Atas do Simpósio sobre Política Nacional do Meio Ambiente e

Transcrição

Atas do Simpósio sobre Política Nacional do Meio Ambiente e
Universidade Católica de Goiás
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia
FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA
ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE
POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL
Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e
a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil
Goiânia, 9 a 12 de dezembro de 1996
Solange Bezerra Caldarelli
(Organizadora)
1997
APOIO:
PRONAC/MinC - Lei Nacional de Incentivo à Cultura
IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
UNESCO-Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
PATROCÍNIO:
FURNAS Centrais Elétricas S/A
PETROBRÁS-Petróleo Brasileiro S/A
CNPq-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Nacional
1
ÍNDICE
Pág.
Apresentação - Jézus Marco de Ataídes ..........................................................
Introdução - Solange Bezerra Caldarelli ........................................................
1a. Mesa-Redonda: DIAGNÓSTICOS CULTURAIS EM ESTUDOS DE IMPACTO
AMBIENTAL ...........................................................................
Expositores ..........................................................................................................
Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens pré-históricos, em
áreas de implantação de empreendimentos hidrelétricos - Paulo J. de C. Mello
......
Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens históricos, em áreas
de implantação de empreendimentos hidrelétricos - Marcos André Torres de
Souza
Levantamento arqueológico, para fins de diagnóstico de bens pré-históricos, em
áreas de implantação de dutovias - Jorge Eremites de Oliveira .............................
2ª Mesa-Redonda: AVALIAÇÃO DE IMPACTOS CULTURAIS EM ESTUDOS AMBIENTAIS
Expositores ..........................................................................................................
Avaliação dos impactos de grandes empreendimentos sobre a base de recursos
arqueológicos da nação: conceitos e aplicações - Solange Bezerra Caldarelli
........
Avaliação de impactos arqueológicos de empreendimentos regionais e medidas
mitigadoras aplicáveis - Gilson Rodolfo Martins ..................................................
Avaliação de impactos arqueológicos de empreendimentos urbanísticos e
medidas mitigadoras aplicáveis - Lúcia de Jesus Cardoso Oliveira Juliani
.........................
3ª Mesa-Redonda: ELABORAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS DE
RESGATE E MONITORAMENTO DOS BENS PRÉ-HISTÓRICOS E
HISTÓRICOS..................................................................................
Expositores ..........................................................................................................
O uso de variáveis ambientais na detecção e resgate de bens pré-históricos em
áreas arqueologicamente pouco conhecidas - Emília Mariko Kashimoto ................
O resgate de bens arqueológicos pré-históricos em áreas de implantação de
empreendimentos hidrelétricos: o caso da UHE Serra da Mesa, GO - Dilamar
Cândida. Martins .................................................................................................
O resgate de bens arqueológicos históricos em áreas de implantação de
empreendimentos hidrelétricos: o caso da UHE Serra da Mesa, GO - Carlos
Magno Guimarães ...............................................................................................
Detecção e resgate de bens arqueológicos em áreas de implantação de projetos
rodoviários - Maria do Carmo Mattos Monteiro dos Santos .................................
4ª Mesa-Redonda: RECURSOS CULTURAIS INTANGÍVEIS: MEIOS DE DIAGNOSTICÁLOS E DE AVALIAR, MITIGAR E MONITORAR SEUS IMPACTOS
................
Expositores ..........................................................................................................
O patrimônio natural e o cultural: por uma visão convergente - Antonio Carlos
Sant’Ana Diegues ................................................................................................
A contribuição dos estudos antropológicos na elaboração dos relatórios de
impacto sobre o meio ambiente - Rinaldo Sérgio Vieira Arruda
.........................................
Levantamento e diagnóstico de bens culturais intangíveis - Carlos Eduardo
Caldarelli ............................................................................................................
2
O resgate da cultura intangível refletida na cultura material - Heloísa S. F. Capel
de Ataídes ............................................................................................................
Pág.
5ª Mesa-Redonda: GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO ÂMBITO DO
FEDERALISMO COOPERATIVO E COMPATIBILIZAÇÃO DAS
NORMAS LEGAIS DAS ÁREAS CULTURAL E AMBIENTAL...........
Expositores ..........................................................................................................
As Cartas Internacionais e a Proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro - Suzanna
Cruz Sampaio ......................................................................................................
As normas de proteção ao patrimônio cultural brasileiro em face da Constituição
Federal e das normas ambientais - Helita Barreira Custódio .................................
Aspectos jurídico-processuais da proteção ao patrimônio cultural brasileiro Roberto Monteiro Gurgel Santos .........................................................................
Aspectos jurídicos da proteção ao patrimônio cultural arqueológico e
paleontológico - José Eduardo Ramos Rodrigues .................................................
O licenciamento ambiental e a competência dos órgãos de proteção ao patrimônio
cultural brasileiro - Carlos Eduardo Caldarelli ....................................................
Documento-Síntese .........................................................................................
ANEXOS: ..................................................................................................................
1. Parecer acerca da avaliação do impacto da Hidrovia Paraguai-Paraná sobre o
patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul - Jorge Eremites de Oliveira ......
2. Coletânea da legislação de proteção ao patrimônio cultural ...................................
3
APRESENTAÇÃO
É com grande satisfação que a Universidade Católica de Goiás, aqui
representada pelo Instituto Goiano de Pré História e Antropologia, na
comemoração de seus 25 anos, apresenta, de forma inédita, as mais recentes
discussões acadêmicas e políticas que envolvem a preservação cultural no
Brasil, incluindo bens históricos e pré-históricos. Este documento foi
produzido durante o simpósio “Política Nacional do Meio Ambiente e
Patrimônio Histórico Cultural”, um evento do Fórum Interdisciplinar Para
o Avanço da Arqueologia e realizado, em Goiânia, pelo IGPA/UCG durante o
período de 09 a 12 de dezembro de 1996.
Tendo como objetivo central investigar as repercussões dos dez anos
da Resolução CONAMA nº 001/86 que instituiu a Avaliação de Impactos
Ambientais, o importante encontro reuniu profissionais experientes que
trabalharam nos maiores e mais significativos estudos e levantamentos de
Impactos Culturais e Arqueológicos em todo o país.
Com o apoio do IPHAN - Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, da UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação
Ciência e Cultura e do CNPq - Conselho Nacional de Pesquisa, além de Órgãos
Estaduais e de Empreendedores, o Simpósio, estruturado em forma de mesas
redondas, apresentou e discutiu problemáticas práticas, teóricas e
metodológicas, além de temáticas jurídico-legais referentes à preservação dos
bens culturais no Brasil. Neste processo, estiveram em pauta questões sobre
diagnósticos, avaliação de impactos, programas de resgate , além de meios de
monitorar e mitigar os impactos sobre bens pré-históricos e históricos.
Das principais discussões apresentadas pelas mesas debatedoras e pelo
plenário, foram selecionados os problemas e propostas mais relevantes para
integrar um documento - síntese, encaminhado ao Ministério Público e aos
órgãos ambientais decisórios da União e Unidades Federativas.
Ao apresentar estas reflexões, o IGPA cumpre um dever histórico.
Como uma Instituição que, em seus 25 anos, procura meios de atuar sobre o
ambiente e a cultura através de Programas e Projetos Regionais, alimenta a
expectativa de poder contribuir com o processo de valorização da pesquisa
ambiental no Brasil, promovendo eventos dessa natureza e interferindo,
ativamente, através da experiência adquirida por meio de seus Projetos
Arqueológicos institucionais e de contrato, além das iniciativas pioneiras na
área de Patrimônio Histórico Cultural desenvolvidas recentemente.
Jézus Marco de Ataídes
Diretor do IGPA/UCG
4
INTRODUÇÃO
A Resolução CONAMA nº 001/86 instituiu efetivamente a AIA-Avaliação
de Impactos Ambientais como um dos principais instrumentos da Política Nacional do
Meio Ambiente, com profundas repercussões sobre a pesquisa e a gestão dos recursos
culturais no Brasil.
Decorridos dez anos de aplicação do instrumento, considerou-se oportuna, a
exemplo do que ocorreu em outros países, uma reflexão crítica sobre o modo como a
questão cultural vem sendo tratada, os problemas enfrentados pelos profissionais
chamados a atuar em Estudos de Impacto Ambiental, as deficiências detectadas, as
dificuldades enfrentadas, os sucessos alcançados e os problemas jurídico-legais
decorrentes de uma legislação elaborada décadas antes de a questão ambiental ser
colocada institucionalmente.
O instrumento considerado mais oportuno para esta reflexão foi um
simpósio, que congregasse profissionais (acadêmicos ou não) que têm sido chamados
a atuar no planejamento ambiental, na área do patrimônio cultural (arqueólogos,
antropólogos, historiadores e arquitetos); profissionais que atuam junto aos órgãos
ambientais e aos órgãos de proteção ao patrimônio cultural e advogados e membros
do Ministério Público que atuam nas áreas ambiental e cult ural.
O termo “Patrimônio Cultural” foi entendido, neste evento, da forma como
foi definido em recente “update” do Banco Mundial: “as manifestações presentes do
passado humano”, sejam estas materiais (pré-históricas e históricas) ou imateriais
(modos tradicionais de vida e de expressão).
O simpósio estruturou-se sob a forma de mesas-redondas, com expositores
convidados a apresentar e discutir a problemática de cada mesa, a partir de suas
experiências profissionais. A visão dos expositores foi sempre considerada uma visão
pessoal, que podia ou não ser compartilhada pelos demais participantes do evento. A
fim de relativizar essas posições e deixar claras outras opiniões, expressas no decorrer
do simpósio, os debates que se seguiram ao final das exposições de cada mesaredonda foram gravados, transcritos e publicados nas presentes Atas.
Para facilitar a reflexão sobre a problemática dos recursos culturais no
processo de elaboração de EIAs/RIMAs, as mesas redondas foram estruturadas na
mesma ordem de apresentação dos EIAs: estudos de diagnóstico, avaliação de
impactos e medidas mitigadoras. No entanto, outras questões foram também
aventadas, relativas à continuidade dos estudos nas demais etapas do processo de
licenciamento, ou seja, nos estudos para obtenção de LI (Licença de Implantação) e de
LO (Licença de Operação).
Afinal, é preciso reconhecer que a Resolução CONAMA 001/86, instituindo
a Avaliação de Impactos como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, e
incluindo os estudos sobre os bens culturais nacionais nesta avaliação, mudou o mapa
da pesquisa no país. Enquanto a pesquisa básica continua avançando em progressão
aritmética, como sempre ocorreu, a pesquisa aplicada a questões de planejamento
ambiental cresce em progressão geométrica e ocupa espaços geográficos ainda não
atingidos pela pesquisa básica.
5
É importante, portanto, que se busque o ordenamento concomitante desses
estudos e que se defina critérios mínimos para sua elaboração, de modo a que o
instrumento realmente permita a tomada de decisões acertadas sobre o destino a ser
dado aos recursos culturais identificados no decorrer dessas pesquisas. Esse foi um
dos objetivos primordiais do simpósio.
Após encerrarem-se as sessões, os coordenadores das mesas-redondas e os
respectivos relatores reuniram-se e redigiram um documento-síntese, com as posições
consensuais tiradas dos debates ocorridos durante o encontro, do qual constam as
recomendações de ordem geral, relativas ao patrimônio arqueológico, que se
considerou importantes serem observadas por todas as entidades envolvidas no
processo de licenciamento ambiental: IPHAN, empreendedores, órgãos ambientais
estaduais e federais, empresas de consultoria e arqueólogos contratados.
Exatamente por ter sido redigido e aprovado pelo plenário após amplas
discussões, em que todos tiveram a oportunidade de expressar-se, considerou-se que o
documento, publicado nestas Atas, representava o consenso dos diversos profissionais
presentes ao encontro. Por isso, decidiu-se por sua divulgação ampla, inicialmente
pela Internet, e, agora, pela sua distribuição aos órgãos decisórios sobre as questões
ambientais e culturais do país, ao Ministério Público e a instituições e empresas que
desenvolvem atividades arqueológicas.
As ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E
PATRIMÔNIO CULTURAL: REPERCUSSÕES DOS DEZ ANOS DA RESOLUÇÃO CONAMA
Nº 001/86 SOBRE A PESQUISA E A GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO BRASIL vêm
a público, agora, como o primeiro produto brasileiro de reflexão compartilhada sobre
o trato adequado a ser dado aos recursos culturais nacionais nos estudos de impacto
ambiental em elaboração no país.
Solange Bezerra Caldarelli
Organizadora
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1ª MESA-REDONDA:
DIAGNÓSTICOS CULTURAIS EM ESTUDOS DE IMPACTO
AMBIENTAL
COORDENAÇÃO:
Dra. Irmhild Wüst
Museu Antropológico/UFGO
Vice-coordenadora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
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EXPOSITORES
PAULO JOBIM DE CAMPOS MELLO
Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco
Participação em projetos de levantamento e resgate do patrimônio arqueológico, nos
estados de Pará, São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Amazonas e Distrito Federal, desde 1985
Coordenação de projetos de levantamento e resgate arqueológicos nos estados de Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, desde 1994
Professor Adjunto I, do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade
Católica de Goiás
MARCOS ANDRÉ TORRES DE SOUZA
Graduado em arqueologia pela Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro
Professor/pesquisador do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade
Católica de Goiás
Desenvolveu pesquisas de contrato em arqueologia histórica nos estados de Santa Catarina
e Goiás.
Membro da SAB-Sociedade de Arqueologia Brasileira e do Fórum Interdisciplinar para o
Avanço da Arqueologia
JORGE EREMITES DE OLIVEIRA
Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Área de
Concentração: Arqueologia)
Doutorando em História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Área
de Concentração: Arqueologia)
Professor Assistente do Departamento de Ciências Humanas da Fundação Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul - Centro Universitário de Dourados
Tem desenvolvido pesquisas arqueológicas e etno-históricas no Pantanal Matogrossense
desde 1992
RENATO KIPNIS
Mestre em Antropologia pela University of Michigan
Doutorando em Antropologia pela University of Michigan
Tem realizado trabalhos de levantamento arqueológico nos estados de São Paulo, Pará e
Minas Gerais desde 1985
Membro da SAA-Society for American Archaeology e do Fórum Interdisciplinar para o
Avanço da Arqueologia
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LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO, PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE BENS
PRÉ-HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE EEMPREENDIMENTOS
HIDRELÉTRICOS
Paulo Jobim de Campos Mello
A resolução CONAMA 001/86 prevê uma série de atividades a serem
cumpridas para a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Dentre estas
atividades temos:
*
*
*
diagnóstico da área;
análise dos impactos positivos e negativos;
definição de medidas mitigadoras dos impactos negativos;
* por fim, elaboração de um programa de acompanhamento e monitoramento
desses impactos
Após a aprovação desse estudo, o empreendedor consegue a Licença Prévia
(LI); e tem que dar continuidade a esses estudos para a obtenção das Licenças de
Implantação (LI) e Operação (LO) do empreendimento.
Assim, podemos perceber que o diagnóstico é o primeiro passo de todo esse
processo, e tem que ser feito de uma maneira tal que dê subsídios para a realização
das demais etapas.
A Resolução CONAMA define o diagnóstico como sendo a caracterização da
área; é preciso saber, portanto, como a área se encontra antes da implantação do
empreendimento.
Em áreas bem conhecidas, que já foram detalhadamente trabalhadas, o
diagnóstico pode ser feito a partir de fontes secundárias, ou seja, com um
levantamento bibliográfico é possível caracterizar a área.
No entanto, a realidade que encontramos é quase sempre a inversa, com os
empreendimentos sendo localizados em áreas pouco conhecidas ou completamente
desconhecidas; havendo, assim, a necessidade de se fazer um levantamento de campo
Aqui no Brasil, os levantamentos arqueológicos geralmente ainda são
realizados de uma maneira assistemática, seguindo as orientações de Evans e Meggers
(1965), mentores do PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas),
que propunham o percorrimento da área tendo os cursos d‟água como base, além do
atendimento das informações prestadas pelos moradores.
Uma série de críticas podem ser feitas a esse tipo de trabalho, sendo a principal
o fato de não fornecer uma amostra confiável. Por não ser probabilista, e produzir
desvios, não produz estimativas válidas dos riscos de erro, tornando-se praticamente
impossível replicar ou avaliar, qualitativa ou quantitativamente, esses trabalhos.
A localização dos sítios, nesses levantamentos assistemáticos, depende
basicamente de três fatores (Alexander, 1983:177 ss.).
O 1o é a natureza da prospecção, a tradicional depende pesadamente da
exposição do solo para a localização da cultura material; o vestígio arqueológico tem
que estar aflorando para ser encontrado pelo arqueólogo, e isso só acontece em
terrenos que apresentam-se erodidos, ou em áreas que acabaram de ser aradas..
9
O 2o fator é o “conhecimento comum”, assimilado pelos pesquisadores e
usados como bases para a localização do sítio. Confiando na experiência pessoal e
intuição, muitos arqueólogos têm desenvolvido, talvez inconscientemente, uma lista
de critérios para a localização de sítios (proximidade da água, certos ecótonos,
principais confluências de rios, etc).
Infelizmente, esse “conhecimento comum” é geralmente usado como base para
determinar a estratégia da prospecção, isto é, o arqueólogo concentra seus esforços
naquelas porções de área onde espera encontrar sítios. Descobertas de sítios nesses
locais previsíveis, de alta densidade, pode refletir tratamento diferencial dessas áreas,
em vez de padrões de assentamento pré-históricos.
Finalmente, o 3o fator é que resultados sem desvios não podem ser alcançados
quando mudanças temporais são ignoradas. Usando dados etnográficos e
documentação histórica é geralmente possível reconstruir o padrão de assentamento
indígena do período proto-histórico. Esse conhecimento pode influenciar o
pesquisador a prospectar mais intensamente áreas ocupadas durante esse período.
Com o tempo, no entanto, os padrões de assentamento podem não apenas mudar
dentro do mesmo ambiente, mas o próprio ambiente, refletido na topografia e
vegetação, pode ser vastamente alterado. O efeito dessas mudanças na localização dos
sítios deve ser cuidadosamente considerado quando for feita qualquer prospecção.
São justamente esses fatores que causam o desvio na amostra.
Assim, ao se pretender obter um quadro acurado dos padrões de assentamento
dos grupos humanos que viveram no passado, há a necessidade de se conseguir
informações de uma maneira uniforme, cobrindo igualmente os diversos estratos
paisagísticos. Portanto, prospecções intensivas, a pé, geralmente são necessárias para
a localização de sítios pequenos e que estejam relacionados à atividades limitadas,
sendo que todas as partes da região, mesmo aquelas assumidamente estéreis, devem
ser investigadas (Redman, 1974).
O que se pretende, portanto, com esse levantamento sistemático, é que não se
produza desvios amostrais e que se consiga, como dito acima, apreender o padrão de
assentamento dos grupos pré-históricos que ali viveram.
A técnica mais utilizada para esse tipo de levantamento é o chamado
„transect‟, que é uma linha de caminhamento orientada. O pesquisador vai caminhar
por linhas previamente traçadas por ele, de modo a cobrir as diferentes paisagens
existentes, podendo proporcionar, assim, a localização de diferentes tipos de sítios,
ligados a exploração diferencial dessa paisagem,
Além disso, vai permitir, também, o cálculo da área prospectada - vai se saber
qual a porcentagem da área foi levantada.
Como para o cálculo de uma área são preciso duas medidas - comprimento e
largura -, e o transect, como já dissemos, é uma linha, será preciso utilizarmos um
artifício, chamado efeito margem, que está diretamente ligado ao tamanho do sítio que
se quer localizar (Plog et. al., 1978).
O comprimento é dado pelo próprio comprimento do transect, ou seja, a
distância percorrida; já a largura não vai ser dada pelo alcance da visão (dez metros
para cada lado, por exemplo), isso porque muitas vezes a visibilidade é nula,
principalmente devido à vegetação que cobre os vestígios arqueológicos, impedindo a
sua localização.
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Para localizar um sítio arqueológico, o transect não precisa passar exatamente
pelo seu centro, basta passar por qualquer ponto dele. Assim, todas áreas prospectadas
sistematicamente vão sempre ter uma margem que é hipoteticamente prospectada,
cujo tamanho é igual ao raio do menor sítio que se pretende achar, pois basta que o
centro do sítio esteja dentro dessa margem que ele será cortado pelo transect e, assim,
localizado.
Portanto, apesar do transect ser uma linha, o sítio não é um ponto, e a largura
da área prospectada vai ser dada pelo seu raio.
Os trabalhos de prospecção sofrem a influência de dois outros fatores:
intensidade e sensibilidade.
A intensidade é o grau de detalhe com o qual a superfície de uma determinada
área é prospectada (Plog et al., 1978), que pode ser medido pelo espaçamento que é
mantido pelos indivíduos durante a prospecção, ou seja, no caso é dada pelo
espaçamento dos transects - quanto menor o espaçamento, maior a possibilidade de
encontrar sítios, principalmente sítios pequenos. O grau de intensidade irá variar de
acordo com os objetivos do trabalho.
A sensibilidade, que é a probabilidade de evidenciar um sítio arqueológico, é
um outro fator, estreitamente ligado à intensidade.
Para Cowgill (1990), a sensibilidade é afetada por cinco (5) fatores: 1) a
natureza da ocorrência arqueológica; 2) a natureza do terreno (vegetação fechada,
topografia íngreme, erosão, etc); 3) a proximidade do prospectador com a ocorrência
(passar por cima ou somente próximo a ela); 4) a extensão com que o observador é
sensibilizado (no sentido psicológico) com um certo tipo de ocorrência; 5) a extensão
com que técnicas especiais são usadas para detectar ocorrências subsuperficiais.
A relação é bem clara: quanto maior a intensidade, maior a sensibilidade.
Mostraremos três exemplos da utilização desse tipo de levantamento
sistemático em áreas afetadas por empreendimentos hidrelétricos. Em todos esses
trabalhos foram utilizados, também, o levantamento assistemático que, apesar de não
fornecer uma amostra confiável das ocorrências arqueológicas, conforme exposto
acima, pode ser utilizado para um „reconhecimento informal‟ da área em estudo.
Em geral, os transects foram percorridos por uma equipe de quatro pessoas,
sendo dois pesquisadores e dois trabalhadores braçais, divididos em duas duplas: um
pesquisador, com a ajuda de uma bússola, indicando o caminho a ser seguido,
enquanto um trabalhador braçal abria a picada; outro pesquisador indicando o local
onde haveria intervenção no solo1, com o segundo braçal realizando essa tarefa (ver
fotos 1 - 4).
- Projeto de Salvamento Arqueológico das UHEs Babaquara e Kararao
(PA)
1
As intervenções no solo, feitas a distâncias regulares, eram de dois tipos: limpeza e tradagem.
A limpeza consistia na retirada, com uma enxada, da cobertura vegetal de uma área de aproximadamente 1 metro
de diâmetro, e na escavação dessa área até alcançar 20 centímetros de profundidade.
Já nas tradagens, cujo o objetivo era encontrar vestígios que estivessem enterrados a uma profundidade maior,
eram feitos, com uma cavadeira (boca de lobo), buracos de 30 cm de diâmetro que chegavam a 1 metro de
profundidade.
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Projeto desenvolvido pela Eletronorte, em convênio com o Museu Paraense
Emílio Goeldi. Iniciado em julho de 1986, durou até julho de 1988, quando ocorreu a
paralisação da obra. Sua barragem formaria um enorme lago (área de
aproximadamente 7.500 Km2) no médio rio Xingu.
Foi o primeiro trabalho no país, em áreas afetadas por empreendimentos
hidrelétricos, onde se realizou levantamento sistemático. A proposta era espalhar
unidades amostrais (círculos com raio de 5 Km) que abrangessem as diferentes
paisagens existentes, além de permitir a prospecções em áreas distantes dos rios.
Enquanto que nas margens do rio principal era realizado um levantamento
assistemático, o sistemático era feito através de dois transects de 5 Km de
comprimento, perpendiculares ao rio. Apesar de a intensidade de prospecção ser
muito baixa, esse levantamento sistemático foi eficiente, pois permitiu a localização
de sítios distantes das margens do rio (ver fig. 1).
- Levantamento do Patrimônio Arqueológico da UHE Costa Rica (MS)
Projeto desenvolvido pela Enersul, em convênio com a Universidade Católica
de Goiás. A região a ser afetada pela Usina Hidrelétrica de Costa Rica consiste em
uma área que não atinge 0,5 Km2 (aí incluído a área a ser utilizada para a construção
do acampamento e escritório), no rio Sucuriú, município de Costa Rica, noroeste do
Estado do Mato Grosso do Sul.
O levantamento assistemático foi realizada tanto através da observação de
terrenos limpos (roças, barrancos de rios, etc), como de entrevista dos moradores
locais em busca de possíveis informações sobre vestígios arqueológicos (a
bibliografia não indicava nenhum trabalho realizado nas imediações).
Foram entrevistados cinco moradores que, apesar de viverem há bastante
tempo na região, residem há pouco no local. Nenhum deles forneceu informação
sobre sítio arqueológico. A observação dos terrenos limpos também se mostrou
infrutífera.
O levantamento sistemático baseou-se no caminhamento de „transects‟
traçados de uma maneira onde procurou-se não deixar uma distância superior a 50
metros entre um e outro, sendo que a cada 25 metros, aproximadamente, era feita uma
intervenção no terreno.
Assim, por esse método sistemático, foram percorridos 8100 metros (3900 na
margem esquerda, 4200 na direita), sendo realizadas 336 limpezas (136 na esquerda e
200 na direita) e 35 tradagens (13 na esquerda e 22 na direita).
Desses, apenas um local (na margem direita, onde será implantado o
acampamento) apresentou material arqueológico (4 fragmentos cerâmicos, filiados a
Tradição Una).
Podemos perceber que toda a área foi coberta (ver fig. 2), porém isso não
implica em que todos os sítios arqueológicos foram encontrados, pois, de acordo com
Kowalewski & Fish (1990), é impossível, em arqueologia, cobrir 100% de uma área,
descobrir todos os sítios lá existentes, e verificar essa afirmação. Kintigh (1990)
também concorda com isso ao afirmar que todos os arqueólogos estão cientes de que,
12
ao prospectarem, perdem alguns locais que mostram evidências do comportamento
humano a algum nível de detalhe.
Isso se deve ao grau de intensidade e aos problemas de sensibilidade,
conforme discutidos mais acima.
- Levantamento do Patrimônio Arqueológico da UHE Corumbá (GO)
Projeto desenvolvido por FURNAS Centrais Elétricas, em convênio com a
Universidade Católica de Goiás. A barragem formará um lago com 65 Km2 de área,
abrangendo parte dos municípios de Caldas Novas, Pires do Rio, Corumbaíba e
Ipameri, todos no Estado de Goiás.
O levantamento assistemático foi feito através da entrevista de mais de 90
moradores da região (a maior parte feita pelos integrantes da equipe responsável pelo
Patrimônio Histórico), além do levantamento bibliográfico (inclusive o RIMA), que
resultaram na localização de apenas quatro sítios na área diretamente afetada.
Quanto ao sistemático, em um total de 70 dias de campo, foram percorridos
cerca de 225.840 m, sendo realizas intervenções no solo a cada 30 metros, em um
total de 7526, sendo 6505 limpezas e 1021 tradagens (a maioria dessas tradagens não
alcançou 1 m de profundidade, em conseqüência do solo apresentar muito cascalho)
(ver fig. 3). Como resultado, foram encontrados sete sítios arqueológicos.
Quanto aos estratos paisagísticos, podemos ver que todos foram amostrados,
conforme os gráficos abaixo .
Quanto à declividade do terreno, temos:
% das categorias de declividade percorridas
sistematicamente
categoria 1 34,83%
categoria2 29,05%
categoria 3 - 11%
categoria 4 13,53%
fora da AD A 11,59%
Gráfico 1
13
declividade
% da área X % percorrida
% da AD A
% percorrida em relação à
AD A
% percorrida em relação à
categoria de declividade
60
50
40
30
20
10
0
categoria 1categoria 2categoria 3categoria 4
fora da
AD A
Gráfico 2
Distribuição, em percentual, dos sítios localizados dentro da ADA, nas quatro
categorias de declividade.
categoria 1 - 67%
categoria 2 - 22%
categoria 3 - 11%
categoria 4 - 0%
Gráfico 3
Quanto às classes de solos, temos:
14
% de classes de solos percorridas
sistematicamente
CE1
6,51
CE2
5,4
31,13
CV1
14,96
CV2
CV3
R L1
7,44
R L2
10,23
6,75
AL
17,56
Gráfico 4
solos
% da área X % percorrida
% da AD A
% percorrida em relação à
AD A
% percorrida em relação à
unidade de solo
100
80
60
40
20
0
CE1
CE2
CV1
CV2
CV3
R L1
R L2
AL
Gráfico 5
Distribuição, em percentual, dos sítios localizados dentro da ADA, quanto às
unidades de solo:
15
CE2
CV3
22%
CV2
CV3
CE2
11%
CV2
67%
Gráfico 6
Podemos perceber que só através de um levantamento sistemático e intensivo
é possível encontrar os diversos tipos de sítios existentes em uma região. Além disso,
esse tipo de levantamento permite um controle não só da porcentagem da área, mas
também dos compartimentos paisagísticos, que foram amostrados.
Para finalizar, gostaríamos de lembrar que o diagnóstico não termina com a
localização dos sítios. Como dissemos no início, é preciso que ele forneça subsídios
para a elaboração de um programa de acompanhamento e monitoramento dos
impactos a serem causados pelo empreendimento. Assim, algumas informações sobre
o sítio - como estado de conservação, espessura e profundidade do depósito e tamanho
do sítio - são fundamentais, e necessárias de se conhecer ainda nesta fase do trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDER, D. (1983) “The limitation of traditional surveiyng techiniques in a
forests environment”. Boston. Journal Field Archaeology, 10, pp.177-186.
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17
LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE
BENS HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE
EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS
Marcos André Torres de Souza
INTRODUÇÃO
O presente texto pretende encaminhar algumas questões de interesse e que se
incluem no tema proposto. Encontra-se dividido em duas partes: inicialmente, são
examinadas algumas premissas fundamentais ao bom encaminhamento dos trabalhos
de levantamento arqueológico histórico em contexto de hidrelétricas e, em seguida,
são expostas algumas considerações metodológicas acerca dos tipos de levantamento
que podem ser realizados.
Durante a discussão, serão apresentados exemplos baseados em observações
feitas no decorrer do Projeto de Levantamento e Resgate do Patrimônio HistóricoCultural da Área Diretamente Afetada pela UHE-Corumbá, desenvolvido pelo
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da Universidade Católica de Goiás,
coordenado pelo prof. Jézus Marco de Ataídes e financiado por FURNAS - Centrais
Elétricas S.A.. Este projeto foi desenvolvido entre março de 1994 e março de 1996 em
quatro municípios do estado de Goiás: Caldas Novas, Ipameri, Pires do Rio e
Corumbaíba (Marco de Ataídes, 1996).
REGIÃO E SÍTIO
Em primeiro lugar, o que distingue uma pesquisa de resgate em hidrelétrica
das demais é que, neste caso, há uma grande extensão de superfície a ser pesquisada,
ao contrário dos projetos ditos lineares. Aqui, situa-se um primeiro aspecto crítico dos
projetos de resgate em contexto de hidrelétricas: a noção de região.
Do ponto de vista do empreendimento, a região terá sempre características
bem específicas: as áreas ribeirinhas e baixas de uma dada bacia hidrográfica,
condições incompatíveis com uma concepção satisfatória de região. Quando falamos
de uma região do ponto de vista do empreendimento, estamos falando de uma área
direta ou indiretamente afetada e que dificilmente corresponderia à noção de região
para uma pesquisa, sobretudo se o caso em apreço é o de uma área de interesse
arqueológico, seja ele histórico ou pré-histórico.
Ocorre, contudo, que isto não passa de um falso conflito, ou ao menos é isto
o que foi experienciado no Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico. Os
empreendedores pareceram compreender satisfatoriamente que não há meios de se
realizar levantamentos e análises sobre o patrimônio histórico que se restrinjam aos
limites estritos do empreendimento. Tem se mostrado essencial que nós,
pesquisadores, possamos trabalhar dentro de outra concepção de região, o que
esperamos, possa vir a ocorrer generalizadamente.
O ponto crítico, portanto, não está entre o pesquisador e o empreendedor,
mas no âmbito de cada projeto. Para fins de levantamento, devemos considerar que
cada sítio arqueológico histórico possui na maior parte das vezes uma relação racional
18
e contextual com os demais e que, em casos de hidrelétricas, também devem ser
considerados conjuntamente. Sob esta perspectiva, a região é uma unidade analítica
extremamente apropriada e sobre a qual seria útil que nos debruçássemos.
Um segundo aspecto crítico para a realização de levantamentos em
hidrelétricas, diz respeito à noção de sítio arqueológico histórico.
Há algumas décadas, um sítio arqueológico histórico se associava quase
sempre à idéia de monumento ou antiguidade. Estes sítios necessitavam de alguma
notabilidade, mas felizmente isto está acabando.
Uma vez que, ao realizarmos levantamentos no contexto de uma hidrelétrica,
procuramos interpretar o passado histórico de uma região ameaçada, importa
explicarmos como ocupações de diferentes naturezas - algumas menos notáveis do
que outras - se processaram naquele espaço físico que estamos estudando, ainda que
cada projeto escolha uma ou outra avenida de análise.
Outro ponto é que, quando falamos de sítios arqueológicos históricos,
obviamente não podemos atribuir importância histórica a cada vestígio de ocupação
humana. Descartada a noção de monumento como critério exclusivo, passamos à
noção de significância, um termo oriundo dos Estados Unidos e que permite sofisticar
tremendamente a questão da eleição de sítios arqueológicos históricos.
Dentro desta noção, entre os diferentes critérios que podem ser usados, há o
denominado potencial de informação (ver U.S. Department of the Interior, 1990,
1991a, 1991b), que se mostra bastante adequado ao empreendimento em hidrelétricas.
Através dele, podemos transformar vestígios materiais em conhecimento científico.
Utilizar este critério significa:
Contribuir para a compreensão da história de uma região através de
procedimentos explicitamente formalizados, e;
Eleger os sítios arqueológicos históricos através de uma avaliação cuidadosa
e com critérios bem definidos.
Para complementar o que foi até aqui exposto, passamos a um exemplo do
Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, cujos dados já foram apresentados em
outro artigo, quando foram examinados sob um ponto de vista distinto (Torres de
Souza, no prelo).
Na primeira fase deste projeto, foi realizado o levantamento dos testemunhos
de ocupação humana histórica na área de estudo, tendo-se identificado, entre outras
categorias, o que foi denominado de estruturas de fazenda, compreendendo três tipos
de evidências associadas: sedes de fazenda, casas de agregado e ranchos.
19
Figura 1- Sede da Fazenda Santo Antônio das lajes de
Argeniro Ferreira; Município de Ipameri, Goiás.
No primeiro grupo - as sedes de fazenda (Figura 1), foram identificadas
enquanto construções de caráter duradouro, utilizando como material construtivo
preferencialmente o tijolo comum, o adobe e cobertura de telhas; para este caso,
empregavam-se técnicas construtivas mais sofisticadas. Sua implantação é bastante
característica, situando-se preferencialmente em áreas elevadas na propriedade, entre
dois cursos d‟água e em solos cascalhosos e inférteis.
Figura 2- Casa de Agregado na Fazenda Santo Antônio
das Lajes de Aziria Menezes; Município de Caldas
Novas, Goiás.
Nas casas de agregado (Figura 2), observou-se um tipo de construção de
caráter menos duradouro, com o tijolo comum apenas eventualmente utilizado,
predominando o adobe, muitas vezes com adição da madeira ou palha. Ainda que a
telha fosse também a cobertura preferencialmente usada, as soluções arquitetônicas
eram bem mais simplificadas que nas sedes de fazenda. A implantação deste grupo
20
era totalmente distinta das sedes de fazenda, situando-se predominantemente em áreas
baixas, à distância média de 100 m dos pequenos córregos, sendo que na metade dos
casos, situavam-se no entroncamento de dois cursos d‟água, alocando-se em solos
argilosos e férteis.
Figura 3- Rancho na Fazenda Santo Antônio das Lajes
de Aziria Menezes; Município de Caldas Novas, Goiás.
O último grupo, os ranchos (Figura 3), eram abrigos transitórios, construídos
por paus fincados ou esteios sem vedação e com cobertura de palha, com técnicas
construtivas extremamente simples. Situavam-se predominantemente em locais de
difícil acesso em uma propriedade, como as cabeceiras dos córregos ou às margens
dos rios de maior porte.
No exemplo acima, observam-se alguns aspectos que são essenciais dentro
do que foi até aqui exposto.
Em primeiro lugar, o que se percebe nesta classificação de evidências é um
arranjo espacial óbvio, baseado em uma lógica explícita.
Em uma monografia sobre as construções rurais do fim do séc. XIX,
Gonçalves assinala o seguinte sobre as sedes de fazenda (1886:48):
“A habitação do administrador ou do proprietário deve ser
collocada de tal modo que um ou outro possa d’ahi fiscalisar tudo o que
se passar no recinto do pateo e, quando possível, em todos os edifícios da
exploração”
Sobre as casas dos trabalhadores, assinala (1886:49):
“ Os operarios ou trabalhadores ruraes são ordinariamente
alojados em edifícios terreos ou em parte daquelles em que têm de ser
executados os trabalhos que lhe são confiados”
Do mesmo modo como cita o autor, observamos que na área estudada, as
sedes de fazenda se associavam claramente ao domínio e controle da propriedade,
dados respectivamente pela sua implantação em áreas elevadas e fiscalização pelo
campo visual, ao mesmo tempo em que segmentava dois tipos de atividade: a
21
pecuária, uma vez que o gado era recolhido aos currais, localizados junto à fachada
(Figura 1) e considerados a verdadeira riqueza do fazendeiro; e a roça, destinada
meramente à subsistência e que foi apartada deste espaço pelo tipo impróprio de solo.
As casas de agregado, por sua vez, situavam-se em posição subalterna,
colocadas nas partes inferiores do terreno e em solos férteis, ligando o trabalhador
agregado à roça, que era depreciada quando comparada à criação de gado, embora se
mostrasse essencial ao abastecimento da propriedade.
Os ranchos, finalmente, associavam-se na maior parte das vezes às
invernadas, situando-se em posições úteis ao trabalhador rural na otimização do
espaço, permitindo sua exploração onde não havia lugar para estabelecerem-se
moradas e possibilitando com isso a caça, pesca e cultivo em locais diversificados.
As técnicas e materiais construtivos, vistos através de oposições como:
simples x complexo, impermanente x permanente, de modo similar à lógica de arranjo
e organização do espaço, revelam estratégias de negociação social. Nestas
propriedades, o espaço foi sempre negociado, estando aí em ação: poder, status e
papéis sociais.
Esta ordem começou a vigorar na região na virada do séc XIX para o séc.
XX identificada com o ideário coronelista, marcante em Goiás na primeira metade do
séc. XX. A partir da segunda metade desse século, esta ordem entrou em colapso,
devido às leis de uso da terra e ao êxodo rural. Atualmente, a região apresenta outra
feição, não se encontrando mais em toda a área estudada a figura do agregado,
estando todas as suas edificações abandonadas; as sedes de fazenda foram também
abandonadas pelo grande proprietário, sendo ocupada por um encarregado ou peão.
Apesar de nos defrontarmos com uma faixa cronológica estreita - pouco mais de cem
anos - lidamos com uma manifestação cultural extinta que, como tal, exige do
pesquisador estratégias eficazes para sua recuperação.
Neste exemplo, fica claro que não estamos só diante de evidências de que o
espaço estava sendo ocupado racionalmente, mas que também estamos operando com
dados que usamos durante todo o tempo para explicar complexas relações sociais,
finalidade última de nossas pesquisas. A metodologia seria tendenciosa se uma ou
outra localidade deixasse de ser levantada, o que viria mascarar a presença de
substantivas categorias de evidências que, na maior parte das vezes, apresentam uma
relação contextual e indissociável.
Se refletirmos ainda sobre estes sítios em termos de potencial de informação,
jamais seremos excludentes em relação às evidências mais discretas ou aparentemente
desprezíveis, caso das habitações de agregado e ranchos, uma vez que do ponto de
vista interpretativo qualquer análise ficaria comprometida.
OPORTUNÍSTICO X SISTEMÁTICO
Considerando o que foi até aqui exposto, passamos a algumas considerações
metodológicas, cujo ponto central está na melhor maneira de realizarmos
levantamentos com fins de diagnóstico envolvendo o patrimônio histórico em áreas de
hidrelétricas.
Defende-se aqui a idéia de que a melhor estratégia que pode ser empregada é
a combinação entre os métodos oportunístico e sistemático.
22
Não cabe no momento aprofundarmos a discussão sobre as alternativas
analíticas possíveis para o segundo método, mesmo porque isto foi apresentado em
um artigo já citado (Torres de Souza, no prelo), quando foram avaliadas sob a
perspectiva do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, além de uma ampla
revisão bibliográfica sobre a questão dos levantamentos arqueológicos, com foco na
arqueologia histórica. Cumpre apenas ressaltar que, embora no Brasil estas
alternativas ainda estejam sendo acanhadamente exploradas, é de extrema utilidade
que elas sejam conhecidas e utilizadas.
Nós nos restringimos, portanto, a apresentar algumas das vantagens que
acreditamos existir na combinação dos levantamentos oportunístico e sistemático, a
saber:
Por esta combinação, podemos ter uma visão regional pelo método
oportunístico, uma vez que ele apresenta custo menor e nos permite sair da área de
influência direta do empreendimento, possibilitando a investigação de localidades
com características distintas de relevo e geografia e áreas de influência cultural,
como os centros urbanos;
Ao mesmo tempo em que o contexto regional pode ser acessado pelo método
oportunístico, o método sistemático permite produzir melhores mensurações e
estimativas das evidências, uma função essencial aos projetos que envolvem
levantamentos arqueológicos, uma vez que sítios de diferentes tipos, dimensões e
visibilidade podem ser acessados;
A relação custo x benefício pode ser maximizada pela combinação do
método oportunístico a esquemas de amostragem do sistemático, produzindo
resultados mais confiáveis, por custos menores.
Esta combinação nos permite a aplicação do critério potencial de informação,
oferecendo aos pesquisadores um eficiente instrumental para avaliação de
impactos;
Na tentativa de reforçar a importância da modalidade de levantamento
sistemático em projetos que envolvem o patrimônio histórico, passamos a mais alguns
exemplos do Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico que dizem respeito à
questão dos processos de formação de sítios.
23
Figura 4- Local de antigo assentamento; município de
Ipameri, Goiás.
Uma primeira e poderosa argumentação a seu favor, se associa à questão da
visibilidade das evidências. A Figura 4 apresenta um assentamento abandonado há
cerca de trinta anos que, como tantos outros identificados neste projeto, tem como
evidência de superfície apenas uma mangueira, sempre presente nos quintais das
habitações rurais da região. A rápida degradação de materiais construtivos
impermanentes, aliada à prática de “arrancar” uma casa - usando uma denominação
local, dá a essas evidências uma baixíssima visibilidade. Tais assentamentos também
acabam muitas vezes sendo esquecidos pelos moradores locais, que tendem a
considerar como representativo apenas as edificações de caráter permanente.
Figura 5- Fazenda Buriti de Sebastião Vieira, agosto de
1994; município de Caldas Novas, Goiás.
A título de complementação, a Figura 5 apresenta uma sede de fazenda
abandonada há cerca de vinte anos que, dada sua maior perenidade, conservava ainda
muito da sua feição original; observa-se em primeiro plano seu cercamento com o
ponto de acesso ao edifício ainda visível. Se esta edificação, contudo, foi “arrancada”
(Figura 6), permanecerão apenas algumas telhas postas de lado, que logo serão
removidas (à esquerda na foto); a cerca ainda visível com sua abertura e os esteios da
edificação (ao fundo); tanto a cerca quanto os esteios, em breve serão queimados por
incêndios, extremamente comuns no ambiente de cerrado. Num curto intervalo de
tempo poucas estruturas de superfície ficarão como remanescentes, tais como fogões
ou baldrames de pedras, que quase sempre acabam encobertos pela vegetação.
24
Figura 6- Fazenda Buriti de Sebastião Vieira, setembro de
1996; município de Caldas Novas, Goiás.
No que se refere aos depósitos arqueológicos subsuperficiais, muitas vezes
estes são extremamente reduzidos, ficando, à exemplo dos edifícios, quase
imperceptíveis ao pesquisador que realiza o levantamento de campo, caso de um dos
sítios escavados no Projeto UHE-Corumbá / Patrimônio Histórico, que apresentou
material apenas em um estreito lençol de 140 m², para a média de 7 fragmentos por m²
(Torres de Souza, 1996).
Através destes exemplos, fica bastante claro que a tarefa de levantar sítios
arqueológicos históricos não é simples. No Projeto UHE-Corumbá, nos deparamos
com uma ocupação de pouco mais de cem anos e pudemos contar amplamente com os
dados do levantamento oportunístico. Em outros projetos onde a ocupação histórica é
bem mais remota, podemos contar apenas com nossas habilidades e, neste contexto,
acreditamos que a realização de levantamentos sistemáticos é imprescindível,
sobretudo se a história ocupacional com a qual nos defrontamos é desconhecida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar, apresentamos duas reivindicações. A primeira delas, e que
parece ser um apelo geral dos pesquisadores, é que os levantamentos sejam
realizados, em cada empreendimento, o mais cedo possível. Isto significa melhor
planejamento e resultados, tanto para o empreendedor como para o pesquisador. Tais
levantamentos precisam ser realizados muito antes da execução dos programas, o que
oferece melhores condições para a avaliação de impactos.
A segunda reivindicação, dirigimos aos colegas arqueólogos, no sentido de
sempre que possível, possamos refletir sobre a qualidade do que temos produzido,
ainda que isto muitas vezes envolva insucessos. A arqueologia de resgate ou de
salvamento tem sido um excelente meio de ingresso ao mercado para os mais jovens
e, simultaneamente, alvo das mais arrebatadas críticas (ver Bezerra de Menezes 1988,
1996). Para que a reflexão não se ausente da esfera de cada projeto, será útil que no
seu âmbito, a questão da formação de pesquisadores e produção científica sejam
cuidadosamente pensadas.
25
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26
LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO, PARA FINS DE DIAGNÓSTICO DE
BENS PRÉ-HISTÓRICOS, EM ÁREAS DE IMPLANTAÇÃO DE DUTOVIAS 2
Jorge Eremites de Oliveira
INTRODUÇÃO
Ao promover o simpósio Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio
Cultural: repercussões dos dez anos da Resolução CONAMA Nº 001/86 sobre a
pesquisa e a gestão dos recursos culturais do Brasil, o Fórum Interdisciplinar para o
Avanço da Arqueologia também viabilizou o debate teórico-metodológico sobre as
experiências no campo da consultoria técnica em arqueologia para fins de
implementação de Estudos de Impacto Ambiental, salvamento e gestão de bens
culturais, assim como a discussão acerca da legislação brasileira de proteção ao
patrimônio cultural da nação. Sem dúvida alguma, trata-se de um evento de suma
importância no atual contexto da arqueologia brasileira, pois a chamada arqueologia
de contrato é uma das áreas de atuação profissional que mais crescem para
arqueólogos do país.
Nesta perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo maior expor as
experiências e apresentar os resultados das pesquisas concluídas durante o período de
outubro a dezembro de 1993, em parceria com o arqueólogo José Luis dos Santos
Peixoto (ver Oliveira & Peixoto, 1993). Destinou-se a implementar os Estudos de
Impacto Ambiental sobre o traçado do Gasoduto Bolívia-Brasil no Estado de Mato
Grosso do Sul, conforme as exigências da legislação brasileira de proteção ao
patrimônio cultural, através da atuação decisiva do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), 14ª Coordenação Regional e 11ª Sub-Regional II. É
necessário explicar que o Gasoduto Bolívia-Brasil, empreendimento ainda não
concluído, destina-se ao transporte de gás natural proveniente da Bolívia até os
Estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, totalizando cerca de 3.000 km de extensão. No
Mato Grosso do Sul sua extensão será de 702 km, em sua maior parte próxima à linha
da rodovia BR 262, que liga o município de Corumbá ao de Três Lagoas. Será
construído com dutos de aço carbono de 28” de diâmetro que serão enterrados numa
vala de, no mínimo, 1 x 1,5 m. Terá uma faixa de 20 m de largura onde serão
desenvolvidos os serviços necessários à sua construção e, posteriormente, à sua
manutenção. Seu monitoramento será feito 24 horas por dia através de satélite
(Informativo do Gasoduto Bolívia-Brasil, 1993).
O trabalho foi financiado pela empresa Petróleo Brasileiro S. A. (Petrobrás).
Anteriormente a ele, havia sido elaborado, por outro profissional, um diagnóstico
arqueológico para o Estado, embora sua avaliação não condissesse com a realidade
regional, uma vez que trabalhos de campo não foram realizados. Por este motivo, a
realização do trabalho ora apresentado justificou-se, dentre outras razões, pela
constatação de que na época muito pouco se conhecia sobre a arqueologia sulmatogrossense
se bem que, os poucos trabalhos existentes, particularmente para a
região do Pantanal, acrescidos da bibliografia histórica e etnológica regionais,
indicassem uma grande potencialidade de Mato Grosso do Sul quanto à ocorrência de
2
Este artigo apresenta várias modificações em relação ao texto publicado por Oliveira & Peixoto
(1996), muitas das quais em função das discussões que ocorreram durante o Simpósio.
27
sítios arqueológicos, destacadamente de culturas indígenas pretéritas, por toda a
extensão da dutovia. Em função dessa realidade, eram maiores os riscos de destruição
do patrimônio arqueológico do Estado durante a execução do empreendimento, uma
vez que esse patrimônio era, em grande parte, desconhecido e não poderia ser acusado
previamente sem o necessário levantamento realizado através de trabalhos de campo.
Nesta perspectiva, foi elaborado um projeto de pesquisa com os seguintes
objetivos: 1º) localizar, identificar e registrar os sítios arqueológicos constatados in
loco ao longo do traçado do gasoduto ou em áreas próximas a ele; 2º) avaliar o estado
de conservação dos sítios; 3º) determinar as áreas que demandam maior ou menor
atenção devido ao impacto da dutovia nas mesmas; e 4º) estabelecer prioridades e
estratégias, propor medidas mitigadoras e/ou compensatórias, para que sejam tomadas
as providências necessárias para a preservação e/ou salvamento do patrimônio
arqueológico.
A área de estudo compreende o trecho do traçado desde o km Zero do
gasoduto, no município de Corumbá, fronteira do Brasil com a Bolívia, até o km 350,
no município de Terenos, abrangendo grosso modo dois ambientes distintos: o
Pantanal (km Zero-260) e o Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km
260-350). Segundo o Gasoduto Bolívia-Brasil: Estudos de Impacto Ambiental
EIA
(1993), a área do Pantanal abrange três macro-unidades ambientais: “Pantanal” (km
Zero-210), “Morraria de Urucum” (km 10-50) e “Depressão do Alto Paraguai” (km
130-180 e km 210-260). A área do Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná
(km 260-350), por sua vez, corresponde a ¾ da macro-unidade ambiental homônima
(km 260-380)3. O trecho que compreende desde o km 301 ao km 702 foi estudado
pelo arqueólogo Gilson Rodolfo Martins e sua equipe.
De momento, espera-se que as experiências e os resultados aqui
apresentados, somados a outros trabalhos publicados nestas Atas do Simpósio,
também possam contribuir para a realização de futuros trabalhos de consultoria em
Arqueologia, sobremaneira nos casos em que os empreendimentos sejam semelhantes
ao do Gasoduto Bolívia-Brasil.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Nos casos em que trabalhos como este são realizados, as estratégias de
levantamento arqueológico devem ser compatíveis, pertinentes e adequadas aos
objetivos propostos, bem como ao tempo disponível para a execução dos trabalhos.
Isso porque muitas vezes profissionais (e empreendedores) são chamados um pouco
tarde para aplicar metodologias mais refinadas, o que evidentemente não serve de
justificativa para trabalhos de baixa qualidade.
Neste caso particular, para a definição das estratégias de levantamento
arqueológico foram aproveitadas basicamente as experiências adquiridas pelo
Programa Arqueológico do MS - Projeto Corumbá4, que propiciaram um
3
Essa subdivisão foi feita “com base em dados observados em imagens de satélite e em informações
bibliográficas referentes à geologia, à geomorfologia, aos solos e à vegetação” (Gasoduto BolíviaBrasil: Estudos de Impacto Ambiental
EIA, 1993, v. 2/4, p. 5-1). Nota-se que algumas macrounidades ambientais estão contidas, total ou parcialmente, em outras maiores.
4
Projeto de pesquisa desenvolvido nos municípios sul-matogrossenses de Corumbá e Ladário, desde
1989, através de um convênio de mútua cooperação entre a Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, representada pelo Centro Universitário de Corumbá, e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
28
indispensável conhecimento sobre os tipos de sítios arqueológicos que ocorrem na
região do Pantanal Matogrossense. Contudo, também foram úteis nesta etapa dos
trabalhos, experiências de outros arqueólogos, especialmente daqueles que recorreram
a um levantamento probabilístico, dentre os quais Hilbert et al. (1993)
através das
aulas de levantamento arqueológico junto ao Mestrado em Arqueologia da PUCRS
, Neves (1984) e Redman (1979).
Decidiu-se primeiramente percorrer todo o traçado do gasoduto, exceto as
partes do terreno em que as condições ambientais impossibilitassem o acesso e o
trânsito por parte dos pesquisadores, priorizando os sítios arqueológicos evidenciados
na superfície dos terrenos. Para tanto, entendeu-se por sítio arqueológico qualquer
local que apresentasse evidências materiais da presença ou atividade humana pretérita
(independentemente de sua classificação funcional), onde o termo pretérito não
necessariamente se restrinja a tempos pré-históricos.
A utilização de sondagens pedológicas, a partir de espaçamentos regulares,
foi proposta, em princípio, para pontos designados na literatura arqueológica,
etnológica e histórica ou através de informantes, desde que estivessem em áreas
favoráveis a assentamentos humanos, não apresentassem visibilidade das evidências
arqueológicas e realmente estivessem dentro da área de estudo delimitada ou em suas
proximidades. No entanto, durante os trabalhos de campo não foi necessário recorrer a
esta técnica.
O pressuposto básico para a definição da estratégia de levantamento
arqueológico foi entender o traçado do gasoduto como um transect que atravessa uma
grande área, compreendida por diferentes ambientes, constituindo uma verdadeira
linha de percurso a ser esquadrinhada, isto é, uma linha de caminhamento orientada.
Nesta perspectiva, foi delimitada como área de pesquisa a faixa de serviço do
gasoduto, incluindo, no mínimo, mais 40 m de cada lado, totalizando assim 100 m de
largura. Em segmentos com considerável densidade de sítios arqueológicos foi
necessário ampliar a largura da área de levantamento, delimitando uma área piloto de
acordo com a realidade local, com o propósito primeiro de fornecer subsídios à
orientação de possíveis desvios do traçado do gasoduto, em função da preservação do
patrimônio arqueológico.
Faz-se oportuno esclarecer que metodologias como esta são válidas
especialmente para empreendimentos como dutovias, rodovias e ferrovias, onde se
tem uma linha de caminhamento orientada, e não em áreas de empreendimentos com
recortes naturais da paisagem, como é o caso de hidrelétricas.
O percurso do traçado foi precedido pelo estudo detalhado das
correspondentes cartas topográficas do exército (1: 100.000) e das cartas de traçado
do Gasoduto Bolívia-Brasil (1: 50.000). Também foi indispensável o estudo
aerofotogramétrico do traçado através de imagens de satélite Landsat 5 (1: 100.000) e,
em parte, de fotografias aéreas, em sua maioria datadas de 1966 (1: 60.000), bem
como da bibliografia referente ao meio ambiente5. O uso desses recursos foi
fundamental para a revelação dos aspectos físicos da área a ser percorrida, incluindo,
em algumas ocasiões, sítios arqueológicos. Possibilitou conhecer com antecedência
representada pelo Instituto Anchietano de Pesquisas. O autor deste artigo participou desse projeto desde
o início até o ano de 1995.
5
As fotografias aéreas utilizadas foram obtidas junto ao Programa Arqueológico do MS - Projeto
Corumbá.
29
características da área a ser estudada, tais como: vias de acesso, sedes de fazendas
próximas à dutovia, relevo, tipo de solos, afloramentos rochosos, distância do traçado
em relação ao nível das águas próximas, vegetação, diques lacustres, diques fluviais,
diques marginais, terraços fluviais etc. Trata-se de uma metodologia que também
utiliza variáveis ambientais para a detecção de bens arqueológicos em áreas pouco
conhecidas, tendo por base a interdisciplinaridade. Mas ela somente foi possível
porque os autores já dispunham de estudos anteriores sobre os ambientes a serem
percorridos, especialmente para a porção do Pantanal, os quais possibilitaram,
posteriormente, a conclusão de suas respectivas dissertações de mestrado (ver
Oliveira, 1995 e Peixoto, 1995).
Os trabalhos de campo ocorreram durante o mês de outubro de 1993, tendo
sido necessário realizar cerca de 250 horas de levantamento arqueológico, numa
média de, no mínimo, 12 km diários. Antes de percorrer um determinado trecho do
traçado, realizavam-se novos estudos sobre o meio ambiente físico, no intuito de
planejar as atividades, detectar as vias de acesso e identificar áreas onde, em nível de
hipótese, são mais prováveis a ocorrência e a visualização de sítios arqueológicos préhistóricos ou históricos: áreas próximas a cursos d‟água, as que tiveram o solo
revolvido para cultivo, as erodidas
com voçorocas por exemplo
e aquelas áreas
com afloramentos rochosos. Não raras vezes foi preciso contar com um guia da região
para orientar os pesquisadores sobre as vias de acesso ao trecho a ser levantado,
principalmente para a região do Pantanal. Contudo, não se deve pensar que somente
as áreas que hipoteticamente apresentavam maiores probabilidades de se encontrar
sítios arqueológicos foram as percorridas. Como já foi dito anteriormente, mas vale a
pena lembrar novamente, foi feita a opção inicial por percorrer todo o traçado da
dutovia. Entretanto, quando se levantam variáveis que dizem respeito à complexidade
dos sistemas sócio-culturais inerentes ao levantamento de bens arqueológicos,
constata-se que raramente uma metodologia, como a utilizada, poderá detectar a
totalidade dos sítios existentes numa área. Logo, a estratégia de levantamento
arqueológico empregada para este trabalho não teve a pretensão de ser a exceção.
A complementação dessa metodologia deu-se, essencialmente, através de
uma pesquisa bibliográfica exaustiva sobre os trabalhos arqueológicos realizados
anteriormente nas diversas esferas ambientais do trecho Corumbá-Terenos. Dentre os
principais, merecem destaque os de Martins (1987), Passos (1975) e Schmitz (1993).
Sem embargo, realizou-se ainda um estudo bibliográfico sobre a história e a etnologia
das áreas a serem percorridas, fundamentalmente em obras como Corrêa Filho (1969),
Loukotka (1968), Nimuendajú (1981) e Susnik (1972 e 1978). Fichas de sítios
arqueológicos cadastrados junto ao IPHAN também foram utilizadas. No entanto, por
mais exaustivo que fosse o levantamento bibliográfico, não seria possível a partir dele
conhecer preditivamente a realidade arqueológica da região, muito menos avaliar o
impacto da dutovia sobre o patrimônio arqueológico de Mato Grosso do Sul, uma vez
que se tratava de uma região ainda pouco pesquisada.
Em campo, os sítios arqueológicos identificados foram plotados nas cartas
de traçado com auxílio de um GPS (Sistema de Posicionamento Global),
documentados fotograficamente e registrados previamente em uma ficha de registro
de sítios arqueológicos elaborada para a ocasião dos trabalhos e adequada às
especificidades regionais, tendo como base a proposta de Wüst, Lima & Neves
(1989). Nos sítios arqueológicos também foram realizadas coletas de material de
superfície, evitando maiores intervenções que pudessem comprometer a incolumidade
dos estratos arqueológicos e com o propósito de viabilizar futuros estudos que
30
pudessem contribuir ao conhecimento da arqueologia regional. Os sítios localizados
através de levantamento bibliográfico também foram plotados nas cartas de traçado,
desde que estivessem localizados nas áreas por elas abrangidas.
Em laboratório, os sítios arqueológicos foram definitivamente plotados nas
respectivas cartas de traçado e descritos igualmente nas fichas de registro. Em ambos
os casos receberam uma sigla específica utilizada para designá-los, obedecendo à
seguinte seqüência: sigla do Estado, sigla da sub-bacia hidrográfica e ordenação
numérica. Para a identificação das sub-bacias hidrográficas utilizou-se o Referencial
Hidrográfico de Mato Grosso do Sul (1990). Todo o material recolhido dos sítios
arqueológicos foi devidamente limpo, averiguado, catalogado e depositado nas
instalações do Instituto Anchietano de Pesquisas para posteriores estudos.
Vale a pena mencionar ainda que a participação de técnicos da Petrobrás em
algumas atividades de campo foi importante para que, através deles, os
empreendedores tomassem conhecimento dos trabalhos realizados e, principalmente,
dos tipos de sítios arqueológicos encontrados, da sua importância e das avaliações a
serem feitas para sua proteção. Isso porque, muitas vezes, empreendedores supõem
aprioristicamente que somente grandes monumentos arqueológicos, a exemplo das
pirâmides egípcias, merecem ser preservados. Por isso, em certas situações, é preciso
que os pesquisadores desmistifiquem algumas idéias equivocadas que se têm a
respeito da arqueologia, muitas das quais veiculadas pela mídia.
RESULTADOS DOS TRABALHOS DE LEVANTAMENTO ARQUEOLÓGICO
Constataram-se in loco 41 aterros com vestígios de ocupação cerâmica, em
sua maioria conservados e situados na planície de inundação do Pantanal. São
facilmente visualizados pela densa cobertura vegetal que os destaca nos campos,
justificando as denominações regionais de capões-de-mato e cordilheiras6, sendo
igualmente localizados através da aerofotogrametria. Atualmente é possível afirmar
que a tecnologia cerâmica das populações indígenas que ocuparam esses aterros
pertencem a uma nova tradição denominada Pantanal. Em Oliveira (1996) há maiores
informações sobre a ocupação indígena da planície de inundação do Pantanal,
inclusive a respeito dos aterros.
O material coletado da superfície desses sítios geralmente são fragmentos de
vasilhas cerâmicas, restos de alimentação
basicamente ossos de répteis e
mamíferos, vértebras de peixes e conchas de moluscos
e ossos humanos.
Raramente encontrou-se material lítico lascado ou polido, pontas de flecha ósseas e
contas de colar feitas de conchas de moluscos.
Foram observadas três áreas onde ocorrem aterros: a primeira (km 10-35)
compreende a área de influência da Lagoa do Jacadigo; a segunda (km 50-55)
corresponde ao rio Verde e adjacências; e a terceira (km 75-130) está inclusa na
fazenda Bodoquena, localizada nas sub-regiões de Nabileque e Miranda, que possui
203.828 ha de terras utilizadas para atividade de pecuária extensiva de corte.
6
Cordilheiras são elevações do terreno que separam lagoas, em sua maioria, temporárias. São
formações areno-argilosas com 1 a 2 m de altura, caracterizadas por uma densa vegetação que as
destaca na paisagem como verdadeiras ilhas de vegetação, podendo ser comumente alongadas. Capõesde-mato, por sua vez, são semelhantes às cordilheiras, distinguindo-se dessas basicamente pelo fato de
apresentarem formas circulares e subcirculares, muitas vezes de tamanho menor e não necessariamente
separando lagoas.
31
No segmento correspondente ao Planalto da Borda Ocidental da Bacia do
Paraná (km 260-350) foram identificados dois sítios arqueológicos, sendo um abrigosob-rocha e um sítio lítico a céu aberto. O primeiro, sítio MS-MA-37 (UTM 7740000640500), encontra-se conservado e localiza-se na Serra do Paxixi, município de
Aquidauana, na localidade da Fundação Centro Educacional Rural de Aquidauana
(CERA), onde ocorrem isoladas figuras rupestres em branco e isolados petroglifos,
ambos com motivos zoomorfos. Encontra-se a 8,7 km de distância da dutovia e foi
investigado apenas para se conhecer como se apresentam os abrigos-sob-rocha que
ocorrem nessa região serrana. O segundo, sítio MS-PA-01 (UTM 7723700-692410),
situa-se numa pequena colina, próximo a um córrego intermitente onde aflora basalto,
a 200 m da dutovia, estando parcialmente destruído pela ação antrópica recente.
Trata-se de uma oficina lítica caracterizada principalmente por material de refugo em
arenito silicificado vermelho: núcleos, seixos lascados, lascas unipolares (com
córtex), lascas unipolares secundárias e lascas unipolares secundárias com retoque.
Em nenhum desses segmentos foi encontrado qualquer sítio arqueológico
histórico.
AVALIAÇÃO DO IMPACTO SOBRE O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
O segmento do Pantanal (km Zero-260) corresponde à área de maior risco de
destruição do patrimônio arqueológico, devido à grande densidade de aterros
identificados ao longo dos primeiros 350 km do traçado do gasoduto e proximidades,
especialmente na área abrangida pelo rio Verde (km 50-55) e parte da fazenda
Bodoquena (km 80-l20). Esses sítios, em sua maioria, encontram-se conservados e
devem ser preservados. Nesta ótica, cada aterro deve ser entendido como parte
indispensável de um conjunto de dados materiais culturais que se consolidou ao longo
de gerações, constituindo um importante registro para a história quaternária do
homem no continente sul-americano. Tal história, por sua vez, ainda está longe de ser
amplamente conhecida.
Ressalta-se ainda que é errôneo e apriorístico interpretá-los como simples
réplicas de um tipo de sítio arqueológico, como se todos os aterros apresentassem um
único conteúdo ou repetidas informações culturais. Portanto, para cada aterro a ser
atingido pela construção do gasoduto será necessário o devido e antecipado
salvamento arqueológico, sendo de fundamental importância advertir para a existência
de um aterro conservado, o sítio MS-MA-22 (UTM 7826850-493970), que se
encontra exatamente sobre a linha do traçado do gasoduto, no km 103. Também é
importante deixar claro que, em princípio, todos os capões-de-mato e cordilheiras que
ocorrem no segmento do Pantanal devem ser entendidos, para fins de diagnóstico
arqueológico, como sítios arqueológicos, no caso, aterros.
Nas áreas onde ocorrem os aterros, a possibilidade de ser encontrado algum
sítio arqueológico enterrado no solo é praticamente nula. Isso porque esses sítios
provavelmente configuram-se como os únicos lugares protegidos das cheias
periódicas que atingem as porções mais baixas do segmento do Pantanal. Dessa
forma, podem ser considerados como os únicos pontos favoráveis a assentamentos
humanos em áreas onde as demais porções do terreno permanecem periodicamente
inundadas. Os recentes estudos de Oliveira (1996) comprovam que, no caso do grupo
étnico Guató (lingüisticamente Macro-Jê e último remanescente de todos os grupos
que ocuparam a planície de inundação desde antes da Conquista Ibérica da região
32
platina), os aterros são ocupados especialmente durante as cheias periódicas que
atingem a planície de inundação, quando se torna possível a mobilidade em áreas até
então inacessíveis através da canoa.
Alguns dos aterros localizados nos segmentos km 50-60 e km 105-120 não
foram devidamente investigados por encontrarem-se em pontos de difícil acesso,
dadas as condições ambientais desfavoráveis. No entanto, poderiam ser facilmente
localizados através de fotografias aéreas ou imagens de satélite em escala igual ou
superior a 1: 60.000, recursos estes não colocados a disposição dos pesquisadores por
parte do empreendedor, apesar de solicitados com antecedência.
Na região dos relevos residuais do planalto de Urucum (km 10-50), inclusos
na área do Pantanal (km Zero-260), a bibliografia examinada indica um número
considerável de sítios cerâmicos a céu aberto e igualmente sítios com inscrições
rupestres. Entretanto, não foi constatada a presença de algum sítio arqueológico que
ainda não tivesse sido registrado anteriormente. Assim, a probabilidade de destruição
de algum sítio ainda desconhecido é mínima, porque nesta parte do traçado do
gasoduto os solos são geralmente rasos e cascalhentos, o que facilita a visualização de
possíveis sítios e dificulta a existência de algum abaixo da superfície dos terrenos.
Nos últimos 70 km do segmento do Pantanal, no município de Miranda (km
190-260), os riscos de destruição de sítios arqueológicos são maiores que nas áreas
anteriores, em conseqüência da grande quantidade de pastagens artificiais e,
principalmente, de matas naturais que dificultam a visualização dos remanescentes
materiais de culturas passadas. Muitas vezes a própria dificuldade de acesso e
mobilidade nessas áreas impossibilita a identificação dos sítios. Esta avaliação
também justifica-se através da literatura etnológica, que aponta esse trecho e/ou
proximidades como uma área de ocupação indígena, notadamente durante o período
colonial, por populações lingüisticamente Arawak e Tupi-Guarani.
O Planalto da Borda Ocidental da Bacia do Paraná (km 260-350) é área de
menor risco de destruição ao patrimônio arqueológico, em relação ao Pantanal (km
Zero-260). Dos dois sítios identificados apenas o MS-PA-01 encontra-se próximo do
gasoduto. As possibilidades de destruição do patrimônio arqueológico nessa área
restringem-se a sítios que possam estar abaixo da superfície dos terrenos ou em áreas
de pastagens e matas naturais onde há pouca visibilidade dos remanescentes culturais.
A própria etnologia também justifica esta idéia, porque indica o médio curso do rio
Aquidauana e/ou proximidades como uma área de ocupação Terena/Layana.
Verificou-se que o impacto da dutovia sobre o trecho Corumbá-Terenos (km
Zero-350) limita-se basicamente à limpeza do terreno para a construção da faixa de
serviço de 20 m de largura e à escavação das valas de, no mínimo, 1 x 1,5 m, onde
serão enterrados os dutos de 28” de diâmetro. Durante essas atividades haverá grande
circulação de pessoas e maquinários diversos pela área a ser impactada. Neste sentido,
propõem-se as seguintes medidas preventivas e/ou mitigadoras a serem adotadas pela
Petrobrás, empresa responsável pelo empreendimento:
1ª) Viabilização de estudos que possibilitem desviar o traçado do gasoduto
dos sítios arqueológicos identificados, especialmente do sítio MS-MA-22. Caso
contrário, tornam-se-á indispensável propiciar as condições necessárias para o
conseqüente salvamento arqueológico;
33
2ª) Em caso de desvio do traçado do gasoduto, em função da preservação, ou
não, do patrimônio arqueológico, torna-se imprescindível o acompanhamento de outro
parecer arqueológico favorável;
3ª) Mapeamento de todos os capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos
km 50-60 e km 95-120, numa faixa mínima de 1.000 m de cada lado da área de
serviço. Este trabalho possibilitará detectar possíveis aterros que não foram
identificados em campo nessas partes do traçado. Justifica-se esta avaliação em
virtude das condições ambientais desfavoráveis ao acesso e à mobilidade dos
pesquisadores nos referidos segmentos. Outrossim, porque o empreendedor não
tornou possível contar com imagens de satélite ou fotografias aéreas numa escala
igual ou maior que 1: 60.000, que tornam mais segura a identificação dos sítios
arqueológicos. Esta medida poderá também indicar possíveis desvios do gasoduto, de
acordo com as especificidades técnicas do empreendimento e com o objetivo primeiro
de evitar a destruição de aterros;
4ª) Plotação, nas correspondentes cartas de traçado, dos sítios que foram
identificados em campo, bem como aqueles que foram arrolados pela pesquisa
bibliográfica;
5ª) Divulgação, junto às empresas responsáveis pela construção da obra, da
localização dos sítios arqueológicos e da necessidade de evitar a sua depredação por
parte de quaisquer pessoas participantes dos trabalhos, que por ventura venham a
querer coletar material arqueológico ou perturbar as camadas dos sítios arqueológicos.
Com isso objetiva-se proteger os sítios arqueológicos principalmente dos caçadores
de tesouros ou enterros;
6ª) Acompanhamento de um arqueólogo em cada frente de trabalho durante a
construção do gasoduto. Isso para que, caso se encontre, durante a escavação da vala,
algum sítio não previamente identificado, se possa realizar o devido resgate dos
remanescentes arqueológicos. Nesta perspectiva, observa-se um impacto positivo da
dutovia, uma vez que ela também possibilitará melhor conhecer a arqueologia da
região e, dificilmente, sua vala destruirá grande parte de um sítio arqueológico;
7ª) Quando do contato com os proprietários e moradores das localidades a
serem atingidas diretamente pelo empreendimento, torna-se necessário participar a
eles, através de um informativo (a exemplo do Informativo do Gasoduto BolíviaBrasil, 1993), a ocorrência de sítios arqueológicos ao longo do traçado do gasoduto e
a importância de sua preservação;
8ª) Colocação de placas de advertência nos sítios situados num raio mínimo
de 200 m de distância de cada lado da faixa de serviço do gasoduto, informando que
aquele local é um sítio arqueológico, sendo proibida sua depredação.
Em complementação a essas medidas preventivas e mitigadoras, propuseramse alguns procedimentos básicos para um possível salvamento arqueológico, seja para
o sítio MS-MA-22, seja para quaisquer outros aterros que possam ser detectados no
mapeamento dos capões-de-mato e cordilheiras dos segmentos km 50-60 e km 95120. Os procedimentos propostos não devem ser entendidos como uma camisa-deforça para um eventual salvamento arqueológico, mas considerações a serem
ponderadas na elaboração do projeto de salvamento. São os seguintes:
1º) Objetivos: Resgatar e analisar de forma sistemática os remanescentes
culturais evidenciados na área do(s) aterro(s) a ser destruída pela construção do
gasoduto, evitando ao máximo maiores intervenções nos estratos arqueológicos;
34
2º) Delimitação da área: A escavação limitar-se-á à largura da área a ser
atingida pela vala do gasoduto (1 m) acrescida de, ao menos, 50 cm de cada lado,
totalizando assim uma trincheira de 2 m de largura que atravessará o(s) aterro(s),
servindo desde então de vala para enterrar os dutos. Esta proposta somente terá
validade caso não haja circulação de maquinário pesado nos limites do sítio,
preservando-o para pesquisas futuras. A delimitação da área a ser escavada deverá ser
preferencialmente antecedida dos respectivos serviços de topografia que precederão à
construção das valas, pois o rastreador de satélites do sistema GPS apresenta uma
pequena margem de erro de alguns poucos metros que, neste caso, pode ser crucial
para os trabalhos de salvamento arqueológico. Durante os trabalhos de levantamento
arqueológico na área do Pantanal (km Zero-260), foi realizado um croqui da área de
dois sítios, visando embasar possíveis salvamentos e/ou desvios do traçado da
dutovia;7
3º) Procedimentos metodológicos: Os processos de resgate dos
remanescentes culturais deverão estar de acordo com as características morfológicas
do(s) aterro(s), principalmente quanto à extensão e à altura das camadas culturais. Em
campo, será indispensável delimitar a trincheira a ser escavada e realizar o
levantamento topográfico do(s) sítio(s). Para a escavação torna-se pertinente obedecer
a níveis artificiais de 10 ou 5 cm até atingir a camada estéril do(s) sítio(s), coletando e
documentando sistematicamente todas as evidências arqueológicas, restos faunísticos,
sepultamentos e amostras de rochas, minerais, carvão, solo e pólen 8. Em laboratório,
os materiais arqueológicos (cerâmico, lítico, ósseo e outros) deverão ser analisados de
acordo com as normas padronizadas, buscando compreender as tecnologias
evidenciadas nos remanescentes culturais. A análise das amostras de restos
faunísticos, sepultamentos, rochas, minerais, carvão, solo e pólen será norteada por
uma perspectiva interdisciplinar, tendo como objetivo último tratar da relação
existente entre sociedades humanas e seus ambientes de vida (por exemplo, problemas
pertinentes a assentamento e subsistência). A apresentação dos resultados, com as
necessárias explanações das etapas dos trabalhos, deverá ser feita sob forma de
relatório final a ser publicado em sua íntegra;
4º) Duração dos trabalhos e recursos necessários: A duração dos trabalhos,
o cronograma das atividades e os recursos materiais e humanos necessários serão
apontados pelos arqueólogos designados para a realização do salvamento, caso este
venha a ser necessário. Sugere-se que os trabalhos de campo sejam realizados
preferencialmente no período da seca do Pantanal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados apresentados comprovam a grande potencialidade de sítios
arqueológicos, principalmente de culturas indígenas passadas, do Estado de Mato
Grosso do Sul, especificamente da área de estudo aqui abrangida.
O segmento do Pantanal (km Zero-260) destaca-se com uma considerável
quantidade de aterros, geralmente conservados e que se sucedem na planície de
7
Faz-se necessário não restringir a escavação aos limites visíveis do(s) sítio(s), mas também escavar
fora do aterro para verificar se ali existem evidências de ocupação ou atividade humanas pretéritas.
8
Atualmente penso ser mais pertinente realizar uma escavação através da decapagem dos níveis
naturais dos aterros, apesar da dificuldade de identificá-los em muitos casos, e não a partir de níveis
arbitrários de 5 ou 10 cm de espessura.
35
inundação. É possível inferir que o Pantanal constitui-se numa das regiões de maior
concentração de sítios arqueológicos, notadamente de aterros, do território nacional.
Sua relevância arqueológica dá-se, principalmente, pela incolumidade da grande
maioria dos sítios ali existentes, e estes, por sua vez, devem ser indicadores de uma
considerável densidade de populações indígenas que habitaram a região em tempos
pretéritos. Por outro lado, constata-se a necessidade urgente de definição de
estratégias para sua preservação, enquanto patrimônio cultural, devido a sua
relevância para os estudos sobre a ocupação indígena da América do Sul, bem como
para a história e a cultura da população sul-matogrossense.
Nota-se ainda que a construção do Gasoduto Bolívia-Brasil não ocasionará
um grande impacto ao patrimônio arqueológico brasileiro se comparado a outros
empreendimentos, como rodovias, ferrovias, hidrelétricas e hidrovias. Além dos
impactos negativos abordados, possui um impacto positivo importante
a vala
construída para enterrar os dutos. Trata-se de um impacto de fundamental importância
para o conhecimento da ocupação indígena pretérita de Mato Grosso do Sul. Também
será importante para o conhecimento da geologia e geomorfologia regionais, que
propiciará um melhor entendimento da história quaternária do Pantanal e do Planalto
brasileiros, da qual fazem parte muitas sociedades humanas ainda pouco conhecidas
ou praticamente desconhecidas.
A partir dos resultados obtidos torna-se crucial o cumprimento das medidas
preventivas e mitigadoras apontadas neste trabalho, a fim de prevenir ou compensar a
destruição do patrimônio arqueológico em questão.
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38
O USO DE MODELOS PREDITIVOS PARA DIAGNOSTICAR
RECURSOS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS A SEREM AFETADAS
POR EMPREENDIMENTOS DE IMPACTO AMBIENTAL
Renato Kipnis
INTRODUÇÃO
A distribuição dos recursos arqueológicos no espaço não é aleatória. Ela é
padronizada segundo vários fatores, dentre os quais, o comportamento de populações
passadas, processos naturais e ação humana na paisagem. De um modo geral, o
comportamento humano pretérito produz padrões na cultura material e na paisagem
(resultado da interação entre sociedades humanas e meio-ambiente). Com o tempo
estes padrões podem ser alterados por processos naturais e pela contínua ação humana
(Wood and Johnson 1978 ) que, apesar de alterarem os vestígios arqueológicos,
também são padronizados. O desenvolvimento de modelos preditivos baseam-se
nestes pressupostose têm por objetivo, prever a ocorrência de um determinado
fenômeno arqueológico a partir do conhecimento prévio das variáveis envolvidas na
formação dos padrões arqueológicos, segundo uma perspectiva sistêmica. A idéia
básica que está por trás do desenvolvimento de um modelo arqueológico locacional é
que se existem tendências ou padrões entre as localizações de sítios arqueológicos e
uma ou mais variáveis distribuidas regionalmente, pode-se então desenvolver um
modelo baseando-se nesta associação (Brandt et al. 1992).
É quase que inevitável que empreendimentos de impacto ambiental,
principalmente os de grande escala (rodovias, hidroelétricas, gasodutos, etc.), irão
deparar com recursos arqueológicos. Um vez que a distribução destes recursos não é
aleatória, sería extremamente útil, e eficiente, se pudessemos de alguma forma prever,
se não a localização destes recursos, pelo menos a probabilidade de sua ocorrência em
uma determinada região. Isto daria subsídios para o empreendedor levar em
consideração os recursos arqueológicos na elaboração de um empreendimento de
impacto ambiental já nas primeiras etapas (i.e. planejamento e diagnóstico) da
formulação do projeto. Sem dúvida, isto dária melhores condições para contemplar
alternativas de localização do projeto, assim como custos com mitigação dos impactos
negativos.
O diagnóstico dos recursos arqueológicos é de extrema importância, pois é ele
que deve ser a primeira instância de avaliação do potencial do patrimônio
arqueológico. É baseado neste estudo que a primeira análise dos impactos culturais do
empreendimento será feita. Durante a etapa do diagnóstico devem ser levantados os
principais problemas a serem pesquisados dentro de um empreendimento de impacto
ambiental. Os problemas a serem atacados, que tipo de dados são necessários para
resolver estes problemas e qual a metodologia a ser utilizada para gerar os dados e
processá-los durante o período do projeto como um todo, têm que ser desenvolvido já
na primeira fase do empreendimento de impacto ambiental. Em outras palavras, o
detalhamento dos programas propostos para mitigação dos impactos negativos têm
que se basear no diagnóstico. Eventualmente, como em qualquer outra pesquisa,
durante o desenvolvimento do projeto irá ocorrer um refinamento dos problemas e
métodos; mas a estrutura básica da pesquisa, o que chamamos de “design”, tem que
sair deste estudo inicial. Caso contrário fica impossível de se fazer um planejamento
39
eficiente, condição sine qua non neste tipo de empreendimento. O diagnóstico dos
recursos arqueológicos também é de extrema importância para dar subsídios aos
orgãos competentes para a avaliação do patrimônio arqueológico, dos projetos de
mitigação e monitoramento dos recursos.
A questão fundamental do estudo de diagnóstico dos recursos arqueológicos é
como gerar informação que dê subsídios para avaliar o impacto do empreendimento
nos recursos arqueológicos e para planejar atividades de mitigação a partir de dados já
existentes. Ou seja, como realizar o estudo de diagnóstico de uma forma eficiente e
não onerosa baseado em dados secundários.
É raro uma região no mundo, se é que há uma, em que não exista nenhum
registro escrito sobre algo característico do local. Em sua maioria, estes registros
contém dados sobre as populações que ali habitam e/ou habitavam. Os registros
também contém, em sua maioria, informações sobre o meio-ambiente. No caso
específico dos recursos arqueológicos, estas informações podem variar entre um
extremo, onde temos informações aprofundadas sobre o passado com alguns trabalhos
de campo já realizados e coleções arqueológicas que podem ser consultadas a outro
extremo onde nada se sabe. Como o objetivo do diagnóstico dos recursos
arqueológicos é o de levantar informações para podermos caracterizar a situação atual
do patrimônio cultural de uma dada região a ser impactada, precisamos fazer uso de
todos as informações possíveis, sejam elas empíricas ou somente teóricas para
caracterizar a região do empreendimento. Na pior das hipóteses, ou seja, a falta total
de referências, sempre haverá dados de locais circundantes desta suposta região
incógnita e informações sobre o comportamento humano que podem ser utililizadas
para os estudos de impacto ambiental.
A utilização de modelos preditivos no contexto de estudo de impacto
ambiental é de grande utilidade uma vez que estes modelos são dispositivos que se
utilizam de um conhecimento prévio para prever tendências e eventos. Ou seja, eles se
utilizam do conhecimento de dados arqueológicos e não-arqueológicos para
caracterizar o potencial de uma região, baseados em variáveis definidas pelo
pesquisador sem a necessidade de realizar trabalho de campo. É importante ressaltar
que precisamos sempre ter em mente o processo de um empreendimento de impacto
ambiental como um todo, e que a utilização de modelos não elimina o trabalho de
campo, muito pelo contrário, o trabalho de campo é importantíssimo para refinar e
validar os modelos e em última instância faz parte da atividade mitigadora. Mas, em
se tratando especificamente da fase de diagnóstico, a caracterização dos recursos
arqueológicos quando feita nesta etapa do projeto não envolve trabalho de campo. O
estudo fica limitado à utilização de dados secundários.
MODELOS EM ARQUEOLOGIA
O que são modelos? Modelos são hipóteses, ou um conjunto de hipóteses que
simplifica observações complexas ao mesmo tempo em que oferece um quadro
preditivo exato que estrutura estas observações, frequentemente separando
redundância (noise) de informação. A maioria dos modelos mais sofisticados são
modelos matemáticos ou estatísticos, estes têm a vantagem de apresenter um grau
mais baixo de viés e normalmente são sistemas dedutivos mais robustos.
Há duas áreas em que os modelos preditivos têm um grande potencial dentro
de um contexto de estudos de impacto ambiental, a saber: custo-eficiência e utilidade
40
em planejamentos. A perspectiva quanto ao custo-eficiência está no seu potencial de
projetar a provável distribuição dos recursos arqueológicos de uma região a partir de
uma amostra cuidadosamente escolhida da área a ser impactada. A utilização de
modelos preditivos nos primeiros estágios do planejamento dá condições, oferece
subsídios, para que os planejadores evitem os recursos naturais quando possível, ou
pelo menos escolham alternativas de menor impacto (Kohler & Parker 1986).
Tomemos por exemplo a construçao de uma auto-estrada. O estudo de diagnóstico dos
recursos arqueológicos pode gerar um modelo que prevê a probabilidade de
ocorrência ou não de sítios arqueológicos. O resultado final deste estudo sería um
mapa com diferentes áreas, representando diferentes probabilidades de ocorrência dos
recursos arqueológicos. Esta informação poderia ser então, utilizada na computação
geral dos custos do projeto para gerar alternativas do traçado da estrada. Do ponto de
vista dos recursos arqueológicos, as áreas de baixa probabilidade seriam as áreas de
menor custo para mitigação.
O desenvolvimento e a utilização de modelos preditivos em arqueologia estão
associados à projetos de impacto ambiental na América do Norte. A utilização de
modelos preditivos nos Estados Unidos teve um grande avanço no final da década de
70 e ínicio da década de 80 através de projetos financiados por agências
governamentais que gerenciam as terras federais norte americanas. O objetivo destes
projetos era o desenvolvimento de modelos que poderiam indicar locais de ocorrência
de recursos arqueológicos em grandes áreas, baseados em amostras obtidas através de
prospecções feitas somente em algumas partes da região (Ambler, 1984, Ebert 1988,
Kvamme 1990, Kohler and Parker 1986, Warren 1990). Em outras palavras, levantar
subsídios para avaliação dos impactos culturais e desenvolvimento de programas de
mitigação dos impactos negativos de um modo eficiente e sem custos abusivos.
O resultado destes estudos foi o desenvolvimento de modelos preditivos
locacionais que procuram prever, no mínimo, a ocorrência de sítios arqueológicos,
material arqueológico ou estruturas pré-históricas em uma região, baseados em
padrões ou tendências observadas em uma amostra desta região ou fundamentados em
noções ou suposições fundamentais sobre o comportamento humano. A localização
dos assentamentos pré-históricos pode ser vista como uma estratégia com fins
econômicos, sociais e políticos (Jochim 1981). O desenvolvimento de modelos que
incluam todos os possíveis aspectos que possam influenciar o padrão de assentamento
humano é muito complexo. A maioria dos modelos desenvolvidos até agora
conseguiram uma certa simplificação através da concentração no componente
econômico do padrão do assentamento humano. Argumenta-se, ou assume-se, que
dentre as várias relações econômicas relizadas por indivíduos e sociedades préhistóricas, uma das mais importantes é com o meio ambiente (Jochim 1981). Esta
suposição é importante pois é o fundamento no qual a utilização da distribuição de
características ambientais para prever a localização de assentamentos humanos está
baseada. Pressupõe-se também, que seres humanos tendem a minimizar o tempo ou
esforço gasto em suas transações econômicas com o meio ambiente (Jochim 1981).
Suposição esta que tem implicações importantes no desenvolvimento de modelos
preditivos.
Uma outra suposição, não menos importante, é a de que o comportamento e
suas mudanças ao longo do tempo produzem padrões. Qualquer estudo que visa gerar
conhecimento arqueológico tem que partir da caracterização destes padrões. A base de
tudo isto está na definição de cultura como sendo modos comportamentais
apreendidos e sua manifestação material, socialmente transmitidos de uma geração
41
para outra e de uma sociedade ou indivíduo para outro (Clarke 1968). Segundo uma
perspectiva sistêmica, o registro arqueológico é a soma da agregação dos materiais
descartados no curso do padrão repetitivo da localização de partes diferentes do
mesmo sistema.
Quando um pesquisador descobre um padrão em um conjunto de observações
e desenvolve uma hipótese para explicar o padrão observado, esta hipótese tem
implicações preditivas para observações futuras. As implicações podem ser testadas
com novos dados independentes. Se os dados são compatíveis com as previsões, a
hipótese é validada cientificamente. Caso a hipótese seja refutada, ela tem que ser
reformulada. Um aspecto importante deste processo, mas pouco adotado, é a
operacionalização das hipóteses, ou seja, criar modos delas serem testadas através de
dados empíricos. Este ponto é muito importante, pois é o único modo de se poder
avaliar uma pesquisa, seja uma avaliação feita por pesquisadores ou gerenciadores do
patrimônio cultural.
Os vários modelos preditivos têm três elementos básicos em comum:
informação, método e resultado. O modelo preditivo utiliza o método para transformar
informação em resultados previsíveis. Informação é o conjunto do conhecimento já
existente do qual o modelo é derivado. Dois tipos básicos de informação podem ser
utilizado no desenvolvimento de modelos preditivos. (1) Teorias que explicam os
efeitos processuais das variáveis independentes nos eventos de interesse segundo uma
relação de cause e efeito, e (2) observações empírcas, que normalmente consistem em
(a) interações observadas entre variávies dependentes e independentes em estudos
prévios ou em partes amostradas da área de interesse, e (b) informação sobre as
variáveis e condições que possam influenciar o resultado na área de interesse
amostrada (Warren 1990).
A informação é fundamental para o desenvolvimento do projeto como um
todo. Os dados que coletamos e como os coletamos, isto é, o método empregado em
uma pesquisa tem que ser determinado pelo problema que queremos solucionar e pelo
conhecimento teórico e empírico previamente adquirido.
O desenvolvimento de um modelo preditivo pode se dar segundo uma
perspectiva puramente dedutiva, baseada em teorias, ou de uma forma puramente
indutiva, baseada em observações empíricas (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990,
Warren 1990). Por exemplo, um modelo para prever a localização de sítios
arqueológicos poderia ser desenvolvido utilizando uma perspectiva dedutiva baseada
em teorias que salientem as necessidades culturais e biológicas de uma sociedade. As
necessidades serveriam para guiar a seleção das variáveis independentes. A
associação destas variáveis entre si, e com variáveis do meio-ambiente, indicariam o
potencial de ocorrência de sítios arqueológicos em uma determinada área. O oposto
deste modelo, seria um modelo puramente empírico, baseado na informação prévia
sobre a localização de sítios arqueológicos. Os padrões são descritos de uma forma
que possam prover expectativas quanto as características arqueológicas de uma área
desconhecida.
Os projetos de gerenciamento dos recursos culturais nos Estados Unidos, onde
a utilização de modelos tem sido mais comum, são em sua maioria indutivos e seguem
uma estratégia inferencial (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990). Correlatos
naturais da localização de sítios arqueológicos são descobertos através de
procedimentos de estatística inferencial com o intuito de reduzir o número de
variáveis ambientais que possam estar ligadas com a localização dos sítios para um
42
conjunto de variáveis cuja associação com a localização de sítios observados foram
comprovadas. Tal procedimento tem o objetivo de caracterizar uma região a partir de
uma amostra da mesma. Entre os vários problemas que esta perspectiva apresenta,
cabe ressaltar que na ausência de teoria o processo de escolha das variáveis é
ineficiente e o modelo resultante não é consistente e fica impossível se ser
interpretado. Uma estratégia mais eficiente é a utilização de modelos que incorporem
as duas perspectivas, teórica e empírica (Warren 1990).
Algumas das várias estratégias ou enfoques utilizados em modelos preditivos
regionais são: (1) modelos baseados em padrões ambientais observados
empiricamente em amostras arqueológicas de uma região (Pilgram 1987), (2) modelos
que se utilizam de coordenadas espaciais ou posição de sítios conhecidos de uma
região para desenvolver modelos quantitativos geográficos (Bakels 1982, Kvamme
1989), (3) modelos que partem de regularidades nas decisões de localização de
assentamento observadas em estudos etnográficos comparativos (Jochim 1976) e (4)
modelos dedutivos baseados em suposições sobre o comportamento humano, estrutura
do meio-ambiente e da relação entre os dois (Limp & Carr 1985). Alguns modelos
tentam prever a presença ou ausencia de sítios, número de sítios em uma determinada
área, tipos de sítios e até mesmo importância (significância) do sítio.
Quando um modelo arqueológico locacional preditivo é aplicado à uma região
o resultado pode ser visto em termos probabilísticos, apesar de muitas das técnicas ou
estratégias utilizadas no desenvolvimento de modelos não têm uma origem
probabilística. Por exemplo, a probabilidade de ocorrência ou não de sítios
arqueológicos em uma determinada região, ou a probabilidade de ocorrência de sítios
pré-cerâmicos.
Uma característica importante na utilizacão de modelos preditivos dentro de
uma perspectiva de projetos de impacto ambiental é que a unidade elementar de
pesquisa em estudos de modelos arqueológicos deixa de ser o sítio arqueológico e
passa a ser a parcela territorial. A parcela territorial nada mais é que uma parte da área
de estudo adquirida através da divisão da região segundo critérios estabelecidos
(Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990, Warren 1990). A fragmentação de uma região
em unidades pode ser facilmente obtidada através do quadriculamento de uma região.
Por exemplo, uma parcela territorial pode ser uma unidade (um quadrado) do
quadriculamento geral. Geralmente as parcelas ou „células‟ (cell) são do mesmo
tamanho (contém a mesma área) para facilitar interpretações e cálculos
probabilísticos. A princípio, a parcela territorial pode ser de qualquer tamanho, quanto
menor a parcela mais refinadas serão as previsões, consequentemente, as informações
geradas serão mais eficazes em termos de gerenciamento dos recursos arqueológicos.
Por exemplo, a figura 1 representa uma região no estado de Minas Gerais,
entre a cidade de Belo Horizonte e Serra do Cipó, que foi dividida em quatro unidades
territoriais. O evento definido é presença ou ausência de sítio arquológico. Podemos
ver que na figura 1 todas as parcelas contém sítios. Já na figura 2, a mesma área foi
subdividida em 32 parcelas. Notamos que 17 das unidades territoriais não contém
sítios arqueológicos. Analisando melhor a informação contida na figura 2, veremos
que 8 das 32 „células‟ são caracterizadas pela ausência de curso d‟água e que
nenhuma destas unidades apresenta sítios arqueológicos. Dentre as 24 unidades com
curso d‟água, 15 têm a presença de sítios arqueológicos. Apesar de muito
simplificado, fica claro as vantagens de se trabalhar com escalas mais precisas.
43
No começo do desenvolvimento de qualquer modelamento de um problema é
importante a definição do evento arqueológico que vai ser observado em cada parcela.
A natureza deste evento depende dos objetivos do modelo. Os eventos definidos
formam uma fragmentação mutuamente exclusiva e exaustiva do espaço amostrado. A
parcela de terra pode ser designada somente a um dos eventos arqueológicos
definidos. Esta exclusão mútua implica que as definições sejam claras, sem
ambigüidades, e que todos os eventos que possam ocorrer na unidade sejam definidos.
Por exemplo, o evento presença ou não de sítio arqueológico em uma parcela de terra,
implica na definição de sítio e não sítio.
Uma característica importante na utilização de modelos preditivos é a
definição de probabilidades prévias para serem utilizadas como índices de base. Estes
são simplesmente probabilidades elementares da ocorrência associada a cada evento
arqueológico definido anteriormente, ou anterior a qualquer consideração de modelos
(Kvamme 1990). Probabilidade a priori indica a probabilidade total de cada evento
arqueologógico na totalidade de uma região, elas não nos dizem nada sobre onde
sítios arqueológicos, material ou outras evidências possam ser encontradas.
Probabilidades arqueológicas a priori nos dão condições de definir o que os modelos
arqueológicos devem efetuar. Especificamente, o modelo preditivo deve poder indicar
a ocorrência de um evento arqueológico em uma localidade com uma probabilidade
maior que a probabilidade do evento associada aos índices de base. Em estudos
regionais, probabilidades a priori podem ser estimadas através de uma perspectiva de
frequência relativa baseada em amostras aleatórias de parcelas territoriais e na
observação da classe do evento associado a cada parcela (Kvamme 1990, Warrem
1990).
O modelo preditivo pode ser visto como uma regra de decisão que determina
uma parcela territorial à uma das classes do evento arqueológico definido, baseandose em outras condições e características do local, na maioria dos casos variáveis não
arqueológicas. Em outras palavras, o modelo processa as variáveis independentes, os
dados não arqueológicos (input) segundo vários critérios de decisão, e tem como
resultado (output) a classificação ou determinação do local à uma classe do evento
arqueológico, que é a variável dependente.
Em qualquer região de estudo as características não arqueológicas podem ser
determinadas ao nível das unidades de parcela territorial a serem investigadas através
de medições ou observações feitas em mapas, fotografias aéreas, imagens de satélite
ou mesmo informação espacial gerada por computadores, sem a necessidade de
realização de trabalho de campo. Para cada parcela territorial o resultado é uma série
de características ou atributos para a unidade de análise. Estas características devem
representar variáveis que, segundo trabalhos prévios ou teoria, têm alguma relação
com a distribuição dos eventos arqueológicos estudados. A maioria dos estudos que
seguem uma perspectiva de modelos, independente de sua natureza e origem, têm
focalizado as observações espaciais das características do meio-ambiente; por
exemplo, relêvo, tipo de solo, declividade, elevação, vegetação (tipos de comunidades
de plantas), ou distância da água. Outras propriedades de localidade que também são
empregadas como base no desenvolvimento de modelos incluem atributos de
localidade e até mesmo atributos sócio-culturais. É baseado nestas características que
o modelo preditivo arqueológico, através de alguma forma de regra de decisão,
designa cada unidade local à um dos eventos arqueológicos definido.
44
Para exemplicar, vamos supor um projeto cujo objetivo é caracterizar o
potencial arqueológico de uma dada região segundo padrões ambientais observados.
O evento (variável dependente) que definimos é presença ou ausência de sítios
arqueológicos. As informações (variáveis independentes) utilizadas para desenvolver
o modelo são dados do meio ambiente: (a) vegetação, que pode assumir três valores:
comunidade de plantas A, B ou C; (b) declividade do terreno segundo três classes: 0 a
10 graus, entre 10 e 20 graus e maior do que 20 graus, e (C) distância de água de
acordo com três divisões: entre 0 e 500 metros, de 500 a 1000 metros e maior que
1000 metros (Tabela 1)
TABELA 1
vegetação
comunidade de plantas A
comunidade de plantas B
comunidade de plantas C
declividade do terreno
0 o - 10o
distância de água
0 - 500 m.
10 o - 20 o
> 20 o
500 - 1000 m.
> 1000 m.
Baseados em observações empíricas desenvolveu-se o seguinte modelo utilizando-se
parcelas territoriais de 1 km 2 :
vegetação
comunidade
plantas A
comunidade
plantas B
comunidade
plantas A
declividade do terreno
de 0 o - 10o
distância
da probabilidade de ocorrência de
água
sítios arqueológicos
500 - 1000 m
.80
de 0 o - 10o
0 - 500 m
.10
de 10 o - 20 o
500 e 1000 m
.05
Em uma dada região com características semelhantes àquela onde se
desenvolveu o modelo, prevemos que a probabilidade de ocorrência de sítios
arqueológicos em uma área cuja vegetação é caracterizada pela comunidade de
plantas A, cuja declividade do terreno está entre 0 o e 10o e a distância da água entre
500 e 1000 metros é de .80.
As variáveis dependentes que se tem utilizado em estudos que empregam
modelos preditivos vão desde categorias arqueológicas até índices quantitativos. O
evento arqueológico (variável dependente) mais comum empregado nos estudos é a
presença ou ausência de sítios (Brandt et al. 1992, Kohler & Parker 1986, Kvamme
1990, Warren 1990). Há duas razões principais pelo qual esta variável é utilizada.
Primeiro, são poucos os estudos onde temos informação suficiente para se fazer uma
classificação significativa de sítios. Segundo, mesmo que possamos classificar os
sítios, o tamanho amostral é muito pequeno para muito dos sítios para serem
utilizados como amostras nas quais o desenvolvimento do modelo basear-se-á. Por
outro lado, juntando todos os sítios em uma simples classe „presença de sítio‟ tem-se
uma amostra significativa. Isto cria outros problemas, como o fato de juntar tipos
45
diferentes de sítio em uma mesma classe o que acaba introduzindo heterogeneidade
em qualquer modelo que procura resolver problemas. Entretanto, há estudos que
argumentam que as características de localidade talvez seja comum à todas as classes
de sítios de uma região (Kvamme 1990).
Modelos arqueológicos preditivos universalmente se baseam em
características não-arqueológicas de localidades. Quatro grandes categorias são
normalmente empregadas: meio-ambiente, sócio-cultural, asserção e dados
radiométricos (Kohler & Parker 1986, Kvamme 1990, Warren 1990).
A suposição que o meio-ambiente natural tem uma grande influência na
seleção da localidade do assentamento e áreas de atividade de populações préhistóricas é suportada por dados empíricos etnográficos, arqueológicos e estudos
teóricos (Gumerman 1971, Jochim 1976, Thomas and Bettinger 1976, Western and
Dunne 1979). Há um grande número de características ambientais utilizadas em
análise arqueológica e desenvolvimento de modelos: declividade, produtividade do
solo, permiabilidade do solo, elevação, topografia, visibilidade, rede de drenagem,
profundidade de lençois freáticos, e comunidades de planta. Um problema que
encontramos com a utilização destas variáveis é o quanto elas são representativas de
tempos passados, principalmente aquelas que são mais sensíveis as mudanças
climáticas. Esta é uma questão que geralmente não é abordada nos estudos de modelo
preditivos, mas que deveria ser.
Uma grande variedade de algorítimos tem sido utilizada na construção de
modelos preditivos em arqueologia. Estes algorítimos são originários de áreas como a
matemática, estatística, teoria da informação e processamento de imagens de
sensoriamento remoto.
Uma vez desenvolvido um modelo preditivo é necessário testá-lo. A
verificação de modelos compreende na comparação das previsões que o modelo faz
com dados empíricos, eventos arqueológicos em localidades onde ambos (previsão e
dado empírico) são conhecidos. Esta comparação tem que ser independente dos dados
utilizados na geração do modelo.
SISTEMA INFORMATIVO GEOGRÁFICO E MODELOS PREDITIVOS
Umas das perspectivas que tem grande potencial na utilização de modelos
preditivos regionais e somente nos últimos anos tem se desenvolvido é a utilização de
sistema informativo geográfico (SIG ou GIS/geographic information system). O
desenvolvimento de modelos preditivos regionais requer uma quantidade de
informação muito grande e o processamento dos dados é intenso. Estes modelos
necessitam de dados ambientais que normalmente são obtidos através de mapas e que
representam um número grande de variáveis para (1) amostras locacionais que
representem cada classe de evento arqueológico para fins de testar o modelo e (2) para
cada localidade na região onde o modelo será aplicado segundo uma perspectiva
preditiva. Para os modelos que pretendem generalizar a partir de padrões empíricos
observados em amostras prévias, o que atualmente é a estratégia mais comum, os
requerimentos já mencionados são necessários (3) para as amostras das localidades
para cada classe de evento arqueológico para o desenvolvimento do modelo.
A utilização do sistema informativo geográfico supera quase que todas
dificuldades e limitações que surgem no desenvolvimento, teste e aplicação de
modelos preditivos regionais (Kvamme 1986). O sistema informativo geográfico é um
46
modo computacional de manipular, analisar, guardar,apreender, recuperar, e exibir
varias formas de dados que possam ser referidos a localidades geográficas específicas
(Kvamme 1990). A maioria dos SIGs adequados para análise regional arqueológica e
aplicações de modelos são sistemas baseados em „células‟, onde a região de estudo é
quadriculada por „células‟ que representam parcelas territoriais, e os vários tipos de
dados são armazenados para cada uma delas. Cada tipo de informação é armazenado
em um banco de dados que representa uma variável que é espacialmente distribuida
na região. A perspectiva de se utilizar „células‟ corresponde exatamente com a
unidade de análise elementar de modelos regionais arqueológicos, a parcela territorial;
consequentemente, as estruturas dos SIGs são logicamente e organizacionalmente
consistentes como as necessidades impostas pelos modelo preditivos
Qualquer tipo de informação que seja geograficamente distribuida pode ser
codificada dentro do SIG, dados originados de fontes como topografia, solos,
vegetação, localização de sítios arqueológicos, rede hidrográfica, e outros tipos de
mapas, assim como de foto aérea e imagem de sensoriamento remoto. Cada fonte de
informação é armazenada separadamente em camadas temáticas dentro do SIG.
Uma das características importantes do SIG é o seu potencial de gerar dados
secundários a partir de outras fontes. Por exemplo, partindo de um mapa topográfico
(com dados sobre elevação) podemos gerar e armazenar novas informações como:
declividade, visibilidade, relêvo local, variabilidade local do terreno, e identificação
terraços, canyons, platôs, e bacias hidrogáficas.
Uma vez montado, codificado e armazenado „célula‟ por „célula‟ os dados
ambientais de uma região, fica muito mais fácil, simplificado e eficiente o
desenvolvimento, teste e aplicação de modelos regionais preditivos.
A utilização de SIG para desenvolver modelos preditivos regionais é um
instrumento heurístico que pode melhorar nosso conhecimento sobre a distribuição do
assentamento pré-histórico, padrões de uso da terra, e interação de populações préhistóricas com o meio-ambiente. Modelos regionais eficientes podem caracterizar a
distribuição pré-históricas e padrões decorrentes de um modo mais explicativo.
Modelos regionais com potenciais preditivos podem se tornar instrumentos eficientes
para o gerenciamento e proteção dos recursos arqueológicos. O desenvolvimento de
modelos preditivos, juntamente com SIG, pode contribuir com o planejamento de
empreendimentos de impacto ambiental de uma forma mais eficiente, de melhor
qualidade e com custos mais baixos.
DISCUSSÃO
Apesar dos avanços teóricos, metodológicos e técnicos mencionados, a grande
maioria dos projetos arqueológicos no Brasil em áreas a serem afetadas por
empreendimentos de impacto ambiental é puramente empírica, não se utiliza das
técnicas disponíveis de uma forma consciente e eficiente, e não segue a perspectiva de
modelos. Normalmente os projetos realizam prospecções sistemáticas para se
descobrir e delimitar sítios arqueológicos. As áreas com distribuição densa de material
arqueológico (artefatos, estruturas, etc.) são definidas como sítios. Estes são
associados às áreas onde atividades foram realizadas por populações pré-históricas.
As localidades fora do sítio são definidas como não-sítios, e em um contexto de
impacto ambiental, os sítios serão estudados e as áreas classificadas de não-sítios não.
47
Segundo esta lógica fica difícil decidir o que ocorreu em um sítio e qual a sua
importância. O local de ocorrência do material arqueológico fica sendo a unidade de
análise. Nesta perspectiva fica difícil se fazer qualquer avaliação, uma vez que não há
um encadeamento lógico do que é realizado e porque. Fica mais difícil ainda se fazer
qualquer planejamento de atividades de mitigação. O objetivo destas prospecções são
normalmente obscuras, são poucas as pesquisas que têm objetivos claros, e os
aspectos quantitativos dos projetos são em sua maior inadequados para qualquer
estudo sério de impacto ambiental onde decisões quanto a preservação ou não dos
recursos arqueológico têm que ser tomadas.
É importante ressaltar que a utilização de modelos preditivos e técnicas de
estatística no estudo da avaliação e mitigação dos recursos arqueológicos não faz mais
que ajudar na geração de conhecimento arqueológico e prover linhas gerais para o
gerenciamento dos recursos arqueológicos. A utilização destes modelos para tomar
decisões é de competência dos responsáveis pelo gerenciamento dos
empreendimentos de impacto ambiental.
Espero que após esta breve discussão tenha ficado óbvio que para a utilização
de modelos preditivos em arqueologia como instrumento eficaz de geração de
informações a serem utilizadas no licenciamento de atividades de impacto ambiental,
os estudos dos recursos arqueológicos têm que ser realizados já nas primeiras etapas
de planejamento das atividades modificadoras do meio ambiente. Mesmo em áreas
onde há uma grande quantidade de dados secundários, o desenvolvimento, teste e
aplicação de modelos é um processo que requer tempo e portanto é preciso ser
incorporado no empreendimento em tempo hábil para poder gerar as informações
necessárias na elaboração do relatório de impacto ambiental.
As informações geradas pelo diagnóstico dos recursos arqueológicos são
importantes para (a) contemplar todas as alternativas de localização do
empreendimento confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto, (b)
identificar e avaliar sistematicamente os impactos nos recursos arqueológicos gerados
nas fases de implantação e operação da ativadade, e (c) definir os limites geográficos
a serem direta ou indiretamente afetados pelos impactos negativos do projeto. Estas
diretrizes são requerimentos da resolução CONAMA N. 001 (Art. 5), que no caso da
arqueologia raramente são incluídos na decisão do licenciamento de ativadades.
Somente com a incorporação dos estudos dos recursos arqueológicos nas
primeiras etapas do empreendimento é que teremos condições reais de (a) caracterizar
a situação do patrimônio arqueológico atual na área antes da implantação do projeto,
(b) avaliar os impactos nos recursos arqueológicos do projeto e avaliar alternativas
através de indentificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos
prováveis impactos relevantes, (c) propor medidas mitigadoras eficientes dos
impactos negativos, e (d) elaborar um programa de acompanhamento e
monitoramento dos impactos como prevê o artigo 6 da resolução CONAMA N. 001.
Uma última consideração quanto ao uso de modelos preditivos é a respeito de
sua eficiência em estruturar os estudos de avaliação dos impactos culturais e
detalhamento dos programas propostos para mitigação dos impactos negativos.
Normalmente os estudos de impacto e atividades de mitigação não são realizados pelo
mesmo grupo. A utilização de modelos facilita a implantação de programas de
mitigação, uma vez que dentro de uma perspectiva de modelos o processo é visto
como um todo, e o planejamento também. Este é um ponto muito importante, pois
apesar de parecer óbvio, muitas vezes os trabalhos de estudos de impacto ambiental
48
são realizados na fase de implantação, mesmo em projetos onde estes trabalhos já
foram feitos.
Apesar de estarmos muito defasados na utilização de modelos, espero que esta
breve introdução sobre modelos preditivos sejá um começo para difundir e discutir a
utilidade e potencial desta perspectiva em estudos de impacto ambiental nos recursos
arqueológicos e gerenciamento do patrimônio cultural. Uma das vantagens em se
utilizar esta perspectiva é que o desenvolvimento, teste e aplicação de modelos
implica em um pensamento claro e lógico e consequentemente dá subsídios para
avaliação dos estudos de impacto ambiental e do planejamento de atividades
mitigadoras como preve a resolução CONAMA N.001
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50
DEBATE
Coordenadora: Dra. Irmhild Wüst - UFGO
Relatora: Maria do Carmo Mattos Monteiro dos Santos - Scientia
Irmhild Wüst - Chamamos em primeiro lugar a professora Lylian Coltrinari, da
Universidade de São Paulo, Departamento de Geografia.
Lylian Coltrinari - Bom dia, eu sou Lylian Coltrinari, do Departamento de Geografia
da USP. Sou geomorfóloga e tive oportunidade de trabalhar, no começo dos anos
oitenta, com meus colegas arqueólogos da Universidade de São Paulo. Tenho mantido
com eles um relacionamento razoavelmente próximo e a isso devo, acredito, o convite
para participar deste fórum, que muito agradeço.
Gostaria não tanto debater, mas sim apresentar algumas reflexões a partir
daquilo que foi exposto pelos participantes da mesa. Em termos gerais acredito que
foi mencionado praticamente tudo a respeito do trabalho de pesquisa; praticamente
todos os trabalhos de pesquisa, na área de arqueologia, têm muito em comum com o
que se faz na geografia.
O primeiro fato que me chamou a atenção foi a ausência da palavra
interdisciplinar; me parece paradoxal, considerando que este Fórum se propõe a
discutir problemas do meio ambiente e o patrimônio cultural. Em segundo lugar, a
ausência de qualquer menção à Geografia, e a impressão de que não existe nenhum
tipo de conhecimento geográfico sobre as áreas que são prospectadas.
O que estou falando agora já foi dito e discutido muitas vezes e, mais uma vez,
sinto falta de referências ao conhecimento geográfico, com o qual tenho maior
familiaridade. Digo isso por que tenho a impressão de que, quando os meus colegas se
referem -por exemplo- aos transects, a amostragem e as regiões, é como se essa
terminologia, tipo de abordagem ou técnica fossem desconhecidos em outras áreas do
conhecimento, ou não fossem por elas considerados ou utilizados. Em outras palavras,
é como se não existisse o conhecimento especializado específico, que é banal, que é
rotineiro na geografia; por isso me parece que, na pesquisa arqueológica, às vezes
certas questões ou fatos criam dificuldades até para serem descritos. Isso, porque se
desconhece que, em outras áreas, se esses aspectos não estão resolvidos, pelo menos
se conhece a maneira de abordá- los.
É por isso que continuo não entendendo porque há tanta dificuldade e tanta
preocupação pelo fato de ter que definir certas áreas de trabalho ou certos aspectos da
pesquisa, já que existe, para o especialista, a possibilidade de obter estas informações
no próprio campo, sem ter de recorrer a meios indiretos. Cabe aqui a segunda questão
que gostaria de comentar, que é a da escala em que se trabalha. A arqueologia trabalha
em escala 1:1, a geomorfologia de detalhe trabalha em escala 1:1; para isso, é preciso
utilizar as técnicas adequadas a este tipo de análise. Eu sempre me surpreendo, por
exemplo, quando alguém se propõe a localizar um sítio numa foto aérea em escala
1:60.000, porque sei que não é qualquer sítio que pode ser identificado nessa escala,
como sei que, conforme o tamanho da área ocupada, uma carta topográfica em
1:50.000 não é útil; pelo menos deve-se utilizar uma carta 1:10.000, ou ainda maior.
Outro tema é a declividade; não pode falar-se em declividade genericamente,
para toda uma área. A declividade pode ser considerada de diferentes formas; uma
delas, por exemplo, a declividade de um trecho específico. Quando realizo um
51
levantamento detalhado, registro um trecho com 10 graus de declividade, outro com
30 graus, e assim por diante, uma seqüência de valores ao longo de um perfil. Qual é
problema do ponto de vista geográfico? Não é só o valor da inclinação de cada
intervalo, importa também especificar, por exemplo, qual é a área caracterizada por
uma certa declividade, onde se localiza; de outro ponto de vista, qual é a relação que,
na realidade, existe entre as áreas de menor e de maior declividade. Se, por exemplo,
estou trabalhando numa várzea, no sopé de uma vertente, é necessário conhecer a
declividade da várzea e a da vertente, já que dessa vertente vão descer água e
materiais em direção à várzea. De acordo com a diferença de declividade entre
ambas, será diferente a forma -velocidade, quantidade- de chegada do material e da
água. O que vai acontecer na beira d‟água, ou no sopé da vertente, não depende só das
características do local estudado, depende de tudo que acontece a montante dessa
área, vertente acima. O mesmo raciocínio deve ser empregado quando se trabalha em
sítios ao longo de um rio, como é o caso das hidrelétricas. Porque escolho aquele
ponto em particular para a pesquisa? Qual é a morfologia, qual é a declividade no
interflúvio acima, no terraço acima? Porque o material que está lá -estou falando do
material inconsolidado, seja solo propriamente dito, material intemperizado, ou
sedimentos, não são necessariamente produto do que acontece ou aconteceu só
naquele local. Se estou trabalhando ao longo de um curso d'água, não tenho só o
material que vem de esquerda para direita ou de direita para esquerda da área que
estou pesquisando; devo lembrar do material que vem de montante para jusante, desde
a cabeceira até o ponto em que me encontro.
Trabalhamos em um país tropical, então o modelo que pretendo utilizar, é
adequado ao ambiente em que trabalho? É como o que acontece por exemplo
quando..., aí vou entrar numa seara que não conheço muito bem, mas gostaria de
lembrar um caso relacionado com a interpretação da posição dos líticos dentro dos
perfis. A geomorfologia da zona tropical conta com trabalhos bastante detalhados
sobre os processos de movimentação natural dos materiais grosseiros -do ponto de
vista sedimentológico- dentro dos perfis. Tive, no ano passado, o privilégio de
encontrar entre meus alunos um arqueólogo preocupado com esta questão, que ficou
muito surpreso ao saber que há muitas publicações sobre o assunto e também
medidas bastante precisas sobre a migração vertical desses materiais dentro de uma
matriz fina. Há inclusive índices, que não são definitivos -nem poderiam sé-lo, que
dão idéia do tipo e velocidade desses movimentos.
Uma outra questão: no meio tropical úmido chove, muito, e a posição do
material em superfície é difícil de explicar. Duvido muito da possibilidade de se
afirmar com certeza que o material arqueológico esteve permanentemente em uma
determinada posição se, por exemplo, próximo do sítio há uma vertente onde pode
ocorrer escoamento superficial. Não sei se é possível afirmar que o material do sítio,
que hoje está numa determinada posição, sempre esteve ali, e que o arranjo atual do
material é o arranjo original. Por outro lado, não tenho como saber se esteve sempre
em superfície ou, se acima dele, houve uma camada de material superficial que foi
erodida. Minhas dúvidas são essas; não estou questionando as conclusões a que pode
chegar-se; me refiro ao não aproveitamento dos recursos das outras disciplinas que
trabalham com a mesma realidade, já que tenho a certeza de que conseguiríamos
conhecer muito melhor este ambiente se trabalhássemos juntos. É uma prática que, no
Brasil, dificilmente acontece; geomorfólogo não fala com pedólogo, que não fala com
hidrólogo e climatólogo e, ainda, não sabe dialogar com que trabalha com sistemas
geográficos de informação, já que, às vezes o computador ainda dá medo.
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Um último aspecto que gostaria de levantar, sem intenção de criar problemas
por causa do que eu vou dizer. É difícil aceitar, em relação ao caso do colega que fez
referência ao gasoduto, que o mesmo governo que estipulou as regras para
desenvolver os estudos de impacto ambiental para todos os tipos de ocupação que
podem afetar o ambiente, o mesmo governo que garante -em tese- a possibilidade de
se fazer um trabalho completo de campo e tudo mais, não forneça os meios de os
pesquisadores poderem trabalhar. Esse é um caso específico, e haveria várias questões
a levantar nesse trabalho do gasoduto. Em primeiro lugar são áreas extremamente
complexas, que precisariam de estudos em 1:1, muito finos. Depois, os meios com
que se conta para fazer este tipo de estudos, que só podem ser baseados em trabalho
de campo. Quando se trata de uma área estratégica, a pesquisa direta deveria ser
obrigatória, pelo menos, em áreas previamente escolhidas pelos pesquisadores para
amostragem. Fosse com uma equipe de vigilância junto, mas o campo não pode ser
omitido nunca. E no caso, por tratar-se de uma área extremamente complexa do ponto
de vista da morfologia, das condições dos materiais em que estão sendo realizadas as
obras de implantação do gasoduto, e em especial da mecânica desses solos, avaliações
detalhadas são fundamentais.
Eu pergunto, qual o papel dos órgãos responsáveis? Se a Petróbras não pode
fazer (...), como pode ser solicitada uma pesquisa de extrema precisão para instalação
do gasoduto se não são dadas, aos pesquisadores, as possibilidades de examinar o
local diretamente? Acho que aí, com todo o cuidado possível, há uma questão ética a
ser discutida. Qual é o interesse real em um estudo que seja, verdadeiramente, uma
avaliação precisa do impacto que será criado com uma obra que é necessária a uma
área extensa do Brasil? Obrigada.
Irmhild Wüst - Alguém da mesa quer fazer algum comentário?
Jorge Eremites - Em primeiro lugar. eu achei suas colocações bastante pertinentes.
Tenho a dizer o seguinte, com relação às considerações sobre o gasoduto: na verdade,
o governo não orientou as pesquisas, ele financiou; a orientação, do ponto de vista
metodológico, foi nossa. O grande problema que nós tivemos em campo foi com
relação às condições materiais para se realizar as pesquisas. Nós selecionamos um rol
de equipamentos necessários para o trabalho de campo e ficou acertado que
contaríamos com esse material em campo; ao chegarmos em campo, nem todo o
material estava disponível. Nós conseguimos identificar os sítios arqueológicos em
fotografias aéreas de l:60.000 porque, no Pantanal, ocorrem savanas em grande parte,
possibilitando visualizar, em fotografias aéreas, os capões de mato, as cordilheiras,
que são em muitos casos aterros. O problema maior se deu numa área específica, que
pega uns 30km, que nós não pudemos acessar porque é uma área muito brejosa
(somente a pé ou por embarcações). E, nesta área, só pudemos contar com imagens
de satélite de 1:100.000, onde já é mais difícil visualizar os sítios. Esse foi o
problema com que nos deparamos em campo e que a PETROBRÁS não conseguiu
solucionar. Então, o que nós achamos mais pertinente foi colocar isso na avaliação,
para que a PETROBRÁS assumisse essa responsabilidade, porque não poderíamos
dizer que esta área estava liberada. Por isso, colocamos como uma das exigências que
a PETROBRÁS plotasse todos os capões de mato e cordilheiras que ocorrem nessa
área e a que não tivemos acesso. Em caso de haver algum que o gasoduto passasse
em cima, então eles teriam que repensar o traçado.
53
Esta é realmente uma questão ética muito complicada; em campo,
normalmente a gente se depara com estes problemas. Uma coisa é quando você acerta
o trabalho, outra coisa é quando você vai a campo e se depara com as condições reais.
Outra questão que foi muito importante, é que nós exigimos um veículo que
pudesse ter acesso pelo Pantanal, no caso uma Toyota, e nós tivemos um VW Gol
que, no primeiro momento, no primeiro dia de campo, um Gol zero quilômetro,
quebrou e aí eles tiveram que viabilizar uma Toyota. É claro que nós identificamos
áreas que entendíamos que eram áreas de maior possibilidade de se encontrar sítios;
claro que isto a partir de uma experiência de quatro anos em campo. Mas todas as
áreas foram percorridas a pé (350km), numa média de 12km ao dia, durante 30 dias
seguidos, sem intervalos. Eu acho que o que chama mais atenção neste caso específico
do gasoduto é uma questão de caráter ético mútuo, tanto do pesquisador como da
empresa que financia as pesquisas. No caso de haver problemas, como foi o caso, isto
não pode ficar de fora do relatório final, ele tem de ser colocado.
Irmhild Wüst - Eu acho só que, comentando o seu último ponto, ele vai ser retomado
provavelmente ao longo dos próximos dois dias ainda. Eu só queria ressaltar a
importância desta colocação sua no sentido de que, como eu não trabalho em projetos
de salvamento mas na academia, então eu me preocupo muito porque a gente está
vendo que realmente estes projetos de salvamento no Brasil parece que não estão
sendo levados a sério, quer dizer que vejo isso com bastante preocupação, que na
maioria dos casos se trata simplesmente de cumprir uma lei e os resultados que a
gente está vendo, pelo menos nos relatórios, não geram conhecimento científico.
Agora, por outro lado, também a própria arqueologia brasileira se encontra numa
defasagem teórico-metodológica de quase cinqüenta anos; então, com isso, também as
pessoas que querem fazer uma arqueologia tipo modelo, que o Renato aqui nos
apresentou, se defrontam com uma série de absolutas lacunas de dados disponíveis
sobre como fazer modelo, quais são os dados arqueológicos já disponíveis. Nós não
contamos com áreas sistematicamente prospectadas, por exemplo, no Brasil.
Então eu acho que o objetivo do nosso encontro, realmente, é de discutir em
que pé está a Arqueologia brasileira e até que ponto os dados já disponíveis permitem
realmente fazer arqueologia de salvamento ou fazer diagnósticos de uma forma
eficiente e eficaz; como a gente pode, então, realmente não ficar só no papel, cumprir
uma lei, mas aproveitar os poucos recursos que nós temos e já que a arqueologia de
salvamento em geral tem mais recursos do que a academia, então como estes recursos
podem reverter para a comunidade, para se gerar realmente conhecimento. Mas acho
que isto será a questão para os próximos dias, que ainda nós vamos retomar.
Com isso, eu chamo o Sr Maurício Taan.
Maurício Taan - Sou do Departamento do Meio Ambiente de Furnas Centrais
Elétricas e agradeço a oportunidade de estar aqui. Eu gostaria de fazer duas
observações, objetivamente, sem polêmica.
Em relação às questões levantadas pelo professor Paulo Jobim, Marcos André,
Renato e Jorge, todos com belas apresentações, eu fico me perguntando: assim como a
professora Lylian sentiu falta da palavra interdisciplinariedade e geografia, eu sinto
falta da palavra custo em todas as apresentações. Então, acho que vai chegar o
momento, eu não sei se é agora, não sei se vai ser daqui a dois anos a três anos, que as
pessoas vão ter que começar a falar em custo. Me desculpem se estou profanando.
Há algum tempo eu já trabalhei em pesquisa, fui professor da UFRJ durante muitos
anos, e sei como as pessoas se sentem quando agente põe a palavra custo; que o custo
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é uma coisa que nos joga na frente um espelho, que a gente tem que olhar a eficiência.
Então, acontece o seguinte: a gente confunde eficiência com eficácia, a gente
confunde uma série de conceitos, a gente sai trabalhando, sai fazendo coisas, e o custo
traz muitas realidades para nós, traz muitos questionamentos sobre por que
determinados fenômenos, quando a variável tem de ficar no infinito, você justifica
tudo, você converge no infinito e todo trabalho é bom. Se você pode ter infinito
tempo, infinitos recursos, qualquer trabalho acaba sendo feito.
Então, o custo vai trazer realidades também, junto com estas observações que
a coordenadora fez agora há pouco sobre a defasagem da arqueologia, é que nós
vamos ter de começa a discutir o que eu fiz e a que custo eu fiz e se valeu e se eu usei
bem os recursos que eu tinha, fossem eles um Gol ou uma Toyota, ou fossem o que
fossem. Eu fiz bem aquilo com o que eu tinha, sem discutir ou entrar no mérito se eu
devia ter mais o dobro ou o triplo. Como eu estou dizendo, eu estou objetivando,
estou evitando polemizar as questões, então eu só estava me referindo aos três
primeiros.
Com relação ao professor Renato: Professor Renato, eu tenho o hábito de ver
questões e discussões sobre modelos há muitos e muitos anos. Os modelos preditivos
exercem um fascínio sobre o nosso imaginário muito grande, tudo que pode ser
preditivo é uma coisa que nos fascina, porque pode nos dizer com uma certa
antecedência o que vai acontecer, o que tem seu fascínio próprio. A questão é a
seguinte: modelos a gente passa discutindo, eu me lembro que tinha um modelo numa
área que eu trabalhei de planejamento em que se ficou discutindo três, quatro anos em
seminários internacionais nos Estados Unidos, Inglaterra, etc; eu ia a todos eles,
anotava, debatia, e tudo mais. Enquanto se discutia os modelos, era só conversa pra lá
conversa pra cá; quando chegou um, eu me lembro, foi um paquistanês que vinha dos
Estados Unidos e trabalhava no Serviço de Pesquisa, ele chegou e colocou o trabalho
dele, comparando o modelo dele com a realidade, testou o modelo dele, eu testei para
cinco casos aqui e eu tive esta confiabilidade, meu modelo então pode ter uma
confiabilidade média de tanto, aplicado nestas condições de contorno. Então, a partir
daí, todo mundo foi falar com o paquistanês porque ele tinha o modelo e antes as
pessoas tinham equações, tinham relações, fatores de co-relação, inter-relação, mas
como eu testo um modelo? Eu testo um modelo quando eu apresento que tenho um
modelo preditivo. Não sei se esta é a etapa de maturação de seu estudo, realmente eu
não sei, quer dizer, não é uma crítica, mas é um pano de fundo na discussão. Então
modelos só tomam uma forma, deixam de ser um apelo e passam a ser uma coisa
discutível no real quando se apresentam estudos de caso em que você apresenta a
confiabilidade destes modelos.
Segundo ponto: a qualidade de um resultado nunca pode ser melhor do que a
qualidade dos dados que você coloca dentro do modelo. Então, se você tem uma
modelagem maravilhosa e seus dados são de baixa qualidade, o seu resultado vai ser
de baixa qualidade; o modelo em si não produz conhecimento, ele inter-relaciona
conhecimentos que estão ali. Então, apesar desta questão toda, nós temos que ter
confiabilidade de dados e suficiência de dados; então, a etapa de confiabilidade e
suficiência são duas coisas muito importantes para você pensar em aplicar o modelo,
ou seja: você pode ter um modelo muito bom, se você não tem uma análise de
confiabilidade e de suficiência de dados, seu modelo não pode ser aplicado, é um bom
carro e não tem combustível para ele.
Terceiro, é o seguinte: diante de um quadro de que eu não tenho o
mapeamento arqueológico do país, aí vem o seguinte: a necessidade do modelo. Após
o modelo ser bom, após ele me dar resultados, eu também tenho que discutir se eu
55
preciso de um modelo, eu preciso ser convencido de que há necessidade do modelo;
(...) às vezes o modelo, para chegar a um grau de confiabilidade suficiente, tem que
ter uma massa de dados tão grande, que você tem praticamente uma região em que o
modelo faz muito pouco porque você já tem o mapeamento completo daquilo; então,
na mão de duas ou três pessoas conhecedoras da região você chega a conclusões
qualitativas e quantitativas tão boas quanto o modelo lhe daria; então isto é um outro
ponto.
Uma outra questão é o seguinte, as variáveis tem dois aspectos: um aspecto de
controlabilidade e um aspecto de aceitabilidade. O aspecto de controlabilidade: não
sei se é o caso do seu modelo, eu não tive a oportunidade de ver, mas a
controlabilidade esbarra muito na questão da formulação qualitativa, ou seja, o
modelo tende muito a acertar mais no numérico do que no qualitativo, então ele vai
dizer tantos sítios e tal... mas, de repente, você esbarra porque ele não tem a resposta
qualitativa que eu vou obter. Outra coisa: você falou nos Estados Unidos, eu tive a
oportunidade de viver nos Estados Unidos em dois momentos. Um momento, há
quatro anos atrás, em que tentamos ver esses modelos preditivos e, depois, eu fui fazer
um curso de gerência ambiental na Secretaria de Agricultura dos USA e, aí, eu tive a
oportunidade de ver aquilo quatro anos depois. Existe um problema ligado à
aceitabilidade também, ou seja, qual é a aceitabilidade do modelo preditivo; por
exemplo, em que grau eu convenço uma platéia porque o debate, a polêmica
ambiental é que a verdade não está com ninguém, não é?. Então, acontece o seguinte:
eu tenho que convencer as pessoas que eu fiz certo, eu tenho que demonstrar isto; um
modelo preditivo, ele parece muito cômodo para mim, que normalmente você vai
falar de meia dúzia de equações, modelos, que boa parte não vai conseguir
compreender, a não ser sua pequena comunidade científica. Então, a aceitabilidade
também é uma coisa muito complicada, às vezes é mais importante eu ter Ab‟Saber
falando no Congresso sobre uma região da Amazônia do que eu chegar aqui com um
modelo sobre aquela região; ele fala com uma credibilidade muito grande, então tem o
problema da credibilidade, aceitabilidade pela opinião pública, que é uma coisa com
que, nos USA, eles estão se defrontando também. Eu só queria dizer isto aí para,
porventura, poder enriquecer de alguma forma as opiniões dos conferencistas
Renato Kipnis - Eu vou tentar responder as questões que foram levantadas. Primeiro,
eu quero deixar claro que o modelo não é a solução para tudo. Logo no começo, eu
falei que o desenvolvimento do modelo parte de dados secundários em pesquisa não
só de impacto ambiental mas até em pesquisa acadêmica, que sempre utiliza modelos.
Também é uma coisa que está sempre sendo reformulada, quer dizer: o modelo não é
nada mais que uma ciência experimental; você desenvolveu um experimento para
acessar alguma coisa, você está desenvolvendo um modelo que prediz alguma coisa,
vai ser testado entre os experimentos, rever resultados. Na verdade, modelo, em
termos de pesquisa é um negócio utilizado, todo mundo utiliza. Em Arqueologia, é
pouco utilizado o raciocínio hipotético-dedutivo. Então, esta questão do modelo e dos
dados que são usados para gerar os modelos, eu concordo contigo que, mesmo nos
USA, onde se tem um conhecimento muito maior, interdisciplinar, é uma questão que
está sempre se desenvolvendo, sempre sendo acrescida de novos dados, que refinem o
modelo.
Nos USA, a problemática da utilização de modelos é uma problemática
específica dentro da Arqueologia. É uma questão altamente discutida, utilizar modelos
é um negócio que pouquíssimas pessoas fazem. A outra questão é que há modelos e
modelos... O fato de você desenvolver um modelo não quer dizer que o modelo seja
56
bom. Se você me pergunta nomes de pessoas nos USA, por exemplo, que trabalham
com Arqueologia utilizando bons modelos eu teria, sei lá, três ou quatro nomes logo
de cabeça, são pessoas que estão pensando e resolvendo questões que você colocou e
que a todo tempo estão tentando reformular esta questão de modelos.
Quanto à confiabilidade, eu passei meio por cima, mas é um negócio
importantíssimo. Quando eu falo no fato de estes modelos terem que ser testados,
quero dizer que o modelo tem que prever melhor do que você a priori está partindo,
pois se o modelo prevê a probabilidade de que você partiu, o modelo não está sendo
eficiente, é quase inútil.
Outra questão, relativa aos problemas de custo, que você mencionou. Eu acho
que o modelo pode ser bem útil na fase de custo e benefício porque, sem o trabalho,
sem ser muito oneroso, você poderia reter condições básicas de ver potencialmente
quais as áreas, em termos de patrimônio arqueológico, que vão precisar de máxima
mitigação ou não. Em termos dos dados que são usados para gerar os modelos, o
modelo não vai ser melhor do que os dados, eu concordo, é claro. Agora, por
exemplo, para pegar os dados de morfologia de uma área, se você partir de apenas um
elemento, como a questão que a Lylian colocou, de movimento vertical de peças, você
pode criar modelos bem simples, em termos de quais as áreas que, potencialmente,
vão ter sítios na superfície, sítios enterrados, que é uma questão que ninguém
pesquisa. Agora, se você parte de questões como a de que a área em estudo está tendo
uma sedimentação muito grande, e que é possível haver sítios antigos que estão
enterrados a 20 ou 30m, você pode levantar questões fundamentais, ao relacionar esta
probabilidade com o tipo de impacto. Se os sítios enterrados a 30m têm que ser
resgatados ou não, depende do grau de profundidade do impacto. Acho que você pode
partir de dados bem simples e já colocar várias questões, e refiná-los depois. É claro,
se a gente vai trabalhar na Amazônia, os dados que se tem de meio ambiente, de
morfologia, são em escalas muito amplas, são áreas vastas, e é complicado, porque a
gente trabalha pontualmente. Até o fato de você usar modelos e trabalhar em áreas,
em vez de algo pontual, propicia subsídios melhores para fazer uma avaliação. Não é
perfeito, claro, e para ser perfeito vai demorar muito, principalmente no Brasil, onde a
gente não tem essa formação, não tem tradição, é um negócio pouco utilizado em
termos de gerenciamento. Mas eu acho que eles podem ser utilizados como forma de
reduzir custos, pois prevêm as áreas de maior impacto, evitando que se pague para
mitigar impactos que poderiam ter sido evitados. Só que, para serem eficientes em
termos de custo, os estudos arqueológicos têm de ser começados no início dos
projetos. Se o EIA é feito já na fase de execução, com o projeto já decidido, não se
usou os dados da Arqueologia na computação e na criação de alternativas viáveis.
Vou dar um exemplo simples para terminar: tenho um colega que trabalha muito com
projetos de impacto ambiental nos USA e ele trabalhou algum tempo atrás numa área
militar na região do Arizona, Novo México, que é uma região bem plana. Estava-se
construindo uma estrada retilínea (custo mais baixo em termos de construção) e tinha
um sítio no meio. Eles resolveram fazer uma curva e não fazer mitigação porque saía
mais barato, e para eles a retilineariedade não era importante, era mais barato desviar
do sítio do que mitigar. Agora, isso só é possível fazer quando você faz o estudo
prévio; se está construindo a estrada e encontra um sítio, você não tem como mudar,
aí você mitiga, faz o salvamento e continua a estrada, incorrendo num gasto que
poderia ter sido evitado. Acho que a questão do custo arqueológico, importantíssima,
é uma questão sobre a qual pouco se trabalha e pouco se pensa. Quando se trabalha
com salvamento e estudos de impacto ambiental, essa questão tem de estar colocada:
o arqueólogo tem de partir junto com o EIA, tem de participar das primeiras fases dos
57
estudos; os subsídios arqueológicos têm de ser considerados na computação geral do
projeto, na formulação das alternativas. Muito embora eu concorde com várias das
questões que você levantou, acho que os modelos são úteis na formulação de
alternativas e para o gerenciamento dos custos. Nos USA também foi assim, os
primeiros modelos deixaram muito a desejar e, hoje, estão muito melhores, eles têm
modelos muito mais robustos do que há 10-20 anos atrás, passaram a utilizar sistema
informativos geográficos e conseguiram coisas muito interessantes, testadas com
eficiência e responsabilidade. Por isso, acho que é uma idéia que a gente deva
trabalhar.
Marcos André - Só uma palavrinha rápida, ainda sobre a questão de custo. No
Projeto Corumbá, Patrimônio Histórico, eu trabalhei naturalmente como
pesquisador... nós envolvemos nossos consultores a respeito desta discussão sobre a
eficiência desse tipo de estratégia em projetos de pesquisas porque, na verdade,
quando nós estamos trabalhando com projetos como esses, nós estamos trabalhando
com custo o tempo todo, nós trabalhamos com a nossa disponibilidade financeira, nós
trabalhamos com tempo, nós trabalhamos com energia. Então, é de vital importância
para nós, no âmbito deste projeto, que possamos discutir custos e efetivamente isto
tem se realizado. Eu acho que não tenha dúvida que é fundamental que isso possa ser
trazido para discussão desde os primeiros passos de aproximação entre o pesquisador
e o empreendedor, até as etapas finais do empreendimento, eu não tenho dúvida.
Irmhild Wüst - Gostaria de chamar em seguida o sr. Rossano Bastos.
Rossano Bastos - Bem, meu nome é Rossano Bastos, eu sou arqueólogo da décima
primeira coordenadoria regional do IPHAN, que tem sede no Estado de Santa
Catarina. Eu acho que fica bastante difícil a gente começar a falar depois que duas
pessoas já fizeram intervenções que contemplaram questões bastantes importantes.
Cada vez a gente repensa as questões que vai colocar, tendo em vista a pertinência do
que eles colocaram. Mas eu entendo que tem dois momentos que eu gostaria de
destacar, que permearam a discussão dos palestrantes. Um primeiro momento é a
questão que diz respeito à ciência e nesta questão está implícita a questão colocada
pela profa. Lylian, que é a questão da interdisciplinaridade, que é a questão de novos
paradigmas, que é a questão do desenvolvimento da ciência arqueológica e, como
colocado pela prof. Irmhild, a Arqueologia está com cinqüenta anos de defasagem no
Brasil. Quer dizer, então, que nós temos um grande problema a ser resolvido, na
medida em que o avanço tecnológico, o avanço das hidrelétricas, o avanço das
estradas, o avanço demográfico não cessa: é urgente a gente criar uma solução para
esse problema da defasagem teórico-metodológica e prática da Arqueologia, com
instrumentos como o CONAMA. Essas maneiras de intervir no espaço para procurar
conhecer, identificar, promover e minimizar talvez custo e talvez perdas que jamais
podemos avaliar de que tamanho são.
O segundo momento, eu acho que diz respeito à cidadania, que é a maneira
como estas pesquisas, que a gente já mapeou, com este grande elenco de problemas,
desde a deficiência teórico-metodológica até os problemas éticos que isto tem
envolvido, como este problema vai de encontro à socialização de decisões, à
possibilidade de efetivamente a sociedade poder optar. Nesse sentido, a gente tem de
avançar, tem de poder compatibilizar a ciência arqueológica, que engatinha - prova
disto a gente tem na colocação dos companheiros com modelos preditivos; como
resoluções de problemas para arqueologia, eu acho isso bastante complicado; eu acho
58
que nós não temos dados suficientes nem confiáveis numa arqueologia defasada desse
tipo para poder fazer modelos desse tipo, eu particularmente não gosto, eu acho que
são técnicas que, como disse o colega ali, que, se você não tem dados confiáveis, não
adianta você ter um instrumento altamente capacitado, é como botar dentro de um
computador, de um Windows 95, dados que não são compatíveis, a gente tem de ter
muito cuidado ao ser fascinado, como diz o colega, por esses modelos.
Eu acho que, depois de 86, quando se cria essa necessidade por força de lei,
por força de norma legal, que é a resolução do CONAMA - é interessante colocar o
momento em que isto surgiu, que é logo no momento em que a gente começa a
respirar, fruto de uma Ditadura Militar que se arrastou durante muito tempo - então, o
que foi possível nesse momento, mapear e fazer essa resolução do CONAMA que,
sem dúvida nenhuma, se constituiu num avanço, mas que de alguma maneira entravou
o processo, porque já começou viciado: é o empreendedor que paga os estudos do
lugar que ele vai fazer o empreendimento, é botar cachorro tomando conta de
lingüiça. A pesquisa não consegue ser independente porque o empreendedor, à
medida em que ele vir que a independência do pesquisador vai levar, digamos, a um
custo maior ou até à inviabilidade do empreendimento, ele começa simplesmente a
cercear os recursos, como foi com o companheiro aí que narrou a questão do
gasoduto; quer dizer, existem maneiras muito sutis de se trabalhar no subterrâneo para
que essas coisas não aconteçam; então urge, principalmente, a gente mudar esta
relação porque, se a gente não mudar esta relação, a gente não vai mudar nada: ou que
se faça um fundo independente que patrocine estas pesquisas para que o pesquisador
tenha então autonomia e independência para optar - porque eu não soube até hoje e, se
alguém sabe me diga, qual foi o RIMA que recomendou que não houvesse o
empreendimento e que isto aconteceu, eu não conheço nenhum. Então, eu acho o
seguinte: se a gente não partir por esta questão, a questão que se coloca hoje então é a
questão da ciência, para a gente fazer da maneira como se faz hoje, é preferível que
não se faça, e se a Arqueologia está realmente defasada em cinqüenta anos, como se
está apregoando, então, ou a gente vai-se atualizar ou é melhor que nós não façamos,
o que é mais honesto. Então, a questão de ciência é uma questão de ética; quer dizer,
a gente tem um instrumento hoje que precisa ser repensado, reformulado, que é o
instrumento do CONAMA e a gente tem de avançar. O EIA/RIMA e todos esses
instrumentos que precisam ser repensados precisam ser uma trincheira da cidadania,
eles não podem ser mais um instrumento da estratégia da hegemonia econômica para
finalizar e executar seus projetos, pois é isso que tem sido feito, a despeito das
populações tradicionais, a despeito dos sítios arqueológicos e do patrimônio cultural
em geral, porque aqui nós estamos falando, a grande maioria tem discursado em favor
somente do patrimônio arqueológico. Se a gente entra então na questão do patrimônio
cultural, a questão fica muito mais complexa, porque a pesquisa interdisciplinar exige
paciência, exige acúmulo, exige muita espera, e nós, que estamos ainda engatinhando
em modelos preditivos, em técnicas estatísticas e matemáticas, estamos longe de
chegar a este grau de confiabilidade, de ética e de aceitação de uma Arqueologia que
esteja voltada explicitamente para os interesses de todos e não para interesses
pequenos e comezinhos. A gente tem de enxergar que ou a nossa pesquisa ou estas
intervenções vêm para contemplar uma gama mais totalizante das pessoas que estão
envolvidas nesse processo, ou a gente vai precisar fazer muitos congressos para tentar
legitimar o nosso trabalho, porque é isto que nós fazemos, porque se agente não
conseguir olhar além do nosso umbigo, vai ser muito complicado. A Arqueologia
hoje carece de recursos: aonde os financiadores negociam o preço mínimo e abaixo,
eu tenho visto em Santa Catarina - R$1.000.000,00 para o RIMA da BR 101, para a
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Arqueologia R$10.000,00. O próprio profissional não se valoriza, então, como se
existe o problema do mercado de trabalho, ele se vende barato e faz um trabalho que
não é a contento, quer dizer, depõe contra ele mesmo. Então, estas são as questões que
eu gostaria de trazer para a reflexão, essa questão da ciência, da ética e de como é que
nós vamos repensar isso daqui para a frente. Obrigado.
Irmhild Wüst - Chamo em seguida a professora Solange Caldarelli.
Solange Caldarelli - Primeiro, eu quero retomar esta questão, já que ela está na
ordem do dia, de modelos e de custos. Essa questão de custo, Maurício, eu vou
retomar hoje à tarde, porque nós vamos falar de avaliação de impacto e eu vou tratar
de critérios de significância que, na minha opinião, estão diretamente ligados à
questão do custo. Então eu vou discutir alguma coisa agora, mas o resto vai ficar para
a discussão da tarde; a questão não será esquecida.
Quanto à questão dos modelos, eu vou dizer que eu acho que se deve sim
incrementar a formação de arqueólogos no Brasil trabalhando com modelos, mesmo
que eu especificamente jamais faça isso, porque não tenho nenhuma habilidade
matemática, o que não me impede de reconhecer que é necessário, é um instrumento
útil e, eu concordo com o Renato, é um instrumento de redução de custos. Agora, na
minha opinião, o modelo tinha que estar lá embaixo, não é nem no EIA, mas nos
Estudos de Inventário; na minha opinião, a Arqueologia não está entrando na hora
certa. Nos Estudos de Inventário é que o empreendedor já deveria ter uma noção de
onde o custo em qualquer campo vai ser maior e onde o custo arqueológico tem
probabilidade de ser maior. Se ele optar por uma região onde o custo arqueológico vai
ser alto, ele que já inclua isto no Termo de Referência, porque, se ele entra numa área
desprovida de conhecimento e de alto potencial vai ser alto o custo mesmo, certo?
Agora, dentro do custo alto, há métodos, há estratégias para diminuir esse custo. E eu
concordo plenamente com que disse o Renato: até para um custo ser mais baixo, você
precisa saber muito antes de chegar no EIA, quer dizer, apresentar estudos de
alternativas de empreendimento viáveis, inclusive sabendo que, se o custo da
Arqueologia vai ser alto numa das alternativas, em outros campos vai ser baixo, e
assim por diante; é preciso ter uma idéia de custos individuais, de custos médios e de
custos totais, financeiros, ambientais e culturais, no processo de formulação de
alternativas.
Ainda quanto à questão do custo, nós tivemos de dois arqueólogos opiniões
divergentes. A Doutora Irmhild disse que tem muito dinheiro para a Arqueologia de
contrato, mais do que para Arqueologia acadêmica, e o Rossano disse que a
Arqueologia de contrato não tem dinheiro suficiente para fazer o seus estudos; então
eu queria deixar uma coisa bem clara aqui, de quem está acompanhando estes estudos
do começo ao fim, em vários pontos do país. Os programas de resgate até têm contado
com recursos razoáveis, o problema é que eles contam com bons recursos por prazos
curtos porque, como foi discutido aqui, o levantamento deveria ter começado anos
atrás e, quando o pesquisador é chamado para desenvolver um programa, em que o
objetivo deveria ser mitigar impactos, produzindo conhecimento, na maioria das vezes
ele acaba tendo que, apressadamente, ao mesmo tempo, fazer pesquisa exploratória
para avaliar o potencial arqueológico da área de estudo, realizar levantamentos para
localização de sítios, selecionar os sítios a serem resgatados e promover os resgates
tudo no interior e no prazo do que deveria ser apenas um programa de resgate, para
cuja execução as etapas anteriores já deveriam ter sido cumpridas. Agora, os EIAs
têm contado com parquissímos recursos; o arqueólogo, quando participa de um, tem
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de fazer milagre para avaliar os impactos sobre um patrimônio que ele mal conseguiu
levantar. Acredito que isso explique a divergência de opinião: você, Irmhild, tem visto
alguns programas e não acompanhado EIAs, o Rossano tem visto EIAs. Se, nos
primeiros, os recursos financeiros parecem altos (como se, com a fartura de recursos,
se pudesse compensar a falta de bons levantamentos prévios a embasar os programas),
nos segundos (os EIAs) os recursos são sempre baixíssimos, tendo em vista as
necessidades da pesquisa arqueológica.
Então, o grande problema é este: os programas, muitas vezes, contam com
recursos suficientes, mas os EIAs realmente nunca contam e os inventários passam
por cima da questão arqueológica. Nesse momento, eu falo inclusive para aqueles
arqueólogos que estão em órgãos governamentais, como o Eurico Miller, na
ELETRONORTE, o Marcelo Gatti e a Teresa Cristina, em FURNAS, não para eles se
indisporem com seus empregadores, o que inclusive não é o papel deles, mas para
alertarem. E não adianta ficar repisando e lamentando o passado, quando a
Arqueologia nem era pensada nos estudos de inventário: isso é passado e ponto. Acho
que a questão agora é daqui para a frente, foi para isso que nós fizemos este encontro,
não para ficar chorando o leite derramado. É claro que o passado deve ser mencionado
no encontro, para a gente lembrar de alguns problemas que temos que acertar daqui
para a frente, mas eu gostaria de dizer que, quando idealizei este simpósio, foi com o
propósito de que a gente tirasse posturas a serem tomadas de agora em diante.
Volrando também a uma outra questão, eu concordo que Arqueologia
brasileira está defasada, nós temos uma série de deficiências teórico-metodológicas,
acho que todos nós devemos ser críticos, mas, e aí eu peço desculpas à Irmhild, eu
acho que a arqueologia brasileira também tem avançado. Tem aqui pessoas que eu
convidei, que nem tinham contato comigo, de diversas áreas, de diversas correntes de
pensamento, que aceitaram o convite, vieram para esse simpósio, e não tiveram medo
de expor o que estão fazendo porque eles querem avançar, eles querem trocar
experiências. Isso é um fato e o simpósio prova isso; então, eu acho que nós,
brasileiros, não só temos consciência de nossos problemas, como temos também
buscado avançar em sua solução.
E agora eu queria partir para duas questõezinhas pontuais, de cunho
restritamente arqueológico: Jorge (e essa é uma questão de postura científica diferente
mesmo), naquele trabalho do gasoduto, onde você disse que um único sítio seria
realmente cortado pelo empreendimento, você propôs como programa um trincheira,
do que eu discordo. Se você tem um único sítio, não seria talvez o caso de fazer nesse
sítio uma pesquisa exaustiva, em que você procurasse, objetivasse entender o processo
de formação, de estruturação espacial daquele sítio? Se você tem quarenta sítios
cortados pelo gasoduto, tudo bem trabalhar com trincheiras, mas, se você tem um
único sítio atingido, é uma oportunidade ímpar, na minha opinião, para uma pesquisa
de maior porte, localizada, e eu acho que aí você está deixando ocorrer um grande
impacto se você reduzir a mitigação de um único sítio a uma trincheira. Essa é uma
questão que eu passo para você.
Para o Professor Paulo, eu pergunto mais para esclarecimento a quem ouviu,
porque as pessoas falam muito rápido e nem todo mundo trabalha da mesma maneira.
Você falou que no trabalho de Corumbá vocês tiveram quatro informações orais de
sítios arqueológicos e que encontraram mais sete sítios. Eu pergunto: se vocês não
tivessem informação oral, pela metodologia que vocês adotaram, vocês teriam
encontrado aqueles quatro sítios que foram relatados pela informação oral, quer dizer,
a metodologia de campo teria dado conta desses sítios também?
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Paulo Mello- Com certeza a gente acharia, porque isso também ocorreu em outra
pesquisa que a gente fez no Mato Grosso, de que eu mostrei alguns slides: a
hidrelétrica de Braço Norte. A gente já tinha informação de que havia dois sítios e a
gente fez transets também, já que era uma área pequena, fez transects cobrindo toda a
área e foram achados esses dois sítios e mais um sítio ainda na outra margem do rio,
então esse método com certeza levaria à descoberta desses sítios.
Jorge Eremites - Com relação à sua colocação, realmente são duas possibilidades: o
que nós pensamos, num primeiro momento, foi fazer uma trincheira; como a do
gasoduto é de 1m, nós pensamos em amplia-lá mais 1m de cada lado, o que daria 3m.
Isso pegaria uma parte considerável do sítio e nós, na verdade, avaliamos naquele
momento as questões de tempo e custo para realizar os trabalhos. O ideal seria, claro,
fazer um escavação em todo o aterro, mas, pela experiência nossa, isto demandaria
um tempo muito grande. O que nós pensamos no momento é que se você estudasse
todo o sítio, você inviabilizaria trabalhos futuros e técnicas e métodos mais refinados
e pensamos numa intervenção mínima no sítio. Nós não entendemos que todos
aqueles aterros são réplicas, nós entendemos que eles podem conter informações
diferentes.
Irmhild Wüst - Chamo, em seguida, Walter Neves, da Universidade de São Paulo.
Walter Neves - Eu vou me ater basicamente a questões metodológicas já que, ainda
que eu veja com bastante simpatia a discussão mais filosófica e ética, eu acho que a
mesa foi eminentemente metodológica. Eu tenho uma observação com referência ao
que o Paulo disse, ao que o Marcos disse, uma observação ao que o Jorge disse e uma
pergunta para o Jorge.
Com referência ao Paulo eu não gostei de uma coisa na sua apresentação; você
disse uma frase assim: nós temos que dar oportunidade a que todos os tipos de sítios, a
que todas as manifestações sociais na área sejam amostradas; perfeito, não tem nada
que tenha que retocar, e você disse que isso se resolve aplicando transects. Eu não
concordo, eu acho que o transect é uma das ferramentas que você usa para dar a
possibilidade de que todos os produtos da atividade social sejam amostrados, mas não
é a única, nem do ponto de vista epistemológico, nem do ponto de vista da ciência
pura, nem é muito menos vis-à-vis à questão do custo, porque há compartimentações
paisagísticas que para você estabelecer um transect em vários quilómetros você
certamente vai esgotar todos os recursos que você tem para fazer o projeto inteiro.
Então, muito cuidado: quer dizer, como eu sei que no Brasil as cabeças funcionam por
receita, tenho medo de que todo mundo saia daqui e vá começar a fazer transects,
achando que transect é uma panacéia geral para todas as situações. Então, eu quero
colocar, aqui, o meu testemunho de que transect não é uma panacéia geral, devemos
sempre visar os problemas que serão atacados, visar os custos que são possíveis, que
são financiados, encontrar a melhor estratégia geométrica, o melhor design possível,
para que todos os elementos do comportamento social sejam amostrados.
Com referência ao Marcos, você disse assim: “nós precisamos começar a fazer
com que os empreendedores financiem também a pesquisa fora da área de impacto
imediato, nós temos que sair fora, às vezes, daquela linha absolutamente demarcada
pela área de impacto total.” Concordo plenamente com você, só que eu acho o
seguinte: eu tenho visto alguns arqueólogos justificar da seguinte maneira - além da
área diretamente impactada eu devo trabalhar mais 5km fora ou mais 10km ou mais
1km, que eu acho um pouco o caso do gasoduto. A minha impressão é a seguinte:
62
quando se faz um trabalho de impacto ambiental, o empreendimento vai estar
impactando parte de um comportamento social mais amplo, então o que eu acho é que
nós temos que exigir que qualquer empreendimento impactante financie o necessário
para que a gente conheça os sistemas sociais dentro do qual está aquela parcela que
vai ser impactada. Então, eu sou favorável, acho que temos que batalhar com isso,
mas eu acho que a solicitação do quanto mais tem de ser empiricamente justificada.
Não haverá regra, vai pedir custeio de 5km ou 1km ou 50km a mais, e aí entra a idéia
de que é fundamental que o diagnóstico seja levantamento de problemas e não
levantamento de material. Se nós sairmos da fase do diagnóstico com um bom
levantamento de problemas, nós seremos capazes de argumentar junto ao
empreendedor o quanto mais se precisa trabalhar fora da área diretamente impactada.
Eu sou absolutamente favorável, mas eu acho que tem que ser empiricamente
justificado, é justificado com base nos problemas levantados na fase do diagnóstico.
Jorge acho que você foi vítima de duas coisas que são implacáveis em
qualquer levantamento sistemático, não só o de salvamento: você foi vítima da
visibilidade e da conspicuidade que são duas coisas distintas, já que conspicuidade é
um traço, uma característica inerente ao sítio, e a visibilidade é a somatória da
conspicuidade mais as condições de cobertura ambiental. Quando você diz que, no
fim de sua pesquisa, você chegou à conclusão de que justamente a área de maior
importância dentro deste projeto era a área dos aterros, já que você encontrou lá cerca
de 40 sítios ou mais do tipo alto, eu acho que você foi vítima da conspicuidade, e eu
acho que o levantamento arqueológico tem de ser desenhado de maneira justamente a
se libertar da visibilidade e da conspicuidade, ou seja, se se faz levantamento
arqueológico numa área que não é naturalmente favorável à visibilidade, não tem
jeito, tem-se que fazer essa interferência para criar essa visibilidade, eu acho que o
que o Paulo mostrou é uma destas possibilidades. Então, quando você diz : eu tinha
áreas que eu privilegiei porque elas eram naturalmente mais visíveis, mais possíveis
de ser observadas e outras áreas que eu não pude observar porque não tinha
visibilidade, você cometeu um viés que absolutamente neste momento é impossível de
ser revertido, e daí você chegou à conclusão de que uma certa parcela era mais
importante, mas não, ela era apenas a mais visível. Você só poderia dizer que aquela
parcela era mais importante se você tivesse dado a mesma probabilidade dos eventos
presentes serem amostrados, e você não deu isso, então você não pode dizer que
aquele setor do gasoduto é mais importante que o outro, porque você não deu aos
outros trechos a mesma possibilidade de os sítios arqueológicos serem visíveis de uma
maneira artificial, o que eu acho complicado
No caso do Renato, evidentemente que eu sou fã em gênero, número e grau,
cor e cheiro da aplicação de modelo em ciência, porque modelo é a única maneira que
você tem para sair de hipóteses vagas e operacionalizar sua hipóteses, e eu acho que é
um fantástico mecanismo de planejamento e redução de custo. Agora, eu acho
importante que a Arqueologia adote o modelo não só nas pesquisas de resgate mas
também nas pesquisas acadêmicas. Só que é o seguinte: estaremos fazendo
materialismo explícito, ainda que eu concorde com você que é possível fazer modelos
de caráter sócio-culturais, eu e você e certamente a maior parte das pessoas que estão
aqui sabe que a esmagadora maioria dos modelos se baseia naquilo que a gente chama
de predominância e no ator racional; eu vou me divertir muito com esta tentativa, num
país que tem a Antropologia eminentemente ideacionista, estruturalista e simbólica, e
uma Arqueologia eminentemente materialista, mas essa é uma diversão particular.
Muito obrigado.
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Irmhild Wüst - Alguém da mesa gostaria de responder?
Jorge Eremites - Quanto à colocação, também achei muito interessante. Realmente, o
problema da visibilidade foi uma das questões com que nós mais nos preocupamos na
etapa de elaboração do projeto; nós pensamos em realizar intervenções em algumas
áreas através de tradagens sistemáticas, da mesma forma que a gente usa em modelos
probabilísticos. De fato, para área do Pantanal, as pesquisas foram mais facilitadas
porque nós dispúnhamos de acúmulo muito grande de informações, então nós
tínhamos já em mente um modelo de ocupação indígena do Pantanal, nós tínhamos já
vários sítios levantados para áreas de moradias e vários sítios levantados para áreas
inundáveis e nós, antes de partimos a campo, nós estudávamos previamente aquela
região através de imagens de satélite e, quando era possível, através de fotografias
áreas e cartas topográficas, de tal maneira que, para áreas inundáveis do Pantanal, que
foi área onde nos encontramos a maior concentração de sítios arqueológicos, a
probabilidade de você encontrar um sítio que não seja aterro é muito pequena. Você
tem a probabilidade de encontrar sítios nas margens do que a gente chama lá de
corixos, que são canais do rio nas margens do próprio rio e lagoas.
Bom, a partir deste conhecimento acumulado do levantamento bibliográfico
sobre a etnologia, a etnohistória, a história e a arqueologia dessa região, nós partimos
a campo. Nas partes dos campos realmente a visibilidade é boa e você só encontra
areia mesmo, nós achamos desnecessário, em função de nosso tempo, fazer tradagem.
A parte mais polêmica foi a parte do planalto: para essa área nós dispúnhamos de
poucos dados, embora para algumas áreas nós tivéssemos dados etnográficos, que
chamavam muita atenção, pela possibilidade de ocorrência de grupos Aruakes desde o
século XVII. Para essas áreas, nós realmente pensamos em realizar tradagens e
pensamos especialmente naquelas áreas onde você pudesse ter alguma informação
básica, seja oral, ou seja através de manchas, ou evidências em campo parecidas. Mas
nós observamos, em campo, que o solo do planalto é um solo extremamente raso,
geralmente como cascalho; então, tradagem nesta região era muito difícil e nós
conseguimos observar que em alguams áreas tinha afloramento rochosos com arenitos
petrificados, você poderia encontrar sítios líticos, oficinas líticas. Só que a área tinha
mais de 100Km; isso pediria meses de trabalho de campo.
Paulo Mello - Eu só queria dizer que eu não falei que o transect é a única técnica, eu
falei que é a mais usada, em relação aos custos não é tão alto assim, tanto que a gente
usou em Corumbá, no Braço Norte e os terrenos que existem lá são piores do que
qualquer outro que a gente pode enfrentar para fazer esse tipo de trabalho.
Irmhild Wüst - Eu só gostaria de fazer um rapidíssimo comentário quanto ao terceiro
ponto do que o Walter falou, aquela questão de estudar sistemas sócio-culturais.
Então, nós já nos conscientizamos de que não adianta criarmos simplesmente
tradições, fases, mas que hoje a Arqueologia está preocupada com o ser humano, está
preocupada com processos, com sistemas. Nesse sentido, tem que se fazer um esforço,
de qualquer forma, de conseguir captar sistemas sazonais e a minha experiência, a
pouca experiência com o projeto Corumbá foi extremamente interessante, porque os
sítios que o Paulo descobriu com transects eu jamais teria descoberto, porque eu
conhecia o outro lado da moeda, que eram as grandes aldeias que estavam muito
longe daquelas áreas onde realmente houve aquele impacto ambiental da inundação,
mas o Paulo, por sua vez, não conseguia entender aqueles sítios que estavam à beira
rio, que eram acampamentos pequenos. Então, quer dizer que realmente para poder
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entender esses pequenos sítios, miseráveis, do Corumbá -me desculpe o Paulo- não dá
para entender sem saber que lá no planalto, às vezes, a 10 Km, 15 Km, realmente tem
as grandes aldeias. Então, nesse sentido, temos que ver uma forma de que o
empreendimento também não se assuste e financie coisas que estão mais longe.
Talvez possamos retomar isto numa outra oportunidade.
Paulo Mello - Queria dizer que Furnas financiou uma parte dessa pesquisa fora da
área, então foi possível tentar compreender esse sistema.
Irmhild Wüst - Chamo o sr. Glauberto Bezerra.
Glauberto Bezerra - Professora Irmhild, em nome de quem saúdo os demais
membros da mesa, colegas de auditório. Meu nome é Glauberto Bezerra, sou membro
do Ministério Público do Estado da Paraíba, Promotor de Justiça e Curador do
Consumidor e do Meio Ambiente. Mas do que debater, apenas dar o testemunho do
trabalho que nós exercemos, realizamos transdicisplinarmente: não se pode falar em
matéria ambiental sem se falar em multidisciplinariedade, transdiciplinariedade,
pluridiciplinariedade. Aqui estou, evidentemente não tenho conhecimento do contexto
em termos arqueológicos, mas tenho os instrumentos adequados para que se exercitem
os direitos da percepção, da busca de sítios arqueológicos no patrimônio cultural da
humanidade, consignado no texto constitucional como Direitos Humanos.
O Brasil, assim considero, tem apenas oito anos, a partir da Constituição
Cidadã. Naquela carta, naquele instrumento legal estão consignados os direitos que
jamais outras nações fixaram; avançada, avançada sim, utópica talvez, mas se não
sonharmos ou tentarmos implementar o que ali está escrito o que será então das
gerações futuras de nossos filhos, nossos netos? É direito do consumidor, direito ao
ambiente, direito a ambiente saudável, está dentro do contexto dos Direitos Humanos.
A tendência natural é se pensar direitos humanos como defesa de bandidos, não é isso,
é muito mais do que isso, o tema é bem mais amplo. Direitos Humanos é exatamente
isso: saúde, qualidade de vida e qualidade ambiental. E o Ministério Público foi
inserido também na Constituição, no seu artigo 29, exatamente para instrumentalizar,
para da voz à sociedade, ao povo que não tinha voz anteriormente, através das ações
civis públicas, de instrumentos outros administrativos.
Eu tenho ouvido falar pelos palestrantes e por membros debatedores e do
auditório o problema dos custos, problema da dificuldade e da implementação da
busca científica de sítios arqueológicos, mas devemos lembrar, primeiro, o texto
constitucional que recepcionou todas as normas ambientais anteriores, e segundo:
existe o EIA - Estudo de Impacto Ambiental e a norma básica que é exatamente a
resolução n° 1 do CONAMA, que determina que sejam visualizados, verificados,
estudados esses sítios arqueológicos na tentativa de passá-los para gerações futuras.
Esse mesmo instrumento determina, criou duas figuras: a internalidade e a
externalidade da empresa, no custo da empresa. Na internalidade, por exemplo, a
empresa que venha a causar prejuízo ao cidadão por poluição, por fumaça, neste caso
há não nenhum custo para a empresa neste caso, mas em termos de externalidade,
todo custo operacional na percepção de um ambiente melhor, na preservação da
cultura, que também está dentro dos Direitos Humanos - artigo 216 da Constituição.
Eu achei de bom alvitre, excepcional, deve ser bastante divulgado esse compêndio
que contém todas as normas específicas. Infelizmente, tudo isso que eu falei vem
desaguar em uma única questão: Educação, Conhecimento. Infelizmente, exatamente
em função dessa transdisciplinariedade, nós temos que absorver conhecimentos
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vários, ainda mais que, com a globalização das informações, nós não atentamos para
determinados documentos que são básicos na nossa vida, não só em termos científicos
mas no modo como vivemos e no dia-a-dia. Então, eu pergunto, quantos leram a
Constituição aqui, eu acho que poucos, infelizmente até magistrados e promotores
também; Código do Consumidor, muito poucos; o EIA/RIMA, aliás, a Resolução do
CONAMA ou as resoluções do CONAMA, infelizmente, poucos de nós, inclusive nós
promotores, operadores científicos como todos, não lemos, então nós não sabemos o
direito e me permito usar aqui uma paródia do Vicentinho: nós não temos obrigação
de conhecer aquilo que não nos foi informado, isso com relação a toda a população.
Se nós não conhecemos o nosso direito, nós não podemos exercê-lo, porque nós não
conhecemos essa realidade, ela inexiste para nós, correto? Então o que nós temos que
fazer é o que o Ministério Público do Estado da Paraíba está tentando fazer, ligando a
área ambiental como um todo, com toda a sua amplitude científica (...). Se vocês
examinarem o artigo 1° da Resolução n° 1 do CONAMA, verão que do mesmo jeito o
Código do Consumidor tem um capítulo que preconiza a saúde, a segurança do
consumidor, tudo isso com respaldo, com arrimo na Constituição, então nós estamos
tentando a interface entre os dois assuntos e temos conseguido, com apoio de
empresários e é interessante o apoio do fornecedor para o fornecimento de uma visão
de criação de produtos ambientalmente saudáveis. Quando da fixação de projetos, em
relação à preservação da cultura, não se diga que há o problema da premência do
tempo na realização de determinado empreendimento. Isso, muitas vezes, ocorre em
todas as partes do território nacional. De repente ergue-se um prédio dentro de um
mangue, como houve a tentativa de ocorrência em João Pessoa, por exemplo, e já
depois de iniciada a construção nós conseguimos impedir e derrubá-la porque, contra
a população, contra a sociedade, não há direito adquirido; então nós temos a lei, temos
o instrumento, o Ministério Público e as Instituições não Governamentais para isso.
Então todos nós temos que nos apoiar mutuamente. Para concluir (eu não tenho
procuração para defender o Fórum), mas dentro do contexto, do público alvo, estão
arqueólogos, historiadores, inclusive magistrados, promotores, advogados; então, me
parece que, sem que a palavra interdisciplinariedade fosse citada, ela foi fixada; o
objetivo me parece está sendo alcançado. Eu, por minha parte, estou felicíssimo por
levar o que vou aprender aqui para minha Paraíba.
Irmhild Wüst - Agradecemos.
Solange Caldarelli - Primeiro, uma coisinha que eu esqueci de responder para o
Rossano, a respeito de empreendimentos parados em decorrência de EIAs: em São
Paulo, temos o caso da Rodovia do Sol. Reconheço que são poucos os casos, mas eles
existem. Às vezes, não se está sabendo usar direito o instrumento, mas se o
instrumento existe, nós temos que aprender a utilizá-lo. Se os impactos negativos
forem considerados socialmente impeditivos, será possível derrubar um projeto sim: a
função do instrumento é essa também. Ainda em São Paulo o município de Piraju
está segurando a aprovação da UHE Piraju, também por causa do patrimônio
arqueológico local, querendo ter certeza de que os impactos negativos serão
efetivamente mitigados. Esse é um caso, pode ser que em Santa Catarina não tenha
muitos casos desses, mas certamente outros devem existir e deverão ser cada vez mais
frequentes.
Agora, eu só queria levantar um gancho para essa questão de a problemática
científica ultrapassar os limites da área afetada pelo empreendimento, devendo-se
solicitar ao empreendedor que financie pesquisas em distâncias maiores, para
66
contextualização dos eventos arqueológicos ali situados. Concordo em termos, pois,
mesmo que alguns arqueólogos não concordem comigo, não podemos achar que
Eletronorte, Petrobrás, Furnas são CNPq, para ficar financiando pesquisa científica.
Temos que determinar até que ponto vai a responsabilidade desses empreendedores,
pois, se um sítio situado nos limites de um empreendimento de 2km2, estiver
relacionado com sítios situados 15 Km adiante, fica complicada a situação, e nada
impede que o pesquisador, se interessado, solicite verbas de outras fontes para
complementar seus estudos, na área que não está ameaçada pelo projeto. Eu gostaria
de lembrar o que o representante da UNESCO comentou ontem: existe o o GEF,
precisamos apreender a usar esse fundos alternativos para problemas que achamos que
ficaram pendentes em questões ambientais. Se o CNPq está com poucos recursos esse
ano, não se pode descontar isso em cima dos empreendedores; fazer uma
redistribuição, por conta própria, dos recursos existentes no país; cada um tem sua
função, é preciso haver compreensão de parte a parte.
Irmhild Wüst - Passamos, agora, às perguntas do auditório. Chamo primeiro, Ana
Maria de Aragão, que faz uma pergunta ao professor Marcos a respeito do sistemas
sócio-culturais e como eles foram abordados durante o Projeto de Corumbá
Ana Maria Aragão - Eu gostaria só de saber se realmente existe uma conclusão no
EIA/RIMA a respeito de toda essa estrutura que você apresentou no seu trabalho.
Marcos André - Existe, lógico, mas não no EIA/RIMA, pois nosso trabalho foi
posterior ao EIA. Nós temos um relatório final, que foi concluído no início desse ano,
mas eu gostaria de remeter essa discussão à próxima mesa, sobre Recursos Culturais
Intangíveis, meios de diagnosticá-los, de avaliar, mitigar e monitorar seus impactos.
Uma historiadora que fez parte de nosso projeto, que compôs a equipe, a professora
Heloisa Capel de Ataídes, vai estar apresentando este tema do resgate da cultura
intangível refletida na cultura material e na sua exposição ela vai apresentar a nossa
linha de abordagem e também alguns de nossos principais resultados.
Ana Maria Aragão - Eu gostaria de te perguntar só mais uma coisa: o
empreendimento já teve algum tipo de conclusão, tendo em vista essa situação, ou
não?
Marcos André - Já.
Irmhild Wüst - Temos uma série de não perguntas na aqui na mesa. Como a idéia,
em princípio, era de fazer perguntas dirigidas, como a Ana Maria fez ao Prof Marcos
e não fazer esse debate virar exposição, eu pediria ao pessoal para formular perguntas
específicas que possam ser respondidas pelos expositores.
Eduardo Lopes de Freitas - Bom dia, meu nome é Eduardo, sou geólogo da
PETROBRÁS e trabalho no Setor de Meio Ambiente. Estou insistindo um pouco
para falar porque a questão do gasoduto Brasil/Bolívia foi muito comentada aqui e há
questões sobre este gasoduto Brasil/Bolívia sobre as quais eu poderia trazer algum
esclarecimento. O objetivo da minha presença aqui é justamente esclarecer e colocar
a visão da PETROBRÁS, daqui para a frente, em relação ao gasoduto Brasil/Bolívia.
Primeiro, eu queria falar para o professor Jorge que o trabalho dele está muito
bom; a gente tem conhecimento do trabalho que ele realizou no Mato Grosso do Sul e
67
esse trabalho está sendo o fundamento de outros trabalhos que iremos realizar ao
longo do gasoduto. O EIA/RIMA do gasoduto Brasil/Bolívia foi feito em 1983,
quando a Petrobrás ainda tinha a idéia de fazer o empreendimento ligando Santa Cruz
de La Sierra até Porto Alegre. Hoje em dia, esse empreendimento é uma realidade,
ele está sendo construído efetivamente, existem licitações na rua. Várias pendências
existem em relação à Licença Prévia para instalação do gasoduto; umas das
pendências em relação a Mato Grosso do Sul era a questão da Arqueologia, que foi
resolvida em parte. Porque em parte?
Porque foi feita uma prospecção intensiva no Mato Grosso do Sul e a
PETROBRÁS ainda não fez o seu dever de casa, ou seja, de pegar essa prospecção
intensiva e analisá-la e proceder segundo uma avaliação econômica, principalmente se
vale a pena salvar determinados sítios ou se vale a pena desviar de determinados
sítios.
Muito bem, então nós tivemos a oportunidade agora, no final de 96, de
consolidar todos os trabalhos ambientais do gasoduto e nessa consolidação dos
trabalhos ambientais, objetivando financiamento do Banco Mundial, a gente fez
padronização de todo o trabalho, a gente teve a oportunidade de fazer um programa
arqueológico olhando o gasoduto como uma faixa integral e não só olhando o Mato
Grosso do Sul. Então, o gasoduto vai ser olhado de uma forma integral em todo o
Brasil. Existe uma falta de integralidade nisso, porque no Mato Grosso do Sul existe
uma parte pronta, que é uma prospecção arqueológica e ela tem de ser desmembrada
em outras fases, entendeu? Agora, no resto do Brasil, os EIAs de uma maneira geral
eles foram muito superficiais na abordagem da questão arqueológica, a gente tem
certeza dessa afirmação. Em função disso, nós estamos articulando com o IPHAN
uma reunião, que provavelmente vai ocorrer na primeira ou na segunda semana no
Rio de Janeiro ou em outro local qualquer que o IPHAN articule, com todos os
representantes regionais do IPHAN, para a gente poder conduzir de uma forma
articulada e única toda a questão do gasoduto
Nós temos uma proposta, uma proposta consolidada dentro desse trabalho, que
fizemos e enviamos ao Banco Mundial, esta proposta esta lá no Banco Mundial para
ser avaliada, e essa proposta contempla praticamente duas fases do trabalho: uma
primeira fase, que é uma fase de prospecção intensiva e, nessa fase, ao ser localizado,
identificado, localizado, cadastrado o sítio, o empreendedor, neste caso a
PETROBRÁS, vai definir se interessa uma visão econômica ou científica, se há o
interesse de desviar ou salvar determinados sítios e onde desviar e onde salvar os
sítios. E tem uma segunda fase, que é o acompanhamento da obra efetivamente, de
abertura de trincheiras, então aí é imaginado que o gasoduto é divido em treze trechos
de obra, cada empresa é contratada, quer dizer ela pode pegar três trechos no máximo,
e cada empresa dessas tem de ter um arqueólogo de contrato, um arqueólogo
responsável e imaginamos que esse arqueólogo treine seus fiscais de campo para
acompanhar efetivamente a abertura das trincheiras, através de um guia prospectivo
(que será construído), um folheto que será construído como um guia prospectivo do
gasoduto. Em áreas críticas, quem vai decidir isso será o arqueólogo e a prospecção
será acompanhada com presença de um arqueólogo. Então, a gente tem que ter muito
a visão do custo do empreendimento, o custo do trabalho arqueológico e a efetividade
da obra, porque uma obra, no caso do Pantanal, ela não pode parar: você tem de
iniciar a obra por uma questão de cronograma, de cheias e vazantes. Então, essa
questão da Arqueologia, eu acho que é impossível a gente imaginar que uma
prospecção, seja ela qual for, vá conseguir cobrir 100% do gasoduto.
68
Eu sou geólogo e trabalho com prospecção de petróleo. A gente gostaria de ter
uma linha sísmica a cada 10m, mas a gente não tem, tem uma linha sísmica a cada
1.5Km/2.5Km, isso em função do alvo que você quer descobrir e em função do custo
que você está valorando. Então, essa visão do custo, do alvo e do tamanho, isso tudo
tem de ser contemplado numa prospecção arqueológica objetivando prazo, custo, para
não interromper efetivamente uma obra. Então, isso tudo tem de ser analisado quando
se trabalha numa prospecção arqueológica e, de maneira alguma, a PETROBRÁS tem
intenção de limitar o trabalho do arqueólogo. Quando certamente você foi a campo
com um Gol, é uma norma que a PETROBRÁS admite, que eu vou para campo com
um Gol e se eu te falar dos buracos em que eu me meto, você vai ficar arrepiado,
porque o aluguel de uma Toyota é muito mais caro que o Gol, e o Gol é um carro
alugado; então, a gente tem que adequar as condições de trabalho ao material que a
gente tem: é uma arte, eu tento ser um artista, de repente.
No início do gasoduto, quando a gente estava nas fases iniciais do EIA, lá em
1993, você não dispunha de mapas e fotografias aéreas de que hoje você dispõe, você
dispunha de informações, de fotos satélite, de cartas 1:50.000, e hoje você já dispõe
de fotos aéreas um pouco mais detalhadas. Então, toda essa questão de levantamento
no Mato Grosso do Sul, que é uma coisa que interessa muito a gente, porque eu estou
com pé do lado da PETROBRÁS, então eu vejo, por esse lado, que não pode ser
interrompida a obra, então a gente quer fazer uma prospecção intensiva e uma decisão
se salva ou não determinado sítio arqueológico e se ele é representativo de
determinada região. Então, toda essa questão do gasoduto está sendo abordada de uma
forma integral, porque existe um respeito da PETROBRÁS muito grande com a
questão arqueológica, tanto assim que ela hoje está financiando este encontro
Irmhild Wüst - Agradecemos a sua palavra e fazemos um intervalo para o almoço e
retomamos a atividade às 02:00 horas da tarde.
69
2ª MESA-REDONDA:
AVALIAÇÃO DE IMPACTOS CULTURAIS EM ESTUDOS
AMBIENTAIS
COORDENAÇÃO:
Dra. Tânia Andrade Lima
Museu Nacional/UFRJ
Coordenadora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
70
EXPOSITORES
SOLANGE BEZERRA CALDARELLI
Doutora em Ciências Humanas pela Faculdade de Filsosofia Letras e Ciências Humanas/USP
1979/85 - Arqueóloga do Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo, atuando na
formação de pessoal em arqueologia e coordenando projetos de pesquisa arqueológica nos
vales dos rios Pardo, Mogi-Guaçu, Tietê e Guareí, SP
1982/85 - Coordenadora, do lado brasileiro, do Acordo de Cooperação Científica
Internacional entre o Institudo de Pré-História da USP e a Unité de Recherches
Archéologiques nº 28, CNRS, França.
1986/88 - Pesquisadora de Desenvolvimento Científico e Regional do CNPq, junto ao Museu
Paraense Emílio Goeldi
Desde 1989 - Coordenadora de projetos da Scientia Consultoria Científica (Área de
Arqueologia e Patrimônio Histórico-Cultural), participando de 03 projetos de ordenação físicoterritorial em unidades de conservação e de cerca de 50 projetos de licenciamento ambiental
(EIA/RIMA, LI e LO), em todas as regiões do país.
Membro da SAB-Sociedade de Arqueologia Brasileira; da SAA-Society for American
Archeology; da Seção Brasileira da IAIA-International Association for Impact Assessment e
do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
GILSON RODOLFO MARTINS
Doutor em Arqueologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Professor Adjunto de Arqueologia Brasileira e História Regional da Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul
Coordenador do projeto de pesquisas “Arqueologia do Sítio Maracaju-01” - UFMS
Integrante da equipe do projeto de pesquisas “Paleo-ambiente e Pré-História do MT” MAE/USP - IPH/MNHN/França
Coordenador da etapa de levantamento do “Projeto Arqueológico Porto Primavera-MS” CESP/UFMS
Responsável pelos estudos arqueológicos do EIA/RIMA do Gasoduto Bolívia-Brasil, Trecho
Terenos/Três Lagoas, MS - PETROBRÁS/UFMS
Conselheiro do CEDIN-Conselho Estadual dos Direito do Índio/Governo do MS
Perito da Justiça Federal em MS para demarcação de terras indígenas
LÚCIA DE JESUS CARDOSO OLIVEIRA JULIANI
Mestre em Arqueologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Pertence ao corpo técnico do Departamento do Patrimônio Histórico da Scretaria Municipal de
Cultura de São Paulo desde 1985, exercendo a Chefia da Seção Técnica de Pogramas de
REvitalização e a coordenação dos Programas de Arqueologia desde 1994.
Membro do CADES-Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
de São Paulo desde 1995.
Participa de Estudos de Impacto Ambiental e de Projetos de Resgate do Patrimônio
Arqueológico e Histórico desde 1991.
Membro da Sociedade de Arqueologia Brasileira e do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da
Arqueologia
71
AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS DE GRANDES EMPREENDIMENTOS SOBRE A BASE
DE RECURSOS ARQUEOLÓGICOS DA NAÇÃO: CONCEITOS E APLICAÇÕES
Solange Bezerra Caldarelli
A Avaliação de Impacto Ambiental é o instrumento da Política Nacional do
Meio Ambiente que avalia os impactos sobre o meio físico-biótico e sócio-econômico
de qualquer atividade modificadora do meio ambiente acima de um determinado
limite, definido pela Resolução CONAMA nº 001/86.
No caso dos recursos arqueológicos, impacto é qualquer alteração em seu
status quo, decorrente, direta ou indiretamente, no caso que aqui se discute, de ações
executadas para a implantação de empreendimentos de engenharia que afetem o solo.
Essas ações, que causam os impactos, são denominadas ações impactantes.
A avaliação de impacto ambiental é um instrumento preditivo: ela busca o
conhecimento prévio dos efeitos, sobre o meio ambiente, das ações necessárias à
implantação de grandes projetos desenvolvimentistas. Promovendo o conhecimento
prévio sobre os riscos ambientais desses projetos, a avaliação de impactos ambientais
torna-se um importante instrumento de planejamento, permitindo a tomada de
decisões sobre os impactos a evitar, os danos a mitigar, os benefícios a otimizar e os
impactos a ignorar. Embora a AIA não seja um instrumento decisório, é um provedor
de subsídios ao processo decisório. Além disso, ao menos em tese, a AIA é um
instrumento democrático, pois imprime transparência aos dados sobre os quais se
fundamenta o processo decisório, permitindo que a sociedade se posicione frente ao
projeto em estudo e participe das decisões sobre sua implantação ou não e, em caso
positivo, sobre o modo como deve-se dar essa implantação.
Na Resolução nº 001, o CONAMA considerou, entre os fatores componentes
do meio sócio-econômico, os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e
culturais da comunidade. A partir daí, arqueólogos começaram a ser chamados para
participar dos estudos de impacto ambiental de grandes empreendimentos de
engenharia civil (hidrelétricas, rodovias, ferrovias, dutovias, empreendimentos
urbanísticos, etc.), com o objetivo de definir e avaliar os impactos desses
empreendimentos sobre os recursos arqueológicos regionais.
Ao participar desses estudos, os arqueólogos devem contribuir com o
processo decisório sobre o projeto em estudo, fornecendo informações relativas aos
recursos arqueológicos da área de inserção do empreendimento.
A fase que antecede a avaliação de impactos propriamente dita é a do
diagnóstico, que já foi discutida na mesa-redonda dessa manhã. Uma vez
identificados os recursos culturais da área de estudo, é preciso localizá-los em relação
às alternativas do projeto, de modo a verificar qual é a alternativa menos impactante,
do ponto de vista arqueológico. Parte-se, aí, para a identificação dos impactos, tendo
como referência os processos tecnológicos do empreendimento, que constituirão os
fatores geradores dos impactos. A identificação é a primeira fase do processo de
avaliação de impactos.
Vejamos quais são, de forma genérica, os principais impactos arqueológicos
dos empreendimentos que mais têm solicitado o concurso de arqueólogos nos estudos
de impacto ambiental em curso no Brasil.
TIPO DE EMPREENDIMENTO
PROCESSO TECNOLÓGICO(1)
IMPACTO ARQUEOLÓGICO
72
Abertura de estradas de serviço
Cortes de terreno
RODOVIAS
Aterros
Obtenção de material natural de
empréstimo
Disposição de bota-fora
Implantação de cobertura vegetal
Remoção da cobertura vegetal
Terraplenagem para instalação do
canteiro de obras
Escavações para instalação de vilas
residenciais
Cortes e aterros para vias de acesso
USINAS
HIDRELÉTRICAS
Empréstimo de materiais naturais
de construção
Disposição de bota-fora
Execução de obras de realocação
(infra-estrutura e assentamentos)
Desmatamento e destocamento da
vegetação da área a ser inundada
Enchimento do reservatório
Limpeza da faixa, com remoção da
vegetação
Construção de estradas de serviço
DUTOVIAS
Abertura de vala para colocação dos
dutos
Colocação dos dutos na vala
Reaterro da vala
Cortes e aterros para implantação
do sistema viário, quadras e lotes
EMPREENDIMENTOS
URBANÍSTICOS
Implantação de cobertura vegetal
Pavimentação
asfáltica
ou
tratamento do leito viário com solo
e material granular compactado
1) Baseado em FORNASARI Fo.
Edificações
et al. (1992)
Exposição e destruição de estruturas
arqueológicas super-ficiais e subsuperficiais (-)
Destruição
de
estruturas
arqueológicas (-)
Soterramento
de
estruturas
arqueológicas (-)
Destruição de fontes pretéritas de
matéria-prima (-)
Soterramento
de
estruturas
arqueológicas (-)
Mascaramento
de
estruturas
arqueológicas em estratigrafia (-)
Exposição e destruição de estruturas arqueológicas superficiais (-)
Destruição de estruturas arqueológicas superficiais e sub-superficiais (-)
Destruição de estruturas arqueológicas (-)
Exposição e soterramento de
estruturas arqueológicas (-)
Destruição de fontes pretéritas de
matéria-prima (-)
Soterramento
de
estruturas
arqueológicas (-)
Exposição, soterramento e destruição de estruturas arqueológicas (-)
Exposição e destruição de estruturas
arqueológicas (-)
Submersão de estruturas arqueológicas e descaracterização do
território pretérito de captação de
recursos (-)
Exposição de estruturas arqueológicas superficiais (-)
Exposição e destruição de estruturas
arqueológicas (-)
Exposição da estratigrafia de vastas
extensões lineares de terrreno (+)
Introdução de corpo estranho no
interior dos sítios arqueológicos
Fechamento dos cortes estratigráficos, impedindo a erosão dos
sítios arqueológicos situados na
faixa do duto (+)
Exposição,
destruição
e
soterramento
de
estruturas
arqueológicas / descaracterização
do território pretérito de captação de
recursos (-)
Mascaramento e perturbação de estruturas arqueológicas superficiais /
descaracterização do território pretérito de captação de recursos (-)
Compactação de solos arqueológicos (-)
Destruição de estruturas arqueológicas superficiais e enterradas (-)
Uma vez identificados os impactos, o passo seguinte é a sua caracterização,
segundo atributos explicitados na Resolução CONAMA 001/86, expostos no quadro
abaixo:
73
ATRIBUTOS DE CARACTERIZAÇÃO DE IMPACTOS
(RESOLUÇÃO CONAMA 001/86)
Positivo / negativo
Magnitude
Relevância
Direto / indireto
Imediato, médio / longo prazo
Temporário / permanente
Reversível / irreversível
Simples / cumulativo
Numa análise de impactos, evidentemente, o primeiro aspecto que se avalia é
se o impacto é negativo (adverso) ou positivo, pois são os impactos negativos e a
possibilidade e os custos de sua mitigação que, efetivamente, são levados em conta na
discussão da viabilidade ambiental de um empreendimento, sendo que os demais
atributos (magnitude, relevância, reversibilidade, etc.), apresentados no quadro acima,
têm principalmente a função de qualificá-los.
Daí a importância de apresentar, aqui, critérios para avaliar se um impacto é
ou não negativo, do ponto de vista dos recursos arqueológicos. Assim, temos
considerado que impactos adversos são aqueles que decorrem de fatores que:
destróem ou perturbam total ou parcialmente os recursos;
alteram seu contexto;
afetam a preservação dos dados;
obstruem o acesso aos dados.
Para dar um pouco mais de concretude ao tema, vamos mostrar como os
atributos acima apresentados foram adaptados e utilizados na caracterização que
fizemos dos impactos previstos para a UHE Piraju, projetada para a Bacia do
Paranapanema, município de Piraju, SP, durante o Estudo de Impacto Ambiental do
empreendimento, elaborado pelo CNEC-Consórcio Nacional de Engenheiros
Consultores S/A para a CBA-Companhia Brasileira de Alumínio S/A
(CALDARELLI, 1996).
A análise dos impactos seguiu-se ao levantamento arqueológico da área de
estudo, feito após consulta à extensa bibliografia produzida pelo Projeto
Paranapanema, atualmente coordenado pelo Dr. José Luiz de Morais, do MAE/USP, o
qual também constituiu fonte oral dos estudos, fornecendo dados ainda não publicados
e dando à equipe amplo acesso ao Cadastro de Sítios Arqueológicos do Projeto
Paranapanema (MORAIS, 1992a)e ao Mapa de Sítios Arqueológicos do Município de
Piraju (MORAIS, 1992b), documentos por ele elaborados, inéditos. A ampla
colaboração do Dr. José Luiz de Morais potencializou positiva e fundamentalmente o
escopo dos trabalhos, propiciando à UHE Piraju uma das melhores avaliações de
impactos arqueológicos do Estado de São Paulo.
Os impactos identificados, em número de sete, podem ser vistos na matriz
abaixo apresentada, onde se aponta os fatores responsáveis por sua geração, seguidos
de uma breve descrição de cada impacto.
74
UHE PIRAJU
MATRIZ DE IDENTIFICAÇÃO DE IMPACTOS: RECURSOS ARQUEOLÓGICOS
FATORES GERADORES
IMPACTOS
DESCRIÇÃO
Ações Iniciais
divulgação da obra
desapropriação / aquisição de terras
Implantação da Infra-Estrutura de Apoio
recrutamento e contratação de mão de obra
desmatamento e terraplenagem para acessos,
1
1=destruição de acampamentos e aldeias
canteiros, etc.
pré-coloniais
ampliação e melhoria da infra-estrutura
1
implantação do canteiro
1
implantação dos alojamentos e vila residencial
1
Implantação das Obras Principais
mobilização dos equipamentos
exploração de fontes de materiais de
2
2=destruição de oficinas líticas préempréstimo e jazidas
coloniais
execução das obras civis
1
deposição de material excedente em botas-foras
3
3=soterramento de vestígios
arqueológicos
montagem da eletromecânica
implantação da linha de transmissão
1
transporte de materiais e insumos
Enchimento do Reservatório
desocupação da área a ser submersa
desmatamento e limpeza da área de inundação
1/4
4=exposição de estruturas arqueológicas
enchimento propriamente dito
5/6/7
5=submersão de sítios arqueológicos
6=erosão e dispersão de vestígios
Desmobilização
arqueológicos
dispensa da mão de obra
7=descaracterização do entorno dos
sítios arqueológicos
desmobilização do canteiro e alojamentos
retirada de materiais e equipamentos
Operação da Usina
operação da usina
6
fiscalização / manutenção da faixa de
segurança
Após a identificação, cada impacto foi caracterizado, de acordo com os
atributos definidos pelo CNEC, adaptados e ampliados tantos dos mencionados na
Resolução CONAMA 001/86, quanto dos mencionados pela Secretaria do Meio
Ambiente do Estado de São Paulo (COORDENADORIA DE PLANEJAMENTO
AMBIENTAL, 1989).
A caracterização dos impactos foi sintetizada numa ficha, também elaborada
pelo CNEC e apresentada a seguir, da qual constam as medidas mitigadoras sugeridas,
as quais foram amplamente discutidas com o Dr. José Luiz de Morais, que deverá ser
o responsável por sua implantação, na fase de resgate.
75
UHE Piraju - Ficha de Avaliação de Impactos - Recursos Culturais
Impacto
Natureza
im op po ne
di
Duração
in pe te
ADA
X
X
X
X
X
X
X
ADA
X
X
X
X
X
X
X
3. soterramento de
vestígios
arqueológicos
ADA
X
X
X
X
X
4. exposição de
estruturas
arqueológicas
ADA
X
X
X
X
X
5. submersão de
sítios
arqueológicos
ADA
X
X
X
X
X
6. erosão e dispersão de vestígios
arqueológicos
ADA
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
1. destruição de
acampamentos
e
aldeias
précoloniais
2. destruição de
oficinas líticas précoloniais
Localização
7. descaracterização do entorno dos
ADA
sítios
arqueológicos
im: implantação po: positivo
o: operação
ne: negativo
Fase
X
X
di:direto
in: indireto
Tipo
pe: perm.
te: temp.
Espacializ
lo di
Revers
ibilid
re ir
X
X
X
Medida
resgate
arX queológico
resgate
arX queológico
X
X
X
resgate
arX queológico
X
X
resgate
arX queológico
X
X
re: revers.
ir: irrev.
X
X
i: imediato
ml: édio/longo prazos
monitoramento
arqueológico
X
registro arX queológ. da
paisagem
p: pequeno
m: médio
g: grande
Natureza
p
v
resgate
arqueológico
X
X
X
X
lo: localizado
di: disperso
Ocor- Relevân-cia Significânci
rência
a
i m/ p m g a m b
l
a: alto
m: médio
b: baixo
c
o
c
p
Eficiência
p
o
p
m
Responsável
g
Financ:
emX preendedor
Técnico:
MAE/USP
Financ:
emX
X preendedor
Técnico:
MAE/USP
Financ:
emX
X preendedor
Técnico:
MAE/USP
Financ:
emX
X preendedor
Técnico:
MAE/USP
Financ:
emX
preendedor
Técnico:
MAE/USP
Financ:
emX
X
preendedor
Técnico:
MAE/USP
Financ:
emX
X preendedor
Téc.: MAE/US
MAE/USP
pv:preventiva
co: corretiva
cp: compensatória
po:potencializadora
X
76
Quanto ao atributo magnitude, mencionado na Resolução CONAMA
001/86, situações concretas são as únicas que podem torná-lo claro, pois trata-se de
um atributo que deve, de preferência, ter um referencial numérico, o que só pode ser
feito em presença de casos reais. O exemplo que consideramos mais interessante para
apontar aqui é o da duplicação da Rodovia Fernão Dias, cujo EIA foi elaborado pelo
consórcio ETEL-Estudos Técnicos Ltda./TECON-Técnica e Consultoria S/C Ltda.,
para os DERs de São Paulo e de Minas Gerais.
Na fase de avaliação de impactos deste empreendimento, nos deparamos com
a necessidade de expressar numericamente a magnitude dos impactos arqueológicos
da Área Diretamente Afetada do empreendimento, em cima de um levantamento
amostral, da ordem de 20%, feito na Área de Influência.
Não podíamos apontar o número de sítios arqueológicos existente em cada
lote em que foi sudividida a rodovia, como solicitado por nossos contratantes, pois a
margem de erro seria muito grande, uma vez que projetos lineares são, em geral,
muito estreitos, e apenas quando a pesquisa se dá exatamente sobre o eixo do projeto é
possível estimar os sítios individuais que serão afetados pelas obras.
Assim, decidimos auferir o potencial arqueológico da área coberta por cada
lote, em termos de percentual de cada área onde podem ocorrer sítios arqueológicos,
com base nos dados ambientais da implantação dos sítios localizados no levantamento
feito em campo, para os quais haviam apresentado associações positivas as variáveis
topomorfologia e declividade.
Os resultados obtidos revelaram-se satisfatórios e permitiram estimar o
percentual da área de cada lote em que havia risco de as obras causarem impactos
negativos sobre os eventuais recursos arqueológicos. Para as áreas de potencial
arqueológico de cada um desses lotes, mencionadas no EIA, recomendamos
levantamento arqueológico intensivo, previamente ao início das obras de duplicação
da rodovia (CALDARELLI, 1992).
O gráfico abaixo ilustra a magnitude das áreas que oferecem risco de terem
recursos arqueológicos impactados, no trecho da rodovia situado no Estado de Minas
Gerais.
100%
80%
60%
40%
20%
0%
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10 11 12 13 14
Rodovia Fernão Dias, MG - Área percentual de cada lote, com potencial
de ocorrência de sítios arqueológicos e consequente risco de incidência de
impactos negativos
77
Quanto à relevância, outro dos atributos mencionados na Resolução
CONAMA 001/86, trata-se de um conceito, a nosso ver, que pode ser reportado
diretamente ao que, em arqueologia, chamamos de significância, sobre o qual existe
farta bibliografia (ver, por exemplo, DIXON, 1977; GLASSOW, 1977; MORATTO
& KELLY, 1978 e SCHIFFER & HOUSE, 1977).
Vamos, aqui, evocar os dois conceitos mais amplamente utilizados de
significância, a saber:
Significância histórica: potencial do(s) recurso(s) para identificação e
reconstrução de culturas, períodos, modos-de-vida e eventos específicos. Assim
recursos culturais são historicamente significantes se constituem um exemplo bem
preservado de uma cultura pré-histórica, uma sociedade histórica, um período, uma
categoria de atividade humana, etc.
Significância científica: potencial do(s) recurso(s) para estabelecer
generalizações confiáveis sobre sociedades passadas e fornecer explicações sobre as
diferenças e similaridades entre elas. Assim, a significância científica depende do
grau de representatividade dos recursos arqueológicos da área de estudo para uso em
estudos comparativos. O valor desses dados pode estar relacionado ao contexto
regional da área de estudo ou a problemas antropológicos gerais.
De acordo com BUTLER (1987), a significância é sempre baseada em teoria
e conhecimento científico. Um projeto de pesquisa é sempre uma avaliação do que é
e do que não é conhecido sobre um sítio, um conjunto de sítios ou uma região de
interesse e apresenta um plano de ação pelo qual questões pertinentes possam sr
respondidas.
Estratos distintos de um mesmo sítio podem, também, ter significâncias
distintas. Num sítio multicomponencial em abrigo sob rocha, por exemplo, as
camadas arqueológicas superiores provavelmente relacionar-se-ão a episódios
pretéritos mais conhecidos que as camadas inferiores, que terão maior significância
científica, pelo potencial de lançar luz sobre períodos pouco conhecidos da
arqueologia.
No mundo todo, os órgãos de proteção ao patrimônio fazem exigências
mínimas quanto ao conteúdo dos projetos que lhes são submetidos para autorização de
pesquisa. No Brasil, essas exigências mínimas são dadas pela Portaria 007/88 do
IPHAN e são bem modestas em relação ao que se observa em outros países.
Infelizmente, o art. 5º da portaria não incorpora a questão da significância dos
recursos arqueológicos a serem estudados pelo pesquisador, nem mesmo sob a rubrica
“JUSTIFICATIVA”. Também para o pesquisador, acadêmico ou não, se coloca o
fato de que os recursos arqueológicos são finitos e não renováveis e, portanto, uma
autorização de pesquisa só deve ser dada mediante justificativa do interesse científico
do projeto.
BUTLER (1987) comenta que, nos Estados Unidos, em nenhuma parte do
território existem lacunas de conhecimento num grau tal que justifiquem um projeto
de pesquisa baseado apenas em métodos indutivos porque nada se conhece sobre a
área. No Brasil, infelizmente, o quadro é outro, o que ficou bem claro na reunião
promovida pelo DEPROT/IPHAN no Rio de Janeiro, em 1995, quando foi debatida a
intenção do órgão de implementar um “Programa de Recadastramento de Sítios
Arqueológicos Brasileiros”, quando os arqueólogos presentes consideraram mais
premente que se promovesse o levantamento e o inventário dos sítios de extensas
78
regiões do Brasil, que são quase que absolutamente desconhecidas do ponto de vista
da arqueologia.
Voltando à questão da “justificativa”, consideramos que, ao elaborar seu
projeto de pesquisa, o pesquisador deveria justificar também as operações
mencionadas no art. 5º da portaria 007/88 do IPHAN, uma vez que, sendo finitos os
recursos, é preciso parcimônia em seu estudo, já que o estudo arqueológico implica,
como todos sabem, a destruição total ou parcial do sítio. Assim, outro conceito que
deveria ser incorporado aos projetos de pesquisa nacionais é o de “redundância”. A
redundância deveria ser sempre um critério de escavação e de coleta: escava-se e
coleta-se até se alcançar redundância de dados para os objetivos do projeto, seja no
estudo de um sítio específico, seja no estudo de uma região.
É a redundância (ou recorrência) que deve orientar o problema do tamanho
da amostra de material arqueológico a ser retirada dos sítios, que deve variar em
função da recorrência dos bens móveis presentes no sítio, recorrência esta que está
diretamente ligada ao tipo de sítio em questão. E a relevância do impacto também se
relaciona diretamente ao tipo de sítio a ser impactado e determina as ações dos
programas de mitigação. Assim, a intensidade da intervenção arqueológica e da
coleta de material deve variar em função dos tipos de sítio. É claro que, em sítios de
atividades limitadas (uma oficina lítica, por exemplo), não se justificam escavações e
coletas na mesma intensidade que em sítios-base, onde o tempo prolongado da
ocupação e a pluralidade das ações pretéridas desenvolvidas no espaço do sítio
resultam, em geral, em expressiva densidade e diversidade de cultura material, com
variações espaciais que devem ser consideradas na pesquisa de campo.
Enfim, um programa de mitigação deve objetivar a cobertura de uma amostra
confiável de todos os recursos culturais significativos e dos recursos naturais a eles
relacionados que serão afetados pelo empreendimento, de modo a que as informações
coletadas possam contribuir adequadamente para a solução dos problemas
arqueológicos significativos colocados pelos recursos existentes na área de estudo.
O tamanho da amostra varia de acordo com o número e a significância dos
recursos arqueológicos a serem afetados direta ou indiretamente pelo
empreendimento. Nos casos em que apenas um ou pequeno número de recursos
arqueológicos serão afetados, o estudo de todos é recomendável, mas, na maioria dos
casos, é suficiente que se estude uma parcela representativa do conjunto dos recursos
da área de estudo.
Uma questão que se deve ter sempre presente quando se decide e se avalia o
tipo e a intensidade das intervenções arqueológicas num sítio ou numa região é: “estáse aprendendo alguma coisa nova com investigações adicionais?” Ou seja, vale a
pena intensificar as escavações e coletas? A significância do sítio ou da região
justifica a intensidade de escavações e coletas empreendidas? O dinheiro e o tempo
gastos numa pesquisa não se justifica se o pesquisador está apenas repetindo
experiências ou obtendo os mesmos resultados de pesquisadores anteriores. Caso este
seja o caso, o melhor é conservar o recurso para novas questões, que se coloquem no
futuro, e não exauri-lo com problemáticas e técnicas que não levem à produção de
conhecimento novo.
Aliás, a significância do recurso também deve ser um critério utilizado pelo
contratante dos serviços arqueológicos. É preciso que se fundamente a significância
alegada do recurso cultural, para se justificar o montante do recurso financeiro
79
solicitado para sua pesquisa. Aliás, neste ponto a participação do órgão de proteção
ao patrimônio cultural é decisiva. Como diz BUTLER (1987), arqueólogos devem
avaliar a significância do recurso; podem fazer recomendações sobre ele, mas a
gestão, ou seja, a decisão sobre o que deve ser feito com o recurso é de
responsabilidade dos órgãos de proteção ao patrimônio cultural e não do arqueólogo,
já que esses recursos são bens nacionais.
Para que o órgão de proteção ao patrimônio cultural brasileiro, ou seja, o
IPHAN, possa tomar as devidas decisões sobre os recursos arqueológicos de uma
dada região, no contexto de um estudo de impacto ambiental, que é o tema deste
simpósio, é importante que o arqueólogo tenha identificado e avaliado adequadamente
os impactos (o que depende de ele poder contar com um bom diagnóstico prévio,
elaborado em condições adequadas - condições essas que esperamos poder explicitar
no documento-síntese a ser elaborado ao final do simpósio).
As recomendações do arqueólogo sobre o destino a dar aos recursos
arqueológicos da área de estudo consubstanciam-se nos programas apresentados ao
final do EIA, os quais devem, necessariamente, ter o aval do IPHAN, o qual só pode
dar esse aval se puder confrontar os impactos identificados e sua relevância com as
ações propostas para seu estudo ou preservação.
O IPHAN, se necessário, deve também solicitar que o arqueólogo expanda as
ações previstas para o estudo, se estas forem consideradas insuficientes em relação à
significância do recurso. Inclusive, no caso de mais de uma proposta ser apresentada
ao IPHAN para o mesmo sítio ou para a mesma região, o que pode acontecer num
sistema capitalista de livre concorrência, o IPHAN tem de decidir pela proposta mais
eficaz de mitigação dos impactos previstos, excluída a hipótese de redundância de
ações e resultados, único caso em que a questão do custo deve ser considerada
relevante para o órgão.
Aliás, a possibilidade de mais de um pesquisador vir a estudar uma mesma
região a ser afetada por empreendimento implica uma mudança da postura tradicional
do arqueólogo brasileiro: a da sua relação de propriedade com a área de estudo, pois
no contexto da Avaliação de Impacto Ambiental, é comum um pesquisador começar
onde outro terminou.
Diante dessa nova realidade, novas posturas éticas se impõem: é preciso que
as informações fluam entre os pesquisadores envolvidos nas diversas etapas da
pesquisa, de modo a agilizar a produção de conhecimentos e a tomada de decisões
sobre um objeto de estudo que tende a desaparecer rapidamente, não em função da
pesquisa, mas de fatores externos.
Para avaliar a importância dos recursos culturais da área de estudo,
SCOVILL, GORDON & ANDERSON (1972) sugerem que sejam considerados os
seguintes aspectos:
Abundância relativa dos recursos a serem afetados
Grau de confinamento dos recursos à área de estudo
Relações culturais e ambientais entre a área de estudo e seu entorno
Diversidade dos vestígios culturais contidos na área de estudo
Gama de tópicos de pesquisa para os quais a área de estudo pode contribuir
Deficiências específicas do conhecimento atual que podem ser supridas pela
área de estudo
80
Uma vez avaliada a importância ou significância dos recursos, fica mais fácil
avaliar a relevância dos impactos adversos ou negativos que eles poderão vir a sofrer.
Os recursos arqueológicos estão especialmente sujeitos a efeitos adversos cumulativos
poque eles são não renováveis e o crescimento do conhecimento arqueológico
depende da disponibilidade de uma base representativa de recursos para as futuras
gerações. A produtividade científica a longo prazo só será mantida se uma amostra
representativa e significativa da base de recursos culturais for preservada para estudos
futuros. Todo impacto adverso sobre os recursos arqueológicos e seu contexto reduz
essa amostra e esses efeitos são cumulativos e irreversíveis. Não é demais relembrar,
aqui, que os recursos arqueológicos constituem o legado das gerações passadas às
gerações futuras e destruí-los significa subtrair a herança a seus legítimos herdeiros.
Para terminar, gostaríamos de dizer que a grande contribuição que a
academia pode trazer à Avaliação de Impactos Ambientais não está na participação
direta nos EIAs/RIMAs, o que só acarreta desvio de sua função primeira, que é a de
fazer pesquisa básica que alimente a pesquisa aplicada, mas sim na produção de
conhecimento, não apenas através da condução dos programas arqueológicos de
mitigação recomendados nos EIAs/RIMAs, mas também através de estudos
experimentais que elucidem os reais efeitos das ações da engenharia civil sobre os
recursos arqueológicos. Esta é uma função da academia que a arqueologia de contrato
não pode assumir.
Uma vez mais, a UHE Piraju é um bom exemplo de programas experimentais
propostos no EIA, a serem assumidos pela universidade. Um dos programas de
mitigação de impactos proposto foi o “Programa de Monitoramento dos Bens
Arqueológicos Submersos”, com o objetivo de observar e documentar os efeitos do
enchimento do reservatório sobre as estruturas arqueológicas que ficarão às margens
do lago e sofrerão a ação do turbilhonamento das águas e sobre as estruturas
arqueológicas que ficarão submersas, sofrendo a ação das correntes de fundo
(CALDARELLI, 1996).
Pretende-se, com esse programa, trazer um pouco de luz sobre os reais
efeitos dos reservatórios hidrelétricos sobre os recursos arqueológicos submersos, de
modo a subsidiar a tomada de decisões sobre as medidas a serem tomadas em casos
similares futuros. Esta é uma função da academia que a arqueologia de contrato pode
até propor, mas não tem condições de executar, a não ser em colaboração com a
própria academia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Antiquity, 52 (4): 820-829.
American
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encaminhado ao consórcio ETEL-Estudos Técnicos Ltda./TECON-Técnica e
Consultoria S/C Ltda., para compor o EIA do Projeto de Duplicação da Rodovia
Fernão Dias, SP/MG. São Paulo, Scientia Consultoria Científica.
81
1996 Avaliação dos impactos da UHE Piraju sobre os recursos culturais locais.
Relatório encaminhado ao CNEC-Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores
S/A, para compor o EIA da UHE Piraju, SP. São Paulo, Scientia Consultoria
Científica.
COORDENADORIA DE PLANEJAMENTO AMBIENTAL
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IPT-Instituto de Pesquisas Tecnológicas.
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1992b (Org.) PROJETO PARANAPANEMA - Programa Regional de Pesquisas
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MORATTO, M.J. & R.E. KELLY
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1977 An Approach to Assessing Scientific Significance. In: M. B. Schiffer & G. J.
Gumerman (Ed.), Conservation Archaeology. New York, Academic Press, p. 249258.
SCOVILL, GORDON & ANDERSON
1972 Guidelines for the preparation of statements of environmental impacts on
archaeological resources. Arizona Archeological Center, National Park Service.
Tucson, Arizona.
82
AVALIAÇÃO DE IMPACTOS ARQUEOLÓGICOS DE EMPREENDIMENTOS
REGIONAIS E MEDIDAS MITIGADORAS APLICÁVEIS
Gilson Rodolfo Martins
1- Avaliação dos impactos ambientais sobre o patrimônio arqueológico e a
Resolução CONAMA nº 1 de l986
Como ponto de partida para a avaliação dos impactos de um empreendimento
sobre o patrimônio arqueológico deve-se considerar que todo empreendimento que é
impactante sobre o meio ambiente também pode se-lo sobre o patrimônio
arqueológico.
Pela lei, a exigência do EIA/RIMA visa a compatibilização entre o
desenvolvimento
econômico-social
e
a
preservação
do
equilíbrio
ecológico/patrimonial. Logo, conservar um sítio é também estender a proteção ao seu
entorno, entendido este como possível amostra da área de captação de recursos
naturais de uma comunidade do passado.
A legislação ambiental brasileira, na medida em que prevê a consulta à
comunidade afetada é preservacionista e participativa. No entanto, em termos de
Arqueologia, é limitada pois só é aplicada em eventos que provoquem significativa
degradação patrimonial e elenca, limitadamente, os empreendimentos em que os
estudos e avaliação de impactos se tornam obrigatórios. Isso é problemático, pois,
como já foi visto acima, o que é arqueologicamente insignificante hoje, pode ser
fundamental no futuro. Ou ainda, muitas vezes os sítios arqueológicos estão inseridos
em áreas de empreendimentos onde a apresentação do EIA/RIMA não é obrigatório.
Nos casos não previstos na legislação, deveria caber ao orgão oficial
expedidor da licença prévia e também ao empreendedor, uma consulta obrigatória
prévia ao IPHAN.
2- A problemática conceitual da Arqueologia de Salvamento
No fim da década de 80, Bezerra de Menezes (1988) fez uma avaliação
crítica da Arqueologia de Salvamento que, passados quase dez anos, em vários
pontos, ainda é bem atual. Retomaremos, a seguir, alguns pontos que entendemos
serem pertinentes à esta exposição.
A Arqueologia foi definida pelo autor acima como uma ciência social que,
através do estudo da cultura material, visa recuperar e explicar sistemas sócioculturais pretéritos, em sua estrutura, funcionamento e mudança. Para ele, a produção
desse conhecimento científico é impossível sem um projeto de pesquisa que obedeça,
necessariamente, às determinações da metodologia científica.
No mesmo trabalho, comentou-se que nas primeiras elaborações conceituais
sobre a Arqueologia de Salvamento, esta foi entendida como a ação científica que
estabelece que todas as evidências, peças ou sítios, dotadas de “relevância”e
impossíveis de serem preservadas “in loco” e ameaçadas de destruição por algum
agente impactante deveriam ser “salvas” por remoção.
83
Assim, uma das questões principais dessa atividade científica é estabelecer
quais são os critérios para distinguir o que é relevante do irrelevante e o que, portanto,
pode ser descartado pelo salvamento arqueológico.
Vendo-se dessa forma, a utilização do termo “Arqueologia de Salvamento”
passou a ser problemática pois parece sugerir a idéia de uma aceitação passiva diante
de uma coleta seletiva e parcial de dados arqueológicos a serem impactados por um
determinado empreendimento.
Desde então, desenvolveu-se aquilo que o autor citado chamou de “ética da
conservação”, que produziu a idéia de que o que hoje não parece relevante, no futuro
poderá vir a se-lo, pois novas metodologias e recursos tecnológicos estarão
disponíveis para os pesquisadores, permitindo assim um aprofundamento das análises.
Repete-se o mesmo dilema dos historiadores quando têm que decidir sobre quais
documentos do presente deverão ser preservados para as pesquisas históricas futuras.
Assim sendo, então o que diferencia a Arqueologia de Salvamento da
Arqueologia ordinária?
Para o retro-citado autor, em termos de objeto e processo de produção do
conhecimento, nada. As diferenças são exclusivamente de carácter circunstancial e
operacional, ou seja:
a- se o grau de ameaça ao bem patrimonial é total ou parcial;
b- qual a delimitação da área presumivelmente afetada;
c- quais os prazos para a ação efetiva dos fatores impactantes e a natureza do
empreendimento.
3. O espaço regional e sua relação com o Patrimônio Histórico/Cultural
A elaboração da idéia “espaço regional” baseia-se na constatação de que ele
existe concretamente na natureza; a partir dos métodos da Geografia a ciência o
reconstrói teoricamente, enquanto unidade ambiental, fixando seus limites naturais.
Conforme Ab‟ Sáber (1994), todo espaço geográfico é resultante de uma
acumulação, mais curta ou mais longa, de processos históricos cumulativos,
decorrentes da atuação de múltiplos atores sociais. O que, para êle, se busca entender
é o “espaço total”, pois uma região comporta pluralidade cultural e cronológica, ou
seja, sucessivas paisagens são reconstruídas no tempo.
Nas ciências humanas, os estudos regionais são tentativas de explicar
determinadas manifestações histórico-culturais ou sociológicas ocorridas em uma
conjuntura geográfica delimitada, o que, nem sempre, coincide com uma unidade
ambiental homogênea e contínua. Um espaço emoldurado, necessariamente, reflete as
preocupações e as razões de quem o formulou. As questões científicas são levantadas
a partir de investigações que procuram a lógica de fenômenos culturais localizados.
Não há um tamanho padrão para área regional, sua dimensão é estabelecida pela
extensão de um determinado conjunto de dados que tenham relações entre sí ou pela
equacão do investigador.
Dessa forma, são inúmeras as possibilidades de abordagens científicas sobre
um mesmo contexto espacial, sendo este, como já foi dito, muitas vezes suporte para
vários e diferenciados sistemas culturais, reescrevendo-se, à cada análise, nova
84
“cartografia”cultural. A pesquisa regional desvenda essas relações fazendo os cortes
possíveis do que é homogêneo ou verificando as diferenças entre os subconjuntos.
A Arqueologia de Salvamento, devido às suas espeficidades, é, na verdade,
uma “cirurgia de emergência” em uma realidade espacial que se define e se impõe
pelas circunstâncias determinadas pelo carácter específico de um empreendimento, ou
seja, ela constrói, ficticiamente, unidades regionais que não correspondem à efetiva
realidade de um contexto arqueológico constituído. Podemos citar como exemplo o
caso da UHE Porto Primavera, que subdividiu-se em dois projetos de salvamento
arqueológico: o de São Paulo e o do Mato Grosso do Sul, margem esquerda e direita,
respectivamente, do rio Paraná. O mesmo vale também para o caso do Gasoduto
Bolívia/Brasil e sistemas viários de longas distâncias, pois o “transect” não é mais que
“um fio de um largo tecido”, não sendo possível, portanto, somente com os dados da
área impactada, reconstruir as correlações da trama. A somatória de vários projetos de
salvamento ambiental e patrimonial em uma mesma região, associada à continuação
sistemática da pesquisa arqueológica a nível acadêmico, é que poderá completar o
quadro explicativo integral de uma região.
A partir de uma tipologia da ação econômica, a nível regional, e de seus
impactos no meio ambiente, que por sua vez afetam também, muitas vezes, o
patrimônio arqueológico e cultural, elaborada por Ab‟ Sáber (1994), construímos,
com adaptações, um quadro, onde pretendemos estabelecer uma relação entre os
principais impactos ambientais e seus possíveis efeitos no patrimônio histórico e
cultural (v. quadro 1):
Quadro 1 - Atividades econômicas e seu potencial de impacto no patrimônio
cultural
Tipos de
região
Naturalo
u
silvestre
Tipos de
empreendimento
a-Ocupações
pioneiras agropastorís em lugares favoráveis a
assentamentos
coletivos
Tipos de impactos ambientais
Possíveis impactos sobre o
patrimônio histórico/cultural
“Picadas” de acesso; desmaDestruição total ou parcial de
tamentos; queimadas; movisítios pré-históricos e etnomentação superficial do solo para arqueológicos; conflitos étni-cos
cultivo agrícola; abertura de
com populações indígenas
poços; instalações de edifitradicionais.
cações agropastorís de peque-no
porte; erosão superficial por
ravinamento e lixiviação em
taludes de terraços fluviais
b-Abertura de
Desmatamentos; queimadas;
Destruição total ou parcial de
grandes áreas para
canais de irrigação; açudes;
sítios etno-arqueológicos e prépastagens e/ou
sistema viário vicinal; linhas de históricos; descarac-terização de
projetos agrícolas
eletrificaçào rural; grande
paisagens de significativa
de grande porte
movimentação mecanizada do relevância; conflitos étnicos com
solo; terraplanagem; instala-ções
populações indígenas
de edificações complexas (sedes,
currais, galpões, seca-deiras,
etc); exposição da superfície a
processos ero-sivos;
assoreamento da malha hídrica
vizinha; poluição agro-tóxica
85
c-Instalação de
grandes projetos
de colonização
Tipos de
região
Abertura de sistema viário
Destruição total ou parcial de
vicinal e linhas de
sítios etno-arqueológicos e
eletrificação; desmatamentos; pré-históricos; descaracterizaqueimadas; urbanização
ção de paisagens; conflitos
planejada; grande
étnicos com populações
movimentação mecanizada
indígenas
dos solos; terraplanagem de
gran-des áreas; canais de
irrigação; açudes; edificações
urbanas complexas (escolas,
hospitais,etc)
d- extrativismo
vegetal
Abertura de “picadas”;
desmatamento da cobertura
primária facilitando processos
erosivos da superfície
Destruição parcial de sítios
arqueológicos localizados no
nível da superfície; descaracterização de paisagens
naturais
Tipos de
empreendimento
e- extrativismo
mineral
Tipos de impactos ambientais
Possíveis impactos sobre o
patrimônio histórico/cultural
Destruição total de sítios etnoarqueológicos e pré-históricos;
destruição total ou parcial de
abrigos sob rocha com inscrições rupestres; destruição de
lajedos com petróglifos;
destruição total ou parcial de
monumentos naturais com
carácter simbólico para populações indígenas; conflitos
étnicos com populações
indígenas; destruição de sítios
espeleológicos de significativa
relevância paisagística
Destruição total de inúmeros
sítios arqueológicos; submersão
de lajedos com petróglifos e
abrigos com inscrições rupestres;
submer-são de monumentos
naturais como cachoeiras, barras
de tributários, etc; descaracterização de paisagens de
significativa relevância e valor
simbólico para populações
tradicionais; deslocamento
espacial de populações tradicionais e indígenas;conflitos
étnicos
f- Grandes projetos
hidrelétricos
Abertura de “picadas”; abertu-ra
de estradas vicinais; abertu-ra de
ferrovias; abalos espe-leológicos;
“crateramento” da superfície;
grande movimen-tação
mecanizada do solo;
descaracterização geomorfológica; desmatamento; desvios de
sistemas hídricos; edifi-cação de
complexos adminis-trativos;
poluição aérea e dos mananciais
Abertura de “picadas”; sistema
viário vicinal; sondagens geofísicas mecanizadas; abertura de
caixas-de-empréstimo; terraplanagem; desmatamento; desvio de grandes cursos hídricos;
inundacão de grandes áreas
ribeirinhas; erosão progressiva
das bordas do reservatório;
graves agressões à fauna e flora;
complexas instalações industriais
nos canteiros de obras;
implantação de núcleos
habitacionais; construções de
pontes sobre a rede tributária;
instalação de longas linhas de
transmissão; reflorestamento e
implantação de áreas de recreação nas margens do
86
g- Dutovias
reservatório.
Abertura de “picadas”; sistema Destruição total ou parcial de
viário vicinal; sondagens geo- sítios arqueológicos; conflitos
físicas mecanizadas; desmata- étnicos
mento integral da área do
“transect”; abertura de vala com
significativa incisão pedológica;
canteiros de obras; instalações
industriais de gera-ção de energia
Tipos de Tipos
de Tipos de impactos ambientais
Possíveis impactos sobre o
região
empreendimento
patrimônio histórico/cultural
h- Rodovias e
Abertura de “picadas”; sondaDestruição total ou parcial de
ferrovias
gens geofísicas; terraplanagem,
inúmeros sítios arqueo-lógicos;
aterros e dematamento na linha
descaracterização de
do “transect”; caixas-demonumentos naturais como
empréstimo; asfaltamento e
morros, vales, etc, com valor
cascalhamento; canteiros de
paisagístico ou simbóliobras; processos erosivos dos
co/cultural; conflitos étnicos
acostamentos e barrancos;
edificações do sistemas de apoio
e serviços permanentes ao
usuário e ao sistema; pontes e
túneis
i-Projetos de
Desmatamentos; açudes, po-ços;
Destruição parcial de sítios
desenvolvimento e
áreas de plantio; pasta-gens;
arqueológicos; ruralização do
sustentação
sistema viário; instalação de
espaço natural tradicional; deseconômica em
edificações escolares, encaracterização da arquitetura
áreas indígenas
fermarias e unidades admitradicional; destruição parcial ou
nistrativas; pistas de pouso
integral de áreas de capta-ção de
recursos naturais com potencial
de uso cultural (por ex. plantas
medicinais); integracionismo
cultural
agrícola a- áreas extensas Desmatamento; esgotamento dos
Destruição total ou parcial de
de monocultura
solos; intensa movimen-tação
sítos arqueológicos;
agrícola ou
mecânica dos solos;
descaracterização de paisagens
pastagens
assoreamento da rede hídrica;
de relevância significativa
acentuada erosão pluvial;
poluição agrotóxica dos solos e
águas; eliminação da fauna e
flora originais; instalação de
complexas edificações rurais;
açudes e canais de irrigação;
abertura de linhas de transmissão de energia; pistas de pouso.
b reflorestamento
Desmatamento da cobertura
Destruição parcial de sítios
vegetal em áreas recuperadas
arqueológicos; descaracterização
naturalmente; perturbação da
de paisagens naturais
fauna; movimentação intensa da
superfície quando do plan-tio das
mudas; erosão acen-tuada da
superfície dos solos e
87
assoreamento hídrico.
Tipos de Tipos
de Tipos de impactos ambientais
Possíveis impactos sobre o
região
empreendimento
patrimônio histórico/cultural
c- pólos regionais
Implantação de complexo
Destruição total ou parcial de
de apoio e serviços sistema viário; grandes áreas de
sítios arqueológicos;
terraplanagem; multiplica-ção de descaracterização de paisagens
vilas e povoados; linhas de
naturais
transmissão de energia; po-luição
dos mananciais
urbana
a- Grandes obras
Intensa pavimentação da
Destruição total ou parcial de
de engenharia civil
superfície; terraplanagem de
sítios arqueológicos históricos,
para insta-lação de grandes áreas; movimentação do
etno-arqueológicos e préprojetos
solo em obras subterrâneas;
históricos; descaracterização de
habitacionais,
intensa ocupação das áreas
monumentos arquitetônicos e
anéis viários,
ribeirinhas
artísticos; destruição ou descanalizações de
caracterização de paisagens
córregos, distri-tos
urbanas tradicionais (ruas,
industriais,
bairros, praças,etc)
aeroportos, centros comerciais,
etc; metrô; redes
subterrâneas de
telefonia, saneamento e energia
turística a-urbanização da Desmatamento; abertura de redes
Destruição total ou parcial de
orla litorânea
de saneamento básico; poluição
sítios arqueológicos, princisanitária; terrapla- nagem;
palmente, sambaquis; descafragilização de enracterização de paisagens
costas
naturais; “pasteurização” de
populações tradicionais, por ex.,
colônias de pescadores
b- valorização
Desmatamentos na periferia;
Destruição total ou parcial de
turística de áreas
terraplanagens; calçamentos;
monumentos históricos, artísticos
históricas e
poluição dos mananciais; ame culturais;destruição parcial ou
culturais urbanas
pliação do sistema viário;
total de sítios arqueológicos
(ex. Olinda,
instalação de complexas
Corumbá, etc)
edificações de serviço e apoio ao
turismo
c- caça/pesca e
Desmatamento parcial com
Destruição/descaracterização
ecoturismo
abertura de trilhas e edifica-ções
parcial de sítios arqueológicos
turísticas nas margens de cursos
ribeirinhos e abrigos com
fluviais; alterações em áreas
inscrições rupestres; descaespeleológicas; pertur-bação da
racterização parcial de monufauna; queimadas; lixo
mentos espeleológicos
Sendo assim, conforme o tipo de empreendimento, ocorrerá uma
alteração em menor ou maior grau na integridade dos sítios arqueológicos de uma
região. Qualquer projeto de pesquisa que pretenda ter uma abrangência espacial
extensiva, deverá considerar as variáveis acima. Qualquer síntese de conhecimento
arqueológico regional, implicará em relevar não só os monumentos mais
88
significativos, mas também os dados científicos provenientes dos sítios impactados,
independentemente do seu grau.
4- A avaliação dos impactos de empreendimentos regionais e algumas
considerações sobre medidas mitigadoras
Como já foi comentado anteriormente os critérios para definir uma região são
variáveis, bem como a extensão da mesma. Entretanto alguns projetos, devido ao seu
gigantismo, são evidentemente impactantes a nível regional. Exemplos, tais como a
Hidrovia Paraguai-Paraná, que poderá provocar danos diretos e indiretos em grandes
extensões do Pantanal, gasodutos de longa extensão, grandes barragens como Itaipu,
etc, necessariamente determinam que os projetos mitigadores planejem suas ações em
carácter regional. Nesses casos, muitas vezes, os efeitos chegam a ser transfronteriços.
Sendo assim, alguns parâmetros podem ser estabelecidos como pressupostos
para esse tipo de avaliação, a saber:
Repensar as alternativas ao modelo de desenvolvimento econômico
adotado;
Partir da idéia de que em princípio, todo e qualquer dano deve ser evitado,
e considerar a opção de alternativas para o empreendimento, ou, ao menos, opções
operacionais, por exemplo, no caso do gasoduto, desvios do “transect” quando o
mesmo incidir sobre sítios arqueológicos, no caso de barragens, rebaixamento das
cotas de inundação;
Analisar cada caso como único;
Conhecer e estudar o maior número possível de situações provocadas por
empreendimentos análogos;
A avaliação deve sempre ser produzida numa ótica multidisciplinar,
recorrendo-se e manejando-se os dados temáticos organizados pelos outros ítens
integrantes do EIA/RIMA, ou seja, de forma holística, evitando a compartimentação
do conteúdo, evitando situações do tipo, “o abastecimento energético de uma cidade é
mais importante que salvar os peixes de tal rio”, etc;
1.A seleção do ferramental metodológico deve considerar diferentes
propostas para minimizar o risco reducionista;
O conhecimento da Etno-História regional deve esclarecer a extensão das
áreas culturais e as unidades ambientais com elas relacionadas, verificando-se ainda a
ocorrência de superposições de sistemas culturais, bem como o entendimento da
dinâmica paleo-ambiental;
Os recursos disponíveis e o tempo necessário para os estudos devem ser
compatíveis com a complexidade do empreendimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AB‟SÁBER, A. Z. Bases conceptuais e papel do conhecimento na previsão de
impactos. In: Previsão de Impactos. São Paulo, EDUSP, 1994.
89
BEZERRA DE MENEZES, U. T. Arqueologia de Salvamento no Brasil: uma
avaliação crítica. Texto apresentado no Seminário de Salvamento Arqueológico.
Rio de Janeiro, SPHAN, 1988.
90
AVALIAÇÃO DE IMPACTOS AMBIENTAIS DE EMPRENDIMENTOS
URBANÍSTICOS E MEDIDAS MITIGADORAS APLICÁVEIS
Lúcia de Jesus Cardoso Oliveira Juliani
A preocupação com os recursos arqueológicos urbanos é recente. As
complexidades estruturais das áreas urbanas contribuiram, por muito tempo, para que
elas recebessem pouca atenção dos arqueólogos, pois não se acreditava nas
possibilidades de preservação desses recursos. O patrimônio edificado, ao contrário,
devido a sua visibilidade, sempre foi objeto de ações preservacionatistas.
Como reflexo direto dessa visão, com o surgimento da legislação ambiental
brasileira, principalmente da Resolução CONAMA 001/86, as atenções dos
avaliadores dos impactos ambientais têm sido voltadas, prioritariamente, para áreas
não urbanizadas, quando o componente a ser avaliado diz respeito a recursos culturais
não identificados.
Outro fator agravante é que as áreas urbanas apresentam a tendência de
possuir grande número de empreendimentos de pequeno porte, para os quais os órgãos
ambientais não exigem os Estudos de Impacto Ambiental. A Resolução CONAMA
considera, em seu artigo 2°, como empreendimentos que têm seu licenciamento
vinculado aos EIA/RIMA, entre outros, os projetos urbanísticos em áreas com mais de
100 ha ou naquelas consideradas de relevante interesse ambiental.
Surge, aqui, a necessidade de legislações específicas municipais que variem
com o porte da cidade e que sejam mais restritivas do que a Resolução CONAMA.
Papel importante desempenham, então, os planos diretores, as leis orgânicas e outros
instrumentos de planejamento e gestão.
Paradoxalmente, com o aparecimento do conceito de Arqueologia Urbana, a
cidade passa a ser compreendida como um sistema unificado e significante de
recursos materiais, loco de maiores e mais complexas ações antropogênicas, bem
preservadas no registro arqueológico (SALWEN, 1982; STASKI, 1982).
Percebe-se, entretanto, que o patrimônio arqueológico brasileiro ainda recebe
pouca atenção dos responsáveis por estudos e projetos ambientais desenvolvidos em
áreas urbanas, bem como dos próprios órgãos de gestão cultural e ambiental. O
resultado é que, na maioria das vezes, essas ações apenas contemplam o patrimônio
edificado pela sua alta visibilidade e consequente fácil percepção por parte dos
agentes envolvidos nas avaliações.
O art. 5 da Resolução CONAMA, em seu parágrafo único, define que, ao
determinar a execução do EIA o órgão competente fixará as diretrizes adicionais que,
pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas
necessárias.
Entre essas diretrizes, relacionadas nos Termos de Referência, estão os
componentes ambientais considerados relevantes para a elaboração de determinado
EIA. O patrimônio arqueológico e histórico deveria estar sempre presente nesses
termos de referência porque através desses estudos surgem as grandes possibilidades
de descoberta, reconhecimento e proposta de medidas de preservação desses recursos.
Nesse momento, surgem os desafios:
91
- O que diagnosticar como relevante, se praticamente todo o solo urbano
pode conter vestígios materiais de processos culturais passados? Desse diagnóstico
advém a avaliação de impactos, portanto a definição de critérios para o diagnóstico se
faz de fundamental importância.
- O solo urbano, em grande parte impermeabilizado, não permite sua leitura
direta. Como diagnosticar?
A nosso ver, a aplicação de critérios de significância arqueológica,
associados ao grau de preservação do solo urbano, definiria o potencial arqueológico,
possibilitando o diagnóstico de uma área (JULIANI, 1996b).
O cruzamento desses dados com o risco arqueológico, definido a partir das
intervenções propostas pelo empreendimento em estudo, permitiria a identificação,
valoração e interpretação dos prováveis impactos.
As medidas mitigadoras aplicáveis em áreas urbanizadas, são melhor
viabilizadas se desenvolvidas através de programas, na fase de implantação do
empreendimento. É nesse momento, em que uma nova remodelação da paisagem
urbana exige a demolição do já existente, que o solo pode ser acessado.
Entre as medidas mitigadoras para os recursos culturais a serem afetados por
um empreendimento proposto, os programas desenvolvidos com a participação da
comunidade local na valoração dos bens e no desenvolvimento das ações, mostram a
possibilidade de melhor preservação na fase de operação.
SIGNIFICÂNCIA ARQUEOLÓGICA
A aplicação de critérios de significância arqueológica 9 na fase de diagnóstico
possibilita a previsão dos impactos e o planejamento de ações apropriadas de
gerenciamento dos recursos arqueológicos.
Para que esses critérios sejam utilizados de maneira eficaz na gestão dos
recursos arqueológicos, é necessário que se proceda à identificação de todos os
aspectos de significância possíveis, de maneira que se possa prever todos os impactos
e planejar ações apropriadas de gerenciamento.
A avaliação de significância é fundamental para a pesquisa arqueológica,
pois influencia as decisões de quais sítios pesquisar e dos tipos de dados que se deve
coletar. Do mesmo modo, nos planos de gerenciamento arqueológico, auxilia nas
decisões (de preservar, alterar ou destruir recursos culturais) que se baseiam no valor
dos recursos X outras considerações do planejamento.
Embora a importância de um recurso arqueológico possa variar de acordo
com os interesses do pesquisador é imperativo que os arqueólogos envolvidos na
gestão dos recursos culturais avaliem significância além de seus interesses
profissionais imediatos. Faz-se importante, também, que reconheçam que mesmo
sítios pequenos, de superfície e perturbados podem ser fontes de dados arqueológicos
significativos e não devem ser desconsiderados.
9
Conceito altamente discutido pelos arqueólogos norte-americanos, por definir elegibilidade de sítios
para o National Register of Historic Places - NRHP, segundo seu valor informativo (UTLEY, 1973).
92
Fica claro, portanto, que só se pode avaliar o valor de bens arqueológicos
através da formulação de um conjunto completo de questões de pesquisa (MORATTO
& KELLY, 1978).
McMANAMON (1990) utiliza uma abordagem de modelagem em
levantamento em escala regional como auxílio para determinar significância.
Discutindo que a frequência é um aspecto importante na consideração de significância
de bens arqueológicos individuais, aponta o uso do modelo para determinar a
frequência de sítios por tipo, num exemplo de como levantamentos visando
gerenciamento de recursos culturais, modelagem e determinações de significância
podem ser mesclados.
SMITH (1990) sugere a utilização de significância de contexto, isto é, do
modo como um sítio se relaciona com um sistema social mais amplo. Ele defende a
elaboração de site surveys para a abordagem de um sítio individual em termos de suas
associações históricas, pois uma vez que o contexto histórico de um sítio é claramente
compreendido, seu potencial informativo para questões relacionadas àquele contexto
pode facilmente ser definido em termos não ambíguos.
As categorias de significância mais utilizadas pelos arqueólogos norteamericanos e que vêm gerando altas discussões e ampla bibliografia a respeito
(DIXON, 1978; FOWLER, 1982; GLASSOW,1977; HICKMAN, 1978; LEES, 1990;
McMANAMON, 1990; RAAB, 1977; SCHIFFER & GUMERMAN, 1978 e SCOTT,
1990, entre outros) são apresentadas a seguir:
Significância histórica - Um recurso cultural é historicamente
significante se ele pode ser associado com um evento ou aspecto individual
específico da história (SCOVILL et al., 197210 cf. MORATTO & KELLY,
1978), ou, de maneira mais ampla, se ele pode fornecer informação a
respeito dos padrões culturais durante o período histórico.
Segundo DEETZ (197711, cf. MORATTO & KELLY, op cit.), um bem que
pode fornecer informação sobre a interação social histórica, o uso do espaço ou sobre
atividades econômicas seria significante. Portanto, o valor de bens históricos depende
principalmente de sua representatividade de padrões culturais e da maneira como eles
podem ser usados para estudar esses padrões (HICKMAN, 1978).
Como as cidades concentram pessoas e ações, muitas facetas do passado
humano de sociedades complexas estão aí melhor representadas. A maior
significância histórica do ambiente urbano relaciona-se ao entendimento de sua
própria evolução, apesar de que tendências históricas como imigração e assimilação,
evolução dos sistemas de transporte e da tecnologia de construção podem ser
considerados significantes (STASKI, 1982).
Apesar da geografia urbana ter desenvolvido modelos de evolução urbana
assumindo processos históricos como causas, estes apresentam certas limitações por
serem baseados nas condições urbanas atuais. A arqueologia, através do estudo dos
registros materiais do passado que refletem o desenvolvimento urbano, pode auxiliar
no entendimento de como ocorreram esses processos.
10
SCOVILL, D.; GORDON, G. & ANDERSON K. - Guidelines for the preparation of statements
of environmental impact on archaeological resources. Tucson: Western
Archaeological Center, U.S. National Park Service, 1972.
11
DEETZ, J. - In small things forgotten. Garden City: Anchor Press, Doubleday, 1977.
93
Significância científica - “A significância científica envolve o potencial
do uso de recursos culturais para o estabelecimento de fatos e
generalizações confiáveis sobre o passado (MORATTO & KELLY, 1978)
ou sobre as relações entre cultura material, comportamento humano e
cognição (STASKI, 1982). Como os vestígios arqueológicos permitem o
estudo tanto de culturas como de ambientes antigos, a arqueologia pode
ser significante para o avanço tanto das ciências sociais quanto das
naturais” (MORATTO & KELLY, op. cit.).
Os recursos arqueológicos são significantes para as ciências sociais porque
constituem uma base de dados única e não renovável para reconstrução do passado
cultural e para testar proposições sobre o comportamento humano.
No contexto da gestão de recursos culturais de áreas que envolvem risco eminente,
o arqueólogo deve evitar que sua avaliação quanto à significância científica seja
afetada por seus interesses de pesquisa, para que informações relevantes à arqueologia
não sejam perdidas.
Os recursos culturais materiais apresentam-se perturbados nas áreas urbanas,
devido ao uso intensivo e contínuo do solo. A avaliação da natureza e da quantidade
de alterações ocorridas pode fornecer contribuição significante tanto para a
compreensão do fenômeno urbano quanto para a apreciação do potencial da pesquisa
arqueológica em áreas urbanas (STASKI, 1982).
Significância étnica - “Uma entidade arqueológica que tem
importância religiosa, mitológica, social ou outra especial para uma
população distinta é reconhecida como etnicamente significante”. A
significância étnica envolve a importância de certos recursos culturais
para a história e integridade de minorias étnicas (STASKI, 1982).
A percepção intensificada de muitos grupos pelo seu patrimônio cultural, revelado
em sítios arqueológicos, levou a arqueologia norte-americana a dar especial atenção à
conservação desses vestígios.
Recentemente, uma nova atitude vem emergindo, em diversos campos do
conhecimento, nos estudos sobre as sociedades urbanas: aquela que enfatiza a sua
riqueza e diversidade multicultural.
Partindo da premissa de que padrões regulares e contínuos de comportamento
sóciocultural deixam impressões materiais, podemos ser otimistas quanto às
possibilidades de que a arqueologia possa contribuir para a compreensão das
diversidades e similaridades das várias culturas e etnias formadoras da nossa
sociedade atual (JULIANI, 1995).
O ambiente urbano é representado pela concentração de muitos grupos étnicos que
necessitam desenvolver maior resistência na afirmação de sua identidade cultural,
devido ao intensivo e constante contato entre eles. Em tais situações, estes grupos
estão-se movendo juntos, reagindo e ajustando-se uns aos outros, ao mesmo tempo
que caminham através de seu mundo social. Como resultado, os símbolos materiais
de etnicidade e a cultura material representativa do comportamento étnico são mais
visíveis na cidade.
Um dos resultados mais significantes dos trabalhos desenvolvidos na arqueologia
histórica americana, com ênfase em sociedades específicas, tem sido a documentação
de grupos historicamente excluídos em sua própria cultura, fornecendo imagens
94
alternativas de identidade nacional daquelas fornecidas pela história escrita. O estudo
das raízes da cultura negra americana é um exemplo (DEAGAN, 1982).
A literatura arqueológica demonstra que a linha de questionamento sobre
heterogeneidade social e étnica vem sendo considerada como de alta relevância para
os estudos de arqueologia urbana e para definir a significância de sítios históricos
visando gerenciamento e conservação, infuenciando na escolha dos sítios a serem
pesquisados e dos dados a serem coletados.
MORATTO & KELLY (1978), discutindo as estratégias utilizadas pelos
arqueólogos americanos para definir a significância de um sítio arqueológico visando
medidas de preservação, realçam a importância das relações entre a arqueologia e a
sociedade atual, através de procedimentos que alcancem as necessidades e desejos do
público.
Ressaltam que, em circunstâncias em que a aculturação foi severa e o saber
tradicional foi esquecido, a arqueologia pode fornecer o único acesso ao patrimônio
de um grupo étnico.
O material disponível para pesquisa documental sobre nossa sociedade, via de
regra, conta a história dos vencedores e quando aborda a questão desses grupos
minoritários, o faz através da visão ideológica daqueles que estavam servindo a seus
próprios interesses e propósitos. Muitos grupos étnicos tem sido tão excluídos da
história escrita e dos conceitos tradicionais de identidade nacional que seu passado
cultural frequentemente está mais preservado na cultura material enterrada no solo do
que nos documentos.
SMARDZ (1995) nos mostra que o patrimônio enterrado na cidade oferece muitas
oportunidades para explorar bairros étnicos e edifícios caracterizados como
monumentos ao trabalho duro e ao desejo de melhoria de vida que sempre
caracterizaram as populações imigrantes.
Outro exemplo pode ser tomado do material encontrado nas escavações
arqueológicas nas sedes rurais coloniais, em São Paulo: a miscigenação entre colono e
índio, formando um elemento especial, o mameluco, que segundo os historiadores, é o
responsável por um modo de ser tão diferenciado do paulista em relação às outras
regiões da colônia, se traduz na cultura material resgatada nesses sítios,
principalmente na cerâmica (JULIANI, 1995).
Significância pública - A discussão de significância pública de sítios
arqueológicos inclui as possibilidades de seu uso na educação sobre os
padrões de comportamento no passado, sobre a maneira como eles podem
ser estudados e sobre os benefícios derivados para o público no estudo e
conservação de recursos arqueológicos. O objetivo é fazer a arqueologia
tanto pública como publicamente relevante.
SMARDZ (1995) nos mostra uma experiência interessante em Toronto, que
demonstra como a arqueologia pode contribuir para a compreensão do
multiculturalismo de uma população urbana, na valoração do patrimônio multicultural
e atuar politicamente no sentido de influenciar uma população etnicamente diversa.
O Departamento de Educação de Toronto desenvolve uma política de compreensão
popular e a apreciação sobre os grupos culturais que auxiliaram na construção da
cidade, visando dar à população um senso de propriedade e valor para os vestígios de
95
culturas passadas que são escavados e formar uma geração que considere a
arqueologia como parte habitual da vida de sua cidade.
Os projetos arqueológicos são mais visíveis em áreas urbanas, apresentando,
portanto, maiores possibilidades de contato com o público. Exercem importante papel
político porque a percepção pública leva à valoração e consequente suporte e reforço à
preservação dos recursos culturais.
PRESERVAÇÃO DO SOLO URBANO
O potencial arqueológico de uma área pode ser definido como a
probabilidade de ocorrência de vestígios culturais materiais que apresentem
significância para um dado contexto.
Diversos fatores associados concorrem para a existência dessa probabilidade.
A nosso ver, os mais importantes deles são representados pelos contextos ambiental
e histórico e pelo grau de preservação do solo. Este último é determinante. Mesmo
que uma área possua potencial ambiental e/ou histórico para assentamento humano, se
o solo não foi preservado, é muito baixa a possibilidade de que vestígios
remanescentes de uma ocupação pretérita possam ser encontrados.
As cidades representam, acima de tudo, grandes assentamentos humanos.
Assumindo que a escolha de um sítio para o assentamento urbano tenha levado em
conta suas características ambientais, podemos afirmar que, de uma maneira geral, o
contexto ambiental dessas áreas aponte para a existência de potencial arqueológico. A
própria existência da cidade define seu contexto histórico.
O potencial arqueológico de porções diferenciadas das áreas urbanas ou de
qualquer tipo de espaço geográfico pode variar quanto aos seus contextos histórico e
ambiental, e também com relação aos diferentes padrões de assentamento, em uma
escala temporal.
Mesmo assumindo que a análise destas variações é fundamental para que se
avalie potencial arqueológico, nos concentraremos aqui na discussão do fator grau de
preservação do solo urbano.
Para tal, utilizar-nos-emos de um sistema classificatório de uso do solo
adaptado de STASKI (1982), condizente com o contexto de São Paulo, objeto maior
de nosso interesse (Tabela 1).
Para esse autor, a maior preocupação dos profissionais que atuam na
preservação de recursos arqueológicos em áreas urbanas está relacionada à natureza
dos processos urbanos e seus efeitos sobre o registro arqueológico.
Definindo a cidade como local de grandes e numerosas alterações do solo,
considera as características físicas (os usos atuais do solo e os materiais resultantes
desses usos) para avaliar a possibilidade de ocorrência e o grau de preservação do
registro arqueológico.
Em seu sistema de classificação, utiliza categorias amplas de uso e ocupação
do solo, desenvolvidas para o planejamento urbano. As de maior interesse para o
contexto deste trabalho são: edifícios unifamiliares, edifícios multifamiliares, áreas
comerciais, industriais, de uso público, ruas e vazios urbanos.
96
a) Edifícios unifamiliares - a maior estrutura presente neste tipo de
uso é a casa. Pode apresentar espaços não ocupados por construções, o que
parece variar com a classe social a que pertence (bairros residenciais em
áreas com população de maior poder aquisitivo tendem a manter maiores
parcelas de áreas não edificadas).
Este tipo de solo normalmente não apresenta perturbações significantes para
qualquer tipo de registro arqueológico, uma vez que as modificações da superfície não
são grandes neste processo de construção.
Portanto, os bairros recentes com este tipo de uso do solo são propícios à
ocorrência de vestígios pré-históricos e os bairros antigos, que mantiveram seu uso,
também mantém seu próprio registro arqueológico.
Em ambos os casos, a preservação do solo arqueológico é considerada
excelente.
Percebe-se, entretanto, que a prática recente de loteamentos e construção de
condomínios residenciais foge um pouco a essa regra. Como são planejados para um
máximo aproveitamento do solo, podem utilizar serviços de terraplanagem para
otimizar sua implantação, gerando uma alteração topográfica do terreno, que é um
grande fator de destruição do solo original. Por outro lado, por ocuparem grandes
áreas, geralmente são localizados em áreas de expansão urbana, que até sua
implantação apresentavam solos preservados (não urbanizados).
Apresentam, portanto grau de preservação variável, dependendo dos
impactos que tenham sido gerados sobre a superfície original do terreno.
b) Edifícios multifamiliares - as estruturas presentes são
representadas por edifícios residenciais, onde o uso do solo é intensivo e
são poucos os espaços não construídos.
Quanto maior o edifício, mais profundas são suas fundações e, portanto, mais
destrutivas. De maneira geral, o grau de preservação do registro arqueológico é baixo.
c) Áreas de uso comercial - áreas com prédios e fundações de
relativo porte, com poucos espaços não edificados e com subsuperfície, via
de regra, perturbada.
Como os distritos comerciais geralmente localizam-se no centro espacial da
cidade, seu baixo potencial de preservação do solo pode ser compensado pelo seu
potencial de fornecer dados sobre os períodos históricos da ocupação urbana.
A prática recente de localização de centros comerciais fora dos distritos
centrais, como os shopping centers, altera um pouco esse padrão.
Apesar de serem construções que alteram substancialmente o subsolo,
possuem grandes áreas livres, representadas pelos estacionamentos de superfície, que
podem manter uma boa preservação do registro arqueológico.
Embora STASKI (1982) considere que este uso do solo urbano possua grau
de preservação de vestígios arqueológicos geralmente baixo, no nosso contexto
podemos considerá-lo variável.
Tomando os centros comerciais tradicionais da cidade de São Paulo como
exemplo, percebemos que os edifícios destinados a tal uso não se diferenciam, em
porte, daqueles utilizados como residências. Os centros comerciais mais modernos,
97
principalmente aqueles caracterizados como centros econômicos (como a região da
Avenida Paulista), mais se aproximam da categoria definida por esse autor.
Consideramos, portanto, essas áreas com grau de preservação variável,
dependendo de sua especificidade.
d) Áreas de uso industrial - locais onde matérias primas são
exploradas ou processadas. Essas áreas são as de maior grau de variação da
intensidade de uso do solo e de perturbação do registro arqueológico.
Variam desde áreas com solo não perturbado (reservas industriais) até
completamente destruído (áreas de exploração de recursos minerais).
Os distritos industriais antigos são áreas de alto potencial para a arqueologia
industrial (tanto os de processamento como os de exploração de matérias-primas).
Os distritos industriais recentes apresentam grau de preservação variável,
dependo do tipo de uso industrial. Esse grau de preservação do solo é inversamente
proporcional ao risco de destruição de vestígios arqueológicos (que é evidente nas
reservas industriais).
e) Áreas de uso público - incluem todos os locais a que a
população em geral tem acesso (áreas de lazer) e também as de uso semipúblico (escolas). As ruas foram classificadas em uma categoria à parte,
devido à sua configuração espacial diferenciada. A maior parcela dessas
áreas é de propriedade pública.
Áreas de lazer - são representadas por parques, jardins e praças públicas.
São áreas originalmente não ocupadas, destinadas, através de planejamento
público, a esses usos. Por essa razão, mantém um alto grau de preservação do solo e
não apresentam risco de destruição, por serem, via de regra, consideradas áreas de
preservação ambiental.
Escolas - apresentam áreas edificadas de porte, bem como grandes áreas não
construídas, destinadas ao lazer e ao esporte.
O grau de preservação do solo é variável mas, se possuirem potencial
arqueológico, podem apresentar alta significância para propósitos educacionais.
f) Ruas - representam um tipo especial de solo de uso público,
singulares em sua distribuição e ocupando uma porção considerável da
paisagem urbana. Com exceção das grandes vias expressas, cuja construção
gera grandes alterações na superfície do solo (serviços de terraplanagem),
as ruas apresentam pouca perturbação do solo original. Essa perturbação
está condicionada à utilização de seu subsolo por serviços de infraestrutura
urbana (dutos e cabos elétricos).
Apresentam grau de preservação do solo de médio a alto.
g) Vazios urbanos - classificadas como áreas não utilizadas para
qualquer finalidade.
São representados por parcelas remanescentes na malha urbana, por áreas
que não são propícias à ocupação (devido às suas características ambientais) e pelas
reservas urbanas (vazios temporários, localizados especialmente nas áreas de
expansão urbana, reservados para especulação imobiliária).
98
Como essas áreas permanecem sem alterações em suas características
originais (com exceção das não propícias à ocupação), seu solo apresenta excelente
grau de preservação para vestígios arqueológicos. Por outro lado, como a demanda
urbana é crescente, grande parcela destas áreas será, provavelmente, utilizada.
Portanto, elas podem ser consideradas de alto risco arqueológico.
Mesmo as áreas não propícias à ocupação, quando localizadas em áreas de
ocupação histórica, podem conter vestígios de antigos lixões.
f. Áreas rurais - são as parcelas pertencentes ao município ainda
não alcançadas pela malha urbana. Embora STASKI (1982) não considere
este tipo de uso em sua classificação, o consideramos de extrema
importância no nosso caso, visto que São Paulo ainda mantém parcela
considerável de seu território como de uso rural, especialmente em seu
extremo sul.
Estas áreas apresentam solos bem preservados, usados principalmente para
agricultura, podendo ser definidos como de alto grau de preservação. Uma parcela
permanece sem uso, ainda com vegetação original.
Embora a legislação de uso e ocupação do solo não permita a sua destinação
para fins urbanos, esta área vem sendo paulatinamente ocupada por grandes
loteamentos irregulares, sem planejamento, que geram grandes problemas ambientais
para o município. São, portanto, áreas de alto risco arqueológico, principalmente se
considerarmos que é aí que ocorre a maior probabilidade de se encontrar vestígios de
uma ocupação pré-colonial do território, já que elas ainda mantém um bom grau de
visibilidade.
99
GRAU DE PRESERVAÇÃO DO SOLO URBANO
Categorias de uso e
ocupação do solo
Edifícios unifamiliares
Estruturas presentes
Grau de
perturbação
do solo
baixo
casa
espaços não edificados
médio a alto
loteamento
espaços não edificados
Edifícios
alto
edifícios residenciais
multifamiliares
poucos
espaços
não
construídos
Áreas de uso
edifícios de porte
alto
comercial recente
estacionamentos
baixo
Centros
comerciais edifícios de pequeno porte
baixo
antigos
Áreas de uso
áreas de exploração de alto
industrial
recursos minerais
distritos industriais
variável
reservas industriais
baixo
Áreas de lazer
baixo
parques
(áreas de preservação
jardins
ambiental
praças
Escolas
edificações de relativo variável
(alta significância para
porte
propósitos
grandes
áreas
não
educacionais)
edificadas
Ruas
infra-estrutura urbana
médio a
(dutos e cabos elétricos)
baixo
Vazios urbanos
parcelas remanescentes na baixo
malha urbana
reservas urbanas
Áreas rurais
baixo
atividades agrícolas
vegetação original
loteamentos irregulares
variável
Preservação do
solo
arqueológico
excelente
variável
baixo
baixo
alto
alto
baixo e nulo
variável
alto
alto
variável
médio a alto
alto
alto
variável
Tabela 1 (adaptada de STASKI, 1982)
100
PESQUISA E MONITORAMENTO
Um exemplo de metodologia utilizada em área urbana coberta por ruas
pavimentadas e edificações pode ser extraído de OSTROGORSKY (1987), para a
cidade de Seattle (USA). Esse autor utilizou uma abordagem que considerou a
correlação entre alteração física e social do terreno, em avaliação de potencial
arqueológico de área que seria afetada pela construção de um corredor subterrâneo
para ônibus (The Downtown Seattle Transit Tunnel Project).
A evolução urbana de Seattle foi marcada por um grande nivelamento da
topografia original (documentado historicamente), através do qual o traçado urbano
original foi destruído por cortes ou coberto com espessas camadas de aterro.
Por tratar-se de área edificada, os métodos tradicionais de prospecção
arqueológica (verificação de superfície e sondagens) se mostraram impraticáveis.
Assim, em sua avaliação, OSTROGORSKY utilizou dados obtidos em prospecções
geotécnicas para desenvolver perfis de solo que revelaram as áreas aterradas que
poderiam conter recursos arqueológicos associados.
Segundo DICKENS & CRIMMINS (1982), o levantamento e monitoramento
arqueológico de obras de impacto ambiental requer o desenvolvimento de um plano
multiestágio e multidisciplinar (Tabela 2). Essa metodologia, aplicada em São Paulo
no monitoramento arqueológico da área afetada pelas obras de prolongamento da
Avenida Faria Lima, mostrou-se de alta eficiência (JULIANI, 1996a, 1996b).
Num primeiro estágio, o de pré-construção, seria realizada pesquisa
documental e de história oral. Então, hipóteses seriam levantadas para elaboração do
projeto de pesquisa. Ainda nesta fase, um levantamento de campo, identificando
estruturas visíveis (geralmente arquitetônicas) com realização de sondagens em
possíveis áreas não edificadas, auxiliariam no escopo do projeto.
Na segunda fase, o estágio de demolição e construção, seriam desenvolvidas
as ações de monitoramento e mitigação. Áreas já ocupadas que sofrem novas
interferências precisam antes ser demolidas. O acompanhamento da demolição pode
revelar estruturas sobrepostas e é importante para que possíveis estruturas enterradas
não sejam danificadas pelas máquinas.
Nesta fase, é importante que se obtenha um intervalo entre a demolição e a
construção, para realização de testes arqueológicos no terreno e aplicação de técnicas
arqueológicas para coleta de materiais e registro de estruturas. É ainda nesta fase que
se deve decidir pela possível preservação de estruturas evidenciadas, dependendo de
sua significância e das possibilidades oferecidas.
No estágio pós-construção, seriam realizados os estudos complementares à
pesquisa e a elaboração de relatório.
101
EMPREENDIMENTOS URBANÍSTICOS
Plano Multiestágio
FASE
AÇÕES
PRÉ-IMPLANTAÇÃO
(Diagnóstico e Avaliação
de Impactos)
IMPLANTAÇÃO
(Medidas
mitigadoras:
monitoramento e
resgate)
PÓS-CONSTRUÇÃO
Pesquisa documental
História oral
Levantamento de campo
– identificação de estruturas visíveis
(geralmente arquitetônicas)
– sondagens em áreas não edificadas
(dependem da possibilidade de acesso)
Levantamento de hipóteses
Aplicação de critérios de significância
Avaliação dos impactos arqueológicos
Elaboração de programas de monitoramento e resgate
DEMOLIÇÃO
Acompanhamento da demolição
– pode revelar estruturas
sobrepostas
– evita que as mesmas
sejam danificadas
PRÉCONSTRUÇÃO
Testes no terreno - aplicação de
técnicas arqueológicas
– identificação e resgate de
materiais arqueológicos
– registro de estruturas
– decisão sobre possível
preservação de estruturas
evidenciadas (depende da
significância e/ou das
possibilidades oferecidas)
Estudos complementares à pesquisa
Elaboração de relatório
Tabela 2 (adaptada de DICKENS & CRIMMINS, 1982)
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme SALWEN (1982), levantamentos compreensíveis, identificando
locais prováveis e delimitando áreas “sensíveis”, tornaram-se a chave para o
planejamento, para a preservação histórica e para a pesquisa arqueológica urbana.
Esses levantamentos também fornecem os contextos que fazem possível avaliar a
significância de manifestações arqueológicas individuais.
Desta maneira, caberia aos órgãos de gestão do patrimônio cultural, através
de uma política de ação preventiva, definir critérios gerais para avaliação da
significância arqueológica das áreas urbanas. Caberia a eles, ainda, desenvolver
instrumentos que possibilitem uma avaliação mais detalhada da significância e do
potencial arqueológico de áreas urbanas específicas. Os cadastros, os inventários de
áreas potenciais, o zoneamento e as cartas arqueológicas constituem ferramentas
indispensáveis para o diagnóstico e avaliação de impactos em áreas sob risco
arqueológico (CALDARELLI, 1992 e 1993; JULIANI, 1993, 1994/95 e 1996b).
A partir dessas diretrizes gerais, os responsáveis por projetos em áreas
específicas da cidade terão melhores condições de avaliação, com base em
conhecimentos prévios desenvolvidos para um contexto mais amplo.
Torna-se ainda fundamental que investimentos sejam realizados na
percepção pública dos recursos arqueológicos. A significância pública pode exercer
papel relevante na reversão da visão dos empreendedores e órgãos de gestão
ambiental, que ainda consideram as áreas urbanas como de baixo potencial
arqueológico.
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103
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105
DEBATE
Coordenadora: Dra. Tania Andrade Lima - Museu Nacional/UFRJ
Relator: Marcos André Torres de Souza - IGPA/UCG
Antecedendo os debates, falou o Sr. Damião Maciel Guedes, representante
enviado oficialmente ao simpósio pelo Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos
Hídricos e da Amazônia Legal, para expor as alterações que estão sendo propostas
no Sistema de Licenciamento Ambiental, com vistas a tornar mais eficiente a atuação
dos órgãos de meio ambiente. Sugeriu-se que as conclusões do simpósio sejam
incorporadas às discussões que vêm-se desenvolvendo no âmbido do Ministério.
Tania Lima - O representante do Ministério Público da Paraíba, Glauberto Bezerra
solicita uma intervenção.
Glauberto Bezerra - Sobre a iniciativa do ilustre professor do Mato Grosso do Sul,
eu gostaria de fazer uma ponderação. No que diz respeito ao Patrimônio Cultural e aos
bens arqueológicos, a Constituição, no seu artigo 216, constitui como bem da União
que tem de ser preservado, e o artigo 20 da mesma carta magna, da Constituição
Cidadã, fixa indelevelmente que Patrimônio Arqueológico é bem da União. Toda
legislação infra-constitucional também referenda exatamente a defesa desses bens
arqueológicos e também a Resolução n° 1 do CONAMA, que foi incorporada pela
Constituição Federal, alarga, inclusive, seu contexto. Então, a interpretação tem de ser
extremamente alargada, mesmo que não tenha os termos tecnologia, hidrovia ou
quaisquer outros termos. Nós conversávamos há pouco que qualquer supermercado
que venha a ser construído em um sítio de preservação que se saiba e que possa ter um
impacto na área ambiental e arqueológica ou cultural tem que contar com a presença
do arqueólogo. Veja bem, para instrumentalizar isso aí, o povo, sem nenhum custo
processual, pode e deve acionar a instituição pública, no sentido de devolver a
construção ou alguma construção que venha impactar. O artigo 5 da Constituição,
inciso 73, fala da ação popular, que é gratuita, e o cidadão deve e pode tentar mais,
muito mais do que isso. Nós temos conseguido algum sucesso no estado da Paraíba
nesse âmbito, exatamente pela união dos organismos e das instituições. Aqui no caso,
nós aconselhamos, em função da nossa experiência, a união dos conselhos e, como
todos nós somos formadores de opinião, tentar fazer com que haja aglutinação das
instituições não governamentais nesse sentido. Fiquei feliz também com a iniciativa
da professora no sentido de que nem precisa que haja tombamento de uma
determinada área para que essa área possa e deva ser preservada juridicamente. Em
João Pessoa, nós temos o ponto mais oriental das Américas e essa área é considerada
pela população como bem histórico, patrimônio ambiental. Pretende-se construir e
edificar naquela área e, mesmo não estando tombado legalmente e com todo processo
concluído, nós conseguimos, judicialmente, impedir construção na área. Se em Roma
se diz habemos Papa, no Brasil se diz habemos Legis. Leis nós temos à vontade. O
importante então é instrumentalizá-las, é usa-las contra aqueles que não respeitam o
cidadão por inteiro. Muito Obrigado.
106
Gilson Martins - É muito gratificante saber que o Ministério Público, através de seus
agentes regionais, tem dado esse salto de qualidade na sua consciência do patrimônio
histórico. Apenas queria fazer um esclarecimento, não é nem a título de retificação e
sim de retomar um pouco a minha fala que, talvez por falha minha, não tenha sido
clara. Quando eu disse que existem lacunas ou omissões na legislação do CONAMA,
eu estava refletindo sobre isso por causa da seguinte preocupação: a partir do
momento que se conhece e publica a ciência de um sítio arqueológico em algum
lugar, realmente não há dúvida de que a Constituição, como lei maior, já protege ou
pelo menos nos dá o devido suporte legal para executar alguma ação protecionista. A
minha preocupação durante a exposição era numa outra possibilidade: é quando o
empreendimento não está previsto no elenco citado na legislação CONAMA e,
portanto, não citado, o empreendedor pode se sentir à vontade para dar início à obra,
fazê-la sem que a área possa ser conhecida arqueologicamente. Eu quero dizer que
pode haver situações em que não se sabe da existência do sítio arqueológico e, não
sendo pedido o EIA/RIMA, não se vai saber nunca e, depois do empreendimento
concluído sobre o sítio arqueológico, talvez, nunca mais se saiba mesmo. Então é
importante aumentar o espectro de abrangência do texto legal, justamente para
prevenir estas situações.
Não precisa ser só um grande empreendimento, às vezes um pequeno
empreendimento como um supermercado, um posto de gasolina pode estar atingindo
um desses sítios de grande significação científica e patrimonial. Então, minha
preocupação é que esse tipo de obra, como não está incluída na lei, o executante pode
fazê-la sem pedir uma autorização, um reconhecimento prévio se existe ou não sítio
arqueológico. A minha idéia é que talvez, quando se faz uma solicitação de licença
para uma construção qualquer, ou uma reforma de um edifício, de um domicílio
urbano e se faz aquela licença na Prefeitura, que existisse algum dispositivo de
verificação se nesse lugar poderia ter ou não algum sítio arqueológico. Se eu sei que
tem o sítio, eu sei que não precisa estar no CONAMA, basta se basear na
Constituição. Agora, quando não se sabe se tem o sítio, e o CONAMA não pede que
esse tipo de empreendimento apresente o EIA/RIMA, a grande função do estudo do
impacto ambiental, podemos chamar também de diagnóstico, é fazer vir à tona à
existência ou não do sítio arqueológico. A partir do momento em que o EIA é
elaborado, ele detecta a possibilidade de ter o sítio ou não; por isso, eu acho que ele é
fundamental, mesmo que a lei superior prescinda dele neste caso. Então, minha
preocupação vai um pouquinho além; são esforços comuns no sentido de aperfeiçoar e
atingir os mesmos objetivos.
Lucia Juliani - Eu só queria complementar, colocando que instrumentos de
planejamento e medidas preventivas devem ser utilizados para que isso não aconteça.
Na verdade, só podemos recorrer ao ministério público se um sítio é conhecido na
área de intervenção de uma obra de menor porte. A construção de um supermercado,
por exemplo, só vai mostrar que o sítio existe na hora que as obras começarem. O
órgão municipal de preservação pode adotar medidas preventivas através do
levantamento de áreas potencialmente arqueológicas, utilizando critérios de
significância etc e tal. Esse levantamento da cidade poderia estar definindo áreas mais
sensíveis, áreas de maior probabilidade de ocorrência de vestígios arqueológicos, que
seriam objeto de legislações mais restritivas. Por exemplo, o zoneamento. A Lei
Orgânica do Município de São Paulo, em um de seus artigos, diz que as obras que
ocorrerem em sítios arqueológicos devem ser monitoradas e acompanhadas por
arqueólogos. Na instrução desse artigo, pretendemos substituir o termo “sítios
107
arqueológicos” por “áreas de interesse ou de potencial arqueológico”, a serem
definidas pelo órgão de preservação do patrimônio cultural municipal; serão utilizados
critérios de significância para definir essas áreas. Seria uma maneira de tentar resolver
essa questão. Não se faz necessariamente a exigência de um EIA para uma área tão
pequena, o que oneraria demais o proprietário do empreendimento, mas algo
especificamente direcionado ao patrimônio arqueológico.
Tania Lima - Passamos a palavra à representante do Ministério Público do
Amazonas, Maria José da Silva Nazaré.
Maria Nazaré - Em primeiro lugar, eu quero cumprimentar os organizadores do
evento pelo brilhantismo da palestra. Eu escrevi a minha questão, que diz que todo
advogado que pede um aparte faz um discurso à parte. Então, para fugir disso e dar
chance a todos que façam seus questionamentos, eu redigi a pergunta e dirigi para a
doutora Solange e acho que ela é abrangente a todos na mesa.
Pela Resolução n°1/86 do CONAMA, quem analisa e determina a execução ou
não do estudo prévio do impacto ambiental (RIMA) é o Órgão Estadual do Meio
Ambiente, que também é um Órgão licenciador, o que se encontra citado logo no
parágrafo único do artigo primeiro (..) Pelo posicionamento da mesa, qual seria o
embasamento legal para o IPHAN participar desse licenciamento, em discordância
aos licenciamentos concedidos pelo Órgão Estadual do Meio Ambiente? Essa é a
questão para o debate.
Eu deixo como sugestão, talvez como advogada e promotora de justiça, aos
técnicos e especialistas na área, que fosse incluído no documento final que sairá desse
simpósio, aproveitando a informação do representante do Ministério do Meio
Ambiente, que se destinasse um tópico para rever a questão do patrimônio históricocultural, de uma forma geral, na fase de licenciamento. Pela resolução do CONAMA,
só o órgão estadual pode exigir o estudo prévio de impacto ambiental, quando outros
órgãos como o IPHAN, que é o órgão administrativo que analisa essas questões, ficam
totalmente de fora. Entretanto, nós sabemos que, nos órgãos estaduais, a maioria das
questões são sucateadas e, quando muito, a equipe tem engenheiro florestal, biólogo,
engenheiro civil e um químico. Desconheço se tem arqueólogo.
Solange Caldarelli - Respondendo à questão da Professora Maria José da Silva
Nazaré, eu gostaria de dizer que, na verdade, a Resolução CONAMA 01/86 abre a
possibilidade de que o arqueólogo participe desde o início do processo de
licenciamento, o que não significa que ele esteja sendo chamado efetivamente. A
participação do IPHAN neste processo parece-me ser clara. Eu não posso fazer
pesquisa arqueológica se o IPHAN não autoriza. Então, a inter-relação IPHAN e
órgão ambiental (muitas vezes o órgão ambiental não tem isso claro) está fixada em
lei. Para verificar o interesse arqueológico, a relevância arqueológica de uma área que
vai ser impactada, é necessária a autorização do IPHAN. O IPHAN é uma instituição
que está diretamente interessada neste processo e que pode intervir junto ao órgão
licenciador, o que não quer dizer que se esteja fazendo uso sempre dessas
possibilidades, mas elas estão previstas.
Quanto ao documento final, essa questão já foi já prevista.
Glauberto Bezerra - Só para complementar, a portaria n° 7 do IPHAN diz que o
procedimento necessário de solicitação para pesquisa é o seguinte: o pedido de
108
permissão será feito através do requerimento de pessoa natural ou jurídica privada que
tem interesse em promover as atividades escritas no n° 1. Além do pedido feito ao
Órgão Ambiental do Meio Ambiente, também deveria ser ouvido outro órgão
ambiental que fosse federal ou passar a competência para um órgão estadual.
José Luíz de Morais - A fala do colega do Ministério do Meio Ambiente, Sr.
Damião, é de extrema importância, porque todo momento de alteração de alguma
coisa é um momento perigoso, porque a coisa pode ser alterada para bem ou pode
ficar um pouco pior. Eu sugeriria também que, para a emissão dessas sugestões, o
Fórum visse alguma possibilidade de parceria com o IPHAN. O IPHAN é o órgão
oficial, mas eu acho que o respaldo do Fórum viria bem a propósito nesse sentido e
teria uma discussão de profissionais, uma proposta que até o IPHAN poderia
encaminhar apadrinhando isso, mas com a participação efetiva de arqueólogos.
Essa proposta, que sairia dessa parceria com o Fórum, deveria, dentre outros,
atentar para três aspectos que eu considero extremamente importantes e que podem
ser explicitados ou na próxima resolução do CONAMA ou então em qualquer outro
documento infra resolução, mas assim do tipo ordem de serviço para os órgãos
licenciadores ambientais que estão em níveis de estado. O primeiro aspecto é a
questão da significância, em termos de impactos positivos e negativos, que deveria ser
regulamentada. É um assunto perigoso porque o empreendedor pode fazer uma leitura
da significância e o arqueólogo certamente fará outra. Outra questão discutida é tudo
que se refere a projeto urbanístico. Eu chamo atenção, inclusive, para uma pequena
distinção muito sutil, mas que é válida - é a questão da reurbanização e a questão do
empreendimento urbanístico. O município é plenamente autônomo para aprovar o
loteamento ou fazer certas exigências em relação ao loteamento e, sendo assim,
muitas vezes, a grande maioria dos municípios e principalmente municípios médios e
pequenos, agem como pequenas Repúblicas, muitos até por uma questão de não saber,
não conhecer a Lei 6.766 que disciplina isso. Até mesmo essa lei faz referência à
arqueologia. O artigo 13 da 6.766 diz que uma aprovação do loteamento, pelo
município, depende da anuência prévia do estado, em alguns casos, e menciona as
áreas de interesse arqueológico. A própria lei diz que essas áreas têm de que ser
definidas por lei e elas nunca foram. Quem vai dizer se uma área é de interesse
arqueológico ou não ? Eu acredito que, nesse caso, também deveria haver uma
parceria muito concreta. O IPHAN (exceto para Goiás, que está no entorno do Distrito
Federal) é muito longe, para as realidades municipais. Todos os municípios brasileiros
são regidos por leis orgânicas que se espelham na Constituição; então, todos os
municípios vão colocar, no âmbito das competências comuns com a União e com os
Estados, a proteção do patrimônio arqueológico. Está portanto na lei (eles é que não
sabem bem o que fazer com aquilo) e ela só precisa ser instrumentalizada para ser
cumprida.
Especificamente, eu acho que tem que ser explicitado que o patrimônio
arqueológico tem uma condição especial, ele é bem de uso comum do povo brasileiro,
é um bem da União. Então, a questão da urbanização deveria ser contemplada. A
resolução do CONAMA até menciona, mas ela fala de loteamento com área superior a
um milhão de metros quadrados. Ora, a maior parte dos loteamentos não tem essa
extensão.
E um terceiro aspecto que eu gostaria que fosse contemplado é a questão do
federalismo cooperativo, que está em todo o espírito da Constituição. A Constituição
brasileira simplesmente espelhou uma realidade mundial, que é o fortalecimento dos
109
governos locais. Eu acho que nas etapas de licenciamento a comunidade local - por
comunidade entenda-se a sua administração e o seu corpo comunitário - deve ser
ouvida. A Solange mencionou o esquema que nós estamos adotando em parceria, é
uma parceria entre arqueologia de contrato e arqueologia acadêmica que está se
desenvolvendo na UHE/Piraju. A comunidade é muito forte e ela pode ser a mola
propulsora que faz os órgãos oficiais agirem. No caso UHE/Piraju, o empreendedor
está encomendando o terceiro EIA/RIMA, porque dois iniciais ainda não foram
aceitos por pressões da comunidade local. Ninguém é contra o desenvolvimento, nós
somos contra aquele projeto, cujo custo para a comunidade é muito elevado.
Solange Caldarelli - Realmente, essa questão da parceria com o município de Piraju
foi uma prova de que ela pode ser extremamente eficiente. Agora, os municípios nem
sempre têm clara essa questão. Eu queria me reportar à fala da Célia Corsino
afirmando que os departamentos do IPHAN resolveram realmente se preocupar com
essa questão - em especial, o Departamento de Identificação. Eu acho que é uma
questão de educação ambiental e uma questão de educação patrimonial. Em alguns
municípios que eu conheço, mesmo quando existe essa preocupação, isso não tem
criado uma linha sólida de atuação, que passe de gestão para gestão. Já Piraju está
extremamente consciente, não se faz nada lá se a comunidade não aprova, mas tem
muito a ver com a atuação muito sólida que você teve lá dentro, não é, José Luiz?.
José Luiz de Morais - Exatamente. Eu acho que é papel da universidade municiar os
municípios, porque ela atua muito no interior e nós não podemos esquecer que ela faz
docência, pesquisa e extensão. Só que os pesquisadores e professores das
universidades acham que o filé mignon é docência e pesquisa, aliás, muito mais
pesquisa que docência, talvez. E a questão da extensão e serviços à comunidade, a
questão da devolução social do que a universidade produz, é extremamente
importante. Não custa a um arqueólogo que está trabalhando em um determinado
local e que tem o mínimo de conhecimento de gestão de patrimônio chegar nas
prefeituras e informar as possibilidades que eles teriam, a partir do momento em que
tenham uma legislação que suplemente a Legislação Federal e a Legislação Estadual.
Os municípios são bem receptivos quanto a isso.
Eurico Miller - Normalmente esses órgãos estaduais não tem arqueólogos no seu
corpo para julgar EIAS e RIMAS, isso é um grande problema. Não sei a quem cabe,
se é ao IPHAN, mas isso é uma lacuna que tem de ser sanada com urgência. Alguns
falam em termos de município, eu falo em termos de estado. No Acre, Mato Grosso,
Rondônia, Amazonas, Roraima que não tem arqueólogo, mesmo que tenha um órgão
representante do IPHAN, nós estaremos perdendo o patrimônio cultural que encosta
nos Andes e tem influência em todo o ambiente sul-americano. Nós temos que agir,
achar alguma fórmula de começar a exigir do governo. Que ele não desmantele o
IPHAN, como eu sei que está incentivando o pessoal a se demitir - daqui a pouco não
existirá um arqueólogo governamental e a nossa força vai ficar menor ainda.
Tania Lima - Com a palavra o representante do Ministério Público de São Paulo,
Daury de Paula Júnior.
Daury de Paula - Eu gostaria de colocar duas questões. A primeira diz respeito à fala
do representante do Ministério do Meio Ambiente, comparando o sistema americano,
no qual se exige a responsabilidade pessoal do presidente da companhia (o que é
110
exigido lá porque a legislação deles é inferior à nossa e isso exige responsabilidade
subjetiva) à legislação brasileira, que é mais moderna, sendo aqui a responsabilidade
objetiva. Aqui vai uma advertência, com todo o respeito aos senhores que trabalham
com arqueologia de contrato - essa responsabilidade é extensiva ao órgão que fizer o
estudo que deu embasamento à empresa. É uma questão de ordem legal, que eu acho
que precisa ser colocada. O nosso ordenamento jurídico, nos aspectos legais, não pode
ser comparado com a legislação alienígena.
Outro aspecto que me causou bastante preocupação também envolve aspectos
jurídicos e diz respeito à arqueologia de salvamento, no que se refere ao sítio
localizado. Como já foi colocado aqui pelo colega da Paraíba, pelo professor membro
da mesa, quando o sítio está localizado não precisa de proteção nenhuma porque ele é
bem da União, é bem de uso comum do povo. Então, esse aspecto é de natureza
constitucional e nenhuma lei, nenhuma norma administrativa e muito menos a
resolução CONAMA, ou qualquer ato do órgão de licenciamento ambiental, pode
afetar desrespeito ao sítio localizado. É legalmente impossível se admitir hipótese de
mitigação. Se ele for localizado, ele tem de ser explorado. Eu não quero entrar nos
aspectos técnicos, naquilo que seja suficiente para que ele seja considerado explorado,
se 20%, 10%, de que modo, isso é a área dos senhores, que, como eu disse, estão
sujeitos à responsabilidade, se não agirem dentro da ética, dentro da melhor técnica.
Uma última consideração que eu gostaria de fazer diz respeito à questão da
arqueologia urbana, dos fatos que acontecem na cidade. É sobre os aspectos de
mensuração no valor do sítio arqueológico de relevância. Esses critérios, que são
técnicos para os senhores, para mim que sou promotor de justiça do meio ambiente e
para qualquer um do povo que queira exercer a ação popular são importantes porque
justificam a concessão de medida liminar. Eu vou citar um exemplo da Aldeia de
Pinheiros. Seria plenamente possível que o Ministério Público da capital ou a
prefeitura do município de São Paulo entrasse com ação civil pública com pedido de
medida liminar para que fosse realizada a prospecção em toda a área. Isso também
decorre da responsabilidade objetiva.
Tania Lima - Com a palavra a professora Lylian Coltrinari
Lylian Coltrinari - Eu tenho duas perguntas, sugestões, que gostaria de dirigir à
Solange e à Lúcia. A primeira é quanto à questão da relevância.
O que você acha de, se no lugar de se pensar em enfatizar a relevância do sítio
do ponto de vista cultural, você enfatizasse, quando for possível, e quando for
especificamente necessário, por exemplo, a preservação da estratigrafia, não só a
estratigrafia arqueológica, mas a dos depósitos sedimentares, dos solos
"pedológicos"? Você teria não só o lado arqueológico -cultural, mas também algo que
é de extrema importância para a geologia do Quaternário, que é a reconstrução
ambiental. O sítio pode ser, às vezes, um poderoso argumento para sustentar hipóteses
ou certificar algumas evidências já existentes sobre registros locais de mudanças
ambientais.
Eu falo isso porque conheço estudos internacionais, no Japão, na França, África,
onde aconteceram simultaneamente a prospecção arqueológica, as pesquisas de
palinologia, paleontologia, geomorfologia... Esse é o motivo que me leva a sugerir
que esse trabalho poderia ter apoio de alguém que entendesse de estratigrafia
geológica. Isso é importante não só para o arqueólogo, como também para o
111
conhecimento das mudanças ambientais do Quaternário. No Brasil precisamos demais
desse tipo de evidência, por conta da dificuldade em encontrar locais que possam
fornecer informações objetivas sobre o que aconteceu do ponto de vista
paleoambiental, e não mais suposições ou hipóteses genéricas.
A segunda questão é a respeito de um fato em São Paulo que eu considero um
crime do ponto de vista ecológico e da preservação. É o caso da cratera de Colônia,
onde existe um depósito único, com registros datados do final do Pleistoceno. A área
da cratera está tombada, de fato, mas foi invadida, existem até prédios, e está sendo
literalmente arrasada. Existem a teoria, as regras para se formular propostas de
estudos de impacto, o problema é a prática. Mas há ocorrências mais sérias: São Paulo
não se ateve a nenhuma regra, a nenhum método em termos de crescimento, portanto
penso que seria a hora de os municípios que formam a grande São Paulo se
associarem. A grande São Paulo já produziu uma auréola de degradação brutal em
todos os sentidos. Acho que o cinturão todo, e qualquer canto vazio dentro da grande
São Paulo deveria ser prospectado, porque não sabemos o que pode acontecer hoje ou
amanhã. Se Guarapiranga, por exemplo, é uma tragédia do ponto de vista ecológico
por causa da invasão das áreas de mananciais, é, em grande parte, porque foi
permitida a destruição das evidências do passado, cultural e geológico. Menciono São
Paulo como poderia citar Belo Horizonte, Rio de Janeiro ou outros casos. Moramos
em cidades que têm problemas específicos, que são próprios das cidades do mundo
tropical úmido, semelhantes aos que existem na Índia, no sudeste da Ásia. Alguns
estudos de geomorfologia aplicada já identificaram as fases dessa degradação e o que
ocorre em nossas cidades pode ser comparado com o acontecido nas cidades do
sudeste da Ásia (...)
Solange Caldarelli - Antes de responder à Dra. Lylian, eu queria falar ao Dr. Daury
que nós usamos muito pouco o Ministério Público (nós temos que usar mais e
melhor), que suas questões serão amplamente discutidas na última mesa redonda e
que elas foram extremamente pertinentes.
Lylian, quanto à questão de enfatizar a preservação da estratigrafia, eu não
mencionei tudo que é possível. Quanto à questão do gasoduto da Petrobrás, incorporar
um geólogo para o conhecimentos das mudanças ambientais no quaternário, deveria
ter sido previsto pelo técnico que fez o EIA, que não era arqueólogo. Esse
empreendimento poderia ter sido aproveitado para uma série de estudos e eu lamento
que os técnicos em geologia e geografia que fizeram parte da equipe multidisciplinar
que fez o EIA não tenham previsto isso. O que se pode fazer, agora, é pedir à
Petrobrás que os incorpore, mas não tem como impor à PETROBRÁS que pague isso,
porque isso nem foi colocado no EIA. A arqueologia não pode responder por tudo, eu
posso recomendar uma preservação de um perfil estratigráfico desde que ele tenha
algum interesse arqueológico.
Eduardo - A construção de gasoduto é como uma fábrica, se constrói uma média de 2
Km por dia. Eu acho que isso tem de ser pensado e repensado por quem quer que seja,
interessado em observar algum buraco.
Solange Caldarelli - Eu conversei com o engenheiro para poder apresentar a
proposta; agora, a questão do quaternário fica para os quaternaristas.
112
Lúcia Juliani - Eu queria fazer um comentário a respeito do que a Dra. Lylian
Coltrinari colocou, que é pertinente. É um problema sério o que ocorre em São Paulo
e acho que é recorrente em outros grandes centros urbanos. A questão da “Cratera de
Colônia”, para quem não conhece, é a seguinte: trata-se de uma estrutura formada
pelo impacto de um corpo celeste, provavelmente um meteorito ou um cometa,
conforme estudos desenvolvidos na área. Ela é imensa, tem 2 Km e, se não me
engano, 300 m de diâmetro e uma profundidade de 400 e tantos metros. Está
preenchida por sedimentos quaternários, apresentando alta importância do ponto de
vista científico, como um nicho ecológico especial. Ela pode ser importante também
do ponto de vista arqueológico. É uma área plana cercada por uma elevação anômala,
circular, definida pelo ponto de impacto. Está em processo de tombamento municipal,
mas apresenta loteamento e ocupação irregular anteriormente ao tombamento. Outras
legislações de proteção incidem sobre a área, que é considerado zona rural e está
inserida na área de proteção aos mananciais. Segundo esses instrumentos, jamais
poderia ser loteada. O tombamento é mais um instrumento aplicado sobre a área, que
não que não etá surtindo nenhum efeito.
O processo de invasão é organizado por uma união de favelados, com
lideranças politicamente influentes. É uma problemática específica de muito difícil
solução. Uma nova tentativa que se está fazendo é a criação de uma APA - Área de
Proteção Ambiental - no sul do município, pensando na problemática da “Cratera de
Colônia” e de outros loteamentos irregulares, que vêm-se desenvolvendo numa
velocidade enorme na área, com desmatamento. Há uma proposta, que já foi
submetida ao Conselho de Meio Ambiente municipal e aprovada. Os estudos estão
sendo desenvolvidos e, dentre eles, foi proposto o zoneamento arqueológico da área.
A Secretaria do Meio Ambiente está tentando conseguir recursos para
desenvolvimento desses estudos, mas nada garante que isso vá refrear a ocupação
irregular. Na verdade, não temos nenhuma lei que controle esse processo; a Prefeitura
só tem controle sobre as ações regulares, sobre o que é pedido e não sobre o que não é
pedido e feito clandestinamente. Na verdade, alguma ação tinha de ser feita. A área
dos mananciais, por exemplo, tem um consórcio que se chama “SOS Mananciais”,
entre a Prefeitura, a Secretaria do Meio Ambiente e outros órgãos ambientais. Eles
monitoram a área permanentemente, estão sempre em campo, apontam e multam
irregularidades. Na verdade, na prática, a coisa é muito complicada, porque o
planejamento ou não existe ou vem muito tardiamente. A cidade aprendeu a crescer
dessa maneira. É uma coisa a se pensar, é uma reflexão a se levar adiante.
Tania Lima- Eliete Maximino
Eliete Maximino - É para a Solange e não é uma pergunta, é mais uma dúvida. Com
relação às avaliações dentro do processo do EIA, quando o pesquisador entrega ao
empreendedor o relatório, ele tem alguma forma de controle do fim que esse
empreendedor dará a esse relatório, ou, se o pesquisador não tem, o IPHAN tem ?
Solange Caldarelli - Grande parte dos relatórios que são apresentados no final dos
EIAs tem sido absolutamente desrespeitada e a Fernão Dias é um caso desses. Quando
eu penso o quanto me esfalfei, com as poucas horas destinadas à pesquisa
arqueológica, para desenvolver uma metodologia de pesquisa que permitisse
estabelecer critérios eficazes para avaliação dos impactos, de uma forma a que
levantamentos complementares posteriores fossem obrigatórios, em função da
extensão da área potencialmente arqueológica ameaçada, para, depois, ficar sabendo,
113
pelo pessoal de Minas, que isso simplesmente não ocorreu nos trechos em que a
rodovia começou a ser construída em Minas Gerais. Em São Paulo, houve maior
respeito às recomendações feitas no EIA. Em Minas, ao menos até o momento, isso
aparentemente não aconteceu, o que representa uma prova cabal de que meu relatório
não surtiu o efeito almejado, foi praticamente inócuo. Talvez ele funcione como um
documento que permita aos arqueólogos mineiros moverem ações contra o DNER, ou
os empreendedores, ou ambos em conjunto. Sem uma pressão mais forte, no entanto,
ele vai continuar sendo desrespeitado e o patrimônio arqueológico sendo ignorado e
destruído. Pelo que eu saiba, a duplicação da rodovia se deu na parte mais próxima de
Belo Horizonte, o resto ainda não foi mexido; portanto, ainda dá para agir. Seria o
caso de o IPHAN, de posse do documento, também tomar uma atitude a respeito.
Posso ainda relacionar outros casos, como Porto Primavera, por exemplo.
Foram feitas descobertas interessantíssimas na área, que vão ser relatadas na outra
mesa, de recursos intangíveis, pela Emília Ulhôa Botelho. Nada daquilo que foi
recomendado, no entanto, foi seguido, embora o trabalho tenha sido extremamente
elogiado. O que se quer não é um diagnóstico bonito e sim que os estudos e
recomendações que constam do EIA tenham efeito real.
Eliete Maximino - E quais as sanções?
Solange Caldarelli - Quais as sanções é uma questão para o Direito. Agora, se o
IPHAN quiser participar, tem como. O problema do IPHAN é que ele está acordando
para a questão ambiental agora. Ainda não há uma política centralizada do órgão, que
oriente as coordenações regionais sobre como agir. A minha opinião é que precisa ter
mais técnicos no órgão, mais arqueólogos, gente que possa ir atrás, exercer o poder
que ele tem. Legalmente, ele é competente para isso, para interferir no processo de
licenciamento.
Tania Lima - Walter Neves
Walter Neves - Nós estamos explicitamente pegando uma carona com o Sistema
Nacional do Meio Ambiente, Conselho Nacional do Meio Ambiente, que tem um
órgão secular, que é o IBAMA, cujo conselho tem resoluções entre as quais esta, cujo
impacto de existência nos últimos 10 anos nós estamos discutindo. Pessoalmente, eu
acho que nós devemos trabalhar no sentido de pegar a melhor carona possível e é isso
que esse simpósio está tentando fazer - melhorar a acuidade da coisa arqueológica
dentro do contexto ambiental.
Preocupa-me profundamente o fato de nós não termos um sistema nacional de
bens culturais ou patrimônio cultural, de não haver um conselho nacional de bens
culturais, temos um órgão secular.
Tania Lima - Me permita: uma Política Nacional de Bens Culturais.
Walter Neves - Isso é o de menos, quando houver essas coisas, obviamente vai haver
uma política. Nós temos um braço secular parecido com o IBAMA, que é o IPHAN,
mas isso aí não esta dentro de um sistema que tenha um conselho, tenha resoluções.
Pessoalmente, até com moral provisória, acho que é uma boa coisa nós continuarmos
pegando uma carona na questão ambiental. Eu acho que há 15 anos atrás, antes de
haver toda essa onda de preservação e valorização da biodiversidade, também não se
114
sonhava ter um Sistema Nacional de Meio Ambiente, ter um Conselho Nacional de
Meio Ambiente e ter resoluções como as que temos agora, que depois inclusive foram
incorporadas à Constituição. Acho que devíamos trabalhar em dois sentidos. Num
primeiro sentido, assegurar que continuemos pegando a melhor carona possível nos
estudos de impacto ambiental, forçar para que nós tenhamos não uma resolução que
obriga a um estudo de impacto ambiental, mas uma resolução que obriga a um estudo
de impacto sócio-cultural. Isso causa problemas práticos terríveis, porque obviamente
a escala que produz impacto na biodiversidade é muito diferente da escala que
provoca impacto sobre a sóciodiversidade. Eu duvido que o impacto de 10 x 10 m
comprometa qualquer tipo de sucessão e evolução da biota, exceto se você destruir
exatamente os 10 m em que esta envolta a árvore onde tem a única ararinha azul
remanescente; é um caso excepcional. Agora, uma área de 10 x 10m pode afetar o
conhecimento de uma sóciodiversidade passada. É hora (eu já escrevi vários
documentos para a UNESCO, nesse sentido) de mostrar que sóciodiversidade e
biodiversidade são dois lados de uma mesma equação e não adianta termos conselhos
nacionais, resoluções nacionais, órgãos seculares que de fato estão tomando conta da
biodiversidade se nós não tivermos o correspondente paralelo referente à
sóciodiversidade. A coisa só ocorre quando detonada por uma questão ambiental,
porque não se pode detoná-la simplesmente por uma questão sócio-cultural. Devemos
continuar trabalhando no sentido de pegarmos a melhor carona possível dentro desta
conquista que nós já fizemos de cidadania. A cidadania de fato, nós, arqueólogos,
vamos estar exercendo, quando tivermos para as questões sócio-culturais, para as
sóciodiversidades, os mesmos mecanismos e os mesmos instrumentos que o país já
conseguiu com referência à biodiversidade.
Tania Lima - Rossano Bastos.
Rossano Bastos - Eu tenho ouvido o problema da descoberta do sítio arqueológico, se
ele foi ou não encontrado. O sítio arqueológico é protegido pela Lei 3.924,
independente de estar descoberto ou não. O capítulo quarto das descobertas fortuitas
(nós que trabalhamos no patrimônio histórico tratamos assim) afirma que a posse e a
salvaguarda dos bens de natureza arqueológica e pré-histórica constituem, em
princípio, direito do estado. A descoberta fortuita de qualquer elemento de interesse
arqueológico e pré-histórico, histórico, artístico ou numismático deverá ser
imediatamente comunicada ao IPHAN e o proprietário ou ocupante do imóvel onde
ocorreu o achado é responsável pela sua conservação. Então, não adianta agora tirar
uma resolução ou mais uma complementação para a legislação, só porque não está
escrito no texto constitucional. A Lei 3.924 já é suficiente, junto com a portaria 07 e
com a Constituição Federal, para a proteção devida do patrimônio arqueológico. O
que existe é um grande problema de entendimento da legislação. Eu não sabia que o
sítio arqueológico existia, então, por isso, eu o destruí. Nós temos de ter o cuidado de
não estarmos nós mesmos arranjando subterfúgios para defender os outros, que estão
arrasando com o patrimônio arqueológico. Devemos esperar do estado e do município
uma ação não concorrente, mas concomitante, uma ação complementar e suplementar
no sentido de equacionar esse problema, da preservação e da conservação de sítios
arqueológicos. Isso em todos os âmbitos, inclusive no âmbito urbano, porque é
impensável hoje, nos projetos de governo que aí estão, ampliar os quadros do IPHAN
ou contratar serviços de um arqueólogo em cada regional, o que seria o ideal. Devese é procurar instrumentalizar os estados e municípios, no sentido de arranjar os
parceiros ideais. Isso porque o sítio arqueológico que está em São Paulo está em São
115
Paulo, não em Katmandu, o sítio arqueológico que está em Belo Horizonte está em
Belo Horizonte, não está em Florianópolis e a população local é que tem que se
aproveitar disso. Esses bens são de alcance social, são da União, quer dizer, união de
todos, então, não faz sentido a União ficar emitindo muitas resoluções no momento
em que a tendência é valorizar a comunidade, resgatar os bens intangíveis e valorizar
o poder de decisão local, para se poder democratizar e fazer com que esses bens
atinjam definitivamente a cidadania. Logo depois da Constituição de 88,
instrumentalizamos municípios com leis municipais (como no litoral de Santa
Catarina) no sentido de cooperar e dividir essa responsabilidade que o IPHAN não
consegue, às vezes, cumprir. Na própria legislação há essa abertura para os estados e
municípios serem os parceiros ideais, porque são eles que estão lidando com a
realidade local. É principalmente o município que detém a legislação de parcelamento
do solo e isso é fundamental na questão do licenciamento de qualquer imóvel. Se o
prefeito tem lá alguém, se existe uma legislação, um aparato da educação patrimonial
preparado para isso, ou em preparação, fica mais fácil caminhar na direção da
preservação do patrimônio cultural, do que simplesmente achar-se o seguinte: existe
uma legislação, existe um órgão, agora eu passei ali e vi um sítio arqueológico sendo
destruído, mas isso é problema do IPHAN, eu lavo minhas mãos, no máximo dou um
telefonema avisando. É necessário se apropriar tanto da legislação como da
responsabilidade de cidadão para proteger o patrimônio histórico.
Chegou a hora de se fazer parceria com municípios, estados e com a
própria população no sentido de resgatar o patrimônio, porque se for só meia dúzia de
iluminados e arqueólogos para fazer essa preservação vai ser um fracasso geral.
Solange Caldarelli - Estou plenamente de acordo: em nenhum momento aqui se
pensou em pedir para o IPHAN aparecer em qualquer sítio ameaçado; não são os
casos pontuais que estão em debate. A maior parte das exposições, aqui, tratou de
grandes empreendimentos e de grandes destruidores, com muito poder. Aí nós
precisamos de uma sólida diretriz de ação do IPHAN, para agir frente aos grandes
impactadores.
Rossano Bastos - Todas as áreas merecem ser preservadas e há dever legal para isso.
A diferença está em quando se faz o empreendimento, em quando se aprova o
EIA/RIMA. Esse é o tema em debate. Aproveitando o gancho, eu acho que a carona
da arqueologia é indissociável da ambiental. O meio ambiente cultural é um dos itens
do meio ambiente como um todo, o que talvez precise ocorrer é o IPHAN deixar de
ser IPHAN e ser um dos departamentos do IBAMA, para que participe diretamente da
questão ambiental.
Tania Lima - Maurício Taan.
Maurício Taan - Eu quero dizer que o empreendedor exerce a cidadania tanto quanto
vocês. Quando ele está trabalhando para algum projeto determinado pela União e que
tem a ver com outros tipos de pessoas que não aquelas que viveram há muito tempo
mas que vivem hoje, quando está desenvolvendo sua tarefa, ele não é um destruidor.
Por exemplo, quando se tem um projeto da União e se dispõe de uma área para se
fazer uma usina de energia elétrica, então o projeto não é do empreendedor, o projeto
é dado a um empreendedor para que o faça. Então é chamado um dos empreendedores
da União ou do Estado, no caso a SERPES ou FURNAS, para que realize alguma
coisa aprovada no Congresso Nacional. Se a região, ao mesmo tempo, tivesse reserva
116
de ouro ou manganês, poderia ter debates sobre se está sendo feito o melhor uso
daquele local e, não tendo, fazendo a hidroelétrica, ou tem que se aproveitar o
manganês e o ouro ou tem que se preservar isso ou aquilo. Eu quero deixar claro o
seguinte: quem determina o projeto não é o empreendedor e como ele, às vezes, é a
pessoa mais próxima, você o vê como agente da destruição, quando, na verdade, o
agente da destruição vem de uma decisão tomada por um Congresso Nacional, eleito
por todos nós.
Então, quando se determina um empreendimento dessa natureza, mesmo que
se faça tudo certinho, o EIA/RIMA muito certo, pode ocorrer que, nos trabalhos de
prospecção, se encontre um sítio, uma coisa de valor inestimável. Tem-se que parar e
discutir a questão porque ali, às vezes, podem estar um bilhão ou dois bilhões de
dólares já alocados. Então a própria sociedade tem de discutir se ela vai em frente ou
não. Agora se há somente valores absolutos, vai ficar mais fácil discutir. Por exemplo,
esbarrei nisso, então, não faz, acaba. A sociedade não somos só nós que estamos
sentados aqui, a sociedade é bem mais ampla. Eu quero dizer que exerce-se a
cidadania tanto cuidando do patrimônio histórico-cultural, ou, como muitos
desenhistas, atrás de uma prancheta fazendo uma chaminé de equilíbrio. Eles não são
agentes destruidores, simplesmente estão trabalhando oito horas por dia, recebendo
um salário para fazer aquele trabalho. Eles atendem a quem? A maioria dos projetos é
aprovada pelo Congresso Nacional, então, é uma coisa imposta pela União, que
chama profissionais para fazer o seu serviço. Talvez tenhamos lutas desiguais entre
empreendedor e quem fiscaliza, talvez tenhamos uma nova etapa do Ministério
Público, agora muito atuante.
A questão maniqueista vai ser a pior do mundo; não é mocinho, não é bandido,
todo mundo está precisando de um insumo, todo mundo precisa preservar o
patrimônio. É preciso buscar a questão do desenvolvimento sustentável onde ela
estiver e trazer discussões que vão permear tanto a questão arqueológica, a de
mercado de trabalho, como a de disputa de poder dentro de uma sociedade, enfim, mil
coisas, porque nós somos seres humanos e somos afeitos a essas questões todas.
117
3ª MESA-REDONDA:
ELABORAÇÃO, IMPLANTAÇÃO E AVALIAÇÃO DE
PROGRAMAS DE RESGATE E MONITORAMENTO DE
BENS PRÉ-HISTÓRICOS E HISTÓRICOS
COORDENAÇÃO:
Dra. Solange Bezerra Caldarelli
Scientia Consultoria Científica
Consultora do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
118
EXPOSITORES
EMÍLIA MARIKO KASHIMOTO
Mestre em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (Área de
Concentração: Arqueologia)
Doutoranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP
Pesquisadora contratada pela FAPEC-UFMS
Professora responsável pelas disciplinas “Geomorfologia” e “Antropologia”, no curso de
Geografia da UCDB
Coordenadora do “Projeto Arqueológico Porto Primavera, MS” - CESP/UFMS
Pesquisadora convidazda do “Projeto de Salvamento Arqueológico Pré-Histórico de Serra
da Mesa, GO” - Furnas/UFGO
Pesquisadora convidada do grupo de pesquisa arqueológica “O Conteúdo Paleoetnográfico
da Décima Região” - FCT/UNESP.
DILAMAR CÂNDIDA MARTINS
Mestre em Arqueologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo
Doutoranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo
Coordenadora científica do “Projeto de Salvamento Arqueológico Pré-Histórico da Usina
Hidrelétrica de Serra da Mesa, GO”, desde 1995 - Furnas/UFGO
CARLOS MAGNO GUIMARÃES
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais
Doutorando em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo
Professor Assistente do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal de Minas Gerais
Coordenador do “Projeto de Salvamento Arqueológico Histórico da Usina Hidrelétrica de
Serra da Mesa, GO‟, desde 1995 - Furnas/UFMG
MARIA DO CARMO MATTOS MONTEIRO DOS SANTOS
Bacharel e licenciada em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo
Mestranda em Arqueologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo
Atua como arqueóloga na área ambiental desde 1986, em projetos de regularização de
Áreas de Proteção Ambiental e em Estudos de Impacto Ambiental de empreendimentos
rodoviários, ferroviários e hidrelétricos, desenvolvendo atividades de levantamento e de
resgate do patrimônio arqueológico e histórico
Membro do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
119
O USO DE VARIÁVEIS AMBIENTAIS NA DETECÇÃO E RESGATE
DE BENS PRÉ-HISTÓRICOS EM ÁREAS ARQUEOLOGICAMENTE
POUCO CONHECIDAS
Emília Mariko Kashimoto12
A pesquisa arqueológica de contextos amplos tem seus limites definidos a
partir de fatores culturais - a área abarcada por uma determinada cultura ou uma de
suas unidades de estabelecimento -; naturais, relativos ao ambiente físico, como uma
bacia hidrográfica ou compartimento de relevo; ou “arbitrários”, não enquadrados
nas categorias anteriores (PLOG, et alii 1978).
As duas primeiras categorias são usuais na delimitação de universos de
pesquisas acadêmicas, considerando-se que a Arqueologia visa, em essência, a
descrição e classificação da forma dos vestígios antrópicos, a análise das funções
destes testemunhos materiais e, posteriormente, a interpretação de processos
culturais envolvidos (SHARER
& ASHMORE, 1979); necessitando,
fundamentalmente, da interdisciplinaridade com as ciências afins.
Esses objetivos também são pertinentes ao salvamento arqueológico, que
particulariza-se, apenas, por abranger áreas de dimensões específicas, correspondentes
à superfície impactada pela obra, sendo que esta também determina o tempo
disponível para a execução da pesquisa (BEZERRA DE MENEZES, 1988; MORAIS,
1990).
Dessa forma, as pesquisas arqueológicas de salvamento, decorrentes de obras
de engenharia, são elaboradas na conjunção de cronogramas específicos, tanto do
empreendedor da obra, quanto dos pesquisadores e Instituições/Empresas correlatas responsáveis pelo “produto” científico -, assim como do IPHAN, fiscalizador dos
trabalhos.
Tal fato contribui para a dinâmica específica de cada pesquisa de salvamento,
com retroalimentação entre etapas de trabalho, reavaliações frequentes e alterações
em procedimentos previstos, teoricamente, no projeto de pesquisa original, exigindo
grande disponibilidade de tempo por parte da equipe de pesquisadores efetivos.
Paralelamente, deve-se considerar que cada projeto tem um desenvolvimento
singular, em função das características ambientais e possibilidades de acesso à área relacionadas às formas de relevo, estado de conservação das estradas, índice de
desmatamento, navegabilidade dos cursos fluviais, entre outros -, diferenciadas em
cada espaço pesquisado.
Assim, um projeto numa área arqueologicamente pouco conhecida, e,
principalmente, com poucos estudos de detalhe do ambiente físico, tende, num
primeiro momento, às atividades de campo voltadas ao reconhecimento de variáveis
ambientais locais, relacionadas a sítios arqueológicos, permitindo um melhor
delineamento das hipóteses norteadoras da pesquisa. Neste contexto, as amostragens
probabilísticas sobre a totalidade de uma área, tendem a ser opções passíveis de serem
1Pesquisadora associada à FAPEC-UFMS, professora da UCDB, doutoranda em Arqueologia na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
120
aplicadas após o reconhecimento destas variáveis ambientais associadas a dados
arqueológicos (CUSTER et alii, 1986).
Uma abordagem geoarqueológica, entendida enquanto “contribuição das
Ciências da Terra, especialmente Geomorfologia e Petrografia Sedimentar, para a
interpretação e reconstituição ambiental de contextos arqueológicos”
(GLADFELTER, 1977), auxilia o entendimento da localização dos sítios numa
determinada paisagem, tratando de temas como a influência das formas de relevo nos
padrões de assentamento humano, análises da formação de sítios arqueológicos e suas
transformações subseqüentes. O estudo abrange entrevistas com a população local,
para uma ampla inserção espaço-temporal destes sítios, estabelecendo relações entre
registros arqueológicos e históricos, sendo estes relativos ao povoamento da área e
alterações no meio ambiente, pretéritas e atuais.
A pesquisa arqueológica possui duas etapas básicas de campo: detecção de
sítios, ou seja, levantamento em contextos ambientais amplos; e resgate, que
centraliza-se em estudos de detalhe de sítios, em profundidade, por meio de
escavações científicas.
1. DETECÇÃO
A percepção das variáveis ambientais arqueologicamente relevantes
embasam a seqüência da pesquisa, sejam elas aplicáveis na cobertura total (“FullCoverage”), que consiste no caminhamento em todas as parcelas acessíveis do
terreno, seguindo intervalos espaciais determinados conforme as características da
área (PARSONS, 1990); ou na definição de áreas-teste para levantamento intensivo,
por amostragem, com abertura de cortes de verificação do solo. Em ambos os
encaminhamentos, é interessante a verificação em áreas que não aparentam potencial
arqueológico, para não se localizar apenas o que se procura.
O levantamento, ou detecção de sítios arqueológicos, por cobertura total,
priorizando áreas favoráveis selecionadas, também é definido de acordo com a
disponibilidade logística de cada projeto e características ambientais locais. Possui
como procedimento básicos o caminhamento em setores selecionados, realizando-se
cortes de verificação e coletas comprobatórias de material antrópico ou do contexto
ambiental em geral. A navegação, quando possível, constitui importante veículo de
levantamento, pois permite observações da topografia, em geral, e das variações sutís
de declividade do terreno, por conseqüência, o acesso às partes mais elevadas, a partir
do curso fluvial, além de frequentemente representar meio de locomoção mais rápido
em relação às estradas de rodagem.
A análise preliminar de bibliografia visando, particularmente, o levantamento
de dados da Etno-história regional, bem como resultados de outras pesquisas,
arqueológicas ou ambientais, realizadas em áreas próximas, permite estudos
comparativos e a delimitação de parâmetros de ocupações pretéritas da área,
considerando suas relações com a paisagem.
Paralelamente, o estudo do material cartográfico, fotos aéreas e imagens de
satélite, visando a investigação de variáveis ambientais, a definição de técnicas a
serem aplicadas, bem como o planejamento geral dos trabalhos de campo, representa
importante apoio ao direcionamento da pesquisa, uma vez que proporciona uma
121
percepção ampla da área enfocada, e suas transformações, considerando períodos
diferentes.
Tais atividades preliminares podem ser drasticamente abreviadas em função
da compatibilização com os cronogramas dos incrementadores da pesquisa, acima
citados, do tempo disponível e das estações do ano de menores índices
pluviométricos, mais favoráveis aos trabalhos de campo.
As variáveis ambientais de relevância arqueológica são específicas a cada
contexto pesquisado. Entretanto, particularmente com relação a sítios a céu aberto,
destacam-se, com freqüência, alguns referenciais ligados à hidrografia e à
geomorfologia, como:
- área de foz de afluente;
- diques marginais expressivos;
- margens contígüas às corredeiras, favoráveis à captura de animais aquáticos, principalmente em períodos de vazante;
- margens fluviais de topografia favorável ao acesso ao fluxo d’água
corrente, não associadas a “brejos”, que são frequentemente utilizadas como
“bebedouros” de gado;
- margens fluviais próximas a ilhas;
- ilhas fluviais;
- terraços fluviais preservados da inundação de cheias periódicas, principalmente em margens côncavas;
- margens de lagoas;
- área de afloramento do substrato no leito fluvial, com perspectiva de
“ancoradouro” e favorecimento à pesca;
- bancos de deposição sedimentar na margem do curso fluvial, por vezes
associados
a
cascalheiras,
formando
“praias”,
que
favorecem
o
embarque/desembarque, assim como o acesso vertente acima;
- elevações topográficas em áreas de várzea, marcadas por vegetação
arbórea diferenciada do entorno, que, por vezes, são interpretadas como aterros;
- terraço ou média vertente de declividade suave, em relação ao entorno,
mais favoráveis ao assentamento, estando protegidos da maior intensidade dos
ventos, em relação às porções mais elevadas do relevo;
- colos, ou seja, depressões que se destacam na linha de crista de serras,
sugerindo áreas de passagem;
- topo suavemente aplainado de colinas de dimensões menores, em relação
ao conjunto topográfico local;
- áreas de afloramento de matéria-prima, como cascalheiras, ou depósitos
naturais de seixos; locais de afloramento do substrato possuidor de diques de rochas
aptas ao lascamento fino, como o arenito silicificado (MORAIS, 1983), etc.
Em ambientes fluviais, é interessante a análise em períodos de cheia e de
vazante, para observar variações na cobertura vegetal e possibilidades de acesso a
áreas específicas.
122
Com relação a sítios em abrigos sob rocha, que podem conter inscrições
rupestres, alguns parâmetros, ainda no âmbito das ciências ambientais, se destacam
como instrumentos potencialmente indicadores, por exemplo, levantamentos de áreas
calcáreas, ocorrências espeleológicas, relevos residuais de composição arenítica,
formações geomorfológicas de cuestas ou furnas, além de análises toponímicas
(“itacoatiaras”, “morro dos letreiros”, etc.) e das tradicionais informações orais.
Pode-se acrescentar ainda, a necessidade de verificação de ocorrências de lajedos
extensos ou grandes blocos rochosos isolados no terreno, que podem ser suportes para
inscrições rupestres.
Sítios arqueológicos podem estar parcialmente alterados ou, por vezes,
destruídos por agentes erosivos desencadeados pela ação antrópica recente, fato que
não os exclui da pesquisa, uma vez que fornecem dados importantes à análise de uma
determinada área. Dentre estes agentes, pode-se destacar o desmatamento, pastagem
ou culturas anuais, alterações em vazões fluviais, e edificações em geral.
Paradoxalmente, as feições produzidas acabam funcionando como “variáveis
ambientais” a serem vistoriadas nas observações de campo, ou seja, linhas de
barranco ou outros processos evidenciadores de camadas do solo, como, por exemplo:
- sulcos, ravinas e voçorocas, sendo que os primeiros podem ser produzidos
pelo pisoteio do gado, que, inclusive, produz os “bebedouros” fluviais;
- erosão fluvial, que atua por entalhe lateral, notadamente nas margens
côncavas;
- erosão laminar das enxurradas, evidenciadora de camadas arqueoló-gicas;
- edificações de sedes de propriedades rurais, sendo que as mais antigas,
cujas implantações visaram o aproveitamento dos respectivos cursos fluviais
próximos, navegáveis e proporcionadores de água potável, preferencialmente
piscosos, estão, portanto, em áreas favoráveis à ocorrência de sítios arqueológicos;
- cortes no terreno produzidos por estradas;
- áreas de extração de sedimentos, ou “caixas-de-empréstimo”, onde a
abertura de extensos perfis pode evidenciar níveis arqueológicos, como, por exemplo,
os sítios MS-PD-02 e MS-PD-03, possuidores de nível lítico a aproximadamente 1,5
m de profundidade, localizados no âmbito do “Projeto Arqueológico Porto Primavera,
MS”13
As observações nas áreas supra-citadas não excluem a abertura de cortes de
verificação, por vezes denominados sondagens, e retificações de perfis, fundamentais
na detecção de sítios não erodidos, ou seja, que não apresentam exposição de material
arqueológico na sua superfície. Tais sítios são localizados com a abertura intensiva
destes cortes e perfis, em amplas superfícies, selecionadas a partir de variáveis
ambientais de relevância arqueológica, acima citadas.
2. RESGATE
As variáveis ambientais auxiliam a inserção espacial de sítios arqueológicos,
sua contextualização em relação à área total e zonas ambientais, assim como a análise
13
Projeto desenvolvido a partir do contrato CESP/FAPEC-FUFMS, de nº 99000-94000/0143.
123
de relações entre alterações ambientais e registros arqueológicos. Tal entendimento,
aliado à análise do material arqueológico advindo das coletas comprobatórias da etapa
de detecção, permite a seleção de sítios mais representativos, e menos alterados, a
serem escavados.
A análise geoarqueológica de variáveis ambientais, contemporâneas e
pretéritas, no decurso das escavações arqueológicas centraliza-se em alguns ítens,
listados a seguir, a partir da adaptação da proposta de HASSAN (1979):
- Confecção de cartas topográficas, ou de localização, dos sítios e das
estruturas arqueológicas, cuja análise final visa contribuir para o entendimento de
contexto de formação e utilização dos recursos ambientais.
- estudos da estratigrafia regional, com o registro de perfis de solo dos sítios
arqueológicos e demais contextos intra-sítios, aliado a análises sedimentológicas em
laboratório, que incluem o tamanho das partículas, taxas de pH, cálcio, etc. Tais
procedimentos visam interpretar as variações que ocorreram no ambiente sedimentar,
desde a formação do sítio, até o momento da pesquisa.
- análises geomorfológicas, auxiliadas pela confecção de perfis topográficos.
O enfoque estratigráfico pode evoluir para medições de deslizamentos de solo e taxas
de sedimentação, obtendo-se índices de mudança das formas de relevo no sítio ou
área em estudo, por processos ambientais como inundações, enxurradas,
deslizamentos, períodos de seca prolongada, etc, visando reconstituir a seqüência de
eventos ocorridos desde a deposição dos vestígios pelas populações pretéritas, até o
momento da pesquisa arqueológica: a formação do sítio e do arranjo espacial das
atividades humanas nele desenvolvidas; o abandono do local por estas populações;
transformações posteriores que modificaram os dados arqueológicos, como fluxos de
enchente que transportam material, ou animais fuçadores que fazem “galerias” e
provocam o deslocamento de peças para níveis inferiores. Paralelamente, o
conhecimento da atuação local dos agentes modeladores do relevo, permite melhor
seleção das técnicas de campo a serem aplicadas;
- análises petrográficas, das matérias-primas utilizadas e fontes poten-ciais.
Portanto, ao nível das escavações arqueológicas, as variáveis ambientais
contribuem para:
- a revisão das estratégias mais adequadas a cada local, tratando de questões
como “o que salvar”, quais os vestígios mais relevantes a serem registrados e
coletados; “como escavar”, considerando métodos e técnicas mais adequados a cada
caso; e “até onde escavar”, ou seja, quando a escavação já alcançou o nível “estéril”
arqueologicamente e já possui um abrangência espacial suficiente à interpretação,
conside-rando-se o ambiente tropical úmido;
- a reconstituição de processos de formação do sítio e transformações
subseqüentes, por meio de análises estratigráficas e sedimentológicas;
- os estudos de utilização dos recursos ambientais, que remotam à Zooarqueologia, Palinologia e Arqueobotânica, no tocante à quantificação e interpretação
de vestígios alimentares detectados, bem como dos utensílios associados.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
124
Ao se considerar as relações da Arqueologia com as Ciências Ambientais, há
que se lembrar que existe uma reciprocidade, na medida em que a primeira necessita
da utilização de técnicas específicas à segunda, para coletas de dados mais frutuosas
às suas interpretações paleoetnográficas, e, em “contrapartida”, as inscrições rupestres
ou as camadas arqueológicas fornecem dados - climáticos, biológicos,
geomorfológicos, entre outros - que podem ser datados, compondo referência
fundamental aos estudos do quaternário em ambiente tropical, cujos “pacotes”
sedimentares têm composição macros-copicamente homogênea.
Ainda ao nível da complementaridade, deve-se ressaltar que a pesquisa
bibliográfica de estudos do ambiente físico, e a conseqüente identificação de variáveis
ambientais de relevância arqueológica, específicas a uma determinada área,
constituem significativo parâmetro para encaminhamento dos trabalhos de campo e
respectivos estudos interpretativos. Entretanto, para tais interpretações arqueológicas,
é necessário que a abordagem seja integrada às entrevistas com a população local,
que vivencia aquela realidade ambiental, assim aos estudos de Etno-história, entre
outros enfoques interdisciplinares.
A partir da comparação os entre resultados obtidos em pesquisas específicas,
desenvolvidas por pesquisadores distintos, sejam elas acadêmicas tradicionais ou de
salvamento, adentra-se o nível da proposta mais ampla de síntese regional. Para tal
objetivo, faz-se necessária a explicitação dos procedimentos e conceitos utilizados,
para uma classificação conjunta de dados, sugerindo-se os seguintes
encaminhamentos:
- tornar explícito o conceito de sítio arqueológico empregado, considerandose que o mesmo tende a ser singular a cada área de pesquisa.
- o registro dos locais prospectados, sítios arqueológicos ou não-sítios, com
o emprego do GPS (“Global Positioning System”), para o entendimento da
intensidade da abrangência espacial da pesquisa de campo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEZERRA DE MENZES, U. T.
Arqueologia de Salvamento no Brasil: uma
avaliação crítica. Texto apresentado no SEMINÁRIO SOBRE POLÍTICA DE
PRESERVAÇÃO ARQUEOLÓGICA. Rio de Janeiro, PUC, 1988. 19p.
CUSTER, J. F. et alii. Application of Landsat data and synoptic remote sensing to
preditive models for prehistoric archaeological sites: an example from the
Delaware Coastal Plain. AMERICAN ANTIQUITY, vol. 51, n. 3, p. 572-588,
1986.
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126
RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS PRÉ-HISTÓRICOS EM ÁREAS DE
IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS: O CASO DA USINA
DE SERRA DA MESA - GOIÁS
Dilamar Cândida Martins
127
RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS HISTÓRICOS EM ÁREAS DE
IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS HIDRELÉTRICOS: O CASO DA USINA
DE SERRA DA MESA - GOIÁS
Carlos Magno Guimarães
Introdução
O presente trabalho, embora contemple questões que dizem respeito a
projetos em áreas afetadas por hidrelétricas, tem como objeto o Projeto de
Salvamento, financiado por Furnas S.A, desenvolvido pelo Setor de Arqueologia da
UFMG na área atingida pela Usina de Serra da Mesa no estado de Goiás. Este é pois o
projeto em torno do qual se desenvolverão nossas reflexões.
O texto será dividido em quatro partes. Na primeira trataremos da montagem
do projeto e da perspectiva teórico-metodológica que a orientou. A segunda parte trata
da organização da equipe e do trabalho de campo. Em seguida o trabalho de
prospecção, e a tipologia dele proveniente, são tratadas na terceira parte e finalmente a
quarta parte trata de questões referentes a avaliação e monitoramento.
I
Quando em 1994 o Setor de Arqueologia da UFMG foi convidado por
FURNAS/SA a apresentar um projeto arqueológico de salvamento para a área a ser
atingida pelo reservatório da Usina de Serra da Mesa, a primeira questão que veio à
tona dizia respeito ao processo histórico que ali se desenvolveu.
Ocupada pela colonização a partir das atividades minerais no século XVIII, a
área se integra ao movimento de expansão das fronteiras coloniais (1), que acabou por
definir a maior parte do atual território brasileiro.
Evidenciando não só ocupações pré-históricas como o contato, já a partir do
século XVIII, entre as três grandes etnias formadoras da população brasileira, a área é
de grande expressão no processo histórico goiano. Compreender esta particularidade é
fundamental para se aquilatar tanto sua importância quanto a do patrimônio cultural
nela contido.
Ocupada por povos indígenas desde épocas muito antigas, teve seu processo
de colonização iniciado a partir dos interesses mercantilistas da coroa portuguesa
pelos metais preciosos (2) no século XVIII.
A mineração na história do Brasil colonial foi atividade que envolveu
diferentes modalidades de mão de obra (3) sendo que a predominante em algumas
regiões foi o escravo africano. Os indicadores apontam para uma expressiva utilização
do escravo africano também na área afetada pela Usina de Serra da Mesa. A
população de várias localidades evidencia um passado de intensa miscigenação, onde
o elemento negro foi fundamental.
128
As constatações acima remetem pois à formação étnica da população
brasileira e remetem à importância de salvamento do patrimônio histórico cultural
existente na área em questão.
Sem dúvida alguma os elementos ali contidos poderiam permitir a
compreensão de uma gama variada de aspectos da dinâmica histórica da sociedade
colonial brasileira. Dentre eles podemos citar a possibilidade de
- captar a dinâmica do ciclo de mineração colonial;
- compreender aspectos da sociedade escravista;
- apreender elementos da dinâmica dos contactos interétnicos e a decorrente
interação / conflito cultural daí advinda;
- captar elementos do processo de transformação social ao longo do período
que vai do século XVIII ao século XX.
Definida a linha geral do processo histórico é necessário fazer algumas
considerações sobre o projeto. A definição do objeto e da metodologia de certa forma
definem alguns dos traços fundamentais da sua natureza.
Em arqueologia a incerteza do achado está sempre associada à sua
possibilidade. Um projeto desta natureza permite o cruzamento de diferentes tipos de
informações, o que certamente pode reduzir sua margem de incerteza, que mesmo
assim permanece grande.
No caso que estamos tratando a articulação entre incerteza e probabilidade
deve ser entendida dentro das especificidade da arqueologia histórica. A grande
questão não é a dúvida entre encontrar ou não os vestígios procurados e sim onde
estão e qual sua dimensão.
A pesquisa bibliográfica aponta para a riqueza arqueológica histórica da
região, acumulada ao longo de um período de quase trezentos anos. A vastidão da
área, por outro lado, aponta para a existência de um enorme volume de vestígios a
serem detectados e resgatados.
Se por um lado existe a certeza de que será encontrado, por outro a questão
que se coloca é definir seu volume. É neste ponto que se localiza a dificuldade em
adequar necessidades, realidades e possibilidades.
A perspectiva teórico-metodológica que orientou a montagem do projeto foi
definida a partir de um conhecimento prévio de história da área a ser trabalhada.
Partindo de um dado real, a dimensão da área inundável (± 1780 Km2) e da
constatação da grande diversidade de ambientes e de processos histórico-culturais é
que foi estabelecida a grande linha de trabalho.
Na realidade o primeiro ponto definido foi a impossibilidade de trabalhar
com amostragem já na fase de prospecção.
A diversidade de ambientes e de processos histórico-culturais é tão grande
que adotar previamente um percentual (qualquer que fosse ele) e tomá-lo pelo todo
seria correr o risco, posteriormente comprovado, de não ter uma amostra que
realmente fosse a expressão daquele todo.
Este aspecto deve ser entendido numa perspectiva dialética. Se por um lado
certo conhecimento prévio da área foi a justificativa para tal conduta, isto só se deu
porque este conhecimento veio constatar a ignorância sobre sua realidade histórica,
tanto geral quanto específica.
129
Dito de outra forma, o conhecimento que foi atingido preliminarmente veio
por um lado demonstrar a riqueza do patrimônio histórico-cultural e por outro
evidenciar que a adoção de um critério de amostragem não seria capaz de captar
amostras suficientemente confiáveis de toda esta realidade, que por sua vez ainda é
desconhecida.
É nesta medida, que a perpectiva dialética se coloca como definidora do
universo a ser trabalhado. O conhecimento, ainda que difuso, deste universo é o
elemento que aponta para a necessidade de recuperar todo o desconhecido patrimônio
histórico-arqueológico existente na região.
Esta perspectiva que contempla por um lado o conhecimento e por outro o
desconhecido é que acabou por definir a linha geral do trabalho (de prospecção e de
salvamento).
Na fase de prospecção, realizada de maio a novembro de 1995, as
informações orais, bibliográficas e documentais associadas à necessidade de cobrir a
maior parte possível da área acabaram por definir o universo a ser trabalhado.
A área de 1780 Km2 foi subdividida em sub-áreas sendo seus limites
estabelecidas com referência a bacias hidrográficas relevantes, fazendas ou outros
acidentes geográficos.
Em nenhum momento foi cogitada a possibilidade de descartar alguma subárea do trabalho de prospecção. O princípio adotado foi o de checar efetivamente
todas as informações (orais, bibliográficas ou documentais) obtidas. E quando, para
determinada bacia, não houvesse informação a estratégia adotada foi a da prospecção
exaustiva através da qual a bacia era percorrida de ponta a ponta.
Esta orientação mostrou-se extremamente rica no seu resultado final. Muitos
dos sítios localizados através da prospecção exaustiva já haviam desaparecido no
registro da tradição local. O resultado final foi um universo de 190 sítios levantados
dos quais 137 estão dentro da área inundável e 53 na sua periferia.
No que diz respeito à estratégia adotada poder-se-ia objetar que
necessariamente haveria redundância na obtenção de dados já que o pretendido era a
cobertura da maior parte possível da área. Tal objeção foi refutada largamente pelos
resultados atingidos. Se por um lado há um conjunto de informações que se repetem,
por outro lado o universo das diferenças é extremamente rico para justificar a
estratégia adotada. Além do que o argumento, que tenha justificado a eliminação das
diferenças com base na existência de semelhanças, ignora que a realidade é dialética e
que ambas fazem parte de um todo. Privilegiar um dos polos desta contradição é
distorcer a visão que se possa ter desta realidade.
II
A envergadura do projeto, considerando o fator tempo e a dimensão da área a
ser pesquisada exigiu uma modalidade de trabalho coletivo onde a equipe foi dividida
em quatro grupos de trabalho (GT) em função das atividades a serem desenvolvidas:
* GT de História e Documentação - encarregado dos trabalhos de
levantamento, catalogação, leitura, fichamento e organização dos dados
provenientes da bibliografia, dos documentos, relatos de viajantes e
130
jornais. O objetivo é fazer um histórico de área e transformar as
informações levantadas em instrumento para a arqueologia;
* GT de Geografia e Cartografia - encarregado dos trabalhos de foto interpretação, cartografia, fotografia e coleta de informações sobre o
ambiente dos sítios e entorno;
* GT de Arqueologia - encarregado das atividades de prospecção e
salvamento, tendo como suporte as informações dos dois grupos
anteriores;
* GT de Computação - encarregado da montagem de um banco de dados
geral e do tratamento das informações levantadas tanto na fase de
prospecção quanto de salvamento.
O trabalho de campo, na fase de prospecção, foi realizado dentro dos
parâmetros tradicionais. A partir da localização de cada sítio foram realizadas as
tarefas básicas exigidas: definição/delimitação da área de ocorrência dos vestígios;
identificação do tipo de sítio; localização precisa na planta da área; descrição do
conjunto de evidências e levantamento fotográfico.
Como já foi dito, na fase de prospecção não foi adotado critério
classificatório nem estabelecidas prioridades com relação a áreas ou a sítios
identificados. O trabalho de levantamento tinha o objetivo de atingir todos os locais
de ocorrência de vestígios arqueológicos.
Na fase de salvamento entretanto, a orientação que se colocou foi outra.
Neste caso foi considerada uma dupla perspectiva:
* a primeira que considerou a complexidade que cada sítio apresenta no
contexto e no peso global da reconstituição da dinâmica histórica;
* a segunda ligada às medidas de salvamento a serem adotadas em cada caso.
A primeira perspectiva parte da constatação de que vestígios arqueológicos
diferentes apresentam diferentes necessidades no que diz respeito ao seu salvamento.
A segunda parte da constatação de que a cada sítio caberá um conjunto de medidas
que deverão ser adotadas em função de suas especificidades. Assim, um sítio
classificado como fazenda por certo deve receber um tratamento diferente de um sítio
de mineração.
Estas duas perspectivas estão na origem da tipologia estabelecida a partir dos
trabalhos de prospecção.
III
Uma avaliação do conjunto de sítios levantados permitiu estabelecer uma
tipologia , considerando as atividades (ou funções) neles desenvolvidos.
É importante lembrar que o material não evidenciou surpresas quanto à sua
constituição e/ou utilização. O conhecimento prévio da ocupação histórica de Goiás,
pelo movimento bandeirantista a partir do primeiro quartel do século XVIII, de certa
forma antecipou o que seria encontrado durante os trabalhos de prospecção.
A análise dos dados levantados levou a uma classificação em oito categorias
e à distribuição dos sítios conforme o quadro que se segue:
131
TIPO
Lavras (garimpo)
Fazendas (criação e agricultura
Mistos (lavra + fazenda)
Cemitérios
Núcleos Urbanos
Contato (índio + colonizador)
Portos
Presídios (4)
Diversos
Total
Dentro da Área
Fora da Área
72
43
8
3
3
1
2
0
5
137
23
15
1
4
1
2
0
1
6
53
Total de
Sítios
95
58
9
7
4
3
2
1
11
190
Cada uma destas categorias define um conjunto de elementos que podem ser
encontrados ainda em evidência, ou então, se expressam em raros vestígios que só
adquirem sentido quando respaldadas por informações orais ou documentais. Tal é o
caso, por exemplo, dos portos e do presídio Santa Bárbara.
Uma análise do quadro acima mostra de imediato a predominância de
vestígios ligados à atividade mineradora. Evidentemente, não poderia ser de outra
forma, considerando que a área em questão foi ocupada/colonizada a partir de um
surto de mineração no século XVIII. A mineração foi atividade nuclear, em torno da
qual se desenvolveu o processo de colonização. Isto não significa, entretanto, que
apenas a atividade mineradora tenha sido praticada. Significa que as outras atividades
que se desenvolveram (agricultura, pecuária, artesanato, etc) tiveram sua referência na
atividade mineradora.
Outro motivo que nos leva a compreender o fato de predominarem vestígios
da atividade mineradora é a própria concepção (mentalidade) mercantilista (metalista)
que no momento tratado, a primeira metade do século XVIII, tinha um peso
fundamental. A política das nações, particularmente dos impérios coloniais, se regia
pelas teses mercantilistas. A crença na riqueza das nações (condicionadas à
acumulação de metais) levou ao estabelecimento daquela acumulação como
prioridade, o que acabou por determinar a dinâmica das sociedades coloniais.
Em seguida, os vários tipos de sítios são caracterizados a partir de seus
elementos. fundamentais.
As Lavras
Com relação a essa tipo de sítio, o primeiro ponto a ser levantado diz respeito
ao tamanho do empreendimento. Uma lavra pode ser definida como uma área de
pequenas dimensões que era trabalhada por um ou poucos indivíduos, ou ainda como
uma grande área trabalhada por dezenas ou centenas de escravos. Isto quer dizer que o
termo - lavra - não define por si só as dimensões do empreendimento, mas apenas o
tipo de atividade desenvolvida.
No conjunto deste tipo de sítio predominam lavras de grande porte que
envolveram certamente, e quase sempre, algumas dezenas de indivíduos. Tal
132
avaliação se fundamenta nas dimensões das áreas trabalhadas, no volume de
sedimento revirado e na quantidade de obras (canais, açudes, aterros, mundéus,
galerias, muros, etc) executadas. Enfim, na massa de trabalho humano que se expressa
nos vestígios de sua realização, ou seja, trabalho humano acumulado.
Revirar até a profundidade de um metro uma área de alguns hectares não é
certamente trabalho para um único indivíduo. Principalmente, se levarmos em conta
que para a lavagem de sedimento revirado foi necessária a construção de açudes, de
canais quilométricos, e ainda, se foi necessário fazer o desvio de um rio ou córrego do
seu leito original.
Enfim, a natureza da atividade e as dimensões da sua execução exigiam
trabalho coletivo sob comando unificado. Tal conclusão nos remete à mão-de-obra
escrava porque o trabalho assalariado está descartado enquanto possibilidade histórica
dominante, no período aqui tratado: o século XVIII.
O segundo ponto que merece nossa atenção que merece nossa atenção diz
respeito à articulação dos elementos que compunham cada uma das unidades
mineradoras. Esse ponto afeta diretamente a pesquisa arqueológica, na medida em
que, o que resgatamos são fragmentos de conjuntos, que tinham uma dinâmica tanto
na sua integração quanto no seu funcionamento.
Com isso queremos dizer que o fundamental não é apenas localizar tais
vestígios mas resgatá-los e entendê-los enquanto elementos que formavam sistemas,
alguns dos quais imensos e complexos. Esses dois aspectos - o qualitativo e o
quantitativo - merecem maiores esclarecimentos.
Se lembramos que alguns desvios de rios ou canais, para transporte de água,
podiam atingir a dimensão de quilômetros, estamos diante de uma realidade onde um
único sítio arqueológico pode também atingir dimensões quilométricas. Do ponto de
vista quantitativo, com certeza, essas unidades mineradoras constituem alguns dos
maiores vestígios arqueológicos do mundo.
Do ponto de vista qualitativo há que se destacar todo o conhecimento, que
está implícito, na aparente simplicidade de cada um desses sistemas hidráulicos.
Denominamos de hidráulicos os sistemas que tem na água o elemento fundamental,
seja como força motriz ou para lavagem de sedimentos. E são denominados sistemas
pelo fato de serem conjuntos de elementos articulados, cada um dos quais
evidenciando uma etapa na divisão e na realização (ou dinâmica) do processo de
trabalho.
Baseados nos princípios fundamentais da hidrodinâmica os sistemas
hidráulicos expressam, tanto as potencialidades quanto os limites da tecnologia
mineradora setecentista, e portanto, a necessidade de seu resgate e de sua
compreensão.
Os sistemas hidráulicos aos quais nos referimos eram constituídos por
elementos distintos, integrados e que merecem um pouco mais de nossa reflexão. No
conjunto desses elementos destacam-se canais, mundéus, açudes, aterros, muros e
catas.
Os canais, do ponto de vista de sua função (que era o de transporte de água)
estavam voltados para a satisfação de duas necessidades: o abastecimento de água
para consumo humano e/ou animal e o abastecimento das lavras para prática da
133
mineração. Não há, entretanto, uma distinção técnica no que diz respeito ao fato da
água ser utilizada para um ou outro fim.
Um aspecto importante a ser lembrado é o fato de que a declividade desses
canais geralmente é mínima, o que pode ser explicado por dois motivos:
* quanto menor a declividade do canal, maior seria distância que o
abastecimento poderia atingir
* quanto menor a declividade, menor é o risco de que a água desenvolva
algum processo de erosão, tanto no leito quanto nas paredes do canal.
A versatilidade desses sistemas hidráulicos é notável no fato de que a água
retirada de uma mesma fonte (que pode ser um olho d‟água ou um curso d‟água)
poderia sempre ser remanejada, o que permita a sua utilização em diferentes locais (e
épocas). Assim, áreas absolutamente distintas e distantes poderiam ser trabalhadas ou
abastecidas, com o mesmo fluxo de água a partir da construção de canais diferentes. É
o que explica o fato de podermos encontrar canais que partindo de um mesmo lugar
podem se dirigir a locais totalmente diferentes. Pelo que percebemos, existia uma
estratégia que utilizava um mesmo curso d‟água para atingir uma área diferente a cada
momento.
Um tipo de canal comum era aquele construído paralelamente aos rios. Esses
canais poderiam alcançar dois objetivos: possibilitar a utilização da água desses rios
para a lavagem do sedimento (mineral) e permitir que a água do rio fosse desviada de
seu leito original para que esse leito pudesse ser trabalhado a seco. O levantamento
realizado permitiu detectar a construção de canais destinados aos dois objetivos
descritos.
Outro elemento típico de determinados sistemas (técnicos) de mineração são
os mundéus. De forma mais objetiva, mas sem correr o risco de uma simplificação
exagerada, podemos dizer que os mundéus eram poços ou tanques onde, através de
um processo de decantação o mineral mais pesado (ouro e/ou diamante) tende a ficar
depositado no fundo, para um posterior trabalho de apuração.
Do ponto de vista da sua construção, tanto poderiam ser grandes tanques com
paredes de pedras e argamassa, como poderiam ser buracos feitos no leito de córregos
e canais por onde a lama aurífera ou diamantífera deveriam passar. Este segundo caso
certamente é inspirado nas ocorrências que a geologia denomina de “pilões”. No
conjunto dos trabalhos de prospecção, os indicadores apontam para a predominância
de mundéus escavados (denominados pilões), ao invés de mundéus construídos. A
escolha por uma das técnicas certamente estava condicionada pela quantidade de mãode-obra disponível, pelo rendimento que se esperava atingir, bem como pela
expectativa de duração da fase produtiva de cada lavra.
Dito de outra forma, quanto maior a expectativa de retorno e a oferta de força
de trabalho. maiores seriam os investimento em cada unidade mineradora. Por sua
vez, uma lavra que não prenunciava grandes rendimentos (nem grande período de
produtividade) certamente não receberia o emprego de vultosa mão-de-obra.
A construção de açudes, no conjunto da atividade mineradora antiga,
também foi uma constante. O trabalho de prospecção tem evidenciado exemplares
diferenciados tanto no que diz respeito às técnicas de construção, quanto no que diz
respeito às funções. No conjunto de sítios levantados, destacam-se pelas dimensões o
134
açude próximo ao arraial de Santa Rita e outro que faz parte de um dos complexos de
mineração do Rio do Peixe.
Do ponto de vista técnico os muros de represamento poderiam ser
construídos com a utilização de terra, de terra e pedras, de pedras e argamassa e ainda
de madeira, terra e pedras. Como se percebe, a oferta de materiais era bem
diversificada.
Ao que tudo indica a utilização dessas técnicas diferenciadas estava ligada às
dimensões da obra e ao volume d‟água que o muro deveria conter. Quanto maior o
volume d‟água, ou a altura do reservatório, maior deveria ser a amarração dos
elementos componentes do muro de represamento.
No que diz respeito às funções, os açudes cumpriam basicamente duas:
reservatórios de água, como no caso dos sistemas de mundéus ou elevar o nível de um
determinado curso de água para que ela pudesse ser utilizada em locais mais altos.
Merece citação ainda, a prática do represamento que não implica
necessariamente na construção de açudes. essa prática era utilizada sempre que se
pretendia desviar um determinado curso de água de seu leito original. nesse caso a
técnica quase sempre as restringia à construção de muros de terra e pedra, nas
proporções que o curso de água em questão exigia. Algumas dessas obras
conseguiram resultados realmente impressionantes, obtendo o desvio de rios de médio
porte por vários quilômetros, como é o caso do Rio Traíras na fazenda Água Parada,
denominação derivada dos efeitos provocados por esse tipo de desvio. Informações
orais não confirmadas apontam para a possibilidade de que até o Rio Maranhão tenha
sido desviado de seu leito.
Outro tipo de elemento muito comum em sistemas hidráulicos de mineração
foram os aterros. Essa construção tinha como objetivo fundamental, em geral, a
elevação do nível do solo, para que sobre essa elevação pudesse correr um canal de
transporte de água. Embora de técnica de construção simples, suas dimensões às vezes
exigiam grandes quantidades de material (geralmente pedras e terra) e de mão de
obra. Os aterros também evidenciam a utilização de trabalho coletivo sob comando
unificado, ou seja: trabalho escravo. Geralmente associados a essas construções
encontramos as vestígios (buracos) de onde foi retirado o material para sua
construção.
Um dos mais expressivos tipos de vestígios que o trabalho de prospecção tem
evidenciado são muro de pedras. Eram constituídos a partir de duas técnicas básicas.
A primeira tinha como resultado o muro minhoto, também denominado de “junta
seca” pelo fato dos blocos serem empilhados sem a utilização de argamassa. A
segunda técnica consistia na utilização de argamassa para unir os blocos e fechar as
reentrâncias entre eles.
Associados à atividade mineral encontramos tanto um quanto outro tipo de
técnica. No caso de contenção de barrancos, nas proximidades das lavras, a técnica
predominante era “junta seca”, limitando-se a dimensão do muro apenas à área que se
pretendia conter.
Quando construídos para o represamento das águas das águas, no caso de
açudes por exemplo, evidentemente os muros deveriam ser capazes de vedar no
sentido literal do termo, a passagem da água. Nesse caso, era necessário a utilização
simultânea de diferentes tipos de material: terra, pedras, madeira, palha e até mesmo
estrume de vaca. Na maior parte dos casos, os muros de açudes eram formados por
135
dois muros paralelos de pedra, preenchidos de terra socada, evidenciando a
modalidade de taipa denominada de “pilão”.
Mas, os muros que compõem o conjunto de sítios prospectados tinham ainda
várias outras funções: delimitar propriedades, impedir que o gado penetrasse em áreas
de plantação (pomares por exemplo), ou ainda delimitar o espaço permitido aos
animais como currais, pocilgas, etc. Qualquer que seja sua função, os muros são
fundamentais para elucidar um aspecto de qualquer cultura, que é muito importante
para a arqueologia: a definição, distribuição e utilização do espaço.
Através da denominação de catas foram, e são conhecidos, os buracos feitos
para a extração do sedimento a ser lavado. Com dimensões e formas variadas
encontram-se em quase todos os locais onde a atividade mineradora foi desenvolvida.
Algumas chegam a atingir grandes dimensões, que eram determinadas pela dimensão
da “mancha” de sedimento no qual havia ocorrência do mineral a ser extraído.
A observação dessas catas nos permite perceber a necessidades da criação de
planos inclinados, que iam da borda ao fundo, para possibilitar o acesso dos
trabalhadores ao seu interior e para que pudessem retirar o sedimento e levá-lo ao
local onde seria lavado.
Outra prática, menos comum, no entanto mais perigosa, consistia na
escavação de pequenos buracos nas paredes das catas, onde trabalhadores pudessem
colocar as mãos e os pés para utilizá-los como escada esta segunda técnica implica em
riscos de queda, o que tornaria a atividade tanto mais arriscada, quanto mais profunda
fosse a cata. Além de arriscada, essa técnica era potencialmente mais onerosa já que
colocaria em risco a vida de escravos, um bem que pela lógica do escravismo sempre
era necessário preservar, enquanto investimento de capital.
A profundidade dessas catas era variável já que em alguns lugares o
sedimento a ser lavado se esgotava a menos de um metro de profundidade, enquanto
em outros lugares essa profundidade podia atingir de quinze a vinte metros, o que se
evidencia na existência atual de buracos gigantescos, que certamente demandaram
enorme quantidade de força de trabalho para a sua execução.
As Fazendas
Sob a denominação genérica de fazenda - entende-se o conjunto formado
pela propriedade territorial juntamente com os elementos que possibilitam a
permanência humana e o desenvolvimento das atividades econômicas, para as quais a
unidade produtiva está voltada.
Esse tipo de sítio pode apresentar restos de residências ou de outros
elementos constitutivos como currais de pedra e/ou madeira, engenhos, moinhos,
monjolos, pocilgas, canais para abastecimento de água, etc.
As evidências obtidas pelo trabalho de prospecção indicam construções não
muito grandes e nem muito luxuosas. Tendência que, ainda hoje, se percebe nas sedes
de grande número das fazendas nessa parte do território goiano. Isto significa que na
atualidade temos, de certa forma, a reprodução de uma tendência cultural, nos hábitos
de moradia, cuja origem deve estar no século XVIII. Estas evidências arqueológicas
são corroboradas pelo levantamento bibliográfico e documental. Os inventários e os
registros dos viajantes do século XIX atestam a pobreza do mobiliário destas
fazendas.
136
Os vestígios encontrados apontam para uma predominância das fazendas
voltadas para a atividade agro-pastoril, que não exigem o investimento de grande
capital na sua instalação. As atividades de transformação como as desenvolvidas por
moinhos, engenhos, etc, não ocorriam na mesma freqüência.
Como foi dito, os vestígios das residências não indicam hábitos excepcionais
mas, apenas o cotidiano de uma vida simples, para não dizer austera.
No tocante ao material utilizado nas construções, predomina, sem dúvida
alguma a pedra, elemento típico do universo arquitetônico barroco colonial.
Logicamente esta predominância era determinada pela própria oferta de matéria prima
que a região oferecia.
Quanto à distribuição/ocupação do espaço nesses sítios, as informações ainda
não são suficientes para detectarmos uma possível tendência embora alguns traços
fundamentais tenham sido captados. Em primeiro lugar se destacam três tipos de
evidências ligadas ao processo de transformação dos alimentos: fogões, fornos e
fornalhas.
Os fogões geralmente de formato retangular se enquadram no tipo tradicional
caracterizado por dois alinhamentos paralelos sobre base mais elevada e que eram
utilizados para suporte dos recipientes. A base tanto podia ser ela mesma de alvenaria
(pedra por exemplo) ou um girau de madeira que deixava um espaço livre embaixo do
fogão (espaço este utilizado às vezes para depósito de madeira a ser consumida pelo
próprio fogão).
Os fornos, também de formato bastante difundido, são os denominados
“fornos de cupim”. De formato circular apresentam uma cúpula que varia do cônico
ao semi-esférico. A matéria prima vai do barro (argila) à pedra (com argamassa)
passando pela utilização eventual de pedaços de cupinzeiro. Existe ainda o
respiradouro cuja posição é variável podendo estar na parte superior ou posterior da
cúpula. O funcionamento deste tipo de forno também é simples: o fogo é colocado em
seu interior para o aquecimento prévio; posteriormente a madeira em combustão é
retirada e o alimento a ser cozido é introduzido no interior do forno e a entrada é
fechada com uma laje (plaqueta) de pedra. Detalhe importante: a entrada de
praticamente todos eles tem formato quadrangular e a moldura é constituída por três
pedras que se ajustam na posição de um U invertido.
As fornalhas também apresentam uma concepção tradicional onde a
funcionalidade é determinada pela utilização de tachos, ou outro tipo de recipiente
redondo, para o cozimento do caldo de cana ou a confecção de cozidos diversos
(sabão, doces, etc). O formato é circular, as paredes verticais e a entrada para a
alimentação do fogo acompanha a concepção utilizada para as entradas dos fornos
(quadrada e na posição de U invertido).
A esta descrição é necessário acrescentar que tais elementos nunca se
localizam dentro da casa de moradia mas estão geralmente afastadas dela e protegidas
por um tipo de cobertura. Esta disposição dos elementos no espaço doméstico na
realidade expressa uma prática comum na arquitetura rural colonial, não constituindo
algo excepcional mas a regra geral.
Outro elemento típico nas fazendas é a existência de vestígios de cercas de
madeira, (em que predomina absoluta a aroeira), geralmente usadas para delimitar
áreas como o pomar ou então currais.
137
Do ponto de vista da técnica construtiva poderíamos classificar estas cercas
de duas maneiras: ou os esteios estão todos eles assentados verticalmente ou então,
através de um sistema de encaixe, parte é vertical e a maioria horizontal.
Os vestígios das casas supostamente utilizadas para moradia apresentam,
geralmente, um alicerce de pedras (com argamassa ou junta seca), às vezes vestígios
de esteios, baldrames e, quando existem vestígios de parede a técnica que se manifesta
é a de adobe; embora em alguns casos o pau-a-pique também tenha sido utilizado.
Outro tipo de evidência arqueológica que aparece com razoável freqüência
são os vestígios de monjolos e engenhos. E em pelo menos um caso, vestígios de um
moinho d‟água. Todos estes vestígios também apresentam elementos técnicos
tradicionais, não fugindo às regras que ainda hoje regem a construção destes
equipamentos. Em linhas gerais os elementos descritos são os mais notáveis que
caracterizam as fazendas voltadas para as atividades agro-pastorís e de transformação.
Sítios Mistos
Nesta categoria foram englobados os sítios que apresentam evidências de
atividades agro-pastoris e também de mineração.
A articulação destes dois tipos de atividades, de certa forma foi a maneira
encontrada para que o desenvolvimento da atividade mineral não fosse prejudicada
pelas deficiências de abastecimento. É provável que fatos ocorridos na região de
Minas Gerais tenham alertado para a possibilidade de desabastecimento aos
mineradores, comprometendo a perspectiva mercantilista da Coroa Portuguesa. Daí o
fato de que a própria Coroa se preocupou em criar nas regiões mineradoras
mecanismos de auto abastecimento, para que a atividade nuclear (a mineração) não se
visse na contingência de ser interrompida por falta de gêneros alimentícios.
Os sítios mistos não apresentam particularidades excepcionais, apenas a
fusão de atividades diversificadas na mesma unidade produtiva.
Se compararmos o número deste tipo de sítio com os dois anteriores (lavra e
fazendas) é possível perceber a tendência à especialização das unidades produtivas.
Dito de outra forma, se considerarmos apenas o universo dos três tipos de sítio
dominantes (lavra, fazendas e mistos) a categoria dos sítios mistos participa deste total
com apenas 5,5%, cabendo às lavras a participação com 58,7% e as fazendas
perfazem o total de 35,8%.
O reduzido número de sítios mistos, em princípio, pode ser visto como
indicador de uma tendência à especialização. Entretanto, tal assertiva não pode ser
vista como uma conclusão definitiva. As informações obtidas pelo levantamento
documental apontam para uma maior diversidade do que esta apontada pela
prospecção arqueológica.
Daí resulta o fato de que o trabalho de salvamento é que permitirá constatar,
se efetivamente, as unidades de economia diversificada (sítios mistos), tinham apenas
a expressão numérica apontada pelo trabalho de prospecção.
A conclusão da montagem do banco de dados com o cruzamento de todas as
informações disponíveis é que permitirá resolver esta questão.
138
Os Cemitérios
Os cemitérios prospectados encontram-se na sua maior parte fora da área de
inundação. São constituídos, em geral, por uma área na qual se percebe a existência de
sepulturas, ou porque ainda existem cruzes ou fragmentos ou porque o abatimento do
terreno não deixa dúvidas quanto à sua existência.
Um indicador cultural expressivo se manifesta no costume de plantar piteiras
nos locais de sepultamento, para que tais plantas servissem de indicadores do local.
Esse hábito contribuiu para demarcar de forma inequívoca alguns desses sítios. O
plantio de apenas um exemplar de piteira é suficiente para que após alguns anos toda a
área do cemitério esteja ocupada por dezenas de indivíduos da espécie.
Outro aspecto ligado a esse tipo de sítio é o costume de cercá-los com muros
de pedras, ou com cercas de madeira vertical (aroeira) para evitar que animais
pudessem depredá-los. Não foi constatada nenhuma prática de construção de túmulos
e/ou alguma forma de mausoléu. Tais práticas são, aparentemente, tardias na região, e
no meio rural não parece existir indicadores de que tenham se desenvolvido.
Embora classificados aqui como material arqueológico (e inegavelmente
estes sítios o são, pela suas origens históricas e pelo seu contexto de localização) estes
sítios serão objeto de uma reflexão específica dada a sua natureza.
A premissa que deverá notear esta reflexão parte da constatação de que estes
cemitérios ainda estão em uso/atividade.
Tal constatação se fundamenta em dois dados da realidade: o fato de que
alguns destes cemitérios terem recebido sepultamentos em anos recentes, e o fato de
parentes dos sepultados ainda cumprirem ali, periodicamente, seus rituais de culto aos
mortos.
A realidade expressa neste dados envolve ainda uma questão de cidadania
que passa pelo direito de preservação de crenças e valores.
É evidente que nenhum destes moradores que tem seus ancestrais, ou
parentes imediatos ali sepultados. admitirá a possibilidade de ver seus mortos serem
retirados e transformados em objetos de museu.
Pelo exposto consideramos que no caso dos cemitérios não se justifica uma
intervenção arqueológica que passe pela escavação. A obtenção de dados deverá
necessariamente contemplar esta realidade.
Os Núcleos Urbanos
Os núcleos urbanos, evidentemente não apresentam as características dos que
modernamente podem ser assim denominados. Tais núcleos não apresentam critérios
modernos de organização do espaço, mesmo porque, os surtos de mineração
geralmente subordinam tais critérios à dinâmica da própria atividade (mineração),
motivo que levou Sérgio B. de Holanda a fazer a célebre comparação entre as cidades
coloniais portuguesas e espanholas (5).
É importante que fique claro que estamos entendendo por núcleos urbanos os
aglomerados de casas que acabaram por se tornar vilas ou aldeias. Muitos desses
locais, com a crise da atividade mineradora entraram em decadência e desapareceram,
139
restando apenas ruínas como no caso de Água Quente, Cocal. Traíras e Santa Rita,
dentre outros.
Dos antigos núcleos desaparecidos a maior parte está fora da área inundável.
No caso do arraial de Santa Rita, apenas parte do sítio deverá ficar submersa. As
evidências mais expressivas deste núcleo são conjuntos de muros e canais. Os muros,
todos eles de pequena altura (nunca vão além de 1,0m) parecem indicar limites de
propriedades (quintais) e áreas de circulação (arruamentos).
A pequena altura dos muros pode indicar o fato de terem sido parcialmente
destruídos ao longo do tempo ou pode indicar que sua função era evitar a entrada de
animais nos pomares. Se a segunda explicação é correta não haveria necessidade de
serem muito mais altos do que se apresentam hoje.
Próximos deste núcleo destaca-se a ruína de uma grande açude que represava
as águas do córrego Santa Rita. As dimensões dos vestígios apontam para uma obra
realmente expressiva nas dimensões do que pode ter sido o seu espelho d‟água. Sua
utilidade provavelmente estava ligada à atividade mineral e/ou abastecimento. O
trabalho de salvamento permitirá a reconstituição tanto da malha do núcleo urbano
quanto a forma e dimensões do açude e demais elementos a ele articuladores.
Sítios de Contato
Foram definidos desta maneira os sítios onde as evidências arqueológicas
apontam para a possibilidade de coexistência de duas ou mais culturas (indígena,
européia e africana).
Antes de mais nada, é necessário deixar claro que apenas o trabalho de
salvamento (e a posterior análise do material coletado) poderá permitir afirmar, com
segurança, que tais sítios foram efetivamente locais de contato de diferentes culturas.
Não pode ser descartada a possibilidade de diferentes culturas terem se
estabelecido no mesmo local em épocas diferentes e nesta medida não terem
estabelecido relações. Neste caso a evidência arqueológica de culturas diferentes, no
mesmo local, não indicará contato, mas apenas uma sucessão cronológica de
ocupação.
A solução deste problema passa, por uma lado, pelo processo de salvamento
e, por outro, pela elucidação de como se deu a formação e ocupação do território
goiano por suas populações indígenas. Particularmente no que diz respeito à
população dos avá-canoeiros.
Dos três sítios classificados como de Contato apenas uma está efetivamente
dentro da área inundável (Córrego Três Ranchos I). O local teria sido ocupado por
avá-canoeiros em período histórico o que aponta para a possibilidade de ocorrência de
vestígios que evidenciam contato cultural. Uma análise do local e a coleta de
informações orais confirmou tratar-se não de um sítio de contato mas de área ocupada
por índios e brancos sem continuidade entre as ocupações.
Os Presídios
140
Os presídios, diferentemente do conteúdo que o termo possui atualmente, no
período colonial eram geralmente locais fortificados, daí a origem do nome, que
funcionavam como entrepostos e como posições avançadas do poder público colonial.
Enquanto posições avançadas exerciam o papel de fiscais das atividades
econômicas, evitando contrabando por exemplo, e funcionavam também como linha
de frente para a expansão da fronteira agrícola e para a contenção de possíveis ataques
indígenas.
A construção e manutenção desses locais foi uma das soluções para o
problema dos vadios no Império Colonial Português(6). Começando por uma
construção precária poderiam, com o tempo, vir a constituírem embriões de núcleos
urbanos, na medida em que seu funcionamento como entrepostos permitia o
estabelecimento de fluxos regulares de pessoas e produtos.
O Presídio de Santa Bárbara, único identificado pelo trabalho de prospecção,
está localizado fora da área inundável. De qualquer maneira, os vestígios que dele
restaram são mínimos, pelas inúmeras vezes em que o terreno foi arado para a
formação de pastagens. No local, os vestígios perceptíveis são pequenos fragmentos
de cerâmica além da madeira vertical de uma cruz que teria restado do cemitério
existente. Fragmentos melancólicos de um núcleo que por informações documentais,
parece ter sido dinâmico em épocas passadas.
Os Portos
A navegação por trechos dos Rio Tocantins, Maranhão, das Almas e outros,
foi uma constante desde o primeiro quartel do século XVIII, quando teve início o
processo de ocupação do território goiano em função dos interesses do Império
colonial Português.
Esta navegação exigiu desde o início o estabelecimento de locais onde os
barcos pudessem atracar com alguma segurança, principalmente pelo fato daqueles
rios serem caudalosos em muitas partes de seus cursos. Percebe-se por esse motivo a
necessidade de implantação de portos em alguns pontos daquelas partes navegáveis.
A documentação pesquisada é explícita na indicação da existência desses
portos. Muitos deles eram apenas lugares onde havia o estreitamento da largura de
algum rio. Como esses lugares eram aproveitados para a travessia de uma margem a
outra, ao se constituírem em pontos de travessia acabaram por atrair o movimento dos
barcos e se tornaram portos. O próprio governo colonial, e posteriormente o imperial
tiveram interesse na preservação desses locais.
O trabalho de prospecção realizado identificou apenas dois destes pontos:
Porto da Lavra e o Porto do Bagagem. Nenhum dos dois apresenta vestígios de
construção ou outros indicadores mais precisos; apenas a tradição oral os indica como
antigos locais utilizados como portos.
Diversos
Nesta categoria estão englobados todos os sítios que apresentaram vestígios
para definir sua função ou então apresentam um caráter excepcional no conjunto dos
sítios como é o caso da “Trilha dos Bandeirantes”.
141
Vários destes sítios apresentam pequenos segmentos de muros de pedra em
condições tais que sua atividade não pôde ser precisada. Um ou outro vestígio de
canal também foi enquadrado nesta categoria. Neste conjunto de sítios mereceu
destaque a “Trilha dos Bandeirantes” localizada nas imediações de N.S.da Abadia do
Muquém e um “forno de queimar telhas” localizado na Fazenda Engenho Novo na
margem esquerda do Rio Tocantinzinho e que está fora da área de inundação.
A Trilha dos Bandeirantes é constituída de segmentos de uma estrada calçada
com lajes, evidenciando por uma lado trabalho escravo e por outro a importância da
própria via. No período colonial apenas as estradas reais recebia este tipo de
tratamento (requintado para a época) pelos altos custos envolvidos na sua construção.
IV
Vejamos agora alguns aspectos que dizem respeito a avaliação e
monitoramento. A avaliação de um projeto desta natureza deve sempre levar em conta
vários aspectos. O primeiro deles certamente passa pela determinação da fase de
desenvolvimento em que ele se encontra.
No caso específico que estamos tratando, o projeto encontra-se na metade de
seu processo de execução. Evidentemente isto traz implicações de diversos tipo sendo
a maior delas o fato de não permitir uma avaliação definitiva do trabalho total
realizado. Apenas parte dele pode ser avaliado.
É importante lembrar aqui que trata-se de um projeto de arqueologia
histórica, o que o diferencia sobremaneira de um projeto de arqueologia pré-hitórica.
Os critérios de avaliação são necessariamente diferentes num e noutro caso.
O segundo aspecto a ser considerado diz respeito aos objetivos propostos
pelo projeto, e os resultados atingidos, não só em sua fase final mas também nas
etapas intermediárias. Mesmo considerando que o trabalho arqueológico está em
grande parte marcado pela incerteza, que antecede tanto a fase de prospecção quando
a da escavação, um projeto não pode ser montado sobre critérios que não se
sustentam.
A maior ou menor proximidade entre os objetivos propostos e os resultados
atingidos é por certo um elemento de avaliação, tanto da montagem do projeto quanto
da sua execução. Quanto maior a distância entre os objetivos propostos e os resultados
atingidos maior é o erro de avaliação durante a fase de montagem. Evidentemente tal
tipo de erro não invalida um projeto executado, mas certamente o coloca em posição
de fragilidade no que diz respeito a este pronto.
No que diz respeito aos dois primeiros aspectos colocados a avaliação que
fazemos do projeto em questões é positiva. Embora apenas sua metade tenha sido
realizada é possível afirmar sem margem de erro, que do ponto de vista dos objetivos
propostos o resultado não podia ser melhor. Antes de mais nada porque as
informações (orais, bibliográficas e documentais) tem sido confirmadas a cada passo
da realização do salvamento. Se por um lado a quantidade de sítios levantados foi
novidade, do ponto de vista qualitativo não houve surpresas: o que foi encontrado era,
em grande parte, o esperado.
Um terceiro aspecto a ser considerado, quando se trata de avaliar um projeto
(concluído ou em execução) é como seu cronograma de campo tem se desenvolvido.
142
Este aspecto adquire maior relevância quando o projeto tem seu cronograma atrelado
ao da obra, como em Serra da Mesa. Neste caso uma avaliação objetiva deverá
trabalhar com informações precisas, do processo de enchimento do reservatório, e
contar com o risco de perda de sítios, diante da velocidade de subida do nível da água.
Este último ponto levantado nos remete ao quarto aspecto que deve ser
considerado. Qual é a relação que pode ser estabelecida entre a dimensão do
patrimônio resgatado e a extensão da área inundada? Esta questão é crucial quando o
projeto é desenvolvido a partir de critérios de amostragem. Até que ponto pode se
considerar expressiva de uma totalidade uma amostra que tenha contemplado, 25%
por exemplo, da determinada área? Para o caso do patrimônio arqueológico histórico
da área de Serra da Mesa podemos afirmar com segurança que este índice jamais
permitiria uma amostra efetivamente significativa, tal a diversidade da realidade
resgatada.
O último aspecto que gostaríamos de tocar diz respeito a custos financeiros.
Trata-se no caso de estabelecer relações entre alguma variáveis como: a dimensão da
área e do patrimônio a ser resgatado; o tempo gasto no projeto e seu atrelamento ao
cronograma da obra; a dimensão da equipe e o ritmo de execução dos trabalhos.
É evidente que os resultados atingidos por uma avaliação desta natureza
serão diferentes se o projeto é desenvolvido por amostragem ou não. É fundamental
perceber que apenas a relação entre o custo global do projeto e a área total do mesmo
não é suficiente para avaliar qualquer aspecto de qualquer projeto. Em que pese a
visão equivocada de que os custos de um projeto devem ser entendidos na perspectiva
neoliberal de sua regulação pelo mercado.
Quanto à questão do monitoramento gostaríamos de tocar em dois aspectos
embora muitos outros possam estar relacionados.
No primeiro caso trata-se da circunstância em que o trabalho de salvamento
está atrelado ao processo de enchimento do reservatório, como é o caso de Serra da
Mesa. Neste caso o monitoramento deve ser desenvolvido no sentido de otimizar o
trabalho de campo para escapar dos riscos de perda do material arqueológico pela
subida da água. A estratégia adotada deverá levar em conta a velocidade de subida da
água e a altimetria.
A articulação entre velocidade e altimetria deverá estar na base desta
perspectiva de monitoramento.
O segundo caso diz respeito à guarda do patrimônio arqueológico resgatado.
É evidente que tal patrimônio pertence à comunidade de onde foi retirado; e para ela
deveria retornar desde que nela existissem condições mínimas de conservação. No
caso do patrimônio arqueológico histórico de Serra da Mesa reza o contrato que ele
deverá ficar, devidamente acondicionado em local da UFG que deverá estabelecer
uma política para sua preservação. Caberá a quem de direito fazer o monitoramento
para avaliar suas condições de conservação.
À guisa de conclusão gostaríamos de lembrar que quaisquer que venham a
ser os critérios de avaliação e monitoramento adotados esses deverão, sempre, ser
adequados à realidade de cada projeto. E mais, a generalização indiscriminada de
critérios de avaliação para quaisquer projetos pode levar à invalidação destes mesmos
critérios.
143
NOTAS
1. ver, dentre outras, a obra de Basílio de Magalhães, Expansão Geográfica do
Brasil Colonial, São Paulo, Nacional/MEC, 1978.
2. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial.
São Paulo, Hucitec, 1979.
PINTO, Virgílio Noya. O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-Português. São
Paulo, Nacional/MEC, 1979.
VILAR, Pierre. Ouro e Moeda na História 1450-1920. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1981.
3. HOLANDA, Sérgio B. de. (org). História Geral da Civilização Brasileira. Rio de
Janeiro, Difel, 1977. Tomo I, 2o vol. Livro quarto, cap.II,V e VI.
IANNI, Octávio. As metamorfoses do Escravo. São Paulo, Difel, 1962.
PRADO JR. Caio.Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Brasiliense,
1989.
______________. História Econômica do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1961.
4. O termo Presídio era usado para designar entrepostos ou posições avançadas do
Estado Colonial.
5. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras,
1955. Ver especificamente o capítulo “o semeador e o ladrilhador”.
6. Uma análise desse fenômeno, para o caso de Minas Gerais, pode ser encontrada em
Desclassificados do Ouro, de Laura de Melo e Souza, Rio de Janeiro, Editora
Graal, 1986.
144
DETECÇÃO E RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS DE
IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS RODOVIÁRIOS
Maria do Carmo Mattos M. Santos
INTRODUÇÃO
A Resolução CONAMA N 001/86, que institui a obrigatoriedade de
elaboração e apresentação do Estudo de Impacto Ambiental - Rima para o
licenciamento de atividades consideradas modificadoras do meio ambiente, constitui
importante instrumento na prevenção da destruição indiscriminada dos recursos
arqueológicos sem o adequado registro e estudo, o que não era conseguido até então
apenas na vigência da legislação de proteção do patrimônio histórico e pré-histórico
nacional. Isto deve-se ao fato de que, no escopo dos EIAs, o patrimônio arqueológico
histórico e pré-histórico constitui uma das variáveis a serem avaliadas no contexto dos
fatores ambientais do meio antrópico.
No que se refere à Arqueologia, os Estudos de Impacto Ambiental
apresentam-se como uma oportunidade de geração de conhecimento e avanço
científico quando consideramos que: a) a exemplo do que dizem Scovill, Gordon &
Anderson (1977, p. 46) para os Estados Unidos, o conhecimento que se tem do
patrimônio arqueológico brasileiro também é pequeno, fragmentário e inconclusivo
diante do potencial de conhecimento não estudado e ainda não destruído; b) que os
recursos arqueológicos são recursos não-renováveis e finitos; c) que os impactos
negativos sobre estes recursos tem caráter cumulativo e irreversível; d) e que a
mitigação destes impactos será possível através do levantamento da informação
contida nestes recursos, a partir de pesquisas baseadas em estratégias científicas e
profissionais. Além disso, a iminência de perda de informação sobre culturas
pretéritas, considerando-se o caráter não-renovável e finito dos recursos
arqueológicos, está estimulando inclusive o desenvolvimento de métodos e técnicas
arqueológicas adequadas à realidade dos EIAs.
É sabido que as especificidades de um empreendimento (área definida por
critérios não arqueológicos, restrições de tempo e de orçamento) são antagônicas às
condições ideais de pesquisa científica (investigação de longa duração respondendo a
programas de pesquisa cientificamente concebidos), mas é possível desenvolver
dentro de EIAs pesquisas com hipóteses de trabalho bem definidas, que gerem novas
informações, ampliando o conhecimento existente e, até mesmo, colocando novas
questões.
Nos primeiros anos de vigência da legislação ambiental, a idéia de
“salvamento” de sítios arqueológicos a serem afetados por grandes empreendimentos
impediu que o patrimônio arqueológico fosse considerado em seu pleno aspecto
científico e histórico - buscando contribuir para a compreensão do nosso passado
cultural-, e também contribuiu para estigmatizar (negativamente) as pesquisas
realizadas pela “arqueologia de salvamento”. É preciso que se questione a visão
simplista de detecção e posterior resgate de sítios arqueológicos como única e
suficiente medida de mitigação de impactos sobre o patrimônio arqueológico.
145
O processo deve ser encarado em toda a sua amplitude, onde a detecção e o
resgate constituem momentos importantes mas não únicos ou suficientes, devendo ser
precedidos pela definição de uma estratégia clara de levantamento decorrente do
diagnóstico do potencial arqueológico da área a ser afetada, do estabelecimento de
critérios de significância para a escolha dos sítios a serem preservados ou resgatados,
e seguidos do estudo do material proveniente do levantamento e do resgate, da
elaboração de programas de acompanhamento e monitoramento, e de posterior
divulgação dos resultados e conclusões.
DETECÇÃO E RESGATE DE BENS ARQUEOLÓGICOS EM ÁREAS DE
IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS RODOVIÁRIOS
A Resolução CONAMA n 001/86 em seu artigo 2 , inciso I cita diversos
tipos de empreendimentos, dentre eles “as estradas de rodagem com duas ou mais
faixas de rolamento” como atividades modificadoras do meio ambiente que
dependem, para seu licenciamento, da elaboração de Estudos de Impacto Ambiental Rima. A análise e a aprovação do EIA-Rima é condição para a obtenção da Licença
Prévia (LP) nos empreendimento citados neste artigo.
O diagnóstico ambiental da área de influência de um projeto deve abranger
completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como
existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação
do projeto... (Res. Conama 001/86, Art. 6, Inc.I) visando inferir/analisar as variáveis
passíveis de sofrer impactos diretos ou indiretos nas fases de planejamento, de
implantação e de operação do empreendimento. No que se refere ao patrimônio
arqueológico, este diagnóstico partirá de uma contextualização arqueológica da área a
partir de fontes secundárias e permitirá, principalmente, propor questões a serem
respondidas pelo levantamento arqueológico sistemático a ser desenvolvido
preferencialmente nesta fase.
A análise dos impactos ambientais de um projeto dar-se-á após a
identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis
impactos relevantes, que terão sido avaliados enquanto impactos positivos e negativos
(benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazo,
temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade... (Res. Conama 001/86, Art.
6, Inc.II). No caso do patrimônio arqueológico, se considerarmos que a destruição de
um sítio arqueológico constitui sempre um impacto negativo, direto, imediato,
permanente e irreversível, o levantamento arqueológico sistemático da área parece ser
imprescindível para uma correta avaliação (identificação/valoração/interpretação) dos
impactos que serão gerados pelo empreendimento, e para posterior proposição de
medidas mitigadoras e de programas de acompanhamento e monitoramento destes
impactos.
É importante ressaltar que o levantamento arqueológico não precisa,
necessariamente, completar-se com a avaliação dos impactos, podendo ser definida a
sua continuidade tanto no âmbito da proposição de medidas mitigadoras como no dos
programas.
A estratégia do levantamento arqueológico da área a ser afetada por um
determinado empreendimento deve procurar abranger toda a diversidade de recursos
146
arqueológicos existentes na área de estudo, sendo condicionada por uma variedade de
fatores específicos de cada projeto, entre eles:
conhecimento já existente do contexto arqueológico da área em
estudo;
problemas de pesquisa a serem resolvidos;
natureza do empreendimento (linear - rodoviário, ferroviário,
dutoviário, linhas de transmissão, etc, ou em áreas amplas hidrelétrica, projeto urbanístico, distrito industrial, projeto
agropecuário, extração de minério ou combustível, porto/aeroporto,
etc);
extensão da área a ser afetada;
categoria
de
licenciamento
(licença
prévia/licença
de
instalação/licença de operação);
tempo disponível e recursos alocados.
Qualquer que seja a estratégia adotada para executar o levantamento do
patrimônio arqueológico ela passa necessariamente por decisões condicionadas pelos
fatores acima, no que se refere aos seguintes aspectos:
1. cobertura - locais dentro da área de estudo onde serão aplicadas as técnicas de
levantamento arqueológico. Esta cobertura pode ser total ou utilizar métodos de
amostragem (aleatória ou estratificada), embora a cobertura total dificilmente se
justifique em termos das necessidades de pesquisa.
2. intensidade - grau de esforço dispendido no levantamento das áreas a serem
cobertas (homem-dia/km2) incluindo a opção pela investigação de subsuperfície -,
condicionada, também, por fatores como: capacitação profissional da equipe,
espaçamento entre os membros da equipe, cobertura vegetal, topografia, logística,
acessibilidade, natureza das informações a serem coletadas - inclusive coleta de
material;
3. visibilidade - interferência de fatores como cobertura vegetal, processos de
sedimentação e de erosão, re-ocupação da área etc, na possibilidade de observação
do solo;
4. acessibilidade - limitações no acesso de áreas a serem cobertas quer por fatores
topográficos ou de vegetação, que devem ser explicitadas e, se possível, reduzidas
ao mínimo. (SCHIFFER, M. & GUMERMAN, G., 1977, pp.184-187.)
Além de permitir estimativa do número de sítios arqueológicos a serem
afetados, o levantamento do patrimônio arqueológico deve trazer informações
individualizadas, por sítio, sobre implantação, profundidade e espessura do depósito
arqueológico, conteúdo cultural, estado de conservação e situação em relação ao
empreendimento (CALDARELLI, 1993), possibilitando a avaliação do potencial
científico da área como um todo e, também, dos sítios individualmente - o que
condicionará as opções por medidas de preservação ou de resgate.
O levantamento arqueológico delineia o universo de sítios arqueológicos na
área afetada por um empreendimento. A partir dele, e utilizando critérios de
significância, será proposto o resgate como medida mitigadora, que pode abarcar
todos os sítios identificados ou somente alguns deles. Isto será definido baseando-se
tanto no conhecimento pré-existente dos recursos arqueológicos da área quanto nos
resultados do levantamento, quando ocorrências já bem estudas e recorrentes podem
147
ser negligenciadas em função de ocorrências inéditas dentro do contexto arqueológico
da área.
Desta forma, dentre os fatores que contribuem para as opções do resgate a ser
desenvolvido, podemos citar:
conhecimento prévio do contexto arqueológico da área;
número de sítios detectados no levantamento;
problemas de pesquisa a serem resolvidos;
o potencial informativo de cada sítio, condicionado principalmente
por seu estado de conservação;
espessura e profundidade do depósito arqueológico;
extensão da área do sítio;
tempo disponível e recursos alocados.
É importante que o sítio seja representado na sua diversidade de áreas de
atividade, daí a necessidade de delimitação da área do sítio considerando tanto os
vestígios em superfície como em profundidade, o que influencia diretamente a
estratégia de coleta a ser adotada.
Um dos problemas que se coloca no resgate de sítios identificados através de
levantamentos arqueológicos desenvolvidos em EIAs é o tipo de coleta (total, seletiva
ou por amostragem) que será desenvolvida (REDMAN & WATSON, 1979). Sabe-se
que a análise do material proveniente de um sítio arqueológico demanda muito tempo
para ser concluída, geralmente não se adequando às pressões do cronograma dos
empreendimentos. Assim sendo, existe a necessidade de adotar uma estratégia de
coleta que represente o mais fielmente possível o universo dos vestígios existentes no
sítio, procurando-se evitar tanto a recorrência quanto a ausência de elementos,
optimizando o volume de material coletado para análise.
É preciso que se saliente que o resgate de um sítio não se extingue na coleta
do material, que por si só não leva à produção de conhecimento, mas inclui a análise,
interpretação, e divulgação das conclusões elaboradas a partir do material coletado.
Para que a qualidade da pesquisa arqueológica não seja questionada, os financiadores
dos empreendimentos, e consequentemente dos EIAs, devem compreender a
singularidade dos recursos arqueológicos e da pesquisa arqueológica, e que a
mitigação de um impacto negativo sobre estes recursos passa necessariamente por
todas estas etapas.
PROJETO DE LEVANTAMENTO E SALVAMENTO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO DA
FAIXA DE DOMÍNIO DA RODOVIA CARVALHO PINTO, VALE DO PARAÍBA, ESTADO DE
SÃO PAULO
A Rodovia Carvalho Pinto (SP-070), continuação da Rodovia Airton Senna
(antiga Rodovia dos Trabalhadores), apresenta-se como alternativa à Rodovia
Presidente Dutra interligando os municípios de Guararema a Pindamonhangaba, no
Vale do Paraíba, numa extensão de 70 km. Empreendimento sob a responsabilidade
da DERSA-Desenvolvimento Rodoviário S/A, teve suas obras iniciadas em 1989
(Fig.1).
O interesse na análise deste projeto reside no seu pioneirismo no Brasil, tanto
na elaboração de seu projeto técnico quanto na inclusão do patrimônio arqueológico
148
em empreendimentos lineares. O projeto desta rodovia foi desenhado a partir de dados
ambientais, com acompanhamento da Secretaria Estadual do Meio Ambiente,
procurando não interferir agressivamente no corpo ambiental das encostas da Serra do
Mar, utilizando tecnologias de construção avançadas e buscando a preservação dos
recursos naturais. Além disso, pela primeira vez em obras rodoviárias o patrimônio
arqueológico surge como variável a ser considerada na avaliação dos impactos no
escopo de um Estudo de Impacto Ambiental.
O EIA-Rima deste empreendimento exigiu o cumprimento de alguns pontos
básicos da legislação ambiental, inclusive a preservação dos sítios arqueológicos,
tendo sido contratada a PROTRAN Engenharia Ltda. para monitorar os estudos
ambientais complementares.
Como o EIA apontava a possibilidade de dano ao patrimônio arqueológico
regional e considerando a importância histórica do Vale do Paraíba, tanto no que
concerne à ocupação indígena quanto ao seu papel de corredor de circulação no
período colonial e imperial, foi desenvolvido o levantamento e resgate do patrimônio
arqueológico e histórico da faixa de domínio da rodovia. A execução ficou a cargo da
SCIENTIA Consultoria Científica, com o apoio do IPARQ - Instituto de Pesquisa em
Arqueologia da UNISANTOS - Universidade Católica de Santos, sob a coordenação
da Dra. Solange Caldarelli.
É importante ressaltar que no EIA a avaliação do potencial arqueológico e
dos possíveis impactos negativos concernentes à área a ser afetada pelo
empreendimento desenvolveu-se a partir de fontes secundárias, não contando com
trabalhos de campo, daí a proposição do levantamento arqueológico e do resgate na
área diretamente afetada enquanto programas.
O levantamento arqueológico restringiu-se à faixa de domínio da rodovia,
com 130 metros de largura e 70 quilómetros de extensão. A metodologia empregada
buscou identificar vestígios superficiais e em profundidade, e teve a preocupação de
afastar a probabilidade de serem localizados apenas sítios arqueológicos com alta
densidade de vestígios materiais, pois isto implicaria uma recuperação tendenciosa
do patrimônio arqueológico regional, que não refletiria a realidade pretérita
(CALDARELLI, 1994; vol. 1, p. 16).
O levantamento desenvolveu as seguintes atividades:
caminhamento ao longo do eixo da rodovia (estaqueado a cada 20 metros) visando
detectar vestígios arqueológicos aflorados por fatores naturais ou antrópicos;
a cada 250 metros execução de limpeza (retirada da vegetação de superfície) em
áreas circulares de 1 metro de diâmetro, alinhadas transversalmente ao eixo,
visando melhor controle das observações de superfície (o número de pontos de
limpeza variou entre 4 e 6 dependendo da largura da faixa de domínio);
execução de sondagem atingindo 1 metro de profundidade no centro de cada área
de limpeza, visando a detecção de vestígios enterrados;
produção de documentação fotográfica e cartográfica.
Uma vez detectada uma ocorrência arqueológica, exigia-se a preservação de
uma área de 200 metros para cada lado do ponto de ocorrência dos vestígios para fins
de resgate.
O levantamento propiciou a detecção de sete sítios arqueológicos que foram
objeto de resgate (Quadro 1). O grau de intervenção em cada sítio variou de acordo
149
com seu potencial informativo, uma vez que apresentavam distintos graus de
preservação.
No resgate dos sítios procurou-se equacionar adequadamente preocupações
com delimitação de sítio, identificação de áreas de atividade diversificadas intra-sítio,
e coleta de material com a necessidade de maximizar o tempo dispendido nos
trabalhos.
Interessante notar que apesar das pressões de cronograma (a obra havia
obtido a Licença de Instalação) e de recursos, houve a possibilidade de contar com a
infra-estrutura das empreiteiras que já encontravam-se no eixo da obra. Desta forma, a
exemplo do que vem ocorrendo em países com maior tradição em resgates
arqueológicos ligados a grandes obras (VAN HORN et al., 1986), foi possível a
utilização de maquinário como moto-niveladoras e retro-escavadeiras na retirada de
camada estéril e na confecção de trincheiras, o que agilizou incrivelmente os trabalhos
sem que houvesse qualquer perda de informação espacial ou de profundidade.
Pelo contrário, estas máquinas foram muito eficientes, principalmente nos
casos dos sítios que não apresentavam estruturas preservadas em superfície, tanto na
delimitação da área de dispersão dos vestígios como na detecção de áreas
diferenciadas, possibilitando uma rápida visualização do contexto geral do sítio e a
escolha das áreas que seriam objeto de escavação detalhada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O resgate dos sítios arqueológicos detectados na faixa de domínio da
Rodovia Carvalho Pinto trouxe evidências de ocupações diferenciadas no contexto do
Vale do Paraíba paulista, relacionadas em sua maioria à ocupação histórica da área,
além de uma ocupação indígena de grande interesse científico.
Os sítios arqueológicos históricos estendem-se desde o século XVIII até a
primeira metade do século XX, evidenciando um padrão comum na região, a saber:
assentamentos ao redor de caminhos percorridos por tropeiros,
uso de fornos de barro externos às habitações para cocção de
alimentos e de artefatos de barro,
construção de capelas em pontos elevados topograficamente, com
plantas quadrangulares padronizadas (CALDARELLI,1994; vol.1,
pp.133-134).
No que concerne a ocupação indígena da área, o Sítio Caçapava 1 apresentase como um dado novo neste contexto. A cerâmica que ocorre neste sítio distingue-se
das ocorrências de cerâmica tupiguarani relatadas até então para o sul do Vale do
Paraíba paulista e os dados apresentados em MARANCA (1969) para o norte não são
suficientes para permitir comparações. A cultura material do Sítio Caçapava 1
assemelha-se à cultura material da Tradição Aratu, variedade Sapucaí, que segundo
PROUS (1992), ocorre desde o centro de Minas Gerais até o Mato Grosso, passando
pelo norte de São Paulo, com datação do século XI.
Desta forma, o Sítio Caçapava 1 comprovaria a expansão da Tradição
Aratu/Sapucaí até o Estado de São Paulo, hipótese aventada por alguns estudiosos,
mas apenas agora comprovada...(CALDARELLI, 1994, vol.1, p. 135). A descoberta
deste sítio, que constitui importante contribuição para a pesquisa arqueológica,
150
demonstra a possibilidade de alcançar avanços científicos dentro do âmbito dos
Estudos de Impacto Ambiental.
Outro ponto positivo a ser ressaltado é o desenvolvimento e emprego de
novas técnicas de campo na delimitação dos sítios e evidenciação de áreas
diferenciadas, agilizando e optimizando o processo de resgate.
Cabe aqui ressaltar que a Rodovia Carvalho Pinto foi entregue à população
no final da gestão estadual anterior, acompanhada de denúncias de super-faturamento,
com apenas a pista Capital-interior concluída, necessitando da implantação de
operação de reversão nos dias de excesso de veículos, e sua conclusão não consta dos
planos da atual gestão.
Além disso, apesar do compromisso do empreendedor em financiar a
totalidade do projeto, houve a interrupção do projeto antes que a análise do material
fosse concluída, comprometendo a pesquisa e, principalmente, trazendo o risco de
destruição do material ósseo humano do Sítio Caçapava 1.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1993 CALDARELLI, Solange B. A Problemática dos Impactos Culturais em
Avaliação Ambiental. aula ministrada no Curso de Pós Graduação
“Avaliação de Impactos Ambientais de Projetos de Mineração” POLI-USP.
1994
CALDARELLI, Solange B. Projeto de levantamento e salvamento do
patrimônio arqueológico da faixa de domínio da Rodovia Carvalho Pinto,
Vale do Paraíba, Estado de São Paulo. Vol. 1 e 2, encaminhado à Protran
Engenharia Ltda.. São Paulo, SCIENTIA Consultoria Científica/IPARQ Instituto de Pesquisa em Arqueologia da Universidade Católica de Santos.
1992
COORDENADORIA DE PLANEJAMENTO AMBIENTAL Estudo de impacto
ambiental - EIA; Relatório de impacto ambiental - RIMA: manual de
orientação. São Paulo, Secretaria do Meio Ambiente (Série Manuais).
1969 MARANCA, Silvia Dados Preliminares sobre a Arqueologia do Estado de São
Paulo. Publicações Avulsas, 13. Belém, MPEG.
1970 REDMAN, C. L. & WATSON, P. J. Systematic, intensive surface collection.
American Antiquity, 35:279-291.
1977 SCHIFFER, M. B. & GUMERMAN G. J. (Ed.) Conservation Archaeology.
New York, Academic Press.
1977 SCOVILL, D. H., GORDON, G. J. & ANDERSON, K. M. Guidelines for the
Preparation of Statements of Environmental Impact on Archaeological
Resources. IN SCHIFFER & GUMERMAN (Ed.) Conservation
Archaeology. New York, Academic Press.
1986
VAN HORN, D. M. & WHITE, R. S. Some Techniques for Mecanical
Excavation in Salvage Archaeology. Journal of Field Archaeology, 13 (2):
239-244.
151
SÍTIO/SIGLA
Jacareí 1
SP-PB-Ja.1
Jacareí 2
SP-PB-Ja.2
Caçapava 1
SP-PB-Ca.1
Caçapava 2
SP-PB-Ca.2
Caçapava 3
SP-PB-Ca.3
Caçapava 4
SP-PB-Ca.4
Taubaté 1
SP-PB-Ta.1
TIPO
histórico
MUNICÍPIO
Jacareí
histórico
MATERIAL
cerâmica/louça/
vidro/metal
cerâmica/louça/
vidro/metal
cerâmica/ossos/
lítico/louça/metal
cerâmica/louça/
vidro/metal
louça/metal
histórico
cerâmica/louça
Caçapava
histórico
cerâmica/louça/
vidro/metal
Taubaté
histórico
indígena/
histórico
histórico
Jacareí
Caçapava
Caçapava
Caçapava
COORD. UTM
7.418.000 N
395.550 E
7.421.456 N
407.999 E
7.440.242 N
430.697 E
7.435.803 N
425.264 E
7.436.837 N
426.541 E
7.433.076 N
423.959 E
7.446.215 N
437.553 E
F. IBGE 1:50.000
Santa Isabel
SF-23-Y-D-I-4
Jacareí
SF-23-Y-D-II-3
Taubaté
SF-23-Y-D-II-2
Taubaté
SF-23-Y-D-II-2
Taubaté
SF-23-Y-D-II-2
Paraibuna
SF-23-Y-D-II-4
Taubaté
SF-23-Y-D-II-2
CONSERVAÇÃO
Perturbado
PROSPECÇÃO
outubro/90
RESGATE
maio/92
Perturbado
agosto/91
novembro/91
Perturbado
outubro/90
julho/91
Perturbado
janeiro/92
maio/92
Destruído
janeiro/92
abril/92
Destruído
maio/92
setembro/92
Perturbado
fevereiro/92
junho/92
152
Quadro 1 - SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS PESQUISADOS NOS LOTES 1 A 7 DA RODOVIA CARVALHO PINTO, VALE DO
PARAÍBA, SP.
Fonte: Caldarelli, 1994, v. 1
153
DEBATE
Coordenadora: Doutora Solange Bezerra Caldarelli - Scientia
Relatora: Catarina Eleonora Ferreira da Silva - DID/IPHAN
Solange Caldarelli - Peço a atenção de todos para o Prof. Jorge Eremites, que tem um
depoimento a dar sobre uma questão grave.
Jorge Eremites - O que eu gostaria de falar é sobre um diagnóstico arqueológico que
foi feito sobre o impacto da Hidrovia Paraguai/Paraná no patrimônio arqueológico
brasileiro. Este trabalho foi publicado em fevereiro agora e foi feito por arqueólogos
argentinos. Essa Hidrovia abrange, no Brasil dois estados: Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul; ela pega basicamente o rio Paraguai, desde Cáceres aproximadamente
e vem até a divisa com Paraguai. Acontece que, nesta avaliação, arqueólogos se
utilizaram de modelo preditivo, que pressupõe um levantamento topográfico
exaustivo da área, o que não foi feito, e, em mais de 500Km, os arqueólogos citam
apenas sete sítios arqueológicos e chegaram à conclusão de que o impacto dessa
hidrovia no Pantanal é nulo ou mínimo. E nós sabemos, através de pesquisa que vem
sendo feita desde 89, que no Pantanal há milhares de sítios arqueológicos. Nós temos
cadastrados no IPHAN mais de 100 sítios e esses sítios não foram levados em conta
para fazer essa avaliação. O IPHAN me solicitou, então, um parecer sobre esse
trabalho; eu fiz o parecer e observei que, na verdade, os arqueólogos fizeram um
trabalho no Brasil desrespeitando toda a nossa legislação; não consultaram o próprio
IPHAN, não consultaram os profissionais que trabalham na área e chegaram a
conclusões absurdas: que essa obra não vai ter nenhum impacto no patrimônio
arqueológico e a gente sabe que vai ter impactos em sítios localizados na margem dos
rios, em aterros e em vários outros sítios. A questão que eu gostaria de colocar era
basicamente essa.
Solange Caldarelli - Eu achei que o depoimento era importante: afinal, o patrimônio
é nosso e gente de fora, sem verificar seriamente a situação, diz que o
empreendimento não acarreta impacto; acho muito grave. Por isso, como o Jorge
trouxe para o simpósio uma cópia do parecer que ele elaborou para o IPHAN, vamos
publicá-lo como anexo, ao final das Atas, como meio de documentar com maiores
detalhes a denúncia extremamente pertinente do colega.
Agora, chamo o primeiro debatedor, que é o Rossano, do IPHAN de Santa
Catarina.
Rossano Bastos - Antes de falar sobre o debate eu acho que merece um registro aqui
a denuncia do companheiro. Eu acho que o Fórum poderia tomar uma posição em
relação a isso, uma vez que está envolvido o patrimônio arqueológico do lado
brasileiro, principalmente se foi feito sem as prerrogativas que a lei no Brasil exige.
Eu acho que cabe a este Fórum, diante dessa denúncia, encaminhar aos órgãos
competentes, ao próprio IPHAN, ao Ministro da Cultura, uma moção de apoio aos
companheiros do Mato Grosso do Sul, no sentido da gente conseguir reverter e
resgatar essa problemática.
Sobre os expositores, agora, eu gostaria de fazer algumas considerações. Em
primeiro lugar, eu gostaria de parabenizar os participantes da mesa pelo excelente
trabalho que eles realizaram e que eles expuseram aí. Como arqueólogo, eu fiquei
154
muito satisfeito; talvez tenha ficado um pouco insatisfeito como cidadão, então é disso
que eu vou falar.
No meu entendimento, a arqueologia é uma ciência social; então, ela não não
pode ser simplesmente uma técnica oriunda da razão instrumental iluminista; ela tem
que ir além disso, ela tem que ser uma coisa de impacto social, para poder se justificar
enquanto segmento da sociedade; então, nessa temática, a elaboração, implantação,
avaliação de programas de resgate e monitoramento de bens históricos e préhistóricos, eu gostaria de ressaltar algumas questões que eu acho que são pertinentes e
que foram abordadas de forma acho que tangentes e, às vezes, nem mesmo foram
abordadas e que eu entendo que são prerrogativas para o bom relacionamento da
sociedade, das comunidades com a pesquisa arqueológica.
Os operários que trabalharam nas várias etapas da pesquisa, dos
levantamentos, são treinados, são da região, são da localidade? Existe um
envolvimento efetivo da comunidade ou das lideranças locais no trabalho como um
todo? Ocorrem incursões anteriores ao início da pesquisa em escolas, centros
comunitários, na população em geral, informando à população o que está acontecendo
e o que vai acontecer? Existe acompanhamento dos futuros interventores que virão a
posteriori, no acompanhamento das pesquisas arqueológicas e dos programas que
estão sendo desenvolvidos? No resgate propriamente dito, nas escavações, a
comunidade participa ativamente?. Como está previsto o retorno do material ou da
informação às comunidades, como prevê o inciso 5° da portaria 007/88? Por fim,
existem projetos educativos, culturais que possibilitam algum retorno à comunidade;
existe a previsão de pequenos museus e salas de exposições; existe a exposição da
pesquisa em leitura didática e universal e não uma exposição extremamente
arqueológica e técnica? Eu gostaria de saber como criar as condições para esse
material retornar às comunidades, uma vez que elas não estão a par desse instrumento,
que é o conhecimento arqueológico. Como é que eu posso criar condições de retorno
de material à comunidade, se eu não despertar a comunidade para o alcance social
desses bens arqueológicos? Eu acho que, nesse momento, em que nós estamos com
técnicas mais avançadas, estamos com a preocupação muito grande no registro da
informação, urge também ter processos e programas mais sofisticados de interação do
material arqueológico com a comunidade em geral.
E por fim, eu gostaria de finalizar com uma pergunta, resgate, para que, por
quê e, finalmente, para quem ?
Solange Caldarelli - Passo a palavra aos expositores que queiram responder às
questões do Rossano.
Maria do Carmo - No caso do projeto no Vale do Paraíba, a comunidade foi
sensibilizada e muito, participando do processo não na fase de levantamento, mas na
fase de resgate. Os museus locais participaram e vão ser os depositários do material.
Está previsto no programa que o material arqueológico deverá retornar para as cidades
do Vale do Paraíba, ficando depositados nos museus que, obviamente, apresentarem
condições de abrigá-lo. Além disso, foram incorporados pesquisadores locais nos
diversos estágios da pesquisa e estudantes das universidades regionais nos programas
de resgate, tentando sensibilizar ao máximo a comunidade.
Um outro aspecto que eu poderia ressaltar é que a professora Lúcia Juliani,
que fez parte da equipe de pesquisa e participou da mesa ontem, acaba de assessorar a
montagem de uma exposição arqueológica no Museu Antropológico do Vale do
155
Paraíba,. em Jacareí, que versa sobre as pesquisas arqueológicas de resgate realizadas
no vale.
Dilamar Martins - O que nós chamamos de auxiliares de campo, na verdade eles
foram treinados, como estão sendo até este momento. Eles acompanharam todo o
trabalho, em toda a área de Serra da Mesa e passaram inclusive a fazer parte do grupo,
morando em nossas bases.
Em termos de liderança há uma diversidade, porque cada cidade tem uma
participação diferente; em algumas delas isso foi mais significante, em outras, a
participação foi menor, dadas as próprias características da cidade e do funcionamento
dela. A título de exemplo, a gente tem a cidade de Campinaçu, que é uma cidade
pequena, mas onde houve interesse muito grande por parte da população local, seja a
nível de cederem informação, de participar no trabalho; palestras que foram feitas nas
escolas, com os professores e com os alunos de todas as cidades por onde a gente
andou; a que houve menor envolvimento, tanto da municipalidade como também da
população foi Niquelândia, considerando as próprias características dela, que vive em
função de algumas empresas locais e a população é muito heterogênea, com pessoas
vindas de fora. A questão do acompanhamento local, Uruaçu foi uma cidade em que
inclusive a participação da municipalidade da população local chegou entre aspas até
a certo ponto atrapalhar, entre aspas, o trabalho, dada a participação, o interesse na
criação de museus, de convênios com universidades e até mesmo pensando na criação
de um campus avançado da UFG. Isso já está sendo tratado. (...)
Em termos de projeto educativo, eu coloquei em algum momento que o Museu
já faz isso em Goiânia há vários anos, desde o início da sua existência e isso foi
apenas acoplado a esse projeto, com exposições itinerantes que começaram a nível de
Goiânia e foram previstas e solicitadas pelas cidades, às quais serão encaminhadas. A
gente vai demonstrar amanhã, em termos de material didático e pedagógico, o que já
foi elaborado, inclusive o vídeo, voltado para o ensino fundamental, e os
documentários científicos, os CDs, etc, que agente está produzindo.
E aí eu acho que fica claro que a idéia que a gente tem de resgate, de
salvamento, é que é preservação, porque só se preserva qualquer bem cultural a partir
do momento em que ele é pesquisado, em que ele é conhecido, em que ele é estudado.
Então eu acho que aí fica respondido para que, por quê e para quem.
Carlos Magno - Do ponto de vista da comunidade onde nosso projeto tem sido
desenvolvido, a gente tem sempre tentado fazer contatos, por exemplo, através de
palestras em escolas, independente de serem de nível superior ou de 1° e 2° graus,
mostrando a natureza do nosso trabalho e a importância dele. Existe uma preocupação
também em fazer contato com as autoridades municipais, no sentido de que seja
possível trabalharmos em conjunto, o que significa dizer o seguinte: se por um lado
nós precisamos dessas autoridades municipais, e isso sempre acontece, por outro
lado, há contrapartida. Vou citar um caso acontecido: nós recebemos, em Belo
Horizonte, uma carta de um vereador de uma dessas cidades, acoplada a algumas
cartas de deputados, aonde vários deles apoiavam o projeto do vereador de criar um
museu local e o vereador então estava nos fazendo ciente de que estava encaminhando
aquele projeto e ia um pouco além, dizendo que o material arqueológico retirado tinha
que ficar na cidade. É evidente que a gente concorda com isso, mas acontece que,
nesse caso especifico que eu estou usando como exemplo, é um processo que ainda
está sendo discutido, eu não vejo porque a gente definir já de antemão voltar com o
156
material arqueológico para essa cidade, sendo que ainda está-se discutindo o futuro
museu que vão criar.
Do ponto de vista do resgate, que é a última questão que você coloca, o resgate
para que, porquê e para quem, eu acho que, se há alguma validade nisso tudo, é que o
processo de constituição de identidade da comunidade de onde o material é retirado,
ele exige isso: é a história de todas as comunidades e enquanto tal merece ser
resgatada. Eu não vejo porque achar muitas outras justificativas mirabolantes para
justificar esses projetos de salvamento de resgate; evidentemente, não é para ficar com
o material entulhando uma sala, se o destino desse material está previsto dessa
maneira. É necessário que isso retorne, mas retorne de maneira adequada, seja através
do que os exemplos que a Dilamar está citando, de produzir material pedagógico para
uso das escolas ou através de exposições compreensíveis para o leigo e coisas do
gênero; isso está contemplado, agora isso não está colocado como prioridade diante
do andamento do projeto; isso é uma etapa futura, ou seja, nós não estamos
preocupados em montar exposições agora. A nossa preocupação, agora, é com o nível
da água que está subindo. Então, nós estamos preocupados com o trabalho de campo,
entende? Agora, é evidente que qualquer projeto dessa natureza deve contemplar
todas as possibilidades de divulgação dos resultados, inclusive divulgar em ambiente
dessa natureza aqui, quer dizer, num fórum dessa natureza. Eu acho que isso
responde, em parte, a questão do resgatar para quem.
Quanto à utilização do pessoal local nos trabalhos, o que tem sido possível é a
utilização do pessoal para ajudar na atividade de campo. Você pode chamar de peão,
operário ou qualquer outra designação. Eles não têm, inicialmente, quando fazem o
contato conosco, nenhum treinamento, sequer sabem do que se trata. Mas, ao longo
do tempo, geralmente eles adquirem uma perspicácia muito grande para perceber tudo
que a gente está querendo, e grande parte das vezes eles se tornam mais exímios do
que nós, no que diz respeito ao trabalho de prospecção, porque eles conhecem a área.
Esse pessoal é usado como ajudante de campo, até no trabalho de escavação e os
guias são alargamente utilizados o tempo todo. Nenhum de nós conhecia 1m² desse
território; temos conseguido, felizmente, guias que são verdadeiras obras primas, no
que diz respeito à sua capacidade de interpretação do vestígio inclusive, embora até
analfabeto nós tenhamos encontrado; ou seja, a desqualificação que poderia advir pelo
fato do indivíduo ser analfabeto, ela é totalmente revertida no que diz respeito à
capacidade que o indivíduo tem de fazer a leitura do ambiente, da natureza e até do
vestígio arqueológico.
Solange Caldarelli - Eu queria comentar a respeito disso que o professor Carlos
Magno falou. É interessante porque esses guias, e eu imagino que aconteceu a mesma
coisa com vocês, eles são muito motivados pela valorização que damos a vestígios
que normalmente não são valorizados, pois não são monumentais, são cotidianos.
Então, isso lhes dá a satisfação de ver o respeito, o interesse que um cientista tem por
um vestígio que na verdade é testemunho do passado dele; no caso da arqueologia
histórica, esse fato chama muita atenção.
Doutora Lylian Coltrinari, da USP.
Lylian Coltrinari - Vou fazer um comentário e duas perguntas aos colegas da mesa.
Em primeiro lugar, quero dizer que, da mesma forma que fiz ontem algumas reflexões
a respeito da interdisciplinariedade e outros tipos de trabalho conjunto, de maneira
alguma estou cobrando dos colegas, da PETROBRÁS, FURNAS ou quem quer que
seja pelos trabalhos que não foram realizados. Quero dizer simplesmente que os
157
arqueólogos não precisam se preocupar com questões que não lhes dizem respeito
enquanto especialidade, e que outros especialistas deveriam ser envolvidos.
Gostaria de chamar a atenção para um fato que, me parece, é compreensível.
Nem todo geógrafo, nem todo geomorfólogo, está preparado para todo tipo de tarefa,
por exemplo o trabalho de resgate, ou o tipo de análise que o sítio arqueológico
precisa. Para ser mais clara, gostaria de comentar o que Maria do Carmo, Emília e
Dilamar apresentaram. Em relação ao trabalho de Maria do Carmo, como trabalho há
20 anos naquela área, para mim é de todo interesse o tipo de informação que esses
sítios podem fornecer. Fico, inclusive, com um pouco de inveja, já que gostaria muito
de ter contado, na época de minhas pesquisas, com maquinário do tipo que vocês
contaram para raspar aqueles centímetros superiores, por exemplo no topo das
colinas; vocês conseguiram, com isso, exposições contínuas dos materiais nos topos
das colinas e ao longo das vertentes, o que é precioso para o geomorfólogo e o
pedólogo. Só que nós temos que fazer isso a mão, contratar pessoal e gastar um
tempo enorme para conseguir fazer quatro buracos, e vocês têm em meia hora aberta
uma trincheira, que é o ideal. Além disso, queria dizer que, com base no que as
fotografias mostram sobre a limpeza e a abertura de trincheiras, elas não ofereceram
nenhum tipo de perigo para a estabilidade do material; os casos que eu conheço de
desestabilização não dizem respeito ao nível de intervenção da pesquisa arqueológica
e sim, por exemplo, à existência de falhas geológicas, que podem ter sido detectadas
nos levantamentos geofísico e geológico. Faço a menção porque foram mobilizadas
camadas sedimentares da base dos sedimentos da bacia que, inclusive, estão dando
lugar à pesquisas específicas de materiais; mas não se trata, repito do material
pedológico e do solo superficial, onde estão os sítios, é do material geológico que está
mais fundo. Do ponto de vista geomorfológico não há nada a criticar quanto à forma
de realização da pesquisa.
Em segundo lugar, uma reflexão sobre o que Emília mencionou quanto à
pesquisa de Porto Primavera. Gostaria de falar sobre a forma como, às vezes, as
evidências morfológicas não são totalmente completas. Não adianta muito fazer
somente a compartimentação, dizer "aqui é planície atual, o dique marginal, lá está a
planície subatual, e lá em cima é terraço". O que adianta é considerar a dinâmica,
atual e passada, testemunhada pelos depósitos que fazem parte desses diferentes
elementos da paisagem. Eu queria lembrar uma questão: às vezes é necessário
examinar o ambiente da várzea, no fundo do vale fluvial, que é extremamente
dinâmico. Isso porque, quando se fala da localização dos sítios, deve lembrar-se que
todo ano o rio invade sua planície de inundação, e que o que hoje são terraços já
foram planície de inundação; que o dique marginal é a faixa localizada na borda do
canal médio do rio e recebe o material mais grosseiro quando acontece o
transbordamento, porque o material mais fino vai embora com a água que inunda a
várzea.
Com isso quero dizer que eu tomaria muito cuidado antes de dizer que o sítio
está em seu lugar original; e segundo, dizer que o sítio que estou analisando está
formado por (...), estruturas correspondentes a uma só ocupação. É similar ao que
falei ontem a respeito da migração vertical nas vertentes e nos interflúvios, isso
também pode ocorrer na várzea e nos diques marginais. Como os diques marginais
estão formados por areia grossa - que é friável, a possibilidade de mobilização vertical
é muito grande e o retrabalhamento lateral mais ainda. Isso cria um problema,
realmente; só estou dando uma opinião, com base na dinâmica fluvial.
Outro comentário: pelo que acabei de dizer, me parece que cada uma das
estruturas de solos de ocupação tem de ser vista com um certo cuidado, porque pode
158
haver combinação e mistura, não sei como chamaria... (...). Além disso, outra questão
que Emília frisou: hoje em dia instalações, casas e outras construções acima do
próprio sítio e, até, a própria ocupação pré-histórica posterior, podem contribuir para a
movimentação vertical desse material, ou seja, há processos de compactação que
necessariamente vão interferir na mobilidade do material que está na parte mais
profunda. Ainda a respeito do posicionamento: lembro que foi mostrado um perfil
com as duas várzeas, os dois níveis de várzeas, mas um tinha uma acumulação entre
o terraço e a várzea; é preciso analisar com muito cuidado porque, em geral, quando
se está em um degrau, ao longo dele o material se desloca com facilidade. Uma
acumulação hoje localizada no sopé de uma vertente provavelmente formou-se a
partir do material que o próprio recuo dessa vertente -causado pelo solapamento
lateral do rio, produziu: o vazio na base da margem "atrai" o material de cima, por
gravidade; isso é considerado quando se consideram critérios geológicos e
geomorfológicos. Agora, o material lítico tem um peso e volume maior e é possível
que possa ser removido, não porque alguém o colocou ali, mas porque foi
transportado naturalmente. Quero dizer que há uma série de considerações, que são de
domínio exclusivo dos arqueólogos, mas seria preciso contar com o apoio de um
especialista que chamasse a atenção para esses fatos. Não é para o arqueólogo fazer
esse tipo de pesquisa, mas para que ele exija a presença de alguém que o auxilie; esse
é o motivo de minha insistência. Como eu sei que muitos geógrafos não estão fazendo
isso, acho que deverá ser futuramente de interesse do próprio arqueólogo pedir a
alguém com capacitação específica para trabalhar com a estratigrafia e a análise dos
materiais ou solos não arqueológicos.
Finalmente, um comentário para Dilamar. Eu fiquei muito curiosa por saber
qual é o tipo de cimento que aparece no sítio em que mostrou a cerâmica com seixos;
se esse cimento é natural, ele é indicativo de um processo paleoambiental de evolução
pedológica, em que houve remoção de material em dissolução e reprecipitação
posterior. Se houvesse um pedólogo junto, poderia auxiliar na indicação da causa
dessa evolução. Muito obrigada.
Maria do Carmo - Rapidamente, sobre o equipamento e o maquinário utilizado, é
preciso frisar que, quando o trabalho foi efetuado nesses sítios, o empreendimento
estava em fase de implantação, com as empreiteiras já trabalhando no trecho;
dificilmente um arqueólogo conseguiria exigir esse maquinário antes que a
empreiteira já estivesse instalada.
Emília Kashimoto -Doutora Lylian, as questões são interessantes e bastante
pertinentes. Elas se colocaram desde o início do nosso levantamento. Será que a
questão de transporte fluvial não influencia na configuração daquele material
arqueológico, naquele determinado local? Essa pesquisa em Porto Primavera foi
cooordenada, desde o início da etapa de levantamento, pelo professor Gilson Rodolfo
Martins, que é um grande pesquisador de etnohistória. Ele fez um levantamento para
rever essa questão de implantação, principalmente em metade da área, que tem
características tupi-guarani marcantes pela cerâmica e, então, utilizar esses dados de
etnohistória para tentar auxiliar a compreensão da implantação espacial de ocupações
pretéritas indígenas.
Porém, acredito que é um campo, para o pesquisador, pegar um sítio, fazer
laboratório no local; mas, a princípio, nós fizemos coletas comprobatórias de material
cerâmico e lítico. Então (...), vou tentar colocar dois eixos: essa questão de mobilidade
lateral e vertical do material. Existem níveis cerâmicos e níveis líticos; aquele nível
159
que nós chamamos de paleodique, é uma interpretação de geólogos da Universidade
Estadual de Maringá. O professor Kenitiro Suguio fez um módulo na área da
barragem, no momento da implantação; fez um estudo prévio para definir a
compartimentação da paisagem, então nós estamos utilizando essa conceituação de
paleodique, para chegar na questão do dique. No paleodique existe, no sítio MS- IV08, que foi mostrado na transparência, um nível cerâmico e as vasilhas estão inteiras,
in loco. Inclusive, tivemos condições de escavar; temos fotos, mas, infelizmente, não
saiu slides. Então, acreditamos que aquela vasilha cerâmica in loco, inteira, se ela
tivesse sido remobilizada de um nível de terraço superior, teria sido fragmentada, e
nesse mesmo sítio não imaginávamos, pela questão da várzea, que haveria um nível
lítico em profundidade. Por um teste que fizemos na trincheira e a 2m, localizamos
material lítico com uma dimensão menor, com uma intensa utilização de seixos e
artefatos pequenos, diferentemente do nível do material lítico lá dos diques atuais.
Então, esse material lítico estava no contexto sedimentológico que os geólogos da
Universidade Estadual de Maringá relacionam a um clima árido menos úmido, porque
é um sedimento siltoso amarelado, sem aquela característica de matéria orgânica
enegrecida; então, a priori, tem características diferenciais dos níveis superiores, que
realmente são de níveis aluviais, que dão uma textura mais grosseira, com a
tonalidade de matéria orgânica. Então, aquele nível profundo coaduna com essa
interpretação de provável deposição em ambiente semi-árido, ambiente mais seco;
isso está para ser discutido ainda com essa equipe de Maringá, porém percebemos que
a sedimentação é diferenciada e o material lítico é diferenciado; então, nesse sentido,
existe uma interpretação arqueológica de que realmente seria local de alguma
instalação e a própria morfologia favorece. Por outro lado, fazemos estudos conjuntos
com a outra margem. Apesar do professor Gilson ter dito que há uma divisão, nós
mantemos bom relacionamento com os pesquisadores da UNESP; participamos de
levantamentos na margem esquerda também e temos condições de comparar as duas
margens. Então, a margem esquerda, é anti-ético falar, mas tem características
distintas, que permitem comparar, em termos de material, bem como tipos de
implantação em relação ao relevo. Então, a proposta, nesse caso, é uma abordagem
geo-arqueológica, é o entendimento de que o arqueólogo pode entender um pouco de
geociência no sentido de que, por exemplo, no meu caso, eu tenho que fazer uma
abordagem geo- arqueológica porque eu fiz graduação em geografia e tentei ir atrás
do conhecimento básico e tento aplicá-lo à questão arqueológica de implantação e
alteração de sítios arqueológicos. Isso não implica só técnica pela técnica, no sentido
de aplicar uma interpretação geomorfológica a uma questão arqueológica, mas é um
dos itens para um entendimento maior.
Então vai-se cruzar esses dados
sedimentológicos, estratigráficos, com análise do material arqueológico, para tentar
ver se existe seleção de material, se houve o transporte lateral fluvial, a tendência de
seleção de material ao longo do sítio, porque a estilha vai mais longe do que o bloco;
ou seja, esse tipo de análise auxilia também a tentar entender a questão do transporte.
Então é uma questão bastante complexa, mas essa abordagem se pretende geoarqueológica no sentido de que é possível fazer uma pesquisa, dentro da arqueologia,
com uma preocupação ambiental, de implantação e alteração dos sítios. Porém,
tentando contemplar questões arqueológicas, de tradição Tupiguarani, se o ambiente
influencia determinado tipo de implantação ou não, a partir da análise da cultura
material.
Dilamar Martins - Eu queria colocar uma coisa em que dá um gancho das
observações que foram feitas pela professora. Desde o início do nosso projeto, o
160
entendimento nosso foi que, não só no trabalho de Serra da Mesa, mas em arqueologia
de modo geral, o arqueólogo não tem nem competência e nem obrigação de entender
das várias áreas de conhecimento que são necessárias para o desenvolvimento de um
bom trabalho em arqueologia. Então, dessa forma, foi uma exigência da nossa parte
que a equipe fosse constituída com a presença de especialistas da área, mas que
estivessem pensando nas suas especialidades não como um fim, mas como um meio
que propiciasse a colaboração para respostas pertinentes à arqueologia. Nesse sentido,
inclusive, estão presentes aqui o geomorfólogo que acompanhou ininterruptamente o
nosso trabalho, da mesma forma que não houve nenhuma campanha sem arqueólogo,
o geomorfólogo acompanhou o tempo todo. Isso também aconteceu com geólogo, em
função das especificidades da área e da localização dos sítios, e inclusive com
especialidade em hidro-geologia, também está aqui presente. Eu não me daria o
direito de falar dessas questões, considerando que eles têm acompanhado todo o
trabalho desenvolvido, inclusive o subprograma de geo-arqueologia. Eu acho que
seria muito interessante que o professor Roberto e o Edgar tivessem posteriormente
uma conversa em particular com a professora.
E, lembrando aí o caso daquele sítio que demonstrou, é um sítio lítico, uma
cascalheira, e aparece material cerâmico de forma cimentada, aquilo também levantou
para a gente uma série de questões: se aquela cerâmica era realmente (...) Como
saber, à medida que está próximo entre o interfluvio também e poderia ter vindo essa
cerâmica e poderia ser de um outro momento, quer dizer, uma série de questões que
foram levantadas e para isso a gente trabalhou com esses especialistas e com técnicas
que demonstraram que aquela cerâmica que hoje está alí cimentada, ela existiu
realmente em outro nível anterior, à medida que a gente abriu; acho que foi meio
rápido a questão dos slides, mas a gente abriu trincheiras no barranco do rio e pôde
perceber que a cerâmica estava a 3m de profundidade, exatamente na camada superior
ao material lítico cimentado. Portanto, essas questões foram lembradas e trabalhadas
junto com o profissional da área.
Solange Caldarelli - Doutor Walter Neves, da USP.
Walter Neves - Bom, eu tenho algumas observações para a Emília, para Dilamar e
para o Carlos. Emília, tive muita dificuldade, no seu trabalho, de entender o que era
ponto de partida e o que era ponto de chegada. Eu acho que isso aconteceu porque
você quis usar um tipo de modelamento e não assumiu isso explicitamente. Ontem
quando o Renato falou de modelamento, muita gente aqui protestou, mas, na verdade,
a gente trabalha sempre com modelo. Já que ele é inevitável, é melhor que ele seja
explícito do que implícito porque, quando ele está implícito, a gente nem sempre
coloca nele todas as variáveis que precisam ser colocadas, e aí me assustou um pouco,
porque você disse que tinha do rio para dentro uma faixa de mais ou menos 13Km; ao
invés de fazer um desenho amostral de maneira a diversificar os tipos de sítios que
poderiam ser encontrados, você fez um desenho muito bonito, mas favorecendo a
amostragem basicamente de um tipo de sítio, ou seja, os sítios ribeirinhos. Então,
minha pergunta é: se nós vamos fazer modelos preditivos, porque o que você esta
trabalhando é um modelo preditivo, você estará prevendo somente uma ou algumas
categorias de sítios. Então, nesse sentido, eu acho que é melhor assumir o modelo, é
melhor assumir que está trabalhando com modelo e utilizar o maior número de
variáveis possíveis, para que você dê chance a que todas as categorias de sítios sejam
amostradas
161
Com referência à Dilamar, eu não entendi como é que a malha amostral foi
estabelecida na região. Também não entendi como eram as unidades amostrais e qual
foi o critério de espalhamento ou de distribuição dessa malha amostral na região. Por
exemplo, não ficou claro para mím, dado que eu não entendi isso, a porcentagem da
área levantada e sobre qual intensidade de caminhamento, por exemplo, essa
porcentagem da área foi percorrida.. Eu não entendi isso no levantamento e também
não entendi essa mesma coisa na questão das escavações; não ficou claro, para mim,
dos sítios que foram eleitos para escavações ou para uma interferência mais profunda,
qual a porcentagem ou a distribuição espacial dessa porcentagem e porque essa
porcentagem ou essas áreas foram escolhidas, dentro de um sítio, em detrimento de
outras áreas.
Com referência ao Carlos, eu acho o seguinte: que a necessidade de se fazer
um design ou um desenho de levantamento arqueológico vem exatamente para afastar
a gente do subjetivismo. O desenho é, sem sombra de dúvida, o melhor instrumento
que você tem para afastar o subjetivismo; e você disse umas coisas assim: eu não fiz
uma amostragem, mas fiz uma cobertura máxima possível. Eu não entendo o que é
uma cobertura máxima possível; quer dizer, não fica claro para mim o que é isso. E,
novamente, em termos de parcela coberta e de intensidade de caminhamento dentro
dessas parcelas. Depois, você usou uma outra frase, quando você falou dessa
cobertura máxima. Você disse: eu acho que a gente fez uma cobertura bastante
razoável. Eu também não sei o que é bastante razoável. Qual é o parâmetro que você
está usando? é quantitativo? é qualitativo? Então, eu acho o seguinte, sobretudo em
pesquisa de salvamento, onde a gente não vai ter a oportunidade de outro profissional
ou de outros profissionais voltarem com suas próprias subjetividades e trabalhar
aquelas subjetividades que já foram empregadas, eu acho que nós temos de trabalhar o
máximo possível com desenhos que eliminem o máximo possível de subjetividade, e
eu não vi isso no seu discurso. Só isso, muito obrigado.
Emília Kashimoto - Essa pesquisa de salvamento tem uma pecularidade conjuntural
de relacionamento da Universidade com a SERPES; ela tem uma duração longa, em
comparação com os outros projetos. Prevemos mais dois anos de resgate. Essa
questão de modelos preditivos, eu acho bastante complexa, uma vez que realmente eu
não me debrucei sobre ela, porque não é meu objetivo. Eu tento trabalhar em cima do
real, do que é palpável. A realidade dessa pesquisa de Porto Primavera foi, no
primeiro momento, empírica; nós selecionamos uma área e simplesmente
caminhamos ao longo do dique marginal para ver onde ocorriam os materiais
arqueológicos, desprezando aquela idéia inicial na foz, de confluência ou não, e aí
percebemos que a questão topográfica era fundamental; tinha material arqueológico e
a topografia era favorável, era mais elevada (...). Então, nós começamos a priorizar
essa observação. Vou tentar colocar como foi feito, para ver se chega a contemplar
sua questão.
A pesquisa foi feita essencialmente em dois grandes eixos: um, navegando
todo o curso fluvial, em 250Km, observando as margens e os locais de topografia
favorável, vistoriando os locais e plotando com GPS. O segundo grande eixo foi o
interior. Então, nesse ambiente de várzea ou lago de várzea, percebemos que tem
algumas elevações favoráveis, mas não tem como chegar nelas; é um lago de várzea
enorme, em volta o barco não consegue navegar, o carro não tem como chegar, então
é uma coisa improvável; nós atravessamos ali caminhando, então, na realidade,
chegamos aonde foi possível. Nesse eixo interior, priorizamos todas as estradas, todos
os locais de acesso, com base nos sítios localizados, tentando achar esses sítios ao
162
longo dessa faixa exterior. E uma terceira etapa é a seleção de áreas potencialmente
favoráveis para retro-alimentar, voltar em campo e vistoriar essas áreas
intensivamente. Então, os casos topograficamente favoráveis foram intensivamente
abertos com tradagem, para tentar localizar o material. (...) No caso da imagem do
satélite, eu acho que o caminho seria primeiro essa primeira etapa de caráter mais
empírico, plotar esses sítios numa imagem, a partir daí identificar os locais relevantes
e voltar em campo para testar em outras áreas o que foi feito; voltar aos locais
potencialmente favoráveis e, a partir daí, ter um maior conhecimento arqueológico do
local, e numa terceira etapa, fazer leitura dos piques dessa imagem e tentar algoritmos
a partir de modelos que, eu entendo, seriam modelos preditivos mesmo. No meu
entendimento, a viabilidade é nesse sentido.
Dilamar Martins - Para tentar responder o que foi colocado eu gostaria de chamar, se
for permitido, os especialistas da área, no caso o professor Roberto e o professor
Nilton Ricete Nazareno, que trabalham especificamente para explicar essa questão do
trabalho que foi feito a nível de reconhecimento geral e, posteriormente, explicar a
questão das unidades ambientais. Como é que foi feito, por exemplo, todo o trabalho a
nível de reconhecimento geral, a preparação, os estudos de laboratório que dariam a
chance para a gente percorrer a área. Era isso que eu queria que o professor Nazareno
colocasse e no segundo momento o professor Roberto explicasse a questão das
unidades ambientais e a divisão de zonas ambientais.
Walter Neves - Não perguntei de unidades ambientais, mas de unidades amostrais.
Dilamar Martins - A questão da percentagem da área trabalhada, a grande
preocupação que a gente teve foi a seguinte: a área de Serra da Mesa ela não permite o
acesso a determinadas áreas, então ela foi percorrida por via terrestre e de carro e por
via fluvial, onde era possível acessar. Então a área trabalhada ela se restringe, em
nenhum momento a gente coloca que nós conseguimos atingir os 1.784 Km; nesse
sentido, a gente sabe que uma série de sítios arqueológicos estão ali escondidos, essa é
a primeira coisa. Então, a área percorrida não compreende toda da área do
reservatório; onde foi possível acessar, a gente foi. Daí eu não ter exatamente uma
percentagem da área que foi trabalhada, na medida que o percorrimento não se dá na
área total, mas a gente teria um critério específico na questão da distribuição, que foi
outra questão que foi levantada basicamente pelo estado de conservação do sítio.
Em alguns sítios, a distribuição espacial deles é impossível de ser definida e
isso representa uma grande percentagem, especialmente nos eixos do Rio Maranhão e
Tocantins e D‟ Almas, que deve ter sido observada por uma transparência nossa que
há um vazio, inclusive naquilo que nós chamamos de área dois para área um. Talvez
em função disso, essa área é onde se registra a maior parte dos sítios que nós
consideramos como sítios destruídos, ou seja, que todas as estruturas arqueológicas
praticamente já não existem mais, salvo escassos fragmentos que ainda existem nos
barrancos, nos rios próximos a áreas de atuais garimpos ou que são doadas por
pessoas que trabalham nas áreas do garimpo e que utilizam o sistema que o professor
Carlos Magno já colocou, das duchas etc. Então, a distribuição espacial foi observada
com muita preocupação a partir dos sítios que o estado de conservação permitiu,
então não foi trabalhado só na parte superficial, quer dizer o material que aparece na
superficie não é o delimitador da distribuição espacial do sítio, na medida em que ele
é falseado pelos próprios usos atuais que são dados às área; daí a tentativa de
demonstrar a distribuição espacial dos sítios a partir dos trabalhos verticalmente.
163
Então isso foi muito claro por exemplo, nós trabalhamos naquela aldeia mostrada, tem
dezesseis cabanas e nelas a gente encontrava uma área muito grande em que o
material estava distribuído, mas descontextualizado; então a partir daí a gente
começou a trabalhar tentando demonstrar essa distribuição espacial, que ficou clara ao
final do trabalho,com o reconhecimento de dezesseis manchas que constituíam as
cabanas; as áreas ociosas estéreis arqueologicamente também foram trabalhadas (entre
uma cabana e outra nas áreas centrais do sítio), verificando se existia ou não algum
elemento, na medida em que havia o espalhamento total de testemunho cerâmico na
área.
A questão da malha, eu vou tentar colocar aqui para não alongar e se depois
quiser, dar uma conversada com os especialistas. No primeiro momento, a gente fez
aquela subdivisão de áreas de 1 a 5 e nós fizemos de forma diferente do pessoal da
Universidade Federal de Minas Gerais. Inclusive, isso foi questionado pelo Instituto
do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, quando a gente não teria uma idéia global
da área, para daí selecionar sítios para serem escavados. Então, como um retorno às
áreas demandaria um tempo muito grande, nós resolvemos trabalhar todas as etapas
num espaço definido artificialmente e passando por todas as etapas: primeiro a do
reconhecimento, que é feito à distância e, posteriormente, a do levantamento intensivo
da área, utilizando técnicas tradicionais e aquelas que o geoprocessamento nos
fornecia para o embasamento dos trabalhos de campo e, daí, a etapa de prospecção.
Muitos dos sítios já eram encerrados nessa etapa, porque não era possível fazer
escavação naquele sítio; o nível de informação era extremamente baixo e,
posteriormente, a escavação, só terminadas as quatro etapas do trabalho é que a gente
passava para uma área que nós chamamos de uma outra área artificial e nela também
foram aplicados os mesmos procedimentos. A dificuldade maior que a gente teve foi o
que nós chamamos de área quatro no Rio Tocantinzinho, que tem características
muito próprias, rio muito encaixado e que impossibilita a chegada, seja via fluvial seja
terrestre; então, o número de sítios naquela área é o menor de toda a área do
reservatório, mas nem por via aérea certamente seria possível chegar às margens do
rio ou na área em que o reservatório tomará.
Carlos Magno - Em primeiro lugar, eu quero reconhecer que é pertinente a
observação que você faz com relação às expressões que eu usei, o que significaria “o
máximo possível”. Acontece o seguinte: o nosso trabalho de prospecção se voltou
para cobrir todas as informações que nós conseguimos obter, fossem elas de caráter
oral ou documental e bibliográfico. Isso significa dizer que existe uma grande
quantidade de informações já publicadas por aí, particularmente no que diz respeito ao
ouro; é um período da história que está razoavelmente conhecido. Então, a idéia
inicial era a seguinte: se nós temos informações, se foram obtidas através de
informantes ou de informações de origem bibliográfica ou documental, vamos tentar
cobrir todas essas informações e tentar ver o que sai; então, essa foi a primeira
orientação no que diz respeito ao trabalho desenvolvido na fase de prospecção.
Se você me perguntar qual é o percentual da área coberta, eu não sei; para
falar a verdade, ninguém sabe. Nós só vamos saber isso no final do projeto. Eu digo
isso porque muitos sítios ainda vão aparecer. Se eu fosse tomar como referência esse
ano de 96, eu diria para você o seguinte: menos de 20%, não prospectado ainda, pode
aparecer no conjunto que nós temos, ou seja, no universo que nós levantamos e
trabalhamos no ano de 96; ainda temos precisão de trabalho de campo em 97 e, se
possível e necessário, alguma coisa ainda em 98, embora em 98 ainda não esteja
definitivamente certo. Então, o que ocorre é o seguinte: de todo o conjunto de
164
informações que nós obtivemos, a idéia era cobrir tudo isso e ver o resultado final. O
resultado foi isso a que nós chegamos; posteriormente, no trabalho de salvamento, nós
avançamos o número de sítios levantados, ou seja, aumentamos o universo dos
resultados. Agora, eu não posso te dizer, por exemplo, 70%, 30% ou 15% da área foi
coberta, porque isso eu só vou poder te dizer na medida em que, dentro da área, eu
tiver todo o conjunto de sítios levantados e, ainda em cima disso, eu poder julgar
todas as bacias que foram percorridas inteiramente. Foi um trabalho de prospecção
exaustivo, que a gente usou várias vezes. Quando para um determinado rio não havia
informação muito consistente, às vezes foi feita a opção pelo trabalho de prospecção
exaustiva, em alguns casos de varredura, certo?
Então a minha resposta para você é isso: eu não tenho ainda os dados exatos;
no que diz respeito à quantidade de sítios levantados até agora, sim, eu posso te dizer,
até o final do projeto não sei, mas pelo resultado que se apresentou até agora, eu
acredito que menos de 20% de sítios desse total pode ser ainda acrescentado através
de descobertas futuras.
E com relação à área toda coberta, tem essa questão, na medida em que nós
tivermos no final do projeto a área coberta por todos os sítios, além das bacias que
foram prospectadas exaustivamente, nós vamos ter o resultado, a expressão
quantitativa tanto de um caso (número de sítios) quanto de outro (área coberta). Acho
que aí inclusive nós vamos poder checar com outros métodos de trabalho, para ver
qual que é a viabilidade ou validade, nessa perspectiva que a gente colocou. Mas, de
qualquer maneira, eu acho que sua observação é pertinente; dizer que foi feito “o
máximo possível” é pouco, nos termos de qual é a objetividade que essa expressão
contém.
Solange Caldarelli - Renato Kipnis, da Universidade de Michigan.
Renato Kipnis - Várias questões que eu gostaria de levantar já foram feitas pelo
Walter; portanto vou diminuir o número de questões que vou fazer. Aproveitando uma
resposta do Carlos a uma pergunta do Walter, há dois problemas suscitados e que são
importantes. Um dos problemas é a questão de se tentar fazer um levantamento
arqueológico total e de como avaliar o trabalho de prospecção, se realmente foi
eficiente ou não. O que foi dito é que, para se ter o “resultado máximo”, como ele
respondeu ao Walter, é preciso conhecer o universo e ele só obtém uma idéia do
universo quando ele conseguir prospectar tudo. Este pensamento fica claro quando ele
fala que “no final do projeto eu vou ter uma idéia de universo porque esses (os sítios)
que passaram do nosso design vão aparecer fortuitamente”. Isto coloca um problema
muito sério no contexto específico de Serra da Mesa, uma vez que a barragem já está
sendo inundada e têm áreas que já estão de baixo d‟água ou estão sendo alagadas e em
que pode haver ocorrência de sítios. Como há áreas que não estão sendo visitadas e
não serão mais, os sítios que não foram localizados na primeira etapa de prospecão
não irão ter a chance de serem achados fortuitamente; essa é uma questão que tem de
ser pensada, principalmente quando falamos que estamos fazendo prospecção total e
na prática não é uma prospecção eficiente. Não foi citado o potencial arqueológico da
área que está sendo inundada, de um ponto de vista teórico, e que poderia guiar o tipo
de prospecção a ser realizada, para ser mais eficiente. Por outro lado, já existe um
corpo teórico bem desenvolvido quanto ao emprego de métodos estatísticos amostrais
em levantamento arqueológico, no qual podemos nos basear para avaliar uma área
(nosso universo) a partir de uma amostra significante da mesma.
165
O outro ponto que gostaria de lenvantar remete um pouco à questão que a
Solange mencionou ontem. O Carlos não estava aqui, mas ele discutiu um problema
de significância e redundância de informação, principalmente para arqueologia
histórica. Quando falamos o “Ciclo de Ouro”, já estamos fazendo um trabalho
concentrado sobre um tema específico, com bastante informação secundária. É
preciso então ficar bem claro e objetivo que o projeto não está simplesmente
reproduzindo informação que já existe. Isto é muito importante em termos de custo.
Os projetos têm que ser bem objetivos, para se poder avaliar o tipo de conhecimento
que será gerado, e que este conhecimento não seja redundante. Em outras palavras,
que não se está gastando dinheiro para reproduzir algo que já existe, que já é
conhecido. Estas questões precisam ser pensadas, principalmente pela arqueologia
histórica, que tem bastante dados históricos, bem mais abrangentes do que a
arqueologia pré-histórica. Acho que isto tem de ser pensado também para arqueologia
pré-histórica.
Outras duas questões que eu queria colocar são as seguintes: primeiramente,
martelar um pouco mais a questão do problema de viés amostral e dos modelos que o
Walter falou, referindo-se à exposição da Emília. Eu acho que o Walter está certo
quando diz que todo mundo tem modelos explícitos, mas na verdade eles são
implícitos. A Emília falou em um determinado momento o seguinte: “nós achamos
sítios em áreas em que nós não esperávamos encontrar”. Implicitamente, ela tinha
uma expectativa. O problema não é a falta de modelos, mas é construir bons modelos,
modelos que sejam eficientes, objetivos e testáveis. Isso eu acho que é complexo,
difícil. Mas todo mundo está usando algum tipo de modelo, acho que na fala da
Emília que acabei de citar fica claro que estão implícitas expectativas da ocorrência
ou não de sítios em determinadas áreas. O problema é estar sempre aberto para
reconhecer que existe, e sempre vai haver, viés no nosso design e temos que tentar
descobrir onde estão estes viéses, para poder redirecionar a pesquisa. Por exemplo, no
caso do Jorge, que falou ontem, no caso do projeto do Carlos, temos desenhos
amostrais de prospecção total e que mostraram-se ineficientes, uma vez que novos
sítios foram achados após o término da etapa de prospecções. No caso da Emília,
utilizou-se o relevo como uma das variáveis, áreas inundáveis e áreas que não são
inundadas. A partir desta variável, implicitamente criou-se expectativas de
ocorrências de sítios arqueológicos e sítios onde não se esperava ocorrerem foram
encontrados. É neste momento que precisamos parar e reconhecer que o desenho
amostral está errado; precisamos redirecionar a pesquisa porque tem áreas onde
ocorrem sítios, que não estão sendo amostradas; nós não estamos dando chance desses
sítios aparecerem. E mesmo que não ocorram sítios em uma determinada região, é
necessário incluir esta região na amostragem. Não se pode pressupor que em áreas
como o Pantanal ou a Amazonia, onde nós temos áreas que parte do ano estão
cobertas por águas, que as áreas alagadas não vão ter sítios, porque é assumir que as
populações vão estar sempre, o ano todo, nas áreas mais elevadas. Pode ser que
durante as secas eles vão fazer as roças nas áreas que estão inundadas, provavelmente
isto é o que ocorre, porque são áreas ricas, que contém solos ricos em nutrientes.
Então, prosseguindo neste raciocínio, tem que se pensar logo, desde o começo, em
sistemas sociais que estão interagindo num espaço e tem que se pensar que tem
atividades que são feitas em áreas diferentes. São viéses que podem ser detectados
durante a elaboração, avaliação e implantação do projeto de pesquisa.
Outra coisa que eu achei importante na colocação do Walter é que, apesar de
meio implícita, a questão fundamental desta mesa é levantar parâmetros para
avaliação de projetos e mitigações. Por exemplo, nós podemos criar vários parâmetros
166
para servirem de instrumento de análise de projetos de salvamento e acho que uma
das questões do Fórum é discutir isto, segundo uma perspectiva de levantar subsídios
para o IPHAN e outros orgãos reguladores avaliarem os vários aspectos das pesquisas
que são feitas, dentro de um contexto de arqueologia de contrato. Por exemplo, vamos
pegar o projeto de Serra da Mesa como um todo. A área que vai ser impactada é de
1.780 km2 e o nosso objetivo é fazer prospecção total. A questão é: se eu disser que
vou trabalhar com duas equipes de 4 pessoas cada e precisarei de 2 anos, será que isto
é viável, pouco tempo, muito tempo?. Como podemos avaliar esta questão? O que
estou sugerindo é a criação de parâmetros mínimos para termos avaliações mais
objetivas. Como exemplo, vamos pegar a experiência que eu tenho de trabalhar em
São Paulo, que é uma condição ideal em termos de cobertura vegetal, que em muitos
dos casos virou pasto ou cultivo e o acesso aos locais é muito fácil. Nestas condições,
e trabalhando com uma equipe de cinco pessoas, na melhor das hipóteses a gente
conseguia fazer 2 km2 de levantamento, sem nenhuma outra atividade, tipo registro,
cortes-teste, etc. Então, fazendo uma conta utilizanto os dados que acabo de citar e
pegando os 1.784 km2 da área de Serra da Mesa que será inundada, dariam 892 dias
de prospecção: só levantamento para achar sítio, sem contar teste, escavação, registro,
topografia, etc, só achar o sítio e continuar andando. São 892 dias; se nós dividirmos
em duas equipes de 5 arqueólogos cada, são 450 dias - mais ou menos 3 anos
(assumindo 5 meses de trabalho de campo por ano), só de levantamento, se achar sítio
não pára, continua andando. E este cálculo utiliza um parâmetro mais ideal que a
realidade de Serra da Mesa, onde não há tanta utilização da terra como há em São
Paulo, e onde o acesso aos locais é mais complicado. Se formos pensar para projetos
na Amazônia, os parâmetros que temos que utilizar têm de ser mais restritos ainda.
O ideal é que tenhamos parâmetros regionais, porque para a região Amazônica
vai ser totalmente diferente; na melhor das hipóteses, não chega nem a 1 km2 por dia,
com uma equipe de 5 pessoas. A idéia de se criar parâmetros é para se ter
instrumentos mais objetivos para avaliação de projetos. Por exemplo, quando algum
projeto contiver levantamento total, teremos meios de avaliar, baseados em
informações objetivas, se a proposta é viável, segundo a metodologia sugerida. Deste
modo, as avaliações de projetos de salvamento podem ser pontuais e eficientes. Acho
que a questão da avaliação é muito importante, pois temos de lembrar que, no
contexto da arqueologia de contrato, estamos lidando com custos que algumas vezes
são muito altos e é nosso dever tentar ser o mais eficiente possível. Eu acho que estas
questões são importantes, têm que ser discutidas e decidir o que seria necessário
juridicamente em termos de torná-las aplicáveis.
Um último ponto que eu queria só lembrar, do qual até agora não se falou e
que é uma informação muito importante para avaliação e para se fazer estudos de
significância: datação radiométrica. É fundamental se ter uma cronologia,
principalmente para projetos pré-históricos, no começo das atividades específicas de
pesquisas, quando ainda é possível fazer mudanças no cronograma. Vamos supor que
um determinado sítio tenha várias ocupações e que as datações serão feitas somente
no final ou depois de feito o trabalho de campo. Imagine que descubrimos que uma
ocupação tenha uma datação de vinte mil anos. Esse sítio em contexto seria um sítio
muito importante para ser trabalhado e até a datação em si altamente discutível. Uma
vez que o projeto já acabou, você não teria como voltar; por outro lado, tendo essa
datação já no começo das pesquisas, ou pelo menos na metade, você tem como
redirecionar a sua pesquisa, em termos de significância e outros parâmetros.
167
Solange Caldarelli - Antes de os colegas responderem, eu queria aproveitar uma
colocação do Renato, relativa a tempo de pesquisa para se fazer levantamento, para
me reportar a uma questão que eu coloquei ontem, mais para os empreendedores do
que para os meus colegas de pesquisa, pois eles também foram chamados muito tarde
no processo: se se tomar Serra da Mesa como exemplo, vê-se que o levantamento
arqueológico deveria ter ocorrido há uns cinco anos atrás, para evitar ocorrer um
problema já discutido aqui, de ter de levantar e resgatar ao mesmo tempo, no maior
atropelo, o que impede a reflexão científica sobre os dados oriundos do levantamento,
tão necessária para subsidiar as decisões relativas ao que e a como resgatar.
Emília Kashimoto - Vou tentar colocar alguns pontos. Essa questão do sítio que eu
disse que foi localizado e não era esperado, na verdade era um nível lítico profundo
no mesmo espaço; o que não se esperava era o nível lítico em profundidade de 2m,
naquele local onde havia cerâmica em superfície. Portanto, essa questão de ter sido
localizado um sítio onde não se esperava, na verdade, dizia respeito a sítios em
profundidade, a uma questão estratigráfica e não à questão da distribuição dos sítios
nessas elevações topográficas. Assim, essa pesquisa tem realmente a perspectiva de
cobertura total; a idéia é realmente cobrir tudo o que for possível. No caso, por
exemplo, do módulo da barragem, quando iniciamos a pesquisa a barragem já estava
em construção e a área toda já estava alagada. Então era realmente impossível
pesquisar boa parte da área, especialmente essas partes onde ocorreria uma ocupação
sazonal, num período mais seco. Nós temos uma premissa de que o arqueólogo é um
profissional e não tem que arriscar a vida, mergulhar nos brejos, coisas que não dá.
Então, fizemos testes em alguns locais que tinham características semelhantes;
fizemos sondagens intensivas e realmente não havia material arqueológico; pegamos
ilhas encharcadas, nesse caso com a equipe da UNESP, aquelas ilhas mais baixas que
são encharcadas, onde, inclusive, fizemos tradagens para ver se localizávamos alguma
coisa, mas realmente não havia nada. Nos diques menos elevados, fizemos
caminhamento no início, observando se não tinha nenhum material arqueológico, e
outras observações posteriores, que confirmaram que não haveria material
arqueológico.
A outra questão que eu queria colocar é complementar à interpretação do
Kipnis: é que o projeto Porto Primavera tem 15 datações de termoluminescência e três
de carbono quatorze e isso está auxiliando nossa interpretação sobre a questão dos
assentamentos cerâmicos e líticos.
Carlos Magno - Bom, deixa eu tentar responder. São informações que a gente
pretende atingir numa determinada área. Não trabalhando numa perspectiva imediata
da amostragem, é evidente que o risco existe, seria ingenuidade querer negar isso.
Agora, o que tem ficado para nós, nesse projeto, é que a riquezas das informações,
que não se repetem, compensa essa questão; é claro que ela tem de ser levada em
conta, mas, para falar a verdade, eu não sei até que ponto ela pode ser generalizada ou
não. No caso específico de Serra da Mesa, nós temos uma tal diversidade dentro de
cada um daqueles tipos (que são meia dúzia) que, mesmo que você considere que são
10 fazendas, cada uma delas é diferente da outra; então, não se trata de negar o risco
da redundância, mas de considerar que a diversidade supera a redundância.
Em segundo lugar, a questão sobre saber-se muito sobre o Ciclo do Ouro. As
informações são complementares, elas não são as mesmas que a arqueologia te
fornece; a documentação e a bibliografia não te dá as mesmas informações; então, eu
acho que a gente está avançando, no sentido de estabelecer ou de reconstituir o
168
processo através do qual toda uma tecnologia é desenvolvida e aplicada ao longo do
período, que não é só século XVIII, mas o XIX também; mas no século XIX você
encontra um outro processo, onde a mineração já é residual, como continua sendo até
hoje. Então, eu não acho que é argumento de peso considerar que não tem sentido
fazer escavação, já que a documentação traz informações, na medida em que elas são
complementares e não repetidas ou recorrentes.
Quanto aos cálculos que você fez, aí, para falar a verdade, eu discordo; eu não
consigo imaginar a necessidade de cinco arqueólogos numa equipe de prospecção.
Para mim, dois são suficientes, para poderem trocar idéias e informações sobre o sítio
que está sendo prospectado. Veja bem, você tem recursos que permitem desmembrar
equipes; eu tenho uma equipe de oito arqueólogos, que eu posso desdobrar em duas
ou até em quatro equipes diferentes; o recurso do rádio, que é uma bobagem mas
quebra um galho tremendo e que te permite a troca de informações e otimizar o
rendimento do trabalho de prospecção. Esses recursos técnicos, eles tem de ser
levados em conta e aí, logicamente, nós vamos cair numa outra questão que você
levanta, que é a questão do custo dos projetos em geral e o que está sendo levantado
aqui, especificamente em relação à Serra da Mesa. Acho que um projeto dessa
envergadura não fica barato, não tem como, não há artifício possível para fazer que
um projeto dessa magnitude custe preço de banana e, além disso, eu tendo a acreditar
que projetos pequenos acabam proporcionalmente saindo a custos mais elevados.
Finalmente, para terminar a minha resposta, eu queria dizer que, quando você
faz o cálculo do tamanho da área a ser coberta, você julga a possibilidade ou a
necessidade de que a área inteira seja coberta; acontece que o conjunto das
informações obtidas previamente indicava uma diversidade de sub-áreas, sendo que
em algumas áreas, como a Bacia do Tocantinzinho, as condições não permitem ou
não são favoráveis ao desenvolvimento de atividades, nem de ocupação; é claro que
você tem atividade e ocupação, mas muito rarefeitas quando você compara com o Rio
do Peixe, esse que a gente atravessa quando vai para Muquém, ou o rio Traíras, por
exemplo, que são áreas de grande densidade populacional, já no século XVIII; então
eu acho que esta questão teria que ser colocada.
Solange Caldarelli - Paulo Mello.
Paulo Mello - Minhas questões eram parecidas com as do Walter, mas eu queria
ressaltar o seguinte: o problema de acesso não pode ser jogado como uma desculpa
para não se levantar certas áreas, principalmente pela vegetação. No projeto de
Corumbá, que foi apresentado no primeiro dia, foram prospectados, a pé, mais de
220Km, mais da metade disso foi feita abrindo picada. Como a própria professora
Irmhild percebeu, se não fosse essa metodologia, não teriam sido achados
determinados sítios, que são fundamentais para o estudo de padrões de assentamento,
um dos objetivos que a professora Dilamar apontou ter também para Serra da Mesa.
Para cumprir esse objetivo, fica complicado se certas áreas não são levantadas; tem
que se dar um jeito para isso, para levantar esses tipos de área que apresentam
dificuldades. Tem uma série de tecnologias que estavam sendo usadas, como sistema
geográfico de informação, imagens de satélite; fica complicado se você divide a área
de maneira artificial, como foi feito em Serra da Mesa, segundo entendi. Seria muito
mais lógico dividir a área de acordo com critérios ambientais e, já que não se quer
fazer transects nas áreas de difícil acesso, ver se há áreas semelhantes que sejam
acessadas mais facilmente e trabalhar nessas áreas. Era isso que eu tinha para dizer.
169
Dilamar Martins - Eu queria colocar, em primeiro lugar, que há uma diferença muito
grande na relação que se faz entre Corumbá e Serra da Mesa. A área é completamente
diferente em termos ambientais, portanto, os procedimentos provavelmente utilizados
para Corumbá não seriam os adequados para Serra da Mesa. Então, nesse sentido, a
gente coloca que os recursos, a nível das ferramentas, como imagens de satélite, fotos
aéreas de levantamento geográfico, enfim, de toda a documentação cartográfica
existente, como Carlos Magno já havia colocado, descartam automaticamente
determinadas áreas que seriam realmente perda de tempo, porque provavelmente
jamais seriam utilizadas como áreas de assentamento humano, seja atual como
pretérito e quem conhece Serra da Mesa sabe disso perfeitamente e a própria
documentação cartográfica existente mostra isso. Então, eu não acho pertinente a
relação feita entre a situação de Serra da Mesa com a de Corumbá.
Paulo Mello - Você tem que amostrar, você tem que saber quantos por cento você
amostrou; em Corumbá a região é muito menor, eu posso amostrar uma área muito
maior, mas você tem que amostrar todas as variedades paisagísticas de Serra da Mesa
mesmo que seja 1% da área ou 10%, sei lá, quanto for necessário, a relação é a
mesma.
Solange Caldarelli - Catarina Ferreira da Silva, IPHAN.
Catarina Ferreira - Em relação à colocação do Jorge Eremites a respeito da Hidrovia
Paraguai/Paraná, queria dizer que o IPHAN vem acompanhando o assunto. É verdade
que foi solicitado pelo arqueólogo argentino uma autorização ao IPHAN e a
solicitação caiu em exigência porque não havia uma instituição nacional e
pesquisadores nacionais envolvidos. O consórcio que ganhou a execução do
diagnóstico nos comunicou a decisão de não mais fazer o trabalho de arqueologia.
Com essa resposta, o assunto foi encaminhado ao Ministério Público em Brasília, e
estamos aguardando um pronunciamento. Há portanto a preocupação do IPHAN em
que o trabalho seja feito. Aguarda-se agora que o EIA/RIMA dê entrada no orgão de
licenciamento ambiental, no caso o IBAMA e as Secretarias Estaduais para podermos
solicitar vistas aos documentos e, enfim, nos posicionar oficialmente e, caso
necessário, exigir a complementação ou a execução de um novo diagnóstico em
relação à arqueologia e ao patrimônio cultural da área a ser impactada.
Solange Caldarelli - Vou chamar o professor Glauberto Bezerra.
Glauberto Bezerra - Todos os atos do homem têm repercussão no ambiente natural e
no ambiente cultural também. Com relação à denúncia do professor Eremites,
repercute também no ambiente jurídico e repercute de maneira violenta. Ontem, já nos
reportávamos ao teor do texto constitucional, que considera o patrimônio histórico,
arqueológico, paisagístico, patrimônio da União no seu artigo 20. Também no artigo
216; aliás, esse é um dos patrimônios do Brasil, da União; está consignado em dois
sítios constitucionais diferentes; por isso mesmo, não posso em absoluto conceber
que, tendo havido um estudo de impacto ambiental, com catalogação de sítios, mais
de 100, me parece, venha uma equipe que desautorize em um documento o estudo
feito pelos arqueólogos brasileiros e registrado no instituto pertinente. Então, para
nós, dentro da visão, dentro da ótica jurídica, esse documento este documento
inexiste, não tem validade e qualquer cidadão que queria exercitar seu poder e seu
direito de cidadania, com embasamento no artigo 5º da Constituição, pode impetrar
170
uma ação popular. Concordo e assino com a proposição do nosso colega, quando ele
disse que dever-se-ia impetrar ações políticas tentando reverter a situação. Acho
interessantíssimo, até porque a própria administração tem poder de revisar seus atos,
que seriam nulos. Todavia, eu acho que esse é o momento em que se deve examinar a
questão em todos os seus quadrantes: político, jurídico e científico. Me parece que
um trabalho científico realizado e concretizado, com a fixação de sítios, não pode de
repente desaparecer: se estão registrados e documentados; me parece que teremos
extrema facilidade até, senão politicamente, administrativamente, juridicamente,
através do Ministério Público, ou de outras instituições, porque Organizações Não
Governamentais podem e devem intentar ações dessa natureza. Acho que esse assunto
deveria ser trazido à baila novamente amanhã, quando estarão presentes especialista
de renome do mundo jurídico brasileiro nessa área: doutor Paulo Afonso Machado,
Roberto Monteiro e Carlos Caldarelli, que poderão examinar com mais consciência
esse fato específico, que pode ser levado como bandeira a partir desse Fórum. E
também uma questão ao Fórum: que seja consignado, nos seus estatutos, defesa do
patrimônio paisagístico, artístico e arqueológico também, muito obrigado.
Solange Caldarelli - Sandro Junqueira, da FEMAGO
Sandro Junqueira - Eu sou Sandro, tenho 16 anos de FEMAGO, e sou também
professor da Universidade Católica. Nós estivemos à frente do licenciamento da Serra
da Mesa. Dilamar já é companheira de longa data. Então, o que a gente quer colocar
são coisas gerais e perguntar se os modelamentos da arqueologia acadêmica ou da
arqueologia de salvamento, as matrizes variáveis, se elas foram suficientes para as
diversas etapas existentes: levantamento, prospecção, salvamento e resgate,
considerando que diversos profissionais têm tecido críticas ao enchimento do
reservatório da UHE Serra da Mesa, considerando a enorme área da Barragem
(1.784Km) e o fato de 20% dos sítios histórico-culturais não terem sido cobertos. Nós
estamos considerando aqui, custos, o tempo necessário, resultados obtidos e a
comparação com outros projetos, com eficiência e eficácia. Basta saber que o
Ministério Público Federal do Tocantins protocolou uma ação cautelar que nós temos
que suspender esse licenciamento e na análise que pude fazer, acurada, a conversa que
eu tive com a professora Dilamar (eu quero parabenizar os estudos que a UFG e
UFMG fizeram) e a gente está sendo uma vidraça de críticas (...) e uma outra
recomendação que eu faria é que esses resultados do encontro de vocês fossem
encaminhados aos órgãos ambientais, porque lá nós somos curingas. Eu sou geógrafo
e tive quatro horas de antropologia cultural, fui aluno da professora Irmhild, do
professor Altair Sales Barbosa, eu não trabalho direto na área, convivo com o pessoal
do IGPA desde 88, que sou professor aqui e que façam realmente esses contatos; eu
não acredito que os estados vão contratar arqueólogos, eles não estão dando conta de
pagar nosso décimo terceiro, nós temos que trabalhar em comum com uma equipe
multidisciplinar. É isso que quero falar aproveitando a oportunidade e agradeço o
respeito que vocês deram pelo avançar da hora. Obrigado.
Solange Caldarelli - Eu quero dizer que os resultados do Simpósio serão
encaminhados, através do documento-síntese, a todos os órgãos ambientais e ao
Ministério Público; isso já foi decidido.
171
4ª MESA-REDONDA:
RECURSOS CULTURAIS INTANGÍVEIS: MEIOS DE
DIAGNOSTICÁ-LOS E DE AVALIAR, MITIGAR E
MONITORAR SEUS IMPACTOS
COORDENAÇÃO:
Prof. Jézus Marco de Ataídes
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia/UCG
Membro do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
172
EXPOSITORES
ANTONIO CARLOS SANT’ANNA DIEGUES
Livre-Docente em Sociologia pela ESALQ-Escola Superior de Agricultura Luiz de
Queirós/USP
Professor do Departamento de Economia e Sociologia Rural da ESALQ/USP
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental/USP
Coordenador do NUPAUB-Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e
Áreas Húmidas Brasileiras/USP e do CEMAR-Centro de Culturas Marítimas/USP
Membro da IUCN-International Union for Conservation of Nature no Brasil
Há vários anos dedica-se a estudos de sócio-antropologia de regiões litorâneas, do
Pantanal e da Amazônia, em colaboração com várias universidades brasileiras e
organizações internacionais, tendo vários livros e artigos científicos publicados sobre o
assunto.
RINALDO SÉRGIO VIEIRA ARRUDA
Doutor em Ciências Sociais (Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo
Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP
Chefe do Departamento de Antropologia da PUC/SP
Sócio-fundador e coordenador do IPA-Instituto de Pesquisas Ambientais de São Paulo
Desde 1982, tem realizado trabalhos de consultoria e assessoria para associações indígenas
e comunitárias, bem como em projetos de desenvolvimento regional. Dentre estes,
destacam-se a avaliação do componente indígena do projeto Polonoroeste, em Mato
Grosso e Rondônia, de 1982 a 1986; a consultoria para o CNEC/ELETRONORTE para
avaliaçào de impacto de projeto hidrelétrico em áreas indígenas de Rondônia, de 1986 a
1988; a assessoria à Associação dos Moradores da Juréia, em São Paulo, em 1989/90; a
avaliação de impactos ambientais e culturais de projeto hidrelétrico na sociedade
Nambiquara em 1992. Atualmente, presta assessoria ao CNEC no projeto PRODEAGRO,
no Mato Grosso.
Tem livros e artigos publicados em revistas científicas, voltados principalmente para as
questões indígenas.
CARLOS EDUARDO CALDARELLI
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo
Advogado com escritório em São Paulo (SP)
Coordenador de Projetos (Área Sócio-Econômica) da Scientia Consultoria Científica,
participando de EIAs/RIMAs, regularização de Unidades de Conservação e projetos de
Zoneamento Ambiental
Membro da IAIA - International Association for Impact Assessment
HELOÍSA S. F. CAPEL DE ATAÍDES
Mestre em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Goiás
Professora de História do Departamento de História, Geografia e Ciências Sociais da UCG
Historiadora do “Projeto de Levantamento e Resgate do Patrimônio Histórico-Cultural da
UHE Corumbá, GO” - Furnas/UCG
173
O PATRIMÔNIO NATURAL E O CULTURAL: POR UMA VISÃO
CONVERGENTE
Antonio Carlos Diegues
Introdução
A Constituição Brasiloeira, em seu artigo 216, considera como constituintes
do patrimônio cultural brasileiro “os bens de natureza material e imaterial ...
portadores de referência ã identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira. Esse artigo inclui como integrante desse
patrimônio as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver. A mesma
Constituição, por outro lado, define como regiões prioritárias de conservação
ambiental a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, o Pantanal e outros ecossistemas
importantes, espaços territoriais onde existem sub-culturas importantes, como a dos
caiçaras do litoral do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro. Por outro lado, o Estado
implantou nessas áreas uma série de parques nacionais e reservas naturais que, pela
legislação em vigor, levam à exclusão e mesmo reassentamento das comunidades e
culturas tradicionais em outras áreas. Essa política ainda em vigor tem criado
inúmeros conflitos entre a administração de parques e reservas e as comunidades
tradicionais que, ainda presentes nessas áreas protegidas são pribidas de exercerem
suas práticas econômicas e sociais. A prática de pequenas roças, o uso de tecnologias
patrimôniais na pesca, no fabrico de farinha, na construção de canoas tem sofrido
severas restrições, colocando em risco a própria reprodução social e simbólica dessas
comunidades tradicionais cujos membros, frequentemente são forçados a migrar para
as periferias pobres das cidades da região. Aí sofrem um processo de perda de sua
identidade cultural, com o abandono de práticas simbólicas essenciais à sobrevivência
do grupo. Essas práticas preservacionistas oficiais, impulsionadas por grupos
ecológicos urbanos, desconhecedores das relações e práticas históricas desses grupos
com o mundo natural, em grande parte responsável pela conservação das florestas e
áreas costeiras tem, frequentemente ocasionado uma redução da diversidade cultural
brasileira e contribuido para um aumento da degradação de matas e mares.
A existência de comunidades tradicionais foi, por inúmeras décadas, ignorada
pelas instituições conservacionistas brasileiras e somente nos últimos anos, sobretudo
após o fim do período autoritário, veio à cena política como resultado de uma
organização incipiente dessas populações, de ações de organizações nãogovernamentais sócio-ambientais (ex. Conselho Nacional dos Seringueiros) e de
algumas universidades e instituições de pesquisa. Como resultado de intensos debates,
o novo projeto de lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, cujo relator é
o dep. Fernando Gabeira, (substitutivo ao Projeto de Lei 2.892/92) reconhece o papel
positivo dessas populações tradicionais para a conservação. No entanto, as décadas de
uma política conservacionista inapropriada, baseada em modelo importado dos
Estados Unidos tiveram efeitos nefastos, que ainda perduram, sobre essas culturas
tradicionais moradoras de parques e reservas.
Na década de 80, a figura do tombamento, proposta pelo Serviço (Instituto) do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi também proposta seja para preservar o
174
patrimônio natural (ex: o tombamento da Serra do Mar, das Ilhas do Litoral Paulista)
seja para preservar o patrimônio cultural (tombamento das vilas caiçaras como as de
Picinguaba e Icapara, nos municípios litorâneos paulistas de Ubatuba e Iguape,
respectivamente).
Este artigo pretende analisar a importância das culturas tradicionais para
conservação das florestas e áreas costeiras e a necessidade de, ao se implantar projetos
de proteção ambiental, levar em consideração a presença das comunidades humanas
que vivem na área há muitas gerações e dependem do uso sustentável dos recursos
naturais renováveis para sua reprodução social e simbólica. As comunidades caiçaras,
que vivem na Mata Atlântica de São Paulo são tomadas como exemplo para a análise
dos conflitos e do potencial que apresentam para novas políticas de proteção
ambiental e de conservação do patrimônio cultural da região.
O Patrimônio natural
A idéia de patrimônio natural já figurava no decreto-lei n. 25, de 30 de
novembro de 1937, visando proteger valores paisagísticos, “como sítios e paisagens
que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados
pela natureza ou agenciados pela indústria humana”. (Fonseca, 1996). Nesse sentido,
o patrimônio natural tinha seu equivalente no primeiro parque nacional brasileiro, o de
Itatiaia, criado nesse mesmo ano. Já em 1934, o Código Florestal definia parques
nacionais como monumentos naturais destinados a proteger áreas de grande beleza
cênica, com composição florística primitiva. A idéia de parque nacional como
monumento natural, de onde os homens deveriam ser excluidos tomou força com os
preservacionistas americanos do século XIX. Herny Thoreau e John Muir afirmavam
que no mundo selvagem estava a salvação do homem e sua transformação em parques
nacionais era o antídoto para os venenos da sociedade urbano-industrial norte
americana, destruidora da natureza. No entanto, como afirma Simon Schama (1996),
os santuários naturais de Yellowstone e Yosemite, assim como a natureza selvagem
eram um produto cultural, uma “elaboração da cultura tanto quanto qualquer jardim
imaginado” (p.17). Como produto simbólico, o parque natural americano, um
santuário sem vestígios humanos, incorpora uma visão antiga do Éden primitivo de
onde os primeiros serem humanos foram expulsos. Nesse sentido, ele faz parte do
mito moderno da natureza intocada e intocavel. Como afirma Simon Schama, à
semelhança de todos os jardins que povoam a imaginação humana, o parque nacional
americano de Josemite “pressupunha barreiras contra a bestialidade. No entanto, seus
protetores inverteram as convenções, deixando os animais dentro e os humanos fora.
Assim, tanto as companhias de mineração que penetraram nessa área da Sierra
Nevada quanto os índios Ahwahneechee foram meticulosa e energicamente expulsos
do idílico cenário” (18).
Ou ainda, como afirma Simon Schama, as pradarias reluzentes de Josemite já
não eram simplesmente natureza selvagem, mas o resultado de frequentes queimadas
realizadas pelos indígenas para servir de alimento aos bizontes.
A noção de patrimônio natural selvagem, sem qualquer tipo de4 morador, não
esteve somente na base da criação do primeiro parque nacional brasileiro nos anos 30,
mas reapareceu também na defesa da transformação de espaços territoriais florestados
da Mata Atlântica, como sucedeu com a Juréia que, nos anos 70, ameaçada em
175
transformar-se em condomínio de luxo e até em área de usinas nucleares, foi tombada
pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,
Arqueológico e Turístico) como área natural, ainda que fosse a morada de centenas de
famílias caiçaras. Os ecologistas paulistas que propuseram a implantação de uma
Estação Ecológica, uma das mais restritivas unidades de conservação ao uso humano
esqueceram-se também que as comunidades indígenas e caiçaras aí residentes, que
por décadas e mesmo séculos transformaram a paisagem da mata tropical e as zonas
costeiras circundantes através de suas tecnologias patrimoniais usadas na pequena
agricultura, na pesca e no extrativismo.
O Patrimonio Cultural não-consagrado
A idéia de patrimonio Cultural não-consagrado surgiu no SPHAN Patrimônio Histórico e Artístico Nacional também por volta da década de 70
designando os bens culturais que, até então, não integravam o conjunto do patrimônio
histórico e artístico nacional. Segundo Fonseca (1996), “tratava-se das produções dos
“excluidos” da história oficial; indígenas, negros, populações rurais, imigrantes, etc.
Para alguns funcionários do SPHAN, a exclusão desses bens culturais se justificava
pelo fato de não haver, no Brasil, testemunhos materiais significativos da cultura
desses grupos sociais, e por estarem esses bens, em geral, imersos em uma dinâmica
que inviabilizava o tombamento”. (Fonseca, 1996:159). A criação do centro Nacional
de Referência Cultural - CNRC- fundado em 1975, e em 1979 incorporado à
Fundação Nacional Pró-Memória contribuiu para a valorização da produção cultural
mais ampla, voltando-se para a valorização da cultura viva, sobretudo aquela
enraizada no fazer popular, com a intenção de tornar mais diversificada a
representação da cultura brasileira. O trabalho realizado pelo Pró-Memória serviu para
resgatar a cultura de importantes setores marginalizados das políticas culturais.Como
afirma Fonseca (1996), o reconhecimento desses setores não somente como objetos
de pesquisa, mas como produtores de cultura foi uma alavanca importante para a
afirmação da cidadania daqueles até então excluidos das políticas culturais. Como
resultado dessa nova proposta, várias manifestações da cultura viva dos grupos sociais
até então tidos marginais, como a dos negros, indígenas, caiçaras passaram a ser
objetos de tombamento.
Dentro dessa nova perspectiva, em 1976, o CONDEPHAAT, em São Paulo,
realizou o tombamento da vila caiçara de Picinguaba, no municipio de Ubatuba e
propôs também o tombamento da vila de Icapara, no município de Iguape com o
objetivo de preservar aldeias caiçaras como representativas de uma forma de
assentamento humano que fazia parte integrante da história do povoamento paulista,
ameaçada de extinção. Em abril de 1984, oito anos após o tombamento de Picinguaba,
a conselheira do CONDEPHAT, profa. Eunice Durhan propôs transformar o
processo de tombamento numa intervenção controlada permanente, tendo em vista as
transformações ocorridas, nesse período, na paisagem humana da vila, causadas pela
especulação imobiliária e pela construção de casas de veranistas. No momento do
tombamento, havia sido aprovado um plano diretor da vila, que se propunha a
regulamentar a densidade populacional, a doação de medidas para a conservação da
arquitetura original e da paisagem. Dez anos depois do tombamento pode-se dizer
que, ainda que tenha vida um certo controle da ocupação desenfreada, a vila passou
por um processo de descentralização cultural que acompanhou uma decadência das
176
atividades econômicas tradicionais, sobretudo aquelas ligadas à pesca artesanal. E na
base desta, está o desafio básico para esse tipo de tombamento: trata-se de uma cultura
viva, cujas bases sociais e econômicas foram sendo solapadas pelo contato com a
sociedade urbano-industrial, sem que o Estado tomasse medidas de apoio a uma
economia local indefesa frente aos avanços da chamada modernidade. os caiçaras
foram perdendo o controle sobre o seu território, sobre suas areas de plantio, suas
praias enquanto lugar de trabalho e vida e sobre o fazer e conhecer tradicionais.
Infelizmente, para isso contribui não só a especulação imobiliária, mas a implantação
dos momentos naturais, os parques e reservas que restringiram as atividades
tradicionais caiçaras. Aqui se revela uma dos efeitos da aplicação das políticas
dissociadas de proteção ambiental e cultural praticada tanto IPHAN como pelos
órgãos de conservação ambiental. Frequentemente, o chamado patrimônio natural a
ser protegido faz parte integrante do patrimônio cultural das populações tradicionais e
não podem ser protegidos separadamente. Essa proteção dividida torna-se ainda mais
grave quando o território do chamado patrimônio natural é o lugar reprodução
economica, social e simbólica das populações tradicionais, como é o caso das
caiçaras. Toda tentativa de congelamento dessas áreas naturais onde vivem
populações tradicionais acaba por, a longo prazo, desarticular a vida dessas
comunidades e comprometer a própria conservação ambiental. Por outro lado, pode-se
pensar que a implantação de áreas naturais protegidas que incorporem os interesses
das populações tradicionais possa contribuir para transforma-las em verdadeiros
laboratórios para a realização de ações visando o desenvolvimento sustentavel, através
do qual sejam respeitados e valorizados o saber tradicional, a tecnologia patrimonial e
mesmo sejam introduzidas técnicas alternativas de uso sustentavel do solo e dos
recursos naturais.
A proteção ecológico-cultural: uma síntese da defesa do patrimônio cultural e
ambiental
Já existe, a nivel internacional uma consciente crescente que a proteção da
diversidade biológica, de espécies, ecossistemas e genes não pode ser dissociada da
proteção daquelas culturas tradicionais que possuem um vasto conhecimento do meionatural em que vivem. (Diegues, 1966). Uma das maiores instituições ecologicas
globais, a UICN- União Mundial para a Conservação (1993) tem alertado para a
nexessidade de proteger tanto a biodiversidade quanto a diversidade sócio-cultural.
Estudos recentes (Gomes-Pompa, 92; Balée, 1988; Posey, 1987) tem demonstrado
também que as populações tradicionais, tem contribuido, em inúmeros casos, para a
manutenção e até fortalecimento da biodiversidade.
Até recentemente, os ecologistas preservacionais norte-americanos e europeus,
e seus sequidores dominavam o cenário da conservação com sua proposta de parques
e reservas sem a presença de populações, mesmo as tradicionais. Essa política não tem
garantindo a conservação das florestas, sobretudo nos países do Terceiro Mundo,
onde, ao contrário dos Estados Unidos, vivem comunidades tradicionais indígenas e
não-indígenas ameaçadas de expulsão com a criação dessas áreas naturais protegidas.
A partir dos anos 70, em vários países do Sul, os ecologistas sociais tem
criticado essa ação impositora do Estado sobre as populações tradicionais, propondo
formas de harmonização para a manutenção da proteção ambiental e sóciocultural.Uma dessas propostas é a da reserva extrativa para os seringueiros da
177
Amazônia. Uma outra, proposta pelo Nupaub-Núcleo de Pesquisa Sobre Populações
Humanas e Áreas Úmidas, da USP, agora incorporada no projeto de lei do Deputado
Fernando Gabeira é a reserva ecológico-cultural.Essa nova unidade visa proteger, de
forma dinâmica as relações entre populações tradicionais, como a caiçara e seu
ambiente, designando áreas de preservação permanente de florestas, estuários e rios.
O importante, nessas propostas recentes é a consideração que nem o ambiente nem a
cultura são fenôminos estáticos, mas que co-evoluem e se interpretam profundamente,
em processos complexos e dinâmicos. Nesse pocesso, na maioria das vezes
assimétrico, as culturas tradicionais se desorganizam, mas, em outros, elas resistem,
incorporando elementos novos, sobretudo aqueles que favorecem uma melhor
organização da produção e comercialização dos produtos agrícolas, pesqueiros e
artesanais. A proteção ambiental e cultural precisa levar em conta essa dinâmica, caso
contrário corre-se o risco de congelar as culturas tradicionais como peças de museu e
não como processos vitais relacionados com a produção e reprodução de um modo de
vida ainda existente.
Atenção especial deve ser dada ao turismo que, se de um lado pode contribuir
severamente para a desorganização das comunidades tradicionais, por outro lado, se
adequadamente planejado, pode ser um aliado importante na revitalização da
economia e da cultura tradicionais. No caso dos caiçaras pode-se observar que,
quando as comunidades litorâneas souberam manter seu território e suas atividades
tradicionais, seu relacionamento com turistas e veranistas não foi um elemento
desorganizador, ao contrário daqueles casos em que a perda das praias e das terras foi
uma das causas mais importantes da marginalização social.
Conclusões
A conservação do patrimônio natural e cultural não podem mais ser
considerados dois processos separados e opostos. O desafio maior é ainda o de
conservar processos e produtos sócio-ambientais que são dinâmicos e históricos. As
culturas tradicionais não são peças de museus como sugerem alguns folcloristas, mas
encontram-se profundamente inseridas em formas de vida que subsistem, ainda que
ameaçadas, em muitas regiões brasileiras, sobretudo em ecossistemas tidos até agora
como marginais, como florestas, mangues e estuários. Essas culturas coexistem em
diversos graus de integridade e identidade própria com a sociedade urbano industrial.
Sua identidade também é uma marca estática, mas se constrói e se reconstrói
continuamente em oposição à sociedade industrial envolvente. No caso da cultura
caiçara e de outras, essa identidade se reconstrói e se afirma, hoje, em oposição à
grilagem de seu território e às restrições às formas de vida das comunidades
tradicionais por parte de instituições preservacionistas que importaram modelos
inadequados de áreas naturais protegidas. A nosso ver, é preciso abandonar as formas
tradicionais de tombamento de áreas naturais separadas das culturas humanas que aí
tem o seu território de produção e reprodução de suas práticas econômicas, sociais e
simbólicas. Na área ambiental, a discussão, a nivel nacional de figuras como a da
reserva ecológico-cultural e reserva extrativista apontam alternativas novas para
conservação da diversidade biológica e sócio-cultural.
Referências Bibliográficas
178
BALÉE,W, 1992 “Indigenous History of Amazonian Biodiversity”, in H.K. Steen &
Tucken (eds). Changing Tropical Forest: Historical Perspectives on Today’s
Challanges in Central and South America, Durhan: Forest History Society,
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DIEGUES, A 1996 O Mito Moderno da Natureza Intocada, São Paulo, Huicitec.
FONSECA, M.C. 1996 Da Modernização à Participação: A Política Federal de
Preservação nos Anos 70 e 80. in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, n.24.
GOMES-POMPA, A & KAUS, A. 1992 The Tropical Rainforest: A Non Renewable
Resource, in Science 177: 762-5.
SCHAMA, S. 1996 Paisagem e Memória, São Paulo, Cia das Letras.
POSEY, D. 1984. Manejo da Floresta Secundária: Capoeiras, Campos e Cerrados
(Kayapó). in Ribeiro, B. (org.) Suma Etnológica Brasileira, Vol.1. Petrópolis,
Vozes.
179
A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS NA ELABORAÇÃO DOS
RELATÓRIOS DE IMPACTO SOBRE O MEIO AMBIENTE.
Rinaldo S. V. Arruda
1. Considerações iniciais
Agradeço o convite para participar do Simpósio “Política Nacional do Meio
Ambiente e Patrimônio Cultural” e parabenizo os promotores pela relevância e
oportunidade do tema.
No ofício de antropólogo tenho trabalhado há quase 15 anos em pesquisas e
projetos com comunidades indígenas, comunidades rurais tradicionais e até grupos
urbanos culturalmente diferenciados. De uma certa forma, como dizia Levi-Strauss,
por força dessa vivência, o antropólogo se converte em parte num estrangeiro entre
mundos culturalmente diversos. Para conhece-los neles nos imiscuímos e nesse
processo adquire-se uma visão dupla e reflexiva, de forma que a realidade de nossa
cultura e da do “outro” adquirem um mesmo grau de vitalidade e, ao mesmo tempo,
de afastamento.
Talvez por isso discorde e considere estranha a definição temática da mesa
em que participo14 que, denominando as tradições culturalmente diferentes de bens
intangíveis e classificando-as como manifestações do passado humano na
atualidade, de pronto as insere na categoria de folclore e de bens de museu. Esse viés
se acentua na sua denominação inicial como recursos culturais, termo de conotação
econômica e designativo de algo que pode ser usado com proveito por quem assim o
denomina.
Esses comentários não visam criticar, de forma alguma, os promotores do
evento, com alguns dos quais já tive oportunidade de trabalhar e de cujas
preocupações e perspectivas científicas e sociais tive o privilégio de partilhar. Na
verdade, essa definição reproduz, e permite colocar em discussão, a perspectiva
vigente sobre as populações tradicionais no contexto empresarial, financeiro e
governamental dos estudos de impacto ambiental.
Essa visão, infelizmente ainda hegemônica, se encontra profundamente
encravada nos pressupostos culturais de nossa civilização, os quais orientam nossa
percepção da natureza e do papel da humanidade em relação a ela, afirmando que:
a natureza é algo separado do homem;
o homem é superior a todas as outras formas de vida;
a natureza é hostil, caótica e perigosa, sendo necessário antes domá-la,
para poder utilizá-la na satisfação dos interesses humanos. Mais do que um direito,
é dever do homem transformá-la, domesticá-la;
a natureza não passa de “recursos” ou é apenas uma “paisagem”;
as sociedades com maior poder de transformação do ambiente natural
são, portanto, superiores às de menor poder de transformação da natureza. São as
promotoras do “progresso e desenvolvimento”. E aí, entram todas as variantes
históricas de legitimação científica/ideológica dessa concepção de superioridade:
racial, climática, civilizatória, etc;
14
O título da mesa era “Recursos culturais intangíveis: meios de diagnosticá-los e de avaliar, mitigar e
monitorar seus impactos”.
180
e, finalmente, a natureza é vista como uma fonte ilimitada de
“recursos”. Mesmo a consciência recente de que estes recursos são limitados, e
portanto, o “progresso” e “desenvolvimento” infindável devam ser redirecionados,
encontram sua salvação na crença mágica do poder da ciência como redentora
deste impasse.
Em suma, nossa visão de mundo separa o homem da natureza e hierarquiza
as sociedades, legitimando todas as formas de sujeição da natureza e de outras
sociedades com base nestes pressupostos.
A antropologia clássica de cunho evolucionista foi uma das promotoras e
legitimadoras desta visão que, hoje, foi incorporada pelo senso comum e orienta a
visão da maior parte das pessoas. Por outro lado, o desenvolvimento da antropologia
se fez a partir da crítica a estas primeiras formulações introduzindo outras concepções,
baseadas tanto na reflexão teórica quanto nos intensivos e extensivos trabalhos de
campo etnográficos.
Nesse sentido, uma primeira contribuição da antropologia se funda na
reflexão sobre a constituição do ser humano, como ser cultural e natural, parcela
constitutiva dos ecossistemas nos quais se aloja. Por outro lado, tanto a idéia de
evolução, quanto a hierarquização das sociedades devem ser desnaturalizadas e
relativizadas num contexto de análise de dinâmicas históricas e culturais, onde a
diferenciação e a homogeneização são vistas como aspectos concomitantes de um
processo global de complexificação das relações sociais e ecossistêmicas.
O pressuposto da separação homem X natureza, além de naturalizar as
sociedades humanas, promove também o mito da “natureza intocada”. Pois bem,
estudos de ecologia cultural vem demonstrando cabalmente que até mesmo a “floresta
primária” é fruto do manejo milenar de populações locais (ex. Willian Ballée), Posey
e os Caiapós, etc. Promove o mito de que só a tecnologia mais moderna, a
monocultura e as espécies selecionadas pela “revolução verde” é que são válidas e
“produtivas”.
2. O trabalho antropológico na avaliação de impactos
Em geral o antropólogo é chamado quando se prevê que o empreendimento
provocará impactos diretos sobre populações indígenas ou “populações tradicionais”,
como seringueiros, ribeirinhos, quilombolas, ou outros tipos de comunidades
culturalmente diferenciadas da população brasileira.
A avaliação do impacto sobre as outras formas de vida que compõem o meio
ambiente não é menos difícil ou complexo, porém é voltado para um contexto de
maior regularidade de comportamento, característicos das espécies vegetais e animais
ou dos efeitos sobre o terreno.
Quando se avalia impactos sobre populações humanas a equação é dupla, já
que os humanos são, ao mesmo tempo, mais adaptáveis e mais imprevisíveis. Como
espécie adaptam-se a situações muito mais variadas que outras formas de vida mas,
por outro lado, comunidades humanas tem história e culturas específicas e a
variabilidade e potencialidade de sua adaptação a mudanças depende do ambiente
sócio-cultural em que foram formados. A cultura é o gabarito através do qual vêem o
mundo, classificam e atribuem significado a seus aspectos, direcionando seu
comportamento. A classificação do mundo, sendo sempre valorativa, coloca restrições
181
e impõe tendências de comportamento tão fortes quanto as de origem genética. No
aspecto alimentar, por exemplo, a existência de tabus (o que é considerado alimento, o
que não é) varia amplamente e seleciona o uso dos recursos naturais. Identidades e
papéis sociais estabelecem normas de relacionamento entre pessoas restringindo e
direcionando as formas de cooperação no trabalho, de resolução de conflitos, de
distribuição de alimentos, de acesso à terra e das possibilidades de ação conjunta. Isto
é, as mudanças no meio ambiente físico e social são mediadas pela grade cultural. Os
impactos ambientais sobre populações humanas, portanto, são equações diversas para
diferentes formas sócio-culturais, não podendo ser reduzidas ao quadro de
estereótipos atribuídos a populações humanas genéricas.
Apesar de óbvia, é necessário insistir nesta questão, sempre desprezada ou
mal aceita em suas implicações práticas. No caso de perdas territoriais indígenas
derivadas da implantação de empreendimentos variados, a legislação e o senso
comum prevêem a compensação por área contígua, da mesma amplitude e
características ambientais. Mesmo assim há perdas irreparáveis, seja pelo significado
mítico ou sagrado agregado a parcelas da área perdida, seja pelas modificações nas
redes de sociabilidade decorrentes da mudança de local de moradia. Mas, sempre,
nestes casos, emerge novamente um questionamento do direito indígena: „por que
tanta terra para estes índios, se os colonos “se viram” com muito menos terra?‟.
Quando populações tradicionais são deslocadas, o máximo que se consegue é a
indenização aos indivíduos com títulos ou posses antigas comprovadas. Mas, e aquele
território de uso comum, do qual ninguém é dono porque a posse é comunitária,
respaldada no direito costumeiro? Há questões relativas à especificidade de modos de
vida e utilização de recursos naturais, característicos de uma vasta população no
Brasil e no chamado terceiro mundo em geral, com jurisprudência ainda incipiente ou
inexistente, que encontram pouca acolhida nas empresas responsáveis pelos RIMAS.
A questão da diversidade/especificidade sócio-cultural é o motivo do
trabalho antropológico e nele imprime características próprias de investigação. A
primeira delas foi cunhada na história da disciplina como observação participante,
implicando num longo período de convivência, condição para a impregnação no
antropólogo do quadro simbólico de referência da população estudada, para a
observação detalhada das rotinas cotidianas e dos ciclos de atividades através dos
quais se reproduzem, único meio de compreensão da lógica social e comportamental
vigente localmente.
Além disso, o contexto de contato com as populações indígenas ou
tradicionais é sempre de conflito aberto ou latente, pressionados que são
permanentemente pelas frentes de expansão da sociedade brasileira. No caso das áreas
indígenas, cerca de 526 no Brasil, a maioria delas tem problemas recorrentes de
limites, invasões, etc.
Assim, a pesquisa antropológica, ainda mais quando se realiza em povos
indígenas, é sempre longa, exigindo em geral muito mais tempo que o cronograma do
empreendimento prevê. Portanto, a condição inicial para se trabalhar num RIMA é o
conhecimento já acumulado que o antropólogo tem sobre o povo em questão e a
região do empreendimento.
A utilização de estudos sócio-econômicos, ambientais, arqueológicos e
antropológicos, visando avaliar os efeitos de projetos de grande porte, tais como a
construção de usinas hidrelétricas, estradas, etc., sobre a natureza e sobre a vida das
182
populações locais, é uma prática indispensável, já incorporada e normatizada pela
legislação brasileira e pelos proponentes de tais projetos.
Entretanto, para que esses estudos possam contribuir de modo realmente
efetivo, deveriam ter peso equivalente aos estudos de engenharia, geo-morfologia,
etc., na definição do local, tipo e porte do projeto, devendo ser realizados
conjuntamente desde a fase do inventário preliminar. O diagnóstico das implicações
ambientais, sócio-políticas e culturais deveria ampliar a abrangência, e ser parte
integrante, da equação custo X benefício normalmente restrita aos componentes
materiais da obra em questão.
Por sua vez, na fase de viabilidade, além da continuidade dos estudos
antropológicos, torna-se obrigatória a participação direta das populações locais,
indígenas ou de outro tipo, através de suas lideranças, como interlocutores dos
proponentes do projeto, nos processos de detalhamento dos problemas, da procura de
soluções e de decisão a respeito de alternativas diversas.
As possíveis respostas aos sérios problemas criados para as populações locais
costumam implicar no envolvimento de vários órgãos estatais (municipais, estaduais e
federais) e de grupos econômicos privados, na tentativa de harmonização de
interesses, por vezes contraditórios entre si, num contexto de alta tensão política e de
muita violência derivada da luta pela terra e pelos recursos naturais. Isso implica em
que os encaminhamentos devam ser procurados com grande antecedência, com as
empresas proponentes dando demonstrações práticas de respeito e defesa da
integridade tribal e dos territórios dos grupos atingidos, no caso dos povos indígenas.
No caso de relatórios de impacto ambiental, o estudo antropológico não se
configura como um estudo acadêmico. Não pretende comprovar teorias ou defender
hipóteses inovadoras, instaurando um debate relativo à questões priorizadas no
momento pela comunidade científica. Ainda que possa adquirir estas características,
seu objetivo principal é responder a questões pontuais e avaliar resultados de
processos práticos. Entretanto, são trabalhos que mantém as características científicas
e se apoiam sobre as contribuições teóricas acumuladas na história da disciplina, no
conhecimento sobre a região e as populações em questão e em pesquisa de campo
específica que complemente e estabeleça um maior grau de precisão à compreensão
da situação local.
Por outro lado, o eixo analítico “ambiental” impõe uma abordagem mais
“holística”, uma vez que a questão ambiental se constitui como um mosaico dinâmico
de interfaces interdependentes de múltiplas áreas de especialização. Nenhuma destas
áreas, isoladamente, é suficiente para a compreensão de todas as questões envolvidas.
Por esse motivo tornaram-se comuns, ao menos como proposta, os estudos
multidisciplinares. Em tese, os relatórios de impacto ambiental são fruto de equipes
multidisciplinares. Deveriam ser iniciados por um processo preliminar de trabalho
conjunto, visando a adequação dos objetivos específicos de cada área num plano de
pesquisa e trabalho comum, complementar e integrado. Dessa forma, as conclusões de
cada área se beneficiariam em precisão e abrangência com a incorporação, durante o
processo, dos dados levantados nas outras áreas.
Na prática corrente, raramente é o que acontece. O contato entre os
especialistas costuma ser mínimo, ou inexistente; suas metodologias e objetivos são
particulares e setorizados. Muitas vezes as informações básicas sobre o
empreendimento, necessárias para avaliação das implicações ambientais e sociais
183
chegam mesmo a serem “maquiadas” de forma a amenizar as implicações negativas
do projeto.
Mas o RIMA é apresentado como uma peça única. Os relatórios setorizados
são reescritos pela empresa executora que, articulando as informações setorizadas,
detem o poder de estabelecer ênfases ou omissões que podem, em certos casos,
apresentar os impactos ambientais e sócio-culturais em graus diversos de afastamento
das conclusões dos especialistas. Nessa fase, a totalização feita na empresa é que
define a contribuição dos especialistas, os quais perdem a autoria de seus trabalhos e o
controle sobre os resultados.
3. Impactos de grandes empreendimentos sobre culturas
tradicionais
O relato de algumas experiências de trabalho na avaliação de grandes
projetos permitirá que se visualize melhor algumas das implicações sobre as muito
tangíveis populações locais atingidas pelas transformações ambientais e sociais de tais
projetos .
A primeira delas antecede a resolução do CONAMA, mas ao mesmo tempo
já a antecipa. É o caso do Projeto Polonoroeste, do qual participei, de 1982 a 1986,
como membro da equipe de avaliação do componente indígena, coordenada pela
antropóloga Betty Mindlin no âmbito da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas
- FIPE - da Universidade de São Paulo. No final da década de 1970 pressões
crescentes de Ongs. sobre o Banco Mundial e sobre os países membros impuseram
medidas de proteção às comunidades tradicionais na zona de influência dos projetos
financiados pelo Banco, tal como o Polonoroeste, ainda que este projeto ainda não se
estruturasse na ótica da preservação ambiental, o que passaria a ocorrer quase uma
década após.
3.1. O POLONOROESTE.
No noroeste do Mato Grosso e, principalmente no Estado de Rondônia, o
Programa Polonoroeste foi um dos projetos mais impactantes, iniciado pelo governo
brasileiro em 1981. Centralizado ao longo do eixo da BR 364 (Cuiabá-Porto Velho), o
programa previa o asfaltamento dessa rodovia, a abertura de estradas vicinais e o
desenvolvimento e colonização da região. Com uma verba de 1,5 bilhões de dólares e
co-financiado em um terço desse valor pelo Banco Mundial, previa a destinação de 26
milhões de dólares para medidas de proteção às 60 comunidades indígenas na sua área
de influência. Na verdade, não chegou a alocar nem sequer a metade dessa quantia
para tal fim, tendo representado uma tragédia para a maioria dos povos indígenas
atingidos.
Algumas das áreas indígenas como, por exemplo, o território ocupado pelos
Erikbaktsa, pelos Kayabi e Apiaká, ficaram relativamente ao largo desse movimento,
ainda que atingidos pelo adensamento geral da população regional, pelo incremento
de doenças transmissíveis, pelos novos municípios surgidos, pelos empreendimentos
agro-pastoris e de mineração que avançavam e pelos projetos governamentais no
campo da produção de energia elétrica. Outras povos foram atingidas mais
fortemente, encontrando-se hoje em trágica situação, como os Nambikwara, os Cinta-
184
Larga, Suruí, Zoró, entre muitos outros. Em apenas dois anos depois da pavimentação
da BR 364 já haviam sido destruídos 2 milhões de hectares de floresta (Junqueira &
Mindlin, 1987: 4) sob a ação de companhias madeireiras, afetando negativamente a
economia tradicional indígena e sua qualidade de saúde e vida. Embora tenha
demarcado cerca de 30 das 60 áreas indígenas atingidas, ao fim do Programa
Polonoroeste a maioria delas não estava com o processo demarcatório finalizado e boa
parte continuava sofrendo invasões.
Além das profundas mudanças regionais, o Polonoroeste se apresentou aos
índios principalmente através da mudança de atuação da FUNAI. Esta passou a impor
sua presença no campo de intermediação, legitimada pela sua exclusiva e pouco usada
capacidade de demarcar áreas indígenas, além da oferta de "projetos" econômicos,
educacionais, de saúde e outros, financiados pelo Polonoroeste.
No decorrer de sua vigência o Polonoroeste propiciou um necessário
melhoramento da infraestrutura da Funai, dotando-a de mais viaturas, sedes,
funcionários e maior capacidade de intervenção no campo dos projetos econômicos,
educacionais e no atendimento à saúde. Esta capacidade, apesar de produzir resultados
medíocres frente às necessidades indígenas, propiciava ao menos uma presença mais
marcante nas áreas e, para os índios, alguma perspectiva de apoio e alternativas frente
às pressões da sociedade envolvente.
Por outro lado, a política indigenista desenvolvida pela Funai, voltada para a
integração dos índios na sociedade regional e no modelo prevalecente de ocupação do
espaço e utilização dos recursos naturais não contribuiu para o fortalecimento da
autonomia indígena e muito pouco para a garantia de seus direitos. Os projetos
econômicos, educacionais e de saúde, praticamente não levavam em consideração as
estruturas e dinâmicas sócio-culturais próprias de cada etnia.
No setor agropecuário privilegiava-se a introdução de projetos
“comunitários” (roças comunitárias, criação de gado comunitária) de monoculturas
valorizadas regionalmente, cuja produção deveria destinar-se a obtenção de renda
monetária. O resultado foi uma interferência autoritária e paternalista nas estruturas
sócio-econômicas e políticas internas, promovendo o relativo abandono de práticas
sociais próprias, com resultados negativos sobre a dieta alimentar dos grupos
atendidos e a criação de uma maior dependência da continuidade da ajuda paternalista
da Funai. Além disso, as atividades econômicas que tradicionalmente geravam renda
monetária para os índios perderam importância monetária, como foi o caso da
borracha e da castanha, cujos preços tornaram-se tão baixos que desestimulavam a
produção para a venda.
A permanente incapacidade da Funai e do governo brasileiro de efetivamente
demarcar, desintrusar e garantir os direitos indígenas sobre seus territórios num
contexto de enormes pressões sobre suas terras veio agravar esta situação. Estes
fatores promoveram, em conjunto, uma deterioração das condições de vida indígenas
e abriram o campo para as transformações que viriam, em seguida, a agravar estas
condições.
De acordo com os relatórios da equipe de avaliação do componente indígena
do Polonoroeste, já no final do Programa as sedes regionais da Funai não tinham mais
verbas para a manutenção das viaturas, equipamentos e continuidade do atendimento
nas áreas indígenas, inclusive na área de saúde. A maioria delas encontrava-se tão
individada no comércio local que as verbas que chegavam destinavam-se a
185
pagamentos atrasados, necessários para a liberação de veículos retidos em oficinas
mecânicas e outras dívidas pendentes. Os índios, por sua vez, enfrentavam o insucesso
dos projetos econômicos inadequados empreendidos pela Funai, os quais, entre outras
implicações, provocaram em quase todas as áreas indígenas a negligência em relação
à manutenção de suas roças familiares. Em muitas áreas o adensamento da ocupação
regional promoveu invasões nas áreas indígenas, cuja resolução dependia muito mais
da disposição de enfrentamento físico dos índios do que da garantia legal que o
governo deveria proporcionar.
As áreas em maior estado de penúria que contavam com recursos naturais
economicamente atraentes a curto prazo, principalmente minério e madeiras nobres,
viram-se mais do que nunca assediadas pelas frentes econômicas regionais, muitas
vezes contando com a “legitimação” ilegal da própria Funai. Em 1987, por exemplo, o
então presidente da Funai, Romero Jucá e funcionários regionais celebraram contratos
de venda de madeira do Parque Indígena do Aripuanã e de outras áreas indígenas
vizinhas com empresas regionais. Só num dos contratos, com a empresa Brasforest,
foi autorizada a retirada de quotas anuais de 40.000 m3 de mogno. Para os índios,
apesar das divergências internas, este passa a apresentar-se como o único caminho
para a resolução de seus graves problemas: melhor vender já que não conseguiam
estancar o roubo continuado de madeira renovado a cada estação seca. Apesar da
expoliação das madeireiras (baixo valor pago pelo m3, impossibilidade de controlar as
reais quantidades retiradas, etc.) o retorno imediato em dinheiro, crédito no comércio
local, possibilidade de atendimento à saúde, acesso a posse de veículos e gastos
variados, provocou a adesão quase total dos índios na continuidade desta relação.
Como vimos, a orientação da política indigenista oficial, potencializada pelo
Programa Polonoroeste, pressionava no sentido da adoção de práticas produtivas
típicas do modelo regional. Este, apoia-se no modelo agrícola da "revolução verde",
desenvolvido pelos países industriais do primeiro mundo, de clima temperado,
sustentado por fertilizantes químicos e maquinaria pesada. No caso do Centro-Oeste
Amazônico a predominância de tal modelo tem significado a erradicação da floresta
natural e sua substituição por monoculturas extensas de soja e arroz, pela proliferação
dos pastos, da mineração, da extração da madeira e dos conflitos sociais provocados
por uma estrutura agrária marcada pela concentração fundiária.
O índice atual de desmatamento do Estado do Mato Grosso é um forte
indicador da progressão do modelo “desenvolvimentista” vigente na Amazônia, cujo
avanço mais recente neste Estado foi incrementado pelo Polonoroeste. Dados do
INPA (Fearnside, 1995) mostram que o Estado já tinha em 1991 cerca de 16,4 % de
suas florestas originais derrubadas, sem contar as áreas de cerrado, extensamente
alteradas pelas monoculturas e pastos. Os dados referentes à totalidade da Amazônia
demonstram que cerca de 30% do desmatamento em 1991 pode ser atribuído a
pequenos agricultores com propriedades de menos de 100 ha. e 70% a médios e
grandes fazendeiros. O Estado do Mato Grosso sozinho representa 26% do total do
desmatamento anual de 11,1 mil km2 ocorrido na Amazônia legal entre 1987 e 1991,
coincidindo com o fato de que 84% das terras particulares são fazendas de 1.000 ha.
ou mais e apenas 3% são pequenas propriedades (IBGE - Censo Agropecuário de
1985).
A situação atual das áreas indígenas do Estado reflete a continuidade deste
movimento colonizador orientado e facilitado pelas políticas governamentais e pela
frágil posição nelas ocupada pela política indigenista.
186
Sem contar as áreas invadidas por fazendeiros, posseiros e extratores, boa
parte das áreas indígenas do Estado apresentam hoje alguma forma de utilização dos
recursos naturais para finalidades estranhas aos índios.
Há dez áreas indígenas sob a ameaça de influência de usinas hidrelétricas
planejadas e uma sob a influência de uma UHE já construída. Há 13 áreas com
rodovias acompanhando um ou mais de seus limites. Há 6 áreas atravessadas por
rodovias. Duas áreas ameaçadas por rodovias planejadas. Há 14 áreas dentro das quais
foram concedidos alvarás de pesquisa mineral para empresas particulares.
Além disso, há superposição (não necessáriamente negativa) de duas
unidades de conservação sobre áreas indígenas - a Estação Ecológica do Iquê
encravada no território Enawenê-Nawê e a A. I. Rikbaktsa e A.I. Japuíra dentro da
Reserva Florestal do Juruena. Há também a superposição da gleba Matrinxã, das
Forças Armadas, totalmente dentro da Área Indígena São Marcos e da área Cachimbo
das Forças Armadas (PA) dentro da área indígena Panará. Finalmente, a A.I. Teresa
Cristina está ameaçada pela ferrovia planejada Ferronorte.
O fim do Polonoroeste (1986 em diante) coincide com um período, que se
prolonga até hoje, de falência dos serviços da FUNAI e do crescimento do assédio de
madeireiros e garimpeiros sobre as áreas indígenas.
A Funai se enfraqueceu mais ainda nos anos recentes a partir dos decretos
23/92 que responsabiliza a Fundação Nacional de Saúde pelo atendimento à saúde dos
índios, do decreto 24/92 que transfere para o Ministério da Educação os recursos
destinados a educação indígena e pelo decreto 25/92 que inclui o IBAMA nas ações
de fiscalização de limites e exploração de recursos das áreas indígenas. Os decretos
tiraram muito da, já muito baixa, capacidade operacional da Funai, reduzindo suas
competências e sua presença nas áreas indígenas.
O órgão indigenista padece de sérios problemas administrativos e de pessoal.
Os funcionários (Hargreaves, 1993) de modo geral desconhecem a vida dos índios,
são pouco qualificados, sem programas de reciclagem, tendo pouco envolvimento
com as questões indígenas. Por outro lado, quase não contam com apoio nas áreas: em
muitos postos indígenas não tem rádio, ou este não funciona, faltam veículos, casas,
etc. Os mais íntegros são ameaçados por garimpeiros, madeireiros ou fazendeiros, os
quais substituem a Funai - cobrando um alto preço que é o de exploração dos recursos
naturais das áreas indígenas - nas suas funções de auxílio aos índios.
Nas áreas em que a Funai, superando todas estas deficiências, apresenta um
trabalho sério no desempenho de suas obrigações, ela não consegue apoio judicial,
institucional e nem policial necessários nas operações de fiscalização. Há reclamações
reiteradas, de funcionários da Funai e de índios, de que a justiça local muitas vezes se
nega a fazer o auto de infração e apreensão de boa parte da madeira roubada,
apreendida nas áreas indígenas Quando o faz, muitas vezes, a madeira fica retida até
apodrecer ou então, antes que isso ocorra, acaba sendo liberada para a própria
empresa que a retirou ilegalmente. Por outro lado, pela precariedade do atendimento
jurídico da Funai e pela falta de apoio institucional e pela morosidade da justiça, os
processos de indenização movidos contra madeireiras dificilmente chegam a seu
termo, inviabilizando uma das melhores possibilidades de estancamento da retirada
ilegal de madeira das áreas indígenas. Sómente em relação as áreas indígenas Sararé e
Vale do Guaporé (Seilert, 1995) estão em trânsito na Justiça Federal de Mato Grosso
cerca de 20 processos (civis e criminais) relacionados a casos de esbulho e
187
depredação. Cerca de 50 réus (muitos deles reincidentes) continuam impunes e
atuantes.
A Funai, sem recursos, capacitação e envolvimento dos funcionários e sem
autoridade, não tem demonstrado condições de competir com as pressões e ofertas
locais. De modo geral, os funcionários (com honrosas excessões) parecem preocuparse mais com a disputa por cargos no interior da burocracia do órgão do que com a
situação indígena. Não tem havido uma política indigenista definida e a política
oficial tem mudado a cada alteração nos escalões mais altos da instituição. As sedes
administrativas regionais tem funcionários em demasia os quais, sem apoio e
desmotivados, opõem resistências dos mais variados tipos para evitar longas estadias
em campo, as quais são imprescindíveis para o cumprimento das obrigações da Funai.
No âmbito da saúde quase não há mais atendentes nas áreas e nem estão em
andamento projetos sistemáticos de formação de monitores de saúde indígena.
Atendimento mais sistemático e projetos de formação de atendentes locais só alguns
realizados por entidades civis, como o da Missão Anchieta nos Erikbaktsa, o do
CERNIC nos Suruí, o trabalho da Escola Paulista de Medicina no Parque Nacional do
Xingú, da OPAN nos Enawenê-Nawê e poucos outros. A FNS por sua vez tem
dificuldades de articulação com a Funai e os distritos sanitários ainda não se tornaram
suficientemente operacionais.
Hargreaves (1993:) relata que no Grande Aripuanã “os remédios, exames,
carros, estradas, alimentação, combustível, funcionários, motoristas, professores,
atendentes, casas, hospitais, etc., são bancados com a venda da madeira e outros
recursos naturais”... “São 100.000 m3 mogno/ano nos últimos 5 anos = 500.000 m3 da
área do Grande Aripuanã”...”Se somarmos as outras espécies vegetais, este número
dobra, superando 1 milhão de m3”. O mesmo relatório mostra que o envolvimento dos
índios na rede ilegal de exploração de madeira e minério, longe de resolver seus
problemas trouxe outros agravantes. A população Cinta-Larga, uma das mais
envolvidas por este processo, foi reduzida de 849 indivíduos em1989 para 643
pessoas em 1993...
Como acentua Seilert (1995:6) “o flagrante sucateamento dos serviços
públicos de assistência às comunidades indígenas, em curso nos últimos anos, está
favorecendo o surgimento de um novo modelo de exploração daquelas comunidades.
Neste modelo, sem oposição, os invasores passam a barganhar precária assistência por
livre acesso à exploração do patrimônio indígena”.
No caso dos grupos Tupi-Mondé e dos Nambikwara criaram-se situações de
conflitos continuados, com várias mortes acumuladas na última década, entre os
índios e os garimpeiros (nos Cinta-Larga parece que a cada conflito estes substituemse no acordo com os índios para exploração de ouro, cassiterita, diamantes); entre
índios e madeireiras e entre madeireiras (atualmente parece ter-se estabilizado uma
certa divisão de áreas de exploração entre as madeireiras); entre os próprios índios
(madeiras de uma área indígena são contabilizadas como de outra, índios de uma área
vendem madeira de outra, etc.); e, entre os índios aliados com madeireiras e/ou
garimpeiros contra Funai, Ibama e Polícia Federal. A fiscalização do IBAMA não tem
ocorrido com eficácia nem dentro nem fora das áreas indígenas. Os madeireiros e
garimpeiros (Hargreaves, 1993) “afirmam que estão lá ajudando a comunidade e que
pagam o IBAMA e que tem um “acerto”com o governo do Mato Grosso para não
serem molestados. Dizem que “esquentam” as notas fiscais e guias em Mato Grosso
ou em Rondônia”.
188
Boa parte das áreas indígenas reconhecidas no Mato Grosso, encontram-se
em graus variados envolvidas em contextos semelhantes e ainda sofrendo invasões
(projetos de colonização privados e governamentais, fazendeiros, etc.) e roubo de
madeira (retiradas não autorizadas pelos índios).
Assim, os impactos sobre as culturas tradicionais decorrentes do
Polonoroeste podem ser sumarizados como se segue:
Impactos diretos:
*
*
*
*
invasão de terras;
roubo de madeira e pressões para a venda de madeira;
invasão de garimpos;
doenças: malária endêmica e crescente, doenças venéreas, tuberculose,
etc.;
*
agrotóxicos.
poluição dos rios: mercúrio do ouro, sujeira do diamante, poluição por
Impactos indiretos:
*
pressão sobre os limites territoriais de áreas indígenas já demarcada ou
em fase de demarcação;
*
projetos econômicos paternalizados e inadequados as especificidades
indígenas, regionais e ambientais (desestruturação economia tradicional e aumento
dependência);
*
educação inadequada ás especificidades indígenas;
*
agravamento de tensões intertribais e no interior de cada sociedade
indígena;
*
diminuição da oferta alimentar ( diminuição da fauna regional);
impedimento de acesso a recursos fora da área demarcada) , etc.
A apresentação desses processos sociais como “impactos”, jargão técnico
incorporado na linguagem dos R.I.M.A., dificulta a visualização de sua complexidade,
interdependência e das múltiplas potencializações.
Ocorre ainda como agravante que, como dizia anteriormente, tanto os
relatórios científicos referentes à situação quanto as sugestões de encaminhamento de
soluções acabam sendo menosprezadas pelos órgãos contratantes que, via de regra, só
solicitam sua realização por imposição legal e formal, não incorporando estes
“componentes” nos critérios de validade da obra ou projeto e evitando ao máximo
incluí-los como itens intrínsecos ao orçamento.
3.2. A USINA HIDRELÉTRICA JP-14
Essa situação fica ainda mais evidente quando se trata de grandes obras
realizadas por empreiteiras de porte, como a construção de usinas hidrelétricas. Este
foi o caso dos estudos de viabilidade da UHE JP-14 em Ji-Paraná, realizado pelo
CNEC/ELETRONORTE, dos quais participei de1986 a 1988.
Já sob a vigência da resolução CONAMA, participei da avaliação de impacto
sobre a área a ser inundada, que atingiria parte da AI Igarapé Lourdes dos índios
Gavião e Arara.
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O empreendimento se situava numa região que já vinha recebendo os
impactos mais profundos do projeto Polonoroeste e os povos indígenas atingidos já
viviam uma situação de grande complexidade.
O povo Gavião de Rondônia faz parte do complexo TUPI_MONDÉ, isto é,
sua sociedade se reproduz articulada a outras sociedades indígenas da região: CintaLarga, Zoró, Suruí. Principalmente com os Zoró, suas relações são tradicionalmente
mais próximas: costumam realizar casamentos intertribais regulares, fazem festas
conjuntas, etc. Na época já estavam separados por um corredor de fazendas de grande
porte dificultando o contato entre eles.
Pressões sobre a área decorrentes do adensamento regional promovido pelo
Polonoroeste eram crescentes. Promovia-se invasões na área Zoró, Cinta-larga, Suruí
e Gavião. Área Gavião havia sido desintrusada em 1985 depois de mais de um ano de
conflitos, com grande dificuldades e as relações com a população regional era
bastante conflituosa. O empreendimento, neste contexto, aparecia como uma ameaça a
mais. Já em 1984 um helicóptero da empresa havia sido retido na área pelos índios ao
colocar marcos e realizar pesquisas sem sua autorização .
Os impactos diretos previstos eram a inundação de cerca de 11 mil ha. da
área indígena Igarapé Lourdes, inundação aldeia principal, roças, fruteiras, etc. ,
alterações no regime de águas no interior da área e repercussões negativas sobre a
flora e a fauna.
Previa-se também graves alterações no regime de águas (previsão de pelo
menos 30 dias de águas sem oxigênio a jusante da barragem) , na flora ciliar e interna,
na fauna, com repercussões por uma área calculada em 60 mil ha. da área indígena. O
deslocamento dos Gavião no interior da área poderia, além disso, provocar conflitos
com os Arara, que também habitavam a mesma área indígena.
Os impactos indiretos seguiam o padrão já apresentado no Polonoroeste,
somando-se aos impactos já detectados na região: aumento das pressões sobre as
terras, aumento das doenças, etc.
Os índios eram totalmente contra o projeto. Depois de um trabalho de
pesquisa de mais de um ano, realizado juntamente com Lars Lavold, um antropólogo
norueguês, elaboramos uma proposta de compensação que, se não houvesse outra
alternativa, seria aceitável pelos índios e, de alguma forma, contribuiria para refazer
em parte o padrão de convivência entre os Tupi-Mondé. Bàsicamente a proposta
previa o auxílio na formação de outra aldeia e para mudança e a compra e doação aos
índios de 60 mil ha. de terras (florestas preservadas) contíguas à reserva, formando
um corredor ligando a área dos Gavião com a área dos Zoró.
Pois bem, nem os relatórios científicos, nem a proposta jamais foram aceitos
pela empresa contratante, nem pela Eletronorte, as quais limitavam-se a fazer
reiteradas sugestões para a “reformulação” dos resultados dos estudos. O valor de tal
compensação era mínimo frente aos impactos detectados e era irrisório frente ao custo
do empreendimento. Em meio às negociações para que os relatórios e a proposta
fossem aceitos ocorreu um corte nos empréstimos do Banco Mundial para o setor
elétrico e a obra foi suspensa até hoje, assim como a do complexo de Altamira no
Xingú. Aliás, a retenção de tais verbas pelo Banco foi desencadeada por Darrel Posey,
antropólogo que fazia os estudos de impacto da hidrelétrica do Xingú, ao apresentar
denúncia da situação, juntamente com líderes Kaiapó, numa reunião do Banco
Mundial em Whasington.
190
Não se trata, é óbvio, em advogar a paralização de todo e qualquer projeto
que provoque mudanças. A questão é abrir espaço para que as populações locais,
tradicionais ou não, possam participar de forma efetiva na identificação dos
problemas e definição das soluções, possibilitando a elas um espaço de mudança mais
autônomo. É a mesma questão central que sempre está colocada: a relação entre
interesses do Estado associados aos das grandes empresas e as populações locais,
principalmente as populações tradicionais.
A resolução CONAMA constituiu um avanço nesta direção mas, como
vimos, estamos ainda longe de atingir os objetivos que essa resolução pressupõe e que
as situações apresentadas demandam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRUDA, Rinaldo S. V. - 1988 - Relatório de impacto ambiental e sócio-cultural
da UHE - Ji-Paraná sobre os povos indígenas Gavião e Arara da área
indígena Igarapé Lourdes; sobre o complexo cultural Tupi-Mondé do Parque
do Aripuanã e sobre os índios isolados da região. CNEC/ELETRONORTE,
julho de 1988.
ARRUDA, Rinaldo S. V. -1994 - “Existem realmente índios no Brasil? “. Artigo
publicado na Revista São Paulo em Perspectiva, volume 8, no 3, julhosetembro de 1994, págs. 66 a 77. Fundação SEADE, São Paulo.
FEARNSIDE, Philip M. - “Quem desmata a Amazônia, os pobres ou os ricos?”. IN
Ciência Hoje, vol. 19, no. 113, set./95.
HARGREAVES, Maria Inês Saldanha - Levantamento Sócio-Ambiental do Grande
Aripuanã. PNUD, 1993.
JUNQUEIRA, Carmen - 1992 - A Questão Indígena no Brasil: evolução, principais
problemas e perspectivas de ação governamental. Texto inédito.
SANTOS, Leinad & ANDRADE, Lúcia (org.) - 1988 - As Hidrelétricas do Xingú e os
Povos Indígenas. Comissão Pró-Índio de São Paulo.
SEILERT, Fritz - Áreas indígenas em Mato Grosso. PNUD, 1995.
SEPLAN-MT - 1992 - Fisiomorfologia, solos e uso atual da terra: região Noroeste do
Estado do Mato Grosso. Secretaria de Estado de Planejamento e
Coordenação Geral. Governo do Estado do Mato Grosso.
191
LEVANTAMENTO E DIAGNÓSTICO DE BENS CULTURAIS INTANGÍVEIS
Carlos Eduardo Caldarelli
Primeiro, devo a vocês uma explicação: era para estar aqui Emília Botelho,
que ia fazer esta exposição. Infelizmente, porém, ela teve um imprevisto e não pôde
comparecer a este Simpósio. Uma vez que eu também participei dos trabalhos que ela
iria relatar, fiz algumas notas daquilo que eu ainda pude retirar do baú da memória e
vou tentar expor algo acerca daqueles trabalhos para vocês, a fim de que tenham idéia
do que foi feito, então, e de que contribuição se pode extrair deles para a discussão do
tema que nos preocupa nesta mesa-redonda, qual seja, o dos recursos culturais
intangíveis.
Os trabalhos mencionados dizem respeito a Porto Primavera, que é um
projeto hidroelétrico, e a Ourinhos, outro projeto hidroelétrico. Em ambos, essa
questão cultural ligada a populações vivas foi muito sentida pela equipe
multidisciplinar que fez os estudos de impacto ambiental.
No caso de Porto Primavera, estava-se diante de uma Usina Hidroelétrica que
já estava em construção antes da edição da resolução CONAMA nº 1 e que foi
alcançada pelos efeitos da resolução CONAMA nº 10/87, pela qual era preciso que se
fizesse um estudo prévio de impacto ambiental para que se obtivesse a licença de
operação.
Formou-se, então, a equipe multidisciplinar encarregada de fazer o estudo, da
qual faziam parte um sociólogo, uma antropóloga, um arquiteto e um historiador, para
lidar com as questões relacionadas ao patrimônio cultural. Ocorre que, a essa altura,
como já ficou dito acima, a Usina já estava em estado avançado de construção, estava
praticamente pronta. Assim, o estudo prévio de impacto ambiental que foi feito ali,
em primeiro lugar, não foi prévio e, em segundo lugar, padeceu com o fato de muitos
dos impactos que deveriam ter sido estudados antecipadamente já estarem
acontecendo, ou mesmo já terem acontecido.
Tendo em vista essas dificuldades de ordem prática, interessa discorrer, aqui,
acerca de como foi que essa questão do patrimônio cultural, e mais particularmente a
da cultura das populações presentes e atuantes ali, na região afetada pela construção
de Porto Primavera, acabou, então, por ser colocada.
Em primeiro lugar, na cabeça do empreendedor, a idéia de patrimônio
cultural estava muito ligada ao patrimônio edificado, enquanto composto de bens
tangíveis, visíveis, facilmente identificáveis, ao mesmo tempo que havia a consciência
da proteção legal de que gozam os restos arqueológicos, ou seja, a idéia que permeava
a cabeça do empreendendor era a de que aquilo que iria ser atingido, aquilo que iria
ser destruído, aquilo que iria ser turbado pela construção da Usina, era quase que tão
somente aquilo que existia materialmente, ou seja, a água destinada ao reservatório da
Usina, a construção desta última, a do canteiro de obras, etc., que são atividades
exercidas sobre o mundo material, atuariam (destruindo, fazendo submergir, etc.)
somente sobre coisas que também existiam no mundo material e nisto se resumiam os
impactos negativos que a implantação de um empreendimento como o de que se
tratava podia exercer sobre o patrimônio cultural.
192
Quanto aos outros aspectos da cultura local e regional, no máximo,
reconhecia-se a existência de festas religiosas populares, como a de N. Sra. dos
Navegantes, à qual se estava procurando dar um tratamento cujo rationale era muito
semelhante ao descrito anteriormente: buscava-se oferecer um novo local onde a festa
pudesse ser relizada, uma vez que aquele onde a maior parte dela se desenrolava
tradicionalmente, o bairro de Porto Quinze, ia ser inundado.
Porém, como é sabido, a cultura é um todo indivisível, sendo as suas
manifestações materiais, visíveis e palpáveis, inseparáveis da adesão a certas tradições
e valores e da posse dos conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para que
aquilo que ela torna possível que seja exposto aos sentidos seja produzido e
reproduzido. Não é possível sequer compreender eventos comezinhos e simples para
nós, como uma festa de aniversário, por exemplo, se não se pensa em instituições
como o ano civil e a idade cronológica das pessoas, esta computada com base na
regularidade da passagem ordenada, inevitável e infinda daqueles. É impossível
comparecer a uma dessas festas e dela participar, se não se conhece e adere a
costumes tais como os de oferecer presentes ao aniversariante e vê-lo apagar velinhas
espetadas em um bolo. É, também, desejável que se possuam algumas habilidades,
dentre as quais conta-se o saber cantar, em coro (ainda que desafinado), “Parabéns a
Você”. Por último, espera-se do participante da festa que este mantenha uma atitude
de alegria e receptividade. Promover uma festa dessas implica, evidentemente, saber
de tudo isto e ter as habilidades necessárias para lidar com todos os seus elementos.
Não menos sabido é que inexistem manifestações culturais que dispensem as
relações sociais que as engendram. No caso das nossas festas de aniversário, as
relações mais importantes são as de parentesco e amizade, que fornecem pessoas para
preparar a festa e a ela comparecer. Existem outras, tais como as que se estabelecem
entre quem compra e quem vende um objeto qualquer que será dado de presente ao
aniversariante; quem encomenda, quem prepara e quem transporta o bolo de
aniversário, etc.
A maior parte das manifestações culturais exige, também, uma base material.
Porém, uma vez que parece que ninguém duvida disto, não vale a pena perder tempo
encarecendo o fato.
Assim, há pelo menos três formas de um empreendimento de grande porte
produzir impactos negativos sobre o patrimônio cultural, vale dizer, sobre a cultura:
alterando a valoração que se atribui a tradições, conhecimentos, habilidades e atitudes
ligados a bens culturais, em geral, de natureza material ou imaterial; interferindo no
modo como as relações sociais se entretêm para permitir a realização das suas
manifestações e agindo sobre as bases materiais em que se assentam estas últimas.
Voltando a Porto Primavera, vejamos o que tem a ver o que se acabou de
dizer com o que ocorreu ali. Para tanto, vou expor brevemente os casos das olarias
locais e da arquitetura vernacular das habitações das ilhas fluviais e ribeirinhas.
Antes disso, porém, peço licença para a seguinte digressão sobre a
visibilidade dos fenômenos culturais: Assim como é fácil reconhecermos como tais
manifestações culturais muito diversas daquelas a que estamos acostumados, é difícil
admitir que o são, igualmente, aquelas a que estamos habituados. É estranho
observarmos uma festa de aniversário como uma manifestação cultural, do mesmo
modo que admitimos observar dessa forma um ritual em uma aldeia indígena.
193
Muito bem, isto posto, é fácil compreender que, a olhos desatentos, a
produção artesanal de tijolos e outros artefatos de argila cozida, bem como o uso de
métodos originais de construção de residências, baseados em materiais pouco
utilizados em meio urbano, aliados a práticas construtivas e habitacionais adaptadas a
regiões ribeirinhas e a ilhas, possam parecer anacronismos e, mesmo, sinais de
miséria, ao invés de manifestações culturais locais.
Em Porto Primavera, aos olhos do empreendedor e dos seus prepostos, era da
primeira forma que apareciam a produção oleira e a arquitetura vernacular locais, isto
é, como excrescências que pouco ou nenhum valor possuíam e que podiam, quase
automaticamente e com vantagem, ser substituídas por bens de uso similar, só que de
valor mais alto e de utilidade maior, tais como pequenas propriedades rurais
agricultáveis, no primeiro caso, e casas de alvenaria, no segundo.
Assim, ofereceu-se aos oleiros tratos de terra para plantio e aos ribeirinhos e
ilhéus, casas de alvenaria, em troca das suas olarias e casas de madeira.
A esta altura, vale notar que esse é o primeiro impacto negativo importante
que os grandes empreendimentos costumam causar sobre os patrimiônios culturais
locais: a sua desvalorização e desprestígio, que conduz ao seu abandono,
principalmente porque, para oleiros e ribeirinhos, o acesso à terra e a residências de
aparência urbana acabaram parecendo, de fato, modos de ascensão social.
Por outro lado, a brusca alteração da composição e espacialização de grupos
domésticos e de trabalho acaba por alterar grupos de vizinhança e de amigos, bem
como rotinas diárias e de maior periodicidade, de modo que onde antes havia uma
comunidade, aparece uma população amorfa e desarticulada, sendo este o segundo
impacto negativo de grandes empreendimentos sobre a cultura, a que se fez alusão
agora, há pouco.
Em Porto Primavera, malgrado o que continha o tardio EIA-RIMA
produzido, tudo isso acabou ocorrendo: oleiros que, quando muito, cultivavam
pequenas roças complementares, voltaram-se para tentar viver principalmente do
plantio em pequenas propriedades isoladas e proprietários de casas de madeira
espalhadas pelo curso do rio foram levados a viver em aglomerações de casas de
alvenaria, tendo havido casos em que, em uma só pessoa ou família, materializaramse ambas as ocorrências.
Daí a desinteressarem-se todos, completamente, do destino das suas antigas
casas e olarias não foi preciso mais: submergiram, sem lamentações e sem deixar
qualquer testemunho, umas e outras, realizando-se, assim, o terceiro e último impacto
negativo mencionado, qual seja, a destruição pura e simples de parte do patrimônio
cultural local.
Então, devido a não se ter reconhecido que as pessoas com que se estava
interagindo detinham uma parte do patrimônio cultural local, cujas características só
elas mesmas podiam compreender e manipular, desastrada e talvez
irremediavelmente, acabou-se por destruir aqueles elementos do patrimônio cultural
local.
Deve-se ressaltar que, mesmo que se tivessem mantido as olarias e as casas
de madeira em uma redoma, estas e aquelas, sem os conhecimentos, habilidades e
atitudes a que estavam ligadas, pouco ou nada passariam a significar.
194
Apenas tomar cuidado com aquilo que é palpável, que é material, que é cal
pedra e cimento, sem se preocupar com o conhecimento necessário para reproduzir
aquela pedra cal e cimento, de nada adianta, no que diz respeito à preservação do
patrimônio cultural.
Poder-se-ia, por outro lado, fazer restrições ao que acabou de ser dito,
trazendo à baila o inconformismo dos oleiros com o seu modo-de-vida, por exemplo,
que de fato existia e era manifesto em Porto Primavera.
Acontece que a atividade manufatureira ligada àquela atividade é muito
complicada: exige uma série de equipamentos e conhecimentos especializados a
respeito de como utilizá-los e vincula-se a fenômenos, naturais e não naturais, de
periodicidade especial, muito diferente da ligada às lidas do agricultor. Pretender
transformar repentinamente oleiros em agricultores é uma coisa que, no mínimo, é
muito difícil de ser feito. O que é provável que aconteça (que esteja acontecendo,
aliás) é que, num relativo curto espaço de tempo, não se tenha mais oleiros nem
agricultores, tampouco cultura ligada à olaria, na região.
Sem pretender ditar receitas infalíveis e aplicáveis a quaisquer situações,
parece óbvio que uma transição lenta e participativa de uma atividade à outra e que se
preocupe com valorizar a atividade que se está abandonando poderia conduzir a
resultados mais duradouros, menos destrutivos e menos traumáticos.
Outro tanto se pode e deve dizer das pequenas casas de madeira da zona
ribeirinha e das ilhas: a evolução que esse tipo de arquitetura vernacular ainda poderia
ter, ali, em Porto Primavera só poderia dar-se, se a essa cultura e a esse conhecimento
se tivesse dado a oportunidade de continuar desenvolvendo-se, ou seja, se, destruídas
aquelas casinhas de madeira, se tivesse procurado dar aos seus antigos proprietários a
possibilidade de reconstrui-las, em outro lugar, talvez em outros termos, mas
aproveitando o conhecimento que tinham acerca de métodos construtivos, materiais
de construção locais, etc..
Certamente esse aspecto da cultura da população ribeirinha teria sua própria
evolução e continuaria evoluindo em seus próprios termos.
Havia, ainda, em Porto Primavera, uma questão muito aguda que era a
necessidade de acabar-se com um dos bairros de uma das cidades atingidas pelo
empreendimento: tratava-se de Porto Quinze, de onde partia a procissão de Nossa
Senhora do Navegantes que, entre outras particularidades, tinha a especificidade de
acontecer no meio do ano e não no começo do ano como no resto do país.
A solução que se adotou implicou a retirada da população daquele bairro
para um outro local, de modo que a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes
passou a sair daquela outra localidade, com uma série de pequenos prejuízos que
acabaram considerados como tendo sido compensados pelo fato de o empreendedor
estar fornecendo aos deslocados novas casas e nova infra-estrutura.
Em suma, em Porto Primavera, casas de madeira compensaram-se com casas
de alvenaria; olarias, com terra agricultável e bairros e trajetos de procissões, com
outros bairros, “quase iguais, até um pouco melhores”, e outros trajetos para
procissões, tudo na velha tradição segundo a qual os incomodados que apanhem o que
puderem e se mudem!
Enfim, o que eu gostaria de ressaltar nessa experiência de Porto Primavera é
que, a partir de uma desconsideração da problemática posta pelas diferenças culturais,
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dificeis de serem vistas em determinados contextos, reconheça-se, o empreendedor,
deixando de lado o fato de estar diante de uma cultura viva, em evolução, na região
em que se ia instalar, acabou por levar as populações que a portavam a transacionar
com aspectos do próprio modo de vida, da própria cultura, da própria tradição,
oferecendo-lhes em troca apenas bens materiais, o que é, no mínimo confundir alhos
com bugalhos.
Assim procedendo, perturbou seriamente, quando não liqüidou de vez, os
aspectos do patrimônio cultural local com que interferiu, comprometendo-o todo,
dada a sua coerência interna e a sua irredutibilidade ao meramente material e
utilitário, numa palavra, dada a sua indivisibilidade.
Quanto a Ourinhos, que é a segunda experiência que eu queria relatar para
vocês, trata-se de uma cidade próxima ao rio Paranapanema, cujo nome foi dado à
represa que ali se iria construir.
Bem, em Ourinhos, as questões mais agudas não se prendiam à visibilidade
do patrimônio cultural local, nem à sua indivisibilidade, embora esses problemas
estejam sempre presentes, mas ao modo como aquele patrimônio é produzido e
reproduzido.
Isto era muito bem ilustrado por uma Folia de Reis que havia lá.
A Folia de Reis, em poucas palavras, é uma uma expedição petitória que
consiste de uma bandeira, atrás da qual vão músicos.
Faz-se uma coleta de dinheiro que é utilizado para que se faça, depois, uma
grande festa para honrar os Santos Reis.
A Folia de Reis é muito preciosa, porque ela é relativamente rara, no País,
hoje. Ela é permeada por relações de parentesco e compadrio, que fornecem os
colaboradores do promotor da Folia, e baseia-se em crenças e acontecimentos
peculiares.
É preciso que o Folião que promove a Folia sonhe com os Reis Magos e que
lhes prometa que vai realizá-la durante sete anos seguidos e que depois vai passar esse
encargo para outra pessoa, que também vai sonhar com os Reis Magos e continuar a
tradição.
É fácil notar que, além de depender de uma série de acontecimentos que não
se dão todos os dias, a Folia é um empreendimento de vulto considerável para as
pequenas comunidades em que acontece.
Tudo isto implica repousar a sua continuidade sobre a estabilidade das
relações entre as pessoas que a promovem e dela participam. Reassentá-las sem levar
essa questão em conta é o mesmo que inviabilizar a Folia.
Felizmente, isso não ocorreu em Ourinhos.
A problemática, no entanto, tinha de ser reconhecida enquanto tal e em suas
verdadeiras dimensões: uma Folia de Reis é uma jóia que não nos é permitido perder,
por deixar que se quebrem, abruptamente, os elos da corrente de colaboração e
transmissão de conhecimentos, crenças e habilidades que a tornam possível.
Dito isto, eu gostaria de encerrar, colocando essas questões da visibilidade,
indivisibilidade e fragilidade do patrimônio cultural para o debate que virá depois.
Obrigado.
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O RESGATE DA CULTURA INTANGÍVEL REFLETIDA NA
CULTURA MATERIAL
Heloisa Capel de Ataídes
Tendo como base a ênfase levantada em mesas anteriores à uma interpretação
legal que privilegia estudos e análises relacionadas à arqueologia e à arquitetura( por
parte tanto dos órgãos que administram a proteção do Patrimônio, quanto dos
empreendedores), e , ainda, considerando que tais estudos têm por referência a cultura
material; é que nós gostaríamos de contribuir com a discussão demonstrando a
indissociabilidade dos aspectos culturais mais amplos ou “intangíveis” de sua
expressão material e objetiva e, ainda, a partir de um exemplo concreto, fazer
considerações sobre as possibilidades de efetuar um resgate dessa natureza.
Após ouvir as exposições que destacaram a relação cultura / meio ambiente, o
impacto dos empreendimentos sobre as culturas tradicionais e os meios de
diagnosticar os bens culturais, cabe a nós refletir sobre o resgate da cultura intangível
e seu relacionamento com a cultura material.
Em todo trabalho que envolve o diagnóstico, a avaliação e o resgate de
Patrimônios Culturais é importante considerar, que, eles necessariamente,
correspondem a todas as “manifestações presentes do passado humano”
compreendendo tanto as formas materiais (pré-históricas e históricas), quanto as ditas
imateriais, normalmente relacionadas aos modos tradicionais de vida e de expressão.
Nesse sentido é importante observar que os elementos “materiais”, ou físicos
são indissociáveis de sua imaterialidade, relacionada ao terreno das idéias e das
instituições, das manifestações não visíveis, intangíveis da cultura.
Cientistas sociais como Kroeber já na década de 40, ponderavam que: “afinal,
o que conta não é o machado, a capa ou o trigo como coisas físicas, mas a idéia de tais
coisas e o conhecimento de como produzí-las e usá-las, ou seu lugar no mundo”...
Entre os historiadores, apesar do uso constante, de seu abandono e
revalorização através da historiografia francesa, as reflexões acerca da cultura
material ainda estão se processando. Nelas é possível encontrar a idéia de
imaterialidade da realidade objetiva e suas implicações. Como afirma o historiador
medievalista Georges Duby: “o estudo das realidades materiais e o das realidades
imateriais sâo indissociáveis, se quisermos explicar a situação de uma sociedade no
espaço e no tempo”.
A despeito dos avanços e do vigor em que se encontram os estudos que têm a
cultura material como referência para diversas áreas das Ciências humanas, é na
arqueologia que vamos encontrar um maior aprofundamento nas tentativas de utilizála de forma mais abrangente, definindo-a como fonte e objeto de atuação social. Os
pré-historiadores têm-lhe conferido cada vez mais, um perfil antropológico e os
arqueólogos históricos, contribuído para a compreensão de sua natureza,
desvendando, por vezes, seu papel ativo na dinamização cultural em que está inserida.
Da definição fluida e demasiadamente genérica proposta por uma “protoarqueologia” social desde a década de 70, à visão passiva de simples reflexo da
cultura intangível desenvolvida pelos processualistas, é na arqueologia pós-processual
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que encontraremos uma visão mais dinâmica sobre a “imaterialidade” da cultura
material, encarada não sob simples reflexo das práticas sociais, mas como sujeito e
objeto da ação social. O comportamento humano é culturalmente constituído,
informado através do significado e ação dos indivíduos. A estrutura sempre em
mudança do seu significado depende do contexto em que está inserida e é negociada
através das ações dos indivíduos que produzem a cultura. Assim sendo, a cultura só
pode ser compreendida como um código ideacional e deve incluir função e
significado, processo e estrutura, entre outros aspectos. A cultura intangível é,
portanto, indissociável da cultura material encarada sob uma perspectiva ampla e
ativa, como a relação entre pessoas e coisas.
Portanto, há inúmeras possibilidades de análise sobre a cultura material. Ela é
uma expressão singular do Patrimônio Cultural por possibilitar interpretações que põe
à mostra a dinamicidade das culturas e épocas e locais historicamente determinados.
Através dela e nela própria pode-se compreender aspectos estruturais mais amplos ou
mesmo, elementos específicos pertencentes a um domínio micro-estrutural e único.
Como elemento ativo, sua ação pode ser desvendada e discutida, como reflexo
intencional, pode ser lida e exposta à crítica textual. Como expressão formal e física,
pode viabilizar o resgate do cotidiano histórico, lugar privilegiado de lutas sociais e da
memória.
O resgate da cultura dita “intangível” pode ser realizado, dessa forma, tendo
como referência a cultura material. As análises a respeito tem demonstrado que a
cultura material é bastante eficaz para fazer emergir os elementos que servirão de
apoio à discussão de problemáticas culturais levantadas em áreas impactadas. Nesse
sentido, como considerá-la apenas em seu aspecto físico, concreto ? As definições de
cultura são fluidas e amplas, hoje compreendidas não apenas no sentido antropológico
de invenção coletiva e temporal de práticas, valores, símbolos e idéias, como também
no sentido de trabalho cultural. Assim, cultura é mais do que o monumental ou o
artístico. Cultura é memória, é política, é história, é técnica, é cozinha, é vestuário, é
religião. Há cultura onde os homens criam símbolos, valores e práticas. Há também
cultura onde se criam o sentido do tempo, do sagrado e do profano, do prazer e do
desejo, da beleza e da feiúra. Portanto, há cultura naquilo que é material e visível,
assim como no que é intangível ou imaterial. Da associação desses elementos, num
trabalho de resgate científico elaborado a partir de problemáticas culturais relevantes,
o Patrimônio Cultural pode ser adequadamente resgatado.
Tomemos nossa experiência como exemplo:
O PROJETO DE LEVANTAMENTO E RESGATE DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO CULTURAL DA ÁREA DIRETAMENTE AFETADA PELA USINA
HIDRELÉTRICA DE CORUMBÁ, realizado sob o patrocínio de Furnas Centrais
Elétricas, através do Instituto Goiano de Pré História e Antropologia da UCG,
demonstrou as potencialidades do resgate da cultura intangível tendo como referência
a cultura material. O Projeto desenvolveu-se entre 1994 e 1996, envolvendo os
municípios goianos de Pires do Rio, Caldas Novas , Ipameri e Corumbaíba.
A problemática da pesquisa nasceu da fluidez inerente ao conceito de cultura,
da extensão e complexidade da área e das discussões sobre a subjetividade de
conteúdos que tenham como objeto, a análise social. O rio Corumbá, referência
mestre do universo da pesquisa, eixo sobre o qual gravitaram os elementos culturais
mais rapidamente afetados pela construção da hidrelétrica, seria afinal, um elemento
de peso na ocupação, povoamento, e na dinâmica dos acontecimentos que se
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desenvolveram em dois séculos de história ? Foi a partir desta reflexão que nasceu a
hipótese norteadora de todo o trabalho: a suposição de que por suas características
naturais e histórico de ocupação, o rio Corumbá seria muito mais um obstáculo, do
que um estímulo à dinamização da área. O relacionamento com ele foi sempre
norteado muito mais pelos esforços em transpô-lo do que em fixar-se nele.
A ocupação da área, portanto, e sua dinâmica cultural estiveram relacionadas,
em certo sentido, a uma perspectiva de isolamento, em que traços culturais próprios e
identitários puderam ser reconhecidos.
Nesta visão, o patrimônio a ser resgatado relacionou-se diretamente com a
área de estudo, identificando-se a produção cultural de elementos sob uma óticaproblema, que levou em conta, entre outros aspectos, a viabilidade de preservação no
tempo determinado. Para isso, adotou-se a idéia de cultura como normas de “controle”
subjetivo identificadas num tempo longo e expressas seletivamente através da
memória. A opção de cultura adotada implicou, portanto, numa seleção de discussões,
à medida em que a problemática cultural foi definida para a área.
A preservação foi realizada em consonância com estes princípios. Neste
esforço, os elementos do fazer cotidiano foram sempre incluídos, buscando-se, a partir
deles, traços de identificação cultural de toda a área. As fontes de documentos
preservados foram diversas e responderam às necessidades de análise do objeto. As
opções metodológicas se desenvolveram portanto, em torno de um princípio
norteador: o de que a cultura material é suficiente e eficaz para fazer emergir os
elementos de discussão da problemática cultural levantada.
A cultura material em interação com a problemática da área esteve, dessa
forma, relacionada à paisagem , à arquitetura e aos caminhos, pontes e portos. Estes
elementos materiais deveriam responder à questão norteadora da pesquisa. Sua análise
deveria ser suficiente para elucidar questões sobre o papel do rio Corumbá e as
especificidades definidas pelo isolamento da área de estudo.
Tendo como origem o princípio genérico de que a cultura material pode se
compreendida como qualquer elemnto do meio físico culturalmente apropriado, a
paisagem foi utilizada como instrumento legítimo de leitura. Por ser considerada
como documento histórico sobre o qual a população escreveu a respeito de si mesma e
de seus ideais, a paisagem pode revelar os recursos disponíveis e costumes
decorrentes de seu uso, além de laços abstratos que a ligaram afetivamente à
população.
Ao histórico da ocupação da área agregou-se suas características físicoculturais. Associados às características da vegetação, da fauna, da geologia e da
geomorfologia foram observados os elementos de construção que, de acordo com as
fases históricas de constituição, modificaram-se no decorrer do tempo. Neste
contexto, os elementos construídos apresentaram-se em interação com os elementos
vivos (vegetação e água). Após vários anos de formação de plantações e pastagens
observou-se um equilíbrio entre as árvores e as sedes de fazendas, as pontes e o rio,
elementos que se constituiram em tempos diversos e contrastantes. A vegetação
mascara os desequilíbrios das proporções e ameniza a silhueta dura do meio
construído influenciando o psiquismo do homem na área de estudo - daí ter sido
importante enfatizá-la no processo de preservação.
A afetividade, como traço cultural ligado à paisagem, relacionou-se às
formações vegetais do conjunto das edificações. Estes elementos refletiram a
200
interação natureza e meio construído, sob os quais a tradição local pode ser lida.
Foram, dessa forma, considerados como elementos do patrimônio selecionados pela
memória. As árvores e plantas inscritas na paisagem de algumas fazendas contaram
histórias familiares revelando a associação do homem com o meio e sua afetividade.
O rio Corumbá mereceu, neta análise, um destaque especial devido à
problemática levantada. A investigação sobre o papel afetivo e valorativo do rio
Corumbá reforçou a hipótese dos obstáculos relacionados à ocupação de suas
margens.
Ao ressaltar elementos da superfície visível da água, da qualidade visual e das
encostas do rio, além da vegetação e dos elementos valorizantes e desvalorizantes,
observou-se que o rio Corumbá influenciou e foi pela população influenciado muito
mais como obstáculo a ser transposto do que como potencial produtivo.
Outros elementos de peso na discussão da problemática cultural (tendo a
cultura material como pano de fundo) foram as expressões arquitetônicas. A
arquitetura da área foi levantada e reconhecida, identificando-se nela e através dela a
produção cultural necessária e suficiente para elucidar questões relevantes. As
influências arquitetônicas envolvendo materiais construtivos e elementos estilísticos
foram evocadas, buscando-se a constitução de procedência que conferiu às
construções urbanas e rurais da área algumas especifidades. Nesta trajetória, foram
evidentes as dificuldades de entrosamento com o rio Corumbá expressas na
dissociação de emprego de material construtivo ligado ao rio e na distância das sedes
de suas margens na área rural. Ainda sob este aspecto, outros elementos constribuíram
para a discussão da problemática como o isolamento expresso nas construções que, no
século XX, ainda conservaram técnicas construtivas próprias do século XVIII.
As questões relacionadas ao programa de necessidades das construções, ou
melhor, à organização interna que expressa a cultura de morar, foram importantes ao
descortinar usos quase indistintos na área rural das sedes de fazendas e casas de
agregados que se apresentaram com a mesma organização interna. A estes fatores
somaram-se as idéias do isolamento e da dinâmica própria do local que,
desenvolvendo desde o início do povoamento atividades relacionadas à pecuária,
estreitaram laços de solidariedade social.
Para complementar este estudo considerou-se, sobretudo, que o espaço
construído da casa é importante não apenas no entendimento de sua estrutura física,
mas do uso dos espaços que expressa a cultura de morar.
A análise do programa de necessidades demonstrou que a estrutura
arquitetônica reflete a estrutura sócio-econômica familiar da população rural em
Goiás. A separação das construções ligadas à família e ao trabalho, a criação de uma
faixa composta de sala de visitas e quarto de hóspedes, a existência de uma varanda
ou solar de convivência para onde estão voltados os quartos dos moradores e, ainda, a
valorização do espaço da cozinha como eixo cuore das residências, formaram um
tipologia da casa rural tradicional na área de estudo. Esta discussão proporcionou o
levantamento das atividades cotidianas e suas implicações na delimitação de tarefas
de natureza feminina e masculina, que se desenvolveram em espaços públicos e
privados. Através desses dados, elementos da estrutura familiar, econômica e mental
foram identificados e discutidos.
A materialidade das evidências arquitetônicas serviu, ainda, para se investigar
a religiosidade local - instituída e doméstica - identificando sua constituição no Brasil
201
e suas características de singularidade local acentuadas pelo isolamento. Para discutíla, fêz-se uso da história oral, resgatando traços da memória seletiva dos moradores,
além do levantamento geral de fontes elucidativas de questões religiosas e suas
expressões diversas.
Ainda buscando expressões materiais significativas para a discussão da
problemática cultural da área de estudo, além da paisagem e dos elementos
arquitetônicos ligados às sedes de fazendas, foram examinados, sob orientação da
Arqueologia Histórica, as pontes, portos e caminhos. Estes elementos, em sua maioria
encontrados em estado de ruínas ou ainda, tendo sua integridade física ameaçada pela
construção da hidrelétrica, apresentaram uma forte base de apoio ao levantamento de
questões ligadas ao rio Corumbá, e seu papel como agente dinamizador do
povoamento e das atividades culturais que se desenrolaram em períodos históricos
subsequentes.
Enfatizou-se ainda, a análise artefatual em interação com estruturas
arquitetônicas permitindo a reconstituição de edifícios e seus espaços. A cultura
material de uso cotidiano revelou hábitos culturais significativos para a discussão dos
domínios públicos e privados nas construções, servindo de apoio às reflexões sobre a
problemática no restante do trabalho. Através dela, pôde-se reafirmar as concepções
iniciais sobre o papel do rio e as dinâmicas culturais associadas à vida cotidiana.
Portanto, através dos referenciais de aproximação objetiva, material,
elementos subjetivos ou “intangíveis” puderam ser examinados. Através da cultura
material, encarando-a de uma maneira reflexa e ao mesmo tempo atuante, os
elementos de discussão sobre o povoamento, o isolamento da área e do rio Corumbá
como agente dinamizador, puderam ser investigados. A cultura material demonstrou,
à luz de um olhar interdisciplinar, ser um recurso eficaz para a análise proposta. A
fundamentação teórica de referência representou um avanço na definição da cultura
material, encarando-a de maneira dinâmica e atuante sobre a cultura e não apenas com
a perspectiva reflexa e inerte de outros estudos. De natureza discursiva e subjetiva, a
cultura material tem poder transformativo. Ela dá opção a uma análise
multidimensional e pode ser até usada para criar, no plano imaginário, um universo
cujo conteúdo e forma diferem completamente da realidade social. Daí ter sido
valorizada no trabalho, a importância de se considerar a subjetividade nas
interpretações dos textos decorrentes da cultura material, sob os olhares da História,
da Antropologia, da Arqueologia e outras áreas afins.
Assim, o princípio metodológico adotado na pesquisa revelou eficiência ao
possibilitar uma discussão ampla e multidisciplinar sobre o objeto construído e a
problemática adotada. O Projeto Corumbá comprovou ser possível elaborar um
trabalho científico partindo de um objeto delimitado artificialmente. Envolvendo
procedimentos interdisciplinares e pouco ortodoxos, foi possível dotar de sentido um
resgate complexo e de grande amplitude. Este é um dos grandes legados de pesquisas
dessa natureza: oportunamente inventariar áreas nem sempre conhecidas, ou mesmo
lançar novos olhares sobre um mesmo objeto, demonstrando, na prática, a
possibilidade de construir problemáticas com referenciais coerentes e próprios. Que a
iniciativa seja imitada, para que o Patrimônio Cultural do homem, em seu aspecto
material e intangível, possa ser valorizado, estimulando trabalhos científicos sobre
áreas impactadas.
202
DEBATE
Coordenador: Prof. Jézus Marco de Ataídes - IGPA/UCG
Relatora: Ana Guita de Oliveira - 14a. CR/IPHAN
OBS.: Esse debate, em consequência de falhas técnicas, foi gravado apenas
parcialmente. Seguem-se, aqui, entre aspas, as questões e respostas
trasncritas e, precedidos do aviso de “reconstituição”, alguns resumos das
outras intervenções ocorridas, feitos com base nas notas tomadas pela
relatora da mesa.
Ana Maria Martins - DEFA/GDF - Arquiteta - “Vou fazer um comentário e uma
pergunta para professora Heloisa. Eu sou do Departamento de Patrimônio Histórico e
Artístico do Distrito Federal. Fiquei muito interessada, porque os nossos trabalhos
cotidianos estão relacionados com uma cidade nova, cheia de problemas, cheia de
empreendimentos, cheia de relatórios de impacto ambiental. Então, eu fiquei muito
feliz com a exposição de todos vocês, porque eu acho que existe uma preocupação e
todas as pessoas demonstram isto na medida em que estabelecem medidas concretas
para que se preserve esses bens intangíveis. Eu tenho duas considerações a fazer,
apesar de ser arquiteta e não antropóloga: acho que existem as transformações que a
gente aceita e que vão ocorrendo sobre a sociedade, conforme os valores culturais
vão-se modificando; existem aquelas que são objeto desse Simpósio, ocorridas a partir
de alguma intervenção de grande porte e é sobre essas transformações que eu teria
algum comentário a fazer.
No caso, aqui, uma série de projetos de Usinas hidroelétricas foram
apresentados, em todos eles existem a necessidade de se realocar as populações; como
apresentou o Doutor Caldarelli, a questão de Porto Primavera foi bastante complicada,
na medida em que se tentou minorar os impactos, simplesmente dando um outro tipo
de realidade para população que nem sempre era aquele de que ela estava precisando.
Por outro lado, o que a Professora Heloisa apresentou foi verificado a partir de um
relatório, onde a comunidade desejava exatamente isso. Como sugestão para redação
do trabalho final, eu gostaria de colocar que seria interessante propor que os relatórios
de impactos ambiental, os EIAS principalmente, passassem por um momento de
analise como o do Projeto de Corumbá, que vocês desenvolveram. E que também
propusessem realmente medidas concretas, no sentido de chegar a resultados. Não
aquele obstáculo, no caso do rio, que era um obstáculo para o desenvolvimento da
comunidade e que eles não valorizavam esse elemento natural. Ou, então, chegar a
uma conclusão como em Porto Primavera, pelo menos pela notícia que eu fiquei
tendo, de que atualmente a comunidade toda se dispersou daquele território para qual
ela foi alocada, porque a concepção urbana não estava de acordo com os valores
culturais que a comunidade tinha. Então, que houvesse algum tipo de recomendação
nos relatórios de impacto ambiental a respeito das medidas que o empreendedor
deveria executar quando fosse feita a realocação da população ou fosse executado o
tipo de empreendimento.
Para a Doutora Heloisa eu tenho uma pergunta: vocês têm notícia de como
essa população ficou e para onde ela foi ?”
203
Heloisa Capel - “A hidrelétrica Corumbá está terminando, o lago ainda não está
totalmente formado. O Jézus pode responder melhor, porque ele é coordenador do
projeto e pode dar informações mais atuais.”
Jézus Ataídes- “Bom, é um caso diferente, a hidrelétrica de Corumbá vai ocupar uma
área pequena, de 65Km/2. É uma área rural, pouco habitada, não houve grandes
problemas com a população; as fazendas quase todas só tinham um peão, as casassedes quase sempre eram habitadas apenas por um peão, as casas de agregados já
tinham sido abandonadas; então, a população era muito pequena; não houve reação
dessa população, que já tinha se transferido, na sua maioria, para área urbana; não
teve problema como em outras hidrelétricas.”
Antônio Carlos Diegues - (reconstituição) - Falou dos bens tangíveis e das
percepções diferenciadas do ambiente. As medidas mitigadoras são apenas
compensatórias. Citou a experiência da USP. Sugeriu que as populações atingidas
façam seu estudo de impacto a partir do entendimento que possuem - seus próprios
valores. Explicitou as diversas racionalidades contidas nos grupos/segmentos sociais
envolvidos nos projetos.
Rinaldo Arruda - (reconstituição) - Ressaltou as “racionalidades distintas”
envolvidas no processo de realocação. A noção de propriedade deve ser entendida no
âmbito das relações sociais e não são vistas como legítimas pela sociedade nacional.
A idéia de preservar como formas passadas. Preservar não somente a cultura, mas o
espaço de suas possíveis mudanças - de sua autodeterminação. Ressaltou o caráter
político das questões relacionadas à preservação da cultura.
Carlos Caldarelli - “Frequentemente, as populações submetidas passam a ver-se com
os olhos do outro e, consequentemente, perdem as próprias referências. Os meios de
evitar isso têm de ser formulados caso a caso. Portanto, não é o caso de haver normas
que antecipem o que o empreendedor deve fazer concretamente. Deve haver, isto
sim, normas que vinculem fortemente o empreendedor às conclusões e
recomendações do EIA/RIMA.”
Ana Lúcia Abrahim - 1ª CR/IPHAN - “Nos dois casos, Corumbá e Paraná, na
prática, que propostas de mitigação foram feitas ? Foram implementadas ? Foram
avaliadas?”
Carlos Caldarelli - “Em Porto Primavera, não pôde haver implementação,
monitoramento e avaliação das propostas de mitigação, porque os impactos já
estavam ocorrendo quando se fez o EIA/RIMA.”
Jézus Ataídes - “Em Corumbá, as sedes das fazendas, na sua maioria, já não estavam
mais na área a ser inundada, na época da pesquisa. A especulação imobiliária foi e
está sendo muito grande. Já existem loteamentos de várias propriedades que vão ficar
nas margens do futuro lago. Até então, a população não tinha nenhuma relação mais
íntima com o rio Corumbá, ele sempre foi um rio que causou medo. Não é navegável,
não é piscoso, nem atrai o turismo.”
Ana Lúcia Abraim - ( reconstituição) - Mencionou o boi de Parintins. Perguntou
como mitigar os impactos sobre a situação de saúde da população.
204
Ana Cláudia Lima e Alves - IPHAN - (reconstituição) Falou da retomada dos
trabalhos referentes à cultura. Foram realizados no âmbito da Pró-Memória como no
caso dos impactos sofridos pela comunidade de pescadores por ocasião da
construção do Porto de SUAPE, em Maceió. Mencionou o ínicio da retomada destes
trabalhos. Falou sobre o tombamento do Terreiro da Casa Branca, na Bahia.
Estimulou a retomada desta prática.
Alenice Baeta - (reconstituição) Retomou alguns pontos: culpa das universidades em
assumir sua responsabilidade no sentido da proteção. Mencionou as escolas
indígenas que valorizam o etnocentrismo. Mencionou que projetos que deram certo
no Acre tentam intervir no contexto indígena em relação à arqueologia. Mencionou a
não inclusão dos territórios míticos nos trabalhos de demarcação (fala dirigida ao
Dr. Rinaldo). Perguntou como o impacto sobre o bem intangível pode ser mitigado.
Mencionou os Krenak e Caxixó. Trabalhou com sítios pré-históricos que são sítios
encantados para os Krenak. Mencionou que os índios se apropriam dos sítios préhistóricos como territórios sagrados.
Rinaldo Arruda - (reconstituição) - Na educação indígena, a arqueologia tem papel
fundamental, permite uma configuração mais sólida, quando comparados com os
relatos etnohistóricos e antropológicos. A idéia é a complementariedade entre as
disciplinas. A terra não é vista como mercadoria para as populações indígenas.
Reforçou a necessidade da multidisciplinaridade na avaliação dos impactos.
Dificuldade em avaliar por um único prisma os impactos. O empreendedor enfatiza
um único ponto de vista. Mencionou a necessidade de desenvolvimento de
metodologia própria.
Ana Isa Bueno - IPHAN - (reconstituição) Falou que, em Porto Primavera, a
população tinha emprestado os outros “olhos”. Mencionou o conjunto habitacional
construído nos moldes do BNH. A população removida retomou seus valores.
Reordenaram seu espaço. Perguntou se o Dr. Carlos Caldarelli tinha trabalhado com
os índios Ofaié.
Carlos Caldarelli - “Não”.
205
5ª MESA-REDONDA:
GESTÃO DOS RECURSOS CULTURAIS NO ÂMBITO DO
FEDERALISMO COOPERATIVO E COMPATIBILIZAÇÃO
DAS NORMAS LEGAIS DAS ÁREAS CULTURAL E
AMBIENTAL
COORDENAÇÃO:
Dr. José Luiz de Morais
Museu de Arqueologia e Etnologia/USP
Consultor do Fórum Interdisciplinar para o Avanço da Arqueologia
206
EXPOSITORES
SUZANNA CRUZ SAMPAIO
Licenciada em Geografia e História pela PUC - Instituto Sedes Sapientiae
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
Diretora do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura Municipal de São Paulo (1985/6)
Conselheira Titular da Área de Patrimônio Cultural do CINC-Conselho Nacional de Incentivos à
Cultura (MinC)
Conselheira do Conselho Consultivo do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional
Presidente do ICOMOS/BRASIL - Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - UNESCO
ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS
Graduado pela Faculdade Nacional de Direito (Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro).
Advogado no Rio de Janeiro.
Membro do Ministério Público Federal desde julho de 1982, atuando agora perante o Colendo
Supremo Tribunal Federal.
Subprocurador-Geral da República, integra o Conselho Superior do Ministério Público Federal e é o
Coordenador da 4ª Câmara do Ministério Público Federal, incumbida da coordenação e revisão da
atuação da instituição em todo o país nas áreas do Patrimônio Cultural e do Meio Ambiente.
HELITA BARREIRA CUSTÓDIO
Doutora em Direito e Livre-Docente em Direito Civil (pela Universidade de São Paulo)
Aperfeiçoamento em Ciências da Administração Pública, com especialização em Direito
Urbanístico (pela Universidade de Roma)
Especialização em Direito Municipal (pela Fundação Getúlio Vargas, São Paulo)
Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Direito do Meio Ambiente (SOBRADIMA)
Membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB-SP
Mais de cem trabalhos publicados, notadamente em revistas técnico-jurídicas, sobre assuntos direta
ou indiretamente relacionados com Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito
Urbanístico, Direito de Construir, Direito Ambiental, Direito Florestal, Direito Agrícola, Direito
Municipal, Direito Civil (normas gerais, Direito da Propriedade, Direito das Obrigações).
JOSÉ EDUARDO RAMOS RODRIGUES
Advogado em São Paulo
Vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB- SP
Coordenador da Câmara de Patrimônio Cultural da Comissão de Meio Ambiente da OAB-SP
Conselheiro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental
da Cidade de São Paulo
Diretor do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.
CARLOS EDUARDO CALDARELLI
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo
Advogado com escritório em São Paulo (SP)
Coordenador de Projetos (Área Sócio-Econômica) da Scientia Consultoria Científica S/C Ltda.,
participando de EIAs/RIMAs, regularização de Unidades de Conservação e projetos de Zoneamento
Ambiental
Membro da IAIA - International Association for Impact Assesment
207
AS CARTAS INTERNACIONAIS E A PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO
CULTURAL BRASILEIRO
Suzanna Cruz Sampaio
RESUMO
1) Existência de uma centena de Convenções, Cartas, Recomendações, Declarações,
Manifestos, Compromissos e Resoluções escritos após debates e decisões
consensuais e promulgados ao final de congressos internacionais. Escolha para
análise: a Primeira (1932), a mais famosa Veneza (1964), a última “Autenticidade”
(Nara 94 e Brasília 95) e, pela importância, a Convenção de Paris - “Patrimônio
Mundial”, novembro de 1972.
2) Conjunto de preceitos para a orientação dos profissionais da preservação e
restauro, surgido nessa moderna versão em 1972.
I - Com a CARTA DE ATENAS: principais tópicos e fundamentos para o restauro de
monumentos e áreas históricas dos modernos centros urbanos. Estuda:
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
8)
9)
a cidade
os elementos coletivos e individuais
a situação geográfica e topográfica
sistema econômico
política e administraçào
defesa e rotas de transporte
população, habitação “era da máquina”
cidade: “Pequena Pátria”
estudo crítico das funções da cidade e propostade zoneamento e estabelecimento
ordenado de exigências
10) A Carta de Atenas propõe a salvaguarda do patrimônio histórico das culturas
anteriores
10.1) se constituírem a expressão do interesse geral
10.2) se não exigir sacrifício para as populações
10.3) se for necessário: desviar a circulaçào evitando destruir o monumento
considerado “obstáculo”
10.4) destruição de cortiços e criação de superfícies verdes
10.5) cópia servil do estilo do passado: o “falso” e o “verdadeiro”
11) Conclusões e doutrina
11.1) Caos urbano - cidades estudadas: Amsterdã, Atenas, Baltimore, Bandune,
Barcelona, Berlim, Bruxelas, Budapeste, Chalerdi, Colônia, Como, Dalat,
Detroit, Dessau, Estocolmo, Frankfurt, Geneve, Gênova, Haia, Los Angeles,
Litoria, Londres, Madri, Oslo, Paris, Praga, Roma, Roterdã, Utrecht, Verona,
Varsóvia, Zagreb e Zurich
11.2) Crescimento dos interesses privados.
Transformação desordenada,
desequilíbrio. Nos planos espiritual e material, liberdade individual e ação
coletiva
208
11.3) Escala humana para o desenvolvimento das quatro funções urbanas (9.1,
9.2, 9.3, 9.4)
11.4) “Alegrias Fundamentais”: subordinando o interesse individual ao coletivo:
“acesso ao bem estar do lar e à beleza da cidade”
11.5) Nascimento dos CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura
Moderna)
II - CARTA DE VENEZA (1964):
1) origem e abrangência
2) definições e finalidades
2.1) monumentos
2.2) sítios (urbanos ou rurais)
2.3) multidisciplinar e pluriprofissional
3) conservação e restauro
3.1) técnicas
3.2) acréscimos
4) escavações
4.1) normas da UNESCO
4.2) proibição da reconstrução
5) documentação
5.1) obrigatoriedade em todos os casos
5.2) criação de arquivos
6) criação do ICOMOS por Gazzola, Lemaire, Benavente, Campos, Castro
Mello, Gasperini - ao término do IIº Congresso Internacional de Arquitetos
(Veneza)
III - Convenção sobre a salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural Conferência Geral da UNESCO - Paris, 1972. Promulgada no Brasil em 1977
(Geisel)
1) ante a ameaça de destruição não só pelas causas naturais de degradação mas
pelas mudanças sociais e econômicas, e considerando que o desaparecimento
de um bem cultural ou natural é uma perda irreparável para a humanidade,
propõe-se a adoção de disposições convencionais que estabeleçam um sistema
de proteção coletiva de todos os patrimônios de maneira eficaz e moderna.
2) Definições do Patrimônio Cultural e do Patrimônio Natural
2.1) Proteção nacional e internacional dos ...
Art. 4
2.2) Obrigações dos Estados Membros:
Art. 5
conjunto de medidas (a,b,c,d,e)
3) Criação do Comitê Intergovernamental da Proteção ao Patrimônio Mundial
Art. 8º - Criação
Art. 9º - Estados Membros, obrigações e representação
Art. 10 - Regimento interno
Art. 11 - Candidaturas à lista do Patrimônio Mundial; valor universal
excepcional; patrimônio em perigo; pedido oficial do país interessado.
Art. 13 - Assistência internacional para inclusão em listagem. Cooperação:
ICOMOS, ICOROM, VICN
Art. 14 - Assistência técnica da UNESCO
4) Fundo para Proteção do Patrimônio Mundial - Art. 19, 20, 21, 22 - Assistência
Internacional
209
UNESCO - Comitê do Patrimônio Mundial - Diretrizes, 1976 (Revisão 1996)
Princípios Gerais - Exigências - Critérios - Procedimento
AUTENTICIDADE:
Uma das condições sine qua non para inscrição de um bem na lista do Patrimônio
Munidal, este tema tem atualmente norteado todas as discussões dos especialistas
do ICOMOS, devido aos vários significados que assume nas diferentes línguas dos
diversos países membros
CARTA DE NARA (Japão 1994)
Baseia o conceito de autenticidade na “diversidade cultural dos diversos
patrimônios” - diferenças entre Europa e Oriente
CARTA DE BRASÍLIA (1995)
Analisa “autenticidade“ em diversos aspectos: identidade ou identidades nacionais;
mensagem intangível do bem; contexto sócio-cultural; materialidade e
tangibilidade do bem; gradação e qualificação das diversas autenticidades;
preservação da autenticidade; homogeneização, massificação em oposição às
identidades nacionais e regionais
CONCLUSÃO
As Cartas e a Legislação Brasileira
A UNESCO é extremamente rigorosa no que diz respeito à soberania das nações
e recomenda cautela e prudência aos órgãos a ela filiados (ICOMOS, ICOROM
e UICN). Art. 6º, Conv. 1972.
As normas prescritas pelas Cartas Internacionais não têm a força cogente da
legislação penal positivadanos códigos de cada país. A tarefa dos Comitês
Nacionais do ICOMOS é apelar às instâncias judiciais de seus países.
Apresenta-se denúncia de crime de dano ou destruição no Brasil de bens
tombados, cabendo ao denunciante (pessoa física em nome da entidade) o
ônus da prova (Art. 15 - Código de Processo Penal) (Art. 165 e 166 Código
Penal Brasileiro). O mesmo procedimento deve ser adotado nos processos
administrativos ou nas lides civis.
Recomenda-se consulta jurídica privada, quando a queixa for particular em
defesa de lesão ao seu direito personalíssimo (defesa da honra contra calúnia,
difamação e injúria - Arts. 138, 139, 140 e parágrafos Código Penal Brasileiro)
nos casos de denúncia contra atos do Poder Público, recomenda-se seja acionada
a consultoria jurídica da própria instituição acusada de não atender à legislaçào
vigente. Nesses casos, devem os autores da queixa atentar para que não sejam
cometidos os crimes de denúncia caluniosa ou de exercício arbitrário das
próprias razòes (Arts. 339 e 345 do Código Penal Brasileiro).
Tantas e tais têm s ido as lesões ao Patrimônio Cultural em todos os países
membros do ICOMOS, que advogados presentes à XIª Assembléia
representando os países íbero-americanos, redigiram moção (lida em plenário
pela Presidente do ICOMOS/BRASIL), solicitando a criação de um Comitê
Científico Internacional de Legislação. Acatado o pedido por aclamação,
avisamos que esse comitê está sendo organizado pelo Dr. Werner Von
Tsütchaler do ICOMOS/ALEMANHA, omde haverá reunião em abril. Deve
ser esclarecido que o comitê agrupará os países cujo Direito tenha origem
romanística, e portanto legislação codificada. Estados Unidos, Inglaterra,
210
Canadá e putros entre os 87 membros do ICOMOS, que possuem sistemas não
codigicados,
mas
jurisprudenciais consuetudinários,
deverão
agir
separadamente.
Decreto-Lei 25 (1937) - Breve análise
Constituição Federal (1988)
211
ASPECTOS JURÍDICO-PROCESSUAIS DA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO
CULTURAL BRASILEIRO
Roberto Monteiro Gurgel dos Santos
Inicialmente, gostaria de agradecer a Universidade Católica de Goiás, através
do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, e ao IPHAN a gentileza do
convite.
Honra ao Ministério Público Federal e a mim pessoalmente o privilégio de
participar deste Simpósio, seja pela qualidade dos expositores - de que certamente
destoarei - seja pelo elevado nível de todos os participantes do evento. Para falar o
óbvio, é sempre extremamente enriquecedora e profícua a troca de idéias,
especialmente quando tem lugar em seu cenário ideal, a Universidade.
Na temática que me coube - Aspectos jurídico-processuais da proteção ao
patrimônio cultural brasileiro - não optei - e penitencio-me com a organização do
seminário e com os que prestigiam com a sua presença se deixei de fazê-lo
indevidamente - por uma abordagem acadêmica, que, de resto, seria feita com maior
proveito e incomparável proficiência por meus eminentes companheiros de mesa.
Optei, dizia, por trazer a vocês - permitam-me tratá-los com a informalidade
tão benfazeja ao debate de idéias - um panorama extremamente breve e superficial de
como vem se operando concretamente a proteção ao patrimônio cultural brasileiro e
ao meio ambiente como um todo.
Esclareço, neste passo, que ao longo da exposição muitas vezes me referirei
ao ambiente na sua acepção mais ampla, abrangente do patrimônio cultural).
Trata-se de panorama traçado, no âmbito federal, a partir do meu dia a dia
como Coordenador, modestíssimo, da atuaação do Ministério Público Federal em todo
o país nas questões afetas ao meio ambiente e ao patrimônio cultural.
Como todos sabem, a Constituição Federal de 1988 confiou ao Ministério
Público “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis”, outorgando-lhe, dentre muitas outras, a função de
“promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio
público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
Na ordem constitucional anterior, o Ministério Público Federal fora,
essencialmente, sem qualquer demérito para os valorosos colegas que então
compunham a instituição - eu mesmo nela ingressei em 1982 -, o representante
judicial da União e o titular da ação penal nos crime de competência da Justiça
Federal.
Titularidade da ação penal que acabou por revelar a figura notável do
inesquecível Procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva, que, ousando
resistir em tempos em que a regra era ceder, praticou, como inguém a independência
do Ministério Público e cuja morte despertou todos nós para a necessidade de
construir uma nova instituição, agora efetivamente voltada para a sociedade e a
serviço da sociedade.
212
Veio a Assembléia Nacional Constituinte, que, pela feliz conjunção de
diversos fatores, consagrou, em dispositivos como os referidos, esse perfil de
servidora da sociedade para a instituição ministerial.
Neste quadro, o Ministério Público Federal, como todo o Ministério Público,
vem procurando, ainda com grandes deficiências e indesculpáveis omissões,
desincumbir-se da melhor forma possível das atribuições que lhe cometeu a
Constituição relativamente à defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis novas atribuições que, saliento, representam hoje o maior atrativo para a opção de
tantos novos colegas pela Instituição.
Graças à dedicação, firmeza e competência dos colegas presentes em todo o
território nacional, a quem homenageio na pessoa dos Procuradores da República no
Estado de Goiás como os responsáveis efetivos pela construção do Ministério Público
com que todos sonhamos, têm crescido permanentemente as iniciativas na área do
patrimônio cultural e na área ambiental como um todo.
Não apenas crescido quantitativamente mas também qualitativamente,
modéstia à parte. Sim, a despeito de suas muitas imperfeições, as iniciativas
ministeriais, em regra, são hoje incomparavelmente melhor instruídas, mais
cuidadosamente elaboradas, mais consistentes enfim do que foram no passado.
E os seus resultados? Têm crescido na mesma proporção? Sabem todos que
não! Os resultados obtidos na via judicial ainda ficam muito aquém do que seria
razoável esperar.
Onde buscar a causa de tamanho descompasso?
Certamente no Ministério Público, que tem longo caminho a percorrer no
aprimoramento dos seus desempenhos funcionais. Estamos conscientes disso e todos
os esforços estão sendo enviados nesse sentido.
Talvez nas deficiências das nossas leis? Alterações e aprimoramentos
legislativos, tantas vezes reclamados em decisões judiciais queixosas do direito
vigente, serão necessários paramodificar essa situação?
Certamente que não.
Bem destacou o eminente Professor e Senador Josaphat Marinho, em
seminário promovido meses atrás pela Comissão de Direito Ambiental da OAB/DF,
de que tive a honra de participar, que já vivemos uma “inflação legislativa”e o que é
preciso “interpretar as leis a partir da Constituição e não pensar em mudá-las”.
Parcela
extremamente
significativa
do
Judiciário,
entretanto,
lamentavelmente tem se mostrado incapaz de fazê-lo - mesmo em hipóteses em que
pouco ou nenhum esforço hermenêutico seria requerido para tanto - precisamente em
decorrência de inegáveis resistências aos temas pertinentes aos direitos e interesses
difusos em geral.
Afloro - bem o sei - tema em relação ao qual existe natural cerimônia mas
que é preciso enfrentar, evidentemente colocando-o no elevado plano da discussão de
idéias, sem qualquer intenção de críticas pessoais, ainda quando aludido algum caso
concreto.
Acompanhar, como faço, por dever do ofício de Coordenador, a atuação dos
valorosos colegas em todo o país é vê-los quase sempre nadando contra a maré
quando não investindo contra inamovíveis rochedos.
213
Se no primeiro grau de jurisdição são mais numerosos a cada dia os
Magistrados imbuídos do inafastável dever de assegurar proteção a valores que a
Constituição - não o IPHAN, não as Universidades, não o Ministério Público, não as
ONGs - a CONSTITUIÇÃO considera fundamentais, o panorama nos Tribunais cinjo-me àqueles perante os quais o Ministério Público Federal atua - é, com as
exceções de estilo - algumas, aliás, notáveis - francamente desolador.
As causas do fenômeno, embora complexas, não parecem difíceis de apontar,
decorrendo, originalmente, do modelo tecnoburocrata adotado entre nós para a
magistratura e também para o Ministério Público.
O juiz consagrado pela nossa sociedade é o homem acima dos conflitos
humanos - vejam o paradoxo. Quanto mais impermeável for ao meio em que vive,
melhor juiz será nessa visão distorcida. Juiz “asséptico”, impossibilidade
antropológica nas palavras de Zaffaroni, em interessante obra publicada há cerca de
um ano no Brasil a respeito do Poder Judiciário.
A isso acrescente-se a circunstância de uma formação - da geração de hoje
nos tribunais - voltada para os direitos e interesses individuais, pouco adequada aos
direitos e interesses supraindividuais ou transindividuais que marcam o nosso tempo.
Neste ponto, gostaria de ilustrar com um exemplo, que me parece muito
relevante, de um lado, as dificuldades com que se depara o Ministério Público Federal
para fazer transitar perante o Judiciário os temas pertinentes aos direitos e interesses
difusos e, de outro, a aplicação, segundo entendo, limitada pelo Judiciário das normas
de proteção ao patrimônio cultural e ao ambiente como um todo.
Prevê a norma do $ 1° do art. 12 da Lei n. 7.347/85, a lei da ação civil
pública, a possibilidade de, a requerimento da pessoa jurídica de direito público
interessada, o Presidente do Tribunal a que competir o conhecimento do respectivo
recurso suspender a execução da liminar concedida, para evitar grave lesão à ordem, à
saúde, à segurança e à economia pública.
Sem qualquer sabor de novo, a norma reproduz praticamente em, todos os
seus termos a disposição do art. 4° da Lei n. 4.348, editada em, 26/6/64, nos albores
da ditadura militar, cuja constitucionalidade foi mais de uma vez questionada e que
acabou ampliada mais recentemente pelo também art. 4° da Lei n. 8.437 de 30/6/92.
Pois bem: a aplicação que usualmente tem sido dada ao dispositivo
mencionado vem se erigindo em obstáculo virtualmente intransponível à efetividade
da tutela jurisdicional dos chamados direitos e interesses difusos.
O que vem ocorrendo na quase totalidade dos casos efetivamente relevantes?
Concedida a medida liminar, é prontamente requerida a respectiva suspensão,
imediatamente deferida quase que invariavelmente à invocação de grave lesão à
economia pública decorrente da paralisação da atividade lesiva.
Assegura-se, deste modo - confessadamente, algumas vezes - absoluta
proteção ao valor economia pública em detrimento da preservação do patrimônio
cultural e do meio ambiente, forte em que se cuida de incidente em que o juiz
aexercita cognição restrita à verificação da presença dos pressupostos aensejadores da
medida excepcional.
Não seria imperativo, nesta cognição que é efetivamente restrita, confrontar o
valaor da economia públicaa, por exemplo, com os valores que a medida liminar
buscou resguardar, especialmente quando de dignidade constitucional estes últimos?
214
Antolha-se que sim e, procedido à luz da Constituição tal exame, a conclusão
inevitável deverá ser a de que encontram estes em posição proeminente.
Confira-se a lição seguinte de José Afonso da Silva:
“A Declaração de Estocolmo abriu caminho para
que as constituições superveniente reconhecessem o meio
ambiente ecologicamente equilibrado como um direito
fundamental entre os direitos sociais do homem, com sua
característica de direitos a serem realizados e direitos a não
serem perturbados...
O que é importante - escrevemos de outra feita - é
que se tenha a consciência de que o direito à vida, como
matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem,
é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da
tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é um
fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer
outras considerações como as de desenvolvimento, como as
de respeito ao direito de propriedade, como as de iniciativa
privada. Também estes são garantidos no texto
constitucional, mas, a toda evid6encia, não podem primar
sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando
se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. É que a
tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no
sentido de que, através dela, o que se protege é um valor
maior: a qualidade de vida.”
(Direito Ambiental Constitucional, 2ª ed., rev., p.
43/44. São Paulo, Malheiros, 1995).
Ao negar-lhe primazia, penso que incide a decisão da Presidência do
Tribunal em inconstitucionalidade. Quase sempre, porém, é o que infelizmente ocorre,
mercê da concepção antes apontada.
Este quadro desfavorável tem levado o Ministério Público a voltar-se
crescentemente para as possibilidade da via negociada, mesmo porque a experiência
vem demonstrando o acerto do que há muito lembrava Edis Milaré: haverá casos em
que a não celebração do acordo iria contra a tutela do interesse público difuso
objetivado”.
Assim, no Ministério Público Federal, temos falado mais e mais em
desjudicializar sempre que possível as iniciativas no campo do patrimônio cultural e
no meio ambiente como caminho para viabilizar resultados que certamente não serão
os ideiais mas que, muito provavelmente, traduzirão uma proteção mais efetiva e
imediata desses valores do que aquela que talvez viesse a ser obtida na via judicial.
A celebração dos compromissos de ajustamento de conduta, prevista no art.
5°, $ 3°, da Lei n. 7.347/85, têm proporicionado se não os resultados ideais, até
porque envolve a idéia de transação - que sei gerar perplexidades em se cuidando de
direitos indisponíveis - progressos significativos e viáveis, que enfatizam, em minha
opinião, a sua conveniência.
Este panorama - não muito animador, reconheço - da proteção ao patrimônio
cultural brasileiro que trago a debate nesta oportunidade tão preciosa e que pode ser
215
sintetizado em poucas palavras: via judicial com dificuldades extraordinárias,
especialmente a partir do segundo grau de jurisdição; consequente tendência à
desjudicialização das iniciativas e via extrajudicial ou negociada com perspectivas
favoráveis.
Assinalo, por último, que, não obstante essas perspectivas favoráveis da via
negociada, tenho como primordial modificar a situação relativamente à via judicial,
inevitável em muitas hipóteses.
É urgente modificá-la, é urgente que a sociedade, pelos seus organismos mais
atuantes, entre os quais desponta a Universidade, trabalhe concreta e constantemente
para sensibilizar o Judiciário, como fez com o Ministério Público, da relevância
abasoluta desses temas.
Mostra-se absolutamente indispensável que o Judiciário, ainda nas palavras
de Josaphat Marinho, “sob inspiração da sociedade, seja conduzido a dar uma
aplicação mais ampla, menos formal, mais humanista, à legislação existente”.
“Nem o juiz que resolva os conflitos como se não existente a lei nem o juiz
que deixe de lado totalmente as consequências de suas sentenças”. Precisamos do Juiz
consciente do seu papel político.
Afinal, “quanto mais consciente seja o poder judiciário acerca do seu papel
político, mais idôneo será para cumprí-lo e, assim, desempenhar as suas funções, que
são sempre políticas”(Zaffaroni).
Somente este Juiz poderá ser cumplice - cúmplice mesmo, por que não? - da
sociedade na defesa efetiva do patrimônio cultural e do meio ambiente como um todo,
desinstalando conceitos arraigados e concretizando um pensar novo que viabilize
também no âmbito judicial as iniciativas dos diversos atores sociais - o Ministério
Público, entre eles.
216
AS NORMAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL
BRASILEIRO EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DAS NORMAS
AMBIENTAIS
Helita Barreira Custódio
I - INTRODUÇÃO
Para melhor compreensão sobre a abrangência do conteúdo e do alcance das
normas de proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro integrantes da Constituição
Federal e do direito Ambiental, direta e indiretamente relacionadas com a Política de
Desenvolvimento Urbano, com a Política Agrícola, com a Política das Atividades
Econômicas e com a Política em Defesa e Preservação dos Valores Culturais de
nosso País, tornam-se oportunas breves noções, notadamente, sobre meio ambiente
(com seus recursos naturais e culturais), sobre Patrimônio Cultural Brasileiro (em
confronto com as inquietantes condutas ou atividades lesivas aos bens materiais ou
imateriais ali componentes), sobre o Direito como princípios e normas disciplinadoras
de condutas ou de atividades das pessoas (físicas e jurídicas de direito público ou de
direito privado) e sobre o Direito Ambiental como novo e relevante ramo do Direito.
1. Noções de Meio Ambiente
Para os fins protecionais, a noção de meio ambiente é muito ampla,
abrangendo todos os bens naturais e culturais de valor juridicamente protegido, desde
o solo, as águas, o ar, a flora, a fauna, as belezas naturais e artificiais, o ser humano, o
patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico, monumental, arqueológico, além
das variadas disciplinas urbanísticas contemporâneas. 15 Considera-se o meio
ambiente humano o conjunto das condições naturais, sociais e culturais em que vive a
pessoa humana e são suscetíveis de influenciar a sua existência. 16 O meio ambiente “é
tudo aquilo que nos cerca”. O meio ambiente não é “uma experiência utopística, mas
um direito para cada pessoa humana”. 17 “O meio ambiente é, assim, a interação do
conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o
desenvolvimento equilibrado da vida humana “. 18 Não resta dúvida de que ampla é a
noção do meio ambiente, uma vez que abrange, sem exceção, todos os recursos
naturais e culturais (nestes compreendidos os artificiais) indispensáveis à
concepção, à germinação ou a qualquer outra circunstância originária, ao nascimento,
ao desenvolvimento e à preservação da vida em geral, tanto da pessoa humana como
dos seres vivos em geral (animais e vegetais).
Como definição legal, “entende-se por meio ambiente: o conjunto de
condições, leis, influência e interações de ordem física, química e biológica, que
permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, considerando-se, ainda, o
P. Salvatore, Tutela Pubblica dell‟Ambiente, in Rassegna Semestrale dell’Unione Nazionale Avvocati degli Enti Pubblici,
Roma, 1975: 343. V. nossa tese, Autonomia do Município na Preservação Ambiental, Ed. Resenha Universitária, São Paulo,
1976, p. 1 e ss.
15
16
Guido-Colombo, Dizionario di Urbanistica, Pirola, Milano, 1981: 12.
Amedeo Postiglione, Manuale dll’Ambiente - Guida alla Legislazione Ambiental, La Nuova Italia Scientifica-NIS, Roma,
1986: 16.
18
José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, RT, São Paulo, 1981: 435.
17
217
“meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e
protegido, tendo em vista o uso coletivo” (Lei n.º 6.938, de 31.8.81, arts. 3º, I, e 2º, I).
Trata-se de ampla definição legal, pois atinge “tudo aquilo que permite a vida, que a
abriga e rege”, abrangendo “as comunidades, os ecossistemas e a biosfera”.19
Constitucionalmente, o meio ambiente, ecologicamente equilibrado, constitui
direito de todos, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e à
coletividade (todas as pessoas físicas e jurídicas, estas de direito privado com ou sem
fins lucrativos) o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presente e futuras
gerações (CF, art. 225).
2. Noções de Patrimônio Cultural Brasileiro e inquietantes condutas ou
atividades lesivas aos bens materiais ou imateriais ali integrantes
Em princípio, sem entrar nas particularidades doutrinárias, considera-se
patrimônio cultural o conjunto de bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais,
decorrentes tanto da ação da natureza e da ação humana como da harmônica ação
conjugada da natureza e da pessoa humana, de reconhecidos valores vinculados aos
diversos e progressivos estágios dos processos civilizatórios e culturais de grupos e
povos. Integrado de elementos básicos da civilização e da cultura dos povos, o
patrimônio cultural, em seus reconhecidos valores individuais ou em conjunto,
constitui complexo de bens juridicamente protegido em todos os níveis de governo,
tanto nacional como internacional.
Perante o Direito Internacional, de acordo com a convenção Relativa à
Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, aprovada pelo Dec.
Legislativo n.º 74, de 30.6.77, e promulgada pelo Decreto n.º 80.978, de 12.12.77,
consideram-se, como patrimônio cultural: a) “os monumentos: compreendendo as
obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos ou estruturas
de natureza arqueológica, inscrições, cavernas e grupos de elementos, que tenham um
valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; b) os
conjuntos: compreendendo grupos de construções isoladas ou reunidas que, em
virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor
excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; c) os lugares
notáveis: compreendendo as obras do homem ou obras conjugadas do homem e da
natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que tenham valor
universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou
antropológico” (art. 1º). Tratando-se de noção interdependente, consideram-se, como
patrimônio natural: a) “os monumentos naturais: constituídos por formações
físicas e biológicas ou por grupos de tais formações, ou tenham valor excepcional do
ponto de vista estético ou científico; b) as formações geológicas e fisiológicas: bem
como as áreas nitidamente delimitadas, que constituam o habitat de espécies
animais e vegetais ameaçadas e que tenham valor excepcional do ponto de vista da
ciência, da conservação ou da beleza natural” (art. 2º).
De forma harmônica com as normas internacionais, abrangente é o conteúdo
do conceito de patrimônio cultural brasileiro introduzido inovatoriamente pela
vigente Constituição, segundo a qual: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os
bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
19
Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, RT, São Paulo, 1982: 4.
218
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:” I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
científico” (CF, art. 216). Pelo amplo conteúdo e abrangente alcance do conceito
constitucional, torna-se patente que a enumeração, que define os bens e valores
culturais integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro, é apenas exemplificativa e
nunca taxativa, uma vez que ali se compreendem outros valores culturais, como
aqueles integrantes do Patrimônio Antropológico, do Patrimônio Espeleológico,
dentre outros, do País (CF, art. 216 c/c arts. 23, I, III, IV, V, VI, VII; 24, VII; 225). O
abrangente conceito constitucional de Patrimônio Cultural Brasileiro 20 compreende o
Patrimônio Cultural de todas as Unidades da Federação (União, Estados-membros,
Distrito Federal e Municípios), advertindo-se que qualquer conduta ou atividade
lesiva ao patrimônio cultural local, distrital ou estadual constitui crime e dano contra o
próprio Patrimônio Nacional, sujeitando-se os infratores (pessoas físicas ou jurídicas,
de direito público ou de direito privado) às ajustáveis sanções administrativas, penais
e civis (CF, art. 225, § 3º, c/c art. 216, § 4º).
Com estas sucintas noções, é oportuno relembrar, ainda que brevemente, as
inquitantes e crescentes condutas ou atividades lesivas aos bens materiais e imateriais
integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro. Neste sentido, graves e prejudiciais aos
valores culturais são os impactos de natureza ambiental e cultural decorrentes
notadamente da execução de projetos de serviços, construções, obras ou extrações de
interesse público ou particular, da realização de atividades industriais ou comerciais,
da exploração ou utilização de recursos naturais (águas, solo e subsolo, ar, flora,
fauna), da aplicação maciça de agrotóxicos, seus afins e componentes na agricultura,
nos alimentos e bebidas em geral, além de outras condutas ou atividades efetiva ou
potencialmente poluidoras, sem as medidas preventivas ajustáveis, sem os
competentes estudos de impacto ambiental, relatórios de impacto ambiental e
avaliação de impacto ambiental, tudo constituindo efetivos e iminentes riscos e danos
ao patrimônio ambiental brasileiro e, consequentemente, ao Patrimônio Cultural
Brasileiro.21
3. Noções do Direito como princípios e normas disciplinadores de condutas das
pessoas (físicas e jurídicas)
Em ampla noção, o Direito, objetivamente considerado (norma agendi),
define-se como complexo de regras impostas coativamente pelo Poder Público
competente e disciplinadoras da condutas das pessoas (físicas ou jurídicas) na vida
social. como regra social de conduta obrigatória, mediante sanção, para a ordem e o
equilíbrio de interesses na própria sociedade, a finalidade fundamental do Direito é
aquela de assegurar a “pacífica convivência” da vida social, o que só será possível
mediante a realização de “dois objetivos essenciais: aquele da certeza do direito e
20
Sob este aspecto, reporta-se às oportunas observaçòes de Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, 6ª ed.,
Malheiros, São Paulo, 1996: 647 e ss.
21
Reporta-se à bibliografia científica citada em nossos trabalhos, sobre graves denúncias e preocupações da comunidade
científico-jurídida: Avaliação de Impacto Ambiental no Direito Brasileiro, in RDC 45: 68-105, Ed. RT, São Paulo, 1988;
Legislação Brasileira do Estudo de Impacto Ambiental: Uma visão multidisciplinar, organização de Sâmia Maria Taud, 2ª
ed., Ed. UNESP, São Paulo, 1995: 44-64; Monumentos Históricos, Artísticos e Naturais, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v.
53: 222, Ed. Saraiva, São Paulo: 222-239; Clayton F. Lino e João Allievi, Cavernas Brasileiras, Ed. Melhoramentos, São Paulo,
1980: 157 e ss.
219
aquele da certeza da observância do próprio direito”22 Neste sentido, salienta a
doutrina que a noção do Direito, partindo originalmente da natureza humana, alcança
a organização social e visa à disciplina das condições de coexistência e
aperfeiçoamento, tanto dos indivíduos, como dos grupos sociais e da sociedade.
Disciplinando a vida social, o Direito não abandona o ser humano à sua própria sorte,
mas lhe proporciona condições para sua perfeição, seu desenvolvimento e seu
progresso, tanto de sua vida física e psíquica, como de sua própria vida social.
Essencialmente decorrente da natureza humana, o Direito é uma força social em sua
origem, em sua natureza e em sua finalidade. Como princípio de adequação do
homem à vida social, num dinâmico processo social de adaptação, a causa final do
Direito é a consecução da Justiça 23 à realização do bem comum.
Noções do Direito Ambiental como novo ramo do Direito. Em princípio, com base
nas expressas normas constitucionais e legais vigentes, numa tentativa preliminar de
noção genérica da complexa matéria integrante, considera-se Direito Ambiental o
conjunto de princípios e regras impostos, coercitivamente, pelo Poder Público
competente e disciplinadores de todas as atividades direta ou indiretamente
relacionados com o uso racional dos recursos naturais (ar, águas superficiais e
subterrâneas, águas continentais ou costeiras, solo, espaço aéreo e subsolo, espécies
animais e vegetais, alimentos e bebidas em geral, luz, energia), bem como com a
promoção e proteção dos bens culturais (de valor histórico, artístico, arquitetônico,
urbanístico, monumental, paisagístico, turístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico, científico), tendo por objetivo a defesa e a preservação do patrimônio
ambiental (natural e cultural) e por finalidade a incolumidade da vida em geral, tanto
a presente como a futura.
Como novo e relevante ramo integrante do Direito, o Direito Ambiental, de
natureza interdisciplinar e multidisciplinar, além de suas normas de caráter
essencialmente preventivo, contém, como todo ramo do Direito, normas de caráter
sancionador aplicáveis contra qualquer lesão ou ameaça a direito juridicamente
protegido e relacionado, direta ou indiretamente, como o patrimônio ambiental
ecológica e culturalmente equilibrado (tanto o natural como o cultural), no interesse
de todos, indistintamente.
Conteúdo e alcance das normas jurídicas integrantes do Direito Ambiental. É sempre
oportuno evidenciar que a legislação protecional, integrante da Política Nacional do
Meio Ambiente, pelas sua natureza interdisciplinar e multidisciplinar, compreende
normas de diversos ramos da Ciência Jurídica. Assim é que, pela própria evidência
dos elementos integrantes do meio ambiente, o conteúdo e o alcance da legislação
protecional correlata, além das básicas normas jurídicas constitucionais (art. 225, §§
1º 6º, c/c arts. 23, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, 24, I, VI, VII, VIII, 170, III, V, VI,
200, 216, §§ 1º a 5º, dentre outras) e legais (Lei n.º 6.938, de 31.8.81, com a
respectiva legislação anterior e posterior à sua vigência), ora integram normas
notadamente do Direito Urbanístico, com sua legislação de uso e ocupação do solo,
do Código Florestal, do Código de Águas, do Código de Proteção à Fauna
(terrestre e aquática), do Direito Agrário com as normas do Estatuto da Terra e
legislação complementar, ora se relacionam direta ou indiretamente com normas do
Código de Mineração, do Código Civil (Direto das Coisas - Direito da Propriedade),
22
Paolo Barile - Istituzione di diritto pubblico, 2ª ed., CEDAM, Padova, 1975: 3; Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito
Civil, 7ª ed., Francisco Alves, São Paulo/Rio de Janeiro/Belo Horizonte, 1955: 11. Roberto de Ruggiero, Instituições de Direito
Civil, v. 1, 3ª ed., trad. do original italiano por Ary dos Santos, Saraiva, São Paulo, 1971: 15 e ss.
23
Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, 2ª ed., v. I, t. I, Resenha Universitária, São Paulo, 1976: 3, 18, 19.
220
do Código da Saúde Pública, Código de Proteção ao Consumidor, Código
Tributário, Código Penal, Direito Administrativo, Direito Econômico, dentre
outros ramos do Direito (Público ou Privado).
Evidentemente, as genéricas noções previstas, além de contribuírem para a
formação profissional nos diversos ramos da Ciência e para a consciência pública em
geral, indicam a conduta legítima e oportuna das pessoas (físicas e jurídicas) à defesa
e à preservação dos direitos referentes à vida, à saúde, à segurança, à liberdade, à
propriedade, ao sossego, ao trabalho, à cultura, direitos estes diretamente relacionados
tanto com o Direito Ambiental como com as normas de proteção ao Patrimônio
Cultural Brasileiro, todos constitucionalmente garantidos ao bem-estar das presentes e
futuras gerações.
II - NORMAS JURÍDICAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL
BRASILEIRO
Dentre as normas jurídicas constitucionais, legais e regulamentares
integrantes da Constituição Federal e do Direito Ambiental, direta e indiretamente
relacionadas com a proteção ao Patrimônio Cultural Brasileiro, destacam-se as
seguintes:
1. Normas jurídicas constitucionais
A vigente Constituição Brasileira, reafirmando e ampliando as normas da
Política Nacional do Meio Ambiente, introduz, de forma inovatória, relevantes e
oportunas regras conciliatórias do desenvolvimento sócio-econômico-agráriourbanístico com a defesa e a preservação do patrimônio ambiental (natural e cultural),
evidenciando-se, dentre as normas mais significativas, aplicáveis direta ou
indiretamente à questões ambientais, aquelas sobre: a) Organização políticoadministrativa; b) Competência das Unidades da Federação em matéria ambiental; c)
“Princípios gerais da atividade econômica a serem observados para a conciliação do
desenvolvimento sócio-econômico-urbanístico-agrícola com a proteção ambiental.
a) Organização político-administrativa. A organização político-administrativa da
República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios, todos autônomos (art. 18).
b) Competência das unidades da federação em matéria notadamente ambiental,
econômica e cultural. Dentre as atribuições as Unidades da Federação, direta e
indiretamente relacionadas com a proteção do meio ambiente, com reflexos às
questões econômicas, agrárias, urbanísticas e culturais, destacam-se as seguintes:
Competência exclusiva da União. A Constituição define a competência da União
para, dentre outras prerrogativas: elaborar e executar planos nacionais e regionais
de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX);
planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas,
especialmente as secas e as inundações, evidenciando-se a previsão de incentivos
às regiões de baixa renda (art. 21, XVIII c/c art. 43, §§ 2º, IV, e § 3º); instituiu
sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de
outorga de direitos de seu uso (art. 21, XIX); instituir diretrizes básicas para o
desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes
urbanos (art. 21, XX); explorar os serviços e as instalações nucleares de qualquer
natureza e exercer o monopólio sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e
221
reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus
derivados, atendidos os princípios e as condições, segundo os quais: a) toda
atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e
mediante aprovação do Congresso Nacional; b) sob regime de concessão ou
permissão, é autorizada a utilização de radio-isótopos para a pesquisa e usos
medicinais, agrícolas, industriais, e atividades análogas: c) a responsabilidade civil
por danos nucleares independe da existência de culpa (art. 21, XXIII, a,b,c);
estabelecer em áreas e as condições para o exercício da garimpagem, em forma
associativa (21, XXV).
Competência privativa da União. Estabelece a vigente Constituição que compete
privativamente à União legislar, dentre outras matérias: sobre direito civil
(propriedade imóvel, com seu solo e respectivos acessórios naturais e artificiais),
direito agrário, com a previsão de diretrizes de desenvolvimento urbano e de
planejamento agrícola de utilização racional dos recursos naturais disponíveis e de
preservação do meio ambiente (CF, art. 22, I, c/c arts. 182, 184, 186, 187); sobre
águas (art. 22, IV); sobre recursos minerais (22, XII); geologia (22, XVIII);
atividades nucleares de qualquer natureza (22, XXVI); sobre meios legais que
garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de
produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente
(CF, art. 22, XXIX, c/c art. 220, §§ 3º, II, 4º); sobre normas gerais de licitação e
contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e
indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público (União,
Estados, Distrito Federal e Municípios) e pelas empresas sob seu controle (art. 22,
XXVII); sobre normas gerais referentes à utilização racional da floresta
Amazônica brasileira, da Mata Atlântica, da Serra do Mar, do Pantanal MatoGrossense, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente,
bem como sobre a definição de localização de usinas que operem com reator
nuclear (art. 225, §§ 4º, 6º).
Competência privativa dos Estados-membros. Da mesma forma, a competência
privativa do Estado-membro para sua auto-organização é assegurada e garantida
pela Constituição Federal, demonstrando-se, de acordo com a regra geral, que: “Os
Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem,
observados os princípios desta Constituição” (art. 25). O princípio fundamental
para sua auto-organização é o próprio princípio constitucional da autonomia das
Unidades da Federação já citado. Complementando a regra geral, acrescenta a
Carta Magna que: “São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam
vedadas por esta Constituição” (art. 25, § 1º). “Os Estados poderão, mediante lei
complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para
integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de
interesse comum”(art. 25, § 3º).
A matéria ambiental, de interesse direto e imediato ao equilíbrio
ecológico do território estadual, à saúde, à segurança, ao sossego, ao trabalho,
à cultural e ao bem-estar da população, logicamente de evidente interesse
regional, constitui assunto de competência do Estado-membro, por força da
expressa regra geral do art. 25 da Constituição. Evidencia-se, ainda, que a matéria
ambiental, além de não ser vedada (não ser proibida) pelas normas
constitucionais (arts. 18, § 4º, 23, I-in fine, III, IV, VI, VII; 24, VI, VII, VIII; 170,
VI; 174; 200, I a VIII; 216; 225, §§ 1º, 2º, 3º, 5º), constitui, de forma preventiva e
222
obrigatória, assunto de planejamento indispensável ao controle e à fiscalização do
uso racional dos recursos naturais, bem como à promoção e à proteção dos bens de
valor cultural, visando à defesa do patrimônio ambiental, tanto o natural como o
cultural, no interesse de todos.
Competência privativa do Distrito Federal. Integrando a organização políticoadministrativa do Brasil, a Constituição assegura expressamente a autonomia do
Distrito Federal (art. 18), para o qual são atribuídas as competências legislativas
reservadas aos Estados-membros e aos Municípios (art. 32, § 1º). A matéria
ambiental, de interesse direto e imediato ao equilíbrio ecológico do território
distrital, à saúde, à segurança, ao sossego, ao trabalho, à cultura e ao bem-estar da
população, constitui assunto de inequívoca competência do Distrito Federal, por
força das expressas regras constitucionais (CF, art. 18 c/c art. 32).
Competência privativa dos Municípios. Dentre as normas constitucionais
relevantes sobre as atribuições municipais de interesse ambiental e cultural, de
competência privativa, destacam-se, particularmente, aquelas, segundo as quais
compete aos Municípios: legislar sobre assuntos de interesse local (logicamente,
em seus diversos aspectos sócio-econômico-urbanístico-ambiental-culturais - CF,
art. 30, I); instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar
suas rendas (art. 30, III); organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de
concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local (incluídos aqueles
de defesa e preservação dos recursos naturais e dos bens de valor cultural - CF, art.
30, V): promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do parcelamento, da ocupação e do uso do solo urbano
(incluindo-se o zoneamento ambiental, com a previsão de todos os recursos
ambientais e culturais integrantes do território do Município, para fins de
preservação, no interesse de todos - CF, art. 30, VIII).
Neste sentido, observa-se a relevância das normas do art. 182 da
Constituição, referentes à política urbana a ser executada pelo Poder Público
municipal, mediante plano diretor obrigatório aos Municípios com dicade de
população superior a vinte mil habitantes e facultativo aos demais que não atendam
ao requisito constitucional. O plano diretor, como plano urbanístico geral a nível
local, deverá conter diretrizes aplicáveis a todos os usos suscetíveis na totalidade
do território de cada Município, inclusive a atividades agropecuárias e florestais,
tudo de acordo com as peculiaridades locais e com as respectivas zonas de uso
ajustáveis.
Sem prejuízo de normas mais restritivas e ajustáveis às
peculiaridades de cada zona de uso, as diretrizes do plano diretor devem
compatibilizar-se com as normas gerais da lei federal sobre Direito Urbanístico
(CF, art. 24, I, § 1º), bem como com as diretrizes gerais da lei federal sobre
desenvolvimento urbano, habitação, saneamento básico e transportes urbanos
(CF, art. 21, XX, dentre outras diretrizes aplicáveis), além de outras regras gerais
previstas nas normas constitucionais (CF, arts. 21, XI; 22, I, IV, XII, dentre
outras).
Competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
(executiva), de forma cooperativa, sobre expressas e implícitas providências
tutelares ambientais, para a conservação do patrimônio público dos respectivos
territórios. Trata-se de competência sobre assuntos de interesse comum das
Unidades da Federação, em igualdade de condições, observando-se, todavia, as
normas para a cooperação, estabelecidas em lei complementar federal, sem
223
interferências nas respectivas competências. Como atribuições de natureza
executiva, evidenciam-se, dentre os poderes de competência comum, relacionados
com a proteção do patrimônio ambiental e cultural, os seguintes: conservar o
patrimônio público (nos âmbitos nacional, estadual, distrital e municipal) (art. 23,
I); cuidar da saúde e da assistência pública (a melhoria da qualidade de vida
interessa à saúde de todos), compreendendo o sistema único de saúde, com
atribuições, dentre outras, para: fiscalizar e inspecionar alimentos, bebidas e águas
para guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e
radioativos; colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o meio
ambiente do trabalho (art. 23, II, c/c os arts. 30, VII, 195 a 199, 200, I, II, III, IV,
V, VI, VII, VIII); proteger os documentos, as obras e outros bens de valor
histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os
sítios arqueológicos, bem como impedir a evasão, a destruição e a
descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou
cultural (art. 23, IV, V, c/c os arts. 215 e 216); proporcionar os meio de acesso à
cultura, à educação e à ciência (art. 23, V, c/c os arts. 30, VI, 205 a 214-educação;
215 e 216-cultura; 217-desporto; 218, 219-ciência e tecnologia); proteger o meio
ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI, c/c arts.
200, VIII, 225): preservar as florestas, a fauna e aflora (art. 23, VII, c/c art. 225, §
1º, VII); fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar
(art. 23, VIII, c/c art. 200, VI); promover programas de construção de moradias e
a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX, c/c art.
200, IV); combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização,
promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (art. 23, X, c/c arts. 3º,
III, IV, 170, VII)24; registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos
de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (art.
23, XI, c/c o art. 20, § 1º).
Além das relevantes atribuições comuns definidas constitucionalmente, a
Magna Carta, de forma inovatória, consagra um capítulo especial, referente à proteção
do meio ambiente (art. 225 ). O meio ambiente, ecologicamente equilibrado, constitui
direito de todos, sem exceção, considerado bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defende-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações. Para assegurar a
efetividade deste importante direito, incumbe ao Poder Público ( União, Estados.
Distrito Federal e Municípios): preservar e restaurar os processos ecológicos
essenciais, bem como prover o manejo ecológico das espécies e dos ecossistemas (
art. 225, § 1º, I ); preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do
País, bem como fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de
material genético ( § 1º, II ); definir, em todas as Unidades da Federação, espaços
territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos ( § 1º,III ); exigir,
na forma da lei, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade, para
instalação de obra e atividade potencialmente degradadora do meio ambiente ( § 1º,
IV ); controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos, e
substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (
Trata-se de oportuna norma constitucional aplicável à solução do grave problema da “forçada migração interna”, de
competência comum a todos os governos, no sentido de promover e oferecer condições mínimas (de trabalho, saúde, moradia,
alimento, educação, lazer) para a fixação da pessoa humana em sua zona urbana, de expansão urbana ou zona rural de origem,
visando a erradicar a pobreza e a marginalização das pessoas, notadamente nos grandes centros urbanos. Neste sentido, reporta se à nossa tese: “Força da migração interna e degradação sócio-ambiental das cidades brasileiras”, in Boletim de Direito
Administrativo, n.º 6/431, Editora NDI Ltda., São Paulo, 1988.
24
224
§ 1º, V ); promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização e o emprego pública para a preservação do meio ambiente ( § 1º, VI );
proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em
risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou a submetam os
animais a crueldade ( § 1º, VII ).
Dentre outras relevantes normas, evidenciam-se, ainda, aquelas que dispõe
sobre: a obrigatoriedade para recuperar o meio ambiente degradado, por parte
do explorador de recursos minerais ( art. 225, § 2º ).
Competência concorrente da União; dos Estados - Membros ( incluindo a dos
Municípios integrantes dos Estados e dos territórios sobre matérias específicas de
interesse local) e com o Distrito Federal. A competência legislativa concorrente das
Unidades da Federação é definida pelas expressas normas constitucionais, segundo
as quais: “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre”, dentre outras matérias enumeradas nos incisos I a XVI:
direito urbanístico, direito tributário ( art. 24, I ); florestas, caça, pesca, fauna,
conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio
ambiente e controle da poluição ( art. 24, VI ); proteção do patrimônio histórico,
cultural, artístico, turístico e paisagístico (art. 24, VIII ); educação, cultura, ensino
e desporto ( art. 24, IX ); previdência social, proteção e defesa da saúde ( art. 24,
XII).
Não obstante o silêncio da norma constitucional no tocante aos Municípios,
evidencia-se que a competência legislativa concorrente da União, com os
Estados e o Distrito Federal inclui implicitamente os Municípios, como
importante Unidade da Federação, autônoma e integrante da organização políticoadministrativa da República Federativa do Brasil ( C, art. 18), no tocante às
matérias notadamente urbanísticas, tributárias, ambientais, culturais,
sanitárias, matérias estas de seu inequívoco interesse local ( art. 24, I, VI, VII,
VIII, IX, XII). Assim é que, por força das expressas normas constitucionais,
observadas as normas gerais da Lei de competência da União, ou inexistindo a lei
federal, as normas gerais de competência estadual ( onde se encontra o Município
), a competência legislativa concorrente do Município, para legislar sobre
específicas matérias de seu evidente interesse local corrente, justifica-se
constitucionalmente, mediante interpretação científica em conjunto, das normas
do art. 24, I, VI, VII, VIII, IX, XII, combinadas com as normas notadamente dos
arts. 18 (autonomia); 23, I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XI ( competência
comum da União, dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios ); 29, 30, I,
III, V, VIII ( competência privativa do Município pata legislar sobre lei
Orgânica e matéria de interesse local ); 145 ( competência tributária das
Unidades da Federação ); 156 (competência tributária do Município ); 174 (
planejamento obrigatório do Poder Público ); 180 ( competência do Município para
política de desenvolvimento urbano plano diretor, ou seja, plano urbanístico geral
do Município ); 196 a 200 ( competência do Poder Público no setor de saúde); 215,
216 ( competência do Poder Público para a proteção do patrimônio cultural ); 225 (
meio ambiente - dever do Poder Público, União, Estados - membros, Distrito
Federal e Municípios - para defendê-lo e preservá-lo para as futuras e presentes
gerações.
Competência suplementar da Unidade da Federação ( Legislativa )
sobre matéria de seu mediato interesse. Por princípio de ordem geral referente à
225
autonomia constitucional típica do regime federativo, qualquer uma das Unidades
da Federação tem competência suplementar sobre determinada matéria de
competência privativa ou de competência concorrente de outra Unidade Federada,
dependendo das circunstâncias e das respectivas peculiaridades. Assim é que,
dentre as expressas e implícitas normas constitucionais definidoras da competência
suplementar, destacam-se as seguintes:
No tocante à competência suplementar dos Estados - membros, a
nova Constituição, definindo a competência privativa da União sobre assunto
imediato interesse de aplicação nacional, prevê a competência suplementar dos
Estados sobre questões específicas das matérias relacionadas no art. 22, de acordo
com autorização expressa em lei complementar federal (C., art. 22, parágrafo único
). Em relação à competência concorrente da União limitada ao estabelecimento de
normas gerais, por força da norma constitucional, tal competência não exclui a
competência suplementar dos Estados para legislar sobre todas as matérias
relacionadas no art. 24 ( § 2º ).
A competência suplementar do Distrito Federal se encontra
implicitamente prevista nas normas do art. 32, combinadas particularmente com as
normas dos arts. 22, parágrafo único, 24, § 2º e 32, § 1º, da Constituição
Federação, referentes às competências legislativas suplementares reservadas aos
Estados - membros e aos Municípios, em vinculação às competências privativa (
C., art. 22 ) e concorrente ( C., art. 24 ) da União.
Quanto à competência suplementar dos Municípios, está
expressamente prevista na norma constitucional, segundo a qual compete aos
Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber ( C., art.
30, II ). Pela abrangência da expressão “no que couber”, patente é a competência
do Município para legislar suplementarmente sobre matérias relacionadas com os
recursos ambientais e culturais, de qualquer natureza, diante de atividades ou
condutas comprometedoras da qualidade ambiental local. No tocante ao patrimônio
histórico - cultural local, compete ao Município promover a sua proteção,
observadas a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual ( C, art. 30, IX ).
Trata-se de patrimônio histórico - cultural que, apesar de localizado no território do
Município, se refere direta e imediatamente à história e à cultura do Brasil, em seu
todo, como, por exemplo, o Monumento do Ipiranga, ou com a história e a cultura
do Estado - membro. Assim, se trata de assunto histórico - cultural apenas de
ordem estritamente municipal, a competência, logicamente, para promover a sua
proteção é a privativa do próprio Município, diante do evidente interesse local, de
forma direta ou imediata. Se se trata de assunto histórico - cultural de interesse
comum de todas as Unidades da Federação, observadas as normas gerais da
cooperação estabelecidas pela lei complementar federal, a competência para a sua
proteção é a comum dos Municípios, da União, dos Estados e do Distritos Federal.
c) Princípios gerais da Atividade econômica a serem observados para a conciliação do
desenvolvimento sócio - econômico - urbanístico - agrícola com a proteção ambiental
(natural e cultural). Diante da degradação ambiental do momento, a Constituição,
objetivando a conciliação do desenvolvimento sócio econômico com a preservação
ambiental, estabelece relevantes princípios, visando a assegurar a todos existência
digna. Dentre os princípios relacionados com a ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, destacam-se os seguintes a serem
necessariamente observados: propriedade privada (art. 170, II ); função social da
226
propriedade, pública ou privada ( art. 170, III ); defesa do consumidor (art. 170, V );
defesa do meio ambiente ( art. 170, VI ); redução das desigualdades regionais sociais
( art. 170, VII, os arts. 3º, III, IV, 23, X ). O Estado, como agente normativo e
regulador da atividade econômica, exercerá, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo e de planejamento, sendo este obrigatório para o setor público
e indicativo para o setor privado ( art. 174 ).
Neste sentido, é oportuno salientar que todas as atividades
transformadoras dos recursos naturais e culturais se sujeitarão às normas de
proteção do meio ambiente, sendo sempre precedidas de adequado planejamento,
de prévio estudo de impacto ambiental e indispensável licenciamento,
obrigatorieades estas extensivas tanto às atividades agroindustriais, agropecuariárias,
pesqueiras e florestais, como às atividades exploradoras de recursos minerais em geral
( C, art. 225, § 2º ) e à atividade garimpeira de recursos minerais em cooperativas ( C.,
art. 175, § 3º ). A união, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e
incentivarão o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico ( art. 180 ),
evidentemente de forma compatível com a preservação do patrimônio ambiental, tanto
o natural como o cultural ( C, art. 170, VI ).
2. Normas jurídicas Legais e Regulamentares Integrantes do Direito Ambiental.
Considerando-se os textos e as normas integrantes da legislação ambiental brasileira
de período anterior à Lei geral ambiental n.º 6.938, de 31-08-81, e do período
posterior a partir da vigência deste diploma legal, em ordem cronológica dos textos
básicos, destacam-se, dentre outras regras jurídicas legais e regulamentares, direta e
indiretamente relacionadas com o assunto em consideração, as seguintes:
a) Legislação Ambiental do Período Anterior à Geral n.º 6.938, de 31-08-81:
Lei n.º 3.071, de 01-01-16 ( Código Civil ): arts. 15, 159 ( responsabilidade civil );
arts. 43 a 46 ( bens imóveis - solo com sua superfície, seus acessórios, suas
adjacências, o espaço aéreo, o subsolo ): arts. 554 a 591 ( direitos de vizinhança );
art. 646 ( copáscuo ); arts. 713 a 716 ( usufruto sobre bens móveis ou imóveis );
arts. 863 a 1571 ( direito das obrigações );
Decreto n.º 24.114, de 12-04-34 - Aprova Regulamento de Defesa Sanitária
Vegetal; Port. MARA n.º 148, de 15-06-92, sobre aprovação das Normas e
Procedimentos Quarentenários de Intercâmbio Internacional de Vegetais e Solo,
para pesquisa e outros fins científicos ( revoga a Port. n.º 1.111, de 07-12-78 );
Decreto n.º 24.634, de 12-04-34 ( Código de Águas ), com as alterações do Dec.
Lei n.º852, de 11-11-38;
Dec. Lei n.º 25, de 30-11-37 ( Patrimônio Cultural: Proteção do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional ), com as alterações, notadamente, da Lei n.º 3.924,
de 26-07-61 ( monumentos arqueológicos e pré - históricos ); Lei n.º 8.029, de 1204-90 ( Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural - IBPC ); Lei n.º 8.113, de 1212-90 ( natureza jurídica do IBPC ); Lei n.º 8.313, de 23-12-91 ( Programa
Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC - Dec. regulamentar n.º 455, de 26-0292, com as alterações posteriores ); Lei n.º 9.008, de 21-03-95, sobre a criação, na
estrutura do Ministério da Justiça, do Conselho Federal de que trata o art. 13 da
Lei n.º 7.347, de 24-07-85;
Dec. lei n.º 1985, de 29-10-40 ( Código de Minas ), com a nova redação dada
pelo Dec. lei n.º 227, de 28-02-67 ( Código de Mineração ) e com as alterações
das Leis n.º 7.085/82; n.º 8.982, de 24-1-95; n.º 9.055, de 1-6-95;
227
Dec. lei n.º 2.848, de 07-12-40 ( Código Penal ) , arts. 161-II, 163-III, 165, 250 a
259, 270 a 278 ). O anteprojeto do Código Penal - Parte Especial ( D. O.U. de 2810-87, p. 17.793 ) - define os crimes com as respectivas penas contra o meio
ambiente e o Patrimônio Cultural ( arts. 401 a 416, 417 a 419 );
Dec. lei n.º 3.365, de 21-06-41 ( desapropriação por utilidade pública ), Lei n.º
4.132, de 10-09-62 ( desapropriação por interesse social ), Lei complementar n.º
76, de 06-07-63 ( Procedimento contraditório especial, rito de sumário, para
processo, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural,
por interesse social, para fins de reforma agrária - Revoga o Dec. lei n.º 554,
de 25-04-69 );
Dec. lei n.º 8.938, de 26- 01-46 ( regime de combate à peste e das práticas à anti
e desratização em todo o País );
Lei n.º 4.504, de 30-11-64 ( Estatuto da Terra ), com as alterações posteriores,
particularmente: Lei n.º 4.947, de 06-04-66 ( normas de Direito Agrário - Dec.
regulamentar n.º 433, de 24-01-92 ); Lei n.º 5.969, de 11-12-73 ( institui o
Programa de Garantia da Atividade Agropecuária - PROAGRO - com as
alterações da Lei n.º 6.685, de 03-09-79, Lei n.º 7.890, de 23-11-89 - Dec. reg.
n.º 175, de 10-07-91; Circular do Banco Central n.º 145, de 19-03-92, sobre custo
de medição de lavouras e pastagens; Por. Intermin. n.º 242, de 20-03-92, sobre
Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentado da Agricultura; Port. MARA
n.º 159, de 19-06-92, sobre normas para licenciamento e renovação de licença
dos Antimicrobianos de Uso Veterinário, elaboradas pela Secretaria Nacional de
Defesa Agropecuária ); Lei n.º 6.225, de 14-07-75 ( planos de proteção do solo e
de combate - Dec. regulamentar n.º 77.775, de 08-06-76 ); Lei n.º 6.662, de 25-0679 ( Política Nacional de Irrigação ); Lei n.º 6.746 de10-12-79 ( Altera arts. 49 e
50 do Estatuto da Terra ), Lei n.º 6.751, de 10-12-79 ( Melhoria da Habitação de
trabalhadores agropecuários - Res. Do Banco Central n.º 1.898, de 29-01-92 sobre condições para financiamento para habitação rural ); Lei n.º 6.894, de 16-1280 ( inspeção e fiscalização de fertilizantes e outros destinados à agricultura );
Dec. lei n.º 2.431, de 12-05-88 ( altera arts. 27 e 28 do E. T. ); Lei. n.º 7.889, de
23-11-89 ( inspeção sanitária e industrial dos produtos de origem animal ); Lei n.º
8.171, de 17-01-91 ( Política Agrícola ); Lei n.º 8.174, de 30-01-91 ( Princípios da
Política Agrícola ); Lei n.º 8.177, de 01-03-91 ( Títulos da Dívida Agrária - art. 5º
- Dec. regulamentar n.º 578, de 24-06-92 ); Lei n.º 8.135, de 23-12-91 criação do
Serviço Nacional de Aprendizagem Rural - SENAR ); Lei n.º 8.344, de 27-12-91 (
altera dispositivos sobre a competência do Ministério da Agricultura e da Reforma
Agrária ); Lei n.º 8.490, de 19-11-92 ( sobre a organização da Presidência da
República e dos Ministérios, sobre a denominação do Ministério da Agricultura,
do Abastecimento e da Reforma Agrária, sobre a criação do Ministério do meio
Ambiente, dentre outras inovações, revogando a Lei n.º 8.028, de 12-04-90 ); Lei
n.º 8.629, de 25-02-93 ( sobre a regulamentação de dispositivos constitucionais
relativos à reforma agrária ); Lei n.º 8.661, de 02-06-93 ( sobre incentivos fiscais
para a capacitação tecnológica da indústria e da agropecuária );
Lei n.º 4.591, de 16-12-64 ( Condomínio em Edificações e as Incorporações
Imobiliárias );
Lei n.º 4.771, de 15-09-65 ( Código Florestal ), com as Alterações e
complementações notadamente: Lei n.º 7.754, de 14-04-89 ( proteção de
florestas nas nascentes dos rios ); Lei n.º7.875, de 13-11-89 ( Parques nacionais
brasileiros - Dec. regulamentar n.º 84.-17, de 21-09-79 ); Lei n.º 7.803, de 18-07-
228
89 ( altera dispositivos, define crime contra o meio ambiente e revoga as leis n.º
6.535, de 15-06-78, e n.º 7.511, de 07-07-86 );
Lei n.º 5.108, de 21-09-66 ( Código Nacional de Trânsito - Dec. regulamentar n.º
62.127, de 16-01-68, art. 65, I, II, III ); com as alterações posteriores: Lei n.º
6.731, de 04-12-79; Lei n.º 7.031, de 20-09-82; Lei n.º 8.052, de 20-06-90; Lei
8.102, de 10-12-90; Lei n.º 8.723, de 28-10-93 ( redução de poluentes por veículos
automotores );
Lei n.º 5.173, de 27-10-66 ( Plano de Valorização Econômica da Amazônia cria
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM ), com as
alterações posteriores: Lei n.º 5.174, de 27-10-66 ( incentivos fiscais em favor da
Região Amazônica ); Dec. lei n.º 2.304, de 21-11-86 ( Fundo de Investimento da
Amazônia - FINAM ); Dec. lei n.º 2.454, de 19-08-88( prorroga prazo de
incentivos fiscais até dezembro de 1993 ); Lei n.º 6.796, de 10-07-89 ( cria a
CORPAM); Lei n.º 7.797, de 10-07-89 ( cria o Fundo Nacional de Meio
Ambiente, com prioridade a projetos na área de atuação na Amazônia Legal );
Lei comp. n.º 67, de 13-06-91 ( composição do Conselho Deliberativo da
SUDAM );
Lei n.º 5.197, de 03-01-67 ( proteção à fauna ), com asa alterações especialmente
das Leis n.º 7.584/87; n.º 7.653/88 ( crimes contra a caça e a pesca predatória );
Lei n.º 9.111, de 10-10-95;
Dec. lei n.º 200, de 25-02-67 ( Reforma Administrativa ), com as alterações,
dentre outras: Dec. lei n.º 900, de 29-09-69; Lei n.º 8.666, de 21-06-93 ( sobre
normas para licitações e contratos da Administração Pública - Revoga o Dec. lei
n.º 2.300, de 21-11-86, o Dec. lei n.º 2.348, de 24-07-87, dentre outras normas ),
com a consolidação determinada pelo art. 3º da Lei n.º 8.883, de 08-06-94 CF, art.
37, XXI );
Dec. lei n.º 221, de 28-02-67 ( Código de Pesca ). Observa-se a extinção da
SUDEPE, cujas atribuições foram transferidas para o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ( Lei n.º 7.735, de 22-02-89 ). V.
Leis n.º 7.643/87; n.º 7.679/88, n.º 9.059, de 13-06-95;
Dec. lei n.º 289, de 28-02-67 ( criação do IBDF, hoje extinto, com atribuições
transferidas para o IBAMA - Lei n.º 7.732, de 14-02-89 ); Lei n.º 7.735/89.
Lei n.º 5.318, de 29-09-67 ( instituição da Política Nacional de Saneamento e
criação do Conselho nacional de Saneamento );
Dec. lei n.º 1.117, de 21-06-71 (sobre aerolevantamento no território Nacional);
Lei n.º 6.001, de 19-12-73 ( sobre Estatuto do Índio ); Decreto n.º 94.946, de 2309-87 ( regulamenta dispositivos do EI ); Decreto n.º 22, de 04-02-91 ( processo
administrativo de demarcação de terras indígenas ); Dec. n.º 24, de 04-02-91 (
sobre ações à proteção do meio ambiente em terras indígenas ); Dec. n.º 25, de 0402-91 ( sobre programas e projetos para assegurar a auto-sustentação dos povos
indígenas ); Dec. n.º26, de 04-02-91 ( sobre educação indígena no Brasil ); Dec.
n.º 27 de 04-02-91 ( confere à Comissão Especial instituída pelo Dec. n.º 99.971,
de 03-01-91, atribuições para propor a revisão do Estatuto do Índio e da legislação
correlata );
Lei n.º 6.189, de 16-12-74 ( competência da CNEN ), com as alterações da Lei
n.º 7.781, de 27-06-89; Lei n.º 6.453, de 17-10-77 ( responsabilidade civil por
danos nucleares e responsabilidade criminal por atos relacionados com atividades
nucleares ); Lei n.º 9.112, de 10-10-95; Res. n.º 13, de 04-09-96, de Ministério de
Minas e Energia, sobre inspeção de Serviços em Usinas Nucleoelétricas;
229
Dec. lei n.º 1.413, de 14-08-75 ( controle de poluição do meio ambiente
provocada por atividades industriais ), com as complementações da Lei n.º
6.803, de 02-07-80 ( diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas
críticas de poluição );
Lei n.º 6.383, de 07-12-76 ( sobre processo discriminatório de terras devolutas
da União );
Lei n.º 6.513, de 20-12-77 ( criação de áreas especiais e locais de interesse
turístico ); Lei n.º 8.181, de 28-03-91 ( sobre Política Nacional de Turismo - Dec.
regulamentar n.º 448, de 14-02-92 ); Lei n.º 8.623, de 28-01-93 ( sobre a
profissão de Guia de Turismo );
Lei n.º 6.576, de 30-09-78 ( proibição do abate de Açaizeiro em todo o território
nacional );
Lei n.º 6.607, de 07-12-78 ( declara o pau-brasil com árvore nacional e institui o
dia nacional do pau-brasil );
Lei n.º 6.766, de 19-12-79 ( parcelamento do solo urbano );
Lei n.º 6.902, de 27-04-81 ( criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção
Ambiental );
Decreto n.º 86.028, de 27-05-81 ( instituição em todo o território nacional da
Semana Nacional do Meio Ambiente );
b) Legislação ambiental a partir da publicação da Lei Geral n.º 6.938, de
31.08.81:
Lei n.º 6.938, de 31-08-81 ( estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente,
define seus objetivos básicos à melhoria e à recuperação da qualidade ambiental
propícia à vida ). Regulamentada pelo Dec. n.º 99.274, de 06-06-90, com as
alterações do Dec. n.º 1.523, de 13-06-95 ( revogação de Dec. n.º 88.351, de 0106-83, e alterações sucessivas. Observa-se que a Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente vem sendo objeto de complementações e alterações ajustáveis à nova
Constituição, destacando-se, dentre outras, as da Lei n.º 7.804, de 18-07-89, que,
com fundamento nos arts. 23, IV, VII, 225 da Constituição, altera, também,
disposições das Leis n.º 7.735, de 22-02-89, n.º 6.803, de 02-07-80, n.º 6.902, de
27-04-81; as da Lei n.º 8.490, de 19-11-92, que, dispondo sobre a organização da
Presidência da República e dos Ministérios, dentre outras alterações, cria o
Ministério do Meio Ambiente, com atribuições da extinta Secretária do Meio
Ambiente, da Presidência da República - SEMAM - PR, além de revogar
expressamente a Lei n.º 8.028, de 12-04-90 ); as da Lei n.º 8.746, de 09-12-93, que
altera o nome do Ministério do Meio Ambiente para Ministério do Meio Ambiente
e da Amazônia Legal. A Medida Provisória n.º1.038, de 27-06-95, convalidando
as Medidas Provisórias a partir da n.º 752, de 05-12-94, altera o referido
Ministério para “ Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da
Amazônia Legal” ( além de revogar a Lei n.º 8.490/92 );
Lei n.º 7.347, de 24-07-85 ( ação civil pública de responsabilidade por danos ao
meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico, paisagístico). Decreto n.º 407, de 27-12-91, regulamenta o
Fundo de Defesa de Direitos Difusos referentes às Leis n.º 7.347, de 24-07-85; n.º
7.853, de 24-10-89; n.º 8.078, de 11-09-90; n.º 8.158, de 08-01-91 ( revoga o Dec.
92.302, 16-01-86 );
Lei n.º 9.008, de 21-03-95, sobre, sobre criação, no Ministério da Justiça, do
Conselho Federal de que trata o art. 13 da Lei n.º 7.347, de 24-07-85;
230
Resolução 1, de 23-01-86, do CONAMA ( definição de impacto ambiental e
estabelecimento de critérios e diretrizes referentes ao estudo e conseqüente
avaliação de impacto ambiental, como um dos relevantes mecanismos da
Política Nacional do Meio Ambiente ). Dentre as Normas posteriores
complementares, destacam-se: Res. n.º 6, de 24-01-86; Res. n.º 6, de 16-09-87 CONAMA ( estudo de impacto ambiental para empreendimento de energia
elétrica ); Res. n.º 6, de 15-06-88 - CONAMA ( controle dos resíduos gerados ou
existentes no processo de licenciamento de atividades industriais ); Res. n.º 15, de
07-12-89 - CONAMA ( uso do metanol ). Diante da revogação das Resoluções do
CONAMA nele baseadas, devendo novas normas correlatas se ajustarem às
normas regulamentares do Decreto n.º 99.274, de 06-06-90, com as alterações do
Decreto n.º 99.355, de 27-06-90; Decreto n.º 122, de 17-05-91;
Lei n.º 7.661, de 16-05-88 ( Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro ). V.
Decretos n.º 96.660, de 06-09-88; n.º 97.686, de 25-04-89; n.º 99.213, de 18-0490; Lei 8.617, de 04-01-93 ( sobre o mar territorial, a zona contígua, a zona
econômica exclusiva e a plataforma continental brasileira );
Lei n.º 7.735, de 22-02-89 ( extinção da Secretária Especial do Meio Ambiente SEMA e da SUDEPE ), criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, como entidade autárquica de regime
especial, vinculada a secretaria do Meio Ambiente da Presidência da República.
Para o novo órgão foram conferidas as atribuições das extintas SEMA e
SUDEPE, bem como da Superintendência da Borracha e do IBDF - Lei n.º 7.732,
de 14-02-89 ). Dentre as normas aplicáveis, evidenciam-se as da lei n.º 8.490, de
19-11-92, que, dentre outras disposições, cria o Ministério do Meio Ambiente,
extingue a SEMAM/PR, revoga a Lei n.º 8.028, de 12-04-90;
Lei n.º 7.803, de 11-07-90 ( pesquisa, experimentação, produção, embalagem,
rotulagem, transporte, armazenamento de agrotóxicos e afins ),Decreto
regulamentar n.º 98.816, de 11-01-90; Decreto n.º 99.657, de 26-10-90; Lei n.º
9.294, de 15-07-96, sobre restrições a propaganda de produtos fumígeros, bebidas
alcoólicas, defensivos agrícolas ( Dec. regulamentar n.º 2.018, de 01-10-96; Port.
Normativa n.º 84, de 15-10-96 - IBAMA, sobre procedimentos a serem adotados
para efeito de avaliação do potencial de periculosidade ambiental de produtos
químicos, considerados agrotóxicos, afins e seus componentes );
Lei n.º 7.990, de 28-12-89 ( institui para os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, compensação financeira pelo resultado de exploração de petróleo
ao gás natural, de recursos hídricos, de recursos minerais em seus respectivos
territórios, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica
exclusiva ), com as alterações da Lei n.º 8.001, de 13-03-90 ( Dec. regulamentar
n.º 1, de 11-01-91 );
Resolução n.º 2, de 08-03-90 - CONAMA ( institui, em caráter nacional, o
Programa Nacional de Educação e Controle da Poluição Sonora - Silêncio ).
Lei n.º 8.078, de 11-09-90 ( Código do Consumidor - Proteção do Consumidor );
com as alterações das Leis n.º 8.656, de 21-n.º 806, de 24-04-93 - reorganiza o
Fundo Nacional de Saúde );
Decreto 99.540, de 21-09-90 ( Institui Comissão Coordenadora do Zoneamento
Ecológico - Econômico do Território nacional ), com as alterações do Dec. n.º
237, de 24-10-91;
Decreto n.º99.556, de 01-10-90 ( sobre a proteção da cavidades naturais
subterrâneas existentes no Território Nacional );
231
Lei 8.172, de 18-01-91 ( restabelece o Fundo Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico ); Dec. n.º 99.981, de 09-01-91 ( autoriza a Secretaria de
Ciência e Tecnologia a manter programa de cooperação com instituições
públicas ou privadas ).
Lei n.º 8.429, de 02-06-92, sobre a responsabilidade de servidores públicos em
geral por atos ilícitos e prejudiciais ao patrimônio público, incluído o patrimônio
ambiental ( natural e cultural );
Port. Normativa IBAMA n.º 77, de 13-07-92, sobre criação de Núcleos de
Educação Ambiental - NEA’s, nas Superintendências Estaduais do IBAMA.
Resolução CONTRAN n.º 761, de 05-08-92, sobre curso de condutores de
veículos que transportam cargas com produtos perigosos.
Decreto n.º 750, de 10-02-93 ( sobre o corte, a exploração e a supressão de
vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata
Atlântica, com a revogação do Dec. n.º 99.547, de 25-09-90 ).
Lei n.º 8.657, de 21-05-93 ( acrescenta §§ ao art. 27 da Lei n.º 6.662, de 25-06-79,
sobre a Política Nacional de Irrigação );
Lei n.º 8.851, de 31-01-94 ( sobre o Plano Diretor para o desenvolvimento do Vale
do Rio São Francisco - PLANVASF;
Lei n.º 8.874, de 29-04-94 ( sobre empreendimentos industriais e agrícolas em
áreas da SUDAM e SUDENE );
Lei n.º 8.918, de 14-07-94 ( sobre a padronização, a classificação, o registro, a
inspeção, a produção e a fiscalização de bebidas );
Lei n.º 9.005, de 13-03-95 ( sobre a obrigatoriedade da iodação do sal destinado ao
consumo humano );
Lei n.º 9.008, de 21-03-95, sobre a criação, na estrutura do Ministério da Justiça,
do Conselho Federal de que trata o art. 13 da Lei n.º 7.347, de 24-07-85;
Lei n.º 8.987, de 13-02-95 ( sobre o regime de concessão e permissão da prestação
de serviços públicos previstos no art. 175 da CF ). Com as alterações da Lei n.º
9.074, de 07-07-95;
Lei n.º 9.055, de 01-06-95 ( sobre a extração, industrialização, utilização,
comercialização e transporte de asbesto/amianto e produtos similares, bem como
fibras naturais e artificiais de qualquer origem ).
Observa-se o grande número de atos normativos ( Decretos, Portarias,
Resoluções, Circulares ) relacionados com a proteção do patrimônio ambiental,
tanto natural como cultural.
III. DEVER E RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DA
COLETIVIDADE PARA CUMPRIR, REFLETIR, ADEQUAR E
ATUALIZAR AS NORMAS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO
CULTURAL BRASILEIRO INTEGRANTES DO DIREITO POSITIVO.
Conforme já se demonstrou no Capitulo II desta palestra, por força das
normas jurídicas constitucionais e legais vigentes, expressas são as competências de
todas as Unidades da Federação em matéria ambiental ( natural e cultural, do local do
trabalho ). Consequentemente, expressos são os deveres e as responsabilidades
impostos Administração Pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados - membros, do Distrito Federal e dos Municípios, para
o desempenho, de forma responsável e eficaz, de suas atribuições, no interesse
público ( C., art. 37 ). Em matéria ambiental tais deveres e respondabilidades, além de
232
inerentes aos Poderes Públicos, estendem-se à coletividade ( pessoas físicas ou
jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos ) por determinação
constitucional (C., art. 225 ). O descumprimento das vigentes imposições
constitucionais e legais sujeitará a autoridade, o servidor ou qualquer agente
competente, ou qualquer pessoa física ou jurídica infratora às responsabilidades e
respetivas sanções política, administrativa civil ou criminal aplicáveis ao caso
concreto ( C., arts., 37 §§ 4º, 5º, 6º, 216, § 4º, 225, § 3º).
IV.CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES
Em breves considerações finais, não obstante a consagração constitucional da
Política Ambiental ( C, art. 225 ) de forma harmônica com a Política Agrícola ( C, art.
187 ), a Política Urbanística ( C, art.182 ), a Política do Patrimônio Cultural ( C, art.
216 ) e a existência de grande número de normas jurídicas protecionais do patrimônio
ambiental ( natural e cultural ), adverte-se que, na prática, pela notoriedade dos fatos,
patente é a inaplicação ou aplicação inadequada e flagrante é a violação de tais
normas, em face do inquietante agravamento da degradação dos recursos ambientais
de forma geral. Bem como da destruição ou descaracterização dos bens de valor
cultural, tanto no âmbito nacional, como nas esferas estaduais e municipais.
Sem qualquer pretensão de esgotar a relevante matéria sobre a legislação
ambiental no Brasil, notória e reconhecidamente vasta, complexa, interdependente,
conclui-se que enorme é o desafio da problemática ambiental, tanto local, estadual e
nacional como internacional. Neste sentido, inadiável é a efetiva ação de todas as
autoridades e organizações ( governamentais e não governamentais ), dos técnicos,
dos juristas, enfim. Dos especialistas de todos os ramos da Ciência, da imprensa e da
comunidade em geral, em todos os Estados e Povos, para as indispensáveis medidas
informativas, orientadoras, educacionais, junto aos respectivos governos e
comunidades notadamente locais, essenciais à formação de sua sólida consciência
ambiental sobre a permanente necessidade de reflexões, de pesquisas científico tecnológico - jurídicas, de participação, de cooperação, de solidariedade e de
coresponsabilidade autenticamente recíproca e universal. Evidentemente, as novas
exigências sociais exigem permanentes medidas indispensáveis à conciliação do
desenvolvimento econômico - urbanístico - agrícola com a proteção do patrimônio
ambiental local, estadual, nacional e global.
Neste sentido, visando a facilitar a interpretação, a aplicação, a reflexão, a
adequação e a atualização das normas notadamente de proteção ao Patrimônio
Cultural Brasileiro, com base no Direito Positivo, na experiência e nas orientações
doutrinárias
e
jurisprudenciais,
tornam-se
oportunas
as
seguintes
RECOMENDAÇÕES:
1. Prévio levantamento ecológico do território nacional, estadual, distrital ou
municipal e conseqüente elaboração de inventário dos recursos ambientais
(especialmente águas superficiais e subterrâneas, solo, subsolo, espécies animais e
vegetais), visando a reprimir os atos lesivos, a restaurar ou a recuperar as áreas
degradadas (notadamente por irracionais desmatamentos), a prevenir novos atos
lesivos e a proteger o patrimônio florestal - ambiental correlato.
2. Prévio levantamento do patrimônio cultural (artístico, histórico, monumental,
paisagístico, turístico, arqueológico), para as medidas relacionadas com a sua
valorização, restauração, defesa e proteção.
233
3. Urgente levantamento de todas as áreas públicas invadidas ilegalmente,
evidenciando-se que os imóveis públicos, revestidos ou não de florestas ou
vegetação de qualquer natureza, não serão adquiridos por usucapião (C., art. 183,
no tocante às áreas urbanas; art. 191, no tocante às áreas rurais).
4. Urgente elaboração de cadastro de todas as pessoas, físicas ou jurídicas (estas de
direito público ou de direito privado), cujas atividades se relacionam, direta ou
indiretamente, com o consumo de matéria - prima florestal ou vegetal, para as
oportunas medidas sobre as obrigações relativas à indispensável reposição
florestal.
5. Indispensabilidade, diante de pretensões a obras ou atividades efetiva ou
potencialmente degradadoras do patrimônio florestal e ambiental, do competente
estudo de impacto ambiental, com ampla publicidade, no sentido de facilitar a
informação e a participação da comunidade interessada e idônea ao oferecimento
de alternativas conciliatórias do desenvolvimento sócio - econômico - agrícola urbanístico com a preservação das florestas e das demais formas de vegetação e
conseqüente preservação ambiental, como imposição obrigatória diante da
natureza essencialmente preventiva tanto da Política Florestal como Política
Ambiental (C., art. 225, § 1º, IV).
6. Necessidade de aplicar-se o instrumento do estudo e da respectiva avaliação de
impacto ambiental não somente a novos projetos de atividades em vias de
licenciamento inicial, mas também a todas as atividades que,
legal e
regularmente autorizadas, ocasionam comprovados perigos e danos ao meio
ambiente e à saúde pública.
7. Conveniência da revisão adequada dos critérios e das diretrizes gerais, de forma
clara e eficaz, para a definição expressa de efetivo processo de informação
extensiva ao público e às pessoas legalmente habilitadas e interessadas (naturais ou
jurídicas), para conhecimento. Em todas as fases, do estudo de impacto ambiental
sobre projetos de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, através de meios
de comunicação de massa (televisão, rádio, imprensa em geral, publicidade
mediante a afixação de anúncios em locais de fácil visibilidade), além do
tradicional e restrito processo de comunicação pela imprensa oficial, com a
previsão de prazo razoável e compatível com a complexidade da matéria e as
peculiaridades locais. O processo de informação deverá compreender
esclarecimentos sobre as vantagens e desvantagens da atividade, seu custo, seus
efeitos diretos e indiretos, principais ou secundários, permanentes ou temporários,
positivos ou negativos, cumulativos a breve, médio ou a longo prazo contra o meio
ambiente e a saúde da população, os órgãos e os locais para os esclarecimentos
oportunos, para as reais participações, contribuições e alternativas ajustáveis ao
equilíbrio sócio econômico - urbanístico - ambiental - cultural (Agenda 21, cap.
40).
8. Conveniência do reexame das normas regulamentares do estudo de impacto
ambiental, no sentido de suprimir a exceção de publicidade referente ao “sigilo
industrial”, evidentemente conflitante com os objetivos da Política Nacional do
Meio Ambiente e com as expressas normas constitucionais e legais. Assim, para a
compatibilização e fiel execução das normas constitucionais (C., art. 225, §§ 1º,
IV, 2º ) e legais (lei n.º 6.938/81, arts. 8º, II, 9º III), impõe-se a supressão das
expressões “Respeitada a matéria de sigilo industrial ,assim expressamente
caracterizada a pedido do interessado” e “Resguardado o sigilo industrial”,
234
constantes, respectivamente, das normas do Decreto n.º 99.274, de 06-06-90 (art.
17, §§ 3º, 4º ), bem como a expressão “Respeitado o sigilo industrial, assim
solicitado e demonstrado pelo interessado”, objeto do art. 11 da resolução
CONAMA n.º 1, de 23-01-86.
9. Conveniência, junto aos Poderes Públicos competentes, para a expedição de
normas específicas sobre o estudo e a respectiva avaliação de impacto ambiental
de projetos, planos ou programas referentes a instalações nucleares em geral e a
depósitos do respectivo lixo atômico ou de outros rejeitos químicos e altamente
perigosos, com expressas exigências e cautelas, notadamente sobre a localização,
aspectos construtivos e de efetiva segurança diante da comprovada falibilidade da
indústria nuclear e da crise de sua confiabilidade pelos inerentes e temíveis riscos.
10.Necessidade, junto aos Poderes Públicos competentes, de sérias medias
relacionadas com permanente análise de riscos inerentes à produção, ao uso, à
comercialização e ao emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem
iminente risco, particularmente no setor agrícola e alimentar, para a vida, a
qualidade de vida e o meio ambiente (C., art. 225, § 1º, V).
11.Necessidade de coordenação integrada da ação governamental nos diferentes
níveis, para a execução harmônica da Política Nacional do Meio Ambiente. É
dever do Poder Público, juntamente com o setor privado, em matéria de meio
ambiente, agir com prudência, diligência, perícia, espírito científico, tornando-se
cada vez mais necessária e indispensável a ação conjunta e integrada de
intervenções coerentes, favoráveis e compatíveis à conciliação do desenvolvimento
das atividades sócio - econômico - urbanísticas com a qualidade ambiental
nacional, estadual, distrital e municipal.
12.Oportuna apuração, pelos meios competentes, da responsabilidade da
Administração Pública, solidariamente com os agentes públicos ou privados e com
servidores coniventes, pelos danos causados ao meio ambiente e à saúde pública,
quer em decorrência da negligência, imprudência, imperícia ou da aprovação de
projetos em defesa ambiental tendenciosamente aparente ou simulada, quer em
decorrência de aceitação do RIMA com base em estudo de impacto ambiental
insuficiente ou demasiadamente sumario e senhas básicas recomendações sobre as
mediadas necessárias à preservação ambiental.
13.Necessidade, mais que nunca nos dias de hoje, do efetivo exercício do direito de
representação, de denuncia, de petição, de ação ou de defesa, por parte de
qualquer pessoa física ou jurídica interessada, provocando o controle judicial,
diante da falta ou insuficiência de estudo de impacto ambiental de atividades
efetiva ou potencialmente poluidora, eminentemente prejudiciais ao patrimônio
ambiental, tanto natural ( ar, águas , solo, subsolo, espécies animais e vegetais,
alimentos e bebidas em geral ) como o cultural ( bens de valor histórico, artístico,
turístico, paisagístico ), à saúde pública, ao consumidor e aos interesses sócios econômicos tanto da coletividade como da nação, com base nas normas
constitucionais e legais vigentes.
14.Criação de comissão Multidisciplinar de Controle dos Estudos de Impacto
Ambiental, composta de profissionais legalmente habilitados dos diversos ramos
da ciência, independentes e representantes de órgãos ou entidades idôneos e
diretamente interessados pelas questões sócio - econômico - urbanístico
ambientais, como o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil, as
235
Universidades Públicas e Privadas, a Sociedade Brasileira para O Progresso da
Ciência, a Sociedade Brasileira de Direito do Meio Ambiente, dentre outras
entidades, para estudos de impactos e respectivos relatórios sobre projetos de
atividades pela sua complexidade, pelas repercussões práticas, pelos consideráveis
e iminentes riscos sócio - econômico - ambientais.
15.Conveniência, junto aos Poderes Públicos competentes, de urgente revisão e
superado Código de Águas (Decreto 24.643, de 10-10-34), com a expressa
revogação particularmente de seu art. 111 que, delinqüentemente, permite a
poluição das águas nas explorações agrícolas e industriais, o que além de constituir
crime contra a saúde pública, é incompatível tanto com as normas constitucionais e
legais como com as circunstâncias ambientais e sanitárias do momento.
16.Necessidade da intensificação do intercâmbio nacional e internacional de pesquisas
científicas e tecnológicas, de informações e de experiências entre pessoas de
interesse conflitantes nas questões de ordem ambiental, visando à sensibilização e à
conciliação entre o desenvolvimento sócio - econômico e a preservação do meio
ambiente.
17.Necessidade de criteriosa seleção de profissionais idôneos e sensibilizados às
questões ambientais, para a integração de órgãos de controle dotados de
competência técnico - científico - jurídica em matéria ambiental e cultural.
18.Promoção da harmonização das legislações (federais, estaduais, municipais) em
matérias de meio ambiente, sem prejuízo de normas especiais ajustáveis às zonas
de alta sensibilidade ou risco ecológico e às peculiaridades locais e regionais.
Neste sentido, todo esforço deve ser dispensado para que as disposições
legislativas e regulamentares sejam redigidas de forma clara e unívoca, evitando-se
conceitos jurídicos vagos, obscuros que, além de prejudicarem a compreensão e a
adequada aplicação do texto, ocasionam enorme esforço interpretativo aos
advogados, juristas, tribunais e demais profissionais interessados.
19.Conveniência da substituição da agricultura predatória, com todos os seus
prejudiciais aspectos, por novos métodos e novas técnicas que possam contribuir
para a eliminação ou a redução da contaminação dos alimentos em geral e do meio
ambiente (natural e cultural - Agenda 21, Cap. 14).
20.Adoção de efetiva política educacional e de conscientização de todos. A
experi6encia de todos os povos tem demonstrado e vem demonstrando que
somente por um processo de orientações, de instrução e de informação permanente
se atinge grau satisfatório de sensibilidade ou de cultura, capaz de conciliar os
interesses privados, sociais e públicos, capaz de respeitar e proteger tanto os
recursos naturais, como os bens culturais em geral, no interesse da saúde e do bem
- estar individual e da coletividade. Evidentemente, a educação mediante processo
contínuo de instrução, formação, pesquisa científica e tecnológica,
especialização e ação, em todos os níveis escolares, profissionais e sociais,
constitui o pressuposto básico, portanto indispensável à sensibilização de todos,
para o justo e imprescindível equilíbrio, no real interesse e bem - estar tanto da
coletividade presente como das gerações futuras.
236
ASPECTOS JURÍDICOS DA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO
CULTURAL ARQUEOLÓGICO E PALEONTOLÓGICO
José Eduardo Ramos Rodrigues
O artigo 216, inciso X, da Constituição Federal, também considera
integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro, os sítios de valor arqueológico e
paleontológico, cujas características específicas estão a exigir um regime jurídico de
regulamentação diferenciado.
Os sítios arqueológicos, pelo seu próprio nome, são aqueles de interesse para
a Arqueologia, ciência que busca descobrir, pesquisar e reconstituir, pelos seus restos,
culturas e civilizações hoje não mais existentes ou bastante alteradas. A Arqueologia
pode ser dividida em pré-histórica, cujo campo abrange todo o período em que o
homem viveu antes da descoberta da escrita e histórica, que atinge a fase posterior à
invenção da escrita.
No caso brasileiro, tendo em vista suas peculiaridades culturais, os sítios préhistóricos referem-se às civilizações indígenas pré-cabralinas, ou seja, aquelas
anteriores à descoberta do Brasil pelos portugueses. Dentre estes sítios, avultam,
especialmente, os denominados sambaquis, situados na costa, ora em lagoas ou rios
do litoral, formados por acúmulos de conchas, restos de cozinha, enterramentos de
mortos e outros artefatos amontoados por povos indígenas que habitavam a área
litorânea em épocas pré-históricas (pré-cabralinas).
Tais sítios constituem-se em patrimônio cultural dos mais relevantes,
apresentando características “sui generis”, já que sua fruição exige desmonte para
estudo. Mesmo um desmonte cuidadoso, cientificamente programado e efetuado com
tecnologia adequada, por profissionais habilitados, não deixará de provocar o seu
perecimento, pelo menos parcial. Portanto, o Poder Público deve exercer rigoroso
controle nas explorações arqueológicas dos sambaquis, já que trabalhos mal
realizados, mesmo bem intencionados, podem implicar na perda inútil e definitiva de
importantes bens culturais. Por sua vez, o tombamento, com seu regime tutelar
protetivo, que visa a preservar um bem cultural o mais íntegro possível, para a
presente e futuras gerações, em princípio, não é instrumento adequado à preservação
de sambaquis.
Assim, os sambaquis e sítios pré-históricos assemelhados receberam
tratamento legal diferenciado através da Lei Federal 3.924 de 26.07.61, além de terem
sido constitucionalmente declarados como bens da União pelo artigo 20 da Carta
Magna vigente. O teor da Lei 3924/61 consiste essencialmente no controle das
escavações arqueológicas e no registro dos respectivos sítios.
Destarte, pela Lei 3924, ficam sob guarda da União (artigo 1º):
a) as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem
testemunhos da cultura dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis,
montes artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e
quaisquer outras não especificadas aqui, mas de significado idêntico, a juízo da
autoridade competente;
237
b) os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos
paleoameríndios, tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha;
c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado
ou de aldeamento, “estações”e “cerâmicos”, nos quais se encontram vestígios
humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico;
d) as inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios e outros
vestígios de atividade de paleoameríndios.
O mesmo diploma legal proibiu em todo o território nacional o
aproveitamento econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas
arqueológicas ou pré-históricas, mencionadas no artigo 2º supra-referido, antes de
devidamente pesquisadas (artigo 3º), equiparando tais atos a crimes contra o
Patrimônio Nacional (artigo 5º).
Estabeleceu ainda o direito do particular de realizar escavações para fins
arqueológicos em terras de domínio público ou privado, mediante prévia autorização
do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e expedição de
portaria autorizativa pelo Ministério da Cultura, a ser transcrita em livro próprio pelo
mesmo IPHAN (artigos 8º a 10), que se tornou o órgão administrativo responsável
pela fiscalização e cadastramento dos sítios arqueológicos ou pré-históricos em todo o
país (artigo 11). Caso o imóvel seja de domínio particular, o proprietário deve
consentir as escavações por escrito (artigo 11, “caput”).
Quando as escavações arqueológicas ou pré-históricas forem efetuadas pelo
Poder Público, em terrenos particulares, haverá necessidade de autorização federal
(artigo 13). Estas podem ocorrer, na falta de acordo amigável com o proprietário,
mediante ocupação temporária indenizável (artigo 36 do Decreto-Lei 3.365/41), pelo
tempo necessário à execução dos estudos (artigo 13, parágrafo único), ou, em casos
especiais e em face do significado excepcional da jazida, através de desapropriação
(artigo 15). Por outro lado, as escavações realizadas por órgãos públicos, sejam da
União, Estados, Municípios ou Distrito Federal, deverão, em qualquer circunstância,
comunicar previamente suas escavações ao IPHAN para fins de registro, mesmo
quando realizadas em áreas de seu respectivo domínio (artigo 16).
O grande problema da Lei 3.924/61, é que ela equivocadamente trata sítios
arqueológicos e pré-históricos como sinônimos, ignorando a existência de bens
arqueológicos históricos. Pela simples leitura, observa-se que o texto legal aplica-se
praticamente apenas aos sítios que necessitam de escavação, especialmente os
sambaquis. Tal preocupação é explicável pela destruição quase sistemática que os
sambaquis vêm sofrendo através da história, para aproveitamento econômico do
calcário das conchas na construção civil. Já nos tempos coloniais, as cidades
brasileiras do litoral, suas igrejas e construções mais expressivas, eram construídas de
pedra e cal, esta última preparada com calcário dos sambaquis. Sem dúvida, esta
situação agravou-se muito, porém não se justifica a omissão do legislador quanto a
outros sítios também de relevante interesse arqueológico-cultural. Por exemplo, as
inscrições rupestres, mencionadas na letra d do artigo 2º da lei, quando situadas a céu
aberto, estão a necessitar outro tipo de providências preservacionistas, na medida em
que é desnecessário escavá-las para estudo. Seria o caso de se lhes aplicar o clássico
tombamento. Aliás, já existe o precedente do tombamento pelo IPHAN das inscrições
pré-históricas do rio Ingá na Paraíba.
238
Quanto aos bens arqueológicos históricos, posteriores ao descobrimento
cabralino, são eles tratados apenas de passagem, quando a Lei 3.924 menciona a
descoberta fortuita a ser obrigatoriamente comunicada ao IPHAN, não apenas quando
se tratar de objetos de caráter pré-histórico, mas também de importância história,
artística ou numismática (artigo 18). Estes mesmos bens também dependem de licença
do órgão preservacionista federal quando houver trasnsferência para o exterior (artigo
20). Entretanto, não há qualquer regra quanto à escavação, licença ou registro em se
tratando de arqueologia histórica.
Parece-nos que quando os trabalhos arqueológico-históricos ocorrerem em
imóvel ou sítio tombado, far-se-á necessária a autorização do órgão que efetuou o
tombamento. Quando se tratar de bem sobre o qual não recaia nenhum regime
protetivo especial, na ausência de legislação federal a respeito, deveriam os Estados,
Municípios e Distrito Federal legislar sobre o assunto, exercendo sua competência
concorrente e supletiva no que tange à proteção do patrimônio cultural (artigo 24,
inciso VII, c.c. artigo 30, inciso IX da Constituição Federal). Havendo superveniência
de lei federal sobre normas gerais, esta suspenderá a eficácia da lei estadual,
municipal ou distrital no que lhe for contrário (artigo 24, parágrafos 2º e 4º c.c. artigo
30, inciso II da Carta Magna).
Por sua vez, causa espécie a expedição da Portaria Interministerial nº 69 de
28.01.89, conjunta dos Ministérios da Marinha e da Cultura, que aprova normas
comuns sobre a pesquisa, exploração, remoção e demolição de coisas ou bens de valor
artístico, de interesse histórico ou arqueológico, afundados, submersos, encalhados e
perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terrenos de marinha e seus acrescidos e
em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna de maré.
Esta portaria atribui a competência de fiscalização e registro desse tipo de
bem arqueológico exclusivamente ao Ministério da Marinha. Embora o Ministério da
Cultura seja um dos signatários da portaria, esta ignora completamente a existência do
IPHAN, órgão integrante de sua estrutura, especialmente quanto à sua competência a
respeito de descobertas fortuitas definida em lei (art. 18 da Lei 3924/61).
Por outro lado, alijando completamente o Conselho Consultivo do IPHAN,
designa como responsável pela definição do valor cultural dos bens resgatados uma
comissão interministerial. Esta é designada especificamente, para cada exploração
científica, sem caráter permanente, exigindo-se de seus integrantes apenas habilitação
em arqueologia, história da arte e áreas afins, sem necessidade de notório
conhecimento ou especialização, como seria de se desejar, sem definir os critérios de
nomeação. A portaria informa apenas, de forma lacônica, que três membros serão
indicados pelo Ministério da Cultura e três pelo Ministério da Marinha, cabendo a um
destes últimos a presidência do colegiado. Portanto, da própria leitura observa-se a
precariedade e a ilegalidade das disposições contidas na referida portaria.
A situação do patrimônio paleontológico, isto é , aquele integrado pelos
fósseis, que são restos de vestígios de seres vivos contidos em rochas sedimentares,
diante do ordenamento jurídico, chega a ser estarrecedora.
A única norma existente a respeito é o Decreto-Lei nº 4146 de 4/3/42 que
declara, em seu único artigo e parágrafo, que os depósitos fosslíferos são propriedade
da nação, sendo necessário para sua exploração, autorização prévia do DNPM
(Departamento Nacional de Produção Mineral), à época integrante do Ministério da
Agricultura e hoje do Ministério de Indústria e Comércio, a quem cabe a fiscalização.
239
As explorações efetuadas por órgãos públicos independem de autorização ou
fiscalização, cabendo-lhes apenas efetuar comunicação prévia ao DNPM. E nada
mais.
Esta regulamentação quase inexistente é que torna compreensível o fato de se
poder adquirir livremente quantos e quais fósseis se quiser em feiras espalhadas por
milhares de praças pelo Brasil afora. O nosso patrimônio fosslífero está sendo
depredado completamente enquanto o legislador designa um órgão licenciador de
atividades minerárias como responsável pela sua proteção, ou melhor, pelo seu
abandono.
Finalmente, talvez a única situação em que os bens arqueológicos e
paleontológicos não criam polêmicas jurídicas, é quando se encontram na forma de
coleção, cuja proteção pode ser efetuada pelo tombamento , já havendo diversos
precedentes a respeito.
Assim sendo, urge elaborar-se nova legislação para proteger adequadamente
o patrimônio cultural arqueológico- histórico e paleontológico, pois a continuar o
ordenamento atual, em breve não haverá mais o que preservar.
BIBLIOGRAFIA:
Bens Móveis e Imóveis Inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Ministério da Cultura/IPHAN. Rio de Janeiro, 4ª Ed.,
1994.
240
LICENCIAMENTO AMBIENTAL E OS BENS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO
CULTURAL BRASILEIRO
Carlos Eduardo Caldarelli
A elaboração de estudo prévio de impacto ambiental e do respectivo relatório
é condição necessária para o licenciamento de obra ou atividade potencialmente
causadora de significativa degradação do meio ambiente. 25
Para a realização de ambos, estudo e relatório, é preciso constituir-se equipe
multidisciplinar habilitada que, dentre um mínimo de atividades técnicas obrigatórias,
deve considerar o meio sócio-econômico das diversas alternativas locacionais do
projeto em estudo, “destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e
culturais da comunidade”.26
O que se observa, examinando-se os estudos de impacto ambiental que se
produzem no País, é que, na sua elaboração e, portanto, na prática do licenciamento
ambiental, dentre todas as categorias de bens integrantes do patrimônio cultural
brasileiro, apenas os bens materiais passíveis de subsumir-se nas rubricas eleitas pelo
texto acima citado têm sido, em geral, objeto de alguma preocupação, ignorando-se
todos os outros.
Ainda assim, mesmo aqueles bens, freqüentemente, só são lembrados quando
gravados por tombamento27 ou protegidos por legislação específica, como é o caso
dos “monumentos arqueológicos e pré-históricos”.28
Em face disto, a problemática a que o tema proposto conduz prende-se às
questões suscitadas pela existência de outros bens que se incluem na universalidade
que é o patrimônio cultural brasileiro, além dos que têm sido comumente
considerados nos estudos prévios de impacto ambiental, aos quais, portanto, deve-se
dispensar idêntico tratamento.
No entanto, colocar essa problemática implica, antes, discutir e eleger
critérios que permitam decidir, em cada caso concreto, acerca de quais são, afinal, os
bens que se devem considerar como incluídos no patrimônio cultural brasileiro, tendo
em vista o que dispõem sobre o assunto a Constituição Federal e as normas
infraconstitucionais vigentes.
Esta última questão torna-se especialmente polêmica, examinando-se o que
dispõe sobre o assunto o D.L. nº 25, de 30.11.1937, à luz da sobrevinda Constituição
Federal de 1988.
Deve-se a Jorge Miranda, eminente constitucionalista português
contemporâneo, a proposta de ampliar-se a idéia de que as constituições
supervenientes “recebem” as normas infraconstitucionais anteriores a elas, pela de
estas últimas normas serem “novadas” pelas ordens constitucionais que lhes são
posteriores.
25
C.F., art. 225, § 1º, IV; L. nº 6.938, de 31.08.1981, art. 9º, III; D. nº 99.274, de
06.06.1990, art. 17, §§ 1º, 2º e 3º e Res. CONAMA 001, de 23.01.1986, basicamente.
26
Res. CONAMA 001, de 23.01.1986, art. 6º, I, c.
27
C.F., art. 216, §§ 1º e 5º; D.L. nº 25, de 30.11.1937; D.L. nº 3.866, de 29.11.1941,
basicamente.
28
L. nº 3.924, de 26.07.1961.
241
O conceito de recepção foi lapidarmente exposto por Norberto Bobbio, da
seguinte forma: “A recepção é um ato jurídico com o qual o ordenamento acolhe e
torna suas as normas de outro ordenamento, onde tais normas permanecem
materialmente iguais, mas não são mais as mesmas com respeito à forma”. 29
Laborando sobre as consequências jurídicas do fenômeno da recepção e,
assim, aprofundando e enriquecendo o entendimento que se tinha dele, Jorge Miranda
delineou o conceito de “novação”, através da formulação dos seguintes corolários:
“As normas legais e regulamentares vigentes à data da entrada em vigor da nova
Constituição têm de ser reinterpretadas em face desta e apenas subsistem se
conformes com as suas normas e os seus princípios” e, adiante: “As normas anteriores
contrárias à Constituição, mesmo que contrárias às normas programáticas, não podem
subsistir - seja qual for o modo de interpretar o fenómeno da contradição”. 30
Entre nós, jurisprudência mais do que cinqüentenária do STF tem entendido
que, dado que legislador algum pode infringir constituição futura, a constituição
superveniente não torna inconstitucionais as normas anteriores que com ela conflitam,
mas revoga-as31, sendo razoável, portanto, entender-se, aqui, que o nosso particular
“modo de interpretar o fenómeno da contradição”, referido por Jorge Miranda,
resolve-se, primordialmente, pela pura e simples revogação, o que, entre nós, tem-se
operado segundo o que dispõe o artigo 2º e parágrafos, do D.L. nº 4.657, de
04.09.1942, a conhecida Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. 32
Isto posto, examinemos o D.L. 25/37, logo em seu artigo 1º e parágrafos, em
face da dicção do artigo 216 e incisos da Constituição Federal. O texto daqueles
dispositivos do Decreto-Lei é o seguinte:
“Art. 1º - Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos
bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público,
quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.”
29
Teoria do Ordenamento Jurídico, BSB, Ed. UnB, 1989, pg. 177.
Manual de Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, 2ª ed., pg. 243
- 4.
31
Veja-se, para um apanhado da jurisprudência do STF sobre o tema, Brossard, Paulo,
A Constituição e as Leis a Ela Anteriores, in Arquivos do Ministério da Justiça, v. 45,
nº 180, Separata.
30
32
Para os leitores menos familiarizados com o assunto, reproduz-se, adiante, o texto
meridianamente claro e auto-explicativo dos dispositivos legais citados:
“Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a
modifique ou revogue”.
“§ 1º - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja
com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei
anterior”.
“§ 2º - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já
existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.
“§ 3º - Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei
revogadora perdido a vigência”.
242
“§ 1º - Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte
integrante do patrimônio histórico e artístico brasileiro, depois de inscritos separada
ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o artigo 4º, desta
Lei.”
“§ 2º - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também
sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como sítios e paisagens que
importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela
natureza ou agenciados pela indústria humana”.
Por sua vez, o artigo da Constituição Federal mencionado, juntamente com
os seus incisos, traz o seguinte:
“Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem:”
“I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
Examinando ambos os diplomas, não há como não concluir que a matéria por
eles versada é a mesma, qual seja, a valoração especial que se atribui aos bens por eles
tratados, embora já tenha sido notado que a Constituição Federal de 1988 amplia,
“quase que exaustivamente, o que deve ser considerado como patrimônio cultural,
representando dessa forma, extraordinário avanço para o aperfeiçoamento do
instituto”33, A conclusão é inevitável, ainda que a comparação deva ater-se apenas ao
que se contém no “caput” do artigo 216 do diploma constitucional, uma vez que a
lista que vem adiante é meramente exemplificativa. É, obviamente, indiferente o
nome dado à universalidade resultante, se “patrimônio histórico e artístico nacional”,
ou “patrimônio cultural brasileiro”.
Conseqüentemente, tendo em vista o que dispõe o § 1º, in fine, do art. 2º, da
Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro e o mais que se chamou à colação,
s.m.j., a superveniência da Constituição Federal de 1988 derrogou todo o § 1º, do
artigo 1º, do D.L. 25/37, dado que não se referiu à inscrição de bens nos Livros de
Tombo, como condição necessária para que venham a fazer parte do patrimônio
cultural brasileiro e, assim, serem, dessa forma, especialmente valorados.
Adicionalmente, a Constituição superveniente “novou”, no sentido dado à
palavra por Jorge Miranda, tudo o mais que se continha no restante do artigo 1º, do
D.L. 25/37, constatando-se isto, primordialmente, pelo fato de o diploma
constitucional vigente no País encarecer, como jamais se fizera antes em nossa
33
Queiroz Telles, Antônio A., Tombamento e seu Regime Jurídico, RT, SP, 1992, pg.
29.
243
história constitucional, os princípios democrático e pluralista, não muito caros aos
dispositivos examinados do Decreto-Lei em discussão.
Não é o caso, aqui, de prosseguir na análise do D.L. 25/37, avançando sobre
as suas disposições acerca dos complexos procedimentos ligados ao tombamento, não
apenas por não ser esta a matéria que interessa a este escrito, mas, principalmente, por
escapar o assunto às luzes de quem o compõe. Importa ressaltar, no entanto, por ser,
isto sim, importante para o tema para o qual pede-se, aqui, a atenção do leitor, que,
estando corretas as considerações feitas até este ponto, a “novação” operada pela
constituição sobrevinda em 1.988 sobre o sistema instituído pelo D.L. 25/37 implica
entender que “o valor cultural de um bem preexiste à sua declaração pela
Administração”34, não sendo mais dada a esta última a competência para decidir se
algum bem deve ou não incluir-se no patrimônio cultural brasileiro, cabendo-lhe, uma
vez constatada tal pertinência, tão somente por evidenciar-se a sua “referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira”, promover e proteger o bem assim considerado, “por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação”.35
Desta forma, em cada caso concreto, quaisquer que sejam as circunstâncias
que tornem necessário decidir quais bens se incluem no patrimônio cultural brasileiro,
o que muito freqüentemente ocorre nos procedimentos que fazem parte do
licenciamento ambiental, estar-se-á sempre diante de questão indubitavelmente
complexa e aberta, cuja resposta demanda pesquisa séria e aprofundada, jamais
bastando, para obtê-la, recorrer (o que sói fazer-se em estudos de impacto ambiental)
a meras consultas apressadas a listas de bens tombados e a alguns poucos artigos
publicados em periódicos culturais, material que, além de fragmentário, reflete, em
sua maioria, opiniões e pontos-de-vista datados e parciais.
É preciso, a esta altura, sublinhar que o apelo que se faz à seriedade e ao
aprofundamento da pesquisa nos estudos de impacto ambiental não se justifica
somente pelo amor que se deve dedicar a tais virtudes, mas principalmente pelo fato
de constatar-se que, nas situações criadas pela implantação de empreendimentos de
grande porte, os resultados favoráveis daí advindos (tecnicamente, fala-se em
“impactos positivos”), em geral, difundem-se em larga escala, no espaço, ao contrário
dos desfavoráveis (“impactos negativos”), os quais, o mais das vezes, circunscrevemse a âmbitos locais: Aqui, trata-se de produzir mais energia que vai ser consumida,
principalmente, a grandes distâncias do ponto onde a sua geração vai,
inexoravelmente, alterar a paisagem, influir na distribuição da flora e nos hábitos da
fauna, desalojar e separar pessoas, dentre outros inconvenientes não menos
importantes; ali, de construir estradas que vão facilitar a ligação entre um grande
centro e outro, passando por localidades às quais raramente servem; acolá, de
implantar centros de compras e serviços que atraem consumidores que não residem
nas proximidades e que, de outra forma, jamais demandariam a infra-estrutura urbana
local, sobrecarregando-a, etc.
Em sede de direitos e interesses difusos, isto é, aqueles pertencentes a
“grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou
34
Milaré, Édis, Ação Civil Pública Ambiental - Patrimônio Cultural, in JUSTITIA,
143/118.
35
CF, art, 216, § 1º.
244
fático muito preciso”36, como são os que se consideram aqui, é preciso que, ao
auscultar a sociedade civil, com a finalidade de levar aqueles direitos na devida conta
e de bem interpretar aqueles interesses, tenha-se sempre em mente que ela é um locus
de diferenças que reclamam ser tratadas como tais e, assim, expressar-se.
Em tais condições, é absolutamente necessário dar-se conta de obviedade
que, ao arrepio da letra e do espírito da Constituição vigente, acaba sendo tão
freqüente e descuidadamente ignorada em estudos de impacto ambiental: trata-se da
que se constitui na existência, tão teimosa e recorrente quanto legítima, do ponto-devista da parte da população que se verá mais atingida pelos custos oriundos da
implantação de empreendimentos potencialmente causadores de impactos sobre o
meio-ambiente, acerca de como definem os prejuízos que vão sofrer e de qual lhes
parece ser a melhor maneira de compensá-los, ponto-de vista que, muitas vezes, é
oriundo de concepções do mundo singulares, ligadas a modos de vida parcial ou até
inteiramente alheios àqueles que se vai beneficiar com a sua implementação.
A esta altura, embora o tema proposto não permita aprofundar o assunto aqui
tratado sob esse aspecto, vale a pena observar que, se o que se disse acima parece
poder aplicar-se, também, às outras questões que são examinadas em estudos de
impacto ambiental, além das especificamente relacionadas ao patrimônio cultural
brasileiro, isto ocorre porque não há como evitar, nem como eludir, o fato de a cultura
e as diferenças culturais serem realidades que se imiscuem em todos os aspectos da
vida social.
De tudo isto resulta, inevitavelmente, que, na constatação e no balanço dos
custos e dos benefícios que devem surgir da realização de projetos do tipo dos que se
trata neste escrito, é preciso dar, tanto quanto seja possível, voz a todos os
interessados e, dentre estes, principalmente aos que sofrerão turbações da mais diversa
ordem em muitos aspectos das suas vidas, incluíndo-se aí a eventual alteração ou
perda de preciosos bens culturais, tais como os fatores que formam e balizam a vida
quotidiana, dando-lhe base material e emprestando-lhe significado: caminhos,
referenciais, pontos de encontro, áreas de lazer informal, espaços e construções
tradicionalmente destinados a celebrações, à residência e/ou ao trabalho, etc., cujo
desaparecimento repentino ou exposição à mudança significativa e excessivamente
rápida torna inúteis, de um dia para outro, conhecimentos adquiridos, acumulados e
transmitidos ao longo do tempo e transforma em relíquias, de chofre, hábitos coletivos
e tradições locais, bens imateriais, estes últimos, que, vale ressaltar, nem por serem
desprovidos de impenetrabilidade, extensão, peso e das outras tantas propriedades que
a Física atribui à matéria, deixam de incluir-se na categoria dos bens culturais.
Na ordem de idéias a respeito do patrimônio cultural brasileiro esposada pela
Constituição Federal de 1.988, não há lugar para que os bens culturais mencionados
acima sejam considerados menos merecedores de valoração especial do que os que
freqüentam os Livros de Tombo e os artigos que se publicam em revistas eruditas,
tampouco havendo, portanto, razão alguma para que sejam “esquecidos” ou relegados
a segundo plano nos estudos e relatórios de impacto ambiental. Se a sua identificação,
avaliação e preservação exige esforços maiores de pesquisa e investimento, cabe ao
Poder Público exigir que isto se faça, em todos os casos em que couber fazê-lo, por
quem de direito.
36
Mazzilli, Hugo Nigro, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, RT, SP, 1992, 4º
ed., pg. 21.
245
Isto posto, cabe considerar, finalmente, a outra ordem de problemas a que se
aludiu no início deste escrito, qual seja, a relativa às questões levantadas pela
ampliação da universalidade constituída pelo patrimônio cultural brasileiro, tendo em
vista o aumento não ter sido principalmente quantitativo, mas qualitativo, o que traz
ao centro desta problemática a questão das “formas de acautelamento e preservação”
adequadas, em cada caso, a cada bem especialmente valorado como pertencente
àquele patrimônio, já que, no contexto do licenciamento ambiental, está-se,
freqüentemente, tratando da inevitabilidade da superveniência de danos àqueles bens,
quando não se está diante da certeza do seu puro e simples desaparecimento.
Nestas últimas condições, isto é, se é certo o perecimento dos bens, indagase: Em que casos cabe entender que a mera confecção de inventários e registros, que o
artigo 216, § 1º, da Constituição Federal, institui como algumas das formas de
proteção ao patrimônio cultural, pode considerar-se um modo aceitável de compensar
o impacto negativo que será sofrido pelos bens em tela?
Por outra, na hipótese formulada antes, isto é, se se trata da ocorrência
inevitável de danos àqueles bens, deve-se compreender que a elaboração de um
programa de monitoramento de impactos realiza sempre, qualquer que seja o bem
turbado, a vigilância a que se refere os mesmos artigo e parágrafo da Lei Magna?
Em suma, entre o que dispõem a Constituição Federal e as normas
infraconstitucionais de proteção ao Patrimônio Cultural, de um lado, e os regramentos
administrativos que disciplinam o licenciamento ambiental, de outro, existe a
conformidade reclamada por Jorge Miranda para que estes últimos possam continuar a
regular toda a matéria cultural no contexto do licenciamento ambiental, de modo que
toda a problemática apontada acima acabe por revelar-se apenas uma questão de
aplicação da lei a casos concretos, vale dizer, de interpretação?
246
DEBATE
Coordenador: Dr. José Luiz de Morais - MAE/USP
Relatora: Alenice Motta Baeta- Setor de Arqueologia MHN\UFMG
José Luiz de Morais - Por favor, Sr. Rossano Bastos, do IPHAN.
Rossano Bastos - Bom dia, eu gostaria de parabenizar os membros da mesa pela
brilhante explanação sobre a questão que envolve patrimônio cultural e legislação.
Agradeço de público ao Fórum Interdisciplinar pelo Avanço da Arqueologia pelo
convite, um seminário que vem-se demonstrando fantástico, realmente esplendoroso,
uma importante forma de reflexão e debate.
Na verdade, eu trouxe uma questão para ser colocada em dicussão para o
conjunto dos debatedores e não especificamente para um. Eu acredito que o problema
central do patrimônio cultural, hoje, é que não existe uma política nacional de cultura
que contemple a complexidade do conjunto dos bens culturais que formam a
identidade cultural do Brasil. Dentro desse contexto, a legislação do patrimônio
histórico, de um modo geral, atende ainda a preceitos de exceção do regime Vargas.
Entretanto, a única política cultural levada a efeito nesse país, talvez seja ainda a
política do governo Vargas ( Decreto lei n. 25 de 1937). Através de uma ação
conjunta entre estados e municípios é que nós devemos esperar uma ação
complementar efetiva - política, jurídica e administrativa.
Eu acho que chegou a hora de olharmos de frente e não somente
valorizarmos a casa- grande, mas também a senzala, porque da senzala vem muito
suor que construiu essa Nação. Para onde iam os operários depois de construída a
muralha da China, as Acrópoles tantas vezes destruídas. Quem as ergueu?
Eu gostaria de terminar com a reflexão de uma pessoa que eu admiro muito,
que disse o seguinte: “Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do passado
antes que o tempo passe tudo a limpo” ( Cora Coralina). Muito Obrigado.
José Luiz de Morais - Eu pergunto aos membros da mesa se desejam se manifestar.
Suzanna Sampaio - O que eu poderia dizer em relação ao Decreto Lei n 25 de 1937,
é que ele não fere nenhum princípio constitucional, tanto que o legislador
constitucional em momento algum revogou-o. Toda aquela legislação que foi
considerada obsoleta ou inconstitucional pela nova Carta Magna, foi revogada. A
legislação do governo Vargas de 1937 foi feita em menos de um mês depois da
declaração do Estado Novo. Teve uma política cultural bastante sedimentada, com leis
que na época eram vigentes internacionalmente. Então, você vê que a própria carta de
Atenas traz princípios que nortearam todas as políticas de proteção ao patrimônio
histórico, artístico, hoje chamado „cultural‟ na Constituição. Acho que realmente ele
representou um momento feliz na nossa administração pública, em que pesem os atos
ditatoriais; depois, é preciso separar o joio do trigo, é preciso ver os atos ditatorias do
governo Vargas e separar os grande ministros que foram Gustavo Capanema e
Francisco Campos.
Das outras ponderações que você fez, eu me lembrei da casa grande e
senzala. Mais do que nunca, essa Constituição contempla em todos os momentos os
247
modos de manifestações, tanto do patrimônio edificado como das manifestações
intangíveis e imateriais. Tem-se tombado modos de fazer e modos de viver; por
exemplo, foi tombado um terreiro de Candomblé na Bahia. É preceito constitucional.
Todos os remanescentes de quilombos em nosso país são protegidos por medidas
constitucionais, que é a lei máxima. Você pode tirar daí qualquer proteção possível
dentro dos institutos existentes. Essa garantia de que os quilombos sejam preservados
garante a preservação da memória africana, a memória negra no Brasil. E quando se
fala da memória negra hoje, as comunidades de luta pela igualdade, pela manutenção
da identidade negra preferem ser chamados de afro-brasileiras, como os afroamericanos. Então chamemo-los, não é possível discutir. Os afro-brasileiros estão
contemplados, outras manifestações também. Existe hoje a Fundação Palmares, que é
responsável pela inventariação, pela codificação e pela propostas de inclusão no
patrimônio brasileiro de toda memória da escravidão e de toda memória da raça negra,
oprimida mesmo depois que a abolição se fez em 1888. Vou adiantar, por exemplo,
que estudos recentes descobriram remanescentes de quilombos em áreas
desconhecidas. Depois do quilombo de Palmares, que foi tão célebre, a história de
outros quilombos existentes no Maranhão, no Norte do Estado de Mato Grosso ficou
esquecida. Esta memória está sendo levantada e a sua história escrita por pessoas,
funcionários e profissionais do patrimônio brasileiro, de todos os institutos. Não sei se
respondi ou se alguém quer fazer mais alguma ponderação.
José Luiz de Morais - A Dra. Helita gostaria de fazer uma observação.
Helita Custódio - A Lei Geral de 1981 e também a legislação anterior e posterior à
Constituição de 1988 foram muito importantes, Sr. Rossano, relembrando a sua
colocação. Então, nós temos um outro problema, por princípio, de ordem geral do
Direito, nas normas da lei de introdução do código civil, que é norma de princípio
geral. Toda lei tem sua validade; quando ela é promulgada, foi promulgada por um
determinado motivo; se ela é perfeita ou imperfeita, não vamos entrar nesse detalhe.
Por princípio geral do Direito, a lei anterior a ela pode ser revogada ou não por uma
lei posterior. Nesse caso, nós temos que verificar alguns aspectos importantíssimos:
se a lei anterior for incompatível com a lei posterior, nesse caso ela vai ser revogada
ou porque a lei posterior já a revoga expressamente ou então a revoga implicitamente;
se é incompatível, não tem mais condição de sobrevivência. Então nós temos dois
tipos de revogações: explicita quando a lei expressamente declara - „revogam-se as
disposições da lei tal‟, e implícita quando, simplesmente analisando a lei anterior e a
lei posterior, há uma incompatibilidade inconciliável. Em se tratando das normas
constitucionais, se aplica da mesma forma: a Constituição é a norma que está
hierarquicamente superior às outras. Se a norma anterior for compatível com a norma
posterior, seja lei ou Constituição, ela permanece, perfeitamente. Se esta norma não
for suficiente, mas se o espírito dessa norma está de acordo com a proteção prevista
na lei posterior, então, nesse caso, a lei anterior é uma lei que não é incompatível.
Diante dessas normas insuficientes, ela dá uma definição que não é completa, então
vamos completar. Nós estamos aqui para analisar esses aspectos, de
incompatibilidades ou de insuficiências da lei anterior, em comparação com a lei
posterior, seja lei, seja Constituição, e é por isso que é importante esse levantamento
de normas que nós fazemos para realizar o estudo adequado. É preciso ter consciência
daquilo que é incompatível e daquilo que é compatível: o que é incompatível revogase, o que é compatível permanece e o que é insuficiente se atualiza.
248
José Luiz de Morais - Pela ordem, convido o Dr. Daury de Paula Júnior, da
Promotoria de Meio-Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Daury de Paula - Bom dia. Em primeiro lugar, eu queria cumprimentar a mesa pelas
brilhantes explanações, por ter dividido comigo, que acompanhei o evento todos esses
dias, um sentimento enorme de impotência. Eu teria algumas colocações e uma
pergunta específica. O artigo 216 da Constituição, combinado com o artigo 20 que diz
que “ o patrimônio histórico arqueológico e pré-histórico é bem da União”, permite a
interpretação desse arqueológico histórico e arqueológico pré-histórico. Eu
perguntaria se, por força da combinação desses dois dispositivos constitucionais, não
estaria revogado, por incompatibilidade, o artigo 2 da lei que trata dos sítios, que
repete essa expressão: arqueológicos pré-históricos, mas limita-se apenas ao préhistórico.
Um outro questionamento diz respeito também à combinação desses dois
dispositivos constitucionais, que transformam inequivocamente esses bens, que são
bens da União, em bens comuns do povo, porque seriam bens nacionais de caráter
coletivo. É uma outra questão que me deixou bastante angustiado, assistindo as
palestras dos arqueólogos: eu notei que todos eles apontam a pressão do tempo, de
não se ter tempo de fazer um estudo adequado, diante de uma pesquisa de arqueologia
de contrato dentro do EIA/RIMA, onde se tem que optar por explorar todos os sítios
localizados ou conhecidos ou explorá-los parcialmente, aplicando critérios técnicos.
Eu perguntaria: é possível, diante do texto constitucional, admitir dano a patrimônio
público de bem comum do povo nesses empreendimentos? É possível mitigar dano a
bem de uso comum do povo? Me parece que não.
Outro aspecto refere-se ao patrimônio arqueológico submerso e não gostaria
que fosse entendido como correção, mas existe lei específica; essa lei foi publicada,
eu não me recordo o número, mas uns dias antes ou depois da lei de ação civil
pública. Não me espanta nada o colega que falou a respeito não a ter localizado
porque ela mistura o navio naufragado de interesse histórico arqueológico com aquele
navio que pode ser explorado comercialmente, que afundou ontem; houve uma
mistura. Mas eu estou tocando no assunto não para trazer a existência da lei, mas para
fazer uma pergunta aos colegas da área de Direito, como também ao coordenador da
mesa, que é a seguinte: essa lei estabelece uma distinção entre o naufrágio com
potencial histórico arqueológico e o naufrágio sem potencial histórico arqueológico
por um critério exclusivamente temporal: o navio que naufragou de 1800 para baixo é
histórico arqueológico, de 1800 para cá não é histórico arqueológico. Basta dizer que
não são históricos arqueológicos nenhum daqueles naufragados na Guerra do
Paraguai, nenhum daqueles naufragados na Guerra da Independência e outros. Então,
eu gostaria de perguntar aos colegas da área jurídica se esse dispositivo de lei, diante
da combinação do artigo 216 e do artigo 20, não estaria revogado, e ao colega
arqueólogo se isso é correto tecnicamente. Muito obrigado.
José Luiz de Morais - Com relação à questão dos bens submersos, eu acho que é um
assunto extremamente mal resolvido, principalmente no âmbito da arqueologia, a
questão da data do que é arqueológico ou do que não é arqueológico. Eu perguntaria:
até o bem não submerso, quando ele passa a ser arqueológico? Então, eu acho que é
uma questão carente de debate e nesse caso fica novamente a segunda sugestão, que
eu faço ao Fórum para o Avanço da Arqueologia: que inclua este tema no elenco de
reflexões; eu me considero pequeno e inexperiente em relação à arqueologia
249
subaquática. Em termos de Brasil ela existe e é praticada esporadicamente, mas eu me
sinto pequeno e insuficiente para expor alguma posição, de ordem pessoal ou
profissional.
José Eduardo Rodrigues- Com relação a essa questão, propriedade dos bens da
União, as cavidades naturais subterrâneas, os sítios arqueológicos pré-históricos e
históricos, faz surgir uma outra imprecisão. O que é um sítio arqueológico préhistórico, é fácil de deduzir, está na lei de 61; agora, e o sítio arqueológico histórico ?
Por exemplo, há uma casa bandeirista no sítio do Tatuapé, de propriedade do
município de São Paulo, desapropriada há mais de 30 anos. A prefeitura de São Paulo,
foi lá e fez um levantamento nas paredes, no chão e fez todo o levantamento no sítio
arqueológico. Ali é um sítio arqueológico até certo ponto. Nossas casas podem estar
em cima de sítios arqueológicos, porque muitos prédios situados na cidade de São
Paulo são sítios arqueológicos, basta que se cavem. É o caso da casa n0 1 do Pátio do
Colégio, em que em uma restauração encontraram alicerces de taipa de uma casa
muito anterior. Tecnicamente, é um sítio arqueológico, porém histórico; então, eu
estou entendendo que os sítios arqueológicos e pré-históricos que estão sendo
considerados bens da União, por uma imprecisão técnica devem ser aqueles mesmos
que são mencionados como arqueológicos pré-históricos pela Lei n0 3.924 de 26 de
junho de 61. Então, eu continuo entendendo que esses sítios que são lá descritos como
sambaquis, cemitérios indígenas, que são coisas razoavelmente determináveis, do
mesmo modo que as cavidades naturais subterrâneas, são bens de domínio da União.
Agora, eu não sei como considerar, por exemplo, o solo da minha casa, debaixo dos
tacos da minha casa, um sítio arqueológico. Aqui, no subterrâneo dessa universidade,
pode ser que tenha existido uma fazenda colonial, e seja encontrado um sítio. Eu não
sei até que ponto isso poderia ser transferido para a União, ou até que ponto a União
poderia ter uma emissão de posse; é uma coisa interessante. O que eu vejo é que, no
máximo, poderíamos ter uma outra interpretação, de que haveria uma fiscalização
específica. Isso daria um direito à União de praticar uma fiscalização específica,
porque no caso da lei de 61, também quando se faz um pesquisa arqueológica, o sítio
pode se situar em um imóvel particular. Eu não entendo necessariamente que ele
tenha de ser desapropriado; aliás, há a previsão da autorização do proprietário, quando
você requer licença junto ao IPHAN. Então, esse domínio da União, no sentido
fiscalizatório, talvez você possa excluir, mas esses sítios arqueológicos, para mim,
continuam sendo o que a lei de 61 diz que são. O sítio arqueológico histórico, eu não
imagino como da União; é o mesmo problema que foi levantado aqui, acertadamente,
sobre a antigüidade do navios. Era a tese original de Mário de Andrade que os
imóveis considerados antigos eram aqueles pelo menos com 50 anos; então, um
tombamento como o de Brasília, que é patrimônio da humanidade, seria impossível;
teria que se esperar que ela tivesse 50 anos.
O simples fato de uma coisa ser pré-histórica, indígena, não lhe dá mais valor
ou menos valor do que o fato de ela ter sido feita por portugueses no séc. XVII, no
séc. XVIII, inclusive porque os sítios arqueológicos indígenas se encontram nos
sambaquis e, em certas camadas dos sambaquis, encontram-se objetos que pertencem
à cultura branca, que marcam uma transição euro-indígena e a sua influência diante da
cultura portuguesa, da cultura do colonizador. Então, é lógico que eu acho que essa
questão ainda é polêmica, mas, resumindo, eu acho que esses sítios arqueológicos préhistóricos são aqueles referentes aos indígenas e, com relação aos sítios históricos, a
competência do Estado, Distrito Federal e municípios continua vigorante.
250
Helita Custódio- Com relação à preocupação do Dr. Daury, é sempre aquilo que nós
falamos, cada vez que formos considerar se uma norma é ou não, foi ou não revogada
diante de uma norma superveniente, nós temos que fazer uma análise para dizer, de
uma vez por todas, que não foi revogado. Não é muito para um jurista ou para
qualquer um de nós, profissionais, que temos que pensar na ciência do raciocínio.
Temos que dar uma conclusão, uma reposta àquela pergunta; nesse caso, nós temos
que fazer uma análise, uma interpretação científica, em conjunto. É muito difícil para
nós, às vezes, diante de textos combinados contra os textos anteriores, dizer que foi
revogado , não foi revogado, temos que ver bem qual o objetivo da norma. O objetivo
da norma é aumentar a proteção, é proteger a norma. Nós temos que interpretar,
refletir e analisar em conjunto todo texto, porque nós, juristas, temos que ter muita
cautela nessa questão de interpretação científica. Hoje, há uma necessidade muito
grande de se evitar interpretações contrárias ao espírito da lei. O importante é o
espírito da lei, se a razão da lei está prevista na lei anterior e na lei posterior, mas a lei
anterior é insuficiente, então vamos completar, vamos ajustar o seu espírito ao espírito
da norma posterior; se é incompatível, simplesmente não se fala mais na regra
anterior. Ela foi simplesmente revogada, expressamente ou implicitamente, porque ela
é incompatível; se ela é compatível, ela permanece; então, isso é uma questão de
interpretação científica diante de cada circunstância, diante de cada caso concreto.
No tocante à sua pergunta, se é possível haver dano a bem de uso comum do
povo, diante de empreendimentos degradadores, não tem dúvida que esse dano é
previsto na Constituição também, Daury. A própria Constituição, parágrafo 3 0 do
artigo 225, é taxativa, é claríssima nesse caso. Aqui não se faz nenhuma separação,
trata-se de empreendimento público ou privado, não interessa seja qual for a pessoa
responsável pelo empreendimento que causou o dano, esse deve ser necessariamente
ressarcido. Veja que é a norma do capítulo: todos tem direito ao meio-ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo; é norma geral, devendo o
poder público e a coletividade defendê-lo e preservá-lo. Vem agora o parágrafo 3º: as
condutas e atividades consideradas lesivas - qualquer conduta, seja diante de um
empreendimento público/privado, licenciado ou não licenciado, não interessa: se
aquele empreendimento ocasionou dano ao bem de uso comum do povo, não tem
dúvida que o seu responsável os infratores, pessoas físicas ou jurídicas estão sujeitos a
sanções penais, administrativas e civis, independentemente, no sentido de reparar os
danos causados. Essa norma aqui não exclui ninguém: se há dano, como diz Pontes de
Miranda, “danou, pagou”. Outro dia, quando alguém começou a subestimar a
capacidade do brasileiro, chegou-me em casa um trabalho para eu emitir um parecer
sobre uma crítica sobre a expressão usada pela ONU, a respeito do Direito Nacional
de Desenvolvimento Sustentável; foi uma crítica violenta, porque um autor inglês
disse que isso aí foi para iludir os coitadas das pessoas dos países de terceiro mundo,
para tomar os nossos bens. Eu disse: tenha cautela com essas críticas precipitadas,
„desenvolvimento sustentável‟ é uma expressão talvez não muito simpática, mas é
uma expressão correta; foi concluída por mais de 500 cientistas do mundo inteiro,
tendo sido adotada pelo documento da ONU. É isso o desenvolvimento sustentável”:
evitar a exploração irracional que acabava com tudo; tem que haver uma exploração
racional, através de um planejamento, através de zoneamento, através de programas e
de projetos adequados, que sejam racionais no sentido de preservar. Vamos conciliar
o desenvolvimento social, econômico, agrícola ou urbanístico com a preservação; não
quer dizer que a natureza seja intocável; nós vamos conciliar, compatibilizar os
recursos ambientais e culturais para as presentes e futuras gerações, porque nós aqui
só temos remanescentes, nós temos que cuidar deles para as futuras gerações. Eu
251
disse, também, que não vamos subestimar a inteligência da pessoa humana. A pessoa
humana é capacitada em qualquer lugar do planeta, pode estar nos países do primeiro
mundo, do segundo mundo ou do terceiro mundo, não importa. E voltando a Pontes
de Miranda, que foi um dos maiores juristas brasileiros, considerado e respeitado em
toda a Europa, seu trabalho sobre o tratado de Direito Privado não tem similar em
nenhum país do mundo. Então, não vamos subestimar a nossa capacidade intelectual.
Somos pessoas humanas e como tal temos capacidade para nos desenvolver e
aperfeiçoar continuamente e dar a nossa colaboração, a nossa contribuição, à solução
dos grandes problemas, como também para ver se uma norma é ou não revogável, ou
mesmo se um atentado ou um dano ao bem de uso comum do povo é ou não
ressarcível, e, nesse caso, se danou tem que pagar Não interessa se for poder público,
privado, físico ou jurídico, não tem importância, vai ter que pagar.
José Luiz de Morais - Surgiu uma pergunta ao Dr. Roberto e ao Dr. José Eduardo. A
pergunta é dirigida por Antônio Menezes Júnior e diz o seguinte: questão sobre a
competência do IPHAN em regular a proteção de bens culturais, através de portaria
ministerial: 1º) quais os limites de ação das diversas instâncias da administração
pública; 2º) como ficam a importância e as atribuições do poder local ?
Roberto Monteiro - Antes de mais nada, vou usar o microfone para reconhecer a
minha incompetência na matéria e vou deixar para o Dr. José Eduardo, mesmo porque
infelizmente eu estou com meu tempo ultrapassado. Eu apenas lembraria de forma
genérica, já que concretamente eu não teria aqui elementos para uma reposta
adequada à indagação, que isso é realmente um vezo realmente administração pública
brasileira, legislar pela via de instrumentos normativos como as portarias, e, sempre
que se faz uma pesquisa mais cuidadosa, a constatação é que muitas dessas portarias,
aliás, a grande maioria delas, incursionou num terreno reservado à lei. Embora essas
portarias acabem sendo observadas, acabem sendo invocadas, acabem disciplinando
essa distribuição de atribuições, com muita freqüência o resultado das pesquisas
levaria a uma conclusão meio catastrófica, de que a proteção de determinados bens
acaba construída ou erigida sobre um edifício extremamente frágil. Quanto ao tema
concreto, realmente afirmo a minha incompetência e passo a palavra ao Dr. José
Eduardo. Agradeço demais; foi uma oportunidade excelente de convívio com vocês e
espero que esses encontros sejam cada vez mais freqüentes, dentro daquela idéia de
que o Ministério Público não existe sem vocês, sem a ajuda de vocês e sem a
participação de cada um que compõe a sociedade. Muito obrigado.
José Eduardo Rodrigues - Essa questão é a questão crucial do Direito administrativo
brasileiro, especialmente o segundo tópico - quais os limites da ação das diversas
instâncias da administração pública. Eu colocaria aqui a questão sobre a competência
do IPHAN em regular a proteção de bens culturais através de portarias ministeriais.
Eu teria que lhe dizer o seguinte: depende de como está sendo elaborada essa portaria,
porque toda portaria, todo ato administrativo, está restrito ao princípio da legalidade;
então, tem que ter fundamento legal, a partir de uma determinação legal elaborada
pelo poder legislativo. Por exemplo: o conselho consultivo é responsável pelo
tombamento; como a lei não diz como ele deve funcionar, presume-se que ele
funcione, mas não diz como. Então, a portaria pode ser escrita por um regimento
interno e aprovado pelo conselho, um ato inferior, mas a lei abre espaço para isso. O
que não se pode fazer, e acaba-se fazendo no Brasil é o seguinte: primeiro, você tem
uma lei, depois você cria um decreto regulamentar repetindo a lei. Não precisa ficar
252
repetindo o que está na lei; o que está na lei é básico. Você vê isso na consolidação
das leis da previdência social ou pelo menos o que era antigamente: você tinha a lei e
um regulamento que repetia tudo que a lei dizia, só acrescentava algumas coisas
estratégicas, que por um acaso não estavam previstas na lei e que, portanto, eram
ilegais. Você não pode inovar no regulamento, regulamento não inova. Regulamento
tem que se ater à lei.
Por outro lado, quais são os limites das diversas instâncias da administração
pública? Vamos dizer no aspecto do patrimônio cultural; é aquela questão da
competência concorrente e da competência comum, que foram colocadas aqui pela
Dra. Helita. Que existem conflitos, existem, sem dúvida. Agora, eu acho que, como o
dever maior constitucional é a preservação do patrimônio cultural, se um mesmo
imóvel tem tombamento federal, estadual e municipal, prevalece o tombamento que
tiver uma regra mais restritiva, mais protetiva. Não há uma hierarquia; não é a norma
federal que prevalece sobre a estadual, a estadual e esta sobre a municipal: cada uma
atua na sua esfera. E como fica a importância das atribuições do poder local ?
Fundamental, como se podem ver, nesses aspectos. Existe um entendimento no
CONDEPHAAT, de São Paulo, que eu também acho errado. Diz o seguinte: que o
IPHAN tomBa os bens de interesse federal, o CONDEPHAAT os bens de interesse
estaduaL e o Município, os bens de interesse municipal. Isso é uma bobagem, porque
aí você esta inovando em relação à Constituição. Neste caso, você pode fazer a
mesma analogia das portarias com a lei superior: a lei superior é a Constituição, uma
lei inferior não pode inovar. No caso, o CONDEPHAAT inovou por uma portaria:
esse é o entendimento que eles têm. Vamos dizer que eles coloquem na portaria que o
CONDEPHAAT só vai proteger os bens de interesse estadual. Agora, me diga uma
coisa: existe algum bem de interesse estadual, que não seja municipal ? Só interessa
ao Estado de São Paulo; o Estado de São Paulo faz parte do que? Não faz parte do
Brasil? A Constituição diz que tem patrimônio cultural federal, patrimônio cultural
estadual, patrimônio cultural municipal? Não diz, diz que tem um patrimônio cultural
brasileiro que é um todo, o resultado de todo o trabalho do povo brasileiro nas suas
diversas atividades, como bem colocou aqui o Dr. Caldarelli. Então, o
CONDEPHAAT não pode inovar nesse ponto, ele não pode dizer que o bem tem
valor, mas esse valor é só local. Então, eu me omito e o que acontece? O município
não tem tombamento, não tem nada, e o bem é perdido.
O que acontece, nesses casos, é que o judiciário de São Paulo tem feito um
trabalho muito bom, de declarar o bem preservado por via judicial, porque acontece
muita briga de Câmara com prefeito. O prefeito decide que quer preservar e o
CONDEPHAAT se omite; o Estado diz que aquilo é de interesse local, é bonito e tal,
mas é de interesse local. O prefeito é a favor, quer que desaproprie, a Câmara veta. Aí,
o que em geral acontece é que um vereador apresenta um projeto de lei e o prefeito
vai lá e veta. Aí, a Câmara vai lá e derruba o veto. Então fica naquela briga e, como se
diz: um cão com vários donos morre de fome. E ninguém se decide a preservar. O
Ministério Público fez isso em Ribeirão Preto: havia um imóvel chamado Hotel
Brasil, de importância para a cidade e, como ninguém se habilitava a preservá-lo e o
proprietário estava quase demolindo, o que ele fez? Entrou com uma ação civil
pública e pediu a preservação cautelar do imóvel. O juiz não concedeu a medida
liminar. Eu não estou recordando todo o andamento da ação, mas o que interessa é
que o Tribunal de Justiça decidiu que é possível tombamento por via judicial e anulou
a sentença do juiz, que dizia que o judiciário não pode tombar. O Tribunal questionou
essa sentença, dizendo que sim, pois cabe ao judiciário, como a todo o poder público,
253
preservar o patrimônio cultural também. Então, na medida que existe também a ação
civil pública e que existe um dano, como ressaltou o Dr. Caldarelli, não visa a
Constituição o patrimônio cultural que é tombado, mas o patrimônio cultural citado
pelo Artigo 216. E a pretensão da população provou-se legítima, através de perícia de
técnicos, que confirmaram que o bem tinha valor cultural. Cabe ao juiz declarar o
valor judicial, na sentença judicial. Eu entendo que deve condenar a Prefeitura a
preservar o imóvel ou o Estado, se a Prefeitura não tiver condições e a União, se o
Estado não tiver condições de preservar, porque cabe aos três entes preservarem. No
Estado de São Paulo, o IPHAN só cuida lá das casas bandeiristas porque são as únicas
de interesse nacional; do século XIX, nada presta. No Estado de São Paulo, perdeu-se
tudo por omissão do IPHAN: Vitor Dubugras, não existe mais nada; Ekman, sobrou
só o prédio da FAU, provavelmente porque o CONDEPHAAT tombou. Eu me
pergunto, por exemplo: por que o IPHAN tomba o Teatro Municipal do Estado do Rio
e não tomba o de São Paulo? Porque o Teatro Municipal do Rio é de interesse
nacional e o de São Paulo não é, e o de Goiânia? Se o do Rio de Janeiro é de interesse
nacional, também é o de Jundiaí, o de Goiânia, o de Cuiabá, o de São Paulo, o de
todos. É de interesse de todo o Brasil que se tenha teatro e teatro antigos de valor
arquitetônico. O IPHAN parece o que diziam de D. Pedro II, que só cuidava do Rio de
Janeiro. Diziam que os prédios da avenida Rio Branco eram ecléticos, bolos de noiva,
e de repente decidiram tombar os que sobraram. Na avenida Paulista, não houve
nenhuma mobilização desse tipo, porque só é São Paulo, é província. O Rio Janeiro
não é mais a Capital do país, quer queiram ou não queiram. Muito obrigado.
José Luiz de Morais - Por favor, o Carlos parece que quer completar alguma coisa.
Carlos Caldarelli - Eu quero somente chamar a atenção para o seguinte: antes da
Constituição de 88, de fato, o tombamento tinha uma importância fundamental porque
ele era o único critério para se incluir um determinado bem no patrimônio histórico
artístico nacional. Hoje certamente não é mais assim. Hoje, entende-se que o valor de
um bem, o valor histórico, artístico, etc. de um bem, precede a sua declaração pela
autoridade administrativa. São muitos os julgados nesse sentido, mandando que se
tomem outras medidas, que não o tombamento, com o fito de preservar o bem, que se
reconhece pertencer ao patrimônio cultural brasileiro, não por ter sido tombado, mas
pelo seu valor intrínseco.
José Luiz de Morais - Dra. Lylian Coltrinari, da USP.
Lylian Coltrinari - Também congratulo os membros da mesa, e peço licença para
fazer algumas considerações e pedir esclarecimentos sobre aquilo que a lei atual ou,
digamos, os dispositivos legais atuais, incluem.
Começarei fazendo uma pequena correção ao Dr. José Eduardo, e dizendo
que granito não é fóssil. Granito é uma rocha formada dentro da Terra; não é fóssil
porque não é formada por matéria viva que ficou soterrada, mas originou-se a partir
de processos internos. Ainda que a definição de fóssil corresponda a aquilo que é
retirado da terra, só é fóssil o que foi vivo -ou produzido por um ser vivo, como as
marcas que o homem, as plantas e os animais deixaram. O petróleo, sim, é de fato
fóssil.
Queria me remeter à primeira questão e chamar a atenção, talvez, para
questões semânticas ou epistemológicas. Por exemplo, as considerações sobre o
conteúdo paleontológico que se encontra nos depósitos. Os paleontólogos que me
254
desculpem, mas sou geógrafa, trabalho com geologia do Quaternário, e algumas
questões precisam ser esclarecidas. Vou considerar em parte o que Carlos Caldarelli
falou, com base no que atualmente se conhece sobre os estágios mais recentes da
história da Terra e que, às vezes, não é conhecido por todos os que trabalham na
interface da arqueologia, da antropologia física ou áreas semelhantes. Quero chamar a
atenção para um tipo específico de fóssi; para a maioria das pessoas, paleontologia
diz respeito ao homem, aos grandes mamíferos, mas não consideram, por exemplo, os
nanofósseis dos fundos marinhos, dos fundos de lagos e rios; ou, menos ainda,
lembram dos grãos de pólen, que são microfósseis vegetais, da mesma maneira que os
nanofósseis dos crustáceos fizeram parte do mundo animal. Eles são muito
importantes, não do ponto de vista arqueológico, mas do ponto de vista da
reconstrução dos paleoambientes terrestres. Não fosse pelos nanofósseis marinhos,
hoje não teríamos uma idéia mais precisa das divisões do tempo geológico mais
recente, que é o Quaternário. Por isso, se o sentido da lei fosse estendido, os fundos
marinhos também deveriam ser preservados, já que eles são um bem -e aí uma
distinção, a micro paleontologia e a palinologia estudam objetos naturais; o grão de
pólen é parte de uma planta e o nanofóssil é a casca de um antigo animal marinho. A
partir do momento em que se reconhece que eles informam a respeito da história do
ambiente global, natural e humano, passam a ser parte do patrimônio cultural, ainda
que, essencialmente, sejam bens naturais. Essa é uma questão.
Eu queria levantar outra, do ponto de vista não da paleontologia mas das
marcas fósseis. Não estou a par do código dos geólogos, os códigos de preservação,
mas penso que pode ser aplicado -do ponto de vista da reconstrução paleoambiental, o
mesmo critério às marcas de ondas de mares antigos em antigas praias, da mesma
maneira que às paleodunas. Muitas delas foram contemporâneas dos dinossauros, por
exemplo, estão preservadas nas rochas do Mesozóico. Então elas também são bens e
fazem parte do patrimônio cultural ainda que sejam essencialmente bens naturais.
Minha pergunta é se não seria possível, em algum tipo de instrumento legal a ser
proposto, que se considera-se aquela lista que Carlos denunciou, simplesmente como
exemplo dos casos a serem considerados; que se pensasse na possibilidade, não de
incorporar todo o detalhamento, mas de fazer com que, quem elabora os instrumentos
legais, fosse assessorado por especialistas. A ciência está fazendo continuamente uma
renovação e uma rediscussão dos conteúdos anteriores; seria interessante que a
legislação tivesse condições de acompanhar, ainda que de longe, essas mudanças. É
claro que isso não seria detalhado no EIA/RIMA, mas seria um grande avanço se
fosse levado em consideração. Que aquilo que o instrumento legal mumifica não fique
mumificado na realidade da pesquisa científica, que a complexidade do ambiente
esteja presente no espírito das pessoas que trabalham nessa interface. Nesse sentido, é
só o que tenho a dizer.
José Luiz de Morais - Eliete Maximino, da PUC - Santos.
Eliete Maximino - Dr. Eduardo, o senhor me desculpe, mas apesar das suas
explicações, eu ainda tenho dúvidas. Eu tenho uma licença do IPHAN para trabalhar e
resgatar o material submerso; a Marinha diz que eu não posso, porque o material
pertence a ela. Então, como eu faço: cumpro a portaria do IPHAN, retiro o material e
faço o trabalho, ou espero a Marinha me dar essa autorização? E a Marinha ainda
afirma que o material deve ir diretamente a ela, não pode ficar na região onde,
atualmente, se encontra submerso. E outra coisa: a lei me obriga a informar à Marinha
o local onde está o material submerso; sou obrigada a isso por lei?
255
José Eduardo Rodrigues- Em primeiro lugar, ninguém é obrigado a fazer ou deixar
de fazer nada, se não em virtude de lei. Em segundo lugar, quando eu falei da portaria,
eu disse que ela não era em si inconstitucional necessariamente, porque ela buscava
regulamentar um tipo de atuação. Agora, sem dúvida, a portaria tem uma fragilidade;
é difícil encontrar um fundamento para ela na Constituição. (...) Você judicialmente
poderia defender a tese de que os bens, como bens de valor cultural, pertencentes ao
patrimônio cultural brasileiro, devem estar sob fruição da comunidade, do povo, como
diz mais ou menos o artigo 216. Se a Marinha vai retirar os bens e levá-los para fora
da comunidade, para onde não podem ser fruídos, é óbvio, que está causando, ao meu
ver, um dano ambiental. Se é patrimônio cultural, é patrimônio cultural do povo, não é
só da Marinha. É uma coisa à qual tem de ser dado tratamento museológico, de
exposição mesmo. Então, eu acho que cabe uma ação civil pública, cabe através de
entidade de preservação do meio ambiente há um ano instalada ou através até do seu
sindicato de classe; não existe sindicato dos arqueólogos, mas deve ter alguma
associação que defenda os interesses dos arqueólogos, a qual teria legitimidade para
propor essa ação, ou o próprio Ministério Público, porque é o caso do direito da
pesquisa científica. Haveria a necessidade de se fazer uma perícia que justificasse o
motivo, porque o bem não passaria à propriedade da Marinha, passaria à propriedade
da União, mas propriedade da União para que? Para fazer o que com ele? Sem uma
finalidade, não se justifica, porque o que você encontrou está no mar. Então, eu acho
perfeitamente defensável, nesse sentido, a sua proteção. Mas você falou de um
parecer: existe um parecer da Marinha a respeito?
Eliete Maximino - Doutor Eduardo, tem um probleminha, o parecer só seria dado a
partir do momento em que nós determinássemos o local exato aonde está situado o
material submerso.
José Eduardo Rodrigues- Aí, você pode propor uma ação cautelar preventiva; não
digo você, mas o Ministério Público, porque a ação civil pública não é possível que
seja movida pelo indivíduo, só por associação, por sindicato, pelo Ministério Público,
e haveria uma medida cautelar para assegurar a atividade de pesquisa. Porque, mesmo
que eles venham com parecer, esse parecer tem que ser justificado, não é dizer: olha,
o bem tem valor excepcional, porque nós entendemos que o valor é excepcional e
então tem que tornar-se bem da União. Não é assim, tem outros elementos, além do
elemento histórico. Esse é um ato administrativo. Ele é discricionário, mas por ser
discricionário, tem de ser justificado. Então, se você encontrou uma peça que seja
vendida em qualquer lugar por aí e eles disserem que vão tomar a peça porque é
excepcional, cabe a você discutir isso, inclusive em perícia judicial, através de ação
judicial.
José Luiz de Morais - Chamo agora Maria José Nazaré, do Ministério Público do
Estado do Amazonas, que dirigiu uma questão ao Dr. José Eduardo.
Maria José Nazaré: Gostaria que vossa excelência avaliasse a questão da
competência para analisar a questão dos recursos arqueológicos. A Resolução
CONAMA 01/86 fala sempre em licenciamento pelo órgão estadual competente; o
IPHAN, por sua vez, por uma portaria, diz que o empreendedor deve requerer
autorização para executar a atividade arqueológica; na prática, como fica o
empreendimento licenciado pelo OEMA e não pelo IPHAN?
256
José Eduardo Rodrigues - É o seguinte: o licenciamento ambiental não exclui os
outros; aliás, um bom licenciamento ambiental deveria condicionar a realização de
outros licenciamentos. No tempo em que eu era conselheiro do Consema, era muito
comum. Você recebia um projeto de loteamento, não estava claro, mas requeria
previamente um licenciamento do Município, porque um licenciamento não exclui um
outro. Um outro caso clássico que acho claro, é o inciso 60 do Artigo 2º, que fala em
extração de minérios, inclusive os da classe dois, definidos no Código de Mineração.
Quando se aprova um EIA/RIMA de extração de minério, não se está a excluir o
alvará do processo de mineração, que começa pela autorização de pesquisa, depois
tem análise do relatório pelo DNPM, depois a concessão do alvará. Então, esses
processos podem ser tocados simultaneamente. Inclusive, eu anulei uma autorização
judicial. Resumindo, um determinado minerador tinha um alvará e o proprietário,
dono de uma área de mata nativa, estava impedindo a entrada dele porque considerava
danoso ao meio ambiente, mas ele tinha uma autorização de pesquisa do DNPM e foi
concedida a liminar para ele entrar na fazenda. Então, essa liminar foi cassada, com a
justificativa de que não havia o licenciamento ambiental, quer dizer, havia o
licenciamento minerário mais não havia o licenciamento ambiental. Do mesmo modo,
também podeM acontecer situações em que há o licenciamento ambiental e não o
minerário e, do mesmo modo, o arqueológico. Então, são processos que devem ser
paralelos e que devem procurar se compatibilizar entre eles, dentro da competência
comum da Constituição. Se você tem uma área de mata nativa, por exemplo, o
IPHAN só pode conceder autorização de pesquisa arqueológica se causar o mínimo
dano ambiental possível e a posterior recomposição da área. Então, na prática, a
questão de como fica a situação do empreendimento licenciado pelo OEMA - Órgão
Estadual de Meio Ambiente e não pelo IPHAN: é necessário a licença deste último,
também. Uma licença não exclui a outra.
Maria José Nazaré - Então Dr. Eduardo pela sua ótica, embora o estudo prévio de
impacto ambiental seja entregue para o Órgão Estadual de Meio Ambiente e
contemple, dentre outros assuntos, o patrimônio arqueológico, isso não significa
necessariamente que estão satisfeitas as exigências do órgão federal e nem que a
licença concedida pelo órgão estadual tenha a concordância do órgão federal: é um
outro processo, que inclusive pode demandar um outro estudo prévio de impacto
ambiental, junto ao órgão federal.
José Eduardo Rodrigues- O loteamento está autorizado pelo Município, mas o
estado entende que é área de manancial e tem que preencher requisitos. Aí, você
apresenta o EIA/RIMA; uma coisa não exclui a outra. Agora, o que tem que haver é
uma compatibilidade. Por exemplo, um órgão municipal, ou estadual pode entender
que não cabe EIA/RIMA, mas pode haver um órgão de preservação que entenda que
cabe EIA/RIMA. Sendo razoável a exigência, tendo fundamento legal, não há como
se eximir. Também pode haver situações em que o município exclui arbitrariamente,
como acontece no município de São Paulo, onde ele exclui projetos de menos de
60.000m2 do estudo de impacto de vizinhança. como é chamado. Isso é
inconstitucional, porque não interessa o tamanho, e sim o dano. Se eu faço um
depósito de gás num bairro residencial de 10m3, eu causarei um impacto ambiental
terrível.
257
Maria José Nazaré - Então você já me esclareceu, é uma questão específica . No
caso, pode ser requisitado um novo estudo prévio de impacto ambiental, um outro
licenciamento para a questão arqueológica. Obrigada.
José Luis de Morais - Solange, por favor.
Solange Caldarelli - Eu só queria fazer uma colocação em relação ao que o Dr. José
Eduardo disse antes: cuidado Essa questão de você estar preocupado com sua casa,
porque você pode ter um bem do século XVI ou XVII, um bem bandeirista embaixo
do assoalho, atenção! se você escavar mais um pouco, mais para baixo, é possível que
encontre remanescentes indígenas. Sítios indígenas também se encontram nas áreas
urbanas; aliás, estas cresceram sobre eles. Agora, pelo que entendo, de acordo com a
legislação, você não precisa permitir que ninguém pesquise o subsolo de sua casa,
mas você não pode destruir, você é obrigado a preservar o bem arqueológico que se
encontra enterrado debaixo de sua casa.
José Eduardo Rodrigues - Essa colocação que você fez veio reforçar ainda mais a
questão de que, mesmo em relação ao sítio arqueológico pré-histórico, quando se fala
em domínio da União, não se fala em domínio-propriedade da União, e sim que a
União vai exercer uma fiscalização sobre ele. Isto reforça ainda mais o que eu disse;
eu te agradeço.
José Luiz de Morais - Agora Ana Cláudia, do DID/IPHAN.
Ana Cláudia - Eu queria fazer alguns esclarecimentos. Primeiro, quero discordar do
professor Caldarelli. Não entendemos que o que houve na Constituição tenha sido
uma simples mudança de nome: patrimônio cultural e patrimônio histórico, artístico,
arqueológico e tal não são apenas nomes, são conteúdos. Portanto, houve uma
abertura, houve uma democratização do conceito, no sentido de que não apenas o
patrimônio consagrado pelos governos, pelas elites, sejam considerados; nesse ponto,
concordando com que o Sr. falou, é um avanço, sim. Agora, quanto às formas de
acautelamento, eu discordo. Acho que toda lei depende de interpretação, como, aliás,
foi reafirmado por alguns membros da mesa. Acho que o Decreto 25, a Lei 3924,
enfim, toda a legislação é um grande guarda-chuva e, como você mesmo disse, é uma
utopia a gente poder caminhar até lá.
A outra coisa, ainda em relação à Constituição, à legislação e à ação do
Estado na área de preservação do patrimônio, é que, se a gente defende que a
Constituição não consagra mais o termo Nação, e sim União, de Estados, Municípios
e Distrito Federal, afirma-se, em todos os documentos oficiais do Ministério da
Cultura, que não se tem uma identidade nacional, mas uma identidade de culturas que
são particulares. Já se admite isso, se coloca em documentos oficiais; não é possível
que se admita que o patrimônio nacional una tudo, que patrimônio local seja
patrimônio nacional. Sobre isso, de fato, o IPHAN não tem um critério claro.
Nós também temos grandes discussões internas. Por que é que o conselho do
IPHAN tombou isso e não tombou aquilo, que está esperando há mais tempo. Mas o
critério do que é representativo, do que é testemunho de uma história de construção da
sociedade brasileira, é diferente, sim, do que é representativo da história da sociedade
de um determinado município, de uma determinada região, de um determinado
estado. Portanto, é perfeitamente factível que tenha tombamento em nível local, em
258
nível estadual e em nível federal, considerando que, assim, o estado nada mais faz do
que reconhecer a importância que a sociedade dá a esses bens em alguns momentos.
Porque quem propõe o tombamento não são os técnicos do IPHAN, mas pessoas da
sociedade, e, no caso, aplica-se sempre a legislação mais restritiva das três, quando se
tem os três tombamentos. Eu gostaria, não sei se todos conhecem, de recomendar o
livro “O Estado na Preservação de Bens Culturais”, de Sônia Rabello de Castro,
editado pela Renovar em 91, onde ela faz um estudo de toda a legislação disponível,
inclusive a Constituição de 88.
Carlos Caldarelli - Essas são questões apenas aparentemente polêmicas.
O que devemos ter presente para enfrentá-las são as regras da Lei de Introdução ao
Código Civil. Por elas, a revogação se dá tanto explícita quanto implicitamente e não
se pode considerar que uma norma só revoga outra quando diz textualmente isso.
O que a Constituição derrogou do DL 25, o que nesta última norma é incompatível
com ela, é o ranço autoritário de fazer a pertinência de um bem ao patrimônio cultural
depender do seu tombamento pela autoridade administrativa.
José Eduardo Rodrigues - Eu, como advogado, diria que a sociologia é ramo do
Direito e uma ciência social. O patrimônio seria do Direito, seria um patrimônio
jurídico da nação brasileira. Então, não tem finalidade essa discussão. Agora, com
relação ao patrimônio cultural, aí eu descordo completamente da colocação de que
existem patrimônios culturais que correspondem à nação, etc. Sou adepto do que diz
Tolstoi nos dois últimos capítulos da “Guerra e Paz”: a História é feita pelas massas;
essa é a minha opinião. Então, não tem sentido dizer que o Teatro Municipal do Rio
de Janeiro é mais importante para a formação da nação brasileira do que o Teatro
Municipal de Goiânia.
José Luiz de Morais - Professor Eurico Miller.
Eurico Miller - O que me preocupa profundamente é aquela grande massa de sítios
arqueológicos, lá no meio da Amazônia, que não estão facilmente ao alcance da
justiça, como as áreas urbanizadas, mas que estão nas mãos daqueles distritos, nem
estados, nem municípios de fins de linhas, como, por exemplo, um exemplo gritante:
Rondônia, que em poucos decênios tem dois milhões de agricultores em cima de
sítios, inocentemente destruindo o patrimônio cultural. Eu tenho feito trabalhos desde
a América do Norte até o sul da América do Sul, em lugares que agora são desertos,
que agora são pantanais e que há poucos milênios atrás possuíam aspecto
biogeográfico diverso. A evolução do homem é de predador para produtor; alguns
ainda se encontram no estágio de predadores e aí esse conceito de história e préhistória se complica; por exemplo, no litoral do Brasil, o Uru-Eu-Wau-Wau ainda é
pré-história; então, tem muita coisa para discutir. O homem como predador
permaneceu em pequenos bandos nos últimos cinco milhões de anos, perambulando
pelo planeta. Pelos dados que a gente conseguiu aqui no Brasil, que não pode se
excluir do resto da Amércia do Sul, porque cultura não tem fronteira política e tem as
migrações, difusões, o homem, como nômade e predador, vai até cerca de seis mil
anos atrás, quando começam a surgir alguns produtores. Aceitando que o Brasil já era
todo ele ocupado há doze mil anos atrás, nós temos sete, oito mil anos de nômades
fazendo pequenos sítios por todo o território e, como está sendo comprovado agora,
também na Amazônia. O problema é que lá na Amazônia o avanço é muito mais lento
que nas áreas urbanizadas que nós estamos discutindo. A lei, nessas últimas,
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rapidamente pode tomar uma atitude, salvar pelo menos uma parte, mas aqueles não
estão ao alcance da lei. Tem tradições que a gente conhece na Amazônia
representadas apenas por um sítio arqueológico. Como é que ficam, então, esses
sítios arqueológicos, que são 60% do território nacional ou muito mais; tirando as
áreas urbanizadas que estão relativamente protegidas pela legislação, como é que
ficam os demais, perante a proteção efetiva? Como disse um participante, há poucos
dias, em quinze anos não teremos mais nada. Uma hipótese: haveria um mecanismo
para fazer com que os prefeitos de cada município, lá no fundo de Rondônia,
Roraima, Acre tivessem alguma responsabilidade?
Carlos Caldarelli - Eu queria oferecer, ao Sr. e à nossa colega de simpósio que
acabou de se retirar, uma resposta breve: Todos nós aqui presentes somos antes de
qualquer coisa advogados. Assim, a nossa perspectiva é sempre buscar a melhor
maneira de defender o direito ameaçado de lesão.
O problema que o Sr. está colocando, assim como a questão da nossa colega de
simpósio que se retirou, levam ao mesmo questionamento: Qual a melhor maneira de
ler essas leis todas, no sentido de proteger o patrimônio cultural brasileiro? A única
resposta para essa questão é dada pelo direito de ação...
Eurico Miller - Só um aparte: nós temos órgãos ministeriais, como a SUDAM, que
tem claros fins econômicos, suspeitos, ligados a grandes fazendeiros. Massacraram
dezenas de aldeias Nambiquara no rio Guaporé. E daí vem aqueles fazendeiros, com
moto serra e devastam tudo, 100Km de sítios arqueológicos; quando a lei chegar lá,
não haverá mais nada.
Carlos Caldarelli - Sem interromper, e já interrompendo, o instrumento que é posto,
hoje, à nossa disposição é o processo judicial e o processo judicial depende da nossa
iniciativa. Ele não atua sozinho, ele só funciona com a nossa provocação. Então, o que
eu aconselho a todos os que querem ver direitos efetivados é sempre estar vigilantes e
recorrer a esses instrumentos, porque isso é um direito que nos assiste a todos,
enquanto cidadãos brasileiros.
Helita Custódio - A pergunta é tão importante; a preocupação do Sr. é tão relevante:
nós temos que orientar, e muito, as entidades da federação. Eu gostaria dizer ao Sr. da
importância de um município bem orientado. Se nós não partirmos do município para
fazer um levantamento de seu território, para verificar todos os bens culturais, com a
colaboração ao Estado, que fará no seu território estadual, como a própria União, sem
esse trabalho harmônico nós não podemos fazer nada. Então, eu gostaria que o Sr.
pedisse à Dra. Solange uma cópia do trabalho sobre os municípios que nós
apresentamos, porque eu sou da área do município e é uma preocupação profunda
minha o que o município pode fazer, se nós orientarmos bem. Ele é que tem a
competência direta.
Eurico Miller - Os Municípios têm muita conotação política, que varia de 04 em 04
anos, o que é um perigo. Um grupo durante 04 anos cumpre de boa vontade a lei; o
seguinte não cumpre.
Suzanna Sampaio - Mas é uma questão de orientação, com responsabilidade, no
sentido de preservar os sítios. É um negócio de orientação, educação.
260
Eurico Miller - Se o que eles querem é se manter no poder, daí o que manda é a
relação social do proprietário com o pretendente ao poder.
Suzanna Sampaio - Esse é o problema da educação ambiental. Se se tem
conscientização daquilo que se tem de fazer, isso será feito. Por isso é que eu me bato
sempre. Sem a educação ambiental em todos os níveis de governo, em todos os níveis
da sociedade, nós não vamos preservar. Isso é um problema nosso, por isso nós
estamos aqui tentando fazer isso: a conscientização nossa já é uma conscientização
que leva para o outros, não só para as pessoas físicas mas para as pessoas jurídicas. É
um desafio.
José Luiz de Morais - Bem, eu acho que está esgotado o tempo das discussões.
Passo, então, para a Solange encerrar.
261
ATAS DO SIMPÓSIO SOBRE
POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO CULTURAL
Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº 001/86 sobre a Pesquisa e
a Gestão dos Recursos Culturais no Brasil
DOCUMENTO - SÍNTESE
“Tendo em vista o consenso de que a base de recursos arqueológicos
do país é finita e não renovável; constitui legado das gerações pretéritas às
gerações futuras, não sendo lícito impedir-se sua transmissão aos seus legítimos
herdeiros; para assegurar que estes não sejam lesados em seus direitos, o
Simpósio “Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural”,
realizado em Goiânia, de 09 a 12 de dezembro de 1996, faz as seguintes
recomendações, no que concerne ao trato da questão arqueológica nos projetos
mencionados na Resolução CONAMA nº 001/86:
1. As pesquisas arqueológicas devem necessariamente ser implementadas
desde a fase dos estudos de inventário de empreendimentos potencialmente
geradores de impacto ambiental, uma vez que o objeto de estudo da
arqueologia não é facilmente identificável, encontrando-se na maioria das
vezes no subsolo e requerendo estratégias de longo prazo para a sua
identificação e avaliação.
2. Nos estudos de viabilidade ambiental e nos diagnósticos previstos nos
EIA/RIMA, deve ser sempre avaliado o potencial arqueológico de todas as
alternativas de estudo, com base em fontes secundárias e primárias.
3. Para avaliação dos impactos, deve ser sempre fornecido aos arqueólogos
documento detalhado sobre os procedimentos tecnológicos próprios do
empreendimento em estudo, para identificação dos fatores geradores de
impacto e avaliação de sua magnitude.
4. Uma vez escolhida a alternativa a ser implementada, durante o PBA (Plano
Básico Ambiental), recomenda-se levantamento arqueológico intensivo, com
intervenção no subsolo, para detalhamento adequado dos programas
propostos no EIA. Ao final do levantamento, os programas formulados ao
final do EIA poderão sofrer revisão e acréscimos, devendo a concessão da LI
(Licença de Instalação) estar condicionada ao compromisso do
empreendedor com a sua execução.
5. Os programas de mitigação, compensação e monitoramento dos impactos
arqueológicos devem considerar os estudos anteriomente realizados,
obedecer a critérios científicos e compreender, além das pesquisas de campo,
as análises de laboratório, a curadoria do material e a publicação dos
resultados.
262
6. Em todas as fases dos estudos ambientais atrás mencionados, as pesquisas
arqueológicas devem estar previstas nos termos de referência
correspondentes.
7. Em todas as fases acima, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional - IPHAN deve ser ouvido, com relação à necessidade de concessão
de autorização prévia de pesquisa. Havendo necessidade dessa concessão, o
órgão deverá emitir a portaria de autorização em prazos compatíveis com o
cronograma dos estudos.
8. Todos os resultados dos estudos realizados nas fases acima mencionadas,
mesmo aqueles baseados em fontes secundárias, devem ser encaminhados ao
IPHAN, para conhecimento.
9. Embora todos os resultados dos estudos arqueológicos realizados possam ser
utilizados pelo contratante, o direito autoral é do pesquisador responsável.”
Goiânia, 12 de dezembro de 1996
Universidade Católica de Goiás
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia
FÓRUM INTERDISCIPLINAR PARA O AVANÇO DA ARQUEOLOGIA
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