. de M. Couto Larissa Leda F. Rocha Editores Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 4 SUMÁRIO Artigos SOBRE OBJETIVIDADE, POSICIONAMENTO POLÍTICO E FINANCIAMENTO PÚBLICO NO JORNALISMO LUDOVICENSE Carlos Agostinho Almeida de Macedo COUTO...................................................................... 06 ENTRE FOTOGRAFIAS E QUADRINHOS: desestabilizações de sentido e tensões nos contratos de leitura na obra o fotógrafo Eliza Bachega CASADEI; Monique NASCIMENTO........................................................................................................ 19 A CRISE DA ÁGUA NA NARRATIVA HIPERMÍDIA DO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO Juliana COLUSSI; Katarini MIGUEL ................................................................................................................... 33 LIVESTREAMING AS JORNADAS DE JUNHO: sobre o gesto de filmar ou a memória digital Juracy OLIVEIRA; Sergiano SILVA ....................................................................................................................... 46 TELEVISÃO DIGITAL E WEB:uma proposta multiplataforma e transmídia para conteúdos de mídia-educação Mariana Pícaro CERIGATTO ................................................................................................. 58 AS RÁDIOS FM DE SÃO LUÍS NO CENÁRIO DA DESMATERIALIZAÇÃO DA MÚSICA Paulo PELLEGRINI ............................................................................................................... 77 RUPAUL’S DRAG RACE E SEU FANDOM: um nicho em expansão Rafael Ribeiro de Castro MORAES ....................................................................................... 94 Ensaio REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA E COLABORAÇÃO: a plataforma digital como suporte de preservação da memória cultural Juliana CAMPOS LOBO ...................................................................................................... 105 Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 5 Relatos de Pesquisa CORPO NU: uma análise do ensaio fotográfico de nudez masculina como arte Aline Cristina Azoubel OLIVEIRA; Thaís Fernanda dos Santos TORRES; Tâmara dos Santos CANTANHÊDE; Mary Aurea de Almeida Costa EVERTON............................................................................ 115 A EROTIZAÇÃO DOS CORPOS NO FORRÓ ELETRÔNICO:um estudo da recepção juvenil em Caxias-MA Fábio Soares da COSTA; Janete de Páscoa RODRIGUES ........................................................................................... 126 Resenhas UMA CULTURA POLÍTICA DE PROTESTO RESSURGIDA Felipe Canova GONÇALVES..................................................................................................142 SOBRE O FIM DA TELEVISÃO? Patrícia AZAMBUJA ............................................................................................................ 146 Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 6 ARTIGO Sobre objetividade, posicionamento político e financiamento público no jornalismo ludovicense Carlos Agostinho Almeida de Macedo COUTO1 RESUMO Apresentam-se as categorias objetividade, posicionamento político e financiamento público no jornalismo para fundamentar a análise de dois periódicos editados em São Luís/MA de diferentes perfis políticos e editoriais e em diferentes momentos da vida política/governamental do estado do Maranhão, tendo como base a abordagem da violência. PALAVRAS-CHAVE: Objetividade, política, financiamento, jornalismo ABSTRACT: The objectivity, political positioning and public funding in journalism are presented categories to support the analysis of two journals edited in São Luis/MA of different political profiles and editorials and at different times of political/government of the state of Maranhão, based the approach to violence. KEY WORDS: Objectivity, politics, finance, journalism 1. Introdução As formas e usos do processo de transmissão jornalística de informações variam desde o seu surgimento, evidenciado na experiência romântica, propagandista e pouco rentável dos veículos de antes do século XIX, passando pelo seu desenvolvimento como “indústria” da informação arquitetada pelo investimento privado em grandes conglomerados, na notícia como produto, nos veículos de baixo custo (para o consumidor), na prática narrativa curta e pretensamente objetiva baseada no lead e na pirâmide invertida, e no apoio da publicidade, a partir daquele século. 1 Jornalista e professor, tem mestrado e doutorado em Políticas Públicas e é vinculado ao Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: [email protected] Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 7 Permitem-se também interpretações de variações a partir da disseminação em larga escala das tecnologias de informação digitalizada e da estruturação do pensamento virtual em redes com, por exemplo, a possibilidade de existirem mais veiculadores potencializados pela quase inexistente regulação estatal e do mercado nos ambientes de rede no sentido da possibilidade de expressão de opiniões. Surgem o jornalismo em base de dados, as estruturas ditas democráticas de produção, onde cada pessoa pode ser consumidor, produtor e veiculador de informações, superficialmente chamadas de notícias. Como demonstra a história, nenhuma das variações no processo determinou a imediata substituição da forma antecedente, mas adequações técnicas, de forma, de conteúdo e de expectativa de cobertura moldaram o jornalismo contemporâneo, influenciado por várias experiências e épocas. Abordaremos aqui uma exposição conceitual sobre o jornalismo, também sobre a compreensão gramsciana2, – com privilégio neste momento para o uso dos meios de comunicação – e uma análise, comparativa, desses conceitos com as práticas consideradas jornalísticas de periódicos editados em São Luís, capital do Maranhão, em período de recentes mudanças no cenário político e, por conseguinte, no financiamento estatal dos veículos locais. A pretensão é, a partir de comparações conceituais e práticas das formas e usos do jornalismo local a partir da nova experiência política que determinou a mudança de mando no governo estadual depois de muitos anos de controle por um mesmo grupo político. O tema especifico para a análise das posturas informativas será a violência, algo recorrente na sociedade brasileira e muito disseminado pelos meios de comunicação. Serão avaliados dois periódicos de perfis diferentes. Um ligado ao grupo político anteriormente hegemônico (o jornal O Estado do Maranhão) e outro mais ligado às oposições e que atuou em defesa do novo grupo galgado ao poder (o Jornal Pequeno). As avaliações não obedecerão, entretanto, a critérios quantitativos, mas serão feitas comparações a partir do conteúdo veiculado. 2. Objetividade, postura política e financiamento publicitário Os três conceitos, aqui tomados como categorias de análise e reflexão – objetividade, postura política e financiamento publicitário – acompanham o jornalismo desde o final do século XIX, quando da transição da fase romântica e propagandística para a empresarial e 2 Baseada no pensamento do autor italiano Antonio Gramsci Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 8 publicitária. A questão do posicionamento político é anterior, pois o jornalismo original era eminentemente político, exemplificado, em poucas palavras, pelos jornais republicanos, abolicionistas, monarquistas, partidários de causas, enfim, que fundaram o periodismo. Mas aqui será indicada a ideia de posicionamento político de veículos ditos objetivos e pós-século XIX. Tratada como objetivo por muitos e com reservas por outros muitos também, a objetividade jornalística é vista, na média acadêmica, como utopia ou mito. Numa obra clássica sobre o jornalismo para estudantes e novos interessados, Clóvis Rossi afirma que: ...a imprensa, de acordo com o mito da objetividade, deveria se colocar numa posição neutra e publicar tudo o que ocorresse, deixando ao leitor a tarefa de tirar suas próprias conclusões. Se fosse possível praticar a objetividade e a neutralidade, a batalha pelas mentes e corações dos leitores ficaria circunscrita à página de editoriais, ou seja, à página que veicula a opinião dos proprietários de uma determinada publicação. (ROSSI, 1994, p.8) Ele afirma que não é viável exigir que os jornalistas deixem de lado, como “profissionais assépticos” (ROSSI, 194, p. 10), condicionantes sociais, formação cultural e, mesmo, suas opiniões e convicções quando exercem seu trabalho. Apesar disso, o experiente jornalista afirma que: De qualquer forma, a objetividade continua sendo um dos principais parâmetros na linha editorial dos principais veículos de comunicação do Brasil. E, nessa busca do impossível, introduziu-se a lei de ouvir os dois lados, partindo-se do pressuposto de que, frequentemente há dois lados opostos em uma mesma história(ROSSI, 194, p. 10). Percebamos que o posicionamento do autor refere-se às influências – pessoais, ambientais, profissionais... – que cercam o jornalismo e os jornalistas. Ele não se refere à postura política do veículo. Como dito acima, o posicionamento político evidente foi, pelo menos no discurso, desprivilegiado no chamado jornalismo industrial, de larga escala, com muitas informações sobre vários assuntos, com textos editoriais e analíticos menores e com apoio no lead e na ideia de pirâmide invertida. Seria temerário, e até ingênuo, afirmar-se que não havia envolvimento político (e de políticos) dos e com os veículos. Mas a tônica era a do reforço da Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 9 concepção de notícia como produto e do jornalismo como negócio, que pretendia dar lucro aos proprietários mais do que influenciar eleitores e consumidores em relação a bandeiras ou causas. Com o passar do tempo, os próprios veículos ditos liberais passam a reivindicar a defesa editorial de posturas e legendas políticas, o que se pode ver claramente nos editoriais de jornais norte-americanos em períodos eleitorais. Como veículos impressos, que não dependem da autorização do Estado de uma concessão (como no caso do rádio e da TV), esses jornais reivindicam o direito de terem seu posicionamento e até de apoiar candidatos, embora, no mais das vezes, mantenham o discurso de objetividade, pelo menos a possível, na hora da produção de notícias. A forma de financiamento dos veículos também deriva da transição do jornalismo original para o de alto investimento privado. Enquanto aquele era romântico, praticamente sem resultados financeiros relevantes, por ser motivado (e, por que não, financiado) por ideias, temas e ideologias, este galgou receitas com a ampliação da circulação e das vendas e com a adoção da publicidade como uma das principais fontes de receita, junto a outras estratégias, como promoções, assinaturas, entre outras. Não menos importante são hoje – para todos os veículos comerciais, mas sobretudo para aqueles situados em regiões menos desenvolvidas economicamente – as verbas ditas publicitárias oficiais, administradas pelo Estado (em qualquer das suas esferas ou poderes) para a divulgação de feitos, programas e projetos, resultados, convocações etc. Classificamos de ditas publicitárias porque o conceito original de publicidade, como a intenção de tornar algo público, é pouco aplicável aos interesses estatais ou governamentais no uso de verbas para financiamento de órgãos de comunicação. Lugar próprio para a disseminação ideológica, as ações dos governos definem-se, quase na totalidade das vezes, como propagandísticas (disseminação visando ao convencimento) e não simplesmente publicitárias. Resume essas explanações o conceito apresentado por José Marques de Melo, a partir do pensamento de Otto Groth, de jornalismo como um processo social que se articula a partir da relação (periódica/oportuna) entre organizações formais (editoras/emissoras) e coletividades (públicos receptores), através de canais de difusão (jornal/revista/rádio/televisão/cinema) que asseguram a transmissão de informações (atuais) em função de interesse e expectativas (universos culturais ou ideológicos). (MELO, 1994, P. 14) Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 10 Como contraponto, necessário se faz expormos a concepção gramsciana, mais acadêmica e analítica, pois aprofunda os conceitos sob a ótica da análise político-social, com suas influências basilares (econômicas) e superestruturais (ideológicas). Como já citado em escritos anteriores, convém esclarecer que esta análise se refere àquilo que Gramsci conceituou como pequena política, em contraposição à grande política, pelo fato de ater-se a questões localizadas regionalmente e não às relações entre Estados (criação, destruição, defesa...). “A pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política” (GRAMSCI, 2000, p. 21), embora o sentido não seja pejorativo e não diminua os esforços pela compreensão da contemporaneidade regional. Antonio Gramsci explica a necessidade de se particularizar (delimitar) a área de estudo (no caso a da comunicação social) porque “seria mastodôntico um tal estudo, se feito em escala nacional: por isto, poderia ser feita para uma cidade ou série de cidades, uma série de estudos” (2004, p. 78), afirmando ainda que, mesmo particularizados, esses estudos poderiam render trabalhos importantes. Dessa forma, compreende-se que a análise do local, se consideradas as extremas proximidades no âmbito comunicacional (controle, práticas, financiamento...) entre as regiões brasileiras tende a aproximar-se de realidade, mesmo que não possa ser generalizada. Também cara a este trabalho é a concepção gramsciana de imprensa, que é vista como a mais dinâmica parte da estrutura ideológica na qual se incluem as bibliotecas, as escolas, os clubes, a arquitetura etc. Há uma clara referência na sua obra que identifica a relação jornalistas/meios de comunicação, no sentido de que a ação daqueles (jornalistas) deve ser compreendida como a desses (os meios) na atualidade, ou seja, os termos jornal e jornalista aparecem como a expressão do que consideramos mídia ou meios de comunicação de massa, no tocante à ação. Gramsci chama isso de jornalismo integral: “que não somente pretende satisfazer todas as necessidades (de uma certa categoria) de seu público, mas pretende também criar e desenvolver estas necessidades e, consequentemente, em certo sentido, gerar seu público e ampliar progressivamente sua área” (2004, p. 197). Também parte de Gramsci a distinção entre jornal de informação ou “sem partido” Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 11 explícito e jornal de opinião, que representa oficialmente um partido político ou ideia. O primeiro destinado às massas populares e o segundo dedicado necessariamente a um público restrito (GRAMSCI, 2004, p. 199). Nessa análise, Gramsci esclarece que os jornais vistos como sem partido explicitamente, ao mesmo tempo em que não são os órgãos oficiais de determinado posicionamento político, podem atuar em favor desse posicionamento, quando não apresentam dados contra a sua doutrina e moral e defendem as suas ideias. As concepções acima já nortearam, inclusive, outras produções nossas. 3. Veículos maranhenses e os conceitos elencados tendo como base a divulgação da violência Temos assistido nos últimos anos ao crescimento da violência, principalmente nos maiores centros urbanos. Isso é de reconhecimento amplo e o Brasil é um dos países que lideram os índices de violência. Isso tem determinado um sem número de avaliações e sugestões para a resolução do problema. Uma delas é a impressão de que a penalização, como se adultos fossem, de adolescentes a partir dos 16 anos resolveria a questão. Há também a exploração midiática sobre o tema. E há a exploração midiática regional sobre o tema. Assiste-se à exposição dos números e casos de violência a toda hora e em todo lugar. Existem jornais especializados e vários programas de TV nos quais a violência – de qualquer sorte – é a estrela. Conceitualmente, e de forma elementar, o jornalismo é uma forma de disseminação de informações para a comunidade a partir de pessoas e veículos que recebem uma procuração tácita dos consumidores para que sejam seus olhos e ouvidos a distância, já que não podem estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Os leitores acreditam que o que é publicado seja verdade, pois delegam aos jornalistas (e aos veículos) o papel de seus representantes. Ocorre que os veículos de comunicação, adotando-se ainda a concepção de Antonio Gramsci, são utilizados como aparelhos privados de hegemonia para a obtenção (ou tentativa de obtenção) da própria hegemonia por meio do consenso e não da coerção. Nesse aspecto, a utilização de veículos maranhenses com essa intenção se torna evidente na análise de periódicos locais. Os veículos elencados - jornal O Estado do Maranhão e Jornal Pequeno – são de reconhecida importância no cenário social, comunicacional e político do Maranhão, com Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 12 maior expressão na capital, São Luís, onde são editados. O Estado do Maranhão, pertencente à família do ex-presidente José Sarney, foi fundado em 1973, após a aquisição do Jornal do Dia. O antigo jornal que apresentava posturas contrárias ao governo, inclusive com criticas à ditadura militar, muda então de proprietários, de nome e de orientação editorial, passando a ser um defensor da orientação política vigente e preponderante até a eleição para governador de 2014, quando a oposição chega ao poder. O Jornal Pequeno surgiu em 1951, pelas mãos do jornalista José de Ribamar Bogéa, e pretendia ser um jornal apartidário, diferente dos demais que circulavam na época. Destacouse posteriormente pelo combate político à família Sarney e, ordinariamente, aproximava-se do pensamento de oposição também até a eleição para governador de 2014, quando a oposição chega ao poder. Entre eles há diferenças facilmente perceptíveis (o tamanho do corpo funcional, os recursos técnicos/gráficos, o número de páginas, a qualidade da impressão, a tiragem e a circulação de o Estado do Maranhão são bem maiores/melhores do que os do concorrente), mas proximidades também observáveis (ambos atuam na área do jornalismo sobre clara influência de posições que aqui podemos considerar partidárias ou de grupos de partidos, embora não necessariamente sejam posições contrárias ideologicamente). Vale salientar que, além da proximidade política, a relação de O Estado do Maranhão com o grupo político dominante até 2014 era também muito forte na área comercial, ao contrário do Jornal Pequeno. Segundo a coluna de Lauro Jardim, de Veja, dos R$ 15 milhões investidos com publicidade institucional em jornais nos quatro anos de mandato de Roseana, R$ 10 milhões, o equivalente a dois terços do total, teriam sido destinados ao O Estado do Maranhão. O Jornal Pequeno, de oposição aos governos Sarney, recebeu no total R$ 610 mil, enquanto O Imparcial ficou com pouco mais de R$ 1 milhão. (Em <http://www.portalimprensa.com.br/noticias/brasil/71993/roseana+sarney+repas sou+quase+r+34+milhoes+de+publicidade+oficial+para+veiculos+da+familia> acessado em maio de 2015) Ressalte-se também que o atual governo já criticou a forma como eram tratadas as relações do Estado com os veículos de comunicação até 2014, como expõe o secretário de Comunicação do Estado, Robson Paz, em entrevista ao jornal O Imparcial. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 13 Robson o que será de fato essa "comunicação democrática" que o governo Flávio Dino planeja implantar? Antes de tudo, trata-se de uma comunicação cidadã em que a população tenha, de fato, pluralidade de veículos, de vozes e, consequentemente, garantido o direito de acesso irrestrito às informações. É necessário superar o modelo atual de comunicação monopolista em que poucas famílias com forte atuação política são proprietárias da absoluta maioria das emissoras de TV, rádio, jornais e portais de internet no Estado. Há, portanto, um cenário de latifúndio midiático que priva a população de informações essenciais na medida em que cabe a este pequeno grupo de privilegiados decidir o que deve ou não ser de conhecimento da população. O secretário disse ainda que: /Flávio Dino ainda diz em fornecer apoio a rádios comunitárias, jornais regionais e blogs noticiosos. Qual é a estratégia aqui discutida na Comunicação? É preciso pensar a comunicação pública fora da lógica meramente publicitária. Esse é um modelo esgotado e que a própria população reprovou ao eleger Flávio Dino governador do Estado. Veja bem, por décadas a população foi bombardeada com publicidade e propaganda à exaustão. Na maioria das vezes, a propaganda confrontou a realidade. Precisamos associar à publicidade, informação e ações de comunicação cidadã. Buscar novas formas de comunicação direta com efetiva participação popular. (Em <http://www.oimparcial.com.br/app/noticia/politica/2014/12/28/interna_politica, 164553/comunicacao-democratica-robson-paz-fala-sobre-os-planos-dogovernador-eleito-flavio-dino-para-o-setor.shtml> acessado em maio de 2015) O próprio governador Flávio Dino manifestou-se sobre as relações comunicacionais do seu governo em entrevista à TV Brasil: O governador do Maranhão, Flávio Dino, disse que pretende, durante os próximos quatro anos, implantar políticas de inclusão digital com o aumento do acesso à banda larga e o fortalecimento de pequenos veículos de comunicação, por meio de verbas de publicidade. Nós vamos prestigiar todos os veículos. Aqueles, naturalmente, que tem uma dimensão mais empresarial e comercial, mas também garantir uma política pública inclusiva, por exemplo, no que se refere aos jornais regionais e rádios comunitárias, para que eles possam cumprir ainda mais seu papel de disseminar a informação e garantir a liberdade de expressão, destacou Dino que tomou posse no dia 1º de janeiro depois de vencer as eleições do ano passado em primeiro turno com 64% dos votos válidos. (Em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2015-01/maranhao-querampliar-acesso-banda-larga-e-fortalecer-pequenos> acessado em maio de 2015) No sentido de relacionar as informações acima expostas, foram feitas comparações entre as capas de algumas edições dos jornais O Estado do Maranhão e Jornal Pequeno para apontarem-se as possíveis, quase prováveis, relações entre as aproximações políticas dos veículos e o seu conteúdo quando ao lado da oposição e quando ao lado do governo. Não cabe aqui, nem é interesse do trabalho, uma análise sobre o conteúdo político do ponto de Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 14 vista ideológico de cada um dos grupos, muito menos a exposição de juízos de valor sobre cada um deles. As edições de O Estado do Maranhão dos dias 4, 5, 6 e 7 de janeiro de 2014, período que foi marcado por atentados contra ônibus coletivos na cidade de São Luís, posteriormente comprovado que a mando de criminosos, apresentam ênfase na violência e na exposição da posição do Estado: “Bandidos incendeiam ônibus e atacam delegacia na capital”; “Polícia intensificará ações até prender autores de ataques”; “Polícia prende 11 suspeitos de ataques a ônibus em São Luís”; e “Morte de menina causa dor e revolta, bandidos são presos” são as manchetes. Nessa época os Sarney estavam no poder. As edições do Jornal Pequeno nos mesmos dias destacam a violência e seus efeitos e dão pouca ênfase sobre ações da polícia. “Noite de terror com ataque a delegacia, ônibus incendiados e PM assassinado a tiros”; “Sobe para 5 número de feridos em ataques a ônibus Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 15 em São Luís”; “Bandidos atacam a delegacia do 8º DP; suspeitos são presos”; e “Morre menina incendiada, avó sofre infarte e mãe está hospitalizada” são as manchetes. Nos dias 25 e 26 de maio de 2015, período pós-eleitoral e no qual o governo já não era dirigido pelos Sarney, mas pela oposição, repercutiu na cidade uma ação violenta na praia de Panaquatira (região metropolitana), com várias mortes, incluindo a de um policial. O estado do Maranhão publicou como manchetes principais: “Barbárie em Panaquatira” e “População com medo”. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 16 O Jornal Pequeno deu como manchetes principais no mesmo período: “Quatro pessoas são mortas durante ataque a um sítio em Panaquatira” e “Advogados de Lobão querem processar sócio da Diamond”. Destaque-se que o jornal trata do enterro das vítimas do caso ocorrido em Panaquatira, mas em manchete secundária. Nos dias 30 e 31 de maio deste ano, O Estado do Maranhão repercutiu a morte de um mecânico por um vigia (que não era policial), que participava de uma operação a bordo do carro da polícia na cidade de Vitória do Mearim e continua a tratar do problema em Panaquatira, com ênfase na insegurança: “A sangue-frio” e “Praia do Medo” são as manchetes. O Jornal Pequeno não relata o assassinato ocorrido em Vitória do Mearim e apresenta uma explicação para a violência na praia: “STF concede liminar contra sequestro de recursos Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 17 para pagamento de precatórios” e “Rede de parentes e amigos dá apoio a ´piratas de Panaquatira'” são as manchetes. 4. Considerações à guisa de conclusão Evidenciam-se precoces conclusões definitivas sobre as categorias objetividade, posicionamento político e financiamento público ao jornalismo por conta da novidade do processo político recém-instaurado e porque os dados de financiamento do novo governo ainda não estão bem esclarecidos, até por conta de ainda não ter vencido o primeiro ano (calendário/fiscal/expositivo), que possibilitará a obtenção de dados concretos. Impressões sobre o posicionamento dos veículos avaliados, entretanto, são evidentes e podem ser destacadas. A objetividade parece acompanhar a relação política de cada veículo em momentos de graves fatos na área de segurança e em que a população procurava por informações, pois a ênfase na relação ataque/defesa ao grupo ao qual se está vinculado parece ser privilegiada em detrimento da informação objetiva; no período em que O Estado do Maranhão teve no poder o grupo político ao qual é relacionado, e no qual recebeu a maior parte da publicidade governamental, privilegiou a defesa das ações governamentais; e o Jornal Pequeno – do qual não se pode afirmar ainda que obteve vantagens financeiras depois que o grupo político que apoia chegou ao poder – demonstrou clara posição crítica no período em que defendia a oposição, amenizada sobremaneira após a mudança no mando político. Demandam-se, portanto, novos acompanhamentos, análises e exposições sobre os veículos estudados e sobre as categorias elencadas a partir do tema escolhido. REFERÊNCIAS Agência Brasil, Maranhão quer ampliar acesso a banda larga e fortalecer pequenos. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2015-01/maranhao-quer-ampliar-acessobanda-larga-e-fortalecer-pequenos> acessado em maio de 2015. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 18 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, edição de C. N. Coutinho, com a colaboração de L. S. Henriques e M. A. Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 6 vols, 1999-2002. ________________. Cadernos do cárcere. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1999. 6V ________________. Cadernos do cárcere. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2004. 6V ________________. Cadernos do cárcere. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000. 6v. Jornal O Imparcial, Comunicacao Democratica: Robson Paz fala sobre os planos do governador eleito Flavio Dino para o setor. Disponível em: <http://www.oimparcial.com.br/app/noticia/politica/2014/12/28/interna_politica,164553/com unicacao-democratica-robson-paz-fala-sobre-os-planos-do-governador-eleito-flavio-dinopara-o-setor.shtml> acessado em maio de 2015. MARQUES DE MELO, José. A opinião no jornalsmo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994. Portal Imprensa, Roseana Sarney repassou quase 34 milhões de publicidade oficial para veículos da família. Disponível em: <http://www.portalimprensa.com.br/noticias/brasil/71993/roseana+sarney+repassou+quase+r +34+milhoes+de+publicidade+oficial+para+veiculos+da+familia> acessado em maio de 2015) ROSSI, Clóvis. O que é jornalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994. KUNCZIK, Michael. Conceitos de Jornalismo. Sã Paulo: Edusp, 1997. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 19 ARTIGO ENTRE FOTOGRAFIAS E QUADRINHOS: desestabilizações de sentido e tensões nos contratos de leitura na obra o fotógrafo Eliza Bachega CASADEI3 Monique NASCIMENTO4 RESUMO: Na obra O Fotógrafo é possível observar como as histórias em quadrinhos podem servir de ferramenta para uma narrativa jornalística renovada. Neste artigo, nós iremos analisar as intersecções entre o quadrinho e a fotografia em O Fotógrafo, a partir da ótica do reengendramento do contrato de leitura estabelecido. A mistura entre as imagens fotográficas e os desenhos dos quadrinhos na obra desestabiliza os contratos de leitura das duas práticas, abrindo um campo de novas associações significativas e efeitos de referencialidade. O universo onírico é misturado ao universo referencial, o que reforça a sensação de irrealidade da guerra e dos grandes crimes humanitários. PALAVRAS-CHAVE: Fotojornalismo. Quadrinhos. Trauma. Contratos de Leitura. ABSTRACT: In the book "The Photographer" it is possible to observe how Comics may serve as a tool for the conception of a renewed journalistic narrative. In this article, we will analyze the intersections between the comics and the imagetic assets in "The Photographer", from the perspective of regendering the established reading contract. The mixture between the images and drawings in the book destabilizes reading contracts concerning the two practices, opening a new field of significant associations and referentiality effects. The oneiric universe is then mixed with the reference universe, which reinforces the feeling of unreality emerging from war and from those major humanitarian crimes. KEYWORDS: Photojournalism. Comics. Psychological Trauma. Reading contracts 1. Introdução Didi-Huberman nos lembra que algumas obras são capazes de “fazer empalidecer de angústia todo pesquisador positivista que se preze”. São obras que apelam a uma “espécie de coerção à desrazão, em que os fatos não podem mais se distinguir das ficções, em que os fatos são fictícios por essência, e as ficções, eficazes” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 209). Em 3 Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e professora de fotojornalismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FAAC-UNESP). Mestre em Ciências da Comunicação e bacharel em jornalismo pela ECA-USP. 4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da FAAC-UNESP, email: [email protected]. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 20 termos mais precisos, trata-se de obras que desestabilizam os contratos tradicionais de leitura com o seu público e, assim, desequilibram sentidos consolidados ao apelarem para novas possibilidades de associações de significados e engendramentos narrativos. A obra O Fotógrafo, de Didier Lefèvre, Emmanuel Guibert e Frédéric Lemercier é uma das publicações ligadas a essa ordem de questões. Com a missão de acompanhar uma equipe humanitária da ONG Médicos Sem Fronteiras no Afeganistão, o fotojornalista Didier Lefèvre viajou ao lado de médicos e enfermeiras, sendo guiado por uma caravana de mujahidin, os combatentes afegãos. No caminho, a equipe passou por caminhos como trilhas nas montanhas da região, onde o ar é rarefeito, e por planaltos onde as caravanas eram metralhadas pelas forças soviéticas, fazendo o trajeto quase todo a pé e carregando os medicamentos e equipamentos no lombo de burros de cavalos. Por três meses, Didier documentou suas atividades, as da equipe de médicos e fotografou o cotidiano do povo afegão durante o conflito. Na época, seis fotos, de quatro mil, foram publicadas. Treze anos depois, o fotojornalista contou a história a seu amigo e quadrinista Emmanuel Guibert, que decidiu produzir a graphic novel sobre a jornada, utilizando as antigas fotografias de Lefèvre. Assim nasceu O Fotógrafo, uma obra em quadrinhos, mas que incorpora as fotografias de Lefèvre e seu relato jornalístico. Esta utilização da linguagem dos quadrinhos na produção de material jornalístico já acontece, mas de forma pontual e muito ligada ao trabalho autoral. Nomes como Joe Sacco e Guy Delisle se tornaram referência nesse tipo de produção, por exemplo, mas O Fotógrafo vai além e incorpora a fotografia à sua linguagem, mostrando as possibilidades das histórias em quadrinhos. O livro foi dividido em três volumes, sendo o primeiro publicado na França em 2003. Logo após foi lançado o segundo volume, em 2004 e o terceiro, em 2006. Este último foi premiado no tradicional Festival d’Angoulême, na França, um dos maiores e mais prestigiados festivais de quadrinhos do mundo. Além disso, foi traduzido para 10 línguas: alemão, inglês, italiano, holandês, norueguês, dinamarquês, espanhol, coreano, croata e português. O primeiro volume foi lançado no Brasil em 2006. No presente artigo, nós iremos analisar as intersecções entre o quadrinho e a fotografia em O Fotógrafo, a partir da ótica do reengendramento do contrato de leitura que ele estabelece. A mistura entre as imagens fotográficas e os desenhos dos quadrinhos na obra Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 21 desestabiliza os contratos de leitura das duas práticas, abrindo um campo de novas associações significativas e efeitos de referencialidade. Isso diferencia a obra O Fotógrafo das demais que pertencem ao gênero do jornalismo em quadrinhos. 2. O Jornalismo e os Quadrinhos Para iniciarmos as nossas reflexões, é necessário discutir, primeiramente, o gênero do jornalismo em quadrinhos, a qual O Fotógrafo pertence. A relação entre as histórias em quadrinhos e jornalismo sempre foi muito próxima. Os quadrinhos nasceram nas páginas dos jornais, mas além do gênero que Ramos (2007, p. 23) aponta como charge (definida como “um texto de humor que aborda algum fato ou tema ligado ao noticiário”), os quadrinhos habitualmente publicados nos jornais não possuem vínculo com a linguagem jornalística. Essa relação se modificou com o aparecimento do que chamamos de “jornalismo em quadrinhos”. De acordo com Souza Júnior (2009) o jornalismo em quadrinhos surge principalmente por causa da obra do, já citado, quadrinista e repórter Joe Sacco, Palestina. Sacco viajou à Jerusalém, Cisjordânia e à Faixa de Gaza para contar a situação dos palestinos após a ocupação israelense. Souza Júnior analisa que a obra, conceitualmente, pode ser considerada uma reportagem convencional, por seu potencial informativo. Entretanto, o que transforma Palestina em algo incomum é justamente o meio escolhido. O desconhecimento teórico sobre a linguagem dos quadrinhos permite que, em análises descontextualizadas, o tipo de reportagem realizada por Sacco seja caracterizada como um novo gênero jornalístico. Há de fato uma reconfiguração de uma das muitas práticas jornalísticas em função de uma nova mídia. Entretanto, os quadrinhos são uma plataforma que permitem abarcar manifestações de qualquer natureza, inclusive gêneros do jornalismo, como a reportagem, adaptando-os à linguagem das HQ’s e utilizando sua linguagem e potencialidades. Para compreender o processo que permitiu essa aproximação dos quadrinhos com histórias de não-ficção e todo o cenário que antecedeu Joe Sacco, é preciso compreender o movimento do quadrinho underground norte-americano. Durante a década de 1950, foi implantado o Comic Code (Código de Ética dos Quadrinhos), que criava restrições ao conteúdo publicado nas revistas de quadrinhos. Essa medida foi fruto das teorias do psiquiatra Frederic Werthan em seu livro A Sedução do Inocente (Seduction of the Innocent, de 1953), que tentavam associar as HQ’s à violência e ao crime. O conteúdo das revistas tinha que ser Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 22 aprovado de acordo com o Código para ganhar o selo de aprovação. Diante disso, muitas editoras autocensuravam para passar pela avaliação, junto a isso a oposição de pais e professores aos quadrinhos fizeram com as vendas caíssem vertiginosamente e a produção das HQ’s fosse seriamente prejudicada e o mercado ficasse estagnado. O ponto de virada veio cerca de uma década depois, em 1968, com a publicação da revista Zap Comix, do quadrinista Robert Crumb. Em um contexto de contracultura, Crumb trouxe o que os jovens buscavam e que contrariava todos os princípios do Código de ética dos Quadrinhos: sexo, consumo de drogas, violência, desobediência à lei e à ordem, o que motivou outros quadrinistas a seguir seus passos. Mas não apenas as temáticas representaram uma ruptura com o que havia sido feito até aquele momento, a forma e a narrativa também tiveram mudanças significativas. Na forma, o preto e branco toma espaço, possibilitando um aspecto de estilos mais amplo do que se via nos quadrinhos tradicionais, fazendo do estilo um fator essencial para a identidade das histórias. Na narrativa, iniciam-se abordagens mais realistas e experimentais, muito vinculadas à sátira, ao humor e à crítica social. Além disso, há o surgimento, com Crumb, da vertente autobiográfica, onde o autor é protagonista (SOUZA JÚNIOR, 2009). Depois do movimento underground, o que já era malvisto antes por educadores, pais, líderes religiosos, só agravou a visão negativa sobre os quadrinhos. O responsável por trazer mais credibilidade às HQ’s foi Will Eisner, em 1978, com a publicação de Um Contrato com Deus, a primeira graphic novel. “A questão principal é que o autor introduziu nos quadrinhos a possibilidade de tratar assuntos ‘sérios’, conseguindo respeitabilidade por tratar temas de cunho social e construir narrativas edificantes” (SOUZA JÚNIOR, 2009, p. 11). Mas de acordo com García (2012), a verdadeira explosão das graphic novels veio na década de 1980, com obras como Maus, de Art Spiegelman, Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, e O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller e Klaus Janson. Entre essas três, Maus é a única que conta uma história real, seguindo os caminhos abertos pelo movimento underground. Apesar de ter sido publicada em capítulos inseridos na revista Raw, Maus foi concebido como uma obra fechada, característica básica de uma graphic novel, e é a única obra em quadrinhos a receber um Prêmio Pulitzer, em 1992. Uma característica de Maus que podemos encontrar na obra de Sacco e no jornalismo em quadrinhos de modo geral é a introdução do autor na reportagem. Art Spiegelman se retrata indo até a casa do pai, conduzindo a entrevista que viraria a história em si. Sacco seguiu esses passos, assim como Guibert faz com Lefèvre em O Fotógrafo. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 23 Esse novo status atingido pelas histórias em quadrinhos, possibilitado por Crumb, Eisner e Spiegelman, entre diversos outros quadrinistas, formou um cenário favorável para o surgimento do jornalismo em quadrinhos e sua aceitação como um produto de qualidade. Segundo García (2012), Rocco Versaci observou que o jornalismo em quadrinhos possui “uma sinceridade superior à dos meios convencionais, já que a marginalidade do meio lhe permite transmitir verdades silenciadas ou manipuladas por interesses econômicos na imprensa geral” (GARCÍA, 2012, p. 275). García ainda aponta que é como se as grandes reportagens fossem feitas para si mesmo, não para instituições ou veículos jornalísticos, tendo liberdade para aplicar os princípios subjetivistas do new journalism a suas páginas, “em especial a colocação em primeiro plano da perspectiva individual como consciência organizadora” (MERINO, 2003 apud García, 2012, p. 275). Assim como as obras citadas acima, O Fotógrafo também está imerso nesse contexto em que as narrativas jornalísticas e os quadrinhos se misturam para a formação de um novo gênero. Além das particularidades inerentes do jornalismo em quadrinhos, contudo, O Fotógrafo tem algumas particularidades que merecem uma maior atenção. A principal delas é a de que O Fotógrafo apresenta a fotografia em meio ao relato – o que engendra algumas consequências radicais, conforme exploraremos a seguir. Ao misturar os quadrinhos e as fotografias, O Fotógrafo desestabiliza os contratos de leitura tradicionais dessas práticas construindo novos campos de associações de sentido. 3. Os contratos de leitura da fotografia e dos quadrinhos Para discutirmos os modos como os contratos de leitura dos quadrinhos e das fotografias se sobrepõe na obra O Fotógrafo, é necessário discutirmos, primeiramente, os contratos de leitura de cada uma dessas mídias individualmente. Nesse sentido, iremos discutir os pressupostos envolvidos nos quadrinhos, em um primeiro momento, e nas fotografias, em seguida, para podermos avaliar posteriormente as suas intersecções. No que diz respeito aos quadrinhos, é possível dizer que sua linguagem e seu consumo já estão consolidados enquanto dispositivo midiático. Apesar dos diálogos com outras mídias serem úteis no estudo das HQ’s, é necessário compreender os quadrinhos como uma mídia independente e válida, como uma linguagem autônoma, e não como uma forma de literatura ou gênero literário. Ramos (2009) evidencia que definir quadrinhos como literatura “nada mais é do que uma forma de procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (caso da literatura, inclusive a infantil)” sendo esta rotulação um “argumento para Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 24 justificar os quadrinhos, historicamente vistos de maneira pejorativa, inclusive no meio universitário” (RAMOS, 2009, p.17). Quadrinhos são quadrinhos. E como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos. Há muitos pontos comuns com a literatura, evidentemente. Assim como há também com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens (RAMOS, 2009, p.17). Cirne (1972), apesar de evidenciar as aproximações entre cinema e quadrinhos, ainda mais do que cinema e literatura, afirma que: A verdade é que não se pode ler uma estória em quadrinhos como se lê um romance, uma obra plástica, uma gravação musical, uma peça de teatro, ou mesmo uma fotonovela ou um filme. (...) Embora haja um denominador comum para a leitura que se preocupa com manifestações e discursos artísticos, existem leituras particulares para cada prática estética (CIRNE, 1972, p.15). Portanto, o primeiro passo para entender as histórias em quadrinhos é encará-las enquanto mídia autônoma. Outro passo importante para a compreensão das HQ’s é dissociar o suporte do conteúdo. McCloud argumenta que para chegar a uma definição dos quadrinhos, deve-se separar a forma do conteúdo. Assim ele afirma que “a forma artística conhecida como quadrinhos é um recipiente que pode conter diversas ideias e imagens” (MCCLOUD, 1995, p.6). Encarar os quadrinhos dessa forma dissocia-o de qualquer ideia pré-concebida de que quadrinhos “são só para crianças” ou que “são apenas uma forma de entretenimento. Eisner (1989) também contraria essa ideia ao observar que quando começou “a desvendar os componentes complexos, detendo-me em elementos até então considerados instintivos e tentando explicar os parâmetros dessa forma artística, descobri que estava envolvido mais com uma ‘arte de comunicação’ do que com uma simples aplicação de arte” (EISNER, 1989, p. 6). Dessa forma, Eisner evidencia a complexidade dos quadrinhos enquanto produto comunicacional que sobrepõe o significado artístico ou de entretenimento desta mídia. Nesses termos, é possível dizer que os quadrinhos suportam um contrato de leitura específico, em grande parte mediado pelo uso do desenho e de suas formas específicas de correlações com “imagens enquadradas” como dispositivo privilegiado. Assim, embora os quadrinhos possam ser suportes para narrativas ficcionais ou referenciais, essa mídia sempre supõe, em seu contrato de leitura, a liberdade da mão de um autor que irá compor um desenho e engedrar esses desenhos em arranjos específicos. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 25 Tal constatação, no entanto, tem algumas consequências radicais. Por estar calcado no desenho, é possível dizer que, no contrato de leitura dos quadrinhos, há uma primazia do significado por sobre o referente, de forma que o sentido da narrativa é mais importante do que a verossimilhança com o fato retratado. Em um quadrinho, os leitores não se importam que o quadrinista possa ter utilizado sua criatividade artística para compor cenários, personagens e ações, mesmo que ele esteja contando uma história baseada em fatos reais. Em outros termos, nos quadrinhos, há “um discurso que ‘informa’ do real, mas não pretende representá-lo nem abonar-se nele” (CHARTIER, 2010, p. 24). Ora, há uma relação oposta que é estabelecida no contrato de leitura da fotografia. Esta, por excelência, inaugura um campo de primazia do referente por sobre o significado, de forma que se afirma justamente por seu caráter indiciário. Em seu trabalho sobre o ato fotográfico, Phillipe Dubois pontua que os efeitos de realidade engendrados pelas fotografias estão postos não no caráter mimético que elas estabelecem com o referente retratado, e sim, com o ato mecânico de sua inscrição. Em outros termos, pelo fato de que a fotografia deve ser descrita por seu caráter indiciário (requisito para a própria formação da imagem fotográfica) e não por sua circunstância icônica – que, a rigor, não é necessária nem determinante para a feitura da fotografia. Para o autor, o fato de que a fotografia é percebida como uma espécie de prova (ou seja, que é capaz de atestar a existência de algo) advém do processo mecânico de produção da imagem fotográfica. Portanto, se sempre há o imaginário de que as pessoas podem mentir, distorcer ou distender o real quando desenham algo para contar uma história, dificilmente tem-se essa sensação quando se olha uma fotografia (embora saibamos que isso é mesmo uma ilusão). Para Dubois, a fotografia deve ser entendida como “índice” da realidade. O índice diz respeito às formas de representação que tem uma relação de contiguidade física com o objeto que elas representam. Isso significa que a fotografia aparenta-se com a categoria de ‘signos’, na qual a fumaça é indício de fogo, a cicatriz é indício de um ferimento, a ruína é um traço do que existiu, etc. Todos esses sinais têm em comum o fato de serem afetados por seu objeto e de manter com ele uma relação de conexão física. Nisso diferenciam-se radicalmente dos ícones, que se definem apenas pela relação de semelhança, e dos símbolos, que definem seu objeto por uma convenção. A fotografia, para Dubois, estabelece essa mesma relação com o objeto que ela representa. Por isso, “a foto é percebida como uma espécie de prova, ao mesmo necessária e suficiente, que atesta indubitavelmente a existência daquilo que mostra” (VAN Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 26 CAUWENBERGE, 2008, p. 25). Assim, de início, a fotografia era tida como “a imitação mais perfeita da realidade” (DUBOIS; VAN CAUWENBERGE, 2008, p. 27) e essa concepção era reforçada, principalmente, devido à natureza técnica da fotografia, seu procedimento mecânico que fazia uma imagem aparecer de maneira automática, pelas leis da ótica e da química, sem a intervenção direta do autor. Nesse ponto, muitos artistas e críticos da época encaravam a foto como uma memória documental do real e a arte, em contrapartida, como criação imaginária somente, deixando à fotografia apenas o papel de registro documental, de conservar um traço do passado ou de servir de ferramenta para a ciência em sua busca para entender a realidade do mundo, “uma separação radical entre a arte, criação imaginária que abriga sua própria finalidade, e a técnica fotográfica, instrumento fiel de reprodução do real” (DUBOIS; VAN CAUWENBERGE, 2008 p. 30). A condição de índice da imagem fotográfica implica que a relação que os signos indiciais mantém com seu objeto referencial seja sempre marcada por “um princípio quádruplo, de conexão física, de singularidade, de designação e de atestação” (VAN CAUWENBERGE, 2008, p.51). A consequência da conexão física entre uma foto e seu referente é que a imagem indicial remete sempre apenas a um único referente determinado, aquele que a causou, do qual ela resulta física e quimicamente. Esta foto, então, adquire um poder de designação. A partir desse princípio a foto também é levada a trabalhar como um testemunho, comprovando a existência (mas não o sentido) de uma realidade. Por essas qualidades de imagem indicial, o que se destaca é finalmente a dimensão essencialmente pragmática em oposição à semântica. As fotografias propriamente ditas quase não tem significação nelas mesmas: seu sentido lhes é exterior, é essencialmente determinado por sua relação efetiva com seu objeto e com sua situação de enunciação (CAUWENBERGE, 2008, p. 52). A consciência desse processo traz implicações importantes para o contrato de leitura que é estabelecido pela fotografia. Para Dubois, a foto é, em primeiro lugar, índice, ou seja, atesta que o objeto esteve ali. Só “depois” ela “pode” tornar-se parecida (ícone) e adquirir sentido (símbolo). Barthes (2006, p.115) coloca essa questão em termos bem simples. Para ele, a fotografia diz simplesmente “isso foi”. “A fotografia não diz forçosamente o que foi. Ela pode mentir sobre o sentido da coisa, sendo tendenciosa por natureza, mas nunca sobre sua existência”. A partir dessas considerações, é possível entender que os contratos de leitura Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 27 pressupostos na fotografia e nas histórias em quadrinhos são bem diferentes entre si. Enquanto o “isso foi” é central para a articulação dos contratos de leitura da fotografia, ele é absolutamente dispensável para os desenhos que compõem um quadrinho. Embora as duas mídias possam se estruturar em torno de uma promessa de verdade para o leitor, quando estão tratando de narrativas referenciais, esse voto se estruturam de maneiras diferentes em cada uma delas: nos quadrinhos, a promessa se articula no testemunho do quadrinista, que promete contar uma história verdadeira mesmo que a partir de um jogo ficcional com o desenho; para a fotografia, ela se articula no ato mecânico das inscrições da imagem, mesmo que se estruture a partir de um jogo ficcional com a verossimilhança e o significado. Ora, se isso é válido de uma maneira geral, na obra O Fotógrafo, tais fronteiras são transpostas. A particularidade dessa obra é, justamente, embaralhar tais contratos de leitura, criando novos campos de intersecção de sentidos, conforme analisaremos a seguir. 4. Novos campos de associação de sentidos Para Didi-Huberman (2013, p. 221), o problema da maior parte das abordagens metodológicas da imagem estática está no fato de que elas a definem como um mecanismo pensado “para funcionar sem restos”. Isso significa entender a imagem como um algo perfeitamente legível e integralmente decifrável, como se o olho fosse um órgão puro e sem pulsão. Obras como O Fotógrafo, contudo, significam justamente ao transpor as barreiras dos contratos de leitura consolidados, gerando novas associações de sentidos. É sob essa ótica que analisaremos a obra. Para Paim (2013) há três formas de conexão entre fotografia e narrativa em quadrinhos: a temática, a estilística e a técnica. A primeira é aquela em que a fotografia é tema principal ou coadjuvante na obra. A segunda se refere àquelas obras que se apropriam de elementos da técnica fotográfica como base e a partir dela criam uma técnica narrativa correspondente. A terceira é aquela que percebe a fotografia como recurso técnico, integrando as estratégias narrativas, inseridas em meio ao texto. No caso de O Fotógrafo, a fotografia aparece em duas categorias. Fica clara que a narrativa se desenvolve em torno das fotografias, em forma e também conteúdo. A começar pelo nome dos livros e pela presença de reflexões do autor sobre a técnica fotográfica e sobre o ato de fotografar. Mas a foto é principalmente inserida misturando-se aos quadrinhos, linguagem “que já tem o hibridismo como elemento intrínseco da sua composição e que vem Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 28 ganhando cada vez mais complexidade com a absorção de novas técnicas e linguagens, bem como com o desenvolvimento das suas próprias características” (PAIM, 2013, p.371). O autor aponta que ao inserir uma foto em uma linha narrativa, ela adquire propriedades particulares. Um desses traços adquiridos é uma característica essencial dos quadrinhos, o entre-quadros. Para McCloud (1995) o entre-quadros é a “sarjeta” entre um requadro e outro. Apesar da denominação grosseira, a sarjeta é responsável por grande parte da magia e mistério que existem na essência dos quadrinhos. É aqui no limbo da sarjeta que a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma em uma única ideia (MCCLOUD, 1995, p.66). Por serem compostos de imagens estáticas, os requadros acabam por fragmentar o tempo e o espaço, oferecendo, a princípio momentos dissociados. Mas o espaço vago da sarjeta permite que a imaginação do leitor una os requadros e os transforme em uma narrativa unificada, se tornando colaborador voluntário e consciente da história. A essa imaginação McCloud chama de conclusão. Para ele esse é um “agente de mudança, tempo e movimento” nos quadrinhos (MCCLOUD, 1995, p. 65). Paim (2013) observa que o que está fora do requadro passa a ter importância e ajuda a designar o que está dentro, fazendo com que uma parte do todo passe a significar o corpo inteiro: Estamos falando da noção de que o que acontece entre dois quadros é um componente mais vital para a história do que esses dois quadros por si. Afinal é no espaço entre dois momentos congelados que o leitor constrói uma conexão narrativa. É o espaço da imaginação do leitor, que pode ser exigida de forma mais ampla ou mais breve conforme variar a distância dos momentos representados nesses dois quadros (PAIM, 2013, p. 374). É o entre-quadros que forma o continuum de uma história em quadrinhos. Portanto quando uma foto é adicionada no contexto de uma narrativa sequencial, ela passa a ser regida por essa característica dos quadrinhos. O exemplo mais conhecido disso é da fotonovela, e no nosso caso do próprio O Fotógrafo, que transforma fotografias em requadros, ocupando bandas (cada linha de quadros da página) ou páginas inteiras. Ao misturar quadrinhos e fotografia, a partir dos mecanismos que descrevemos, O Fotógrafo faz uma operação de desestabilização desses sentidos consolidados nos contratos de leitura de cada uma das práticas. Para discutir isso, precisamos retomar algumas características do contrato de leitura da fotografia, em geral, e do fotojornalismo em particular. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 29 Ora, conforme já colocamos anteriormente, grande parte do contrato de leitura da fotografia (que articula seus efeitos de referencialidade) deve-se ao ato mecânico da sua inscrição. No quadrinho, ao contrário, está articulado no testemunho do quadrinista, que utiliza a ficção do desenho para dizer algo da realidade. Ora, ao misturar essas duas esferas, O Fotógrafo faz com o leitor um jogo duplo: ao mesmo tempo em que o ato mecânico da fotografia confere credibilidade ao quadrinho, engendrando ao desenho as ilusões de referencialidade próprias da fotografia, o quadrinho põe sempre em suspeita o testemunho da fotografia, construindo um dizer que é colocado sob a ótica da dúvida. Os efeitos de referencialidade de O Fotógrafo, nesses termos, são bastante complexos em suas intersecções entre o fotojornalismo e os quadrinhos. Eles se estruturam justamente em torno desse narrador suspeito, dessa testemunha que mistura o universo onírico com o universo referencial, o que acaba por reforçar a própria sensação de irrealidade e da falta de sentido da guerra e dos grandes crimes humanitários. A fotografia foi uma testemunha privilegiada das calamidades ocorridas em outros países. Como expõe Sontag: (...) quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo”. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-la. A foto é como uma citação ou uma máxima ou provérbio” (SONTAG, 2003, p.23). Guran (1992) explica esse fenômeno, pois considera a linguagem fotográfica notavelmente sensorial, mesmo existindo em seu processo certa racionalidade em seu processo de construção e leitura. Por isso, mais do que o texto, a fotografia é rápida em levar ao leitor uma ideia ou sentimento referente à informação que foi apresentada. Ao contrário do relato escrito que se dirige a um número maior ou menor de leitores, dependendo de sua complexidade de pensamento e de vocabulário, “uma foto só tem uma língua e se destina potencialmente a todos” (SONTAG, 2003, p. 21), traço que lhe confere, até certo ponto, um caráter de universalidade. Santos (2009) aponta que o fotojornalismo exerce uma função bastante específica ao permitir ao leitor: (...) ver, através das imagens, situações e circunstancias que efetivamente tomaram lugar na dimensão factual – funcionando como uma espécie de experiência de mundo emprestada. Pode-se dizer, pois, que a fotografia se configura enquanto um correlato visual da notícia, isto é, servindo para apresentar ou descrever visualmente os acontecimentos aos quais se refere. (SANTOS, 2009, p. 1) Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 30 Sontag (2003) aponta que a fotografia adquiriu um imediatismo e uma autoridade maiores do que qualquer relato verbal para transmitir os horrores da guerra. Castro (2007) complementa essa concepção com outra característica adquirida pela foto ao dizer que, A fotografia, porém, além de documentar as guerras e espelhar seus horrores nas páginas dos jornais e revistas, é utilizada como instrumento de crítica social, despertando a consciência dos leitores e suscitando mudanças nas condições de vida das camadas marginalizadas da sociedade, consolidando o fotojornalismo como instrumento da crítica social (CASTRO, 2007, p.38). Isso posto, contudo, cabe a pergunta: como representar o irrepresentável do trauma, da guerra e da dor? Apesar de todo o catálogo de misérias que o fotojornalismo mostrou ao longo do tempo, há algo da esfera do trauma que não pode ser transposto para a imagem fotojornalística. O Fotógrafo é uma obra singular na medida em que tenta dar conta desse irrepresentável justamente a partir do embaralhamento dos contratos de leitura da fotografia e dos quadrinhos. Uma vez que o trauma diz respeito justamente aquilo que não pode ser representado, o irrepresentável da guerra é posto justamente a partir da exploração dos sentidos desviantes, da transposição das fronteiras entre os dispositivos midiáticos para a construção de sentidos outros. O irrepresentável da guerra é representando na obra a partir de suas características formais, da mistura de um universo supostamente inventado com um universo em que há uma ilusão de um suposto real. O irrepresentável, em outros termos, se materializa a partir de desestabilizações no contrato de leitura e nos efeitos de referencialidade da obra. 5. Considerações finais Para Didi-Huberman, se a imagem, sem dúvida, é formada por empréstimos da cultura, ela também é formada por “interrupções praticadas na ordem do discurso” e, portanto, “de legibilidades transpostas, mas também de um trabalho de abertura – e, portanto, de efração, de sintomização – praticado na ordem do legível e para além dele” (DIDIHUBERMAN, 2013, p. 28). Obras como O Fotógrafo trabalham com essa qualidade ao embaralhar as fronteiras entre os registros que se pretendem mais realistas e aqueles ligados abertamente às esferas do ficcional. Obras como essa, recusam-se a sínteses interpretativas totalizantes, na medida em que sua principal característica é, justamente, fazer com que Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 31 significados contraditórios possam estar em relação. Para Didi-Huberman (2013, p. 335), “estando entendido que toda figura pictórica supõe ‘figuração’, assim como todo enunciado poético supõe enunciação”, “acontece que a relação da figura com a sua própria figuração nunca é simples: essa relação, esse trabalho, é um emaranhado de paradoxos”, de modo que “de fato, a imagem sabe representar a coisa e seu contrário”. Em outros termos, “trata-se de experimentar uma rasgadura constitutiva e central: ali onde a evidência, ao se estilhaçar, se esvazia e se obscurece” (DIDIHUBERMAN, 2013, p. 16). O Fotógrafo possui justamente essa qualidade ao problematizar a narrativa referencial do fotojornalismo, misturando-a com a linguagem dos quadrinhos para tematizar o trauma. Se o próprio trauma está calcado no embaralhamento dos sentidos e nas conexões entre o referencial e o ilusório, a mistura entre os quadrinhos e o fotojornalismo engendra uma maneira formal de trabalhar com esses aspectos, distorcendo contratos de leitura consolidados para retratar o ininteligível do trauma e o irrepresentável da dor. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. A câmara clara. Porto: Edições 70, 2006. CASTRO, Sílvio Rogério Rocha de. História da fotografia impressa: produção e leitura da imagem fotográfica jornalística. Revista Cambiassu. São Luís: Maranhão. Jan/dez, 2007 CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada. Petrópolis: Vozes. 1972. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Editora 34, 2013. DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993. EISNER, Will. Quadrinhos e a arte sequencial. Trad. 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Nossa proposta é identificar os elementos utilizados na composição da narrativa e verificar o nível de interatividade que oferece ao usuário, destacando também as possibilidades jornalísticas, e a utilização de diferentes técnicas e linguagens: textual, infográficos, simuladores, mapas, ilustrações, audiovisual, entrevistas com personagens e especialistas. PALAVRAS-CHAVE: Narrativa hipermídia; Interatividade; Ciberjornalismo; O Estado de S.Paulo. ABSTRACT: The study aimed to analyze the narrative hypermedia entitled Past and Future Cantareira, published in april 2014, on the website of the newspaper O Estado de S. Paulo, in an attempt to contextualize the worst drought in the history of São Paulo.Our proposal is to identify the elements used in the narrative composition and check the level of interactivity that offers the user, also highlighting the possibilities of hypermedia journalistic reportage. KEY-WORDS: Narrative hypermedia; Interactivity; Cyberjornalism; O Estado de S.Paulo. 1. Apresentação As novas práticas de comunicação instituídas na cibercultura, que surgem a partir do desenvolvimento tecnológico, da internet e da web, alteram a indústria do entretenimento e os meios de comunicação (LÉVY, 1998; LEMOS, 2003). Nesse contexto, os produtos culturais se adaptam à demanda das audiências segmentadas. As emissoras de rádio, por exemplo, tiveram que se adaptar ao novo cenário, passando 5 Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Complutense de Madri, onde é pesquisadora do Internet Media Lab. E-mail: [email protected]. 6 Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Metodista de S.Paulo. Professora adjunta do curso de jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 34 a disponibilizar seus programas online em formato podcast. Os chamados cibermeios 7 e os meios tradicionais desenvolvem trabalhos conjuntos para oferecer conteúdos móveis que exploram diferentes níveis de interatividade (JENKINS, 2009). Dessa forma, os produtores de conteúdo tiveram que se adaptar às novidades técnicas e tecnológicas da web, considerando a demanda do público por produtos midiáticos mais dinâmicos e interativos. Tanto é assim que os meios tradicionais têm investido em projetos que inclui a produção de aplicativos informativos para dispositivos móveis (FIDALGO; CANAVILHAS, 2009; CEBRIÁN; FLORES, 2012; CANAVILHAS, 2013). Com o objetivo de produzir conteúdos mais dinâmicos e interativos, o ciberjornalismo aposta pelo uso da narrativa hipermídia, passando a explorar outros elementos além do link. Apesar do foco desse tipo de narrativa estar na interação do usuário com o conteúdo, Murray (2003) alerta que em nenhuma das formas de narrativas digitais a participação é efetivamente ativa, a ponto de interferir no andamento ou final de uma história. Inserido neste contexto, este artigo se dedica a analisar os elementos hipermídia utilizados no especial Passado e Futuro do Cantareira, publicado pelo o Estado de S.Paulo8, e identificar os recursos que compõem a narrativa do especial, assim como as possibilidades interativas que a publicação oferece à audiência. Com relação à metodologia aplicada à análise apresentada neste artigo, além da revisão bibliográfica que sustenta a parte teórica sobre narrativas interativas no ciberjornalismo, utiliza-se como técnica de pesquisa a análise de conteúdo web (HERRING, 2010), por oferecer um nível de profundidade adequado para analisar conteúdos de comunicação na internet. No caso específico do estudo, a análise de conteúdo web inclui duas categorias de análise: elementos da narrativa e níveis de interatividade. Ambas as categorias estão relacionadas diretamente com o objetivo principal deste trabalho. Quanto à categoria dos elementos da narrativa, pretende-se identificar a composição da linguagem textual, o número de links, os recursos audiovisuais, as fotos e ilustrações, os infográficos, etc. Já na segunda categoria, o objetivo é analisar os níveis de interatividade 7 Neste artigo, optamos pelo uso do termo cibermeio como sinônimo de meios de comunicação online. Também preferimos utilizar o termo ciberjornalismo (DÍAZ NOCI, SALAVERRÍA, 2003) a jornalismo online ou jornalismo digital para designar a prática jornalística na internet. 8 O especial está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://infograficos.estadao.com.br/especiais/passado-futurocantareira/ Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 35 (seletiva, comunicativa, criativa e plena), partindo das referências de Cebrián (2005) e Rost (2006). 2. Construindo uma narrativa jornalística não-linear O uso de narrativas interativas no ciberjornalismo está intrinsicamente relacionado às práticas da cibercultura. As trocas de mensagens instantâneas através do celular, o uso de sites de redes sociais e o hábito de leitura de notícias em dispositivos móveis, por exemplo, acabam influenciando nos processos de produção jornalística. Nesse sentido, é relevante considerar que entre o autor e o produto (cultural) – neste caso, o especial do Estado – e também na experiência da audiência se encontra o software. Ou seja, existe uma espécie de mediação por parte das interfaces tecnológicas. Em El lenguaje de los nuevos medios de comunicación, Manovich (2005) apresenta cinco princípios básicos dos novos meios de comunicação: 1) representação numérica; 2) modularidade; 3) automatização; 4) variabilidade e 5) transcodificação, que a seguir relacionamos com a comunicação digital. A representação numérica corresponde ao fato de que todos os objetos criados com o computador são compostos de códigos digitais. A imagem publicada num blog jornalístico (COLUSSI RIBEIRO, 2013), por exemplo, pode ser representada por uma equação matemática. Se aplicarmos os algoritmos adequados, podemos melhorar o contraste, o brilho e outras variáveis da fotografia. Seguindo a mesma lógica, encontraremos diversos exemplos no jornalismo contemporâneo. Com relação à modularidade, Manovich explica que os elementos dos novos meios de comunicação, como as imagens, sons e formas, são representados por coleções de amostras discretas (pixels, polígonos, caracteres ou scripts), além de apresentar sempre a mesma estrutura modular. Como exemplo de modularidade se encontra a web que, no seu conjunto, é completamente modular. Consta de inúmeros sites, cada um composto por elementos midiáticos individuais, aos que sempre é possível acessar de forma separada. A representação numérica e a modularidade permitem a automatização – terceiro princípio – de muitos processos de criação, manipulação e acesso dos novos meios de comunicação. Para citar um exemplo, em várias séries de televisão, vemos bandos de pássaros ou uma multidão de pessoas que são criados automaticamente com programas de vida artificial. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 36 Quanto à variabilidade, o autor sustenta que os elementos dos novos meios de comunicação são mutáveis e podem existir em distintas versões. São armazenados em banco de dados, a partir do qual é possível gerar uma variedade de objetos relativos à resolução, ao conteúdo e à forma. O conteúdo pode ser separado da interface, assim como existe a possibilidade de guardar versões de diversos tamanhos. “A lógica dos novos meios corresponde à lógica de distribuição pós-industrial: a produção é feita a pedido do usuário e justo a tempo, opção possível graças às redes de computadores em todas as fases de produção e distribuição” (MANOVICH, 2005, p. 83). Em função desse princípio, tornou-se possível, por exemplo, acessar a edição de um jornal em formato PDF. Já a transcodificação – traduzir a outro formato – é a principal consequência da informatização dos meios, que agora estão sujeitos às convenções estabelecidas pela organização de dados a partir do código binário. É como se os meios de comunicação contassem com duas camadas: a “camada cultural” e a “camada informática”. Os novos meios são produzidos, distribuídos e arquivados através de um computador. Consequentemente, uma camada influi na outra mutuamente. Como exemplo, uma reportagem hipermídia é composta da parte humana, que corresponde à capacidade intelectual de quem a elabora, e a linguagem informática, que permite que a mensagem seja publicada no site de um meio de comunicação, com links e demais elementos sonoros e visuais. Nesse cenário, a interatividade e a hipermídia surgem como estruturas fundamentais das novas mídias. O uso de elementos hipermídia no jornalismo digital oferece à audiência a possibilidade de escolher que caminho seguir naquele conteúdo, o que torna a narrativa interativa, dinâmica e não-linear. O conceito de hipermídia é uma extensão da noção do hipertexto ao incluir informação visual, sonora, animação e outras formas de informação (LANDOW, 1997). É a junção de multimídias com hipertextos. Já Gosciola (2003) apresenta uma definição mais abrangente de hipermídia, como sendo: o conjunto de meios que permite acesso simultâneo a textos, imagens e sons de modo interativo e não-linear, possibilitando fazer links entre elementos da mídia, controlar a própria navegação e, até, extrair textos, imagens e sons cuja sequencia constituirá uma versão pessoal desenvolvida pelo usuário (GOSCIOLA, Vicente, 2003, p. 34). Torna-se um consenso entre os pesquisadores da área de ciberjornalismo que explorar a narrativa hipermídia é a chave para produzir conteúdos mais dinâmicos e interativos (PALÁCIOS, 1999; DÍAZ, 2001; EDO, 2002; SALAVERRÍA, 2005; LARRONDO, 2008). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 37 Nesse sentido, pensar em construir uma narrativa não-linear é o ponto de partida de um conteúdo hipermídia. A não-linearidade em conteúdos hipermídia corresponde ao “acesso direto a qualquer conteúdo ou parte da obra, sem que o usuário perca a continuidade da fruição”, durante o ato de ler-ver-ouvir-usar uma obra hipermídia (GOSCIOLA, 2003, p. 99). O percurso do usuário pela obra hipermidiática é não-linear porque não desenvolve uma leitura/utilização simultânea dos vários conteúdos. Gosciola (2003) ressalta a existência de dois tipos de discurso: o armazenado pelo produtor e o decorrido pelo usuário. Ou seja, o autor realiza uma obra hipermídia com diversas opções de condução narrativa ao usuário. Nesse processo, roteirista e produtor são conscientes de que a escolha do caminho narrativo é de responsabilidade do usuário. Não obstante, o grande desafio do roteirista de uma obra hipermidiática é planejar um fluxo comunicacional no qual tenta manter um controle do deslocamento do usuário sobre as unidades narrativas, considerando que ele pode buscar ou se deixar levar para os destinos narrativos que o desenrolar dos conteúdos lhe oferece. Normalmente o usuário não toma conhecimento de todos os conteúdos e nem percorre todos os links inseridos na obra. 3. Estrutura da obra jornalística hipermídia De acordo com Gosciola, para pensar na estrutura de obra hipermídia, é essencial considerar os seus elementos específicos: 1) o link como unidade primordial da hipermídia; 2) o conteúdo como abstrato da hipermídia; 3) interatividade; 4) interface como a porta que leva à evolução da hipermídia. Dessa forma, entende-se que a hipermídia vai além do multimídia, uma vez que enfatiza a interatividade e o acesso não-linear promovido pelos links entre os conteúdos. O hipertexto e a hipermídia são os elementos que permitem o usuário escolher que caminho deseja seguir no conteúdo, o que torna a narrativa mais interativa e não-linear. Rost (2006) defende que a principal diferença entre os meios tradicionais e as novas mídias é seu maior potencial interativo, tanto no que se refere às opções de seleção como às possibilidades de expressão e comunicação. Ao realizar um estudo exaustivo sobre a interatividade em cibermeios, Rost (2006, p. 195) propõe uma definição de interatividade aplicável aos novos meios e ao ciberjornalismo. Para o autor, trata-se da “capacidade gradual e variável que um meio de comunicação tem Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 38 para dar ao usuário/leitor um maior poder tanto na seleção de conteúdos (interatividade seletiva) como nas possibilidades de expressão e comunicação (interatividade comunicativa)”. Entre os diferentes níveis de interatividade que o usuário pode ter ao acessar o conteúdo de um meio de comunicação online, Cebrián (2005) aponta quatro níveis: 1. Interatividade seletiva: limita a capacidade de inter-relação do usuário à seleção de uma opção entre as diversas possíveis. O hipertexto é o exemplo mais apropriado neste nível. 2. Interatividade dirigida pelo usuário: corresponde ao fato de que o internauta controla o próprio trajeto feito pela informação proporcionada pelo sistema. Esse nível de interatividade existe, por exemplo, quando o usuário tem a possibilidade de utilizar o buscador para a pesquisa de notícias antigas. 3. Interatividade criativa: ocorre quando o usuário pode enviar colaborações, como fotos, vídeos ou comentários. 4. Interatividade plena do usuário: o sistema permanece aberto à capacidade participativa do internauta. Este nível de interatividade acontece principalmente em obras que o usuário pode participar da construção do produto, como é o caso dos documentários e de projetos de arte transmídia. Os sistemas imersivos também se encaixam nesta categoria. Convém uma ressalva com relação aos sistemas imersivos, dos quais formam parte os games. Nesse caso, a interatividade é feita com partes do corpo, como demonstram Busarello, Bieging e Ulbricht (2012). Um game sem essa característica não promove a interatividade plena do usuário. Ao abordar os elementos que compõem o processo de roteirização hipermidiática, Gosciola (2003) ressalta que se trata de um tema complexo, já que uma obra interativa e nãolinear trabalha com aspectos da linguagem e da tecnologia advindos de áreas distintas do conhecimento. Nesse sentido, o autor defende que o roteiro de uma obra hipermidiática [...] elabora a associação direta entre os recursos técnicos específicos para a navegabilidade não-linear em ambientes hipermidiáticos definidos pelos links e os diversos conteúdos apresentados através dos respectivos meios – ou seja, os conteúdos em forma de texto, gráfico, áudio e vídeo – , planejados por um trabalho de roteirização e organizados por um sistema de autoração (GOSCIOLA, Vicente, 2003, p. 145). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 39 Com esse aporte teórico levantado, pretendemos, na sequência, entender como essa conjuntura hipermidiática pode se materializar na publicação do jornal Estadão sobre a crise da água na região metropolitana de São Paulo. 4. ‘O passado e o futuro do Cantareira’ O especial Passado e Futuro do Cantareira, produzido pelo jornal O Estado de S.Paulo em abril de 2015, contou com 15 profissionais, entre eles, três jornalistas, três web designers e quatro profissionais de infografia, além de responsáveis pelas ilustrações 3D, imagens e vídeos, evidenciando o trabalho em equipe de diferentes áreas relacionadas. O produto jornalístico aborda, com uma espécie de infográfico abrangente e interativo, a situação do sistema hídrico Cantareira, manancial que abastece a região metropolitana de São Paulo. O nível reduzido dos mananciais, devido à exploração desenfreada e ao período extenso de estiagem, levou à utilização da reserva técnica utilizada do sistema e ao volume morto9, desencadeando a crise do abastecimento de água na capital e em outras cidades do Estado nos anos de 2014 e 2015. O especial foi dividido em oito módulos ou blocos, identificados pela titulação e pela composição gráfica. Sendo a primeira parte textual, nomeada de O passado e o futuro, com uma contextualização sobre a situação do sistema hídrico Cantareira. A segunda, um simulador que apresenta, a partir de cenários pré-selecionados, o volume disponível para captação de água. Na sequência, um mapa intitulado O Sistema – O caminho da água, seguido por gráficos com a situação do sistema e com números da economia de água gerada pela população. O módulo Sistema – volume morto apresenta uma ilustração rotativa que mostra a rede de água em situação normal e as consequências com a exploração dos volumes mortos. Na sexta parte novamente está um conteúdo textual, Medidas Adotadas, que explica as soluções paliativas tomadas pela Sabesp: redução da pressão de água, programa de bônus, transferência de sistema, bombardeio de nuvens e a multa da água. Ainda estão os blocos Especialista, com declarações da secretária-geral da ONG ambiental WWF Brasil sobre o possível colapso do reservatório, e Depoimentos com vídeo da TV Estadão de pessoas entrevistadas sobre a crise de água. E por fim, mais um quadro ilustrativo rotativo, Dicas para economizar, que traz orientações para o cidadão comum colaborar no racionamento da água. 9 Volume morto é a reserva técnica do rio, a ser explorado em águas profundas. Como nunca foi utilizado não existem informações seguras sobre a qualidade e a quantidade da água dessa reserva. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 40 5. Composição da narrativa e da interatividade A narrativa, estruturada em módulos, conta com textos, infográficos, mapas, simulador, ilustrações rotativas, vídeo, com o propósito de explicar de forma jornalística e hipermidiática, a crise do sistema hídrico. A chamada do produto ressalta a importância do assunto: “no mês em que a crise do maior manancial paulista completa 1 ano, O Estado traz cronologia completa da pior seca da história e uma ferramenta inédita que permite simular como ficará o sistema em 2015”. O texto é o recurso mais utilizado, com forte presença da infografia em uma proposta de renovação da narrativa jornalística. Na parte textual, o bloco O passado e o futuro retoma cronologicamente a conduta da Sabesp sobre a falta de água e reforça dados levantados pelo próprio jornal e informações divulgadas anteriormente, sem fontes de informações citadas diretamente e sem a presença de links para outros conteúdos. Em outro bloco de texto, Medidas adotadas, que explica cada ação realizada pela Sabesp para minimizar a crise como a redução da pressão, o programa de bônus e a multa da água, também notamos um compilado de dados, sem fontes diretas, inclusive com dados bastante específicos sobre quantidade de água economizada, valores investidos que se pressupõe, pela construção, que foram conseguidos pelo jornal em ocasiões anteriores. A fonte de informação aparece explicitamente no módulo Especialista, em que a secretária-geral da organização ambientalista WWF tem suas declarações reproduzidas direta e indiretamente. Assim, observamos um conteúdo textual já divulgado, que foi retomado e organizado para a presente narrativa, em uma proposta mais sintética que recupera os assuntos e apresenta um panorama para o leitor. Porém, em nenhum caso há hiperlinks ou propostas de interação (além da possibilidade do internauta ir clicando para avançar os textos horizontalmente). As ilustrações e textos predominam e não foram utilizadas fotos. Nas ilustrações, que denominamos aqui de rotativas, justamente porque é possível clicar e avançar nas imagens (no caso, explicando sobre o volume morto e dicas para economizar água) estão textos bastante sucintos, com linguagem direta, que se limitam a explicar a imagem (figura 1), e orientar sobre a economia de água em ações cotidianas como ao tomar banho, escovar os dentes, lavar a louça. Os dados e números ali apresentados tampouco trazem fontes de informação e levantam dúvidas sobre as técnicas jornalísticas utilizadas para produção desse bloco informativo. É possível baixar em formato PDF, um mapa estático do abastecimento de água na grande São Paulo – possibilitando o arquivamento do conteúdo e a leitura atemporal, conforme apontou Manovich. Por enquanto, a narrativa é Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 41 bastante linear e pouco dinâmica, apesar do formato não tradicional. Figura1. O Sistema (Passado e Futuro do Cantareira) O dinamismo e participação mais direta acontecem no simulador (figura 2), produzido a partir de informações da Agência Nacional de Águas, que permite que o internauta visualize como ficará o sistema de acordo com as opções de entrada de água: média atual, mínima histórica, média histórica ou máxima histórica. É possível, em cada um dos cenários, ir avançando nos meses e verificando o quanto de água teria disponível para abastecimento, ao mesmo tempo em que aparecem na linha cronológica do infográfico, que abrange de janeiro de 1982 a janeiro de 2015, destaques sobre fatos importantes relacionados ao abastecimento e à crise, tendo como base as matérias veiculadas pelo próprio jornal. À medida que se avança nos pontos e nos anos colocados no infográfico surgem informações como “Reportagem do Estado alerta para a seca”, “Alckmim anuncia falta de água”, “Sabesp inicia retirada do volume morto”, “Ana libera segunda cota do volume morto”, “Sistema perde metade da capacidade em um ano”. Trata-se de uma participação fechada nas opções previamente colocadas e novamente temos um trabalho de retomada de conteúdos já conhecidos, mas codificados em uma nova dinâmica. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 42 Figura 2. Simulador (Passado e Futuro do Cantareira) Complementam as informações infográficos estáticos, um mapa sobre o caminho da água nas represas que compõem o Cantareira, além de gráficos (figura abaixo) com números do abastecimento e da economia de água gerada pela população, revelando aqui um investimento importante no jornalismo de dados, ao organizar e combinar os números jornalisticamente. Figura 3. O sistema (Passado e Futuro do Cantareira) Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 43 O único vídeo presente, com pouco mais de três minutos, mostra cidadãos, não identificados em créditos, respondendo a pergunta colocada “Vai acabar a água?”. Ao lado, algumas das declarações são reproduzidas textualmente e devidamente creditadas. Existe aqui o interesse em mostrar as opiniões diferentes de pessoas comuns sobre um assunto que as afeta diretamente. Considerando que a navegabilidade não-linear em ambientes hipermidiáticos existe graças à inserção de links e dos demais conteúdos em forma de texto, gráfico, áudio e vídeo (LANDOW, 1997; GOSCIOLA, 2003), no caso específico do especial analisado, a ausência de links nos blocos de texto prejudica a construção de uma narrativa que possa oferecer um trajeto não-linear e mais dinâmico. Com relação aos níveis de interatividade (CEBRIÁN, 2005), a que mais fica evidenciada nesse especial é a seletiva, que oferece uma participação restrita às opções possíveis, ou seja, permitindo acessar vídeos, avançar no conteúdo ilustrativo, escolher os cenários para interagir com o simulador. A ausência de hiperlinks para outros espaços limita ainda mais a interatividade e deixa o conteúdo bastante linear e convencional, apesar do investimento em infográficos, ilustrações e outras linguagens midiáticas não compatíveis com o jornal impresso. Há no topo do site os ícones para compartilhar o conteúdo nas redes sociais Facebook, Google + e Twitter, mas faltam espaços no próprio especial para comentários e envio de qualquer tipo de material por parte do usuário, o que pode acontecer de forma indireta nas redes sociais digitais, por exemplo. 6. Considerações finais A plataforma construída como um infográfico interativo apresenta uma narrativa hipermídia que propicia uma navegabilidade não-linear reduzida, já que permite ao usuário escolher entre as opções colocadas: acessar vídeo, ilustração, clicar em ícones para ter mais informações (caso do simulador). Mas a ausência de links nos blocos de texto, apesar de poder ter como propósito não dispersar o internauta para outros espaços, mantendo-o na narrativa, acaba por tornar a experiência mais fechada e menos flexível. Avaliamos ainda que a proposta da interatividade plena ou criativa não se efetiva em nenhuma das instâncias do especial, não há espaço para participar e interagir de forma mais livre, enviando conteúdos ou postando comentários, por exemplo. A forma como o conteúdo foi trabalhado, numa compilação de dados já publicados pelo jornal e sistematizados na narrativa, fatos transformados em gráficos e números, Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 44 simuladores instantâneos, aponta para um trabalho de curadoria, que aposta em textos mais sintéticos, próprios da internet. No entanto, a predominância do texto corrido, sem links e sem possibilidades interativas, ainda evidencia o formato tradicional do jornalismo. O quesito conteúdo jornalístico merece ser analisado profundamente em outra ocasião, mas convém reprovar as poucas fontes de informação e os textos em itens, que centralizam a responsabilidade do cidadão sem contextualizar politicamente a crise para o leitor. De fato, estamos diante de um assunto urgente e de ampla preocupação, que ganhou as páginas dos jornais e os espaços da internet e que merece ser pautado com diferentes linguagens e alcances. O Estado, reconhecendo esse contexto, apresenta uma ferramenta de natureza jornalística que busca organizar os dados e tratar o assunto de forma renovada no que diz respeito à narrativa, ainda que com limitações. 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Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 46 ARTIGO LIVESTREAMING AS JORNADAS DE JUNHO: sobre o gesto de filmar ou a memória digital Juracy OLIVEIRA10 Sergiano SILVA11 RESUMO: As Jornadas de Junho que eclodiram no Brasil em 2013 tornaram evidentes a fusão da rede com a rua, canalizada por um midiativismo cujas frentes são exatamente as novas tecnologias. No sentido de construírem narrativas que se contrapusessem às da mídia corporativa, o uso do livestreaming foi essencial pela possibilidade de transmitir a própria experiência da insurgência, dentro do gesto fílmico de fazer e contar a história em tempo real, ou melhor, pós-história, pois se a primeira – com sua lógica de arquivo – transforma documentos em monumentos, esta última desenrola-se diante das telas, em fluxo contínuo – com uma memória digital que existe apenas no momento da transmissão. PALAVRAS-CHAVE: Jornadas de Junho. Livestreaming. Memória digital. ABSTRACT: The Jornadas de Junho which erupted in Brazil, 2013, made evident the fusion between networks and streets, it was canalized for a mediativism that has the new technologies as main front. Aiming at constructing narratives which contrasted with those of mass media, the use of livestreaming was essential because it represented the possibility of broadcasting the experience of rioting itself, within the filmic gesture of both making and telling real-time history, or else, post-history, since the former – with its archival logic – transforms documents into monuments, the latter is developed in front of the continuous flux of screens – with a digital memory which only exists during the moment of transmission. KEYWORDS: Jornadas de Junho. Livestreaming. Digital memory. 1. Introdução Que ‘as coisas continuem assim’ – eis a catástrofe. Walter Benjamin – Passagens Ainda que as ruínas continuassem a se acumular sob os nossos pés e o anjo benjaminiano observasse a barbárie de nossa época, finada decretamos a História, como se 10 Graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestranda em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]. 11 Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e doutorando pela mesma instituição. E-mail: [email protected]. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 47 não mais nos pertencesse. Empurrados irremediavelmente para um futuro, nos resta apenas voltar o olhar para o passado e agir sobre o presente. Mas ainda há possibilidade de redenção? As revoltas ocorridas nos últimos anos dão o sinal de que a História continua a dar voz ao Tempo e ainda chama: o próximo! Da Primavera Árabe à Europa e dos Estados Unidos à América Latina, ao longo dos últimos tempos mobilizações sociais alastraram-se ao redor do globo. E junto com essa era de revoltas presenciamos o “renascer” da história, como propõe Alain Badiou (2012, p. 5), “em oposição a pura e simples repetição do pior”. Ou talvez tenha apenas chegado a hora de voltarmos a “sonhar perigosamente” (ŽIŽEK, 2012, p. 1), com tudo que isso implica. É nesse contexto que o Brasil viu eclodir em junho de 2013 protestos em centenas de cidades e que contaram com quase dois milhões de participantes12. E apesar das especificidades locais, o caso brasileiro insere-se no histórico dessas insurgências mundiais, visto que apresentam características comuns, a saber: o uso da horizontalidade da Internet tanto para fins de organização quanto para o debate político; a extensiva documentação e transmissão em tempo real dos eventos por meio das novas tecnologias; a ocupação sistemática dos espaços públicos; a ausência de lideranças e partidos políticos; a diversidade de pautas trazidas pelos manifestantes etc. Longe de ser apenas um raio em céu azul, tal catarse política deu vazão ao descontentamento generalizado que havia tomado conta da sociedade – tendo em vista que a gestão neoliberal das cidades aprofundou por décadas o desenvolvimento excludente que levou à precarização dos serviços públicos, à desigualdades sociais profundas e à violência urbana. Assim, a agenda das manifestações foi ampla o suficiente para abranger desde a redução da tarifa do transporte público (ou mesmo a tarifa zero) até a crítica aos excessivos gastos com os megaeventos e à corrupção. Mas o que nos interessa mais especificamente nas Jornadas de Junho são as suas potencialidades comunicativas, marcadas pela fusão da rede com as ruas. E dentro desse imbricamento o ciberativismo exerce uma função basilar ao ressignificar as plataformas da chamada Web 2.0 para fins políticos e construir narrativas que se contrapõem àquelas da mídia massiva e para tanto, uma das tecnologias mais usadas por essa mídia independente é o 12 Resultados das manifestações de junho. Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/linha-tempo-manifestacoes2013/platb/>. Acesso em: 30 dez. 2014. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 48 livestreaming13, que permite talvez uma nova experiência de tempo e espaço ao transmitir os acontecimentos em tempo real. Assim, o que se propõe aqui é analisar o próprio gesto de filmar tais acontecimentos no seu teor histórico e estético bem como discutir acerca dessa memória digital implicada no ato da transmissão – que ultrapassa em muito os limites dos arquivos que classicamente documentam a história. 2. Somos a rede social Junto com o advento das tecnologias digitais e da Web nos anos 1990, surgiu o que se convencionou chamar de ciberativismo, ou seja, uma nova espécie de ativismo que “tem nas novas tecnologias de comunicação uma aliada valiosa para o fortalecimento das organizações, tanto local quanto globalmente, para a coordenação de campanhas e protestos, para a difusão de informações, denúncias e petições” (DI FELICE, 2013, p. 54). E assim, esse novo ativismo integrou na Internet seu olho, suas imagens, seu ouvido, suas sonoridades, sua boca, suas falas, sua pele, seus contactos, sua memória e suas conexões, até construir uma teia comunitária tornando o corpo apto a viver no ciberespaço (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 139). Dessa forma, mais do que apenas incorporar a Internet aos seus processos comunicativos, o ativismo online transforma-se substancialmente pela própria materialidade dos meios que utiliza. E sendo o meio também a mensagem (MCLUHAN, 1994, p.7), a horizontalidade das novas tecnologias atualiza as ideias de participação e espaço democrático e mesmo as estratégias políticas empregadas – posto que a própria ação social desses movimentos se transforma –; visto que, como afirma Manuel Castells (2012, p.15), “as características dos processos comunicacionais entre indivíduos engajados nos movimentos sociais determinam as próprias características organizacionais do movimento social”, quanto mais interativa e customizável é a comunicação, menos hierárquica e mais participativa é a mobilização. Portanto, as atuais insurgências da era digital são mesmo oriundas de uma nova espécie de movimento social. Nessa topologia de rede distribuída na qual a informação navega horizontal e dialogicamente, cada nó tem igual importância. Cada cidadão é um ator na rede. E pela própria ruptura dos outrora fixos papéis de emissor e receptor, este último pode agora criar os seus próprios canais de comunicação. Dessa forma, Leonardo Sakamoto (2013, p. 95) observa 13 Ou mesmo “mídia de fluxo” é uma forma de distribuição de conteúdo multimídia via Internet cujo processamento de dados dá-se por pacotes e a reprodução dos mesmos acontece concomitantemente com o seu recebimento, portanto, não gerando um arquivo. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 49 que a Web torna-se um lugar de construção política na qual vozes dissonantes ganham escala justamente por não serem mediadas pelos veículos tradicionais de comunicação. E complementa que essas tecnologias de comunicação não são apenas ferramentas de descrição da realidade, mas sim de construção e reconstrução da realidade. Quando alguém atua através de uma dessas redes, não está simplesmente reportando, mas também inventando, articulando, mudando. Isto, aos poucos, altera também a maneira de se fazer política e as formas de participação social. É justamente essa possibilidade de auto-comunicação gerada pela Internet que permite a fusão de mídia com o ativismo: o midiativismo ou midialivrismo. Uma mídia livre, que fugindo ao modus operandi dos veículos massivos, almeja uma comunicação em rede (por meio das interfaces digitais) e tem como objetivo alargar o espaço público midiático ao disputar com a mídia corporativa a construção de narrativas. Em suma, o midialivrista é o hacker das narrativas, um tipo de sujeito que produz, continuamente, narrativas sobre acontecimentos sociais que destoam das visões editadas pelos jornais, canais de TV e emissoras de rádio de grandes conglomerados de comunicação. Em muitos momentos, esses hackers captam a dimensão hype de uma notícia para lhe dar um outro valor, um outro significado, uma outra percepção, que funcionam como ruídos do sentido originário da mensagem atribuído pelos meios de comunicação de massa. Essa narrativa hackeada, ao ser submetida ao compartilhamento do muitos-muitos, gera um ruído cujo principal valor é de dispor uma visão múltipla, conflitiva, subjetiva e perspectiva sobre o acontecimento passado e sobre os desdobramentos futuros de um fato (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 23). Essa guerra das narrativas que acontece nas redes sociais, nos blogs e noutras interfaces de comunicação distribuída destaca o midiativista como aquele que tanto subverte quanto contrapõe as verdades da grande mídia, o que tem se ampliado diante da transformação na capacidade interativa da rede com a ascensão da Web 2.0 – claro que não devemos desprezar também o seu aspecto comercial, que Castells (2009, p. 421) considera a própria mercantilização da liberdade através do cerceamento da livre comunicação por redes privadas em troca da renúncia à privacidade. Apesar disso, o agenciamento entre indivíduos, tecnologias e territórios tornado possível por essa segunda geração da Web é cooptado pelo ciberativismo em prol da ação social e política. É essa sinergia, ou associação, entre diversos actantes (LATOUR, 2005) – indivíduos, coletivos, smartphones, redes sociais etc. – que tornou aquele junho de 2013 possível. É dessa interação que vem a surgir toda aquela mobilização e engajamento. E apesar da ausência de lideranças nas manifestações, podemos dizer que de certa maneira os midialivristas, com seus Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 50 aparatos técnicos, protagonizaram os protestos nas suas coberturas ao vivo, no calor das barricadas, ao darem voz aos anseios daquela geração que estava nas ruas e ao tornarem a revolta, e a própria história, compartilhada. Figura 14 3. No próprio olho da história Embora os midiativistas já se espraiassem há muito nas redes digitais, foram as Jornadas de Junho que lhe deram uma definitiva visibilidade no contexto nacional; a partir daí que a Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), dentre os inúmeros coletivos e indivíduos que cobriam as manifestações ao vivo, passa a ter destaque por sua atuação não só nas Web, mas também na mídia convencional. Ao transmitirem colaborativamente as manifestações em todo o Brasil via livestreaming, Ivana Bentes (2013, p. 15) observa que eles produziram uma experiência catártica de “estar na rua”, obtendo picos de até 25 mil visualizações. Seguindo a própria lógica da Internet de agilidade, imediatismo e liberdade, a autora complementa que a Mídia Ninja fez emergir e deu visibilidade ao “pós-telespectador” de uma “pós-TV” nas redes, com manifestantes virtuais que participam ativamente dos protestos/emissões discutindo, criticando, estimulando, observando e intervindo ativamente nas transmissões em tempo real e se tornando uma referência por potencializar a emergência de “ninjas” e midialivristas em todo o Brasil. Tal cobertura colaborativa, nesse sentido, tem uma “forma-movimento” (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 246) em si mesma; primeiramente porque o gesto de filmar já constitui a priori numa resistência – pois são construídas narrativas engajadas que se contrapõem aos outros meios de comunicação corporativos – e segundo, porque “espalham a palavra” da mídia livre tendo em vista a formação de mais midiativistas. Então, essa nova linguagem de mídia, cuja produção de conteúdo é descentralizada, 14 A cobertura NINJA nas manifestações de junho de 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5yjvo9RJ50U>. Acesso em: 28 dez. 2014. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 51 conta com uma multidão de conectados que transmitem sua própria experiência de insurgência em fluxo. Ou seja, não somente os movimentos e as ações têm, na quase totalidade dos casos origens nas redes, em grupos do Facebook ou em redes sociais digitais, mas, ao sair nas ruas continuam inevitavelmente conectados, e passam a decidir suas estratégias e seus movimentos nas manifestações por meio da interação contínua com as redes informativas e por meio da troca de informações instantânea. Tudo é filmado, gravado, fotografado e imediatamente colocado em rede para o mundo. Não somente se deslocam conectados, mas a manifestação acontece de fato, somente se é filmada, fotografada e postada na rede, tornando-se novamente digital, isto é, informação compartilhada e distribuída (DI FELICE, 2013, p. 65). E não mais separando os espaços físicos dos informacionais, entramos na era da “imediação”, ou seja, multiplicamos nossas mídias na mesma medida em que apagamos todos os traços de sua mediação (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 5). Dessa forma, a qualidade da ação conectada digitaliza as ruas e as cidades para ganhar uma indefinível localidade e se reproduzir aquém dos espaços urbanos e político. Os conflitos são informativos, as passeatas são hoje games interativos que promovem a interação entre informações, espaços urbanos e ações, jogos de trocas entre corpos e circuitos informativos. Expressões do surgimento de um novo tipo de carne informatizada, que experimenta a sua múltipla dimensão, a informativa digital e a sangrenta material, ferida e machucada. Ambas são reais e nenhuma é separada da outra, mas cada uma ganha a sua veracidade no seu agenciamento em diálogo informatizado com a outra (DI FELICE, 2013, p. 65). É nesse paradigma de imediação, acrescido ao atual contexto de tecnologias móveis, que cabe falar de uma tecnologia como o streaming, visto que essa transmissão em tempo real dos protestos produz uma outra relação com o presente, uma “experiência no fluxo e em fluxo, que inventa tempo e espaço, poética do descontrole e do acontecimento” (BENTES, 2013, p. 15). Essas novas espacialidades e temporalidades que foram introduzidos na nossa cotidianidade através das tecnologias portáteis e da conexão móvel são o que Castells (2011) denominou como espaço de fluxos e tempo atemporal. Enquanto o primeiro remete à “organização material da interação social simultânea à distância pela comunicação em rede, com o suporte tecnológico das telecomunicações, dos sistemas de comunicação interativos e das tecnologias de transporte rápido” (CASTELLS et al., 2007, p. 171), ou seja, o espaço de fluxos não se relaciona com um lugar específico, mas constrói-se ao redor das redes no fluxo comunicacional; o último, o tempo atemporal, refere-se ao “desequenciamento da ação social pela compressão do tempo ou pela ordenação aleatória dos momentos sequenciais” (Idem, p. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 52 171), ou melhor, a simultaneidade do tempo em aldeia global substitui a unicidade e o sequenciamento de outrora. E dentro desse espaço de fluxos que é a rede, o tempo agora expandindo e atemporal é vivenciado de outra maneira nos lives dos protestos. Tais imagens não apenas fazem e registram a história ao mesmo tempo mas são dotadas de uma circularidade inerente à própria Web, o que faz com que elas gerem interação, feedback, conversação entre os nós em loop infinito. Trata-se mesmo de uma guerra pela própria atualização das narrativas do presente 3.1. Transmitindo a história em baixa resolução Os gestos têm por função revelar, em toda sua fenomenologia, a maneira como existimos no mundo. E como tal, ele modifica-se ao sabor das próprias mudanças que o presente nos reserva. Novos tempos demandam, então, novos gestos. E aqui é o gesto de filmar e fazer história ao mesmo tempo via streaming que nos interessa. Na efervescência dos acontecimentos de junho, vários foram os coletivos e os indivíduos que se dispuseram a transmitir os protestos em tempo real por mídia de fluxo, mas, grosso modo, tais coberturas midialivristas eram similares, pois faziam uso: de câmera subjetiva e inserida na multidão; do fluxo contínuo das imagens em plano-sequência e da narração em off do repórter-manifestante sobre os acontecimentos – além de comentários relativos à própria transmissão ou aos equipamentos e de conversas com os manifestantes para colher depoimentos. O gesto fílmico contido nessas transmissões denota a própria essência do narrar: contar a história. Conta-se o presente no espaço-tempo expandido das redes. O devir do mundo é mostrado em emissão quase direta, com ruídos imagéticos e sonoros, e talvez o ato valha mesmo mais do que a sua informatividade. Mas o tal gesto de filmar consiste basicamente nisso; como diz Vilém Flusser (1994, p. 120), ele “conta um acontecer”. E nesse sentido, tais imagens são pura experiência da insurgência em fluxo. E nessas revoltas compartilhadas até a história adquire um outro status, ela é escrita coletivamente, inclusive por aqueles que a visualizam por uma tela de distância. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 53 Figura 15 Claro que a impossibilidade de edição dá uma tônica ainda mais extática ao gesto de filmar-transmitir ao mesmo tempo. A fenomenologia dessa imagem é tomada na sua instância de acontecimento, num processo corpo a corpo com a multidão que se manifesta, ela é pura enunciação. É instantâneo da história. Urge narrar à rede tudo o que acontece, em especial o confronto entre manifestantes e policiais; e a própria narrativa é construída em cima dessa expectativa de embate, que quase nunca falha. Triste espera, portanto, pois ninguém na multidão está a salvo das bombas de gás, dos tiros de borracha etc. Figura 16 Justamente nesses momentos de tensão é que as imagens mais revelam as limitações técnicas de sua produção pelos aparatos móveis, criando mesmo uma estética do streaming pautada, sobretudo, no ruído. Grosso modo, as imagens resultantes dessa transmissão são borradas, pixelizadas, instáveis e sem foco. Mas tais resíduos são também informativos na 15 Live gravado Mídia NINJA. Disponível em: <http://us.twitcasting.tv/midianinja/movie/14855435>. Acesso em: 01 jan. 2015. 16 Prisão do Repórter da Mídia Ninja. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=aDO6tr6kgAk>. Acesso em: 02 jan. 2015. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 54 medida em que são a própria expressão da urgência de estar ali. A imagem, então, é também o próprio ato da sua captura e das condições em que foi realizada. Nesse sentido, tais imagens são inadequadas, por não conseguirem abarcar todo o real pretendido, mas são necessárias e verdadeiras mesmo em baixa definição; elas valem menos pelo seu valor documental do que pelo próprio testemunho, pela experiência ali vivida, visto que “ao relegarmo-las imediatamente para a esfera do documento – o que é mais fácil e mais usual –, separamo-las da sua fenomenologia, da sua especificidade, da sua própria substância” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 52-53). Por outro lado, podemos também perceber tais imagens em toda sua ambiência, mesclando objetividade e subjetividade, emissor e receptor, pois como indica Bruno Torturra (2014), via livestreaming a audiência tem a oportunidade de “ver o mundo através dos olhos do outro”. Ainda no século passado, Flusser (1994, p. 122), nos seus exercícios de “futurização”, disse que “não se exclui que no futuro a história, existencialmente significativa, se desenrolará diante dos olhos dos espectadores sobre paredes e telas [...] e não no espaço do tempo. Isso seria realmente uma pós-história”. Mas não é exatamente isso que temos visto? A própria possibilidade de filmar a história e exibi-la nas telas digitais no tempo atemporal da tecnologia streaming. Uma pós-história, de fato. 4. Anarquivos das revoltas Pensar o livestreaming num viés de feitura da história esbarra na problemática dos arquivos que classicamente a documentam, posto que a lógica arquívica é pautada em cima da reserva do saber coletivo cujas prerrogativas são as de seleção, organização e conservação de seus documentos. E nessa cultura de memória na qual a história, como postula Michel Foucault (1972, p. 14), é aquilo que “transforma os documentos em monumentos”, uma mídia de fluxo trabalha justamente no sentido de dessacraliza-la: primeiro, ao ser construída por muitos; segundo, ao nem mesmo ser arquivo. Embora tal metáfora seja largamente usada, a Internet não consiste num arquivo; seus bancos de dados multimídia são justamente o que impedem que ela entre nesse paradigma documental, pois cada imagem, áudio e vídeo existe no ciberespaço apenas num dado momento – pela atualização e reescrita constante que sofrem – e congelá-los arquivicamente seria parar a circularidade que lhes é inerente. E numa era na qual temos a opção de Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 55 armazenar todos os tipos de informação em nossos periféricos, Wolfgang Ernst (2013, p. 138) desvela um fenômeno paradoxal: o “ciberespaço não tem memória”. Em substituição ao grandes arquivos e bibliotecas babélicas, esses não-arquivos digitais geram uma memória cibernética, fluida e eletromagnética, capaz de registar o real de maneira instantânea. E embora o arquivo tradicional costumasse ser uma memória estática, a noção de arquivo na comunicação via Internet tende a mover o arquivo na direção de uma economia de circulação: permanente transformação e atualização. O chamado ciberespaço não diz respeito primeiramente a memória como um registo cultural mas a uma forma perfomativa de memória como comunicação. (Idem, p. 99) Nesse sentido, a Web não institui-se nem ao menos num lieux de mémoire, posto que na configuração rizomática do ciberespaço não há mais lugar para arquivos permanentes – vide a computação em nuvem – mas somente um armazenamento temporário cuja reprodução é imediata. Tal memória dinâmica é a lógica mesma do livestreaming: com arquivos digitais, a princípio, não há mais atraso entre a memória e o presente mas, ao invés, a opção técnica de feedback imediato, tornando todos os dados do presente em entradas de arquivo e vice versa. A economia do tempo torna-se um pequeno circuito. Mídia streaming e armazenamento tornam-se crescentemente entrelaçados [...] Com a supremacia da seleção sobre o armazenamento, do endereçamento sobre a classificação, não há mais memória no sentido enfático; a terminologia arquívica – ou mesmo o próprio arquivo – torna-se literalmente metafórico, uma função do processo de transferência (ibidem, p. 98). Portanto, tais anarquivos são senão memórias fluidas de acesso aleatório. E nesse sentido, “os velhos oponentes “passado” e “presente”, “arquivo” e “evento imediato” tornamse submersos na mudança no tempo, que é a essência temporal das operações eletrônicas da mídia digital” (ibidem, p. 99). Sendo a própria mídia de fluxo expressão dessa memória passageira, em cache, que existe apenas no momento da transmissão. Em suma, a cultura de memória que permeia o Ocidente é pautada no arquivo, no documento e no armazenamento, ou seja, toda uma longeva hierarquia que entra em conflito direto com os pressupostos da memória arquívica desmonumentalizada do ciberespaço. Por que, então, não ampliar o conceito de arquivo para pensá-lo também em termos de nãoarmazenamento e constante atualização? O desejo em voga aqui é por “uma cultura de mídia que lida com a multimídia do anarquivo virtual numa maneira além do desejo conservador de reduzi-lo à sua ordem classificatória novamente” (ibidem, p. 140). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 56 5. Considerações finais Tendo agora a capacidade de narrar a história, por conta mesmo da ampliação dos canais comunicativos, resta universalizar essa possibilidade. Pois essa narrativa pertence a todos e, como consequência, ela “traz a autonomia para o modelo da mídia online, porque faz da vida e da história as condutoras do tempo real, ao ‘não paralisar o tempo, mas apropriar-se dele e reterritorializá-lo com a narrativa coordenadora da ação coletiva” (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 188). E nesse sentido, como vimos, até mesmo a função mnemônica do arquivo como porta da experiência histórica perde seu espaço. A pós-história feita via livestreaming deixa de ser apenas uma questão do passado e começa a lidar com o seu presente, com a sua promessa, a “responsabilidade para o amanhã” (DERRIDA, 2001, p. 50). REFERÊNCIAS BADIOU, Alain. The rebirth of history. London: Verso, 2012. BENTES, Ivana. “Nós somos a rede social”. In: MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013. BOLTER, Jay D.; GRUSIN, Richard. Remediation. Massachusetts: MIT Press, 2000. 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Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 58 ARTIGO Televisão digital e web: Uma proposta multiplataforma e transmídia para conteúdos de mídia-educação Mariana Pícaro CERIGATTO17 RESUMO: O presente artigo apresenta um recorte da dissertação de mestrado em Televisão Digital na Unesp/Bauru, o qual traz à tona o desenvolvimento de conteúdos dentro de uma perspectiva transmídia. O objetivo foi a elaboração de um curso de educação às mídias voltado para a formação de professores e à apropriação da linguagem do audiovisual. Assim, a autora apresenta no artigo um planejamento de protótipo combinando o ambiente virtual de aprendizagem à televisão digital. Conclui-se que estas duas plataformas de comunicação podem ser combinadas, de forma que uma complemente a outra numa visão integradora, considerando transmídia o fenômeno do transporte da informação para as múltiplas plataformas de comunicação. PALAVRAS-CHAVE: TV Digital. Transmídia. Mídia-educação. plataformas virtuais de aprendizagem. ABSTRACT: This paper presents part of the of a dissertation on Digital Television in Unesp/Bauru, which brings up the development of content within a transmedia perspective. The goal was the development of a media for an education course focused on training for teachers and the appropriation of the audiovisual language. Thus, the author presents in the article a prototype planning combining the virtual learning environment with the Digital TV. It follows that these two communication platforms can be combined, so that a complement to another in an integrative view, considering transmedia the information transport phenomenon for multiple communication platforms. KEYWORDS: Digital TV. Transmedia. Media education. virtual learning platforms. 1. Introdução O presente trabalho, recorte da dissertação de mestrado em Televisão Digital concluído pela Unesp/Bauru, apresenta a elaboração de um curso dentro da sistemática TLearning, voltado para atividades de leitura e escrita da linguagem audiovisual, tendo referências vindas da área interdisciplinar media literacy. A simulação de um aplicativo foi 17 Graduada em jornalismo pela Universidade Sagrado Coração (USC), mestre em Televisão Digital pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Bauru e doutoranda pela Unesp, campus de Marília. E-mail: [email protected] Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 59 pensada dentro do ambiente e dos recursos da televisão digital, sob os limites da interatividade local. Ao mesmo tempo, o curso é combinado com os recursos do Moodle, dentro da plataforma web, reforçando o caráter transmídia do projeto. Especificamente, buscou-se ainda, através deste protótipo, a aprendizagem para a apropriação da linguagem cinematográfica e audiovisual. O curso proposto é direcionado à formação inicial/continuada de professores da rede básica de ensino, especificamente os professores que ministram a disciplina de língua portuguesa, já que os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam a necessidade de se trabalhar com a linguagem não-verbal em sala de aula. Promovendo a apropriação de recursos da linguagem audiovisual, os professores podem conhecer os elementos que sustentam esta linguagem para, assim, tirarem proveito educacional de filmes, séries etc. Além disso, a análise levantou limites e dificuldades da televisão digital junto a seu papel de difusora educacional. O desenvolvimento deste projeto partiu, inicialmente, da preocupação curricular em provocar a integração de mídias às práticas pedagógicas, e também da necessidade de explorar a multiplataforma e o conceito de transmídia, visto que a combinação entre várias plataformas, e a integração entre elas, é uma tendência da sociedade contemporânea. Como estamos tratando de uma proposta de mídia-educação, há algumas problemáticas a serem pontuadas. Apesar de nos esbarrarmos com propostas curriculares favoráveis ao uso da mídia em sala de aula, ainda faltam materiais pedagógicos e metodologias de trabalho apropriadas para atividades dessa natureza. O audiovisual, que é a “linguagem-alvo” desse trabalho, ainda está em desvantagem no contexto escolar, do ponto de vista do aprendizado. A escola ensina a expressividade textual se aproximando mais de uma postura passiva que inibe a criatividade dos alunos. A importância da imagem é utilizada de maneira muito tímida, como mero recurso ilustrativo e, devidamente legendada, para que não haja qualquer abertura quanto ao seu significado (CITELLI, 2004). Assim, a pesquisa se preocupou em elaborar uma proposta transmídia entre web e televisão digital para apoiar atividades de mídia-educação, delineando-se a partir da leitura crítica e apropriação da linguagem audiovisual. Fundamentação teórica 2.1 Media literacy: formando leitores e produtores de mídia Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 60 Como já é praticamente consenso, a escola não pode ignorar o conteúdo veiculado pelos meios de comunicação. Seu papel é formar leitores e consumidores mais críticos. Além disso, deve ser papel da escola produzir conteúdos, dando oportunidades para que os alunos façam uso das tecnologias e se apropriem das linguagens da televisão, do rádio, da publicidade, do cinema, do jornalismo. A formulação de materiais pedagógicos, apoiando-se em técnicas pedagógicas específicas, deve considerar a multiplicidade de meios e gêneros, assim como suas particularidades. Com o jornalismo pode-se trabalhar, por exemplo, critérios de seleção de notícias, a linguagem, os motivos que levaram uma matéria a ganhar mais destaque do que outra, a análise das fontes ouvidas etc. Com a publicidade, pode-se indagar qual o valor simbólico de determinado anúncio e quais são os elementos da linguagem selecionados para construir determinada propaganda. Quando nos referimos a estes tipos de atividades, estamos falando de mídia-educação, ou então leitura crítica dos meios de comunicação, educomunicação, educação para a mídia e media literacy. Estes são alguns dos termos usados para caracterizar uma área interdisciplinar do conhecimento que se preocupa em desenvolver formas de ensinar e aprender aspectos relevantes da inserção dos meios de comunicação na sociedade. Assim, a “literacia em mídia” é o resultado esperado dessas ações pedagógicas, que envolvem, necessariamente, a compreensão crítica e a participação ativa. Especificamente na Inglaterra, o Communications Act de 2003 (a lei geral das comunicações) estabeleceu como uma das tarefas do Ofcom, órgão regulador de mídia neste país, promover a media literacy. De lá para cá, uma série de medidas estão sendo postas em prática, entre elas o fomento de programas de educação para a mídia em espaços de educação formal e não-formal. Experiências Ainda neste páis, desde o final dos anos de 1980, o currículo oficial faz referência aos estudos sobre a mídia (ZANCHETTA JÚNIOR, 2009). Com tradição nos estudos culturais, as aulas que incluem a media literacy procuram estimular o aluno a desconstruir as mensagens midiáticas e assim entender os processos de representação e, consequentemente, de manipulação de informação dos meios de comunicação, dentro de um ponto de vista que preocupa-se não em promover nem em “inocular”, mas sim em preparar as pessoas para usar as mídias com mais proveito, tanto como consumidoras, quanto como cidadãs (BUCKINGHAM, 2003). É preciso entender que existe conteúdo educativo em qualquer texto midiático, que pode e deve ser explorado em sala de aula. De acordo com Hall e Whannel (1964), até o Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 61 seriado de TV mais simples usa as técnicas de composição artística da linguagem audiovisual: roteirista e diretor precisam compor personagens e desenrolar da ação, selecionar aspectos da vida que irão alimentar a trama, explorar alguns desses aspectos e comprimir outros, conferir uma textura humana ao enredo. O modo como esses filmes ou programas estabelecem relações com a realidade é que deve ser estudado. Na prática, essas relações se dão através do formato e do estilo. Após situar-se a este importante pilar de pesquisa, que é a media literacy, que fundamenta as ações deste projeto, vamos partir para explanar sobre televisão digital, que é uma das plataformas escolhidas para elaboração do curso proposto. 2.2 TV Digital: ela é tudo isso que foi prometido? Com a chegada dos primeiros sinais da televisão digital (TVD), várias reflexões surgem para os pesquisadores de comunicação e toda a sociedade: quais serão as consequências da passagem da TV convencional para a digital e a integração com as outras mídias na educação? E a produção? E a regulamentação? Como a escola poderá tirar proveito da interatividade e flexibilidade da TVD? Com a digitalização do sinal, a promessa do governo brasileiro é de promover a inclusão social através de cursos a distância na TV, já que este veículo ainda é bastante penetrante nos lares brasileiros. Mas a grande aposta da TVD é que ela se torne interativa. Vários autores apontam que a televisão digital interativa (TVDi) poderá facilitar a aprendizagem, pois será de fácil manuseio e, pelo fato de já estar inserida no cotidiano das maiorias, seu uso pode ser mais aceitável. Essa forte disseminação da TV na sociedade, somada às novas funções que ela comporta, tem sido um fator favorável à população, pois se ampliam as formas de levar e receber informação. O importante é salientar o papel e o potencial da TV como de difusora de serviços de utilidade pública e não somente como canal de entretenimento. Contudo, apesar da “glorificação” da TV Digital por parte das emissoras e do governo, há mais especulações do que fatos concretos no sistema digital brasileiro (CAMARA, 2009). Em relação à educação, há de se notar que, apesar de anos de experiência no uso de radiodifusão educativa, ainda há poucos estudos pedagógicos inspiradores para ajudar a entender como os alunos podem aprender através da TV, especialmente a TVD. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 62 Primeiramente, se falando do aspecto tecnológico, o primeiro grande obstáculo para que se consolide a TVD interativa, tão importante para fazer valer aplicativos interativos em educação, é a falta de definição do canal de retorno, ou seja, um canal que leve a transmissão das informações do usuário para a emissora. Para que isso aconteça, é necessário o estabelecimento de um meio para que esta transmissão ocorra, o que pode acarretar aumento do custo dessa tecnologia. Essa é uma grande barreira a ser vencida para que se alcance a interatividade na TV Digital, que poderia beneficiar, sobretudo, as classes de baixa renda. Outras limitações referem-se à alta qualidade da imagem e à diversidade de canais. A tão anunciada melhoria de qualidade de imagem da TV Digital é a “propaganda” mais disseminada. Entretanto, para que a tão aclamada qualidade de imagem seja alcançada, o sistema exige além da transmissão digital. São necessários aparelho televisor e o conversor. “Dessa forma, o consumidor teria que comprar um aparelho de transição do analógico para o digital e os televisores de Plasma e LCD para garantir a prometida imagem. Sem esses aparelhos, que ainda estão a preços altos no mercado, a qualidade da imagem se encontra limitada” (CAMARA, 2009). A televisão digital sofre o risco, ainda, de ser tida e vista apenas como uma atualização tecnológica, que agora proporciona alta definição de imagem. Também é importante ressaltar o mais novo ambiente que se forma para o usuário, que se esbarra em telas com dificuldade de leitura e pouca legibilidade. Sem falar do formato, organização, denominação e atribuição das teclas do controle remoto que acompanha a TVDi (BECKER, 2006 apud RODOLPHO, 2009). Assim, com este novo cenário, o termo usabilidade entra em cena e assume papel fundamental para que o personagem principal da situação, o usuário, aceite esta nova tecnologia. (RODOLPHO, 2009). O conceito de usabilidade é discutido por Jakob Nielsen, notório pesquisador sobre o assunto na atualidade, que define o termo “como característica de um sistema com componentes múltiplos, que normalmente implica atributos tais como: ser fácil de usar e de aprender a ser usado; ser fácil de ser recordado, mesmo depois de um tempo sem estar em contato com ele; conter baixa taxa de erros e despertar uma satisfação subjetiva” (NIELSEN, 2007 apud ROSSETO, 2010, p. 48). Será preciso muita criatividade para atender às demandas de uma televisão digital realmente interativa. Becker, Fornari, Filho e Montez (2006) apud Rosseto (2010) listam diferenças da televisão em relação ao computador, em termos de possibilidades interativas, sendo elas: tela de menor resolução com área sujeita a distorções, o fato de não possibilitar ter barra de rolagem, a distância bem maior exigida para que um telespectador assista à TV, além Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 63 do perfil do consumidor de produtos televisivos, que é mais heterogêneo que o público da internet. E ao falar em usabilidade, não podemos desvincular deste assunto um importante equipamento integrante ao sistema de TVDi: o controle remoto. Este, se comparado com os dispositivos de entrada de um computador, tem um uso muito mais restrito. Ainda dentro desta perspectiva, é preciso destacar que públicos que tiveram pouco contato com a cultura digital são os que merecem atenção redobrada quando a questão é usabilidade dos serviços interativos. Esse ponto está diretamente ligado com a necessidade de fomento à alfabetização digital da população como um todo, paralelamente à inserção da TV Digital (ROSSETO, 2010). A preparação dos cidadãos para manusear a tecnologia e tirar proveito dos novos serviços se faz necessária, já que, uma parcela de usuários são pessoas que cresceram em uma cultura impressa. Outra parcela possui poucos anos de escolaridade, tem problemas para compreender e interpretar textos, o chamado analfabetismo funcional. Sem falar da fatia ainda existente da população que ainda se encontra em situação de exclusão digital. Enfim, não basta disponibilizar uma nova televisão diante uma parcela significativa de pessoas que não domina as ferramentas básicas da nova tecnologia, não tem afinidade com os termos, não conhece as possibilidades de uso e criação através da interatividade etc.. Conforme defendem Rothberg e Siqueira (2010), o acesso e a regulação da televisão digital requerem políticas de educação para a mídia. 2.3 Aprendizado via TV: T-Learning Ao aprendizado “via” TV, podemos dar o nome de T-Learning, concepção que se baseia na convergência de tecnologias. Segundo Bates (2003), T-Learning é o tipo de educação a distância baseado em televisão interativa. O foco é na TV Digital e como ela pode apoiar o processo de aprendizado denominado E-Learning. Assim, o T-Learning contempla a convergência entre elementos como televisão digital, computador, E-Learning e rede. Essa modalidade possibilita aos usuários, na ocasião, aos telespectadores, o acesso a diversos materiais didáticos (em forma de filmes, imagens, hipertexto, etc). O acesso pode ocorrer em vários ambientes, promovendo a portabilidade: em casa, na escola, no local de trabalho, uma praça, ônibus etc. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 64 T-Learning também pode ser descrito como a convergência de crossmedia com o Ensino a Distância (EaD ou e-learning), sendo que podemos definir crossmedia como o uso de mais de uma mídia (AARRENIEMI-JOKIPELTO, 2006, apud AMÉRICO, 2010). A partir destas definições, pode-se dizer T-Learning é a convergência de duas tecnologias: televisão e ciências da computação, mais especificamente a internet (AMÉRICO, 2010). Vale ainda ressaltar que no sistema de educação a distância que tem a TVDi como foco, é preciso pensar em como atrair o público-alvo, desenvolvendo nele o interesse para explorar o conteúdo interativo. Portanto, a navegação pelo programa deve ser clara, acessível; o usuário deve conseguir “navegar” pelos links disponíveis para voltar, avançar ou obter mais informações. Por fim, vale salientar que este ambiente requer planejamento e depende do trabalho do profissional que chamamos de design instrucional, que tem por objetivos planejar e desenvolver, por meio de métodos, técnicas e atividades de ensino, projetos educacionais apoiados por tecnologias. Cabe ao design instrucional pensar em como preparar e publicar conteúdos textuais, imagéticos, de áudio e audiovisuais, sem falar das atividades e tarefas do ambiente (ROSSETO, 2010). 2.4 Transmídia: o intercâmbio entre plataformas Nas últimas décadas, podemos observar vários exemplos de transmídia dentro da indústria cinematográfica, dos games etc. Vemos constantemente a informação e o entretenimento transportados para as múltiplas plataformas de comunicação que se multiplicam a cada dia. Uma revista impressa pode ser lida no site, enviada em formato PDF para o e-mail de um colega ou até mesmo visualizada em celular. Este movimento tem sido bastante explorado pela indústria publicitária, que vê no crossmedia uma estratégia de cativar uma maior fatia de consumidores, fazendo com que eles interajam de formas diferentes com o mesmo produto, através de diferentes mídias, levando a novas experiências. Em “Cultura da Convergência”, o teórico Henry Jenkins criou o termo “narrativa transmídia”. A narrativa transmídia define-se como o formato de contar uma história de entretenimento/ficcional em diferentes mídias. “Uma história transmídia desenrola-se através Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 65 de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo” (JENKINS, 2009, p.138). Na mesma linha de pensamento, Martín-Barbero (2009) nos leva a crer que os gêneros que os meios produzem estão sendo reinventados à luz de sua interface da televisão com a internet, numa interação transversal e contaminação que desestabilizam os discursos próprios de cada meio, criando as “formas mestiças de comunicação”. Podemos relacionar formas mestiças de comunicação também com o movimento crossmedia (também conhecida como cross media ou cross-media), que se refere à distribuição de serviços, produtos e experiências por meio das diversas mídias e plataformas de comunicação existentes no mundo digital ou analógico. Nada mais é do que a possibilidade de uma mesma campanha, empresa ou produto utilizar simultaneamente diferentes tipos de mídia: impressa, TV, rádio ou internet. Envolve a transposição de mídias e interação entre elas, atingindo um maior público. Com o advento da TV Digital, são várias as possibilidades e tentativas de transportar conteúdos da internet para este meio, ainda mais quando o assunto é educação. Vários autores apostam em recursos da TVDi para enriquecer processos de leitura, do cinema e de outras narrativas. Sobre isso, Regis, Timponi e Altieri (2011) alegam que: Para além dos processos tradicionais de ensino sem atrativos, os recursos multimídia não medem esforços para uma tentativa de um aprendizado mais lúdico, porém com maior retenção do conteúdo, numa aposta híbrida de leitura, que envolve processamentos multitarefa do usuário, além de uma cognição “ampliada” que dê conta dos diversos sentidos requeridos a todo momento. (p. 14) É fato que, com o impulso das novas TICs, cresce a demanda por adaptação e intercâmbio de conteúdos entre diferentes plataformas, com o objetivo de expandir uma narrativa, um produto publicitário e assim alcançar um maior público, inserido em classes sociais e faixas etárias diferentes. Com o movimento transmídia e crossmedia, sem dúvida nenhuma, ampliam-se as possibilidades de interação, sendo que o conteúdo é mostrado em diferentes facetas. No entanto, a transposição de conteúdos web para a TV Digital não se restringe apenas a uma questão tecnológica e não deve ser vista como uma mera “troca de lugar”, como se a TVDi tivesse as mesmas condições da web. Conforme nos aponta Liang (2009), existem Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 66 particularidades na TVD que ainda são questões em aberto e precisam de muita pesquisa para ganhar usabilidade avançada e aplicabilidade. 2.5 Interface entre web e TV Digital: proposta de diálogo Este tópico retoma um dos objetivos centrais do trabalho apresentado neste artigo: a elaboração de uma proposta transmídia entre web e televisão digital interativa (TVDi), que vise apoiar atividades de mídia-educação, que versem, sobretudo, sobre a linguagem audiovisual e cinematográfica. Considerando os estudos sobre a televisão digital, o sistema SBTV, o T-Learning e o mapeamento das dificuldades para a implantação de uma televisão realmente interativa, pensou-se em como o ambiente virtual de aprendizagem (AVA) Moodle, poderia ser combinado com outra plataforma, no caso, a televisão digital, em atividades de formação de professores. Apesar de particularidades e características próprias, é possível combinar mais de uma plataforma em um curso a distância, como o Moodle e a televisão digital? Para Kearsley e Moore (2007), é preciso analisar as mensagens educacionais a fim de determinar melhor a combinação de mídia e tecnologias necessárias para obter um aprendizado com qualidade. Assim, a seleção de uma tecnologia ou combinação de tecnologias deve ser determinada pelo conteúdo a ser ensinado, quem deve ser ensinado e onde o ensino ocorrerá. A internet, sem dúvida, contribuiu para novas formas de se comunicar e, por conseguinte, para novas ferramentas, bastante úteis a essa modalidade de ensino. O Moodle, por exemplo, é o AVA indicado pelo MEC/Seed para utilização nos cursos a distância, através dos projetos UAB e e-Tec Brasil. Este AVA tem ferramentas e princípios pedagógicos apoiados na concepção construtivista de aprendizagem (ALVES, 2011). Embora com tais tecnologias, a EaD mediada pela web ainda encontra desafios significativos. Os polos municipais nem sempre são de fácil acesso aos alunos, sendo que este aspecto é agravado quando se considera que muitos desses alunos ainda não possuem computadores para a execução das atividades e esclarecimento de dúvidas (SILVA; NUNES, 2010). Além disso, nem sempre há disponível uma eficiente conexão com a internet. Deste modo, há de se pensar em outros meios de comunicação que facilitem o diálogo entre o aluno e sua instituição de ensino. Dentre estes meios, a TV é apontada como tecnologia acessível e largamente difundida entre a população. Como indica Becker et al. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 67 (2005), na maioria dos casos, a televisão é a única fonte de informação e de cidadania do brasileiro. A TVDi surge, assim, como uma boa alternativa a ser incorporada à educação. “Através dela fluem tanto dados, como voz e vídeos, e ainda possui o grande diferencial de permitir a interatividade” (SILVA; NUNES, 2010, p.2). Assim, é possível utilizar os recursos da TVDi para fornecer aos alunos lições, vídeos, exercícios, entre outros materiais didáticos, além de poder disponibilizar ferramentas síncronas e assíncronas para comunicação e para apoio ao processo de ensino/aprendizagem. Essa integração entre diferentes plataformas se encaixa perfeitamente em uma proposta transmídia, que ao invés de tentar transpor conteúdos, tenta combinar conteúdos, tirando proveito do potencial de cada mídia e tecnologia, que dialogam entre si. Dessa maneira, o aluno também tem contato com variadas tecnologias e mais opções de acesso e aprendizagem. Assim, “uma alternativa para os cursos que se baseiam em AVAs é trabalhar a integração destes ambientes à TV Digital, disponibilizando seus conteúdos através da televisão” (SILVA; NUNES, 2010, p.2). É sobre essa forma diferente de educar, convergente e sob a ótica transmídia, que baseamos a possibilidade dos suportes multimídia poderem contribuir para diversos tipos de aprendizagem. A combinação entre várias mídias pode ser vista como algo muito positivo, visto que observamos uma presença muito forte do rádio, da televisão, do computador, do celular e outros suportes multimídia no cotidiano de crianças, adolescentes e adultos (REGIS; TIMPONI; ALTIERI, 2011). O próximo tópico, “Metodologia”, volta a atenção para apresentar a formulação metodológica que deu bases para o desenvolvimento do protótipo em questão desta pesquisa. Desenvolvimento da aplicação interativa Foi utilizado o próprio Power Point para simular a criação de uma aplicação interativa para a TV Digital, em formato de protótipo, ou seja, um tipo de experimento com demonstração das funcionalidades contidas nas aplicações antes que as mesmas possam efetivamente ser colocadas em produção. O curso combinado ficou intitulado “Educação para a linguagem audiovisual”, voltado para o público-alvo da pesquisa: docentes em língua portuguesa em formação inicial (ou continuada). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 68 Para viabilizar o curso, foi proposta a criação de duas bases: um ambiente virtual de aprendizagem mediado pela televisão digital e um portal de interação pela internet, que pode ser o Moodle, permitindo assim o diálogo entre os alunos, o professor e tutores. Essas atividades seriam tanto coletivas em sala de aula, podendo servir de apoio para atividades a distância. Importante ressaltar que o ambiente virtual de aprendizagem para TVDi trabalharia nos limites da interatividade local, uma vez que só seria possível acessar os dados e informações que já estariam programados no set-top-box. Embora essa possibilidade seja limitada, tal opção justifica-se por ainda não haver no Brasil o desenvolvimento esperado do canal de retorno para a TVD, recurso que permitiria uma interação mais “avançada”. Aliado a isso, há a proposta do diálogo com um ambiente virtual de aprendizagem mediado pela internet, mais especificamente pelo AVA Moodle. Através deste ambiente, os alunos poderiam interagir através de fóruns, wikis, responder a enquetes, enviar materiais à emissora/central de produção de conteúdos etc. A metodologia para o desenvolvimento das atividades que compõe o conteúdo do aplicativo teve como referência fundamentos da área de estudo da media literacy, através de seis técnicas pedagógicas específicas, baseadas em Buckingham (2003): análise textual, estudo do contexto, análise de conteúdo, estudo de caso, tradução (de um livro para um filme, por exemplo) e simulação-produção. Para fundamentar o estudo da linguagem audiovisual e cinematográfica, foram usados autores como Eisenstein (1990) e Dancyger (2003). As atividades desenvolvidas no protótipo seguem princípios da aprendizagem colaborativa e construtivista, vistas em Freire (2001a e 2001b). 3.1 Detalhamento do protótipo para TVDi Para o curso “Educação para a linguagem audiovisual”, foi proposta a divisão do conteúdo em cinco módulos sequenciais: “Introdução à mídia-educação”; “Planos e ângulos”; “Sonoplastia”; “Gêneros e audiência”; “Experiência audiovisual”, além de tópicos complementares “Vídeos-discussão” e “Biblioteca”. Seguem alguns exemplos de módulos e suas respectivas interfaces. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 69 Figura 1: Interface de introdução Fonte: do autor A primeira tela do curso apresentaria a divisão por módulos. Para acesso ao conteúdo de cada um deles, o cursista caminha pela tela, com as setas do controle remoto. Ao passar sobre cada item, há um pequeno texto explicativo, que descreve o conteúdo a ser encontrado. Em “Introdução à mídia-educação”, o conteúdo seria um vídeo pedagógico trazendo conceitos e entrevistas com especialistas sobre a área. Em seguida, o conteúdo pediria aos alunos a responderem uma enquete pelo Moodle sobre a vídeo-aula que assistiram. Os resultados dessa enquete poderiam ser repercutidos pela própria televisão digital, que apresentaria um especialista comentando as respostas, que poderiam ser mostradas com o apoio de infográficos. Exemplo: Figura 2: Tela “Introdução à mídia-educação” Fonte: do autor Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 70 No módulo “Planos e ângulos”, o professor poderia tirar proveito da qualidade de imagem da TVD para explorar o estudo da linguagem audiovisual e das sessões de vídeo. Os alunos poderiam interagir com a televisão podendo assistir a uma mesma cena a partir de diversos ângulos de câmera. Isso poderia explicar os movimentos de zoom, “plongée” (ângulo em que o espectador vê a cena de cima para baixo) e “contre-plongée” (ângulo que o espectador vê a cena de baixo para cima). Poderiam ainda ser trabalhados os planos: geral, médio, entre outros. Por exemplo: Figura 3: Exemplo de interface módulo “Planos e Ângulos” Fonte: do autor No Moodle, os alunos poderiam analisar vídeos de trailers de cinema, ou outros tipos, e postar em fóruns uma análise sobre os ângulos e planos que aprenderam. Em “Experiência audiovisual”, os alunos seriam estimulados a produzirem seus próprios vídeos conforme o conteúdo visto até aqui. No ambiente de TVDi, poderia se projetar uma reportagem mostrando como acontecem produções de cinema: elaboração do roteiro, funções desempenhadas etc. A partir daí, os cursistas elaborariam seus roteiros de pequenos curtas audiovisuais, definindo elementos da linguagem, gênero, audiência a ser Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 71 atingida etc. Após as produções concluídas, os cursistas enviariam via Moodle seus arquivos de produções, já editados, para que um vídeo mediado pelo canal universitário da TVDi pudesse ser elaborado posteriormente, logo após receber as produções. Um especialista poderia analisar cada vídeo produzido e na plataforma Moodle a análise poderia ser feita através do fórum de maneira coletiva. Figura 4: Exemplo de interface do módulo “Experiência audiovisual” Fonte: do autor “Vídeos-discussão”: Item integrante ao curso em que fosse aberto um canal de comunicação entre os cursistas e especialistas que produzem o curso em TVDi. Na ocasião, os estudantes de licenciatura enviariam dúvidas, sugestões e críticas, que seriam respondidas no ambiente da televisão digital. Um ponto fundamental é que o vídeo de respostas fosse gravado sempre em um período posterior ao início dos estudos da turma, para que os cursistas tenham condições de enviar suas dúvidas e reflexões. Esses vídeos ficariam à disposição continuamente, para serem baixados sob demanda a qualquer momento pelo cursista. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 72 Figura 5: Interface de “Vídeos-discussão” Fonte: do autor “Biblioteca”: Item integrante ao curso, que poderia ser acessado pela televisão a qualquer momento pelos cursistas. Este módulo reuniria todos os arquivos de áudio, texto, vídeo e imagem, além de tutoriais, para serem acessados instantaneamente ou baixados. A biblioteca seria abastecida tanto pelos idealizadores do curso quanto pelos próprios cursistas, que poderiam submeter materiais extras. Figura 6: Itens da “Biblioteca” Fonte: do autor Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 73 Considerações finais Entre documentos legais que dão base para o trabalho com os meios de comunicação, encontramos a Proposta Curricular Nacional (PCN) de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental. Nela, enfatiza-se a necessidade de a escola perceber a centralidade dos meios de comunicação e suas influências: “A presença crescente dos meios de comunicação na vida cotidiana coloca, para a sociedade em geral e para a escola em particular, a tarefa de educar crianças e jovens para a recepção dos meios” (PCN, 1998, p. 89). O desenvolvimento deste projeto partiu, inicialmente, desta preocupação curricular em provocar essa integração de mídias às práticas pedagógicas. Com a experiência transmídia, chegou-se a conclusão de que estas duas plataformas podem ou devem ser combinadas numa estratégia de educação transmídia, no sentido de que um curso ou conteúdo educacional pode permear diversas plataformas, de forma que uma complemente a outra numa visão integradora. Assim, o conteúdo, ao percorrer por mais de uma plataforma, recebe de cada mídia uma contribuição especial. A consideração é de que este diálogo seria viável e potencializaria o aprendizado da linguagem audiovisual. A alta qualidade de imagem e som, possibilidade de escolher ângulos diferentes de uma mesma cena ou imagem, o fato de poder rever os conteúdos, assistir a vídeos etc. combinados com fóruns, enquetes e wikis da plataforma Moodle: todos estes recursos integrados e que dialogam entre si poderiam promover uma aprendizagem mais completa e multimídia. As dificuldades que limitam a televisão digital quanto à interatividade são percebidas principalmente pela falta de definição de um canal de retorno. Além disso, a interface, design e linguagem são outros aspectos que deverão ser melhor desenvolvidos. Com o desenvolvimento de um protótipo, o estudo reforçou o potencial da TV digital interativa para a educação e para os educadores. Seu uso pode aumentar as oportunidades de aprendizagem em casa, especialmente como alternativa à utilização de computador com acesso à Internet. A TVDi tem papel na superação da exclusão digital e se mostra como ferramenta importante para educação, devido a sua popularidade, fácil aceitação em sociedade. Contudo, há a necessidade de produção de conteúdo educativo específico para esta tecnologia, assim como mecanismos eficientes para armazenar e recuperar, criar e disponibilizar recursos tecnológicos, montados sobre uma base de educação e renda mínima, familiar, para que a inclusão social se concretize (MATOS; JULIÃO; SANTOS, 2007). De acordo com Castro (2008, p.36), na universidade, “a formação de educadores deve articular pesquisadores em áreas transdisciplinares para EaD voltadas a diferentes plataformas Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 74 digitais, principalmente à TV Digital”. Isso depende de uma mudança curricular, que passe a incluir o uso de diferentes tecnologias digitais e a focar o desenvolvimento de novas habilidades que contemplem as TIC e a convergência digital. Ao desenvolver planos globais de educação para EaD, assim como para projetos educacionais que incluam as TIC, governos, sociedade civil, universidades e outras entidades devem levar em consideração a tendência da integração entre as mídias. Dentro de uma proposta transmídia, deve-se incentivar a produção de conteúdos digitais que incorporem diferentes plataformas, de uma maneira que elas dialoguem entre si. REFERÊNCIAS ALVES, L. B. Moodle: um ambiente virtual de aprendizagem com ferramentas que facilitam a aprendizagem on-line. Santa Maria, dez. 2010. Disponível em: <http://www.slideshare.net/CursoTICs/luclia-barbosa-alves>. Acesso em: 14 set. 2013 AMÉRICO, M. TV Digital: Propostas para desenvolvimento de conteúdos em animação para o ensino de ciências. 2010. 213 f. Tese (Doutorado em Educação para a Ciência). Faculdade de Ciências, Unesp, Bauru. BARBOSA, S. D. J.; SOARES, L. F. G. 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Educação para a mídia: propostas europeias e realidade brasileira. Educ. Soc., Campinas, v. 30, n. 109, p.1103-1122, set/dez Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 77 ARTIGO AS RÁDIOS FM DE SÃO LUÍS NO CENÁRIODA DESMATERIALIZAÇÃO DA MÚSICA Paulo PELLEGRINI 18 Resumo: A migração da música dos formatos físicos como LP e CD para arquivos digitais caracteriza sua desmaterialização. Este fenômeno tem exercido impacto não somente nas estratégias dos artistas e na forma como o ouvinte lida com essa arte, mas também na rotina dos meios de comunicação, especialmente o rádio. Este artigo traça observações sobre a relação entre o rádio e a música desmaterializada. Busca-se apontar aspectos tangentes às mudanças, adaptações e impactos sofridos pelo rádio nesse cenário. Estabelece-se como objetos as rádios Mirante FM, Difusora FM e Universidade FM, de São Luís (MA). Abordase a relação entre rádio e música sob uma perspectiva histórica, no Brasil e no Maranhão. Palavras-chave: Desmaterialização, Música, História, Rádios FM de São Luís, Impactos Abstract: The migration of the music from the physical formats such as LP and CD to digital files characterizes its dematerialization. This phenomenon has exercised impact not only at the strategies of the artists and at the way the listener deals with this art, but also at the routine of the mass media, specially the radio. This article traces observations about the relation between radio and dematerialized music. It intends to point tangent aspects to the changes, adaptations and impacts suffered by the radio. It stablishes as objects the station radios Mirante FM, Difusora FM and Universidade FM, from São Luís (MA). It boards the relation between radio and music under a historical perspective, in Brazil and in Maranhão. Keywords: Dematerialization, Music, History, FM Radios from São Luís, Impacts 1. Introdução A progressiva migração das músicas dos formatos físicos como LP e CD para arquivos de computador tem alterado não só a forma como o ouvinte lida com essa arte, como também as estratégias de produção e divulgação por parte dos artistas. 18 Jornalista graduado pela Universidade Federal do Maranhão, mestre em Cultura e Sociedade, professor do Curso de Comunicação Social da Faculdade Estácio de São Luís. Link para Plataforma Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4299539J1. E-mail: [email protected] Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 78 Mas há uma terceira ponta desse processo que também teve de se adaptar ao fenômeno da desmaterialização da música: os meios de comunicação, especialmente o rádio. Este artigo pretende traçar observações sobre a relação entre rádio e música desmaterializada, apontando aspectos tangentes às mudanças, adaptações e impactos sofridos por este veículo nesse cenário. Para tanto, foram escolhidas como objeto de análise três emissoras FM de São Luís (MA): as rádios Difusora, Mirante e Universidade. O objetivo desta reflexão é conhecer como essas emissoras têm lidado com a cada vez maior diminuição de produções musicais nos formatos físicos e saber como a música tem chegado às rádios, uma vez que intermediários como representantes de gravadoras deixaram de exercer a atividade. A metodologia empregada consistiu em pesquisa de campo e observação direta nas três emissoras escolhidas como objeto, entrevistas individuais com os profissionais que lidam diretamente com a aquisição de músicas em cada uma das rádios pesquisadas e revisão bibliográfica sobre temas como desmaterialização da música, a relação constituída historicamente entre rádio e música e a trajetória da música no rádio maranhense. 2. A desmaterialização da música A desmaterialização da música é um fenômeno atrelado ao ambiente da cultura digital. Trata-se da migração do conteúdo de suportes físicos tradicionais (discos e fitas) para aparatos tecnológicos que lidam com informação digital (computadores, celulares, smartphones, tablets, notebooks, netbooks, tocadores de mp3/mp4). Este fenômeno tem início com a própria materialização da música, ou seja, os processos de gravação e prensagem que marcaram a consolidação da indústria fonográfica ao longo do século XX. Na civilização ocidental, a escrita musical pode ser considerada a primeira etapa deste processo, cabendo às partituras e ao piano, como instrumento reprodutor, a possibilidade da disseminação em maior escala, antes do advento das gravações (DIAS, 2008, p. 37). A invenção do fonógrafo, por Thomas Edison, em 1878, abriu caminho para que a audição musical se tornasse uma experiência mais independente. Em 1888, o alemão Emile Berliner aperfeiçoou o conceito do fonógrafo ao desenvolver um novo aparelho toca-discos com ranhuras, o gramofone. O desenvolvimento do fonógrafo e do gramofone permitiu ao apreciador musical, pela primeira vez, a possibilidade de ouvir música materializada. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 79 O negócio fonográfico já era, nos primeiros anos do século XX, consideravelmente rentável. O tenor italiano Enrico Caruso fez sua primeira gravação com qualidade em 1901 e teve seu primeiro milhão de discos vendidos em 1904. Só com venda de discos, ganhou dois milhões de dólares até o ano de sua morte, 1921 (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 182). A indústria fonográfica rapidamente consolidou-se como “braço” musical da indústria cultural, na medida em que estabeleceu a música enquanto mercadoria, cuja “capacidade de sensibilizar as pessoas pode levar a reações do mais largo espectro: da angústia ao divertimento, do questionamento à passividade, da liberdade à clausura” (DIAS, 2008:35). Através da indústria do disco, a música deixou de ser obra de arte de única execução, em espaços limitados e excludentes, para entrar na casa das pessoas pelos aparelhos reprodutores como tocadores de discos e fitas, pelo rádio e pela televisão. Mais do que isso, a capacidade da indústria musical de alcance em nível planetário, fez com que música, música gravada e música gravada pela indústria fonográfica praticamente se tornassem sinônimos. Entre o fonógrafo e o CD-player, diversas tecnologias nortearam os rumos da indústria fonográfica, constituindo-se não só em parâmetros técnicos deste modelo, mas também como condicionantes do mercado, ao estabelecerem os formatos de produção e consumo. Na década de 1920, aconteceu a primeira inovação após a invenção do fonógrafo e do gramofone, o advento das gravações elétricas, em substituição aos gravadores mecânicos, novidade saudada por Eduardo Vicente como “a base tecnológica para todos os grandes desenvolvimentos tecnológicos, tanto no que se refere à mudança na velocidade de rotação dos discos, quanto à criação da estereofonia e dos recursos do high fidelity [alta fidelidade]” (VICENTE apud DIAS, 2008, p. 39). A adoção do microssulco19, a partir de 1948, contribuiu para a melhora na qualidade da gravação e também para que o tempo de duração do disco subisse de quatro para trinta minutos. As gravações passaram a ter dois formatos que se tornariam consagrados: o de 33 rotações por minuto (rpm), instituído pela CBS; e o de 45 rpm, criado pela RCA. É a fase do surgimento dos discos de vinil, em substituição aos antigos discos de goma-lasca de 78 rpm. Diante do novo tempo possível de gravação, os produtos musicais também sofreriam modificações no seu formato. Para aproveitar o maior espaço disponível, as músicas passaram a ter tempo de duração padrão, em torno de três minutos. Esta tendência se imporia na década 19 Ranhuras ultrafinas, em forma de V, onde é registrada no disco a gravação de uma trilha sonora. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 80 de 1950, quando se inicia a internacionalização da indústria fonográfica, através da instalação de filiais em diversos países. O aumento da capacidade de armazenamento de músicas no vinil para até quarenta minutos (divididos em dois lados de vinte minutos) e o investimento em capas atrativas, com grandes fotos e imagens coloridas, despojadas e psicodélicas, ajudaram a consolidar o conceito de long-play (LP). Esse formato contribuiu para a disseminação da ideia de que o artista é mais importante que o disco, pois é a imagem dele que se sobressai na capa, juntamente com seu nome, enquanto as músicas propriamente ditas estão sob a embalagem, e só podem ser conhecidas quando o produto é desembalado. Nos anos 1980, o compact-disc (CD) transformou o panorama fonográfico, pois, por possuir formato diferente do LP, gerou a necessidade no ouvinte da compra de um novo tipo de aparelho reprodutor, o CD-player. Enquanto foram vendidos seis milhões de unidades de CD em todo o mundo em 1983, o número subiria para 1,9 bilhão em 1995 (DIAS, 2008, p. 111). O CD popularizou-se devido a diversos fatores. O maior deles foi o investimento da indústria, que passou gradativamente a retirar os LPs do mercado e oferecer os mesmos produtos musicais em CD, forçando os apreciadores musicais a migrarem para o novo modelo. O CD também se popularizou por cumprir a promessa de maior capacidade e clareza sonora. O som sem chiados passou a ideia de que os vinis eram coisa do passado. No entanto, a indústria fonográfica passaria a sofrer o impacto de uma revolução silenciosa, a conversão gradativa das músicas materializadas em disco ou fitas para arquivos digitais. É o que se convencionou chamar de desmaterialização da música. A digitalização é o vetor tecnológico que possibilita este fenômeno. No entanto, música desmaterializada e música digitalizada não são necessariamente sinônimos. Apesar de toda música desmaterializada se processar no ambiente digital, a música encontrada em tecnologias físicas como CD e DVD, por exemplo, também é digital, mas é materializada. Além disso, a desmaterialização da música pode não se referir somente aos casos de conversão de faixas de tecnologias físicas para o computador, mas também aos casos de músicas gravadas e disponibilizadas somente nas redes, sem terem passado pelos suportes físicos, quando, pode-se dizer, a música já nasce desmaterializada. Tecnicamente, a música se desmaterializa quando o suporte físico em que ela está inserida, seja CD, LP, DVD ou fita K7, é conectado ao computador e submetido à cópia. As mídias analógicas como LP e fita K7 são gravadas pelo computador em tempo real, através de programas como Samplitude, Cubase, ProTool, Sound Forge, Nuendo ou Vegas. A operação é Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 81 semelhante à que ocorre com os gravadores tradicionais. Os programas simulam uma tela em que o comando Rec (gravar) pode ser acionado enquanto a música é executada pelo aparelho físico (toca-discos ou toca-fitas). No caso do CD e do DVD, por já operarem em linguagem digital, os sotfwares podem extrair as faixas desejadas em segundos, sem a necessidade da audição. Dentre os formatos de áudio surgidos no processo de desmaterialização da música, os mais comuns são o Windows media audio (wma), o wave form audio format (wav) e o MPEG ½ audio layer 3 (mp3). Há ainda a extensão FLAC (Free lossless audio codec, ou codificador/decodificador livre de áudio sem perdas). A diferença entre eles está no nível de compressão utilizado. Destes, o mp3 apresenta o maior nível de compressão e o FLAC o menor. O nível de compressão é inversamente proporcional à qualidade do áudio. Quanto maior a compressão, menor a qualidade. O mp3, desenvolvido em 1987, sofre perda na qualidade de áudio em comparação com o CD físico, com a extensão digital wave e, principalmente, com as extensões FLAC porque seu processo de compressão descarta as freqüências de áudio que o ouvido humano não consegue perceber. “O princípio do funcionamento básico do mp3 é buscar num sinal de áudio normal, como arquivo wave, todos os sinais redundantes e irrelevantes que não sensibilizam nossa audição, ou seja, ele considera apenas a faixa de áudio que o ouvido humano consegue identificar” (LACERDA, 2001, p. 4). Apesar disso, o mp3 é o formato mais popular de música desmaterializada. Isso ocorre porque, ao apresentar menores taxas de compressão, tal formato proporciona diminuição no tamanho do arquivo (facilitando o armazenamento), otimiza seu tráfego pelas redes e opera em alta velocidade de carregamento e descarregamento. 3. O rádio e a música A hegemonia da indústria fonográfica durante o século XX, como sistema possibilitador da produção musical em larga escala e para grandes públicos massificados, tem relação direta com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa em nível global. Pelo rádio, pela televisão, pelo cinema e pela publicidade, a música gravada chegou a todos os cantos, tornando o mercado a grande referência para os rumos da produção, e o consumo (compra e usufruto) passou a ser aceito como “categoria última para se medir a relevância dos produtos culturais” (ORTIZ apud DIAS, 2008, p. 56). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 82 Pode-se dizer que a indústria do disco não teria a mesma força sem os meios de comunicação, na medida em que estes correspondem ao mecanismo historicamente mais comum de disseminação da música gravada. O rádio, especialmente, tornou-se o lugar privilegiado dessa música, outorgando-se para si a prerrogativa dos lançamentos e da qualificação do nível de aceitação de determinada faixa ou artista. Adorno já lembrava que “o reconhecimento só é socialmente efetivo quando lançado pela autoridade de uma agência poderosa (...) se alguma música é tocada sempre de novo no rádio, o ouvinte começa a pensar que ela já é sucesso” (ADORNO, 1986, p. 135). Mas a inserção de músicas nas estações de rádio não foi algo que ocorreu desde o início. As inúmeras invenções que propiciaram o surgimento do rádio, a partir da década de 1890 (o descobrimento das ondas hertzianas e do funcionamento da antena, o telégrafo sem fio, a válvula amplificadora, entre outros) preocupavam-se mais com o aspecto técnico dessa então nova tecnologia, privilegiando a transmissão de sons básicos como a voz humana. A história registra poucas experiências de transmissão musical neste período, como o solo de violino de Reginald Fessenden, em 1906, e o concerto de Enrico Caruso em 1910. Foi David Sarnoff quem vislumbrou a música no rádio, ainda em 1916, quando era apenas um jovem técnico empregado na Marconi Company, ao sugerir a fabricação de aparelhos receptores para se ouvir música em casa, as “caixas radiomusicais” (TAVARES, 1997, p. 39). A proposta foi recusada naquele momento, mas Sarnoff acabaria ganhando notoriedade nas décadas seguintes pelo seu pioneirismo na forma de gerenciar o rádio e no lançamento da televisão. Na década de 1920, coube a Frank Conrad, técnico da empresa Westinghouse, a iniciativa de transmitir programas com notícias lidas dos jornais e músicas tocadas diretamente dos discos. “Aos poucos, as transmissões de Frank Conrad foram ganhando um público de radioamadores que escrevia para solicitar suas músicas favoritas” (TAVARES, 1997, p. 39). No Brasil, a música faz parte do rádio desde a primeira transmissão realizada no país, durante a Exposição do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro, no dia 7 de setembro de 1922. A ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes, foi transmitida por uma estação montada no alto do Corcovado. Esta estação foi mantida pelos Correios e Telégrafos e, até o surgimento da Rádio Sociedade, em 1923, irradiava regularmente uma programação que continha, entre outras atrações, números musicais e de declamação de poesias. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 83 Diversas rádios-clubes foram criadas no Brasil ao longo da década de 1920, de caráter elitista – eram emissoras mantidas por aficionados de classes mais abastadas, que pagavam mensalidades e elaboravam a programação que eles mesmos ouviam – e destinavam à música parte considerável do espaço. “No início dos anos 30, com vinte e nove emissoras radiofônicas instaladas e funcionando no país, a programação baseava-se em música, óperas e textos instrutivos” (TAVARES, 1997, p. 55) A autorização da exploração publicitária a partir de 1932 mudou o caráter do rádio nacional, tornando-o progressivamente mais popular e um mecanismo de lazer e diversão. Ao passo em que podiam arrecadar recursos financeiros com a veiculação de publicidade, as emissoras investiram em equipamentos, na formação de quadros de funcionários e, mais notável para o público, na contratação de músicos e cantores. Um marcante programa de música popular foi o Programa Casé, de Adhemar Casé, veiculado primeiramente pela Rádio Philips, e depois pelas rádios Sociedade, Transmissora (que se tornaria Globo), Ipanema, Mayrink Veiga e Tupi, entre 1932 e 1951. Além de ter dado espaço e lançado inúmeros artistas, o programa apostava em uma linguagem diferente para os padrões iniciais, com as músicas sendo tocadas sem interrupção e a veiculação de anúncios musicados, hoje conhecidos como jingles. “Até então, entre uma atração e outra, enquanto o músico afinava seu instrumento, um silêncio constrangedor permanecia no ar. Casé implantou a ideia de que ‘o show não pode parar’” (JUNG, 2004, p. 28). O rádio brasileiro, ao longo das décadas de 1930, 1940 e 1950, tornou ídolos nomes como Carmen Miranda, Aurora Miranda, Francisco Alves, Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Ivon Cury, Francisco Carlos, Bidu Reis, Emilinha Borba, Marlene, Luiz Gonzaga, Carmélia Alves, Manezinho Araújo, Ademilde Fonseca, Anita Otero, Luiz Vieira, Humberto Teixeira, João Petra de Barros, Isaura Garcia, Sílvio Caldas, Jorge Veiga, Hebe Camargo, Nora Ney, Blackout, Augusto Calheiros, Odete Amaral, Zé Fidélis, Aracy de Almeida, Ciro Monteiro, Paraguassu, Elizeth Cardoso, Tonico e Tinoco, Alvarenga e Ranchinho e muitos outros. O surgimento da frequência modulada (FM) exerceu impacto sobre a relação entre música e rádio. O rádio FM é uma invenção do norte-americano Edwin Howard Armstrong, em 1933. Esta modulação era considerada tecnicamente inviável até que Armstrong encontrasse a faixa correta de espectro para sua utilização, com fidelidade sonora espetacular e menor consumo de potência de transmissão e estática. O pesquisador Lawrence Lessig descreve a primeira experiência de Armstrong de transmissão em FM, em 1935. “Armstrong Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 84 sintonizou seu rádio em uma gama de estações AM, até que o dial parou em uma transmissão que ele havia preparado (...). O rádio ficou totalmente silencioso, como se tivesse sido desligado. Então, com uma clareza que ninguém naquela sala jamais havia ouvido em um aparelho elétrico, produziu o som da voz de um locutor” (LESSIG, 2005, p. 26) A invenção de Armstrong revolucionaria o rádio, mas, justamente por isso, encontrou resistência para sua implantação. A nova tecnologia poderia levar as rádios AM à falência e, sob pressão da RCA (presidida pelo também outrora pioneiro David Sarnoff...), o governo norte-americano limitou ao máximo a adoção do FM, com redução de potência e proibição de transmissão de programas de uma parte a outra do país. A RCA foi mais além: incorporou o FM como padrão para a televisão, declarou inválidas as patentes de Armstrong e se recusou a pagar-lhe royalties pela invenção. Após ter sido apresentado a um acordo que mal cobriria as despesas com advogados, Edwin Howard Armstrong cometeu suicídio em 31 de janeiro de 1954. A melhor qualidade do rádio FM é propícia para a execução de músicas. “As emissoras AM estão mais vocacionadas ao ‘rádio que fala’, isto é, ao jornalismo e à prestação de serviços, enquanto o FM se destina mais à música” (MARANINI, 2001, p. 65). A partir de 1970, as rádios FM tomaram fôlego no Brasil, inaugurando nova forma de se fazer rádio, com estilo mais jovial, adoção de promoções e, principalmente, a busca da audiência pela música, privilegiando os lançamentos nacionais e internacionais. A chegada da FM ao Brasil coincidiu com um momento em que a indústria fonográfica nacional atravessava um período paradoxal: por um lado, pujança econômica, com crescimento médio de 15% ao ano durante a década de 1970 (MORELLI, 2009, p. 61), acompanhando o crescimento acelerado do mercado de bens de consumo da classe média; por outro, a falta de liberdade imposta pelo AI-5, que impediu que tal pujança ocorresse em prol da música brasileira e criou condições para que a indústria do disco investisse muito mais em lançamentos estrangeiros. Em um primeiro momento, portanto, o FM nacional não revelou artistas brasileiros na mesma proporção em que as rádios das décadas anteriores o fizeram. O cenário só se modificou com o surgimento dos festivais promovidos por emissoras de TV, a inserção da música nacional nas trilhas sonoras das novelas e o trabalho das gravadoras em divulgar os artistas com quem começaram a ter contratos. O rádio passou a receber material promocional diretamente das grandes companhias fonográficas. Rita Morelli aponta para uma inversão da relação entre artista, gravadoras e público. “Ao invés de surgirem com um trabalho que Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 85 despertasse a atenção do público e que consequentemente interessasse às companhias, parece que os novos artistas da MPB interessavam antes a essas companhias e elas é que faziam a apresentação do trabalho desses artistas ao público” (MORELLI, 2009, p. 76). O rádio FM, juntamente com a televisão, ajudou a popularizar no Brasil dos anos 1970, 1980 e 1990 artistas como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Gal Costa, Maria Bethânia, Baby Consuelo, Alceu Valença, Guilherme Arantes, Fagner, Belchior, Zé Ramalho, Chico Buarque, João Bosco, Lulu Santos, Legião Urbana, Engenheiros do Hawai, Titãs, Capital Inicial, Blitz, Skank, Jota Quest, Raimundos, Luiz Caldas, Chiclete Com Banana, Banda Eva, Só Pra Contrariar, É o Tchan, Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, Zezé di Camargo e Luciano, Sandy e Júnior e outros tantos. A relação entre a música e o rádio, tradicionalmente estabelecida, obedece a esquemas que gravitam em torno da legislação e das rotinas desenvolvidas. Do ponto de vista legal, o rádio, enquanto mecanismo de execução pública de música, submete-se à Lei do Direito Autoral (Lei 9.610, de 1998), tendo que efetuar pagamento para a entidade arrecadadora e enviar-lhe mensalmente a planilha com a programação musical executada. Quanto às rotinas, as emissoras estruturaram-se em departamentos, entre os quais o de Programação Musical, responsável por elaborar as tabelas que preveem que músicas devem ser executadas, um trabalho que pode gozar de liberdade, mas também pode sucumbir a pressão das gravadoras (às vezes disfarçada de mimos, como brindes e ingressos, outras vezes mais acintosa, como pagamento de suborno) para que determinado artista toque mais vezes. 4. A música no rádio do Maranhão A profusão de rádios-clube no início da década de 1920 incluiu o Maranhão, que acabou se tornando um dos primeiros estados do país a inaugurar uma emissora de rádio. A iniciativa se deu por conta de Joaquim Moreira Alves dos Santos, conhecido como Nhozinho Santos, e Francisco Aguiar, que, em 1924, fundaram a Rádio Sociedade Maranhense. Antes do Maranhão, apenas Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Ceará possuíam suas emissoras. As emissoras que se seguiram (Timbira, fundada com o nome Difusora em 1941; Ribamar, fundada em 1947; e Difusora, inaugurada em 195520) notabilizaram-se em seus primórdios pela concorrência em torno do radiojornalismo e da cobertura esportiva, mas 20 Antes destas, ainda houve uma segunda emissora, a Rádio Clube do Maranhão, fundada por J. Travassos em 1940, que fechou no mesmo ano e operava em caráter clandestino e experimental. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 86 também realizavam programas de auditório ao vivo, responsáveis pela divulgação da música de inúmeros nomes, entre eles Antônio Vieira e Lopes Bogéa. Dos programas de auditório da Rádio Timbira, surgiu o grupo Vera Cruz, comandado por Ruy Pisk e Maninho. Nos anos 1950, o elenco de cantores da emissora que pertence ao Governo do Estado do Maranhão incluía nomes como Ernani Cavalcanti, Sérgio Miranda, José Ribeiro, Newton Oliveira e Moacir Neves. Ao fundar a Rádio Difusora, em 1955, Raimundo Bacelar contratou quase toda a equipe da Rádio Timbira. Logo no início, a emissora tinha um convênio com a Rádio Record, de São Paulo, na promoção do concurso de calouros “A Voz do Ouro ABC”. Coube à Rádio Difusora trazer ao Maranhão uma tendência que se verificava em todo o país, a dos programas de disc-jóqueis. Assim, o cearense Almir Silva comandou o “Bom Dia Maranhão” e os “Turbilhão de Melodias”, que chegavam a alcançar 90% de audiência (FERREIRA; GARCÊS, 2013, p. 35). Outros programas musicais de destaque na Difusora foram o “Quem manda é você”, de José Branco, e “São Luís Hit Parade”, de Rayol Filho, durante os quais ocorreram as inserções da antológica “Guerra dos Mundos”, no dia 30 de outubro de 1971, quando a emissora fantasiou a invasão da Terra por marcianos para comemorar seu 16º aniversário. Embora privilegiasse os programas de variedades, policiais e esportivos, a Rádio Gurupi – quinta emissora a ser fundada em São Luís, em 1962 – tinha uma das programações musicais mais elogiadas, o que lhe valeu a cognominação de “Gurupi, a Musicalíssima” (REGO, 2004, p. 47). Já na Rádio Educadora, fundada em 1966, a música se fazia presente em programas como “Desfile de Sucesso”, “A Canção da Lembrança”, “Balanço do Nordeste” e “O Sertão da Minha Terra”, posteriormente chamado de “Programa do Galinho”, que está no ar até os dias atuais. Na área da cultura popular, a radialista Helena Leite trocou a Educadora pela Timbira em 1972 para comandar o “Canta Sertão”. Foi ela quem lançou no rádio a obra de Humberto de Maracanã, em 1973. A comunicadora também se destacava por gravar os ensaios de bumba-meu-boi para mostrar no ar, tarefa que também foi desempenhada nos anos 1980 e 1990 por Roza Santos e Jurandir Serra na Rádio Universidade. Desde 2011, Helena está de volta à Educadora, onde apresenta o “Canta Maranhão”. Antes, passou 12 anos na Rádio Capital (atual nome da Rádio Ribamar), quando comandou o “Show da Capital”. O Rádio AM do Maranhão ainda apresenta programas marcantes como o “Clube da Saudade”, de José Santos, pela Mirante AM, emissora fundada em 1988. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 87 Já a primeira emissora FM do Maranhão foi a Rádio Difusora, inaugurada em 1979. O cronograma da fundação das emissoras seguintes apresenta: Mirante (1981), Cidade (1983), Universidade (1986), Esperança (1990), São Luís (1991), Mais (2000), 92,3 (2010) e Senado (2014). A Rádio São Luís FM sofreu três arrendamentos – em 1994, para a Antena Um (de São Paulo), em 1997 para SomZoom Sat (do Ceará), e em 2001 para a Jovem Pan (SP). A Rádio Mais FM foi arrendada à SomZoom Sat de 2001 a 2003. Em 2015, a Rádio Cidade arrendou sua programação para a Igreja Pentecostal Deus É Amor. Todas as emissoras FM citadas têm programação marcadamente musical, respeitando o estilo adotado por cada uma, e construíram essa programação com aquisição de LPs e CDs que vinham basicamente por três fontes: representantes de gravadoras, compras ou permutas em lojas de discos e doações de ouvintes, voluntários ou dos próprios artistas. Em São Luís, frequentavam regularmente as rádios os senhores Wellington (BMG), Maria Lúcia (EMI/Trama) e Regina (Universal), como representantes dessas gravadoras. Inúmeros programas fizeram ou ainda fazem história no universo das FMs do Maranhão, dos quais se podem citar: “Mix 94”, com Renê Dumont, e “Clube do Rei”, com Florisvaldo Sousa, ambos na Difusora FM; “Som das Praias”, com João Marcus, e “Acorde e Recorde”, com Glaydson Botelho, na Mirante; “Momentos de Amor”, com Stênio Kawazaki, e “As Mais Mais da Cidade”, com Silvana Lobato, na Rádio Cidade; “Santo de Casa”, com Gisa Franco, e “Chorinhos e Chorões”, com Ricarte Almeida Santos, na Universidade; e “Na Balada”, com Flávio Pastel, na Jovem Pan. 5. As rádios FM de São Luís e a desmaterialização da música O rádio FM maranhense da década de 1980 seguia o padrão do FM no restante do país: intrínseca relação com os lançamentos da indústria fonográfica e adoção de tecnologias contemporâneas a essa período, ou seja, toca-discos, toca-fitas e cartucheiras para execução de músicas e outros materiais gravados. Os locutores não podiam deixar o estúdio, sob o risco de a música acabar e a emissora ficar “em silêncio”. Mesmo com a adoção dos CDs, nos primeiros anos da década de 1990, a atenção tinha que se manter redobrada. A automação veio com a adoção de um microcomputador no estúdio, que permitiu que as músicas pudessem ser programadas em sequência, juntamente com as vinhetas e demais arquivos, facilitando assim o trabalho do locutor. Mas, para isso, era preciso que a música dos discos fosse extraída para o computador, configurando o processo de desmaterialização. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 88 De forma geral, o acervo musical das Rádios Mirante FM, Difusora FM e Universidade FM começou a migrar para o computador a partir de 1997. As emissoras possuíam discoteca com centenas de LPs e CDs, que passaram a ser menos utilizados. Por volta de 2002, a Rádio São Luís FM, temendo deteriorização por falta de uso, ofereceu todo o seu acervo de LPs para a Rádio Universidade, que não aceitou, justamente por não ter espaço para armazenar, já que também possuía sua própria coleção. O primeiro sinal de que a desmaterialização tinha vindo para ficar foi percebido quando os representantes das gravadoras anunciaram às rádios que não trabalhavam mais para a indústria fonográfica. Depois de ter apresentado faturamento, no Brasil, de 930 milhões de dólares em 1995, quase três vezes maior do que em 1989 (DIAS, 2008, p. 110), o mercado de discos passou a entrar em declínio a partir de 1999. “Com o desenvolvimento da rede mundial de computadores, as gravações musicais se transformaram em dados e arquivos e passaram a circular amplamente na Internet. A expansão desse processo coincide com a queda de vendas e do faturamento da indústria fonográfica” (DIAS, 2008, p. 183). “Naquele momento, imediatamente mudamos nossa estratégia. Adquirimos HD’s para armazenar músicas. Tínhamos contato com grandes rádios do país, como Jovem Pan e Band, para conseguir esse material”, conta Nilo Gomes, radialista que exerceu as funções de programador musical e locutor da Rádio Difusora FM e hoje terceiriza seu estúdio para as produções da emissora. Na Rádio Mirante FM, o impacto foi semelhante. Nessas duas rádios, o trabalho com música tornou-se totalmente digital: da aquisição para o acervo à execução no ar. “Quando o artista ainda traz música em CD, às vezes é mais rápido baixar essa mesma música da Internet do que passar do CD para o computador” (GOMES, 2015). A única emissora que se mantém até hoje revezando execuções musicais entre computador e CD é a Rádio Universidade. O principal motivo é a falta de estrutura de pessoal para processar toda a desmaterialização do acervo, segundo a programadora musical da emissora Cristina Lima de Almeida (ALMEIDA, 2015). Apesar de o início da década de 2010 mostrar estabilidade do mercado fonográfico em 2011, os números registraram crescimento na comercialização tanto de CDs como de DVDs em 0,76% em relação a 2010 (ABPD, 2012) – as emissoras já não têm como voltar a usar suportes físicos de forma predominante. “A questão é que nem se encontra mais CDplayer para comprar, está cada vez mais difícil tocar música em CD pelo rádio” (ALMEIDA, 2015). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 89 A principal fonte de música das três emissoras pesquisadas passou a ser a Internet. A primeira implicação dessa mudança é a admissão de que tal modelo é tão vital que nem mesmo a questão da legislação dos direitos autorais é plenamente respeitada. Apenas a Mirante FM possui conta no ITunes (site que vende músicas de forma oficial), evitando ao máximo cometer download21 diretamente de páginas não-oficiais. Mas essa facilidade trouxe um segundo impacto, como lembra o produtor e locutor da Mirante, Nynrod Weber. “A digitalização enxugou a equipe. Uma pessoa só dá conta de todo o processo: baixar, cadastrar, deixar apto a executar. A demanda agora não é de pessoas, e sim de conhecimento” (WEBER, 2015). Esta realidade é compartilhada pela Rádio Difusora, que também mantém uma equipe menor para dar conta dessas tarefas. Por outro lado, a desmaterialização da música nas rádios tem significado maior liberdade das emissoras na composição de suas tabelas de programação. As gravadoras fizeram, ao longo de décadas, investimentos para que seus contratados tocassem no rádio, que foram diminuindo conforme a música passou a chegar às emissoras pela Internet. Essa situação é celebrada com otimismo por Nilo Gomes. “A desmaterialização democratizou a relação entre rádio e artista. Antes, as gravadoras nos ofertavam apenas o que queriam que fosse tocado, na forma de single. Hoje, podemos escolher o que quisermos na Internet” (GOMES, 2015). Na Rádio Mirante, a visão é mais reflexiva. “A Internet facilitou a vida para os artistas, que se lançam na Internet, mas isso complicou para as rádios, pelo fato de a música ir direto para o consumidor” (WEBER, 2015), o que contribui para a necessidade da revisão do papel do rádio FM na divulgação da música e formação de opinião e gosto do público, afinal a música está à disposição das pessoas antes de chegar às rádios. Nesse sentido, a Mirante e a Universidade têm colocado no ar programas específicos para atender o que Nynrod Weber chama de “demanda de Internet”, as músicas que são lançadas na grande rede e que ganham notoriedade entre os fãs. A Difusora, por sua vez, aposta nessa demanda em toda a programação, já que a base de sua playlist22 são os pedidos de ouvintes. “É uma via de mão dupla. Da mesma forma que os ouvintes nos indicam o que baixar, porque começam a pedir e a gente tem que atender, também rastreamos sites de música para identificar o que está acontecendo. Geralmente, o ouvinte está à frente da rádio. Nosso desafio é alcança-lo” (GOMES, 2015). 21 22 Descarregamento de arquivos Lista de músicas selecionadas previamente para posterior execução no ar Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 90 Por não ser uma emissora comercial e, por isso, ter tido historicamente relação menos imbricada com as gravadoras, a Rádio Universidade vê na desmaterialização uma “porta sempre aberta” (ALMEIDA, 2015), mas que, justamente por conta da infinitude da rede, trouxe algumas desvantagens. “Hoje, temos muita dificuldade de encontrar a música que interessa ao nosso público. Os grandes artistas de nossa programação estão desaparecendo e seus substitutos estão espalhados na Internet numa proporção que é impossível acompanhar. Pelo menos na época das gravadoras, os representantes traziam as novidades dentro do nosso estilo, faziam esse trabalho para a gente”, conta Cristina Lima de Almeida, que ressalta que a Rádio Universidade ainda realiza compras regulares de CD nas poucas lojas que restam, no intuito de não se atrasar nos lançamentos – a Universidade foi a única rádio pesquisada que revelou ainda comprar CDs. O sistema de segurança do acervo desmaterializado é uma preocupação constante das emissoras. “Um único comando pode apagar todas as músicas do sistema digital e a rádio simplesmente ficar sem música para tocar. Nesse sentido, materializar a música novamente é uma estratégia de segurança” (ALMEIDA, 2015). A Rádio Universidade copia para CD-R e DVD-R todas as músicas que são extraídas de CD ou baixadas para a programação, constituindo uma espécie de back-up (cópia reserva) físico. A Mirante deixa essa tarefa a cargo do departamento de Tecnologia e Informática, que mantém tudo em back-up, mas de forma totalmente digital. Tanto a Mirante como a Difusora exportam diretamente do software utilizado no ar para o ECAD os dados sobre autoria das músicas. Já a Universidade gera planilhas em PDF, pois seu software de programação não é compatível com o utilizado no ar. Em acordo sobre o fato de o rádio FM ainda estar atravessando um período de adaptação aos impactos da desmaterialização da música, as emissoras pesquisadas admitem um cenário de incerteza em relação ao futuro da frequência modulada que privilegia a música como seu principal material de trabalho. Nilo Gomes acredita que, aos poucos, a informação deve tomar o lugar da música nas rádios FM. “Acredito que o rádio dará mais espaço para a informação do que para a música, mesmo a rádio FM. O FM foi criado como opção de entretenimento musical ao grande número de informações que circulavam no AM. Mas isso porque não havia velocidade de informação nos outros veículos. Hoje, a informação está em todos os lugares. O rádio FM precisa se reinventar” (GOMES, 2015). Nynrod Weber e Cristina Lima de Almeida possuem concepção mais otimista quanto ao futuro da música do rádio FM. Para a programadora da Rádio Universidade, o ato de ouvir Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 91 música no rádio é uma experiência insubstituível, especialmente em comparação com computadores e celulares. “O rádio tem qualidade de som, dá para ouvir em ambientes abertos, com todos os graves, médios e agudos. As mídias digitais tiram o peso da música. Hoje em dia parece que é preciso ter um estúdio em casa para se ouvir música em todos os detalhes, porque pelo celular não é a mesma coisa. Pelo menos o rádio ainda cumpre esse papel” (ALMEIDA, 2015). Weber ressalta a relação sentimental das pessoas com a música. “A música ainda toca as pessoas, mais que a informação. Possivelmente, o rádio FM vai se focar em cada vez mais nichos: rock and roll, público GLS, músicos alternativos. A rádio pode deixar de ser um prédio, toda uma estrutura, mas nunca vai acabar, enquanto houver interesse por música” (WEBER, 2015). 6. Conclusão Ainda são escassos os estudos tanto sobre os impactos da desmaterialização da música quanto sobre as rádios FM de São Luís (MA), de forma geral. Este trabalho consistiu em uma contribuição nessa seara, no intuito de propiciar mais reflexão sobre essas questões. A pesquisa identificou que, assim que foi percebida a diminuição da chegada de músicas em CD por meio das gravadoras, as emissoras não tardaram a adotar a Internet como alternativa principal para suprir essa necessidade. No entanto, as observações de campo e as entrevistas revelaram também que as rádios FM pesquisadas, mesmo se atualizando tecnologicamente em tempo hábil, admitem fragilidade diante da velocidade dos lançamentos e do conhecimento dos ouvintes. O enxugamento das equipes de programação foi uma das consequências da adoção da música desmaterializada, bem como o desenvolvimento do hábito de descarregamento de arquivos gratuitos por sites não-oficiais, com exceção da Rádio Mirante FM. As emissoras celebram o que consideram maior liberdade de acesso à música pela Internet, em contraposição às sugestões das gravadoras, mas, pelo menos no caso da Rádio Universidade FM, o excesso de material disponível nem sempre satisfaz as necessidades de programação. A criação de cópias de segurança dos arquivos musicais é uma preocupação constante das três rádios escolhidas como objeto desta pesquisa, mas a Universidade é a única que materializa as músicas novamente em suportes físicos, como CD-R e DVD-R. Por fim, a pesquisa demonstrou que, apesar de estarem adaptadas à desmaterialização da música, as emissoras analisadas admitem viver um cenário de incerteza em relação ao Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 92 futuro do rádio FM, especialmente pelo fato de que, com a disponibilidade de músicas na Internet, o veículo tem sido cada vez menos um intermediário entre a gravação musical e a audiência, que muitas vezes conhece os trabalhos dos artistas antes mesmo de as rádios os terem em seu acervo. REFERÊNCIAS ABPD - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS PRODUTORES DE DISCOS. Mercado brasileiro de música 2011. Acessado em 19 de novembro de 2012. Disponível em http://www.abpd.org.br/ downloads/Fina2011.pdf. 2012. ADORNO, Theodor W. Sobre música popular. In: COHN, Gabriel (Org.). Adorno. São Paulo: Ática, 1986. ALMEIDA, Cristina Lima de. Radialista/Rádio Universidade FM. Entrevista concedida em 31 de março de 2015. São Luís, 2015. BRIGGS, Asa e BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. 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O objetivo da pesquisa é analisar o programa como disseminador da cultura drag através de sua repercussão no âmbito da internet através do surgimento de fandons que reverberam seu conteúdo. A pesquisa terá como foco de análise dois fandons: o “Rupauls Drag Race” da rede social Reddit e o grupo do Facebook, “Interior Illusions Lounge”. Apresentando dois fóruns de internet que abordam o programa de televisão como objeto de pesquisa, a cultura de convergência ao lado da cultura participativa (Jenkins, 2008) são o foco desse estudo, que tem como perspectiva metodológica as técnicas de análise de conteúdo (BARDIM, 1977) e netnografia (AMARAL, 2001, p.5). Palavras-chave: Drag Queen; Reality Show; Fandom; Abstract: This research aims to study the reality show Rupaul's Drag Race, produced by the production company "World Of Wonders" and aired by North American TV station "LogoTV". The research objective is to analyze the program as a disseminator of drag culture through it’s impact within the Internet through the emergence of fandons reverberating it’s content. The research will focus on the analysis of two fandons: The "Rupaul’s Drag Race", from the Reddit social networt and the facebook group, "Interior Illusions Lounge". Featuring two internet forums that approach the television program as a research object, the convergence culture alongside the participatory culture (Jenkins, 2008) are the focus of this study, whose methodological perspective the techniques of content analysis (BARDIM, 1977) and netnography (Amaral, 2001, p.5). 1. Introdução Os reality shows difundiram-se no começo dos anos dois mil por todo o mundo, inclusive no Brasil, onde atraiu uma grande atenção do telespectador e ajudou emissoras a bater recordes de audiência e arrecadação com publicidade. Apesar de não ser o gênero de programa comumente mais consumido, os reality shows conquistaram seu espaço na televisão mundial, ganhando adeptos das versões norte americanas de grandes franquias pelo no Brasil 23 Rafael Ribeiro de Castro Moraes, Graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 95 e no mundo principalmente através da internet. Incluídos no processo de convergência midiática, esses programas são produzidos para televisão – alguns com votação popular – e acabam também sendo consumidos através do compartilhamento informal de downloads. Essa prática, na maioria das vezes ilegal, é responsável pela popularização de diversos produtos estrangeiros e se torna cada vez mais comum entre internautas. As serem compartilhados, esses conteúdos passam a ser discutidos, rebatidos, exaltados e também ressignificados em forma de novos conteúdos. Tal procedimento, que se desenrola em redes sociais, blogs ou fóruns, se estabelece no processo chamado cultura de fã (JENKINS, 2008), que pode ser observado pela criação de “memes24”, campanhas para algum candidato especial, trending topics25 no twitter, fanpages no facebook, além de muitas outras possibilidades de apropriação e consumo desse produto cultural. Dessa forma, observa-se que a televisão não é mais a única forma de se consumir produtos televisivos. Jenkins (2008) assegura que o processo de convergência deve ser compreendido como referência “ao fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação” (JENKINS, 2008, p.27). Contudo, o pesquisador explica que, apesar de parecer, “a convergência não ocorre por meio dos aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros.” (JENKINS, p.30), se estabelecendo como um fenômeno não exclusivamente midiático, mas também cultural. A pesquisa proposta se insere nesta prática, no âmbito contemplativo da “convergência midiática e a consequente convergência e desdobramentos de seus fluxos de circulação e consumo” (JACKS et al, 2011, p.3). Como objeto empírico deste fenômeno midiático, tendo como objeto de estudo o reality show Rupaul’s Drag Race, exibido pela emissora a cabo LogoTV. No Brasil, os direitos de exibição do programa pertencem ao conglomerado de mídia Viacom, tendo sido exibido pelo canal pago VH1 até sua quarta temporada. Atualmente, Rupaul’s Drag Race está disponível na plataforma online Netflix, onde se tornou um dos conteúdos mais populares entre seus assinantes. O enfoque, contudo, não se baseia no reality show em si, seu conteúdo ou processo de produção, mas sim como se dissemina o seu consumo entre os fãs que o programa conquistou 24 Fenômeno em que uma pessoa, um vídeo, uma imagem, uma frase, uma ideia, uma música, uma hashtag, um blog etc., alcança muita popularidade na internet. 25 Treding Topics ou TT's são uma lista em tempo real das palavras mais postadas no Twitter em todo o mundo. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 96 no Brasil pelo meio da internet. O propósito desta pesquisa é examinar a ocorrência do conteúdo produzido sobre o programa em fan pages e fóruns voltados para esse tema e mapeá-los de forma a entender a existência de um poderoso mercado de nicho voltado para a cultura drag no Brasil. 2. Sobre Rupaul’s Drag Race e o valor da pesquisa Rupaul’s Drag Race é um reality show de competição produzido pela produtora World Of Wonders e exibido pela LogoTV desde fevereiro de 2009. Apresentado pela drag queen Rupaul26, que desempenha também papel de mentor e fonte de inspiração para o conteúdo do programa, o reality show busca a próxima drag queen “superstar”. O nome Drag Race é um trocadilho entre os termos Drag Queen27 e Drag Race28 Atualmente possui duas temporadas lançadas e mais uma em produção. No programa, um grupo de drag queens (geralmente formado por quatorze competidoras) são submetidas a um mini desafio e um desafio principal. Neles, elas precisarão provar os mais diferentes talentos, como costura, maquiagem e atuação. Além disso, cada episódio conta com um desfile temático na passarela principal, quando as competidoras são julgadas pelo desempenho por um júri formado por Rupaul, seus amigos Santino Rice e Michelle Visage e jurados convidados a cada episódio. No final, as duas drags que se saíram pior nos desafios são submetidas à dublagem de uma música previamente escolhida, quando deverão “dublar por suas vidas”, sendo uma delas eliminada. Ao final de cada episódio, é exibido na sequencia o Rupaul’s Drag Race: Untucked, programa realizado nos bastidores de cada programa no momento em que as participantes esperam ser julgadas. Lá elas conversam entre si sobre a convivência no reality, desempenho de cada uma nas provas, além da equipe preparar surpresas, como depoimentos de familiares ou namorados das participantes. No final, uma das drag queen vence o programa e é nomeada “the next drag superstar”, ganhando um prêmio em dinheiro, mas principalmente, a exposição que o programa proporciona. Contudo apesar da recompensa financeira ser tentadora, “a verdadeira meta é dar-se a conhecer ao público, é expor-se para vender seus produtos (CD’s, livros, 26 RuPaul Andre Charles, nascido em 17 de novembro de 1960, mais conhecido como RuPaul. É uma drag queen, ator, modelo, cantor Americano que se tornou conhecido na década de 90, quando passou a aparecer em uma série de programas de variedade, filmes e álbuns musicais. 27 Drag Queen é como são chamados homens que se vestem de mulher com o intuito de expressão artística.. 28 Drag Race é como se denomina o tipo de corrida automobilística com carros estilo dragster (veículos leves com motores potentes). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 97 fotos) e para ser chamado para novos trabalhos” (BOURDOUKAN, 2002). Nesse sentido, Rupaul aproveita seu espaço como ninguém, usando o programa para promover a si mesmo e também seus trabalhos musicais, livros, linhas de sapato e o que mais estiver produzindo. LogoTV, emissora que transmite o programa, é um canal pequeno dentro do enorme leque de variedades oferecido pela televisão à cabo norte americana. Ele, que tem como público alvo a comunidade LGBT, conseguiu, ao transmitir o reality show, superar seus próprios recordes. A segunda temporada, exibida em 2010, conseguiu ser o programa a ter mais visualizações via stream29, acumulando 9,8 milhões ao final da temporada. Na quinta edição, em 2013, a estreia atingiu 1,3 milhões de espectadores, aumentando em 136% as atividades relacionadas ao show em redes sociais, se tornando a première mais assistida do canal até então.30 Apesar de pequeno, comparado ao alcance explosivos que reality shows de competição segmentada alcançaram imediatamente em suas estreias, como - Project Runway31 e America’s Next Top Model32 - Rupaul’s Drag Race vem, temporada após temporada, não só crescendo em sua audiência televisiva, mas causando também cada vez mais repercussão. Indo ao ar num canal segmentado, o programa conseguiu êxito ao despertar o interesse do público que mirou, mesmo que pequeno. É a chamada segmentação de conteúdo, elucidada por Anderson (2006): O estilhaçamento da tendência dominante em zilhões de fragmentos culturais multifacetados é algo que revoluciona em toda a sua extensão os meios de comunicação e a indústria do entretenimento. Depois de décadas de refinamento da capacidade de criar, selecionar e promover grandes sucessos, os hits já não são suficientes. O público está mudando para algo diferente, a proliferação caótica e emaranhada de... bem, ainda não temos um termo adequado para esses não-hits. Decerto, não são fracassos, pois, para começar, a maioria não buscava a dominação mundial. (Anderson, 2006, p.7) Em uma declaração para a imprensa, a vice presidente de programação da LogoTV disse que “Rupaul’s Drag Race continua a ser um perene favorito dos fãs que aos poucos vem 29 PR Newswire. Disponível em: http://www.prnewswire.com/news-releases/logos-season-finale-of-rupauls-drag-raceburns-ratings-rubber-clocking-in-as-networks-highest-rated-and-most-watched-telecast-ever-92315264.html 30 The WOW Report. Disponível em: http://worldofwonder.net/season-5-rupauls-drag-race-highest-rated-premiere-inlogos-network-history/ 31 Reality show de competição norte americano. Disputado entre estilistas, é apresentado pela top model alemã Heidi Klum e foi exibido originalmente pelo canal a cabo Bravo entre 2004 e 2008. Atualmente está no ar na emissora paga Lifetime. 32 Reality show de competição norte americano. Disputado entre modelos, é apresentado pela top model Tyra Banks e foi exibido originalmente de 2003 a 2006 pela emissora de TV a cabo UPN. Atualmente está no ar pelo canal pago The CW. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 98 se tornando um fenômeno da cultura pop, ampliando o número de espectadores.”33. Esse fenômeno de crescimento, mais do que mensurado por números de audiência televisiva, via stream ou até mesmo pelo monitoramento de compartilhamentos de torrents piratas, pode ser observado por uma crescente comunidade de conhecimento, alimentada por pessoas com interesse genuíno pelo universo. Seria a LogoTV a única fonte de alimentação desse feito? Segundo Anderson (2006), “a única grande área em crescimento acelerado é a Internet, mas nesse caso trata-se de um oceano sem categoria própria, com milhões de destinos, cada um desafiando, à sua maneira, a lógica convencional da mídia e do marketing" (ANDERSON, 2006, p.5). Parte desse sucesso se deve ao fato de que as poucas pessoas que possuem interesse em Rupaul’s Drag Race conseguiram se conectar através da internet. Juntos, destrincham o universo do show, criando uma relação mais profunda com ele. Jenkins (2006) diz que “a era da convergência das mídias permite modos de audiência comunitários, em vez de individualistas” (JENKINS, 2008, p.55) e é sobre isso que se trata o constante aumento do êxito do programa. Juntos, um pequeno grupo de pessoas conseguem ser mais fortes e até mesmo serem capazes de atrair o interesse de mais outras. O apetite dessa audiência é tamanha que garante que as ex-participantes do programa ganhe status de celebridades cultuadas no meio, gerando materiais próprios (como vlogs, álbuns de música e web shows), a criação de spin-offs34 e, no Brasil, de adaptações baratas do programa. Como se pode notar, a convergência de mídias trouxe uma nova realidade para o fazer televisivo e seu consumo. Com novas formas de se assistir um conteúdo e fazê-lo circular, a intenção dessa pesquisa é se arraigar-se nessa nova realidade e procurar abarcar a cultura de fã e sua forma de se relacionar com as mídias, tendo como recorte o reality show Rupaul's Drag Race. 3. Metodologia da Pesquisa Tendo sido concretizada em ambiente online, a pesquisa foi atingida utilizando a técnica de análise de conteúdo indicada por Bardim (1977), para espacializar e organizar o conteúdo compartilhado pelos fãs do programa em grupos criados para essa finalidade. Tendo 33 Huffington Post. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/2014/02/17/rupauls-drag-race-seasonseven_n_4803146.html 34 Um novo produto de mídia derivado de uma ou mais obras já existentes. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 99 ainda um segundo método como dispositivo da pesquisa, a netnografia, que se distingue como o estudo dos elos cultivados através de processos sociais contidos no espaço virtual, é a forma mais indicada de se observar e estudar o conteúdo gerado em redes sociais, fóruns, blogs, sites e assim “preservar os detalhes ricos da observação em campo etnográfico usando o meio eletrônico para 'seguir os atores'." (BRAGA apud AMARAL; NATAL e VIANA, 2008, p.34). Como ambiente da pesquisa netnográfica, foram analisados o Interior Illusions Lounge (https://www.facebook.com/groups/InteriorIllusionsLounge/?fref=ts), um grupo no Facebook formado com o intuito de reunir os fãs brasileiros e o fórum Rupaul’s Drag Race (http://www.reddit.com/r/rupaulsdragrace/), frequentado por interessados no programa oriundos de todo o mundo. Os espaços foram acompanhados durante outubro, período considerado de baixa temporada, uma vez que o reality é veiculado no primeiro semestre do ano. Contudo, atividades entre os meses de fevereiro e maio de 2014 (referente ao período em que a sexta temporada esteve sendo veiculada) foram analisadas de modo retroativo. 4. Circulação de informação no fandom de Rupaul’s Drag Race Os dados gerados durante a exibição da sexta temporada de Rupaul’s Drag Race nos dois ambientes foram analisados nos tópicos fixos para comentários de cada episódio. Com treze episódios veiculados, o grupo Interior Illusions Lounge, que atualmente conta com exatos 1.200 membros, tinha produzido 12.162 comentários. Com uma média de 943 comentários por episódio, o número é mais que o dobro da repercussão que a temporada conseguiu no fórum do Reditt35 de Rupaul’s Drag Race. Com 10.873 membros, o fórum produziu 5.939 postagens, uma média de 457 postagens por episódio. A comunidade de fãs brasileiros reunida no grupo Interior Illusions Lounge revelou ser mais produtivo que o internacional durante a veiculação do programa. Além de possuir maior interação, o grupo também colaborou entre si para descobrir quais as drag queens que iam longe na competição e quais seriam eliminadas em cada episódio. Através de análise de chamadas e VT’s do programa que mostravam o visual de cada participante na passarela, os membros montaram e atualizaram semanalmente uma 35 Rede social com uma comunidade de fóruns onde os usuários podem votar no conteúdo postado. É comum que quem acessa o Reddit interaja enviando links para conteúdo externo à comunidade, promovendo votações sobre quais histórias e discussões são mais importantes. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 100 tabela, a batizando de “Tabela de Looks”. A prática do spoiling36, que “trata-se fundamentalmente, de conhecimento coletivo, impossível de reunir em uma única criatura” (LEVI, 1998, p.214-215), é uma prática incentivada no grupo, mas fica refém do material que é liberado pela WOW Productions e LogoTV. O fórum do Reddit, apesar de não possuir o mesmo engajamento, é beneficiado pela superioridade numérica e também pelos membros serem oriundos de diferentes lugares do mundo. A variedade de pessoas com diferentes conhecimentos possibilitam uma troca de informações mais rica. A nova cultura de conhecimento surge ao mesmo tempo em que nossos vínculos com antigas formas de comunidade social estão se rompendo, nosso arraigamento à geografia física está diminuindo, nossos laços com a família estendida, ou mesmo com a família nuclear, estão se desintegrando, e nossas alianças com estados nações estão sendo redefinidas. (JENKINS, p.56-57) Lá, os spoilers começam em forma de especulação antes mesmo da veiculação das temporadas. Membros com supostas ligações dentro da produção do show surgem com informações sobre possíveis participantes, temas de episódios, jurados convidados, entre outras curiosidades. Com o conhecimento de que as gravações da sétima temporada aconteceriam em julho, membros começaram a monitorar as atividades de drag queens em redes sociais e, se baseando naquelas que não tinham atividade online alguma, elegendo as mais propensas a estarem confinadas na gravação do reality show. Em agosto, um post do membro “chalkycandy”, que organizou as informações trazidas por diferentes membros, gerou 971 comentários. Nele, especificava-se quem compartilhou os dados. Tal postagem repercutiu nas dezenas de fan pages do programa, tendo ido parar também no grupo Interior Illusions Lounge. Outros membros apareceram com possíveis informações, tendo essas percorrido o mesmo caminho que as especulações anteriores. A prática do spoiler, segundo Jenkins: É a maneira mais democrática de produzir e avaliar o conhecimento. O spoiling delega poder, no sentido literal de que ajuda os participantes a entenderem como podem empregar os novos tipos de poder que estão surgindo da participação dentro de comunidades de conhecimento. (JENKINS, p.59) Com tantos esforços aplicados diretamente à caçada de elementos que o programa poderá vir a apresentar a cada nota temporada, é possível concluir que os fãs de Rupaul’s 36 Significa estragar em inglês. “Spoilers dão desfechos antes das histórias começarem, e, podem, assim, diminuir o suspense e prejudicar a fruição; de fato, como o termo sugere, os leitores se distanciam deles para evitar descobrir prematuramente resoluções.” (LEAVITT e CHRISTENFELD, 2011, p.1). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 101 Drag Race são um público sedento por conteúdo. A WOW Productions e a LogoTV, além da própria Rupaul, das ex-participantes e também outros empreendedores perceberam essa demanda. 5. Um nicho em plena expansão No mesmo ano da estreia da temporada inaugural de Rupaul’s Drag Race, um spin off foi encomendado aos mesmo produtores. Em 2010 estreou o primeiro produto derivado do reality, o Rupaul’s Drag U. Exibido por três temporadas no segundo semestre da programação da LogoTV, o também reality show de competição contava com as ex-participantes do programa original. Nele, as participantes ensinavam mulheres comuns a despertarem suas divas interiores com a arte drag, tendo o resultado final julgado por Rupaul. O programa acabou em 2012, dando sequência, logo em seguida, à uma edição especial de Rupaul’s Drag Race. Intitulada de “All Stars”, a competição contava com as figuras mais notáveis das quatro primeiras temporadas, que retornavam ao programa em busca da cobiçada coroa. Em 2013, Alyssa Edwards, uma das drag queens que ganhou mais notoriedade após ser eliminada do show, revelou que a produtora World Of Wonders demonstrou interesse em produzir um spin off em torno de sua figura. O projeto, também reality show, se focará no estúdio de dança de Alyssa (aka Justin Johnson) no Texas e se chamará Beyond Belief37. Enquanto o programa não estreia, a produtora mantém a imagem da drag queen em evidência através de um web show chamado Alyssa Edwards’ Secret, uma série de sucesso que registra entre quarenta e quase duzentos mil visualizações a cada vídeo novo. No Brasil, pequenos empreendedores já perceberam o nicho formado ao redor da reinvenção por Rupaul da cultura Drag Queen. A primeira investida brasileira aconteceu no final de 2012, na TV Diário, de Fortaleza. Nela, foi desenvolvido pela travesti Lena Oxa um quadro dentro do programa Ênio Carlos. Batizado de Glitter – Em Busca de Um Sonho38, dez competidoras (drag queens, travestis e um gogo boy) competiam toda semana em provas diversas, tendo a cada semana uma eliminada. No final, a vencedora teria direito de realizar o seu sonho. 37 Huffington Post. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/2014/02/05/alyssa-edwards-beyondbelief_n_4732218.html 38 Folha de São Paulo. Disponível em: http://blogay.blogfolha.uol.com.br/2012/10/19/glitter-em-busca-de-um-sonho-e-oprimeiro-reality-gay-do-brasil/ Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 102 O quadro rivalizou na internet imediatamente. A qualidade trash da produção e o carisma das participantes garantiu a visibilidade, com a ajuda de blogs com público LGBT como Papel Pop39 e Katylene40. Memes e bordões foram criados no decorrer dos episódios, sendo o vídeo do embate entre Rochelly Santrelly e Sangalo41 o ápice da popularidade do quadro, com mais de duzentas mil visualizações, tendo diversas versões que chegam a superar em até três vezes visualizações mais o número do original. O quadro ganhou uma segunda temporada no primeiro semestre desse ano. O segundo foi o reality show Bibas. Veiculado esse ano pela filiada da Band no estado do Pará, sendo criado como um quadro dentro do programa Paranoia na TV, o elenco foi formado por gays, travestis, drag queens e transexuais. Com uma abordagem parecida com Glitte – Em busca de um sonho, ela competiam pelo prêmio final: uma moto rosa.. Segundo os produtores do programa, “os 15 mil fãs no Facebook viraram 213 mil — e vieram de todo o país”42. O terceiro e mais recente caso foi a criação do Academia de Drags. Comparado imediatamente a Rupaul’s Drag Race, o web show gravado pela produtora ASC estreou em outubro. “Seria melhor se não parecesse um primo tão pobre de um reality bem estabelecido. A comparação é inevitável”43, concluiu o jornalista Fernando Oliveira, que expressou com exatidão as mesmas impressões que os membros do grupo Interior Illusions Lounge tiveram sobre o programa. Apesar de ser apresentado pela drag Silvetty Montilla, famosa por participações em programas de televisão, e contar com o estilista Alexandre Herchcovitch, o programa não consegue entrar um produto bem acabado, possuindo pouca qualidade técnica. Os problemas não impediram que Academia de Drags repercutisse pela internet. Em um mês, o primeiro programa44 conseguiu 160 mil visualizações no Youtube, com 3.199 avaliações positivas contra 145 negativas. A estreia do programa garantiu também um maior fluxo de postagens no grupo Interior Illusions Lounge comparado ao mês anterior. Os promoters e casas de festas já perceberam a demanda por festas com a temática de drag queen. No Rio de Janeiro, uma tímida e revigorada cena drag já chama atenção da mídia: 39 Disponível em: http://www.papelpop.com/ Disponível em: http://diversao.terra.com.br/gente/blog-da-katylene/blog 41 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x35Fyk51Saw 42 Jornal Extra. Disponível em: http://extra.globo.com/tv-e-lazer/reality-show-bibas-reune-16-homossexuais-tem-umapitadinha-de-atrito-tipo-bbb-diz-apresentador-12176608.html 43 Portal R7. Disponível em: http://entretenimento.r7.com/blogs/mundo-da-tv/critica/bem-intencionado-academia-dedrags-e-versao-tecnicamente-pobre-de-rupauls-drag-race-20141013/ 44 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=54fzppX_V2g 40 Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 103 O comportamento dos jovens cariocas faz parte de um movimento global de inclusão e aceitação das drag queens em meios que antes elas não participavam. No reality show da norte-americana Ru Paul,RuPaul’s Drag Race, 14 drags disputam US$ 100 mil e um “suprimento gigantesco de maquiagem”. A austríaca Conchita Wurst virou sensação com seu visual mulher fatal barbada e venceu o Festival Eurovisão da Canção em 2014. No Brasil, Deena Love virou trending topic no Twitter depois de sua aparição na estreia do programa The Voice. No horário nobre, o ator Ailton Graça interpreta Xana Summer na novela Império. 45 Em São Paulo, aconteceu em maio desse ano, pela primeira vez, a performance de uma drag queen que participou de Rupaul’s Drag Race. Jujubee, que ficou em terceiro lugar na segunda temporada, se apresentou na boate Cine Joia. Trazida pela festa Recalque, o evento46 da festa no Facebook teve mil e quatrocentas pessoas confirmadas. O sucesso foi tamanho que as cidades de Porto Alegre e Recife também aderiram à tendência e organizaram festas com a presença das ex-participantes do reality. Ao todo, cinco drags que passaram pelo programa foram trazidas, três já foram anunciadas ainda para esse ano e mais uma para janeiro de 2015. 6. Conclusão Discriminada, a cultura drag ganhou uma nova vida com o advento de Rupaul’s Drag Race. Lançando um olhar divertido e desmistificando este universo, o programa arrebatou milhares de fãs devotos. Eles são um importante ingrediente para o sucesso crescente e expansão não só dos programas veiculados pela LogoTV, mas também da cultura drag. Construindo a sua própria cultura e identidade através da interação social (Recuero, 2009) e da apropriação e remediação (Bolter e Gruisin, 200) de meio de comunicação de massa, os fandoms são exemplos concretos da inteligência coletiva estudada por Lévy (1998)” (Monteiro, 2010, p. 2) O fã é um componente vital para a cultura participativa. Eles fazem parte da cultura de massa, do mainstream, conquistando um papel central para os grandes conglomerados de mídia, uma vez que, juntos, conseguem mostrar a força de um produto, por menor que ele possa ser considerado, gerando muito dinheiro a partir de seu interesse em consumir determinado universo e possibilitando sua expansão e o surgimento de mais produções voltadas para o seu público. 45 46 Revista Época. Disponível em: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/10/uma-nova-geracao-de-bdrag-queensb.html Disponível em: https://www.facebook.com/events/274522929379396/ Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 104 REFERÊNCIAS AMARAL, Adriana. NATAL, Geórgia. VIANA, Luciana. Netnografia como aporte metodológico na pesquisa em comunicação digital. Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/viewFile/4829/3687.Acessa . Acesso em 20/10/2014. ANDERSON, Chris. A cauda longa. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda, 2006. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BOLTER, David & GRUISIN, Richard. Remediation: understanding new media. Massachussetts, Cambridge: MIT Press, 1999. GARCIA, Deomara. PIRES, Cristiane. VIEIRA, Antoniella. A explosão do fenômeno: Reality Show http://www.bocc.ubi.pt/pag/garcia-deomara-reality-show.pdf Acesso em 30/10/2014. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008. LEAVITT, Jonathan D., CHRISTENFELD, Nicholas J.S. Story Spoilers Don't Spoil Stories. Disponível em http://pages.ucsd.edu/~nchristenfeld/Publications_files/Spoilers.pdf Acesso em 07/11/2014. LEVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do espaço. São Paulo: Edições Loyola, 1998. MONTEIRO, CAMILA. Fandom: Cultura participativa em busca de um ídolo. http://www.usp.br/anagrama/Monteiro_Fandom.pdf Acesso em 01/11/2014. RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 105 ENSAIO REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA E COLABORAÇÃO: a plataforma digital como suporte de preservação da memória cultural Juliana CAMPOS LOBO47 RESUMO: Pretende-se uma reflexão sobre a preservação e arquivamento da memória cultural, com a utilização das plataformas digitais online, a partir de exemplos como o caso do museu virtual e colaborativo Museu da Pessoa, e o Portal Porta-Curtas, que exibe e cataloga curta-metragens nacionais brasileiros. Recebe destaque a representação da memória cultural no contexto das plataformas digitais, a partir dos novos recursos tecnológicos, que sugerem a transposição de limites tradicionais ligados à experiência e à rememoração. Considera-se ainda o processo colaborativo online, que surge a partir da mudança de postura do usuário, diante dessas plataformas. PALAVRAS-CHAVE: Memória cultural. Plataforma digital. Colaboração. Preservação ABSTRACT: The aim of this paper is to reflect on the preservation and archiving of cultural memory, with the use of online digital platforms, from examples such as the case of virtual and collaborative museum Pessoa Museum, and the Portal Porta Curtas, which displays and catalogs Brazilian nationals short films. It is highlighted the representation of cultural memory in the context of digital platforms, from the new technological resources that suggest the implementation of traditional boundaries linked to the experience and recollection. It is still considered the online collaborative process that arises from the change in posture of the user, on these platforms. KEYWORDS: Cultural memory. Digital platform. Colaboration. Preservation. 1. Introdução Eu nunca entendi quando o passado começa ou onde ele termina, mas se cidades mapeiam o passado com estátuas feitas de bronze imobilizadas para sempre numa posição digna, por mais que eu tente fazer o passado ficar imóvel e se comportar com educação, ele se movimenta e fala comigo todo dia. [Em Nadando de Volta para Casa, de Deborah Levy]. De algum modo, ainda vivemos em tempos de mudanças. O uso da internet e das ferramentas que a acompanham, especialmente aquelas relacionadas às tecnologias da 47 Aluna do Doutorado em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais e mestre em Comunicação Multimédia pela Universidade de Aveiro. É bolsista de doutorado pela CAPES. Possui bacharelado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected] Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 106 informação e comunicação (TIC), em vários setores da sociedade, é um fenômeno crescente e, porque não ousar afirmar, irreversível. Viver em uma sociedade que se transforma muito rápido e onde, continuamente, o trânsito de informação assume um papel central, instiga também a desenvolver outras habilidades para lidar com tanto pluralismo. É por este motivo que muitos relacionam estas mudanças ao surgimento da internet – que se tornou um tecido vital, como “um meio para tudo que interage com o conjunto da sociedade [...], apesar de ser tão recente em sua forma societária” (CASTELLS, 2010, p. 255) – e ao advento das redes sociais, as quais podem ser abordadas por diferentes perspectivas. Ao adentrarmos neste assunto, as justificativas para se creditar que a internet e as redes sociais são “responsáveis” pelas mudanças mais significativas na organização social contemporânea correspondem, fundamentalmente, a duas situações: ao desenvolvimento excepcional das comunicações, que possibilitou a conexão entre pessoas onde havia isolamento; e à valorização da relação entre pessoas e entre pessoas e as coisas. Estas duas razões explicam, em particular, a importância que a internet e as redes sociais assumiram tanto no nível do conhecimento, quanto no nível da prática (LEMIEUX, 2000). No entanto, para Jenkins (2010), tais mudanças podem ser apropriadamente explicadas pela convergência, conceito que consegue “definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam estar falando” (p. 29). Nesse ínterim, a convergência abarca: o fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, a cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e o comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam (IBID, p. 29). É nesse contexto que são abordados os exemplos do Museu da Pessoa e do Portal Porta Curtas, enquanto plataformas digitais colaborativas, que têm a memória cultural depoimentos, imagens, vídeos, filmes, curtas - preservada através de recursos tecnológicos que são representativos do que Jenkins nomeia como Era da Convergência. 5. Revisão bibliográfica a. A colaboração no ciberespaço Foi com os recursos disponibilizados pela Web 1.0 que se conheceu as primeiras mudanças tecnológicas, sociais e culturais, quando, através de um simples clique, era possível mudar de um site para outro e acessar uma variedade significativa de conteúdos disponíveis. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 107 Anos depois, com o surgimento da intitulada Web 2.0, de simples usuários passamos a ser produtores de informação e conteúdos, colaboradores, já que anteriormente, por exemplo, a divulgação pública de informação não permitia o alcance direto do cidadão comum. Logo, essencialmente alicerçada pela democratização no uso da rede, onde é possível não apenas acessar conteúdos, mas também transformá-lo, reorganizá-lo, classificá-lo e compartilhá-lo, possibilitando a emergência de um tipo de inteligência proveniente da interação entre os agentes em comunicação - a inteligência coletiva48 (LÉVY, 2007) -, a Web 2.0 apresenta como principal característica a colaboração. Nesse contexto, a dinamicidade, interatividade e flexibilidade dos conteúdos e publicações propiciaram o desaparecimento da estaticidade que possuíam e possibilitaram um espaço para as suas edições, feitas pelos próprios usuários e não somente por profissionais da área. Assim, diante de tantas vantagens, torna-se imprescindível um olhar atento sobre as potencialidades que a web oferece, especialmente por colocar o antigo usuário num lugar privilegiado, onde lhe é dada a possibilidade de se tornar um prosumer49 (produtorconsumidor) de conteúdo para a rede. b. A representação da memória cultural na plataforma digital Os processos de comunicação possuem uma relação com a realidade concreta e com a experiência, a qual, segundo Rodrigues (1999), está vinculada a um conjunto de saberes fundados no hábito. Por esse motivo, a experiência é dependente “dos mecanismos da memória, da capacidade de rememoração que os humanos possuem, da capacidade de rememorar, no presente, o passado e de prever o futuro, a partir da rememoração presente do passado” (RODRIGUES, 1999, p. 5-6). Por isso, a memória é constituinte de um agente social, que vive e age neste mundo histórico e cultural. O sociólogo francês Maurice Halbwachs (1990) foi um dos primeiros teóricos a tratar da memória, afirmando que a memória individual existe a partir de uma memória coletiva 50 termo criado por ele -, já que as lembranças são constituídas no interior de um grupo, ou seja, a partir das relações e da interação social. Em adição, a origem de várias ideias, reflexões, 48 Estudos recentes intitulam essa mesma propriedade de “ecologia cognitiva” (SANTAELLA & LEMOS, 2010, p. 25). Termo criado por Alvin Toffler (2012). É um neologismo originário da língua inglesa e que corresponde à união das palavras producer (produtor) + consumer (consumidor) ou professional (profissional) + consumer (consumidor). 50 Faz referência à Sociologia tradicional de Émile Durkheim. 49 Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 108 sentimentos e paixões que nos são atribuídas, são, sobretudo, inspiradas pelo grupo social do qual fazemos parte e pela língua que nos une. Contudo, ainda que a concepção de Halbwachs tenha estabelecido um “território conceitual” para a memória, o reaproveitamento dos seus estudos pelas Ciências Humanas e Sociais trouxe uma separação de entendimento no que tange à memória individual (ou neurobiológica) e à memória coletiva (ou social e histórica). A quantidade de conceituações corresponde à distinção dos objetos científicos. Porém, atendo-se à consideração de Halbwachs (1990), em que a memória individual existe a partir de uma memória coletiva, o elo entre as reminiscências do sujeito e as do grupo social, no qual esse mesmo sujeito está incluído, pode fazer referência à língua e ao laço cultural que os congrega, o que, consequentemente, gera a interação social. Logo, o laço cultural e a interação social colaboram para a constituição de uma memória individual e coletiva, que juntas concretizam a memória cultural. E por que memória cultural? Primeiramente, porque o homem, enquanto ser cultural51, não age isoladamente e, por isso, a sua memória cultural “está diretamente ligada ao patrimônio de um povo, pois gera, a partir da sua cultura, tomada em manifestações naturais, materiais, um ponto de referência de sua identidade e as fontes da sua inspiração” (CARNEIRO, 2006, p. 20). Em outras palavras, são os elementos formadores da identidade cultural de um grupo, constituídos ao longo de sua história. Refere-se, portanto, ao seu acervo cultural, contribuindo para seu modo de fazer, ser, sentir e se expressar, pois é um fator de identificação do indivíduo em relação a si mesmo e ao grupo. É importante ressaltar que as duas plataformas aqui analisadas possuem, enquanto característica comum, recursos tecnológicos relacionados à memória cultural, destacando que esta já pode ser analisada no contexto de mediação tecnológica. Ou seja, a memória cultural já pode ser registrada em novos espaços de interação social e a partir de novos instrumentos de preservação, tendo em vista que o conceito de memória está estritamente ligado às transformações tecnológicas e sociais que a Sociedade em Rede vive, inclusive no que tange à natureza plástica que adquiriu com as novas experiências de rememoração e de representação pelos usuários através das plataformas digitais. 51 O homem cria e utiliza símbolos para associar significados a todas as coisas. É por meio desses símbolos que se pode transmitir a cultura de geração em geração, em uma ação contínua de criação, transformação, aperfeiçoamento e recriação. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 109 6. Método Para subsidiar a proposta deste ensaio, o método utilizado foi a avaliação analítica de uma postagem do Museu da Pessoa, disponibilizada no canal do Museu no YouTube, e outra do Portal Porta Curtas, na seção dos curtas mais vistos e comentados. As postagens foram escolhidas pelos critérios de quantidade de visualizações, compartilhamento, comentários e marcações como favoritos. Vale destacar que na avaliação analítica tem lugar a descrição de como se efetiva o processo colaborativo do conteúdo por parte do usuário, ressaltando as etapas em que ele ocorre, a comunicação de cada plataforma com o prosumer e a forma como é feita a exposição desse conteúdo. 7. Procedimento a. Memória cultural e colaboração: estudo analítico das plataformas Museu da Pessoa e do Portal Porta Curtas No contexto das plataformas digitais, é possível observar novas características estruturais e novos processos construtivos que parecem marcar, com mais nitidez, os recursos tecnológicos dos últimos anos. Tais recursos são delineados pela inserção das tecnologias da informação e da comunicação na produção, no consumo e na circulação da informação, e pelo estreitamento da noção de espaço e tempo em que se move a sociedade contemporânea. Hoje, novas sensibilidades, novos conceitos estéticos e novas formas de experenciar o mundo são transportadas para a tela, através dessa diversidade, cada vez maior, de recursos tecnológicos que contribuem para o desenvolvimento da plataforma digital do nosso tempo, como possível ferramenta de armazenamento de uma dada memória cultural. Portanto, as plataformas digitais surgem como um meio habitado na web, utilizadas, sobretudo, para o lançamento de conteúdo. Ao levantar algumas tendências gerais, ressalva-se o processo colaborativo, mediado pelo ciberespaço nas plataformas digitais, como uma das características decisivas na definição dessas mudanças mais recentes. No entanto, esse processo de colaboração sugere aspectos que estão diretamente relacionados ao fluxo de comunicação, como a necessidade de partilhar, de estabelecer um contato em que se pretenda um resultado comum. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 110 Nesse sentido, ao considerar o outro, o prosumer, como um elemento relevante neste processo, as trocas e negociações tornam-se inevitáveis, assim como a percepção em torno da relação, que pode inferir outro tipo de complexidade. No entanto, a cultura digital e as recentes mudanças tecnológicas oferecem às plataformas digitais um espaço de convergência, já que possibilita outro mecanismo na troca de ideias, na construção do conhecimento e no relacionamento social. A partir disso, alcança-se o que Howe (2008) conceituou como colaboração ou crowdsourcing. Para ele, o termo representa, a atribuição de uma função que é desempenhada por profissionais e que pode ser desenvolvida por um grupo indeterminado e amplo de indivíduos, como um apelo à colaboração. Assim como no processo comunicacional, com a introdução de novos suportes midiáticos, a colaboração no ciberespaço, que se concretiza por meio das plataformas, “conforma novos espaços culturais, sendo capaz de alterar as interações sociais e a estrutura social em geral” (SANTAELLA, 2005, p. 11). Nesse sentido, e retomando a representação de uma dada memória cultural, observa-se em alguns casos a plataforma digital como ferramenta de armazenamento e preservação dessa memória, através do processo de colaboração digital. No entanto, isso se torna possível especialmente pela recontextualização em que a memória é processada e da sua natureza plástica em efetuar novas conexões que garantem outras linguagens de preservação. Para ilustrar, apresentamos a seguir os exemplos do Museu da Pessoa, em São Paulo-Brasil, e do Portal Porta Curtas. 4.1.1 Museu da Pessoa A iniciativa do que hoje se conhece por Museu da Pessoa nasceu de uma experiência realizada em dezembro de 1991, no Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, durante a exposição Memória e Migração, que apresentava a trajetória de imigrantes judeus para o Brasil e tratava, por meio de inúmeras atividades, as memórias dos imigrantes em São Paulo. Dentro da exposição, disponibilizou-se um estúdio para que toda pessoa interessada viesse contar sua história. A experiência confirmou tanto a demanda pelo espaço em compartilhar a própria história, quanto a riqueza que cada história de vida revelava, concretizando a estrutura que o museu dispõe atualmente. Considerado um museu virtual e colaborativo de histórias de vida, o Museu da Pessoa propõe ao visitante que se torne parte do acervo ao registrar sua história de vida, ou que Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 111 assuma a função de curador, na medida em que pode montar e publicar suas próprias coleções de histórias, imagens e vídeos. Atualmente, o acervo do museu contabiliza mais de 16 mil depoimentos em áudio, vídeo e textos, além de 60 mil fotos e documentos digitalizados. Para se ter uma dimensão preliminar da forma como se dá a produção e circulação do conteúdo audiovisual do museu, que em média possui de 7 a 25 visualizações, escolheu-se o depoimento audiovisual mais visualizado e comentado disponibilizado no canal do Museu da Pessoa no YouTube. O vídeo postado em 16 de outubro de 2012 corresponde à história de vida do Pastor Dione dos Santos, que possui 3.585 visualizações, 7 comentários, 11 “gostos” e 2 “não gostos”. Dione dos Santos é um sujeito social anônimo, que é ex-presidiário e hoje trabalha com a evangelização em presídios. A intenção de fazer um vídeo sobre sua história de vida partiu de sua vontade, deixando a cargo da equipe de filmagem do Museu da Pessoa fazer o trabalho de capturação da imagem e edição do vídeo. No entanto, a colaboração no envio de vídeo não perpassa apenas pela intenção de gravá-lo com o auxílio da equipe. O usuário colaborador que quiser ter sua história de vida registrada na plataforma do museu tem a opção de efetuar um cadastro, com a inserção de dados pessoais, uma descrição sobre o depoimento, fotos, título e tags. O vídeo fica disponível no canal do YouTube do Museu e pode ser favoritado, comentado e compartilhado. Porém, o fluxo de partilha ainda é significativamente pontual. Esse dado sobre o fluxo de partilha foi também verificado a partir dos conteúdos disponibilizados nos perfis de outras redes sociais virtuais - Facebook, Twitter, Instagram e Google+ -, que o Museu da Pessoa possui, mas que também não evidencia nenhum link, nesta data, para o depoimento do pastor. Nesse sentido, a maioria dos conteúdos disponibilizado nas demais plataformas corresponde a outras informações referentes ao museu, mas não estritamente ligadas aos depoimentos audiovisuais. Quanto aos comentários postados na página do depoimento no YouTube, os usuários apenas parabenizam o pastor pela sua trajetória religiosa e por compartilhar a sua história de vida 4.1.2 Portal Porta Curtas Desenvolvido em agosto de 2002, o Porta Curtas é uma plataforma que objetiva não apenas catalogar os melhores curtas-metragens brasileiros para a internet, mas também formar um painel representativo da produção nacional de curtas no que concerne as décadas, técnicas, tendências e elencos. O portal, que conta com o patrocínio da Petrobras, é pioneiro na internet Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 112 nacional brasileira, pois todos os curtas disponíveis são exibidos em sua forma original, sem cortes, e os direitos autorais dos idealizadores são sempre respeitados. Dentre os portais que exibem produtos audiovisuais já existentes no Brasil, a característica mais marcante do Porta Curtas é que o foco principal reside na promoção dos curtas também através de outros sites, garantindo uma difusão mais ampla. Segundo as informações disponibilizadas no portal, “webmasters, editores e blogueiros podem escolher filmes que sejam adições interessantes ao conteúdo de seus sites e receber um link que permite que o curta seja exibido a partir deles. A disponibilização de links para outros sites é um serviço automático e gratuito para todos” (PORTA CURTAS, 2014). Assim, é sugerido que a circulação do conteúdo audiovisual não fique restrita somente ao portal. Quanto à produção de conteúdos, esta se estrutura de duas formas: a partir da catalogação de curtas feita pela própria equipe do Porta Curtas e pela colaboração dos prosumers. A colaboração se efetiva através de um contato de e-mail pelo portal ou pelo envio de uma ficha técnica completa ou de um DVD para o endereço da curadoria do Portal Porta Curtas. O trabalho é avaliado por uma comissão editorial do portal, a partir de critérios qualitativos e técnicos (incluindo adaptação para ser exibido via internet). Assim, tomando por base o mesmo critério de análise do Museu da Pessoa, o curta mais visualizado e comentado é O jaqueirão do Zeca, que possui 56.008 visualizações e 30 comentários. O vídeo foi postado em 2004, no mesmo ano em que estreou em festivais no Rio de Janeiro - RJ, e trata da escolha do repertório do cantor e compositor brasileiro Zeca Pagodinho, com a organização de uma grande roda de samba em que sambistas emblemáticos são personagens indispensáveis ao curta. Os 30 comentários relacionados ao vídeo giram em torno da popularidade do cantor, de congratulações pela iniciativa do vídeo e apenas um usuário pergunta como faz para adquirir o curta. Não há qualquer compartilhamento do vídeo, pois, para fazê-lo, apesar de ser gratuito, como informado pela plataforma, é preciso solicitar ao portal o link de acesso do produto. Nos outros perfis das redes sociais, particularmente no Facebook e Twitter, são feitas chamadas para os vídeos do portal. Porém, como a postagem do curta O jaqueirão do Zeca é mais antiga, não há nenhuma referência sobre ele nessas plataformas. Desde 2012, o portal também dispõe de um blog, em que são abordados o cotidiano da equipe, os novos projetos, festivais e os novos curtas disponibilizados. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 113 8. Considerações finais A abordagem em torno da representação da memória cultural, a partir das plataformas digitais, está hoje relacionada a transformações sociais e tecnológicas que atingem o conceito de presença, copresença e de contemporaneidade, onde “tudo está ligado 52”. Em uma dimensão temporal, a noção de memória se altera, tanto pela sua natureza plástica quanto pelos suportes e plataformas que permitem reavivar e reproduzir a experiência. De certa forma, o próprio suporte já sugere outra forma de interação, que pode estar ancorado na particularidade de cada acesso, na retomada de “velhos” conteúdos e na transformação em atuais novamente. A partir das considerações aqui estruturadas, percebe-se que algumas colaborações tocam-se com a leveza e a efemeridade. Algumas ainda envolvem contribuições regulares, outras já sugerem colaborações mais estáveis, já que a cultura da internet é muito mais do que a transferência de conteúdos: torna-se continuamente mais social e comunal (PREECE & SHNEIDERMAN, 2009). Por isso, o incentivo para que as pessoas colaborem vem especialmente por meio de ações visíveis, além da troca de capital social. Essa percepção está ligada ao crescente envolvimento do prosumer, enquanto produtor e consumidor ativo dos conteúdos disponibilizados em plataformas digitais, nomeadamente aquelas direcionadas à memória cultural. Tanto o Museu da Pessoa, quanto o Portal Porta Curtas possuem um número expressivo de envio de conteúdo, mas não se identifica ainda uma replicação significativa desse material em outras plataformas. Por fim, admite-se que as relações entre os prosumers ainda são flexíveis e instáveis, e que há uma adaptação e customização em constante progresso por parte dos usuários nessas plataformas. REFERÊNCIAS BARÁBASI, Albert-Lásló. Linked: How everything is connected to everything else and what it means for business, science and everyday life. New York: Plume, 2003. CARNEIRO, Henrique Figueiredo. Banalização do patrimônio cultural e consequencias perversas para a vida na cidade. In: MARTINS, C. (org.). Patrimônio Cultural: da memória ao sentido do lugar. São Paulo: Roca, 2006. 52 Expressão que faz referência à obra de Albert-Lásló Barábasi: Linked. How Everything is connected to Everything Else and What it means for Business, Science and Everyday Life (2003). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 114 CASTELLS, Manuel. The rise of network society. Oxford and Malden, Mass: Blackwell, 2001. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. HOWE, Jeff. Crowdsourcing - Why the Power of the Crowd is Driving the Future of Business. Crown Business. ISBN 0307396207, 2008. JENKINS, Henry. Cultura da convergência: a colisão entre os velhos e novos meios de Comunicação. Tradução Susana Alexandria. 2ª ed. São Paulo: Aleph, 2008. LEMIEUX, Vincent. À quoi sert les réseaux sociaux?. Québec: Les Éditions de l’IQRC, 2000. LEVY, Deborah. Nadando de volta para casa. Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2014. LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. 6ª ed. 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Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 115 RELATO DE PESQUISA CORPO NU: uma análise do ensaio fotográfico de nudez masculina como arte Aline Cristina Azoubel OLIVEIRA53 Thaís Fernanda dos Santos TORRES54 Tâmara dos Santos CANTANHÊDE55 Mary Aurea de Almeida Costa EVERTON56 RESUMO: O corpo porta um fascínio e magia presentes nas representações de artistas clássicos e contemporâneos. Embora a representação do homem nu não seja um tema novo no universo das artes, ela foi pouco desenvolvida na fotografia artística. O Projeto, “Corpo Nu: ensaio fotográfico como arte” foi pensado para firmar caminhos de futuras produções que abordem a fotografia do nu masculino pela ótica da arte, e como produção, fomentar a análise contemplativa e a leitura poética presente nas estigmatizadas fotografias de nu. ABSTRACT: The body carries a fascination and magic present in representations of classic and contemporary artists. Although the representation of the naked man is not a new theme in the universe of the arts, she was undeveloped in artistic photography. The Project, “Nu Body: photo essay as art” was thought to establish paths that address future production photography of the male nude from the perspective of art, and as production, encourage contemplative and poetic analysis in reading this stigmatized photographs naked. PALAVRAS-CHAVE: Fotografia artística; corpo masculino; nudez; ensaio fotográfico. KEYWORDS: Artistic Photography; male body; nudity; photo essay. 53 Estudante do 5º. Período do Curso de Comunicação Social Habilitação Jornalismo, email:[email protected], telefone:(98) 8166-9693 54 Estudante do 6º. Período do Curso de Comunicação Social Habilitação Jornalismo, email:[email protected], (98) 8105-2534 ou (98) 8708-5404 55 Estudante do 7º. Período do Curso de Comunicação Social Habilitação Jornalismo, email [email protected], telefones: (98) 8871-6717 ou (98) 8153-8858 56 Orientadora do artigo e ensaio fotográfico. Técnica do Laboratório de Fotografia do Departamento de Comunicação Social – UFMA. Professora do Curso de Pós-Graduação lato sensu em assessoria de comunicação: política, setor público e organizações, Faculdade São Luís (2012), Professora do Curso Comunicação Social Habilitação Publicidade e Propaganda e Administração e Marketing, Coordenadora Adjunta do curso de Comunicação Social da Habilitações Jornalismo e Publicidade e Propaganda – Faculdade São Luis (2002-2008), Professora Substituta do Curso de Comunicação Social - UFMA das Habilitações Jornalismo, Rádio e Tv e Relações Públicas (2005- 2008); Professora dos Cursos de Comunicação Social Habilitação Publicidade e Propaganda, Marketing e Propaganda, Marketing Estratégico, Design de Moda – UniCeuma (2002-2011); Pós-Graduada em Didática Universitária FAMA (2004), 4 Graduada em Comunicação Social Habilitação Publicidade e Propaganda UniCeuma (2001), Fotógrafa profissional (1994), email:[email protected], telefone: (98) 9115-4042 Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 116 1. introdução A maneira como o corpo humano desnudo é percebido e compreendido pela sociedade passou por inúmeras transformações ao longo do tempo. Contudo desde a Antiguidade Clássica a nudez é um tema presente nas artes, tanto que logo após o surgimento da fotografia houveram tentativas de fotografar o nu, e em uma das primeiras imagens, de Hippolyte Bayarde57 (1801-1887), não se nota qualquer relação com erotismo ou pornografia, mas com a forma humana. Com o passar do tempo a fotografia registrada no século XX de corpo nu, tanto masculino como feminino, foi ganhando destaque devido à imagem ser mais realista se comparada com a pintura e a escultura daquela época. Porém, a sociedade condenou os modelos de nu como depravados e imorais. Tal associação se deu principalmente pelo surgimento dos pin- up, cartões eróticos lançados na virada do século XX que fizeram muito sucesso durante duas décadas. Assim, o mercado pornográfico, muito lucrativo, rendeu-se à fotografia fazendo com que o nu artístico fosse visto com desconfiança e descrédito. Desse modo, é necessário diferenciá-lo dos outros tipos de nus. 2. Sobre os conceitos e as interpretações O corpo humano pode ser percebido como uma obra de arte. Seus músculos, simetria, formas, contornos e detalhes são exemplos de uma notável composição artística que expressa toda beleza com sua perfeição ou imperfeição. Não há nada mais natural e único que o corpo humano despido. Todavia, a nudez artística ainda é pouco compreendida e aceita, mas ficar nu é inevitável ao homem. O corpo humano é a fonte de quase todas as inspirações. A nudez é sempre inquietante, instigadora e bela. Por isso o artista, seja na pintura, escultura, na dança ou fotografia, encontra no corpo nu uma profunda ligação com a pureza do ser (DE PAULA, 2011). Como uma tendência natural, a nudez em todo tempo foi e continuará a ser um meio pelo qual o homem busca uma conexão com o seu próprio ser, com a criação e com a sociedade. Segundo Rodrigues (1975) o corpo possui a marca da vida social, manifestada na 57 Foi um pioneiro da fotografia e obteve o registro fotográfico do seu próprio corpo desnudo por meio do processo em positivo sobre papel. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 117 preocupação de toda sociedade em fazer produzir nele certas transformações que escolhe de um repertório cujos limites não se pode definir. A análise dos contornos e formas presente nos registros em preto e branco permite concluir que o corpo se assemelha a uma massa de modelagem na qual a sociedade imprime suas próprias características, isso é, maneiras de projetar a fisionomia do seu próprio espírito. Mas antes da contemplação, existe uma longa discussão acerca dos limites da arte, do erotismo e da pornografia nos registros artísticos, pois muitas produções tendem ao apelo de cunho sexual, se tomarmos como ponto de partida a exploração e atual banalização dos corpos, principalmente o feminino - exposto a maior parte do tempo pelo olhar de homens nos mais diversos tipos de artes. Para compreender o que não se considera como fotografia artística de nu, recorremos ao seguinte conceito de pornografia: “expressões escritas ou visuais que apresentam, sob a forma realista, o comportamento genital ou sexual com a intenção deliberada de violar tabus morais e sociais” (Gregori, 2004: 236). Longe dessa noção, “Corpo nu: ensaio fotográfico como arte” inverteu o gênero por trás da objetiva. O masculino posa para o feminino, e corpo humano em sua essência é capturado por mulheres que buscam transmitir por meio da arte a expressão máxima da beleza, do movimento do corpo e não apenas dos atributos físicos do modelo. O ensaio foi desenvolvido em estúdio, onde as poses e a iluminação podem ser manipuladas, propiciando um resultado facilitado pelo controle dos elementos fundamentais na composição. A beleza dos registros em preto e branco capturam as texturas com mais detalhes e neutralizam a variada exposição de cores - capaz de produzir sentidos e reações mais próprias das fotografias de nu erótico e pornográfico. Assim, a essência do ensaio analisado encontrase na frase de Willian Blake , definida como na frase: “a arte jamais poderia existir sem expor a beleza da nudez”58 (Borges, 2013), sem contemplar artisticamente os contornos e formas que o nu masculino é capaz de expressar. 58 BORGES, Rejane O corpo humano causa fascínio e é exaltado como algo naturalmente belo. Como instinto, a nudez sempre foi e será o meio pelo qual o homem busca uma conexão com o seu próprio ser e com a criação. Disponível em: <http://obviousmag.org/archives/2011/01/qual_o_limite_que_as_separa_a_arte_da_pornografia.html> Acesso em 13 jan. 2013 Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 118 3. Métodos e técnicas utilizados Leitura de periódicos, livros e análise de imagens fotográficas de corpos nus serviram de inspiração e auxiliaram a equipe para a concepção do ensaio. Uma das revistas mais exploradas para o estudo foi a Fotografe Melhor dos anos de 2011 a 2013, em virtude do seu alto conceito no meio fotográfico e também por possuir um vasto acervo sobre o tema. Durante a pesquisa alguns pontos eram recorrentes nas discussões do grupo e foram adotados como regras para a boa realização do trabalho, por exemplo: uma iluminação de penumbra, importante para não evidenciar todas as partes do corpo e principalmente a genitália; baixa profundidade de campo, para guiar o olhar e direcionar uma leitura ao ponto de interesse; regra dos três terços na composição, para criar um equilíbrio e o desequilíbrio do corpo desnudo por meio das intersecções e dos pontos de destaque na imagem; ISO (Institute for Standeardization Organization) alto de 400, para permitir fotografar com pouca iluminação, abertura de diafragmas pequenos e tempo de exposição entre 1/30s (segundo) a 1/125s, o que permitiu uma maior profundidade de campo e maior possibilidade de paralisar movimentos sem deixar trepidados; planos e enquadramentos fechados para destacar as linhas, as formas e a textura da pele, levando o leitor a uma interpretação mais artística e real do corpo nu. Nessa direção, seguem as especificações técnicas de cada registro fotográfico como APÊNDICE A: a) Foto 1: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – sRGB (standard Red, Green e Blue).; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 22mm (milímetro); Abertura diafragma – F/3,8; Tempo de exposição – 1/50s; Modo de medição – Padrão; b) Foto 2: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 25mm; Abertura diafragma – F/5,6; Tempo de exposição – 1/80s; Modo de medição – Padrão; c) Foto 3: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 26mm; Abertura diafragma – F/4; Tempo de exposição – 1/50s; Modo de medição – Padrão; d) Foto 4: modelo de câmera – Nikon D3000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – Não calibrada; Flash usado – sem flash; Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 119 Comprimento focal – 42mm; Abertura diafragma – F/5,3; Tempo de exposição – 1/30s; Modo de medição – Padrão; e) Foto 5: modelo de câmera – Nikon D3000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – Não calibrada; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 24mm; Abertura diafragma – F/4; Tempo de exposição – 1/30s; Modo de medição – Padrão; f) Foto 6: modelo de câmera – Nikon D3000 Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – Não calibrada; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 55mm; Abertura diafragma – F/5,6; Tempo de exposição – 1/30s; Modo de medição – Padrão; g) Foto 7: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – Não calibrada; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 22mm; Abertura diafragma – F/3,8; Tempo de exposição – 1/50s; Modo de medição – Padrão; h) Foto 8: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 35mm; Abertura diafragma – F/34,5; Tempo de exposição – 1/50s; Modo de medição – Padrão; i) Foto 9: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 58mm; Abertura diafragma – F/10; Tempo de exposição – 1/30s; Modo de medição – Padrão; j) Foto 10: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 90mm; Abertura diafragma – F/5,6; Tempo de exposição – 1/80s; Modo de medição – Padrão; k) Foto 11: modelo de câmera – Nikon D7000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento focal – 80mm; Abertura diafragma – F/5,3; Tempo de exposição – 1/125s; Modo de medição – Padrão; l) Foto 12: modelo de câmera – Nikon D3000; Marca do agrupamento – Nikon Corporation; Representação de cores – sRGB; Flash usado – sem flash; Comprimento Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 120 focal – 55mm; Abertura diafragma – F/5,6; Tempo de exposição – 1/30s; Modo de medição – Padrão. 4. Descrição do processo O ensaio foi elaborado mediante um prévio conhecimento na área técnica da fotografia somado ao longo e demorado processo de pesquisa que conduziu a criação de imagens em uma configuração teatral de um corpo humano masculino desnudo. A escolha do ator e bailarino Luciano Barros Teixeira, vinte e três anos, que faz parte da Companhia Teatral Miramundo Produções Culturais e do Grupo Teatral Improviso, ocorreu devido à facilidade de exploração de uma narrativa corporal expressiva carregada por uma composição satisfatória e um objetivo artístico autêntico. A personalidade extrovertida e comunicativa do modelo tornou a sessão mais íntima; diante de suas habilidades dramáticas e da sua flexibilidade que, permitiram poses mais técnicas e acrobáticas; além da percepção artística das fotógrafas, por meio da qual o resultado não seja a realização de imagens chocantes ou de desejo sexual. Cada aluna/fotógrafa usou seu próprio equipamento, uma utilizou a câmera Nikon D3000 com lente 18-55mm f/3.5-5.6G59 VR II (Vibration Reduction) AF-S (Build in Auto Focus Motor) DX e as outras utilizaram câmeras Nikon D7000 com lente 18-105mm f/3.55.6G ED VR AF-S DX60 . O estúdio foi montado no Laboratório de Fotografia do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, São Luís - MA61 . Equipado com duas fontes artificiais de luz básica contínua, sendo um, refletor profissional leds CN-160 lâmpadas - com fluxo luminoso de 660LM, temperatura de cor 3200/5400K (Kelvin) e filtro difusor em acrílico; e um par de lâmpadas fluorescentes fixadas no teto do estúdio com temperatura de cor 4000/5000K com intensidade de luz média. A fim de promover efeitos interessantes de penumbra que causasse um ar de mistério e devaneio, experimentaram-se possibilidades alcançadas por meio de um posicionamento das iluminações, uma fixa no teto e outra móvel (que ora vinha de baixo para cima, dando uma leitura de luz dramática, ou de cima para baixo, que propagou um brilho etéreo e misterioso; e ora mais distante ou mais perto e posicionada em um dos lados do fotografado que levou a acentuar com mais ou menos luzes apenas uma das áreas retratadas). 59 Lentes controladas eletronicamente, não apresentam anéis no tambor. 60 São lentes exclusivamente desenhadas para câmeras digitais SLR da Nikon, levando em consideração seu fator de corte. MARANHÃO 61 Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 121 Os contrastes experimentados na iluminação foram desenvolvidos com o objetivo de criar as altas-luzes ou as áreas totalmente escuras que proporcionaram a forma como a luz caia sobre o corpo desnudo. Criou-se um aspecto autêntico e natural nas imagens ao se esculpir o corpo nu por meio da luz em que são destacadas algumas áreas e escondidas outras, com a intenção de despertar o ponto de interesse em que o leitor buscará olhar ou analisará primeiro na fotografia. Pela possibilidade de capturar vários tons em uma única escala de cinza, o corpo desnudo entrou em harmonia com o contraste entre o claro e o escuro, ficando mais acentuado com a penumbra devido o uso de duas fontes de luz e pelo fundo infinito de tecido preto razoavelmente grosso somado ao tom da pele do modelo. Essa ausência de cor levou a equipe a dar mais atenção às texturas do corpo, bem como dos acessórios cênicos utilizados durante o ensaio. Assim, essas áreas de sombras e iluminação acentuada ou difusa devem direcionar o olhar do leitor para profundidade do interesse visual das fotografias. Registrar foco total ou desfoque total do corpo despido foi necessário para atrair a atenção para uma área especifica da imagem que servirá como conexão com o observador. Tal recurso de alta e baixa profundidade de campo foi resultado de: aberturas de diafragma, variadas entre 5.6f a 3.8f; posicionamento das fotógrafas em relação ao modelo e pelas lentes zoom que variam de grande angular a teleobjetiva. Assim, a técnica fotográfica possibilitará ao leitor percorrer a imagem e descobrir que o corpo nu está em harmonia com a luz, com o fundo e com os acessórios. O processo de pós-produção das fotografias sofreu poucas manipulações no software Adobe Photoshop CS2(Creative Suite), mas importantes para uma reprodução adequada da tonalidade de cinza desejada. 4.1 Fotografias Durante a observação do conjunto de fotografias é possível verificar a existência de dois grupos de imagens que determinam a própria natureza da significação: o corpo nu completo e com poses artísticas e a nudez masculina em detalhes. A composição e a perspectiva dos grupos reafirmam as diferentes formas artísticas que um corpo despido pode ser fotografado de forma artística com impacto visual sem provocar, necessariamente, o desejo sexual. O ensaio não é resultado de uma composição perfeita, mas a combinação de elementos. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 122 4.1.1 Nu completo em poses artísticas Na primeira modalidade, a caracterização pressupõe a utilização do Plano Geral (PG) e o Plano Conjunto (PC) que servem para limitar o cenário composto por um fundo infinito preto e a nudez por inteiro, ou parcial, com alta profundidade de campo de acordo com APÊNDICE A: A foto 1 tem o enquadramento central na horizontal, proporcionando a captura do corpo inteiro, da pose e valorizando ainda mais a expressão do modelo. A iluminação também foi muito importante para ajudar na leitura da imagem; posicionada acima da cabeça do modelo e pelas costas, ajudou a esconder as partes intimas, valorizando as formas e transformando uma pose considerada muitas vezes sensual em leve e primorosa. O emprego do plano aberto foi escolhido na foto 2 para evidenciar o desenho composto pelas formas do corpo em pose fetal e de bruços, bem como cabelo disposto sobre o fundo infinito; transmitindo a ideia de pureza e remetendo a lembrança do nascimento do bebê em seus primeiros momentos de vida. Já na foto 3, o enquadramento na diagonal contribuiu para a super valorização das linhas corporais do modelo que se sobrepõem à textura do cenário e formam uma composição harmônica. A pose do modelo, a direção da iluminação (posicionada em cima) e a inclinação da câmera destacaram ainda mais as penumbras e o efeito de mistério presentes na foto 4. Pose e as linhas do fundo infinito formam uma composição única na foto 5. A iluminação mais trabalhada na parte superior da imagem contribui para que a harmonia fique ainda mais diferenciada, valorizando muito bem a pose do modelo e fazendo que o leitor guie o olhar pelas linhas e formas do corpo. Na foto 6 com a inclinação da cabeça, uma iluminação na parte posterior do corpo somada a utilização do acessório levou-se a uma interpretação sombria da imagem. Já na foto 7 a iluminação mais direcionada no lado direito, proporciona uma maior valorização do desenho formado entre os braços e pernas do modelo. A composição da foto 8 permite visualizar como a iluminação vinda de baixo para cima modifica as formas; é possível visualizar o aumento das sombras produzidas pelo próprio corpo e uma valorização de áreas mais aparentes. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 123 4.1.2 Nudez masculina em detalhes Na segunda modalidade, o plano de tomada recorrido foi o Plano Detalhe (PD) com a função de registrar minúcias do objeto fotografado. Neste caso, foi evidenciado a textura, o enquadramento assimétrico - deixando a imagem desequilibrada - e a baixa profundidade de campo de acordo com APÊNDICE A: Na foto 9 o enquadramento horizontal, a angulação inclinada e o foco no primeiro plano, ajudam a guiar o olhar pela perna do modelo até o acessório posicionado sobre o fundo infinito, desfocado. Já n foto 10 o enquadramento com uma iluminação dura levou a valorizar linhas e formas, mesmo com o segundo plano desfocado. O enquadramento e o corte subtraindo parte do rosto e ombro do modelo, presentes na foto 11, guia o olhar para que siga os contornos que compõem a figura; o desfoque no segundo plano conteve a interpretação possivelmente sensual da pose, e garantiu que se proporcionasse uma leitura artística da imagem. A foto 12 é composta por um conjunto de texturas corporais que puderam ser registradas e valorizadas com um plano fechado e uma iluminação direta vindo da parte superior que gerou um jogo de sombra e luz importante para contornar as linhas. 5. Considerações O ensaio teve como premissa os múltiplos olhares advindos da fotografia artística de nu masculino. A arte, e nesse caso em específico a arte fotográfica, foi produzida e é interpretada baseada nos filtros correspondentes a bagagem cultural de cada leitor. Essa multiplicidade de concepções acerca da nudez masculina, somada ao vasto e diversificado acervo teórico e empírico utilizado, possibilitou a elaboração de um ensaio fotográfico autêntico. O poder do discurso não-verbal presente nas imagens, desvenda e incita o mergulho ao universo de contemplação do corpo humano, evidenciado por enquadramentos que variam de um plano geral ao close-up. Muitas vezes sutis, os detalhes, ajudam para que a análise seja feita de forma simples e primorosa. Cada destaque foi pensado e modificado de forma a compor minuciosamente a imagem. O projeto “Corpo nu: ensaio fotográfico como arte” elaborou um trabalho de nudez com um ângulo diferente. Capaz de despertar a apreciação do corpo humano como uma conexão natural do seu próprio ser com a arte. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 124 As fotos foram dispostas em uma ordem que possibilitasse a harmonia e continuidade de poses, sempre valorizando os ideais preconcebidos de ensaio fotográfico artístico de nu, isso é, distante da concepção erótica e/ou pornográfica. APÊNDICE A- Ensaio fotográfico de nu artístico no laboratório de fotografia UFMA Foto1 Crédito de imagem Aline Azoubel Foto 2 Crédito de imagem Thaís Torres Foto 5 Crédito de imagem Tâmara Cantanhêde Foto 6 Crédito de imagem Tâmara Cantanhêde Foto 9 Crédito de imagem Thaís Torres Foto 10 Crédito de imagem Thaís Torres Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 Foto 3 Crédito de imagem Aline Azoubel Foto 4 Crédito de imagem Tâmara Cantanhêde Foto 7 Crédito de imagem Aline Azoubel Foto 8 Crédito de imagem Aline Azoubel Foto 11 Crédito de imagem Thaís Torres Foto 12 Crédito de imagem Tâmara Cantanhêde 125 REFERÊNCIAS BAETENS, Pascal. Nu artítico: fotografia a arte e o talento. Rio de Janeiro: AltaBook Editora, 2010. DE PAULA, Ariano. O primeiro congresso de fotografia de nu e sensual da América Latina. Disponível em: <http://www.lightroom.com.br/index.php/tag/nu-photo-conference>. Acesso em: 11 fev.2013. 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Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 126 RELATO DE PESQUISA A EROTIZAÇÃO DOS CORPOS NO FORRÓ ELETRÔNICO: um estudo da recepção juvenil em Caxias-MA Fábio Soares da COSTA62 Janete de Páscoa RODRIGUES63 RESUMO: Esta pesquisa lançou um olhar sobre a relação entre a oferta de sentidos midiáticos do forró eletrônico sobre o corpo feminino e o processo encoding/decoding (HALL, 1997) a partir de narrativas juvenis de alunos de uma escola pública estadual do ensino médio da cidade de Caxias-Ma. Metodologicamente foi utilizada a análise de conteúdo categorial (BARDIN, 2011), para analisar os conteúdos das letras do forró eletrônico das bandas “Limão com Mel”, “Furacão do Forró” e “Garota Safada”, bem como identificar os sentidos de construção do corpo feminino e suas negociações presentes na recepção juvenil, que apresentou decodificação negociadora, uma mulher plural e um corpo erotizado. PALAVRAS-CHAVE: Corpo. Erotismo. Jovens. Mulher. ABSTRACT: This research glanced about the relationship between the supply of the electronic media senses “forró” on the female body and the process encoding/decoding (HALL, 1997) from juvenile narratives of students in a public school high school in the city of Caxias-Ma. Methodologically was used analysis content categorical (BARDIN, 2011), to analyze the contents of the letters of the electronic “forró” bands “Limão com Mel”, “Furacão do Forró” and “Garota Safada”, and to identify the construction of meaning of female body and its negotiations present in juvenile reception, which had negotiated decoding, a plural wife and an erotic body. KEYWORDS: Body. Eroticism. Young. Woman. 1. Apresentação No forró eletrônico, as letras das músicas falam sobre mulheres, relações amorosas e sexuais, descrevem corpos e condutas para a existência feminina, constroem representações que são aceitas e utilizadas em suas práticas sociais. Essas músicas, consumidas por meio do rádio, TV, internet e, principalmente nos shows, ofertam representações do cotidiano 62 Mestre em Comunicação pelo PPGCOM da UFPI. Especialista em Supervisão Escolar pela UFRJ e Educador Físico licenciado pela UFPI. Docente da Faculdade do Médio Parnaíba – FAMEP. E-mail: [email protected] 63 Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Docente do PPGCOM Mestrado em Comunicação da Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail: [email protected] Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 127 feminino gerando identificação com a cultura do forró eletrônico (TROTTA, 2009a). Assim, acreditamos que essas músicas oferecem sentidos de identidades às mulheres que as ouvem, que se adequam às representações oferecidas por essas músicas, se autorepresentando. No entanto, tais representações são absorvidas subjetivamente por cada pessoa a quem se dirige de maneira particular. Teresa de Laurentis (1994, p. 212) aponta questões fundamentais para se entender esses processos de significações de gênero, que, segundo ela, é uma representação: “[...] o sistema sexo-gênero é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado a indivíduos dentro da sociedade”. Os sentidos produzidos pelos sujeitos receptores sofrem forte influência dos meiosinstituições, que estão em contínuas negociações a despeito dos deslocamentos culturais que podem ser produzidos em cada contexto de usuário de mídia. O processo de construção de sentidos é algo que necessita de investigação exaustiva, e o interesse nesta pesquisa reside em dois momentos específicos, interconectados pelas relações culturais: (1) o momento de produção midiática das bandas de forró eletrônico, interpelado a partir das estruturas de sentido, repertórios culturais e estéticos de estudiosos do tema. A ideia de estruturas de significado é recuperada a partir de Stuart Hall (2000; 2006; 2009) com a proposição de seu modelo codificação/decodificação, no qual essas estruturas, de certa forma, simbolizam as referências identitárias e os repertórios culturais/estéticos dos envolvidos; (2) o momento da recepção dos deslocamentos culturais produzidos pelo forró eletrônico no concernente aos sentidos de representações simbólicas femininas no contexto das relações entre os gêneros/sexos, levando em conta tanto o panorama agonístico do pós-moderno quanto à perspectiva das interculturalidades na contemporaneidade. Para Hall (2006), os deslocamentos culturais acontecem segundo alterações espaçotemporais, e, no Nordeste, as dinâmicas de trabalho e lazer acontecem a partir de ritmos frenéticos e descentrados, representados no imaginário social do forró, por exemplo. Essa condição ocorre não apenas como a supressão do antigo pelo novo, mas a partir de profunda problematização do presente e da perspectiva “pluralista que aceita a fragmentação e as combinações múltiplas entre tradições, modernidade, pós-modernidade, a qual é indispensável para considerar a conjuntura latino-americana.” (GARCÍA CANCLINI, 2006, p. 352). Frente ao exposto, esta investigação problematiza as relações de ancoragem, Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 128 imbricamento e complementaridade de um triângulo discursivo que envolve a cultura do forró eletrônico, as representações simbólicas da mulher e do seu corpo e a audiência juvenil, assim questionando: Que sentidos são enunciados por meio das letras das músicas, dos vestuários usados pelo(a)s vocalistas e dançarino(a)s, pela movimentação e gestualidade realizadas pelos atores das bandas investigadas que se relacionam ao corpo da mulher? A partir deste questionamento é que passamos a entender que a análise do forró eletrônico sob a ótica dos estudos culturais e suas subjetividades implica reconhecer que, no campo cultural, a mídia é cada vez mais responsável pela emergência de formas de vida muitas vezes incompreendidas por setores da sociedade mais conservadores, todavia, nos ajudam a entender a proximidade entre o processo de criação de sentidos de gênero e nordestinidade ligados à cultura da mídia. Neste contexto, o objetivo geral deste estudo é investigar o processo de construção de sentidos midiáticos entre jovens estudantes do ensino médio de uma escola pública estadual da cidade de Caxias-MA, consumidores de forró eletrônico, a partir das representações simbólicas da mulher e do seu corpo, quando esses jovens interagem com as mensagens sugeridas via bandas de forró eletrônico midiatizadas. Os objetivos específicos são os de analisar os conteúdos apresentados nas letras do forró eletrônico midiatizado referente à oferta de sentidos constituidores sobre o ser feminino e o seu corpo, assim como identificar sentidos de feminilidade relacionados ao corpo da mulher, figurino, dança, gestualidade e demais narrativas textuais e imagéticas presentes nos produtos midiáticos (dvd) de bandas de forró contemporâneo, bem como seus reflexos na recepção Esta pesquisa observou os olhares voltados às representações simbólicas da mulher, ou seja, como a mulher e seu corpo são apresentados nesses dispositivos midiáticos, e que sentidos sobre o corpo feminino e da mulher são preponderantes nas enunciações desses produtos midiáticos. E assim, numa perspectiva macro, conclusiva, mas aberta, porosa, temporal e delimitada nesse tempo, a produção subjetiva dos jovens pesquisados apontou para a construção de representações das mulheres e dos seus corpos de um modo plural, mas, sobretudo, erotizados e referenciais de beleza. Quanto às mulheres, estas foram apresentadas como negociadoras de diversos sentidos apropriados da cultura do forró e das trocas simbólicas das comunidades de significação em que estão inseridas. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 129 2. Procedimentos metodológicos A pesquisa é de natureza qualitativa, pois o interesse nos processos suplanta o interesse nos resultados ou produtos, onde o investigador assume papel primordial. A fonte de dados é o ambiente natural, e a análise desses dados tem forte carga indutiva, conforme Triviños (1987). É uma pesquisa do tipo descritiva, pois “Os dados recolhidos sempre serão em forma de palavras e/ou imagens. Os resultados escritos contêm unidades retiradas das falas dos atores, dos diários de observação, de documentos, etc.” (TEIXEIRA, 2012, p. 123). Empregamos o método descritivo no tratamento dos resultados da pesquisa de campo no referente à análise dos dvd, bem como das falas dos receptores acerca do tema da pesquisa, coletadas durante a realização de grupos focais (GF). Ainda, utilizamos a análise de conteúdo categorial (AC), preconizada por Laurence Bardin (2011), tanto na análise dos produtos midiáticos quanto da recepção juvenil, pois consideramos que esta opção metodológica ancora-se no rigor técnico, apresenta o método de forma compreensível e organizada, apontando um caminho que potencializa a observação da produção da subjetividade humana, ofertando-nos sentido, significância e segurança para o alcance dos objetivos pretendidos pela pesquisa. Dessa forma, encontramos apoio e fundamento em Bardin (2011, p. 37, grifos da autora) quando fala do campo de pesquisa que se relaciona a estes procedimentos metodológicos: A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análises das comunicações. Não se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações. A pesquisa pressupõe a passagem por duas fases: 1) Análise dos produtos midiatizados das bandas de forró eletrônico: dvd “Limão com Mel – Turnê Faz um coração”, dvd “Garota Safada – Uma nova história” e dvd “Furacão do Forró – Ao vivo em São Luís-Ma”; e 2) Análise dos grupos focais (GF) com estudantes do ensino médio da rede pública de ensino da cidade Caxias-MA. A seleção dos participantes foi intencional conforme tratam Kirsten e Rabahy (2006), em que utilizamos o juízo particular de recrutamento de estudantes jovens que gostam de Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 130 dançar, ouvir as músicas, ir aos shows e que adquirem produtos midiatizados das bandas estudadas, ou seja, que possuam certo grau de representatividade subjetiva sobre o tema. Como a pesquisa é qualitativa, selecionamos como sujeitos do estudo 44 alunos do ensino médio da rede pública estadual da cidade de Caxias, estado do Maranhão. Os participantes são de ambos os sexos, jovens com idade entre 18 e 25 anos, moradores de Caxias-MA e estudantes do Centro de Ensino Inácio Passarinho. O entendimento etário de jovem é aqui apropriado das contribuições de Andrade e Silva (2009) quando esclarecem que a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) em coadunação com o Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), criados no ano de 2005, definiram como jovens aqueles com idade entre 15 e 29 anos. Tal faixa é adotada na proposta de Estatuto da Juventude, em discussão na Câmara dos Deputados, com os subgrupos de 15 a 17 (jovem-adolescente), de 18 a 24 anos (jovem jovem) e de 25 a 29 anos (jovem-adulto). Os GF foram realizados nos dias 13, 16 e 17 de dezembro de 2014, com alunos do primeiro, segundo e terceiro anos do ensino médio do Centro de Ensino Inácio Passarinho, na cidade Caxias/MA. Sua realização foi precedida por esclarecimentos, pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE e pelo preenchimento de um questionário com informações que possibilitaram organizar um perfil dos receptores de cada GF e de todo o grupo de alunos pesquisados. O conjunto de alunos pesquisados, 44 possuem, em média, 19,4 anos, sendo 18 anos a menor idade considerada e 25 a maior. Desses alunos, 25 são do sexo masculino e 19 do feminino. A renda familiar média dos pesquisados é de um salário mínimo e meio. São majoritariamente católicos, 84%; e solteiros, 93%. 100% dos participantes gostam de forró e de forró eletrônico. Giroux (1995, p. 98) traz uma síntese das preocupações dos estudos culturais: “[...] o estudo da produção, da recepção e do uso situado de variados textos, e da forma como eles estruturam as relações sociais, os valores e as noções de comunidade, o futuro e as diversas definições do eu”. Numa continuidade desse raciocínio, Giroux (1995) relaciona sons e imagens (dispositivos midiáticos) nesse processo, assim como ressalta que os textos culturais extrapolam as fronteiras dos estados nacionais. Assim, hoje, nosso público-alvo da pesquisa (alunos do ensino médio) experienciam mais a convivência com a TV e recursos eletrônicos midiáticos, inclusive na escola, do que com a própria escola, o que nos impõe considerar o Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 131 poder constituidor e subjetivador da mídia no mundo atual e no recorte por nós realizado para o estudo. Quanto a outras práticas sociais, identificamos que 55% dos alunos pesquisados trabalham durante o dia, todavia apenas 27% consomem forró durante o trabalho ou nos intervalos desse. Mas, como estudantes, 55% deles consomem forró nos intervalos das aulas, sobretudo com o uso de celulares e smartphones. Como estratégia de garantia do anonimato dos alunos pesquisados, os GF tiveram seus integrantes identificados por pseudônimos constituídos por uma letra do alfabeto, precedida pelo prenome ALUNO ou ALUNA, identificando os gêneros masculino e feminino, e seguida pelo número do GF a que ele pertence, por exemplos: ALUNO A – GF 1; ALUNA E – GF 4. 3. Os estudos culturais e o modelo encoding/decoding Ao extrairmos do pensamento nossas inquietações sobre o questionamento: o que é Comunicação?, passamos a refletir sobre abordagens comunicacionais que nos incumbem a necessidade de percorrer um caminho histórico-conceitual, mesmo que superficial, sobre os entendimentos a respeito do processo comunicacional, com defesa a partir dos estudos culturais e desemboco nos estudos de recepção/consumo. Filiamo-nos a Eagleton (2005) e Thompson (2002) na crença de que não existem seres ou indivíduos não culturais, pois estes são produtores de cultura. A identificação com um ser cultural é apenas admitir que a condição humana é sempre encarnada em alguma modalidade cultural específica. Essa defesa é alicerçada no percurso histórico contemporâneo e apresenta uma coerência factual, a exemplo, observamos que as situações de miséria e exploração em diferentes partes do planeta apresentam distintas formas culturais. A defesa por um enlace cultural com o aporte teórico-metodológico da pesquisa de recepção notadamente é por conta de que o engendramento cultural se relaciona com as representações de mundo, de sociedade, do eu, que a mídia e outras maquinarias produzem e colocam em circulação. Dessa forma, as visões de sociedade e os valores adquiridos no ver e no conhecer promovem evidência da problematização dos artefatos de comunicação e informação na vida contemporânea, com efeitos na política cultural que ultrapassam e/ou produzem as barreiras de classe, gênero sexual, modo de vida, etnia e tantas outras. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 132 Ao privilegiar esse entendimento de cultura, pensamos também perceber a interdisciplinaridade existente entre essa e os estudos comunicacionais, pois o ser humano é produtor de cultura e a produz por processos comunicacionais, como apresentamos no escopo de nossa investigação. Daí, percebemos a transversalidade existente entre os aportes culturais e os comunicacionais, que se integram constantemente, numa semiose produtora de sentidos. Stuart Hall inaugurou, em 1973, o encoding/decoding model como ponto de partida para a mudança do foco do texto para o leitor. Nesse modelo, a codificação dá-se no processo de produção e a decodificação no consumo/recepção, onde percebemos o uso de estratégias de leitura/recepção por parte dos leitores, que podem ser: a) dominante: o sentido da mensagem é decodificado segundo os objetivos da produção; b) oposicional: o receptor entende a proposta dominante, mas interpreta de maneira alternativa, com outra visão de mundo; e c) negociada: o sentido da mensagem entra em negociação, sendo um misto de lógicas contraditórias, com valores dominantes e de refutação (ESCOSTEGUY; JACKS, 2005; MAIGRET, 2010). Hall (1997) trata a cultura de maneira centralizada, um componente de todos os aspectos da vida social contemporânea. Seu fundamento está nas práticas de significação que passam por uma perspectiva interpretativa, organizacional e reguladora da conduta humana, tendo alcances interdisciplinares na organização social. A centralidade da cultura desencadeada por Stuart Hall está na sua relação com as tendências globalizantes e a vida doméstica, local, devendo ser esta tratada de forma protagonizada. Esse entendimento consegue deslocar a relação direta de comunicação da produção de cultura para a de mediações culturais, que dão conta de novas formas de vida social, consegue ressignificar a figura do ser passivo frente aos meios massivos para a impassividade, para a pluralidade das audiências, que sacramenta a recepção como o locus da produção de sentidos, negociados a partir de um panorama cultural do emissor e do receptor. 4. O forró eletrônico e a mulher O forró, antes conhecido apenas como baião, tocado por batuques e maracatus africanos, somente na década de 40 do século XX, por iniciativa de Luiz Gonzaga, foi inserido no mercado fonográfico, alastrando-se por grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo. Consagrou-se com a denominação de forró tradicional, desde então, serve de referência para todos os outros estilos de forró contemporâneos. É música urbana, mas de Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 133 origem rural, e funciona como ponte conectando culturas e gostos estéticos distintos, contribuindo sobremaneira na consolidação de uma visão de identidade nordestina, através das expressões, gestos, dança, do sotaque regionalista e das roupas, introduzidas por Luiz Gonzaga no contexto identitário do nordestino (SILVA, 2003). Contudo, passando pelo forró tradicional (pé-de-serra) e forró universitário, na década de 90 do século XX iniciou-se a popularização do forró eletrônico, que trouxe sentidos identitários diferentes dos demais estilos de forró. Segundo Cunha (2011), o forró, produto cultural, emerge associado fortemente a uma ideia de nordestinidade, todavia, no forró eletrônico é possível suspeitar que exista uma relação de distanciamento com esse sentido. Enquanto o forró tradicional representou um elemento a ser somado a outras manifestações regionais do restante do país, o forró eletrônico pautou-se na afirmação de uma única nordestinidade. Tampouco ele poderia deixar de articular elementos diversos que ajudariam a forjar uma nação forrozeira como algo simultaneamente além e aquém do Nordeste e de modos de ser a ele correlatos. Dentro de um contexto de identidade cultural e de sentidos de identidade, o forró eletrônico está inserido naquilo que Hall (2000) entende por novos tempos, na contemporaneidade, onde as subjetividades têm se tornado importantes alvos de estudo e preferências. Segundo Silva (2003), o forró eletrônico, também chamado de forró pós-moderno, inseriu em seu corpus um elemento semiótico importante: a exposição de mulheres atraentes, de corpos esculturais, anatomicamente ressaltados e quase sempre à mostra. Daí, possamos entender porque, para Trotta (2009), as características eróticas observadas nas letras do forró eletrônico reforçam as características tradicionais de nossa sociedade, onde o poder do homem sobre a mulher é um fato social, real, atual e relativamente dominante, sobretudo nos discursos masculinos. Todavia, apesar de observarmos que, nessas letras, a sujeição exclusiva ao poder patriarcal é presente e se configura como a base para o comportamento submisso da mulher, também observamos o reverso, o inverso, o controverso, que são as letras que trazem um empoderamento feminino, de valorização do seu corpo, sua moral, sua individualidade e apego à sua vida privada, que pode desenvolver-se com um outro parceiro, ou atém mesmo sem eles – homens. (música um -“Poderosa, linda e perigosa” – banda “Furacão do Forró”) No contexto da mídia, a imagem do corpo feminino passa por um processo de Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 134 mercantilização. Evidenciamos cada vez mais um corpo descoberto na busca do atingimento de objetivos capitalistas. E essa evidência dá-se, sobretudo, por processos midiáticos, orientados por lógicas de mercado, onde empresas produzem mercadorias, informação, entretenimento e publicidade, que, integrados, formam suas bases de interesses. E assim é a indústria cultural do forró eletrônico. Observamos que o corpo feminino está mais desprovido de subjetividade, alvo apenas da lógica capitalista, que o coloca na infeliz condição de bem de consumo. Paralelamente, a aparição crescente dessa problemática de mercantilização do corpo feminino através dos apelos midiáticos faz emergir a discussão sobre a necessidade de se reverter essa situação, que reflete a ideia de que o corpo da mulher, ao mesmo tempo que é seu, não lhe pertence (GOELLNER, 2001). Como nosso objeto de análise é a imagem feminina, trazemos algumas oportunas contribuições de Judith Bluter (2000) sobre a diferença dos sexos, defendendo que a categoria do sexo é, desde o início, normativa: ela é aquilo que Michael Foucault chamou de ideal regulatório. Segundo a autora, é nesse ponto que, ao perceber que o sexo é materializado como prática regulatória que gerencia, produz e transforma os corpos, a autora também nota que existem sinais de que a materialização não é nunca totalmente completa, e que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta. Assim, essa instabilidade transforma-se em possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marca um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei regulatória. 5. O corpo erótico como categoria de análise A análise de conteúdo a partir das letras das músicas apresentadas nos dvd foi realizada com 64 músicas, 22 da banda “Garota Safada”, 22 da banda “Furacão do Forró” e 20 da banda “Limão com Mel”, onde foram identificados 161 sentidos ofertados nessas letras. Esses sentidos foram agrupados a partir de duas variáveis: quantidade e similaridade, ou seja, observamos os sentidos que mais são ofertados em cada dvd, bem como na união de todos eles. Também reunimos os sentidos por suas similaridades formando categorias de análise, as quais destacamos para nossa discussão a de corpo erótico. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 135 Os sentidos de sexo, erotismo, sensualidade feminina, sedução, desejo, excitação masculina e de mulher safada foram associados numa mesma categoria de análise, pois estão diretamente relacionados às representações simbólicas da mulher e do seu corpo. Essa categoria é a que mais se coaduna com a análise realizada a partir da observação visual dos shows, pois representa os sentidos de maior conexão simbólica entre as letras das músicas e as coreografias realizadas pelas dançarinas em solo ou com seus pares. Apesar de a frequência desses sentidos ser menor do que a dos de romance e empoderamento masculino, quando analisadas em conexão com essas, potencializam o seu poder simbólico frente ao conjunto discursivo dos produtos midiáticos analisados. Esses sentidos aparecem em 23 das 64 músicas analisadas, pertencendo, assim, a 15% de todos os sentidos ofertados nas músicas. Sentidos como os de erotismo, sensualidade feminina, sedução, desejo, excitação masculina e de mulher safada são todos percebidos na letra da música “Não Pare” da banda “Garota Safada”. Na semiose formada pelo conjunto de músicas que traduzem essa categoria de análise, é perceptível que a mulher ocupa um lugar secundário, com explícitas evidências de subordinação, o que para nós é o resultado da universalidade do gênero como estrutura de dominação masculina. Essas músicas reforçam desigualdades e o aparente empoderamento sobre seu corpo, fazendo dele o que bem entende, não chega a ser suficientemente simbólico para desarticular a relação assimétrica entre homens e mulheres, para trazer-lhe a liberdade devida, para ser insurgente ao homem, para tirar o acento da distinção tradicional de papéis entre homem e mulher. Os novos comportamentos femininos, sua modernização e emancipação social perdem força com a cultura do forró eletrônico, na medida em que a estigmatização do papel da mulher como safada, mas aceitável e reproduzida nas músicas. Assim, Lima e Freire (2010, p. 10) esclarecem. O forró eletrônico: Apropria-se de características e estereótipos femininos pertencentes à cultura nordestina e dá a eles uma nova roupagem, com o aproveitamento de signos antigos e criação de novos, que explicitam conduta e representação, não publicando a fala feminina, ou seja, em como a mulher se vê e se percebe nesse cenário, cuja temática é geralmente ela, com forte apelo erótico. 6. Percepções juvenis sobre um corpo erótico Foi percebendo o protagonismo juvenil no campo cultural que nos filiamos à perspectiva de estudar o consumo cultural de jovens, explorando suas representações de gente, de gênero e de si em meio ao próprio consumo do forró eletrônico. Estudo esse que se Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 136 junta a tantas outras pesquisas de natureza social que acompanham o perfil demográfico, institucional, de mercado de trabalho, de sociabilização e de consumo, com jovens, que vem aumentando nas últimas duas décadas, conforme verificamos em relatório publicado em 2009 que aponta a situação social brasileira até o ano de 2007. (CASTRO; RIBEIRO, 2009) O estudo pensa em jovens não naturalizados, pensa em condições objetivas de sociabilidade juvenil fragmentadas, em constante negociação com o mundo moderno, cheio de novidades, obstáculos, êxtase, depressões e incertezas. É do que trata Bauman (1999), a glocalização comunicativa, que hibridiza esse jovem que ouvimos e estudamos aqui, portanto, seu endereço social é transitório, influenciado, é claro, pelo meio social, por sua cultura de origem, sua cor, raça, sexo/gênero, pelo que vê e escuta. O sentido de erotismo pode ser identificado entre os jovens nas falas de ALUNO A – GF 1, ALUNO A – GF 2, ALUNO C – GF 5 e ALUNO B – GF 5, que apresentam valores de erotismo e sensualidade relacionados ao seu consumo de forró e de como veem as dançarinas das bandas. O vídeo da Garota Safada fala mais da forma como a mulher dança, da sensualidade dela, ensinando as mulheres dançar com sensualidade. [...] Ah! Aí eu dou valor, rapaz! Quando começa a mexer a bunda, aquelas coisas ali é linda demais. Oxe! Uma bunda daquele tamanho ali, é claro, professor, quem é que não se anima? Qual o homem que não vai gostar? Rapaz, eu sinto prazer e a pessoa fica alegre, é isso. (ALUNO A – GF 1) Eu concordo com o ALUNO A–GF1, mas eu gosto de letras que fala de imoralidade, porque eu acho mais espontâneo, tem mais a ver com meu estilo. (ALUNO A–GF 2) Eu não gosto quando a roupa das dançarinas é longa, porque num chama atenção. Tem que chamar a atenção, tem que mostrar a barriga. (ALUNO C – GF 5) É uma belezura. O formato das bichas oh! Das pernona, das bunda. O corpo dela é massa. Cheinhas [...] Só de minissaia, calcinha fio dental (ALUNO B – GF 5) Contudo, percebemos sentidos em circulação que se opõem à valorização erótica e sensual das narrativas acima. É o exemplo das alunas ALUNA E – GF 2 e ALUNA J – GF 2. Para as alunas, A mulher é desmoralizada. Em algumas letras, porque, professor (...), em muitas músicas, assim que usam, assim, o nome da mulher, assim, de forma pejorativa [...] muitas músicas que chamam a mulher de puta, de num sei o quê, aí, também, tá desmoralizando a mulher, algumas. [...] Outras tratam a mulher normal. (ALUNA E – GF 2) Na dança, eu não gosto das coisas de sacanagem. Tem uma música do “Washington Brasileiro” que eu fui aqui, que é obrigado, a mulher subir em cima do homem e o homem fica (a aluna faz gestos sexuais). Eu num acho isso bom, não. (ALUNA J – GF 2) Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 137 Assim como Hall (1997) apresenta, no modelo encoding/decoding, a mudança do foco do texto/imagem para o leitor, percebendo nesse a possibilidade de leitura/recepção oposicional, onde o receptor entende a proposta dominante, mas interpreta de maneira alternativa, com outra visão de mundo, observamos também esse contexto nas narrativas juvenis desta pesquisa. ALUNA I – GF 4, que se opõe a esse modelo industrial cultural de corpo feminino quando diz: Já eu vou falar o contrário. Pra mim, isso daí num importa, esse negócio de malhar, pra mim é o corpo normal, pra mim, o que eu tenho mais assim é os seios: pequenos, cintura fina, num importa se a bunda é grande ou não, pra mim tanto faz. As pernas nem muito grossa, depende da cintura, normal, sem malhar, sem nada. Também com este posicionamento, ALUNA E – GF 1 contraria: “Eu não gosto do exagero. Em nem todas as dançarinas tudo é 100% natural. Sempre tem um exagero aqui e acolá. A questão do silicone (...) É que elas vão além do limite”. ALUNA F – GF 1 reforça: “Elas se tornam mais feias quando exageram tanto em silicone, acho que ficam mais feias. Porque é muita coisa, seio muito grande, bumbum muito grande....”. E ALUNA H – GF 2 conclui: “É, o corpo de algumas são, mas de outras não, é muito malhado. Tem umas que exageram demais e aí fica muito grande, sei lá, diferente”. Assim, verificamos nesta recepção a valorização de uma enunciação oposicional, compreendendo que a heterogeneidade é necessária para o entendimento da subjetividade humana e, principalmente, para, sem reificá-lo, amplificar o lugar do leitor ativo que recebe, interpreta e põe em circulação mensagens nem sempre pretendidas pela mídia. E, recuperando, mais uma vez, o encoding/decoding model, percebemos que as estratégias de leitura/recepção por parte dos leitores podem ser negociadas. Nelas, o sentido da mensagem entra em negociação, sendo um misto de lógicas contraditórias, com valores dominantes e de refutação. (ESCOSTEGUY; JACKS, 2005; MAIGRET, 2010). 7. Considerações finais O forró eletrônico, enquanto cultura regional, mostrou-se uma mediação simbólica rica e de contribuição decisiva para entendermos as subjetividades humanas, os processos de globalização e os seus efeitos em uma cidade do interior do Maranhão, onde as juventudes estudadas passam por um processo de intensa ressignificação, apesar de todas as forças conservadoras, medievais e patriarcais que tentam mantê-las como estão. Por isso, a escolha dos estudos culturais para alicerçar nossas pretensões. Pretensões essas de tensionar preceitos Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 138 da perspectiva elitista da cultura e incluir uma epistemologia que reconecta teoria e prática com características fundamentais dos estudos culturais, sem deixar de lado o pensamento crítico. Trata-se do exercício de realizar análises culturais de uma outra maneira, com a refutação de pressupostos tradicionais e a criação de categorias laxas. E em se tratando de categorias, como estratégia de análise dos dados, tanto da produção, quanto da recepção, identificamos, nos dvd das bandas Limão com Mel, Furacão do Forró e Garota Safada, a categoria de erotismo, que também foi localizada nas narrativas dos jovens estudados Diante desses resultados, da produção e da recepção, concluímos que a cultura do forró eletrônico possui uma discursividade múltipla, onde sentidos oriundos da indústria cultural do forró são tensionados com os sentidos da cultura popular, da tradição agropastoril do baião de 1940, com a oferta tecnológica para ouvir, ver e produzir o próprio forró, com forças emergentes de emancipação feminina e com as ressignificações identitiárias que cada jovem consumidor possui. Cada jovem aluno ouve, assiste e interpreta o forró de uma maneira distinta. Alguma homogeneização ainda é percebida, sobretudo, no padrão dicotômico de comportamentos próprios do homem e os comportamentos próprios da mulher. Contudo, nada que se compara às negociações de sentidos observadas no estudo, que nos revelaram jovens consumidores conscientes de seus interesses de audiência. Definitivamente, pensamos que entender a relação entre as juventudes e o forró eletrônico midiatizado, primeiramente, deve colocar em destaque a emergência dos jovens como atores sociais, tecnológicos, sensíveis e criadores de sentido. Notamos, nesse tempo de pesquisa com os jovens caxienses, que esses assumem as relações sociais como experiência fortemente afetuosas, principalmente, pela valorização estética, e pela corporeidade relacionada à cultura do forró eletrônico, que funcionam, muitas vezes, como sua fala, a maneira que têm de expressar suas preferências. Escolhemos a análise de dvd como elo entre nosso estudo e a proposta da linha de pesquisa, mídia e produção de subjetividades, porque entendemos que existe um processo hegemônico que envolve diversas tecnologias da informação que organizam um sistema cultural dominante. Contudo, também, levamos em consideração que o leitor participativo pode acatar, negar ou negociar esses sentidos dominantes, ora subordinando-se, ora insurgindo-se contra esse regramento simbólico naturalizado. Por isso, analisar produção e Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 139 recepção numa mesma pesquisa. Este estudo não tem a pretensão de colocar-se como pesquisa finalizada. Dessa forma, nossas conclusões devem ser objeto de reflexão, complementaridade e maior exploração por parte de mais pesquisadores da cultura e comunicação, pois são posicionamentos abertos a discussão e relativização espaço-temporal. Acerca da imagem da mulher e do seu corpo no forró eletrônico midiatizado, concluímos que os jovens participantes do estudo veem essa mulher como um agente simbólico, constituinte de um complexo cultural que agencia uma multiplicidade de sentidos que servem a diversos fins. Primeiramente, sentidos aparentes nas narrativas apontam para a convergência entre a oferta dos dvd e a defesa dos jovens: a do binarismo sexual. Para os jovens, fica claro que a mulher é heterossexual, pois seu papel social, seja de mulher da casa, seja de dançarina promíscua, somente abarca relacionamentos amorosos com sujeitos do sexo oposto. Essa condição é estruturante para uma outra conclusão firmada, a de que existe uma dicotomia feminina consolidada no imaginário dos jovens pesquisados. A de que existe uma mulher direita, para o casamento (vestida de roupas longas, compenetrada e doméstica) e outra “safada”, para o sexo (dançarina, que rebola, desnuda e que gosta de se mostrar). Imaginário preponderantemente enunciado pelos alunos, que gerou pontos de discussão e oposição de algumas alunas, que enunciaram tê-la como uma profissional como outra qualquer. Todavia, quando indagada sobre dançarinos, apresentaram, em sua maioria, representações patriarcais semelhantes às dos alunos. Tácita, também, é a condição da mulher, dançarina de forró eletrônico, como elemento catalisador de audiência televisiva e dos shows de forró. A maioria dos jovens estudados, tanto do sexo masculino como feminino, concordam que a mulher é parte de uma estratégia mercadológica para vender cd, dvd e atrair público para os shows, majoritariamente ocorridos no Nordeste do Brasil e fonte maior de renda das bandas de forró. Para essas juventudes, a mulher no forró eletrônico é linda. Seus atributos corporais de “pernona”, “bundona” e “peitão”, “mulher gostosa”, que leva a um imaginário erótico e de sensualidade para os garotos e de “um dia eu gostaria ser ela” para as garotas fazem dessa mulher um ícone referencial de beleza feminina. Algumas poucas negociações dessa representação simbólica sexual e de estética a ser atingida pelas jovens surgiram, representando a oposição em relação Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 140 às estratégias de consumo da indústria cultural do forró eletrônico, todavia, em maioria, a mulher no forró eletrônico é um ícone referencial de beleza, tanto para alunos, quanto para alunas. A imagem da mulher no forró eletrônico midiatizado é plural, mas a dos seus corpos é erotizada. E os jovens também entendem isso, pois seus modos de ser e estar também são plurais. Essa mulher, por vezes, violentada simbolicamente pela indústria cultural, é reconhecida como ícone e beleza, estratégia de consumo mercadológico, profissional, esposa para uns e amante erótica para outros, apaixonante bailarina e independente financeiramente, empoderada do seu corpo, que agora diverte-se igual aos homens e é traidora conjugal, sobretudo por vingança. É uma mulher que já não perdoa tanto, mas ainda sonha com seu príncipe. É uma mulher negociadora, de sentidos e de posições sociais, de lugares de ser, estar e de se ressignificar. REFERÊNCIAS ANDRADE, Carla Coelho; SILVA, Enid Rocha Andrade da. A política nacional de juventude: avanços e dificuldades. In: ANDRADE, Carla Coelho de; AQUINO, Luseni Maria C. de; CASTRO, Jorge Abrahão de (Org.). Juventude e políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2009. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 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Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 142 RESENHA UMA CULTURA POLÍTICA DE PROTESTO RESSURGIDA Felipe Canova GONÇALVES64 Resenha do Documentário “Ressurgentes – Um filme de ação direta” O longa-metragem “Ressurgentes – Um filme de ação direta”65, da cineasta e professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Dácia Ibiapina, acompanha a trajetória de uma geração de militantes de movimentos sociais autônomos no Distrito Federal, entre os anos de 2005 e 2013. Com uma narrativa que coloca habilmente o espectador no cotidiano das ações desses movimentos, alternando gravações próprias com a recuperação do arquivo fílmico de vários realizadores audiovisuais e do Centro de Mídia Independente (CMI), o documentário sistematiza a memória recente de mobilizações populares na capital do país como o “Fora Arruda e Máfia”, que se tornou um elemento central para a queda do ex-governador José Roberto Arruda; “Santuário não se move”, contra a implantação do bairro Noroeste em um território indígena encravado no Plano Piloto; a “Marcha das Vadias”, uma das principais expressões da luta feminista contemporânea; e as ações do Movimento Passe Livre por um transporte público gratuito e de qualidade. Ao centrar seu foco nas ações diretas, o filme traz à tona novas formas de fazer política (re)criadas por estes movimentos, que contrapõem formas tradicionais de mobilização social, por exemplo, as adotadas pelo movimento estudantil universitário ou aquelas enraizadas na lógica de atuação dos partidos políticos. Em outras palavras, durante o documentário assistimos ao ressurgir de uma cultura política de protesto nas ações dos jovens militantes. 64 Mestre e doutorando em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de Políticas de Comunicação e Cultura. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Email: [email protected]. 65 Documentário de 75 minutos, exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes e na Mostra do Filme Livre, de abrangência nacional. Também teve veiculação na televisão por assinatura, no Canal Brasil. O trailer e os teasers do filme estão disponíveis em <http://ressurgentes.com.br/>. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 143 Entre estas novas formas de ação política apresentadas pelo documentário, emerge de forma evidente a importância da ocupação como núcleo de ação dos movimentos autônomos. Seja na mobilização em defesa de um território indígena, na tomada de um espaço institucional, como a Câmara Legislativa distrital, ou nas lutas travadas na rodoviária, ponto central do Plano Piloto, é assumida a necessidade de territorializar conflitos comumente invisibilizados e, por conseguinte, possibilitar estratégias que visem à resistência ou à superação de seus impasses. Além disso, como afirma um dos protagonistas do documentário, a ocupação reúne em um polo único quem “quer uma válvula de escape, quem quer um jeito de se expressar, de participar”. A multiplicidade de pautas dos novos movimentos sociais é tratada no filme de forma encadeada e complementar. Um exemplo é a associação entre a corrupção governamental e a especulação imobiliária – recorrente no Distrito Federal – rapidamente percebida com a ligação entre os dois primeiros segmentos do documentário: enquanto os ocupantes da Câmara Legislativa clamavam pela queda do governo Arruda, os funcionários deste governo envolviam-se em negociatas para a construção do bairro Noroeste, que implicariam na remoção dos indígenas ali estabelecidos sem garantia de direitos. Tal conexão das lutas acompanhadas pelo filme também tem o mérito de historicizar as ações do Movimento Passe Livre em Brasília e seus desdobramentos, em um processo que culmina nas mobilizações de junho de 2013, ponto final da obra. O documentário reflete também, além das transformações na ação política incentivadas pelos movimentos retratados, sobre a própria ação de filmar. A enorme quantidade de câmeras e celulares dos manifestantes assume um caráter político, de prolongamento dos corpos em ação, tornando-se uma arma ou um escudo a depender do contexto de cada mobilização. As imagens de cineastas dos movimentos ou ligados a estes em momentos decisivos das mobilizações, selecionadas por uma pesquisa criteriosa e posteriormente montadas com um ritmo perspicaz, revela sem filtros as táticas de enfrentamento dos militantes, a brutalidade policial – como nos ataques dos PMs aos cinegrafistas ou nas investidas da cavalaria sobre ativistas indefesos –, o descontentamento popular com o transporte, as reações dos indígenas à perda de seu território e, especialmente, os diálogos travados no calor da luta – a maior parte deles com nítida ironia dos manifestantes aos representantes do poder. Embora as imagens de ações diretas e mobilizações ocupem a maior parte da obra, a Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 144 cineasta dá espaço para a reflexão dos militantes em entrevistas, que revelam contradições e diferentes perspectivas sobre sua ação política. Do ativista que considera sua geração invicta nas lutas que levou a cabo à jovem que pondera sobre a impossibilidade de barrar o aumento da tarifa de ônibus após meses de mobilização, surgem reflexões mais amplas sobre o conformismo dos jovens que não se envolvem nas mobilizações populares, a necessidade de desmontar o poder de Estado – não de tomá-lo –, a permanência dos conflitos mediados pelo capital nas relações sociais e a luta por direitos. Ainda quanto ao uso de entrevistas nesse tipo de obra cinematográfica, em que a ação direta é o cerne da narrativa, cabe aqui a comparação com duas produções realizadas sobre as “Jornadas de Junho” de 2013: “Junho” de João Wainer, em produção da TV Folha, e “20 Centavos” de Tiago Tambelli. Enquanto o primeiro prioriza especialistas externos – em sua maior parte colunistas do próprio veículo – para decifrar os confusos dias de mobilizações nacionais diárias, o segundo opta pela ausência de entrevistas, salvo raros depoimentos colhidos no meio das manifestações. Dácia Ibiapina, por sua vez, cria um movimento de açãoreflexão ao possibilitar o distanciamento dos militantes da ação direta, o que permite a eles problematizar as causas pelas quais lutam, bem como seus impasses enquanto movimento social e os desafios colocados pelas próprias ações. Como limites da obra, podemos destacar a ausência de duas questões chaves: a articulação dos movimentos sociais autônomos com outros movimentos e partidos políticos não é trabalhada no documentário, como também não se destaca a organização enquanto pilar de sua ação política. A ausência do tratamento da articulação entre várias expressões políticas torna-se visível logo no começo do filme, no segmento que mostra a luta pela queda do governo Arruda. Ali é percebida uma aglutinação de partidos e sindicatos de esquerda, em forte unidade na diversidade daquela ocupação, na qual o papel dos militantes autônomos é igual ao de lideranças vinculadas à chamada (muitas vezes pejorativamente) “esquerda institucional”. Essa articulação poderia ser discutida nas entrevistas, porém não aparece. Contraditoriamente, os próprios movimentos autônomos apontam para a necessidade de articulação com outros movimentos na Carta de Princípios do Movimento Passe Livre, por exemplo66. O segundo limite está claro desde o título da obra, na opção de recorte proposto pela 66 “Deve-se participar de espaços que possibilitem a articulação com outros movimentos, sempre analisando o que é possível fazer de acordo com a conjuntura local”. Disponível em: <http://saopaulo.mpl.org.br/apresentacao/carta-deprincipios/>. Acesso em 10 de abril de 2015. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 145 cineasta: a ausência de um olhar mais detalhado sobre o processo organizativo desses movimentos. Apenas na “Marcha das Vadias” é documentada a preparação da mobilização. Se exposto, poderia ter como efeito a refutação de ideias banalizadas após junho de 2013, como a que afirma que as lutas dos novos movimentos sociais têm caráter espontâneo, ou mesmo a sobrevalorização da internet em seu papel mobilizador, que diminui, em alguma medida, a importância do trabalho de base cotidiano, da formação política e do impacto de uma capacidade de resistência e luta persistente, aberta à participação de novos sujeitos políticos. Vale ressaltar que ambos os filmes sobre as “Jornadas de Junho” acima mencionados padecem desses mesmos limites, o que não tira o mérito dessas obras, nem o de “Ressurgentes”. Em síntese, o documentário de Dácia Ibiapina nos oferece a possibilidade de vivenciar o cotidiano de movimentos sociais contemporâneos que repensam integralmente a prática política da mobilização social, por meio de ideias como horizontalidade, autogestão e poder popular. Ao provocar nossa memória com seu mosaico sobre as lutas sociais dos últimos anos no DF, a cineasta nos leva a refletir sobre nosso papel enquanto sujeitos políticos nos dias de hoje, para além de polarizações muitas vezes superficiais e da nossa condição frequente de espectadores da disputa pela hegemonia política, social e cultural. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 146 RESENHA Sobre o fim da televisão? Patrícia AZAMBUJA67 RESENHA CARLÓN, Mario e FECHINE, Yvana (org.). O fim da televisão. Universidade Federal de Pernambuco: Editora UFPE. 2014. O título sugestivo do livro organizado pelo pesquisador argentino Mario Carlón e pela professora do Departamento de Comunicação Social da UFPE, Yvana Fechine, parece, mais uma vez, retomar o profético campo das previsões sobre o futuro dos meios de comunicação. A bola da vez não poderia ser outra, a televisão. Para os autores, a coletânea retoma o tema com o objetivo original e oportuno de difundir através da língua portuguesa algumas ideias de estudiosos representantes do que chamaram de “pensamento latino-americano sobre o meio” (p.7). De forma a enriquecer as discussões, esse cenário internacional de debate nos apresenta alguns dos principais contrapontos e/ou visões convergentes que envolvem a corrente anglo-saxã que prenuncia, desde 1981, com o ensaio A Terceira Onda de Alvin Toffler, o declínio dos meios massivos de comunicação. O livro foi concebido como uma espécie de “mesa redonda” entre os participantes, um encontro que presencialmente nunca ocorreu, até porque os autores nunca estiveram todos ao mesmo tempo em um mesmo evento. Mesmo assim, o debate aconteceu de outros modos e ganhou corpo como coletivo de pensamentos. Nesse debate, observa-se - assim como ocorre de modo mais geral no cenário internacional - ao menos duas correntes de pensamento a partir das quais esse momento de transição da televisão vem sendo interpretado: uma delas sustenta 67 Doutora em Psicologia Social pela UERJ, mestre em Artes Visuais pela UNESP e graduada em Comunicação Social pela UFMA, atualmente, é professora Adjunta da Universidade Federal do Maranhão com experiência na área de comunicação, com ênfase nos seguintes temas: artes visuais, interfaces gráficas e narrativas hipermidiáticas. Também é coordenadora do projeto de pesquisa “Comunicação Expandida: entre mudanças de comportamento e a possibilidade de novas produções” e Bolsista de Produtividade - financiamento FAPEMA Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 147 a ideia que a televisão não está nem morta e nem morrendo, a outra, que a TV como conhecíamos já tem seus dias contados (p.8). As principias referências utilizadas são: El fin de los medios masivos. El comienzo de un debate (CARLÓN, Mario e SCOLARI, Carlos Alberto), reeditado em 2014 pela editora argentina La Crujía, com o título El fin de los medios masivos. El debate continúa; e TVMORFOSIS, la televisión abierta hacia la sociedad de redes (OROZCO, Guillermo), livro publicado no México, em 2012. Já nos primeiros artigos percebe-se esta como uma discussão pouco consensual. Para Mario Carlón, no artigo Repensando os debates anglo-saxões e latino-americanos sobre o “fim da televisão”, a grande parte dos pesquisados partem de diferentes perspectivas teóricas (Estudos Culturais, perspectiva Mcluhaniana ou Semiótica dos Meios da América Latina), por isso, propõe um panorama esquemático nitidamente polarizado, no sentido de organizar um quadro útil para o cenário geral (p.13). Em meio a opiniões que sugerem que a televisão da década de 60/70 está morrendo e/ou mudando de fase (da escassez às infinitas opções), o autor destaca o debate na América Latina, impulsionado por Eliseo Verón (2009), que situa três eixos centrais: “o fim da programação, a crise da televisão como meio e o novo papel do espectador” (p.15). De certo que algumas dessas mudanças já vinham sendo sinalizadas pela ampliação do uso do videocassete, do controle remoto e da pré-programação, distanciando o tempo da oferta do tempo de consumo (p.16). Por outro lado, essa flexibilização do tempo de acesso já anunciava questões na forma e na recepção: da escassez na oferta e na quantidade de aparelhos receptores à explosão, principalmente nos EUA, em caminho contrário: “em nossa sociedade, as pessoas têm gostos diferentes e realizam (por causa do seu pertencimento identitário a diferentes grupos sociais) sempre que podem, escolhas diferentes (esse fenômeno está explodindo nas moradias na medida em que as telas se multiplicam e cada um pode escolher o que ver” (p.17). Mario Carlón pondera em torno das aparentes distinções entre o que seria um novo ciclo para o mesmo objeto, e a finalização de uma era. Neste fato instaura-se a dificuldade do debate, consequência dos diferentes conceitos e interpretações dos processos históricos utilizados como referência no entendimento do contexto televisivo. Para o pesquisador, “encontramos no final de um período mais que uma nova fase” (p.17). Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 148 Em sentido geral, os textos que seguem organizados nesta coletânea articulam suas ideias (nem sempre consensuais) levando em consideração um ponto comum: certos tipos de televisão perduram, e o que inquieta é o entendimento sobre os caminhos a serem seguidos. Carlón avalia na fase pós-TV (com principal sintoma tem a descentralização do canal emissor no fenômeno que chama televisão expandida), que por mais enfraquecida que esteja sua vigência como programadora da vida social (experiência espectatorial única a partir da transmissão ao vivo), parte de suas características mais conservadoras muito possivelmente sobreviverá a qualquer nova fase, ou qualquer novo suporte. Carlos Scolari - This is the end: as intermináveis discussões sobre o fim da televisão -, que considera a televisão “a experiência comunicacional mais marcante do século XX” (p.39), sustenta a necessidade de articulação entre suporte e prática social, e a aparente crise do modelo broadcasting não tem poder de decretar o seu fim como linguagem e dispositivo. No sentido de escapar das armadilhas do prefixo pós-, sugere o conceito hipertelevisão para definir uma “configuração específica da rede sociotécnica em torno do meio televisivo […] Os programas da hipertelevisão adaptam-se a um ecossistema midiático no qual as redes e interações ocupam um lugar privilegiado e adotam algumas das características relevantes das ‘novas mídias’” (p.45). Entre elas: multiplicação de programas narrativos, fragmentação da tela, aceleração da história, narrativas em tempo real (ou gravado e distribuído sob demanda), histórias não-sequenciais e expansão narrativa. Para Scolari, essas características exigem que o telespectador disponha de “todas as suas competências narrativas, perceptivas e cognitivas para interpretar um produto textual cada vez mais atomizado, multitela, transmídia, carregado de personagens que conduzem uma complexa trama de programas narrativos” (p.50). Com o foco na recepção, Arlindo Machado e Marta Lucía Vélez discorrem sobre o Fim da televisão e focam em dois caminhos aparentemente contraditórios, duas modalidades de espectadores: os espectadores passivos e os interatores. Os autores seguem analisando perspectivas da cultura da convergência, discutida por Henry Jenkins (2008), no sentido de identificar várias experiências nesse campo: transmedia storytelling é “uma narrativa que se passa em vários meios diferentes ao mesmo tempo, sem que um meio repita o outro” (p.61). Para Machado e Vélez, a televisão na era da internet é feita para ser discutida, dissecada, debatida, prevista e criticada. No entanto, às vezes, “parece que a televisão apenas mimetiza o design da internet, mas não a sua linguagem, o seu modo de operação” (p.75). Programas como Lost, por exemplo, prometeram mudanças profundas na forma de produzir e consumir Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 149 televisão. “Resta saber se os outros programas vão segui-lo e, preferencialmente, superá-lo. Resta saber, enfim, até quando a televisão tal como a conhecemos vai continuar e em que momento as pressões por mudanças serão tão fortes que a questão se restringirá a mudar ou morrer” (p.75). Por outra ótica, Toby Miller, em O agora e futuro da televisão, o uso da internet como um potente dispositivo de marketing para a televisão impulsiona a ideia deste meio como cenário confiável para os anunciantes financiadores dos conteúdos produzidos, visto que a fragmentação da audiência aproxima o anunciante do seu nicho específico. O que já demonstra a dificuldade em encontrar soluções únicas para a grande questão postulada de início. Miller sai em defesa da televisão como dispositivo. “Em 2008, havia 1,1 bilhão de aparelhos de televisão em todo mundo, dos quais 43% recebiam sinal aberto e 38% sinal por cabo ("World", de 2009). A televisão é mais diversificada, difusa, popular, poderosa e inovadora do que nunca. Nossos brilhantes e novos televisores de tela plana serão destronados se a nova geração Sony, Samsung, LG, Toshiba, Sharp e Panasonic com streaming de filmes e widgets do Yahoo!/Intel para se conectar à internet com informações sobre o clima e as finanças, ou reprodutores Blue-Ray com acesso à internet decolarem” (p.83). Todas essas descrições sobre o futuro da televisão, de alguma forma, passam pelo que Guilhermo Orozco elabora em Televisão: causa e efeito em si mesma. Para o pesquisador mexicano, buscamos identificar não o futuro, mas os “futuros”, pois são muitas questões interconectadas, não apenas porque a TV está interligada a elas, “mas porque ela mesma é ‘muitas coisas ao mesmo tempo’ […] A TV é uma instituição social, pública ou privada, e uma indústria cultural, bem como um dispositivo de geração e distribuição de imagens, informação e publicidade, o que a faz um instrumento de mercado altamente cobiçado” (p.9697). Orozco propõe pela perspectiva dos Estudos Culturais compreender a televisão a partir dos seus aspectos socioculturais, partindo de uma questão técnica, a de que as telas se multiplicam para fora das casas, institui-se daí um novo sujeito espectador, o que significa “uma mudança substancial em nossas maneiras de ‘estar e ser’ na vida cotidiana e, especialmente, em nossos modos de ver e acreditar na realidade por meio da sua representação na tela” (p.98). É a partir dessa dimensão que o autor identifica mudanças substanciais, de “um novo ‘contrato’ social, nesse caso, um contrato televisivo frente às diferentes telas do presente e no futuro” (p.99). Para Orozco, o fenômeno televisivo estruturase em um espaço de negociação entre tela e público, o que estabelece um tipo de Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 150 reconhecimento mútuo entre a expressão audiovisual (sua gramática) e as situações de uso desta. “E seria uma mudança nessa dimensão que poderia significar não propriamente um ‘fim da TV’, mas o início de outro contrato televisivo paralelo e, especialmente, o surgimento de outros tipos de reconhecimento e comportamento do público televisivo em cenários digitais” (p.101). De qualquer forma a televisão se estabeleceu como “o epicentro do audiovisual” (p.102), e muito se discutiu em relação às formas de experimentação do real, da sua descentralização como tela dominante, novos formatos que surgem etc., e juntando a essa efervescência, Orozco destaca “as narrativas transmídias (SCOLARI, 2003) e as criações fanfiction dos espectadores (JENKINS, 2008)”, a partir das quais o conteúdo produzido para TV procura expandir-se, como experiências capazes de atingir múltiplas telas, formatos e condições de recepção. Assim, vivencia-se hoje uma situação “bipolar. Coexistem antigas e novas audiências, velhos e novos contratos televisivos, assim como formas novas e antigas de assumir os novos reconhecimentos mútuos entre a TV e o público” (p.107). O autor destaca que, inevitavelmente, tendências opostas coexistirão e que a TV, de uma forma ou de outra, segue mais viva que nunca, apesar dos muitos desafios encontrados. A partir dos tópicos já elaborados pelos demais autores, Yvana Fechine, em Elogio à programação: repensando a televisão que não desapareceu, discute, fundamentalmente, uma linha que torne possível descrever menos os conteúdos que circulam e mais a “vivência cotidiana com a televisão como fenômeno cultural” (p.116). Assim, a pesquisadora procura compreender as experiências de fruição experimentadas em relação às sensibilidades e hábitos relacionados às rotinas com a televisão. “Como se dá tal processo que resulta, então, na construção de um hábito? Basicamente, pela descoberta de um gosto pelo gozo da fruição ou o ‘gosto da fruição’: fruição na qual se renova o gosto do sujeito pelo objeto; gosto que se produz justamente no e pelo reiterado contato de um com o outro” (p.120). Nesse sentido, Fechine retoma a discussão sobre a grade de programação - como esse arranjo contínuo de conteúdos que se repetem ao longo dos dias da semana - e destaca um evidente conforto para essa cotidianidade regular. “Silverstone (1996) já havia chamado a atenção para esse importante papel da TV na construção desse sentimento de ‘sentir-se em casa’ […] descreve o lar como produto de nosso compromisso prático e emocional com um determinado espaço” (p.123). Portanto, sendo a TV um desses vínculos articuladores das práticas cotidianas e domésticas, aparece também como componente estruturador de familiaridades, hábitos, Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015 151 conforto e, fundamentalmente, o que a autora destacou como “uma experiência comum de ver TV” (p.124). Esse efeito de comunicação direta, presente também na transmissão ao vivo da televisão, transforma o meio em um poderoso instrumento de integração social, numa “escala mais individual, esse efeito de encontro corresponde ao sentimento de ‘ver junto’ e, como consequência, um ‘estar com’ e um ‘sentir-se junto’ que se manifesta, sobretudo, nas coberturas ao vivo de eventos especiais” (p.125). Essa estrutura, que sustenta a possibilidade do espectador dos fluxos midiáticos sentir-se parte de um mesmo corpo social, através da simultaneidade entre produção e recepção, transforma a televisão, a partir da multiplicação da telas, “mais que nunca em lugar de interação” (127). A autora cita como exemplo a transmissão dos jogos da copa do mundo, como esse momento de sentir-se junto tão somente pela experiência de compartilhar simultaneamente conteúdos televisionados. Uma experiência que ganha nova dimensão pelo uso crescente de redes sociais digitais, o que por outro lado apenas potencializa “o que sempre foi uma das propriedades fundamentais da lógica da grade direta de programação: o compartilhamento de conteúdo” (p.128). Para Yvana Fechine, portanto, as novas práticas difundidas a partir da digitalização e da convergência entre mídias não são ameaças, pelo contrário, reforçam o consumo através da grade de programação, pois ampliam o sentimento de “estar conectado” e a possibilidade de intervenção dos telespectadores nos programas ao vivo. “A aposta da centralidade da grade na nossa experiência com a TV é também o que orienta o desenvolvimento dos chamados conteúdos de ‘segunda tela’ sincronizados com a programação. Concebidos, sobretudo, para tablets e smartphones (considerados, neste caso, como tela auxiliares a da TV), eles funcionam como conteúdos complementares aos programas ofertados na grade (informações adicionais, por exemplo)” (p.129). Enfim, as conclusões possíveis ao final da leitura dos diversos artigos na coletânea, certamente, não terão uma única configuração. Isso porque, sob o viés dos diferentes ângulos histórico/ conceituais, os pesquisadores não decretam um fim, mesmo quando o assunto diz respeito à mais antiga conformação televisiva: a grade de programação. Em linhas gerais, cada um a sua maneira considera inviável para este momento instituir verdades absolutas ou definitivas (p.7). E se há algum acordo entre as partes que envolvem esse mosaico de opiniões detém-se à importância de analisar mudanças históricas, tecnológicas, formas de produção e consumo, e assim buscar compreender novos comportamentos para dignosticar possíveis novas estratégias frente às múltiplas possibilidades descritas. Rev. Cambiassu, São Luís, v.15, n.16, janeiro/junho 2015