Melancolia e vaidade na arte colonial mineira

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Melancolia e vaidade na arte colonial mineira
Melancolia e vaidade na arte colonial mineira
Andréia de Freitas Rodrigues
Figura 1: São Francisco de Assis Agonizante
Figura 2: São Francisco de Assis penitente
Ataíde, Capela de São Francisco de Assis, 1794 / 1804, Mariana
São Francisco de Assis Agonizante (Figura 01) e São Francisco de Assis Penitente (Figura 02)
são painéis que compõem a decoração do forro da sacristia da Capela da Ordem Terceira de
São Francisco de Assis, em Mariana. De autoria de Manuel da Costa Ataíde1, foram pintados
provavelmente entre os anos de 1794 a 1804, período em que o artista trabalhou no douramento
do trono e altar-mor, pintura e encarnação de imagens nesta mesma capela.
São pinturas que apresentam composição e temática bastante semelhantes: ambas mostram
passagens da vida de São Francisco de Assis. Enquanto a primeira mostra o instante de sua
morte, a segunda reproduz o santo em oração. Utilizam o mesmo pano de fundo, ou a mesma paisagem onde se desenrolam as cenas. Revelam à esquerda a mesma cabana e à direita a
paisagem marítima, onde flutua uma embarcação à frente de um lugarejo distante. Atrás, um
conjunto de montanhas se funde ao horizonte. Ao centro está a figura principal, sentado em
um monte de feno ou em uma gruta que se abrem em rocaille. O santo parece imobilizado por
um sentimento de privação e morte, exibindo um olhar de sofrimento e agonia. A cor escura
de suas vestes reforça o peso e a inércia da figura e pontua a divisão cromática e geométrica
das pinturas. Acima o predomínio de variações tonais entre azuis, rosas e brancos enquanto
na inferior os tons terrosos e sombrios prevalecem, tornando a paisagem um tanto árida. Uma
ampulheta marca a passagem do tempo dos prazeres terrenos, ao lado de um crânio, um livro
1 Segundo Yacy-Ara Froner, Ataíde não aparece nos registros como executor das pinturas, porém “no confronto
entre estas pinturas e outras obras documentadas, encontramos evidentes traços compositivos que delimitam
suas características, tanto do ponto de vista formal como em relação ao desenvolvimento erudito de seu programa conceitual” (Yacy-Ara Froner, Os símbolos da morte e a morte simbólica: um estudo do imaginário na arte
colonial mineira. Dissertação - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1994, p. 116).
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aberto e outros objetos. Toda a cena emoldurada por anjos registra o instante, o limite entre
vida e morte2 (Figura 01) ou o tempo da contrição e arrependimento3 (Figura 02).
Estes dois painéis personificam os princípios morais da conduta e valores cristãos, onde o sofrimento, a privação e a morte conduzem à vida eterna. Em ambas, a estética, a temática e os
objetos simbólicos como o crucifixo segurado pelo santo, o crânio, a ampulheta, o livro sagrado
aberto, o cilício convergem para o conjunto imagético que se referem tanto ao tema da melancolia quanto ao gênero das vanitas4.
Detalhes das figuras 01 e 02
Gênero largamente explorado nos séculos XVI e XVII na Europa, as vanitas desenvolveram-se
em um mundo desamparado e incerto, onde o homem constatou sua impotência, sua fugacidade e essas alegorias utilizadas como uma de suas principais linguagens, funcionavam como
potentes tradutoras dessa transitoriedade das coisas. São imagens que colocam o expectador
diante de seu destino inevitável, sem possibilidades de desvios ou trocas, construindo um enredo implacável que exige a abnegação aos bens mundanos. Para além de naturezas mortas,
mais comuns no conjunto de representações deste gênero, há ainda outra reunião de imagens
-referência: cenas de santos penitentes, eremitas ou em êxtase. Durante o período Barroco
ocorre uma profusão dessas imagens: figuras com olhar distante, meditando imersas em profunda solidão, tendo ao lado elementos como crânios, ampulhetas, crucifixos, entre outros,
característicos das representações das vanitas e onde o sentimento melancólico, acompanhado
por uma estreita relação com a morte, certamente está presente.
E é neste estado de profunda introspecção espiritual proporcionada por uma disposição melancólica, na solidão, que o homem toma consciência de seu interior, passa a ver sua existência
de modo reflexivo. Neste instante, a vida assume sua fragilidade diante de seu destino inexorável, seu fim – a morte.
A vaidade, um dos sete pecados capitais, considerado imperdoável, levaria invariavelmente a
alma à condenação. Nesse contexto, o Concílio de Trento ao reafirmar o papel da imagem como
instrumento de doutrinação e manifestação de devoção, enfatizou o uso das imagens associadas à reflexão da morte: as vanitas tornaram-se indispensáveis nas representações dos santos
e nas construções emblemáticas de fundo moral e religioso. Uma provável inspiração para tais
formas parece ter sido os Exercícios Espirituais propostos por Inácio de Loyola em 1687 e lar-
2 A posição dos pés do santo sugere que ele não está sentado sobre o monte de feno e sim flutuando, alusão a
passagem de sua morte, quando o próprio São Francisco viu sua alma levitar.
3 Na introdução de sua tese, A arte da pintura: prescrições humanistas e tridentinas na pintura colonial mineira
(2008), Raquel Pifano faz uma ótima análise da figura 01, embora não a relacione às vanitas.
4 Detalhes das figuras 01 e 02. Os anjos carregam a inscrição: “Pretioza in conspectu dei, mors sanctorum e ius”
(Preciosa na presença divina, morte santa e justa).
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gamente utilizados pela Igreja contra-reformista, por apresentarem a disciplina da piedade e
da oração sistemática, realizada preferencialmente de olhos fechados e diante de uma caveira5.
Revelando um modo de considerar a vida, e assim a morte, as vanitas reforçam a constatação
de toda fugacidade e precariedade do mundo. A ideia de um fim inevitável e opressor forma
uma visão pessimista sobre toda a existência e é na morte enfim, que está o refúgio e a salvação.
Releitura de antigas tradições utilizada por um discurso religioso, as vanitas passam a representar a moral cristã reformada, advertência ao caráter efêmero da vida, sua fragilidade e inconstância, ao desengano das vaidades e inspiradas por uma melancolia intrínseca, argumento
constante diante da iminência da morte.
A vida, desvalorizada, passa então a ser aquele breve momento onde a redenção, o sofrimento,
a privação e o sacrifício, permitirão a chegada a um estágio espiritual elevado e satisfatório
alcançado no instante da morte. E ainda assim, há a incerteza melancólica de que talvez nem
mesmo todo o caráter virtuoso de uma vida humilde, garanta o prêmio maior da abnegação.
Ao longo dessas imagens vemos um acúmulo de objetos simbólicos como velas apagadas, flores
murchas, ampulhetas ou clepsidras, sinal da fugacidade do tempo; a caveira, indício de nossa
finitude e do encontro inadiável com a morte; objetos ostentatórios, pérolas e joias, moedas,
prevenção sobre o prejuízo da vaidade da riqueza, objetos episcopais revelando o caráter ilusório do poder, livros e instrumentos musicais, símbolos do caráter vão do conhecimento e da
arte.
Estes objetos estão representados geralmente ao lado dos santos penitentes e/ou eremitas6,
envolvidos numa atmosfera melancólica e em uma paisagem agreste, expondo pelo menos
uma das três ordens de elementos mais constantes no repertório dessas representações e que
norteiam sua leitura: objetos que evocam a brevidade da vida humana, a incerteza evidente do
mundo, objetos que fazem alusão à materialidade terrestre luxuriosa e objetos simbólicos que
reafirmam a iminência da morte e a ressureição, muitas vezes acompanhados de inscrições
retiradas do livro Eclesiastes7, conduzindo à reflexão e à meditação.
Estas representações de vício e virtude, de vida e morte, eficaz advertência e aviso de nossa
efêmera passagem pelo mundo e temor diante do juízo final também estarão presentes em
diversas obras de Albrecht Dürer, como veremos adiante. Aproximadamente em 1528, ano de
sua morte, o artista alemão realizou um memento mori8, onde se lê na legenda: “Não existe
nenhum escudo que vos possa defender da morte; quando chegar a vossa vez morrereis, crede
em mim” (Figura 04).
5 Froner, 1994, p.111
6 Fazem referência à representação medieval da acedia ou ascídia, “doença” que acometia os monges e solitários
ou os anacoretas, que viviam na solidão dos desertos, submersos em meditações.
7 Vanitas vanitatum et omnia vanitas (Vaidade de vaidades, tudo é vaidade) Eclesiastes, XII,8. Rodrigo Bastos
cita o Dicionário de sentenças latinas e gregas: o conceito implícito na expressão vanitas vanitatum encontra
‘filiação na cultura mesopotâmica, o de que qualquer ação humana é absolutamente vã e inútil’. Prossegue:
‘vanitas vanitatum é pois, a transposição de uma expressão hebraica com valor superlativo’ (significa, portanto,
imensa vaidade). O dicionário comenta a apropriação de semelhante sentido nas línguas neolatinas, mas não
cita a consagração da expressão como alma de emblemas da iconografia católica (Rodrigo de Almeida Bastos, A
maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese de
Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, PPG - FAU, 2009, pp. 366 – 367.
8 Ainda citando Bastos, o mesmo dicionário diz que a expressão é de origem medieva, provavelmente monástica
(Walter 14632ª, e também 14631, Memento cita mors venit, ‘lembra-te de que a morte vem depressa’). Adverte
porém, de um trecho do Eclesiástico (38, 20): Memento novissimorum, ‘lembra-te dos últimos tempos’, que além
de remeter a um sentido semelhante, recorda a admoestação Divina a Adão e Eva por causa da expulsão do
Éden. Há, no dicionário, o comentário de como a expressão se tornou um topos literário ou um componente de
cerimônias de coroações, a lembrar o coroado de que ‘a glória terrena está destinada a desaparecer em breve’
(Bastos, 2009, p. 370).
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As prescrições colocadas no Concílio de Trento, pela Igreja reformada, nortearam de forma
geral e enérgica os ofícios religiosos, revestindo-se de conteúdo moral, o decoro9 foi associado
à decência em oposição ao profano e ao impudico10.
Quanto às pinturas sagradas, dever-se-á estabelecer as que o Concílio de Trento recomenda expressamente (...), sua matéria deve ser tal que não sofra nem alteração
nem inovação por parte daqueles que não têm autoridade legítima (...) afirmamos
que o ofício do pintor é imitar as coisas como são na natureza, e tão só (...) não lhes
cabe ir além desses limites, pelo contrário: ele deve deixar aos teólogos e mestres
na doutrina sagrada o cuidado de estendê-los a sentimentos mais elevados e misteriosos.11
Portugal adaptou-se à essas resoluções, que alcançaram assim suas colônias, cumprindo os
objetivos de reafirmação de dogmas, reforma clerical e sobretudo, o combate aos pecados, heresias e blasfêmias, assumindo nas colônias ainda, a tarefa de evangelização dos fiéis ainda
leigos. Dessa forma, a Igreja alargou seu campo de ação e ordenação dos valores cristãos, num
processo de moralização disciplinar, que no Brasil chegou apoiada pelo estado português e ao
longo do século XVIII difundiu-se pela sociedade mineira.
Como eficaz estratégia de catequese das almas selvagens, foram utilizadas tanto a palavra
quanto a imagem, em um arranjo onde cada uma potencializava o poder da outra na difusão
da política missionária cristã. De modo geral, temas que destacavam a vida de Cristo, hagiografia de santos, ordens religiosas e evangelhos foram usados para reafirmar o significado da
morte e do juízo final, da salvação da alma e da expiação dos pecados, formando um conjunto
de fontes iconográficas e textuais repetidamente utilizadas, prescrevendo os modos de agir e
viver dos fiéis e criando uma espécie de códice que serviria de orientação à produção artística
e à literatura religiosa.
A produção artística colonial mineira operou fortemente influenciada por esse código, estabelecido pela Igreja contra reformista, mesclando sua ideologia a elementos culturais locais, resultando em uma arte, consequência de uma motivação religiosa, possuidora de valor estético
incontestável e considerável significado histórico documental, extrapolando suas formas para
alcançar significados próprios e singulares.
Reafirmando que alguns símbolos ou emblemas recorrentes nas imagens de temática melancólica atuam também no interior das representações do gênero das vanitas e da mesma forma
em diferentes obras mineiras e que a produção artística colonial mineira submeteu-se à influência das prescrições estabelecidas pela Igreja contra reformista, pode ser verificado que
elementos culturais locais foram amalgamados à ideologia religiosa, guardando, porém, cada
um deles suas qualidades especiais entre alteridade e equivalência.
Entre personagens reflexivos, absortos entre o presente de penitências e privações, o passado
de pecados e consumição e o futuro certo da morte e incerto da salvação, encontramos inúmeras representações de santos, que por terem passaram por momentos de grandes mudanças de
vida e de passagens de superação pré morte, possuíam os aspectos decorosamente requeridos
para a ornamentação dos templos. Não só a figura de São Francisco de Assis se presta com
9 Sobre a teoria do decoro, decência, preceitos, conceitos e aplicações, ver o completíssimo trabalho de Rodrigo
Almeida Bastos (2009), também citado por Raquel Pifano.
10 Pifano, 2008, p. 12.
11 Jacqueline Lichtenstein (org.). A Pintura: textos essenciais – Vol. 2: A teologia da imagem e o estatuto da pintura.
São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 8
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eficácia este propósito, mas também outros como Maria Madalena, São José ou São Jerônimo
se aproximam dessa imagem reflexiva, comum nas vanitas e amplamente utilizada pela Igreja
Católica.
Exemplo de conversão, São Francisco abandonou uma vida profana, de excessos, erros e riqueza, em favor de uma vida sagrada, de penitência e humildade. Passou por episódios de sonhos
e aparições divinas e pelo retiro em uma caverna para meditação. Abdicou de toda herança
material e seguiu um caminho de devoção, fundando a Ordem Franciscana.
As representações de São Francisco do período Barroco, diferente de períodos anteriores, mostrarão o santo longe dos cenários amenos, solitário e acompanhado de seus instrumentos de
autoflagelação: o cilício e o açoite12.
Percebemos então que as vanitas passam dos limites das naturezas mortas ou representações
das danças macabras e ars moriendi (arte de morrer, comuns no período medieval), para atuarem também nas imagens dos santos penitentes, iconografia religiosa que, sendo uma característica barroca européia, chega à colônia, vindo a ser muito utilizada na ornamentação de
igrejas e capelas coloniais mineiras como forma de educação e catequese dos fiéis.
Em Minas Gerais, no período colonial, a circulação e utilização de gravuras com este tipo de
fonte contribuiu para a realização de grande número de tais imagens. No caso do mestre Ataíde, é sabido que ele utilizou estampas originais da Antuérpia, rota de circulação e comércio de
tais modelos. Consta em seu inventário13 que possuía pelo menos um livro de estampas, mas o
inventário não faz especificações do mesmo. Pesquisadores têm se debruçado nesta questão,
tentando definir quais foram os modelos definitivamente usados pelo artista.
As obras produzidas na colônia possuíam um caráter fortemente devocional e popular, enfatizando o aspecto da fé e catequização, sob a influência dos preceitos tridentinos. Um exemplo
do uso da imagem para este fim é a pintura do nártex da Capela da Ordem Terceira de São Francisco de Assis em Ouro Preto, onde vemos uma típica vanitas com a inscrição bíblica: “Vanitas
Vanitatum” (Figura 05). Está direcionada a todos os fiéis que entram no templo, advertência de
nossa finitude e conselho de prudência. A colocação da figura está perfeitamente adequada do
conceito e seu uso instrutivo, lembrando que a vida é breve e que a morte chegará: memento
mori.
Um epigrama carregado por um dos anjos, torna mais clara a finalidade do emblema: “Quid
quid agis/ prudenter agas/ et respisce finem” (Tudo aquilo que fizeres, faze-o prudentemente,
e visando a um fim). A imagem constitui-se assim, em um conjunto completo de elementos
de persuasão, que atuam nos fiéis, atualizando a memória pela penitência e abnegação como
recursos eficazes para uma perfeita vida cristã rumo à perfeição do encontro com Deus.
12 Durante o período Barroco sabemos que os santos fundadores de ordens serão reconhecidos iconogra-
ficamente, tanto por seu manto quanto por seus atributos pessoais. Em suas representações é praticamente
impossível vê-los desacompanhados de seus livros sagrados ou não cumprirem as regras de disposição dos
objetos: todo elemento relativo às suas provações, ao demônio, encontram-se abaixo dos pés, assim como os
instrumentos de tortura. Mas nem sempre essas representações obedeceram essas formas. Até os séculos XIII
e XIV, os atributos principais de representação em vida de São Francisco foram pássaros e animais, como nas
pinturas de Giotto ou Duccio, a partir do século XVII estes elementos passam a ser substituídos pela caveira
meditativa, pelo sofrimento e as chagas. Por outro lado, se até o XVI o momento de sua morte é apresentado
por uma composição em que aparece São Francisco de Assis sendo velado por seus irmãos e seguidores, demonstrando o princípio da solidariedade dentro da ordem, no Barroco os cenários amenos e pacíficos da vida
do santo desaparece. A cena da morte deste santo penitente passa a apresentar-se isolada, solitária, junto aos
seus instrumentos de autoflagelação - o açoite e o cilício (Froner, 1994, pp. 113 a 115).
13 O Inventário do artista está reproduzido em: Ivo Porto de Menezes, Manoel da Costa Athaide. Belo Horizonte:
Escola de Arquitetura da UFMG, 1965.
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Ainda na mesma Igreja, o caráter do desengano e penitência aparece em outras quatro pinturas, atribuídas também à Ataíde: São Francisco de Assis (Figura 06), Santa Margarida de Cortona, São Pedro e Madalena Penitente.
A trajetória da melancolia e sua ambígua tradição, como sabemos, é longa. Remonta à Antiguidade Clássica e encontra na gravura Melencolia I, um completo exemplo de representação, a
síntese da filosofia de Marsilio Ficino, que apresenta as ideias neoplatônicas de alargamento do
conhecimento e glorificação do homem, amparadas pela informação mágico-astrológica, e que
encontrou seu terreno fértil para manifestar-se plasticamente na obra de Dürer. Especialmente sobre o tema da melancolia, a aclimatação transalpina realizada pelo artista alemão encontra
todas as suas referências ao longo da obra de Ficino, principalmente no De vita triplici: a retomada da concepção melancólica de Aristóteles (Problema XXX) ou do furor de Platão, compreensão da força capaz de levar ao conhecimento, fonte de inspiração regida pelo temperamento
negro e bilioso, atribuída ao planeta Saturno. Recordando o sentido elevado e simbólico deste
planeta e as sutis energias que contém, além se seus aspectos negativos e das pesadas cargas
que lhe aplicaram interpretações supersticiosas, mostrou que possui também distintas características opostas das coisas. Saturno é a lentidão e a sabedoria da velhice, a passagem para o
estado purificador que precede a morte. Saturno representa o tempo, que devora os pequenos
sucessos temporais, que residem na vaidade, assim como devorava seus filhos, extinguindo
em ambos os casos, aquilo que criou14. Também há em Ficino toda sorte de recursos para a
proteção dos efeitos nocivos causados pelo estado melancólico, o que incluiu a manufatura
de amuletos e poções bem ao gosto alquímico, a música astral ou a magia celeste, enfim, uma
vontade de ambos de aproximação com Deus, que em última instância, estaria no encontro e
realização da perfeição e da beleza. Melencolia I apresenta uma poderosa concordância entre
uma ideia e uma imagem concreta, tornando-a um marco referencial para as representações do
humor melancólico, que permanece até os dias atuais.
Dürer também produziu outras duas gravuras, que juntas à Melencolia I, formaram sua mais
famosa tríade: São Jerônimo em sua cela, também de 1514 e O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, de
1513. As três gravuras formariam uma unidade espiritual, correspondente à classificação escolástica medieval das virtudes, divididas em virtudes morais (O Cavaleiro...), teológicas (São
Jerônimo...) e intelectuais (Melencolia I), um conjunto plausível com a classificação dos três
mundos: imaginatio, ratio e mens15.
O Renascimento havia valorizado de modo extraordinário a melancolia e o abatimento triste
com o qual se manifestava e considerado que era um estado onde florescia a inspiração, o berço
da compreensão e do êxtase. Dürer a expressou e destacou sua vinculação com o metafísico,
o simbólico, o numérico e o esotérico. Atribuiu a este humor o mesmo valor que Aristóteles:
seria próprio de heróis, poetas e grandes homens e sua manifestação geraria o frenesi que leva
à sabedoria e à revelação. Melencolia I constituiu um conjunto fundamental de referências para
a representação da melancolia, convertendo-se em índice para as artes plásticas, para Dürer e
sua obra e todo o contexto do ambiente de sua elaboração, época onde a possibilidade que se
apresentava ao espírito humano de pensar o mundo como uma totalidade inteligível (racional
e real) se unia às doutrinas religiosas que até então haviam conduzido esse espírito. Misturou
à personificação de certo estado anímico, uma inclinação particular da sensibilidade e a encarnação em forma de alegoria de uma faculdade criadora da inteligência, o poder de pensar
o mundo mais geometricamente. Confundindo assim em uma mesma figura, duas faculdades
humanas não somente heterogêneas (uma afeição anímica e uma disposição da inteligência),
14 Raymond Klibansky; Erwin Panofsky; Fritz Saxl, Saturno y la melancolia, Madrid, Alianza Editorial, 2004, pp.145
- 146.
15 Klibansky et al., 2004, p. 259.
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mas também antinômicas, aqui a antiga inapetência espiritual que conduz à inatividade e ali,
o contrário, uma faculdade mental voltada para a criação.
É certo que não só Melencolia I, mas outros trabalhos do artista alemão, assim como as gravuras citadas anteriormente, trazem elementos característicos das vaidades, como a ampulheta,
presente nas obras ou o crânio que aparece em São Jerônimo, ele mesmo a grande figura do
eremita, exemplo de conversão, profundo conhecedor das escrituras sagradas. A presença da
morte e do diabo, no Cavaleiro, lembrando nossa submissão ao poder aniquilador do tempo e
nosso destino incerto.
A obra de Dürer experimentou constantemente a efervescência do momento histórico que
precedeu a Reforma Protestante e efetivamente se mostrou em trabalhos que debatem valores
religiosos, discussões memoriais e identitárias e em certos momentos, uma (re)orientação de
sua temática, o que para alguns autores significou um retrocesso. De qualquer forma, a trajetória de seu trabalho demostra seu envolvimento com o projeto reformista e seu embate pessoal
diante do saber universal alcançado no Humanismo.
Uma das inúmeras interpretações dadas à gravura, diz que Melencolia I antecipou o tema central do Barroco: a integração da imagem renascentista da melancolia com a da vaidade. Um
saber que vem da ruminação e que forma um novo homem.
É consistente com esse conceito que em torno do personagem de Albrecht Dürer,
na Melancolia, estejam dispersos no chão os utensílios da vida ativa, sem qualquer
serventia, como objetos de ruminação. Essa gravura antecipa sob vários aspectos o
Barroco... A Renascença investiga o universo e o Barroco, as bibliotecas. Sua meditação tem o livro como correlato (...)16
A noção de tristeza que acompanhou a melancolia neste período, o Barroco, estaria ligada ao
sofrimento pela perda, pela perturbação relacionada ao futuro e nesse momento somente a
meditação e a solidão poderiam tornar suportável ou compreensível. A melancolia seria então
como o outono, que precede o inverno, assim como a velhice que precede a morte, um momento de auto percepção e conhecimento reveladores que antecedem o instante final.
O homem parece então identificar-se ao melancólico, mas distanciando-se da categoria elevada de gênio ou de herói, retomando as representações medicinais antigas da patologia, de
Hipócrates a Galeno e adicionando a elas outras representações de ordem filosófica, moral, religiosa e estética. A antiga doutrina hipocrática, que descreve esta afecção como o resultado de
um desequilíbrio patológico dos quatro humores constituintes do corpo, onde predominaria a
bílis negra, continua a ser uma referência primeira no que diz respeito às causas da doença. As
perturbações melancólicas são sobretudo, a tristeza e o medo e aquelas que têm origem a partir dela, como desconfiança, dúvida, desespero. O medo contínuo de um perigo futuro abate
o coração ao ponto de tornar o presente o que é somente esperado. Frente a uma consciência
tão aguda de nosso limite, a beleza não pode ser mais do que suspiro e abatimento, como. O
melancólico se desapega do mundo por que sabe como é impermanente. Esta renúncia precoce identifica o reconhecimento de uma ameaça, assim como nas vanitas, de se desfazer, de se
perder em um vazio que o refuta.
Essa finitude coloca o indivíduo diante de um abismo, constatação de que todas as coisas são
ilusórias e equivocadas, afinal a vaidade não nos leva à lugar algum... Nesse sentido, a disposição melancólica que emana dessas imagens é a marca de um olhar desencantado que assiste
à mais profunda transformação, desagregação e efemeridade do mundo, estabelecendo um
16 Walter Benjamin, Origem do Drama Barroco Alemão, São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 121.
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contraste fundamental, “um sentimento implacável parece sempre presente, esse de que o caminho da vida é reto na direção da morte”17.
Figura 03: Melencolia I, Albrecht Dürer
Gravura em buril, 1514. 239 x 168 mm
Paris, Bibliothèque Nationale
Figura 04: Memento mori, Albrecht Dürer
Óleo sobre tela, 1528. 37 x 29cm
São Petersburgo, Museu Ermitage
Figura 05: Vanitas Vanitatum, Ataide
Capela de São Francisco, Ouro Preto
Figura 06: S. Francisco de Assis, Ataide
Capela de São Francisco, Ouro Preto
Melancholy, Domenico Feti
Óleo sobre tela,1614(?), 172,5 x 128,2cm
Paris, Museu do Louvre
17 Benjamin, 1984, p. 71.
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Se a melancolia nos desterra para a solidão do ermo, não deixa de ir connosco a
vaidade; e então somos como a ave desgraçada, que por mais que fuja do lugar em
que recebeu o golpe, sempre leva no peito atravessada a seta: nunca podemos fugir
de nós: para donde quer que vamos, imos com os nossos mesmos desvarios...
Matias Aires
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Resumo
Abstract
A melancolia, como sabemos, possui extensa e diversificada tradição no campo das
artes, podendo ser contemplada a partir de
diferentes perspectivas. No período Barroco,
por exemplo, esteve associada ao gênero conhecido como vanitas ou vaidade, memento
mori e a todos os símbolos que compõem o
conjunto imagético e filosófico dessas representações.
Melancholy, as we know, has an extensive
and diverse tradition in the arts, and can be
adressed from different perspectives. In the
Baroque period, for example, was associated
with the genre known as vanity or vanitas,
memento mori and all the symbols that make
up the imagery and philosophical set of these
representations.
Esta comunicação propõe um estudo de dois
trabalhos pictóricos do período colonial mineiro, que por exibirem construções formais
e ideológicas parecidas, permitem uma análise simbólica, identificando elementos específicos que incluem tais obras no repertório iconográfico e/ou iconológico tanto das
vaidades quanto da melancolia. A reflexão
pretende alargar a percepção de pinturas que
inseridas no período e o contexto cultural
das Minas Gerais setecentista, apontam para
uma dimensão mais ampla, não somente interessada ao culto divino, mas também a esse
sentimento tão próximo do espírito humano,
a melancolia.
This paper proposes a study of two pictorial
works Mineiro’s colonial period, that exhibits
similar formal and ideological constructions
allows a symbolic analysis, identifying specific elements that include such works in iconographic and/or iconological repertoire of
vanities as much melancholy. The reflection
aims to broaden the perception of paintings
entered in the period and the cultural context
of Minas Gerais eighteenth-century, point to
a wider dimension, not only keen to divine
worship, but also to that feeling so close to
the human spirit, melancholy.
Keywords: melancholy, vanitas, Mineiro’s colonial art.
Palavras-chave: melancolia, vanitas, arte colonial mineira.
Sobre a autora
Andréia de Freitas Rodrigues é Conservadora-Restauradora da Universidade Federal de Juiz
de Fora (UFJF), atuando na Coordenação de Preservação do Arquivo Central/UFJF, desde 2010.
Graduada em Artes e Design pela UFJF em 2005, mestre em História pelo Programa de Pósgraduação em História (UFJF – 2009). Tem atuação na área de Artes, com ênfase em artes plásticas, trabalhando principalmente com os seguintes temas: articulações entre arte, história,
memória; representações da melancolia; preservação, conservação e restauração em diferentes
suportes, especialmente papel.
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A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I I • A N O I I • 2 0 1 4 • R i d E M

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