4. A STREET CAR NAMED DESIRE, DE TENNESSEE WILLIAMS

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4. A STREET CAR NAMED DESIRE, DE TENNESSEE WILLIAMS
A STREET CAR NAMED DESIRE, DE TENNESSEE WILLIAMS: a
caracterização da personagem Blanche Dubois
Nádia Regina Quilici MONTANHINI 1
RESUMO
Este artigo pretende discutir como o dramaturgo Tennessee Williams caracterizou a
personagem principal da peça Um bonde chamado desejo, Blanche Dubois, usando
para isto a música e um objeto.
PALAVRAS-CHAVE: Teatro. Personagem. Caracterização.
Introdução
Luigi Pirandello (1867-1936), um dos grandes nomes da literatura moderna, foi o
ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1934.
No ano de 1921, o Teatro Odescalchi de Roma apresenta a peça Seis Personagens à
Procura de um Autor, trabalho este que constitui o marco fundamental da obra
dramática de Pirandello em um gênero a que se vinha dedicando desde 1900. A peça se
inicia com o diretor supervisionando o ensaio de um grupo de atores. O trabalho cessa
com a chegada de seis pessoas que se apresentam como personagens, ou seja, são todas
provindas da imaginação de um autor que depois se recusou a escrever sua história.
Elas, então, pedem que os atores as representem.
No diálogo estabelecido entre uma das personagens e o diretor podemos encontrar a
definição, a essência do que seja uma personagem, um ser que uma vez criado é imortal,
que deixa de pertencer ao seu autor para adquirir vida própria e que, não tendo passado
nem futuro, em sua imutabilidade é e está sempre presente na memória dos leitores.
Acreditamos serem de significativo interesse para este trabalho, que se preocupa
justamente com a caracterização da personagem, algumas das falas constantes no
terceiro ato dessa peça, as quais reproduzimos a seguir:
O PAI (digno, mas sem soberba) – Uma personagem, senhor, pode
sempre perguntar a um homem quem ele é. Porque uma
personagem tem, verdadeiramente, uma vida sua, assinalada
por caracteres próprios, em virtude dos quais é sempre
“alguém”. Enquanto que um homem – não me refiro ao
senhor agora – um homem, assim, genericamente, pode não
ser ninguém.
[...]
O DIRETOR – Mais real do que eu?
O PAI – Se a sua realidade pode mudar, de hoje para amanhã...
1
Graduada em Letras – Português/Inglês pelas Faculdades Integradas Claretianas – Rio Claro, em 2005.
Atualmente cursa especialização em Língua Inglesa e Tradução na UNIMEP – Piracicaba.
UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.33-42, 2009.
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O DIRETOR – Mas se sabe que pode mudar, é claro. Muda
continuamente, como a de todos!...
O PAI (com um grito) – Mas a nossa, não! Está vendo? A diferença é
esta! Não muda, não pode mudar, nem ser outra, jamais,
porque já está fixada – assim – “esta” – para sempre – (é
terrível, senhor!) realidade imutável, que devia dar-lhes um
arrepio ao aproximarem-se de nós! (PIRANDELLO, 1978,
p.444-446)
Na leitura de uma peça, a falta do ator é suprida pela imaginação do leitor que,
visualizando as rubricas, instaura, em sua mente, personagens e cenários de forma
idealizada. Há quem prefira ler as peças em vez de assistir a elas, pois não quer arriscar
a perder o prazer estético à custa de um mau desempenho. Tais pessoas acreditam que
nenhuma realização igualaria ou superaria a liberdade criativa da própria mente.
Segundo Magaldi (2003), os textos dramáticos constituem uma área específica dentro
da literatura. São ainda transmissores de uma mensagem que muitas vezes não foi
cogitada em outras áreas. É inegável que Eurípedes, Molière e Ibsen estiveram à frente
de seu tempo, levando-se em conta as demais manifestações artísticas, sendo que um
grande dramaturgo deve ser considerado como um patrimônio tanto dentro de sua área
específica quanto da literatura de modo geral.
Uma vez que, sem a obra dramática, é impossível haver teatro, costuma-se priorizar o
texto na análise do fenômeno teatral. Sabendo que a literatura dramática fica
documentada em livro, que os cenários e figurinos se eternizam em fotografias e
desenhos, mas que o espetáculo, a representação em si, é uma arte efêmera, optamos,
neste trabalho, pela análise do texto da peça Um bonde chamado desejo, de Tennessee
Williams, no que diz respeito à configuração da personagem principal, Blanche Dubois.
A personagem no teatro
As semelhanças existentes entre um romance e uma peça de teatro são evidentes, uma
vez que ambos contam uma história que supostamente aconteceu em algum lugar, em
um dado momento, a um determinado número de pessoas. Isto faz com que não sejam
raras as adaptações de romances ao palco.
Por outro lado, o que nos permite distinguir entre estes dois gêneros literários é a
personagem.
No romance a personagem é um elemento entre vários outros, ainda
que seja o principal. [...]. No teatro, ao contrário, as personagens
constituem praticamente a totalidade da obra: nada existe a não ser
através delas. [...]. Em suma, tanto o romance como o teatro falam do
homem – mas o teatro o faz através do próprio homem, da presença
viva e carnal do ator. (CANDIDO et al., 1998, p.84).
A personagem teatral não utiliza um narrador para contar sua história uma vez que, no
teatro, a história nos é mostrada como se fosse a realidade realizando-se ante nossos
olhos. No que diz respeito aos modos pelos quais se dá a caracterização da personagem
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teatral, podemos citar três: o que a própria personagem revela sobre si mesma, os seus
atos, e o que as outras personagens comentam sobre ela.
Quanto ao primeiro modo de caracterização da personagem, temos que a mesma precisa
traduzir em palavras, comunicar por meio do diálogo o que se passa em sua mente, já
que o espectador não tem acesso aos seus conflitos interiores. Para tanto, o teatro lança
mão de alguns instrumentos a fim de executar o trabalho de expor o interior de uma
personagem; dentre eles, vale ressaltar o confidente, o aparte e o monólogo. O
confidente é definido como o desdobramento do herói, podendo ser um empregado ou
um amigo perante o qual a personagem confessa o inconfessável. No aparte, o
confidente é o público, ou seja, é diretamente ao público que a personagem relata o seu
conflito, expõe o seu íntimo. Quanto ao monólogo, a personagem está sozinha em
conversa consigo mesma. Constituem exemplo de monólogo os devaneios solitários que
muitas vezes podem estar relacionados a problemas mentais.
Tais mecanismos de revelação interior, acima descritos, parecem ter algo de artificial e
estranho às regras do teatro, fato este que já não acontece quando a personagem é
caracterizada pelos seus atos.
A ação não é só o meio mais poderoso e constante do teatro através
dos tempos, como o único que o realismo considera legítimo. Drama,
em grego, significa, etimologicamente, ação: se quisermos delinear
dramaticamente a personagem devemos ater-nos, pois, à esfera do
comportamento, à psicologia extrospectiva e não introspectiva. Não
importa, por exemplo, que o ator sinta dentro de si, viva, a paixão que
lhe cabe interpretar; é preciso que a interprete de fato; isto é, que a
exteriorize, pelas inflexões, por certo timbre de voz, pela maneira de
andar e de olhar, pela expressão corporal etc. Do mesmo modo, o
autor tem de exibir a personagem ao público, transformando em atos
os seus estados de espírito. (CANDIDO et al., 1998, p.91).
Referindo-nos agora ao terceiro modo de conhecimento da personagem, que é pelo qual
as demais personagens falam a seu respeito, temos que nada de importante há a observar
a não ser que o autor da peça, ao utilizar as suas personagens para exprimir seus
pensamentos, atribui-lhes um grau de consciência crítica que, em outras condições, as
mesmas não teriam ou não precisariam ter.
Reportando-nos agora à peça em estudo, verificamos que o autor se utilizou das três
maneiras acima citadas para a caracterização da personagem Blanche Dubois. Nas
conversas de Blanche com a irmã Stella temos a própria personagem revelando o seu
passado, ou seja, é por meio dos diálogos entre Blanche e Stella que o leitor fica
sabendo sobre a perda da propriedade e sobre as dificuldades financeiras pelas quais a
personagem passou. É também em um diálogo entre Blanche e Mitch que ficamos
sabendo sobre o que aconteceu ao primeiro marido de Blanche. A caracterização através
do que falam os outros personagens pode ser encontrada nos diálogos entre Stella e
Stanley, quando Stella revela ao marido o caráter sensível da irmã, bem como os
problemas que a mesma teve com o primeiro marido. Stanley, por seu lado, conta à
esposa toda a verdade sobre Blanche, isto é, o verdadeiro motivo de ela ter saído da
escola em que trabalhava, abandonando a cidade em que vivia e vindo residir com eles.
Mas é por meio das várias ações de Blanche que o autor desnuda o seu caráter para o
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leitor de forma mais eficaz, ou seja, é por meio de suas ações que descobrimos o que vai
em seu interior. No decorrer da peça, uma das ações praticadas por Blanche, em
particular, merece destaque não só pela sua força expressiva, como também pela sua
repetição. São os infindáveis banhos quentes de Blanche, momentos em que ela fica
imersa na banheira por longos períodos de tempo, na tentativa de acalmar os seus
nervos.
Tais banhos são muito significativos, assim como a água é um símbolo bastante rico em
conotações. Na busca por explicações possíveis para as ações de Blanche; podemos
dizer que os banhos quentes, ato relacionado a rituais de purificação, demonstram a
vontade de Blanche de se limpar, não apenas externamente, mas também o seu interior.
Os banhos podem estar associados à vontade de Blanche de se “limpar” das sujeiras do
passado, de apagar do seu corpo as marcas da vida devassa que vinha levando nos
últimos anos.
Podemos pensar também que, segundo a ciência, a vida em nosso planeta teve seu início
nas águas dos oceanos (sopa primordial); os banhos quentes denotam a vontade de
Blanche de renascer para uma nova vida, esquecendo o seu passado.
A quantidade de banhos mencionados durante toda a obra, bem como o fato de que
tomar um banho foi a última coisa que ela fez, conscientemente, na casa de Stella,
mostram que suas tentativas de se limpar, esquecer o passado e renascer para uma nova
vida foram infrutíferas, pois o seu fim é uma instituição do Estado destinada a pessoas
com problemas mentais.
A caracterização da personagem Blanche Dubois
Ao escrever a peça Um bonde chamado desejo, Tennessee Williams fez uso de recursos
que o evidenciaram como um dramaturgo capaz de dominar tal gênero literário.
Conforme Gottfried (1970), ao utilizar-se de uma série de conhecimentos tidos como
acessórios, tais como a pintura e a cor, Williams soube dar consistência ao seu texto.
O cenário da cena III – “A Noite de Pôquer” – é descrito com riqueza de detalhes no
que diz respeito às cores:
Há uma reprodução de van Gogh, de um salão de bilhar à noite. A
cozinha sugere agora a espécie de lúrido brilho noturno, as cores cruas
do espectro da infância. Sobre o linóleo amarelo da mesa da cozinha
pende uma lâmpada elétrica com um vívido quebra-luz de vidro verde.
Os jogadores de pôquer [...] vestem camisas coloridas, azuis sólidos,
púrpura, xadrez vermelho e branco, verde-claro, e são homens no
cume de sua masculinidade física, tão grosseiros e diretos e poderosos
como as cores primárias. Há vívidas fatias de melancia em cima da
mesa, garrafas de uísque e copos. (GOTTFRIED, 1970, p.350)
Segundo a literatura,
Os dramaturgos raramente têm sentidos de pintura plenamente
desenvolvidos, mas, ocasionalmente, idearão o cenário de uma cena
com algum conhecimento de valores visuais. Nunca encontrei outra
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marcação que se aproximasse dessa descrição de Williams, pela
profundidade de compreensão em questões de composição, cor,
simbolismo, forma, efeito e valor dramático (mesmo sua redação é
poética). (GOTTFRIED, 1970, p.351)
Por hora, tendo por base a importância dos objetos e da música na composição de uma
personagem, passaremos a analisar como Tennessee Williams se valeu habilmente dos
mesmos para a construção de sua personagem feminina mais conhecida, Blanche
Dubois.
Os objetos em cena
Na linguagem teatral, os objetos podem ser colocados, no que diz respeito ao poder de
transmitir uma mensagem, entre o cenário e o guarda-roupa, sendo que os mesmos
mantêm uma íntima relação com o ator que os manipula, direcionando-os para diversos
fins. Com isso queremos dizer que, entre os objetos e as personagens, pode-se verificar
uma estreita relação ou até mesmo uma interação.
Verificamos, então, que, “em teatro, o objeto deixa de ser neutro pelo fato de ter forma,
cor, um lugar em cena, pela sua vizinhança com outros objetos, pela importância que
lhe é atribuída, pelo modo como, em resumo, é interpretado” (GIRARD et al., 1980,
p.78).
Cabe ressaltar, entretanto, que, de há muito, os objetos merecem destaque quando
aparecem em cena. No teatro elisabetano, “cadeiras ou bancos indicavam que a cena se
passava dentro de casa; [...]; um guarda com uma lanterna indicava uma rua à noite. [...]
Todo drama supõe a aceitação de certas convenções e o emprego da imaginação, e o uso
de objetos substitui perfeitamente os cenários elaborados” (HARRISON, s/d, p.109).
Na peça em estudo, um objeto em particular chamou nossa atenção. É uma lanterna de
papel, a qual é mencionada pela primeira vez na cena III:
BLANCHE – Comprei esta adorável lanterninha de papel colorido
numa loja chinesa em Bourbon. Ponha-a sobre a lâmpada! Façame este favor, sim?
MITCH – Com prazer.
BLANCHE – Não posso suportar a luz crua duma lâmpada, assim
como não posso suportar uma observação rude ou uma ação
vulgar. (PEDREIRA, 1980, p.95)
Neste diálogo fica evidente a fragilidade de Blanche e a sua incapacidade de aceitar o
mundo tal qual este se lhe apresenta, bem como de ver e viver a sua vida segundo a sua
própria realidade. Ela precisa de algo, um objeto, que lhe proporcione a ilusão de estar
vivendo num mundo de sonhos, um objeto que, atenuando a crueldade e a dureza das
pessoas, torne a sua existência suportável. Essa camuflagem opera nos dois sentidos, ou
seja, a lanterna tanto possibilita a Blanche suportar o mundo em que vive, pois filtra a
realidade, e ela vê somente o que quer ver, como faz com que Mitch, sob a luz da
mesma lanterna, se engane a respeito da idade de Blanche, achando que ela é mais nova
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do que na verdade é. Desse modo, ele também passa a enxergar Blanche nesse mundo
ilusório, que ela criou para si mesma e no qual habita.
A segunda vez que a lanterna recebe destaque é na cena V, quando Blanche, em
conversa com Stella, demonstra estar desconfiada de que Stanley tenha descoberto a
verdade sobre o seu passado:
BLANCHE – Eu não fui muito bem comportada, nestes dois últimos
anos, depois que Belle Rêve começou a escapar-me por entre os
dedos.
STELLA – Todos nós fazemos coisas que...
BLANCHE – É... Mas eu nunca fui bastante forte. Quando as pessoas
delicadas como eu precisam de calor humano, elas têm de usar
cores suaves e pôr uma lanterna de papel na lâmpada para
amortecer a luz, mas basta ser delicada! Não sei por quanto
tempo ainda poderei enganar os outros. (WILLIAMS, 1980,
p.132)
No diálogo acima, Blanche deixa bem claro o tipo de pessoa que é e a necessidade que
ela tem de usar uma lanterna para ajudar a escamotear a dura verdade que a cerca.
A terceira vez em que se menciona a lanterna é na cena IX, quando Blanche está
sozinha em casa e Mitch aparece para vê-la. É o aniversário de Blanche. Durante o
jantar há uma discussão entre ela e Stanley. Devido à tensão do ambiente, Stella, no
final de sua gravidez, passa mal e é levada pelo marido ao hospital. O motivo do
desentendimento entre Blanche e Stanley é que este expulsa Blanche de casa ao dar-lhe
de presente de aniversário uma passagem de ônibus para Laurel. Nessa altura, Stanley já
descobriu toda a verdade a respeito do passado de Blanche, sendo que ele colocou Stella
e Mitch a par de tudo. Mitch, então, está indo para a casa de Blanche a fim de terminar
em definitivo o compromisso entre ambos.
Os dois começam a conversar, e Mitch menciona o fato de nunca ter visto Blanche à luz
do dia:
MITCH (levantando-se) – Está escuro aqui.
BLANCHE – Eu gosto da escuridão. A escuridão me conforta.
MITCH – Acho que nunca vi você à luz. (Blanche ri quase sem
fôlego.) É verdade!
[...]
BLANCHE – Deve haver algum significado obscuro em tudo isso?
Não consigo compreender.
MITCH – O que significa é que eu nunca pude olhar bem para você,
Blanche. Vamos acender a luz aqui.
BLANCHE (medrosamente) – Luz? Que luz? Para quê?
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MITCH – Essa que está com esse troço de papel. (Rasga a
lanterninha de papel da lâmpada. Ela ofega, assustada).
BLANCHE – Para que você fez isso?
MITCH – Para ver você bem, como você é!
BLANCHE – Você não está querendo insultar-me!
MITCH – Não, só estou querendo ser realista.
BLANCHE – Não quero realismo. Eu quero magia. (Mitch ri). Sim,
sim, magia. É o que tento dar às pessoas. Não digo a verdade,
digo o que deveria ser verdade. E se isso é pecado, que eu seja
amaldiçoada para sempre. Não acenda a luz!
(Mitch vai até o interruptor. Acende a luz e olha
fixamente para ela. Ela solta um grito e cobre o
rosto. Ele apaga a luz novamente.) (WILLIAMS,
1980, p.187-189).
Ao rasgar a lanterna Mitch obriga Blanche a encarar o mundo, a realidade, coisas que
lhe são insuportáveis. Ela já não tem mais um objeto que lhe permita ver o mundo e as
pessoas de forma ilusória. O seu mundo de sonho não existe mais. Com a quebra do
encanto, tanto Blanche passa a ver a vida ao seu redor como ela realmente é, quanto
Mitch começa a ver Blanche sem ilusão ou fantasia.
A figura de uma mulher mexicana, uma florista, que entra em cena vendendo flores
para los muertos é bastante significativa, pois o que a mesma faz é anunciar a todos a
morte do mundo de sonhos em que Blanche vivia, e de certo modo a morte da própria
Blanche. A mulher traz flores para o seu funeral.
A quarta e última vez em que a lanterna aparece é na cena final, quando um médico e
uma enfermeira vêm buscar Blanche para levá-la embora. Blanche não quer ir na
companhia de estranhos e alega ter esquecido alguma coisa. Neste momento tem
significado especial a fala de Stanley:
STANLEY – Você só deixou talco derramado e garrafas de perfume
vazias, a não ser que você queira levar a lanterna de papel. Você
quer a lanterna?
(Vai até a penteadeira e apanha a lanterna de
papel, separando-a da lâmpada, e a estende na
direção dela. Ela grita como se a lanterna fosse
ela mesma. [...]) (WILLIAMS, 1980, p.226).
Ao lhe oferecer a lanterna de papel, Stanley está lhe oferecendo a possibilidade de
voltar a viver num mundo de sonho, ao mesmo tempo em que a lembra de que isso não
é mais possível, pois todos já sabem a sua história.
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Totalmente desequilibrada, Blanche é agora tão frágil quanto a lanterna e tão incapaz
quanto ela de provocar a ilusão nas pessoas. Seu destino está irremediavelmente
traçado.
A música em cena
Segundo a literatura,
Desde cedo, os encenadores souberam tirar proveito dos
aperfeiçoamentos das técnicas de reprodução e difusão do som. Um
espaço, com efeito, não se define apenas pelos elementos visuais que
o constituem, mas também por um conjunto de sonoridades,
características ou sugestivas, que tecem para o ouvido uma imagem
cuja eficiência sobre o espectador foi mil vezes comprovada. Sabe-se,
aliás, que a audição é um veículo de ilusão mais sensível ainda que a
visão. (ROUBINE, 1998, p.154).
Conforme Girard et al. (1980), a capacidade de trazer à lembrança uma determinada
atmosfera é, dentre todas as funções da música e do som de fundo, a que é utilizada com
mais frequência, sendo que tal poder sugestivo pode perdurar por toda a peça ou
enfatizar tão somente uma determinada situação ou estado psicológico, podendo ainda
concentrar-se sobre uma das personagens no sentido de revelar a sua classe social. Certo
tema musical pode também ser indicativo de um gesto ou de uma atitude.
No que diz respeito à peça em estudo, temos que “um motivo pianístico de blue é
repetidamente empregado para representar a sensualidade descontraída do French
Quarter de Nova Orleans” (GOTTFRIED, 1970, p.351). Ou seja, Tennessee Williams
usa o blue como música de fundo para criar o clima desejado.
Como contraste a tal utilização, sabemos que “os elementos sonoros de uma
representação podem também desempenhar um papel na estruturação do espaço
dramático, o aqui, espaço fictício representado, e o algures, espaço fictício evocado”
(GIRARD et al., 1980, p.86). Na peça de Williams, tal uso da música aparece nos
momentos em que Blanche ouve a polca (varsoviana), a música que estava tocando na
noite em que seu jovem marido se suicidou. Essa música é ouvida pelos espectadores e
também por Blanche, uma vez que ela está em sua cabeça, como um terrível fantasma a
assombrá-la constantemente.
A primeira vez que o som de uma polca é mencionado nas rubricas é ao final da cena I,
no momento em que Blanche conta a Stanley que já havia sido casada quando jovem,
mas que o rapaz havia morrido. Daí por diante, o som da polca aparece inúmeras vezes,
como, por exemplo, na cena VI, quando Blanche conta a Mitch os fatos que
antecederam ao suicídio de seu primeiro marido; e na cena VIII, quando Stanley entrega
a Blanche o seu presente de aniversário, ou seja, a passagem de ônibus de volta a
Laurel. Nas cenas IX e XI a polca aparece por diversas vezes, para indicar que Blanche
está perdendo a razão, que ela começa a viver mais no passado que no presente, bem
como a confusão que começa a se instalar em sua mente perturbada, confundindo
realidade e ilusão. O som da polca está irremediavelmente ligado ao seu passado e ao
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suicídio de seu primeiro marido, que era homossexual, e é no sentido de fazer o
espectador saber o que vai nos pensamentos da personagem que o autor se valeu de tal
fundo musical.
Por fim, outro uso que Williams faz da música, no sentido de colaborar na
caracterização da personagem Blanche, está na cena VII. É o dia do aniversário de
Blanche. No momento em que Stanley chega do trabalho, ela está imersa na banheira
em mais um de seus infindáveis banhos. Stanley, então, aproveita-se da ocasião para
contar à esposa tudo que havia descoberto sobre o passado da irmã. Blanche, cantando
durante o banho, não imagina o que se passa do outro lado da porta. O interessante,
nesse caso, é que a música que Blanche está cantando, uma canção popular, serve de
contraponto para tudo o que Stanley relata a seu respeito. A canção possui a seguinte
letra:
Diga, é só uma lua de papel,
Velejando num mar de papelão...
Mas não seria pura tapeação,
Se você acreditasse em mim!
É um mundo de mentiras, como um circo.
Tão falso quanto pode ser...
Mas não seria pura tapeação,
Se você acreditasse em mim! (WILLIAMS, 1980, p.162-163).
Em outras palavras, por meio da música, Blanche se declara uma mentirosa, dando
ainda mais peso às coisas que Stanley conta a seu respeito. Devido ao seu sentido
ambíguo, entretanto, a música permite, também, outra interpretação. Ou seja, podemos
dizer que as mentiras de Blanche se tornariam verdades se alguém acreditasse em tudo o
que ela diz. O seu mundo imaginário passaria a ser real, bastando para isso que alguém
acreditasse na sua existência.
Considerações finais
Do estudo feito, podemos concluir da habilidade demonstrada pelo autor, Tennessee
Williams, em utilizar os objetos de cena e a música para caracterizar sua protagonista
Blanche Dubois.
A lanterna de papel mostra claramente a fragilidade de Blanche, a necessidade que ela
tem de enxergar o mundo real de uma forma distorcida e ilusória, forma esta que lhe
possibilita viver envolta em sonhos e mentiras, mas que lhe tornam a vida suportável.
Blanche e a lanterna se confundem no decorrer da peça. Na última cena, a lanterna
aparece nas mãos de Stanley, assim como Blanche também acaba nas mãos do homem
que a destruiu por completo.
A música é habilmente utilizada para mostrar o mais íntimo da personagem. Se ,no
início, a mesma pode ser associada meramente à lembrança do passado, deixando-nos
saber em que Blanche estava pensando em um determinado momento, ao final, está
ligada ao estado de desequilíbrio crescente vivenciado pela personagem.
UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.33-42, 2009.
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ABSTRACT
This paper intends to discuss how the playwright Tennessee Williams
characterized the main character of the play A Streetcar Named Desire, Blanche
Dubois, using for this music and an object.
KEYWORDS: Theater. Character. Characterization.
REFERÊNCIAS
CANDIDO, A. et al. A personagem de ficção. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
GIRARD, G.; OUELLET, R.; RINGAULT, C. O universo do teatro. Tradução de
Maria Helena Arinto. Coimbra: Almedina, 1980.
GOTTFRIED, M. Teatro dividido: a cena americana no pós-guerra. Tradução de Eglê
Malheiros. Rio de Janeiro: Bloch, 1970.
HARRISON, G.B. Shakespeare: traços da vida e aspectos da obra. Tradução de Maria
Júlia Brandão Lopes. São Paulo: Melhoramentos, s/d.
MAGALDI, S. Iniciação ao teatro. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.
PIRANDELLO, L. O falecido Mattia Pascal; Seis personagens à procura de um
autor. Tradução de Mário da Silva, Brutus Pedreira e Elvira Rina Malerbi Ricci. São
Paulo: Abril Cultural, 1978.
ROUBINE, J-J. A linguagem da encenação teatral: 1880-1980. Tradução de Yan
Michalski. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
WILLIAMS, T. Um bonde chamado desejo. Tradução de Brutus Pedreira. São Paulo:
Abril Cultural, 1980.
UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.3, n.2, p.33-42, 2009.

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