Untitled - Jornal de Poesia

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Untitled - Jornal de Poesia
© Alma em chamas, Floriano Martins, 1998, 2010, 2013
© Fotografias, Floriano Martins, 2012
© ARC Edições, 2013
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ALMA EM CHAMAS
1998-2010
I. ANTES DA QUEDA
Esta é a morte.
Porém, desde
quando eu a vivo?
Doug Moench
1.
Eu trouxe essa dor para dentro de ti. Não pude mais mantê-la afastada. A todo instante me persuadia a isto e
em minha angústia boiavam as vítimas que fui asfixiando na memória. Era gente sem nome. Jamais se deu
pela falta de uma. O que me consome é o anseio de não repetir-me, uma vez sequer, tornar nossos corpos
íntimos antes de me despedir de cada um, roçar-lhes o pânico, com extrema dedicação. Eu sempre atalhei a
dor que agora se arrasta em teu ser, cuidando daqueles resignados todos de maneira que não soubesses de
nada. Mas já não suportava ler nos jornais que os crimes eram todos iguais. Eu era o único a poder provarlhes a diferença. A dor que sentes não é maior do que a minha. Fomos traídos pela incompreensão. Este
mundo já não é o nosso.
2.
A memória nos encurrala dentro da sala com visitas, os parentes disparando um último enigma: vieste para
apodrecer. Dias escrevendo um mesmo poema ou alimentando a volúpia de imagens de uma tela. Um
descuido perfeito nos leva a crer na destruição do mundo. Quanto tempo tens até que eu te mate? Nenhuma
vítima jamais me perguntou isto. Nossa relação com o tempo está baseada na ilusão da eternidade. A menina
encontrada morta no lixão, os olhos faltando. As palavras finais do enforcado: não cometi atos de impureza.
Dois amantes cegos. A memória constrói uma casa indefesa. E quem a habita? Para ali levamos os crimes
primários. Pequenos furtos de desejos e versos alheios. Um velho negociante de almas conforta a clientela
dizendo-se guia dos inclementes. A memória é o lugar menos indicado para alguém apiedar-se de si. Leram
nos jornais sobre o louco que foi preso apenas por haver indicado o local exato onde estaria assando o sétimo
e último corpo devorado? Os mortos eram ninguém. O maluco sentenciado a sete prisões perpétuas disse não
entender nada sobre o destino da humanidade: Que falta faço ao mundo? Vez que outra vou por onde não
me lembro. Dizem que os grandes saltos não sabem por onde começar. Desfaço-me de tudo. Deixo anotado
em algum lugar que não devo me lembrar de mais nada.
3.
Um corpo provido de línguas que abre caminho e fere tudo o que produz, uma irresistível forma recurvada
chorando a dor chamejante da solidão. Um corpo que é o portal de todo júbilo, do fogo que se faz súplica
incessante e prevalece o corte, a tempestade, a destruição. Um corpo que nos guarda de ser o que somos, que
nos conhece por tantos nomes e que não pára de enganar-se. Um corpo a proferir suas chamas (enlevos,
miragens) e que sinta-se puro ainda que cego o espelho da pureza. Um remo recoberto de musgo em cujo
corpo mutila-se a inscrição de um caminho sagrado. Um corpo que não seja mais completo do que os demais.
4.
Onde moro o tempo decai como uma saliência prevista para estar ali sempre em declínio. O que quer que
aconteça, terá o mesmo saldo. Um lugar assim, onde a frustração justifica ingerência do acaso, eu o tinha
como decorrência, crimes, sim, propiciados pelo ambiente. Aqueles moleques perambulavam por ali, longe
da escola. Uns musculosos me fascinavam, fui pescando os que me aturdiam, mexiam comigo. Não havia
como não me desvencilhar deles. ¿Há uma relação essencialmente fortuita entre causa e efeito? Uns
choravam tanto, os que mais gostei, e desde cedo percebiam o que havia de inopinado no destino. Um outro
recusou tudo isto, o grande amor que eu dedicava a todos. Enquanto o castrava, me disse: tu não és nada.
Não sairás daqui para parte alguma.
5.
Por onde anda o incrível canto da destruição?
Vasta e obscura e silenciosa tem sido a peregrinação dos poetas em busca das contas perdidas. Não são mais
cantores sequer de si mesmo. Saudosismo talvez não passe de uma forma de denúncia, talvez. Um resumo
de quedas inclui metáforas tão alheias à paisagem humana. Poetas flutuam em balsas em um naufrágio de
símbolos. O rio é o mesmo enfermo grave da linguagem. Lápides como não há regresso ou tudo é silêncio
não são senão sinais de uma triste violência, o ludíbrio do poeta diante de si. Essa torpe criatura
contempla a própria morte com orgulho.
O esplendor de imagens vicia o poeta em uma enganosa metafísica. Tudo nele é forma transparente. Já não
reconhece mais nada pelo próprio nome. Pobre diabo, quer reeducar-se buscando uma ordem geométrica
para o acaso ou movendo a claridade exangue de um canto a outro, alheia ao miserável equívoco da
existência humana.
Engole relógios superstições cadafalsos mensagens gravadas dá aulas de eterno regresso prepara gemadas
para a longa jornada nada adentro guarda santinhos no bolso julga ser imortal a alma desespera-se com a
noite (covas entalhadas) ignora mesmo que nome tenha o instante em que a dor apenas dói. Graças ao
poeta perdemos a noção do que há de ser destruído. Ao dizer que só a poesia lhe consola, aguou o pomar
de suas úlceras e regulamentou a lei do nada mais importa. O poeta não era simbolista cubista surrealista
concreto neobarroso. Verbo caprichoso, política de aposentos, preparou o estômago para uma dieta de
falta de princípios.
Os suicidas deixam bilhete comovente dando pela importância alguma de sua vida. Alguns crêem que não
morrem de todo, apelam para o apesar de tudo, amanhecerá. Um bando de castos paranóicos crê em
listas negras desde que seus nomes constem delas. Onde a liberdade hostil desses amargos discípulos do
desterro? Silêncio ou noite ou tempo sombrio ou pranto desgarrado, a linguagem goteja seus ruídos,
jamais deixou de fazê-lo. Poetas não são vítimas de nada. A única enfermidade que lhes cabe é a
presunçosa arrogância. Injustos, capitais e amargurados, aqui estamos os poetas, todos, tolos. Onde estala
a liberdade? Nessa dor inigualável que nos afasta do mundo? Haverá uma tempestade de acasos prevista
em lei? O que faço com o poeta depois de escrito o poema?
Escuto o tempo todo o ranger do silêncio. Brilhante metáfora, viciada, encurralada entre o risível e o
deplorável. Até que ponto os poetas inventaram para si uma condição de exílio que se poderia entender
como um afastamento da realidade? O que não me cabe manifesta-se como um vazio de mim. Não o é.
Não há reticência ou número cego. Risível um poeta falar de ajuste de termostato? Se considerado que
hoje mal troca a lâmpada queimada dos próprios versos, sim. Um encontro anual de poetas? Sempre temo
pela ruidosa agonia de espelhos cegos. A terra enferma, o silêncio indecifrável, essas pequenas agonias
rumorejantes. Melhor que se encontrem, sempre. Assim doemos ao vivo, uns diante dos outros.
6.
Há uma hora certa para o crime? Quando devemos confundir os tempos do verbo? Por onde voam tuas
pernas, redecoradas pelo abismo? As anotações se acumulavam no livrete, manuscrito agitado, mesclado a
alguns feitios, riscos de supostas vítimas, esboços de um suplício. Nenhum nome, porém clara a intimidade
com os atributos. A senhora da loja de frios não ri nunca? Por que aquele garoto só manca ao entrar na
escola? Quantas pernas devem ser dadas ao livreiro cego? O livrete era todo um interrogatório. Quando foi
encontrado se especulava se acaso o autor não iludiria qualquer investigação com seu abuso de perguntas.
Isto não se sabe. Nem mesmo se os crimes indecifrados correspondem a algumas pistas encontradas
naqueles escritos. Apócrifo, o livrete foi publicado e ganhou invejável notoriedade. Até hoje não se sabe o que
de fato liga a literatura à realidade.
7.
E hoje, de que queres morrer?
Marcas de pequenos crimes e amuletos como pistas plantadas.
Parábola do filho errante mendigando por entre imagens sangrentas, memória fanática por suplícios, luz
refletida sobre uma pequena mesa ao canto, caixa de madeira em formato de livro, o olhar percorria os
corpos recortados, fotografias saídas da angústia de um pesadelo, o filho, o filho, insinuando-se vítima,
com a minúscula tesoura detalhava cenários, aclimatava futuros sacrifícios.
Não sinto mais dor alguma.
Colagem de vozes gravadas, outro requinte de provas falsas.
O filho remontando acidentes como peças de um teatro miserável, agonia povoada de máscaras, figura
recurvada a tocar um bombardino, uma velha na cadeira de balanço, talvez cega, sorrindo com membros
decepados de outros corpos em suas pernas, o que há de mais inútil é o que sobrevive em tudo, o filho
regendo o balcão de estranhezas, sórdidas fatias de um drama improvisado.
Mata-me de uma vez, desgraçado.
Por último chegaram as cartas, evasivos manuscritos.
Onde entraremos agora todos vão se passar por loucos, como se abríssemos uma chaga no dorso do crucifixo,
imagem e semelhança da dissolução, errante o filho, peregrino e hospedeiro, emanações que foram
volúpias teologais adentradas nos sonhos do paciente, sempre o filho repetindo a severa melancolia de
dentes trincados, a profundeza de labirintos com tinta fresca.
Apócrifos eram todos os caminhos que conduziram a Helena.
Quando encontrada, não havia uma marca visível de violência física.
Eu lhe disse que era cega, não me queria para nada exceto para o impossível, eu não poderia vê-lo jamais,
estava ali comigo todo dia a sugerir coisas, falando em peças de teatro que havia escrito, recortes que
preparava para uma exposição, ria da polícia a cada vez que preparava uma pista, não sei se era
exatamente louco.
“Não sinto mais dor alguma.”
O relato de Helena acendia outros matizes.
Talvez tenha me visto urinar, mas não creio que estivesse ali para isso. Me alimentou e por vezes me disse
que pouco lhe importava meu sexo. Cantarolava em lânguidas notas, falava de música e religião, os
olhos de deus são uma cicatriz [vivia a repetir], ao falar de minha dormência queria fazê-lo entender
que nada se modificaria, eu simplesmente não poderia atendê-lo.
“Mata-me de uma vez, desgraçado.”
Cansada de tudo aquilo, Helena sabia que estava sendo tragada por uma ficção.
Ele me descreveu em detalhes o lugar onde estávamos, gostava disso, me pedia para repetir frases,
comentava sobre personagens de um teatro imaginário, não poucas vezes o ouvi chorando, podia jurar
que sim, minha aflição não era a dele, e o detestei por isso, assim vamos todos ficar loucos.
“E hoje, de que queres morrer?”
Também o policial encarregado do caso tinha algo a dizer:
Que maldito emprego temos, o de seguir padrões de irregularidade, a qualquer momento um louco
atravessa nosso caminho e atesta um colapso da sanidade, fitas gravadas, cartas, amuletos esquecidos
(cabelos de supostas vítimas, colados em conchas marinhas), um idiota queria despertar a atenção da
mãe e não ganho [francamente] o suficiente para tais riscos.
“Talvez tenha me visto.”
O homem se expõe ao mistério de si mesmo, fervor reanimado.
O assunto se tornava insuportável, mães violentas, filhos loucos, vítimas confusas… como é silencioso o
equívoco ante a surdez de espelhos, e consideramos a imprecisão algo apenas formal, desprezando o salto
entre agonia e expressão, o louco que vira em uma mulher cega qualquer (pouco importava que fosse
Helena) a mãe que nunca lhe percebera, uma luz suspeita, um deslize de linguagem?
8.
Um nome para as partes de teu corpo que emitem fogo,
outro para o rosto que se guarda de tais chamas.
Um nome que seja para o guia de tuas pernas flutuantes,
e outro mais para os campos que evitam tua morada.
Todos estarão felizes com seus nomes. Uns com mais de um,
outros a ponto de perdê-lo. O nome os torna quase perfeitos.
Aponta-me um deus sem nome e disto me encarrego.
Serão belos ou tristes, enfaixados ou traídos pela corte,
violentos ou angustiados. Há os que se sentem únicos
e julgam-se renascidos a cada vez que o nome é pronunciado.
Mesmo sendo iguais, os nomes também são distintos.
Distribuo-os carregados de ilusões. Fábulas ou decretos,
rubrica de tudo o que somos ou rejeitamos. Não te protege
o inferno do nome certo, traje com que entras em cena.
9.
Estavas tão linda, na maneira como te despias e te deixavas acariciar por minhas palavras, como pensar que a
realidade pudesse ter algum efeito sobre nós? Evidente que a arte tem uma teimosia, a de querer se confundir
com a realidade. Nossas vidas não valem nada, não haveria motivo algum para o poema querer se passar por
qualquer um de nós. O abismo realça as pernas da queda e nunca põe em questão a origem da dor. E me
beijas enquanto provo do vinho de teu olhar. A realidade não põe nenhuma dúvida sobre seus caprichos. Por
que razão a arte se leva tão a sério?
10.
Não, eu não queimaria tudo agora, há alguns papéis que poderiam ser úteis em outro momento, toda prova é
circunstancial e aqui há indícios que nos valeriam em boa hora. Sim, eu sei que queres te sentir seguro, mas a
evidência é cúmplice de toda falsidade, guardar algumas rasuras pode assegurar uma melhor versão dos
fatos. Não, eu não as entregaria jamais, em quaisquer mãos estes documentos complicariam nossas vidas,
tais trunfos não passam de resto de munição. Sim, eu sei que podemos nos arruinar um ao outro, por isto
estamos unidos, nunca duvidamos disto. Ah isto nem pensar, não creio que um de nós seria capaz…
11.
Cadáveres em lágrimas, nada mais é inverossímil em tua existência?
Três lances de escada antes da queda rabiscavas de memória umas palavras finais.
Com quem falavas em teu caminho para o abismo?
Quais vozes feridas e estrangeiras em teu drama rugiam, quase bêbadas, quase vozes?
Será tão imensa assim a eternidade que acaso não possamos nos encontrar em uma tarde de sábado?
Silêncio rochoso, enfurecido em seu casco carcomido, que estranho vício a tudo converte em angústia?
Cadáveres prontos para uma ceia de dores, soluçante cosmogonia debruçada no vazio, rios de insetos piolhos
badejos mortos pulgas lesmas lentilhas podres latas de óleo – naufrágio queimante – ferrugem de faróis
tumbas flutuantes – estupor diante do sangue das noites?
Há uma distância clássica entre o que pensas e o que és, trevas de atitude, batismo de cruzes, sofismas gastos,
coro de anjos, sempre um mesmo porto de aventureiros, lugar pouco provável para nosso encontro.
Ainda mais que não te revelas, entre cadáveres remando contra a morte, restos de comida fratura de muletas
górdio de fezes – de onde cai o tempo? – o verso se quebra a todo instante.
Onde estás? Onde moras?
Habitualmente cercado de cadáveres, tua noite será a grande indústria dos desvalidos?
Metáfora decaída, cantina de preços exorbitantes, estamos sempre a dois passos de algo, perdas acumuladas,
rotina de miséria solúvel e pastel de ansiedades – será este teu mundo descomunal, tua bíblia que a tudo
abrange mas que nada percebe em seu íntimo, o pandeiro da jovem Esmeralda, mulheres tatuadas a
estilete, garotos decepados por não portarem armas, um ovo de tartaruga por onde escapa um jacaré, a
suprema glória da superficialidade, morte entre a pele e o abismo de sentidos, bandejas de bagos e uvas
servidas em congressos de paz, artistas a vácuo, suplentes de alquimistas acidentados em trabalho,
imbecis especulativos, insetos familiares, pêssego pitomba açaí tudo em porcelana barata, morte eterna,
será?
Em que oceano descomunal te escondes, poeta?
Disfarces: um amargor telúrico uma máscara dionisíaca um barroquismo ululante – ah formidável maneira
de não estar no mundo.
Um demônio triste escreve um roteiro banal de arrependimentos.
Teus cadáveres já não te suportam.
12.
Sonda o esplendor de teu inferno,
as cartas de renúncia de ossos e relvas,
os relevos do mistério aniquilado,
o violento nascimento dos desastres,
amiga minha, sonda o espaço
crescido entre teu ser e sua queda,
as ondas que prolongam o vazio,
o rumor de um império no abismo
e a denúncia de árvores natimortas
no flamejante solar de tuas dores.
Em cada vulto anunciado revela a morte
suas cartas suspeitas, jardim de ecos
e preciosos enganos, o estrondo
de nossos tremores eclipsados, querida
minha, revela um prelúdio de cinzas,
a miragem sonâmbula de tuas sombras,
uma rajada de transes em quanto planejas
e trevas, querida, de artérias que são
a guia de teus presságios, o pensativo
enigma de quanto em ti celebre o tempo.
Sonda o entusiasmo da angústia, os véus
de sua fascinante constelação e o bosque
de sentenças a que alude sua escritura,
horda de fantasmas que jamais recordam
teu nome, o ninho visionário das feridas
ou a selva de vertigens de teu ser,
querida amiga, erguida em profanações,
sonda o emblema dos aniquilamentos
e os olhos tremendos da terra que nunca
nos deseja seus habitantes eternos.
Quanto é possível viver de cada morte
cuida de tecer labirinto e presença,
a pira de sentidos com que cruzamos a dor,
insondável a terra dos espectros e o leito
desventurado das imagens que se perdem
de si, minha amiga, a morte se alimenta
de nossa inquietude, da tribo milenar
dos reflexos e da avezinha suspirosa da
esperança que a coroa sempre repleta
de encantos, louro de obscuros desígnios.
Sonda o sorriso dos alaridos em torno
de cada desastre, a ânsia com que o tempo
se depura alheio a ti, em quantos crimes
ramificam o arco de teu idioma e mesmo
o ardil dos signos encantados e as veias
de quanto nos desata a história, caudal de
relâmpagos, minha querida, as notícias
de suplício e deriva, sonda a geografia
dos rostos que anunciam um outro tempo,
a fúria ontológica de nossa idade na terra.
Em quantos nos tornará a morte, seu rol
de símbolos e pedras de sacrifícios,
rasgos sublimes na crosta da eternidade,
em quantas luas da memória, templo
sangrado em sonhos, delírio tangível ou
fósforo de adormecido caos, amiga querida,
uma parábola e outra mais, a semelhança
e o plano de horrores de toda discórdia,
em quantos deuses nos tornaremos
antes que sondes a agonia de teus bosques?
Se caminhamos por entre o fogo do tempo,
o inferno da memória e a doce inquietude
do futuro, corresponde a cada passo a seda
de uma outra rota tecida entre o que somos
e a insondável lótus do desejo, os pelos
do vazio, a fruta de teus escritos, o papel
dos presságios, querida minha, a cada toque
temos tempo a perder, um olho que faz
o mar sorrir, um amor que dispersa a agonia
e a queda da ave-peixe da eternidade.
Outra noite e o vazio vem dar em nós, um
pouco a língua do intangível e o anúncio
de que devemos rogar por nossas perdas,
até que um outro caos nos atinja e o mundo
das imagens reescreva seu testamento:
não há mais desastre esplêndido que a dor
de um homem que não alcance a exaltação
de seu desígnio, o tremor de equilíbrios
que lhe reserva o sortilégio da paixão,
até que estejamos um pouco além do tempo.
O que se foi nos toca com furor igual ao rio
que vem dar em nós, o fogo ateado em tuas
imagens, o curso de teu idioma, voz disfarçada,
um rol de monstruosas insinuações, como tocar
a dor e seguir sendo o fósforo da alegria,
o mundo que ri de tudo quanto se desgoverna,
trilha de ossos e relvas, o mesmo desastre
com que adiamos, a cada dia, minha amiga,
nosso encontro com a vida, o poema e o homem
que aprenderá a ser onde não toque o sol.
II. MECÂNICA DO ABISMO
DORES DE NADA
Um corpo marcado a arpejos.
Dor engolida como oração,
súplica inversa onde o que está fora quer entrar a todo custo,
participar do teatro de uma dor referida,
corpo herético a recusar o suplício
dessangrado despido de apreço:
um corpo hóstia
anunciado em circuitos abertos e fechados,
mortalha ausentada com vislumbres de sensualidade.
Corpo arrancado de si e mesmo assim gozoso.
Turvação de princípios,
a dor passando por tudo o que jamais imaginara.
Um juízo reservado de quedas:
o inferno chega a ser divertido se identificas o olhar dos suplicantes.
Um corpo que ainda fale e diga: Só eu julgo,
onde nada resta a ninguém,
parvoíce igual em congresso ou prostíbulo algum.
Todas as dores são extensas.
A facilidade com que falamos em morte se esvai
quando a mesma nos toca em dor
e dor a única que entendemos,
na própria carne.
A dor alheia é uma metáfora da dor:
o corpo invejando-se em partes não condenadas,
tecidos aviltados em campanha,
que ideia temos desse cadáver que começa a empestar?
O corpo que vi pode ter sido do diabo
– atividade duvidosa essa de desvelar máscaras.
Caímos de tantas fraudes
que já não cabe a queda vincular-se à verdade.
Foste uma dor única,
arremetida contra a face inorgânica do ser.
Uma metáfora da dor doída sem rosto.
Impressos diziam que nada dói mais que o silêncio.
Havia um acervo de corpos espoliados,
dores caídas do âmago de anjos,
modelos recortados sobre a pele gélida de mesas na morgue.
Já não se pode pensar em onipotência de espécie alguma.
Em meio ao mais dolorido silêncio
corpos se apropriam de sua inutilidade,
buscam na ausência um argumento,
salientam com a frigidez ritualística
que o dentro ou fora da dor é a mesma dor:
um corpo levando consigo todo o inferno de que se lembra.
Ao reler a ordem para o sacrifício
um corpo depara-se com outra dor:
a repulsa cruel a toda beleza,
formas corrompidas que se guardam na memória,
testemunhas de misérias sobrepostas.
Impõe-se a verdade de que merecera ser punido
e dilacera-se alheio a qualquer dúvida:
Não vejo recusa para tal argumento,
repete o corpo sem que haja argumento algum,
crendo-se retornar ao princípio,
deus banhado em sangue,
dor despojada de si apoiada em outro mistério:
À beleza o que lhe é devido.
Um corpo pinta-se com letras que soam desencontradas,
caligrafia bastarda que não se revela de todo:
fraudes congregadas,
a mínima dor em que se possa acreditar
tornar vergonhosos alguns gestos,
símbolos empilhados à espera da recolha de lixo:
por onde se passa um corpo defeca suas lástimas,
perdas adicionais que lhe tornam mais confusa a imagem.
Curvas lúbricas são expostas
e cascos e rabo e asas em plumas desalinhadas,
um corpo tragado pela memória em seus mais torpes rituais
entre sombras excitadas com a leitura dos manuscritos,
carnes refeitas em letras flamejantes:
O que se masca é o que se cria.
O perverso é demasiado simples:
escava a forma apropriada de cada coisa,
opõe-se à influência do previsível.
Sombras inspiram-se na luxúria daqueles epigramas profanos:
Bem dentro de si o homem encontra-se agachado estranhando que ainda esteja ali.
Um corpo será sempre inacabado.
Não haverá deus que o desnude ou diabo que o vista.
Nascem-lhe mais genitálias do que asas.
Alterna modelos criminais entre risos e cínica frieza.
Um corpo com seu traje cômico de tragédia interrompida:
dentro da veste em que se esconde nada mais lhe dói.
Deriva ulterior, um corpo entregue à própria reverência
sem que morte alguma mais lhe valha sentido,
Formas expelindo a si mesmas,
camuflagens corrompidas aos olhos de provas mínimas:
um jogo de sombras resignadas estudadas em classe,
curso de pilhagem,
retórica dos estilos pitorescos de cada uma desfazer-se de si.
Um ferreiro molda-se em árvore que canta um lamento de ave condenada ao mergulho de bestas
com seus fatos básicos expostos no dorso de um peixe cujo salto fora d'água descreve a agonia
de um universo que em vão procura por si no ferro que empilha o ferreiro para moldar-se em
árvore.
Pilhagem de corpos,
bagaços de membros despojos de seios tendões ideias…
Uns risos agonizantes gozos interrompidos máscaras sem assunto ou bordão…
Um corpo assim tão propício à farsa
é o que mais se encontra em empórios de arte e ofício:
um mercado de corpos para a melhor das quedas.
Ignora-se no corpo o que o condena ao hábito,
o que o torna um cárcere pomar regueiro de dores correntes:
rostos ausentes no combate às máscaras,
dilema de pequenos papéis descontínuos,
evasivas que se arrastam pelo cenário de carnes suspensas e forquilhas com veias expostas.
Toda intimidade parece intrusa,
a mesma fala recebida todas as noites como um vaticínio a desgastar-se.
Um corpo entregue ao pecado de ser apenas o que conhece.
Pescado de repetições de gestos atribuídos a si.
Origem confusa do que já nem sabe ao certo se é dor,
removido de cena,
desmilingüindo-se ao ser arrastado,
desfeito em mística e com uma imagem saturada no canto do olho.
Um corpo lascivo percorre os ladrilhos da noite.
Funde-se a mil outros em surpreendentes descrições:
a monja a castigar-se para expulsar de si o peludo,
um jovem astucioso entregue aos apuros da sorte,
falos esculpidos em versos e acordes dissolutos,
meninas tocando-se enumerando formas de prazer,
o sangrento assassinato do faxineiro de uma abadia,
cadáveres sobrepostos na agonia da representação,
imagens estriadas por uma avidez ou despeito sutil,
muros pichados com a obscura denúncia do caos,
leitos imundos onde amantes apenas contagiam-se,
genitálias mascadas em rituais e logo abandonadas.
O que há de mais herético em um corpo é que saia
de si a freqüentar-se em outros corpos que o negam.
RUÍNAS EXAUSTAS
1.
Dores de memória confundindo o vazio.
Rostos queimando enquanto te esforças para lhes recordar os nomes:
Lucíola
Anete
Eugenia
Aspectos deformados de furtivos deleites,
tardes entregues aos lábios da pálida Eugenia,
dorso entrecortado de beijos,
Anete cantarolava enquanto um pezinho me percorria toda,
aos pulos a alegria acendia os olhos de Lucíola ao caminharmos pelo bosque,
limite fortuito do amor,
por terra caem as folhas da mais esplêndida primavera.
Jamais compreendemos o alcance do mundo visível.
Um dia a língua de Lucíola despojada em minhas coxas
e depois sabê-la espancada até a morte pelo irmão.
O triunfo da realidade será sempre mórbido?
Toques abrasados das mãos de Eugenia extraviando-se em mim:
não é o fim, meu anjo, bem aqui onde suspiras, não é o fim,
dizia-me com olhar travesso,
tardes inúmeras com Anete em uma banheira de hotel,
enlace de entregas,
sagrado beijo pubiano,
amava-me com tal exasperação a cada orgasmo renascendo mais do que qualquer uma de nós.
O marido lhe pôs o cano da arma na boca várias vezes.
Sem coragem para o disparo se punha a chorar a pedir-lhe perdão por tanto ciúme.
Anete e Eugenia estiveram juntas comigo uma vez só:
três crianças esquivando-se do mundo em uma tarde de gangorras,
vivíamos uma fantasia primitiva,
os corpos de Eugenia e Anete foram encontrados nus e amarrados um ao outro,
único disparo em cada fronte:
Eu estava certo que ela me traía com outro homem –
foi tudo o que disse aquele homem que me privou de dois amores de uma só vez.
Não adianta indagar-se sobre as formas do fogo.
Nada nos custa tanto quanto o instante,
mas em nada se explica ou requer consonância.
Talismãs e ruínas são imagens distorcidas de uma enfermidade do espírito:
o que desejamos acaba se convertendo no que perdemos.
2.
Tinha-me em seus braços na escuridão insinuante de um quarto de hotel às duas da tarde,
eu lhe pedia socorro entre almofadas e lençóis,
nossos corpos mordendo-se de desejo.
Agarrava-lhe os cabelos com desespero ao sentir a língua mergulhando em mim.
Rasteava-me –
por aqui passaram feitiços divindades simulacros
tua carne é um fósforo
nela encontro fiadas as imagens de um renascimento –,
Eugenia não via em meu corpo nada de apócrifo,
lia em seus liames secretos a veemência com que estive com homens,
o mito extraviado desse amor comum:
põe a língua bem aqui é tudo o que desejo…
Chamava-me heroína,
um risco duplo de saber a qual obscuridade se pertence,
atenta que o acaso não vem em nosso auxílio.
Mesmo alguém que não seja privado de nenhum sentido deve saber a quem sacrifica:
uma mulher me espia pelas fendas mais secretas de meu desejo torna minha pele um pergaminho
repleto de passagens secretas momentos cifrados talhados por estímulos que vão além da
alucinação línguas como plumas que me descerram a cortina de um teatro de sacrifícios as
súplicas por feridas mortais hábeis interjeições lamentos infalíveis uma multidão de línguas
tocando o revés de qualquer sofreguidão
ah minha putinha…
Eu disse a ela que nada acabava ali,
mas nunca soube o quanto essa paródia se insinuava em nossa vida,
nem sei se tivemos uma vida.
A memória recolhe momentos marcados por todo tipo de ilusão.
Eugenia me dizia que eu era uma suspirosa,
presa a leituras extravagantes do mundo,
uma mulher fascinada pelos caminhos entrecortados subterfúgios enigmas.
Não tenho como lhe dizer agora que estava certa, tão esquiva que sempre fui,
tão-somente morta não me escutaria.
3.
Lia meu corpo confundindo-lhe as estações,
acertava caminhos sem vestígio algum,
atava-me e pedia licença para um beijo na fronte.
A todos os seus caprichos tornava-me compassível,
astuta e bela com uma língua a desenterrar-me recônditos desmaios,
em meu corpo concebia todas as táticas persuasivas do desejo,
tornava-me seu projeto inesgotável de luxúria:
o que sentes quando te toco bem aqui?
A voz de Lucíola vinha coberta de viagens,
tesouro acumulado no estampido de abismos,
voz de enigmas que duelam entre si.
Encontrar-lhe o corpo recusando o cativeiro da morte despedaçou-me toda:
o irmão lhe havia batido tanto,
eu quase podia ainda ouvi-la:
prova em meus dedos o sabor de tua ventura,
Lucíola escapando-me por entre frestas da inquietude.
Sabia fazê-lo,
preparar uma ceia de desvarios.
O corpo agora sem dissuadir-se da tragédia.
Tão quieta, impossível ser a mesma:
jamais quero ver a vida por uma última vez.
Lavo-me o rosto reconheço a idade de algumas rugas no espelho tenho andado a tomar vitaminas
sinto-me cansada de mim…
Há rotina demais no mundo,
postos de justificação para tudo.
4.
Alcançar a penumbra que o leva até sua casa,
sombras mudas molestadas pela noite furtiva,
noite que não busca senão ausentar-se de si.
Um corpo ou outro a testemunhar apenas dor,
inflexível queda desfalecida na farsa do sudário.
Levamos conosco todos os corpos anunciados.
acompanho-me até o que pretendo venturoso:
acaso não andará Deus por toda a casa a tecer
uma malha de dilemas, excursão de angústias,
olhos plantados nas dobras insuspeitas do ser?
Quais vítimas ou mensageiros darão pela arte
o que ela presume ser a essência dessa vida?
Olhares desfigurados, sigilos de rara habilidade,
que estamos prevendo senão o que já vivemos?
5.
Não sei o que diabos pode ter havido comigo,
talvez esteja apenas cansada de tanta perda,
vigiar a fadiga por vezes desorienta.
Os bastidores da agonia gozam de prestígios bem pouco originais.
Os amores que fui perdendo não me ensinaram nada.
Suplicantes generosas, não pude dar a elas muito de mim.
Não me foi fácil vir a ser a mulher que desejavam.
Necessitaria uma escolta de deuses para manter-me a mesma.
Mas haveria algum deles libertino interessado em meu ofício de indecisões?
6.
Corpos transfigurados dissolvendo-se na própria dor,
visões abandonadas simulando um rumo distinto,
toda espécie de requintado divórcio entre ser & coisa,
imagens desvalidas,
braços púbis calcanhares,
o relógio da dor molestando o enigma rebentado dos corpos,
fragmentos casuais de Anete Lucíola Eugenia,
porções de terra divisadas no manancial da neblina…
Agarro-me a tais fatias como quem se entrega a um refúgio,
mas desprendem-se do nada,
são a complexão ilusória do vazio.
Vejo-me então com esse espólio espatifado de meus amores,
omoplatas carcomidas polegares coxas,
imagens destinadas à persuasão da agonia.
Rezo para que sejam alucinações.
Não são.
Precipitam-se como peixes importunos que extraem do mar toda sorte de profanações.
Não vejo mais nenhuma delas.
Apenas a feitiçaria desafiante dos bagaços de seus corpos.
A memória não pode ser a casa de ninguém.
Recolho alguns desses despojos:
mamilos devotos frontes perfuradas pulsos silenciosos,
são pistas de meu tormento,
guardam em si não o segredo do que vivi mas antes os vislumbres de um porvir sentenciado:
a memória lapida os pormenores da conseqüência,
prepara cadáveres para as honras mortuárias.
Sinto-me uma vítima de seu inesgotável capricho.
7.
Um dia amei Eugenia amei Lucíola amei Anete.
O curso de uma vida secreta não teme senão o malefício do preconceito.
Somos todos devotos da normalidade,
uma sala de ruínas que guardamos como o bem mais precioso da espécie humana,
a plenitude sob custódia,
incorruptíveis os ofícios que orientam essa vigília,
pendentes as máscaras judiciosas quando acorremos à fidelidade do conceito.
Apenas a dor anima o homem,
a dor transfigurada na impostura da desforra,
qualquer que seja a condenação que celebre.
Na dissertação desse ofício haverá sempre um responsável pela minha dor.
Jamais serei eu mesma a culpada.
As mulheres que amei foram mortas por estarem com outra mulher.
Novos ofícios ambientados no jogo caseiro de ventura e desventura.
As três foram violentamente assassinadas:
Lucíola Eugenia Anete.
Devo agradecer que me tenham deixado viva?
DÁLIA DO CORAÇÃO NEGRO
1.
Três eram as moças de Dália.
E tocavam-lhe o corpo de incontáveis maneiras.
Laços, plumas, pequenos instrumentos.
Dália exalando gemidos, a contorcer-se nas mãos das três meninas.
Lábios, dedos afiados, seios se multiplicavam com mamilos inflamados roçando-lhe a pele.
Esvoaçante rito de descobertas, umas tantas doloridas, por vezes Dália sangrando.
As três moças cuidavam de tudo: não lhe davam descanso por toda a noite, o corpo atravessando
febres, letargias, banho de óleos.
Dália coberta de beijos, as três línguas em súbitas reentrâncias, gozo e repulsa.
Em um instante a morte lhe soprava um verso de René Char: disciplina, como sangras!
Refeita, dizia o quanto adorava as meninas. Riam juntas, encharcando o quarto com um riso
tenebroso, corrente de sibilantes frases de riso enroscando-se no espinhaço da noite.
Dália reconfortada pelo vinho daqueles corpos.
2.
As primeiras vozes vieram com o negro sol,
despojadas sobre o deserto do corpo.
Vastidões das misérias humanas, Dália cativa de murmúrios, quem a escuta?
As vozes não ouvem sequer o que falam.
As três meninas dizem [sabemos]: morte morte morte, porém se espalham por destinos distintos.
São flores queimantes na carne de Dália.
E racimos de gozo e hóstias danadas e pedras tocadas por uma invisível solidão.
Querem o que Dália oculta de si: a perversão tremenda com que o tempo se mostra espaço, o
horror de máscaras que sustentam o inverso do que são.
Um personagem assim não sobrevive sem as fiandeiras cruéis do destino.
3.
O primeiro corpo de Dália encontraram-no em um roseiral, ferido de amores inconcebíveis,
docemente beijado por espinhos.
Havia um tu és nossa tatuado logo abaixo dos seios.
O que fazer senão seguir-lhe o silêncio,
a dor agora desfeita, o tráfego da ausência?
Talvez não se possa mais que meditar ante o assombro desse corpo, decifrar-lhe o alcance, a
tateante queda de seus trapos,
carne circular do espanto, carne do ardor,
asfixia do desejo encerrado em versos.
Dália, uma delícia gozada na escuridão,
um lago de sangue, a imagem começando a desesperar-se, úmida ainda, ante a fiança de vozes que
lhe circundam o corpo.
Uma morta anuncia a primeira trama do destino.
Senhora conosco, quais bênçãos as de hoje?
4.
Dá-me teu corpo agora, Dália.
Não posso esperar pela segunda Morta.
Nudez abrigada por cubos de gelo,
mamilos afiados e pelos bailando em tremores contagiantes.
Suores mesclados à luminosa escritura do gelo,
desejo-te agora e beijo teu corpo inteiro.
Ao penetrá-lo me desfaço de tudo em mim,
outras sombras falam, outros volumes se mostram
e tudo se modifica em nome do gozo que mina de uma urna de estrelas vazante de espectros
latejantes festim de esponjas a úmida plateia de teus impulsos Dália Dália alucinações de puro
drama a pele por dentro um ardor de entranhas teu sexo aturdido me devorando à sombra do
espinhaço quebrado da noite
oh Dália,
tudo o que mais amo em ti:
a floresta de teus gemidos,
o júbilo de tuas mãos,
um martírio de ânsias explosivas,
não posso, meu amor, não posso
deixar-te à espera da outra Morta.
5.
De joelhos,
ante o suplício da memória:
lábios soletrando a dor ainda presente.
De joelhos,
ante o oratório da queda:
vozes decifrando o obscuro em cada cena.
De joelhos,
ante a expressão de tua ausência:
corpo desfeito mil vezes e aqui refeito.
6.
As três mortes inquietas completam um círculo medonho: Alfredo indaga acerca das formas
assumidas em cada rito. Fúrias de barro, estatuetas revoltas, andaimes que despencam quando da
visita de fantasmas. As três sombras que retornam ao corpo do amante, meninas assanhadas que
evocam uma ciranda de travessuras, adivinhações da carne e do espírito. Dália em todas elas e
Alfredo a dar-se conta da própria cegueira.
7.
Três eram as moças de Alfredo.
E em nome de Dália iam e vinham pelos desmaios do tempo.
Como chamá-las senão como sempre: morte morte morte?
Repetidas vozes, sombras delgadas, três tramas refeitas, seis mãos furtivas e um mesmo ventre
sorvendo-se entre espelhos.
Alfredo recurvado sobre si, habitado pelas meninas febris que lhe tocam todos os instrumentos,
amparo de quedas, reconforto de uma sombra em outra, pranto ante o mito perdido:
três vezes Dália, três vezes Alfredo.
8.
Roedores confabulam em uma ceia de papiros.
Contar é existir, entre guinchos sarcásticos
deixa escapar um deles. Mortos os amantes,
que amor conhecerão agora?, indaga um outro.
Divertem-se com alguns manuscritos os ratos:
Dália não dava repouso a Alfredo, mostrava-se
mãe amante irmã e o tolo deixava-se seduzir
pelos caprichos vorazes de quem julgava amar.
E logo um outro apressa-se a roer e contar
a própria versão: Alfredo tinha visões, um mapa
de precários vultos que lhe atormentavam.
O mais faminto: o débil inventara as três moças.
E seguem roendo pedaços a mais, os restos
da história, refazendo-a sem nenhum pudor.
9.
Teus demônios favoritos começam a dançar, Dália. Não mais as moças perenes, ninfas ou parcas,
mas sim vultos mesclados, imagens fétidas, tambores suando cânticos, três bestas no açoite de
falos e teus lábios mãos ventre, mulher errante, azeitados pelo enigma da noite, resumem a
sagração de todas as dores. Teus demônios em cascos pisoteiam o fervor das entranhas da terra, a
concha vulcânica que expele ódio e amor, o bem e o mal, e tudo em ti é graça infernal iluminando
o tempo além do tempo, Dália radiante com suas máquinas de gozo, rindo-se do próprio corpo
estraçalhado por incógnita delícia, o rosto de Alfredo saltando do olhar daqueles três, indo e
vindo, como uma lâmpada falhando, esboçado pela memória ou induzido por réstias do desejo, o
rosto sussurrado em meio aos requebros da esfinge e uma orgia de archotes.
10.
Um dia abriu a porta e deu com o vulto,
aquele homem lhe sorrindo entrecortado,
como se estivesse ciente de um fardo,
ela calada o fitava, imaginando quantas
vezes poderia tê-lo nos braços, ele,
intérprete de uma vida tão dispersa,
ela guardando consigo gotas de sangue
de um antigo amor, o tempo inteiro
a indagar-se o motivo daquele capricho,
e ali, diante daquele homem, um clarão
a atinge e lhe faz ler a caligrafia veraz
do destino, à sua frente mostra-se quem,
a qualquer custo, ela deveria matar
com o sangue envenenado do amante.
11.
Ao longe se vê uma grande festa.
Selvagens golpes da luxúria sangram a paisagem de sóis que retornam ao sonho de cada
personagem.
Três músicos acendem uma dança audaciosa.
Dália agachando-se sobre o corpo de Alfredo, sombras gemendo desesperadas por novas formas.
Como aprofundar o batimento dessas árvores,
o tenso agulheiro onde se agitam e gozam e se retorcem as árvores que são pássaros e Dália e
Alfredo?
Terão ali ocultado uma biblioteca de tormentos,
os livros secretos do abismo, com pés e mãos atados para que as visões não sejam jamais tocadas?
Incontáveis eu te amo foram pronunciados:
a sopa de sarcasmos dos ratos, a pasta de ervas das meninas, acordes desfigurados,
encantamento.
A noite de Alfredo cabe no ventre de Dália,
e se agita em suas ramagens, noite possessa vestida de vozes em íntimo contato com outras cenas.
A noite de Dália avança, penetrando a si mesma,
transparência afinada pela dança, entoando a nudez ardente de palavras que são o segredo
cobiçado,
uma vez mais eu te amo em vigília de chamas,
criaturas de espanto que saltam iluminadas pela mansidão desse amor contraído em plena Queda.
12.
A morte esteja comigo, senhora dos versos.
Serei o mago, o fantasma, o peregrino
e beberei a seiva das danações, o caldo
de vísceras de palavras enterradas na areia,
sêmen sacrificial, azeite de orações, tudo
o que me sirvas na cabaça de teus ritos.
13.
Meu corpo grita dentro do teu: quem sou?
E um eco nos visita: suas sílabas são minha água meu pão sob o relâmpago, versos de Ludwig
Zeller que há muito vivem comigo, como é possível que estejam ali, em meio ao recorte de
nossas pernas, ao estrondo de gozos de nosso silêncio?
Como te moves, memória errante?
Em que derrame de abismos me localizas?
Quanto mais a amo, mais me perco e me atrai o fervor de carnes abertas, o desfiladeiro dos lábios,
a bunda golpeada pela língua de espelhos que atravessam a plumagem delirante daquela
mulher,
Dália encarnada em quem me toque,
presença inúmera que ainda assim me suspende, com um alarido flamejante – quem sou? –, gorjeio
de náuseas, capítulos deixados por ler, rostos submersos no carvão iluminado dos mamilos,
pequenos pássaros bicando as migalhas do relâmpago,
ela,
sempre ali e contemplada por um bulício de sílabas,
as mesmas de Zeller, revoada de raízes, manancial de vertigens, copos de terra para um brinde
acumulado de desmaios, a tudo me devolve o tambor enlouquecido no deserto: quem sou?
E uma vez mais,
enquanto me arrasa de prazeres.
14.
Agora tens enfim tuas letras
e uma outra forma te invade o ser.
Agora me tens nos braços
e meu corpo insiste em romper-te
os laços com a dor do tempo.
Reviro-te em murmúrios, Dália,
e entre curvas me enfeitiças.
Agora dominas tudo em mim,
e estou fartamente entregue
ao lampejo de gozos que me guia
até o mais recôndito abrigo
de teus ossos tua carne teu nada.
Agora percebes o que sempre houve:
a magia de sermos um o outro.
UM LIVRO DE ÂNGELA
1.
Livro caído sobre o espelho,
o bastante para que Ângela se pusesse a reunir as imagens todas que a memória lhe permitia.
As páginas não eram propriamente um abismo.
Mais do que fantasmas saltavam da embocadura de seus cantos,
anatomia de centelhas,
versos refletindo o que há minutos nem se poderia imaginar.
Porém um livro caído sobre o espelho
pode não ser de todo nem livro nem espelho.
A grande utilidade da memória é não interferir em cascalhos e avarias do lembrado,
deixá-los reunir as pistas do que se presume essencial.
Ao ir de uma página a outra do espelho, Ângela anotava as guias,
recantos,
parágrafos entrecortados,
corpos empilhados,
ilustrações da agonia.
Esmerava-se em seus apontamentos.
Há um momento em que a vítima se mescla à natureza do crime.
A reação pode vir a ser o pior de todos os males:
aguardar o morto chegar para dar entrada no processo,
mesmo com o livro caído sobre o espelho.
2.
As lágrimas de Ângela sugeriam que não era tão longa a distância entre o ocorrido e o motivo.
Apenas uma morte lhe persegue.
Como encobrir a queda de um livro sobre o espelho?
O que lhe há de revelar é toda a existência além da quarentena:
desastres discrepâncias capítulos simplificando dores intensas…
O espelho nos oferece uma metáfora de exageros.
Não vemos tudo aquilo.
O que se reflete está além do visível:
abismo impresso nas dobras da memória.
Ângela folheando-se em busca de um elo entre espelho e livro,
rabiscos transfigurados da ansiedade.
Rascunha metamorfoses a pobre Ângela:
…o que há de ser o verso o bálsamo a alegoria essa animação de anseios a ideia que nos foi
implantada de uma salvação mesclada ao desmaio desajuste falseamento a arte decaindo em
sua expectativa humana anotar padrões de comportamento mas sem que se possa remediá-los
anotar o quanto estamos nos perdendo em engodos ah mas essa tem sido toda a nossa existência
um povo dedicado a anotações…
Por quanto tempo?
3.
Ângela reunida em fragmentos de suas dores.
Realidades pendendo de molduras corroídas,
primeiros recortes de memória,
colagens enigmáticas com anjos mordidos por Cérbero,
precária obstinação onde tudo se crê retornando ao que jamais fora possível:
reflexos infinitamente gastos,
tesouras cegas,
anotações à margem sem propósito algum.
Esse compêndio de falhas plantadas com astúcia na trilha deixada por uma estirpe de sombras
alucinadas,
flagelos do desejo,
inventário de renúncias,
arca de esvoaçantes cicatrizes,
esse favo de almas que sugere o lance de escadas no olhar de Ângela,
o que nos dirá?
Cidades que percorremos em busca do inferno,
imagens sangrando em parágrafos ilustrados por uma anatomia assustadora,
tantos versos saboreados pelo carvão,
o que essa escória permissiva da agonia nos dirá?
4.
Ao caminhar pelas ruas de Ângela o busto de uma celebridade local mal disfarçava a indignação:
estamos diante das ruínas mais jovens da história…
Quantos livros não são encobertos justamente pela leitura?
Nossa vida está a repetir-se de maneira impensada,
alguns pronomes foram engolidos ou descriminados.
Quando indagamos para onde vai o pensamento depois que o pensamos sequer percebemos que já
o perdemos enquanto o pensamos.
Colecionar híbridos como se fossem anomalias,
como quem serve por iguaria rara salada de mestiços e travestis e a ressurreição como prato do
dia.
O jovem discípulo de qualquer onda ao ler Ovídio sente um choque e indaga ao mestre de turno: a
transfiguração deve ser mesmo lavrada em cartório?
Já não sabemos a que distância estamos de nós mesmos.
Esse pseudo mito da desrazão foi convertido por intelectuais e artistas no oportuno charme de
uma falta do que dizer.
O livro como o pensara Vigo
– lugar onde se realiza a poética do universo –,
foi convertido em um bestiário de lesmas mancas,
cardápio de excentricidades onde são servidas pupilas de ostras em fatias e lábios gratinados de
poetas surrealistas.
O passo que demos além da modernidade não pode ser um apêndice dela mesma.
Todos nos tornamos colecionadores vulgares de uma precária visão da utopia.
5.
Ângela me disse um dia:
Se não andasse por aqui toda essa sorte de malucos eu não me sentiria a metáfora concêntrica que
imagino ser.
Um deles escreveu na abertura da própria exposição: tenho dedicado a vida inteira a um cuidado
lapidar de jamais ser entendido.
Indexar verbetes aos motivos da morte não a evita em circunstância alguma.
Estamos sendo atropelados por uma angústia sofismável do conhecimento,
tapeados pela parvoíce
dos tolos providenciais que estão tapando o sol com uma peneira.
6.
Escrever assim em quebradiço
dando a falsa ideia de ser nada
Pender para um ponto ou outro
mudando de forma ou de olhar
pingando uma imagem ou duas
tornando o tolo em santa realeza
glossário de ideias mal defendidas
crendo que dure a geometria…
Nem todo um livro de Ângela
recolhe essa anatomia desfigurada do desejo.
Há algo que lhe escapa
como se pensássemos na evolução de um mesmo dilema:
somente a impostura garante o sucesso?
Estamos condenados à taxonomia?
Pensemos um pouco que seja:
toda a arte não passa de intencional catalogação de dilemas?
Não abrimos um livro ou ouvimos uma canção ou deitamos o olhar sobre uma tela senão como
vítimas de uma torpe estatística?
E com que propósito defendemos o trâmite das profissões, o amor supostamente entranhado, a
regalia dos filhos bem encaminhados?
Em que espécie de farsa nos empenhamos tanto?
7.
Uns pequenos corpos amontoados,
ossadas em desalinho,
retalhos de sombras chamuscadas,
pontas de espectros evocados,
genealogia de fantasmas…
Ângela recolhendo diagramas mitologias amuletos com marcas de dentadas,
trapos de espelhos,
lápides arranhadas,
mundo despedaçado e recheado de angústia,
anima intoxicada…
Que espécie de veneno saboreamos embebido em sofismas?
Sentei-me a seu lado a cabeça recostada em páginas raramente visitadas:
corpo descrevendo o abismo,
broto de quimeras,
mudas de um desejo que se refaz.
Ângela me oferta a caligrafia de suas vertigens,
encrespa-me enquanto perdura,
é apenas o instante,
e quando lhe abrimos as vísceras não há semântica que nos leve além do instante,
transfigurado ressurrecto melancólico derruído,
porém aquecido pela mesma complexidade:
a dor do instante.
O CATÁLOGO SECRETO
Algum dia poderei recordar o que houve aqui. De alguma maneira serei Olívia, o corpo fluindo as
múltiplas formas que assumem diante de mim as esculturas de Antonio. Talvez apenas suponha
tratar-se dela, que seja ela a reconhecer-se em um breve gesto meu. Algo como a simples menção de
um sonho, do que nos desperta. Importa que sejamos tão reais agora, se não vamos nunca além de
nossa memória? Tê-la esculpido alguma vez faz com que eu me sinta hoje tomada por suas mãos.
Antonio com meu íntimo em bronze. Não desejo mais do que ser Olívia: o que supunha fosse e o que
lhe desvelou Antonio. Sou-lhe então completamente a matéria sonhada que se refaz a cada olhar.
Decerto soubera bem antes: o que hoje se revela, já o somos há muito. Era seu destino converter-se
nas formas que ocorriam ao escultor. Reconheço-me então em tudo o que vivera. Ao tocar em mim
Antonio sinto que não requer senão outras linhas, outro movimento.
Quem serei nesta noite entre sombras tão íntimas, erguidas diante de mim como um canto? Sei
que busquei seus traços, o apuro do bronze em sua pele. Por mais de uma vez Olívia dissera que o
que nos unia era o espanto. Nada lhe afligia. Creio que dava a todas as coisas um melhor sabor.
Encomendar-lhe o espírito ao bronze não terá sido inconcebível. Comigo conheceu apenas alguns
crepúsculos gastos pela amargura. Eu a amei com fatalidade, antevendo cada espectro de nosso
rompimento. Sei agora o quanto mudou as formas de meu canto. Não será tarde, já que a
reencontro aqui tantas vezes à minha volta. Partes suas: braços vultos ancas. Não de todo
fragmentos. Olívia infinita recuperando-se em cada mínima agonia do bronze, ansioso por contála. Mesmo que a tenha perdido, guardou para esta noite um último encontro. Interrogo-me então o
que posso desatar senão um outro labirinto da memória. Olívia reunida em trinta esculturas. Eu
perdido de mim infinitas vezes.
Então haverá uma porta e outra e muitas mais,
inumerável a extensão de sua secular investida.
O passado composto por estranhas partituras
que emaranham seus átrios e seus porões.
Então uma vez fui Olívia sem que esperasse sê-lo.
Esquecida dos rostos incertos que poderia ter,
com rigor desfiava sua métrica e sem pressa alguma.
Pareciam heréticas as pessoas do verbo, infames
na luta para que não lhes escarne o esquecimento.
Temiam ser apenas uma agonia de espelhos
no corredor imaginado como uma vasta justificação
de tudo o que fomos, sempre ali com seus motivos.
Inúmeras as portas e as vezes em que pude ser Olívia,
tendo sido apenas uma sem que conseguisse evitá-lo.
Vejo a mim em todas que se sentem transidas pelo evangelho de suas formas. Felizes as que se
sentem amadas por seus esmeros táteis. Afortunadas aquelas que se deixam acender por um truque
hábil. Bem-aventuradas as que encontram no bronze um cúmplice de suas ênfases desterradas. O
mundo segue dividido entre o espírito e a letra. Não importa o que pensemos, impera a angústia e o
orgulho. Somos ambicionados pelas formas. Amei Antonio em meio a seus cinzéis. Fomos sua
imprescindível possessão, linguagem sem a qual seu declínio sequer seria misericordioso. O medo de
perder-me lhe impôs uma disciplina assombrosa. Deformava tudo à sua volta, para que delineasse
apenas o que supunha ser meus traços. Não pude seguir vivendo indecifravelmente. Antonio me
amava a cinzeladas. Felizes as que se edificam diante do quanto me desfiz de mim. Decerto que sou
todas elas.
Procuro não ser devastado pelo passado. O que fui não revela senão o tempo vivido, não mais
necessita ser um teorema. As formas que tracei sentem-se já reveladas. Os dias se vão
incorrigíveis, sem que lhes evitem as reminiscências. Sei que sou o dia, mas sou também o que
resiste a sê-lo. Somos sempre a imagem e os aforismos de seu declínio. Tenho em minhas mãos as
cinzas de Olívia, a glória de tudo o que foi. Não espero que a beleza propicie algo menos terrível.
Talvez devesse dizer que também o sofrimento é uma dádiva. Detenho-me na busca de sombras.
Tanto as que se erguem para buscar em mim o perdido, quanto as que despertam iletradas ante o
assombro de incalculáveis ermos. Defendo-me com o bronze inquieto que reconhece todas as
formas. Defendo-me do passado, da curiosa esfera caída de tudo o que fomos. Cinzelo a alma
indecifrável do que deixamos de ser, certo de que um dia ainda o seremos.
Algum dia terei dito que me tenho sem aflição. Outra não era sua pirâmide necessária. As formas
buscavam serenidade e fui o vértice predestinado. Devorava-me minuciosamente com seu ódio pelo
pão. Sempre estive pousando para ele. Despia-me de todas as formas, com seus inúmeros cuidados.
Como fui jamais lhe importou. Creio que nada afligia a execução de sua obra. Tormento e
insensatez não eram senão estilhas de seu canto. Decerto que fui sua Olívia precisa. Um pouco ou
mais estaria perdida, de volta às perambulações pelos corredores da memória. Tudo o que queria
eram formas, e que o seguissem submissas. Agora sou trinta delas. Não sei do que me queixo, se
passo a desafiar o tempo. Algo em mim deve supor haver ainda aflição maior.
Sonho com tudo o que somos. Sou um ignorante dos hábitos do tempo. Jamais poderei ser feliz.
Aqui esta noite reúno trinta esculturas. A princípio diria que são a mescla radiante de meu ocaso e
minha aurora, mas sei que se tratam apenas do que resta de mim. Sou uma matéria amorosa dos
deuses. Estou em suas mãos. Sou o seu segredo infatigável e a injúria dos seus artifícios. Decerto
ainda me chamo Antonio e alguma vez amei Olívia. Jamais me desvencilhei de seu amor. Não me
importa onde andará, que recordações amontoa de mim. Não serei intolerável com essas trinta
figuras que assumem perfis inomináveis. A todo instante somos exaltados pela memória. Quero
apenas ser melodioso em meu êxtase. E que esta noite inaugure mais uma de suas dores sonhadas.
RECORTES DO VELHO ATELIÊ
O silêncio dói dentro do mato.
Raul Bopp
O poema se inicia com um verso de Giórgos Seféris:
Os dias roem nossa vida sem alarde.
De que são nossos caminhos partilhados?
À noite nos sentamos para o bom vinho
e algumas verdades indiscerníveis.
Todos já se foram.
Não há mais Blake, não há mais Goya.
Suas pedras erguidas são o mistério do humano.
Tua mão encaixada à minha.
A sala espinhada em silêncios sangra suas sombras.
Algumas se abrem imensas e somos o ser de seus umbrais,
a treva desfiada ao fundo.
Exaltação de falhas,
agonias onduladas à proa da memória, o sólido
massacre dos fantasmas – nada
nos deixa dormir.
Véus do lúdico e do agônico,
linhas talhadas como vultos
que se agarram ao nosso passo,
pedras que não retrocedem.
Noite encravada no topo do inferno,
melodia caricata dos dilemas
que não se desgrudam de nós.
Doçura irônica da larva
em seus caracóis desatinados,
polêmica foto do espírito
aberto em feridas ilegíveis.
Lentos, lentos, somos o resíduo
de tudo quanto nos espera
nas minúcias dessa noite.
Fulgor tecido na escuridão,
somos o revés invocado,
o diamante surpreso em seu delírio,
efêmero pelo amor ao nome.
Caído sobre os olhos fixos
da imagem que lhe conduz
ao sopro de suas contradições.
Poesia lentamente, o verso apagado
com rastros da discórdia, até
aqui viemos, dentro da sombra.
Mesmo nas palavras ausentes,
visões que não se esgotam
no mineral admirável das chamas,
somos o esgoto primordial.
Caímos dentro de nós, sombrias
fezes de nossas súplicas,
dor de cordas entrelaçadas
ligando um vazio a outro. Alpendre
de palavras que não lhe alcançam
o piso, rio de disfarces:
vidro em sua água distorcida,
areia que não mais revela
seus rostos ao fogo, pulmão
suspenso nos galhos da inquietude.
Todas as noites parecem estar aqui,
açoitadas pelo relógio da dor,
pendulares inquéritos do verso que nos debulha.
Até aqui viemos.
Seguiram-se outras noites de estranho tumulto,
queimadas em remorso, algumas.
Velho caminho de tábuas gastas pelo abandono.
Narciso violento ao descobrir as primeiras rugas.
Seguiram-se as noites tomadas de Bosch
e Lezama, noites
que iluminam o ignoto
e fazem tremer o universo. Tua mão
afeita à minha, cruzamos nossos olhares,
desfeitas já inúmeras sombras.
Por entre a folhagem, somente a ausência tornara-se profunda.
Mesmo se fôssemos um o outro,
ou líquida anunciação
de um no outro,
nada nos deixaria dormir.
Conclama o relâmpago suas sílabas,
o que se desfaz é apenas o entrevisto,
o que planeja o regresso mutila a si próprio,
corpos adoram suas reentrâncias,
por vezes caem seduzidos pela semelhança,
estátuas sondam a artificialidade do movimento,
vagabundos se sentem sagrados,
poetas imortais, dançarinos sonham
com crisálidas, seus rostos despencam
do abismo, flâmulas do equívoco,
fixos reflexos risíveis, cativeiro de versos
reduzidos a feras torpes, pedras sem fogo,
bambus afogados, aves banidas da praça,
corpos que cegaram o cristal da metáfora.
Possessos do vazio, desfigurados rostos
que vinham sendo traçados por uma cerimônia,
tua, de cuidados com a queda, a chama
da descida ao inferno, o manto com suas bordas
de ramagens, sombras que se assemelham
a uma árvore, figura da mãe, traços
do abismo, cantos transfigurados, as vozes
que surgem de uma noite vegetal,
palavras em seu âmbito de folhas e raízes,
golpes do pólen, potência indetível
das forças que circunscrevem teu mistério,
negro, negro o círculo, a esfera no olho
da sombra que traça ânsia e receio
nas noites derramadas sobre nossas mãos.
Já não somos tão visíveis, nem certos
de que passamos por aqui, pelos terraços
carcomidos do delírio. Respiramos
graças às imagens que se sucedem,
sentenciosas em seus recados, quase carne,
de tudo quanto desejávamos tocar.
Deuses cínicos, vozes fiadas no olhar,
semelhantes ao relâmpago, zumbido de anjos
em ardilosa artesania, escola de quedas,
o que mais? Tornamo-nos os demoníacos,
de um céu a outro, os servos do espelho.
Já não somos venturosos. Há nomes
que lacram a aventura de nossas mãos.
Sombras perfeitas de tudo que não tocamos.
Tínhamos muitos mortos. Entre eles a primeira leitura
daquela noite iniciada por Seféris.
Não escondemos o sorriso. Outro grego
já nos lembrara que um dia diremos adeus a nosso enigma.
Contudo, não se despedia a noite, bem ao contrário,
mais se despia. E brilhava sangrento nosso coração,
mesmo no milagre de suas sílabas.
Esquivas, as imagens.
Através delas, voltam a crescer
os anseios sobre a exatidão do inferno.
Ainda estamos aqui.
Gostaríamos de crer. Mas não estão Benn e Brueghel.
Tudo é fuligem sobre suas obras, glória de moscas.
Está certo Seféris: o poeta, um vazio.
Ali, minha mão afeita à tua, enquanto os dias roem nossa vida sem alarde,
o lodo crescendo, dói o silêncio dentro da noite.
Converte-se a memória em ruínas,
à velha maneira
de juntar pedaços, livros desfeitos, gravuras rasuradas, sinais de sacrifícios. Noite,
noite. Não mais que um caderno de extravios.
AMULETOS NOSTÁLGICOS
Ser tua imagem sem causar-te aflição,
figurando em teu ser como o fogo.
Passas por mim e não me fraudas a dor,
em paz com o deus de tua morada.
Tu me deste o espírito e me deste o olho,
o côvado profundo em que me ponho
para que lutes com toda a força do nome.
Teu duplo refaz o que tive e vi e fui,
sombras cujos atributos conspiram ainda.
Uma delas mora em reticente escuridão.
Outra se arrasta por rostos que recuam.
Haverá uma que me vê trazendo a noite.
São como palavras herdadas pelo fogo.
Por toda a terra vagam e nada cresce ali.
O nome é apenas parte de seu legado,
um dos símbolos da morte que entalham
em formas várias e suplicantes versos
que dizem o mesmo dá-me um caminho.
Figuras de pedra e madeira e porcelana,
as mesmas que temos sempre em casa
e que não deixam de bater o coração.
Tu és um pássaro e um sol e o túmulo
de um deus que imita o curso de teus dias.
Tua bela forma golpeia qualquer escriba
em tradução de trevas ou terra santa.
Passagem e selo abissal de toda crença.
O que buscas e o que o livro oculta
em linhas invisíveis a quem supõe sabê-las.
DESTINO DAS PERNAS
O alfabeto alheio das pernas
que vão se chegando, somando-se
ao murmúrio de outras
que se comunicam
entre ânsias e seduções, pernas
que fisgam a ilusão precisa
em cada moenda de gestos,
o alfabeto delas,
lustrando suas letras,
a serem gastas no ardil do desejo.
As pernas, por onde andá-las,
comover o capricho de suas teias,
soletrá-las na passada mínima
de um feitiço a outro?
Por onde se põem em desalinho
quando menos se espera?
Elas, dando lições de vertigem
ao tempo que trafega entre seus passos.
O alfabeto, sim, graças a ele
é que elas são esta queda
de tudo quanto apreciamos na vida.
Como estimá-las longe de tudo,
rabiscar a ausência das pernas
em nosso estar tão promíscuo
em dores cuja origem desconhecemos?
Essa floração de signos que não vemos
senão como descaminhos,
pontes de seda,
seus desmandos que elegem
nossas fraquezas mais irreconciliáveis,
a usina secreta do passo em falso,
por onde deixamos de ir,
por onde não vamos nunca,
alheios a ele,
o alfabeto que se escreve em nós,
as pernas
que consideram nossa ausência de tudo,
os caminhos desfeitos em sinais precários,
prenúncios de estradas derruídas,
elas que não cabem em si,
couberam - nunca se sabe -,
por onde andamos: comovê-las na andança,
falseá-las,
pernas?
Ao cruzá-las por onde segue o tempo?
Investe em quais abismos líquidos?
O sal do fascínio,
humores que se distraem a cada toque,
esmero de ânsias
- para onde levá-las,
quando desviam sinais,
esmiúçam ambigüidades,
bailam imprevisíveis
ante a imagem que fazemos delas?
Soberbas na luxúria de suas afluências,
um súbito desmaio de cadências, apenas
para dizer que ali,
entre palmos imaginários,
podem ser outros meios,
pôr tudo a perder, conciliar ruídos,
quimeras de ponta-cabeça,
simulacro de marchas,
desvario, andamento,
andamento…
Para onde tantas pernas, quantas,
o que sabem de nós?
Radiação
de rastros por toda a pele dos radares,
bússolas famintas,
quando ausentar-se de si o colecionador de pernas?
Um verso deixado na ponta do leito,
assentadas como um enigma,
um crime por resolver,
por elas vamos nos deixando
levar à autópsia de nossas perdas mais íntimas,
o embaraço das precárias decisões,
vícios agregados,
quedas mal repartidas,
hastes que ensaiam vôos
em busca de outros significados,
ociosa locomoção de infernos,
pernas fora do jogo, as minhas, quantas agora?
Multiplicar os defeitos
irreparáveis
das passadas por onde fomos,
a sopa de equilíbrios de que se alimenta a esperança,
a inocência arqueada,
a lonjura
apeada antes que goze sozinha.
Para tantas pernas, como se desfazer de verbos,
desfalcar acenos,
ou simplesmente saltar páginas
de uma andança a outra?
Então
para que tantas,
se evitamos o subúrbio de suas passadas,
se não passamos de assaltos,
semínimas,
nudez difamada por vestes indecisas?
Onde a conquista das pernas
e o badalo de seu esplendor,
- um golpe que seja -,
o roubo a tempo no crematório?
O que fazer com elas, como passá-las,
por onde andá-las,
ufanar-se de que mérito, deixá-las ir,
sem vírgulas,
passos?
Amiúdam-se, coladas a um cinismo
constrangedor, com ar
de quem nos espera
à saída do caos, quase de todo
fingidas de si.
Já não sabemos quantas, e não fazem
outra coisa senão imposturas,
volteios, ardilezas
em tablados invisíveis, elas.
Para onde saltamos em suas colunas?
Quais galerias nos devoram, corredores
que são passadas
encharcadas de mistério?
Como se chamam essas pernas?
- acaso agora se pareçam outras.
Quantos somos em suas mãos?
E nomes, os temos? Como
nos comunicamos
por entre seu mobiliário de tropeços?
Algum de nós desconfia
do caminho que estamos fazendo?
Elas se encaixam na própria voragem
como construções fortuitas,
as pernas,
que levamos dentro de cada,
abrigo insondável
- é o que parecem nos dizer de uma evidência que a qualquer instante
pode nos atingir.
Contudo, o único extremo que se manifesta
é que desconhecemos nossos passos,
a tal ponto que elas,
dissimuladas entre vírgulas,
artífices galhofeiras de ilusões,
devem ser mesmo nossas,
por mais que estranhem
que não saibamos infringir seus percalços.
Haverá um limite, um ponto qualquer,
em que o estorvo se cansa,
a fraude se desfaz naturalmente,
o tormento rebenta por falta de coro,
haverá?
Ou a intemperança
entope-se apenas do inútil
e não há salvação nas sobras?
Por onde fomos as pernas eram outras
e em tal descompasso
que desconhecemos a isca,
o engodo
das letras, o alfabeto disforme e alheio
mais a nós do que a elas,
as pernas,
os nós em que nos engalfinhamos
antes da última topada,
onde o abismo se esgota.
TELAS NO PORÃO
Tudo o que vemos é o invisível.
Pitágoras
1.
Inquieta em seu mundo de pausas.
Asas que adentram o lago estático.
Corpo fugindo de espelhos, olha-me
e toda a matéria volta a cantar.
Espaço ausente de formas, selo
que nos guarda dentro da chama.
Nada se define em suas pálpebras,
mesmo que por ali se derrame
a trêmula essência de seu corpo.
Não quer de si senão a sede veloz
de nomes e números que possam
tomar-lhe a noite entre beijos.
Desfia raízes tecidas em seu peito,
sombras que afirmam ser nada
todo o amor que lhe desvela o ser,
feito o mistério visível de Pitágoras.
E o que anuncia seu canto grave
senão o envelhecimento da morte?
Tendo sido criada pelo espírito
guarda-se vidente em sua impureza.
Entregue à trégua de carícias,
oferenda de hóspedes de seus feitiços,
tudo a faz vibrar em sua remota casa.
Ao cantar me quer junto a seu fogo,
quando esculpe as formas mais falsas
que habitam o desespero e a loucura.
Velozes seus olhos em mil rostos
Buscam em mim um cúmplice de ossos,
monossílabos à margem do rio imóvel
da linguagem que nos distancia
a todos. Apenas ela existe a banhar-se
em meu assombro: sobre os corpos
[dela] tilintam nossas palavras gastas.
2.
Recorda-me uma rua ali sempre,
alheia à ferrugem da história.
Cruzam-na firmes as vozes
de todas as tramas e as notícias
dos funerais inumeráveis do ser.
Reino mantido entre o estrondo
e o disparo brando do silêncio.
Não me falta em seus negócios
de levar consigo um e outro,
algaravia de mimos que se tecem
com o fio da própria lástima.
Não me falta a úmida presença
afeita à febre dos detalhes
que traçam as páginas dessa rua
presa à sua miséria fortuita
e ao esplendor de secretos retiros.
Eis como a encontro. Olha-me
tomada de espelhos, jamais vista
de outra maneira. De fábula
não se trata, ou generosa desordem
que me recolha em sua fonte.
Talvez à sombra de seu assombro
possa a memória confundir-se
com o sonho, reino foragido
de areias, estuário de imagens
que se movem sem piso ou teto.
Tudo ali se reconhece, tão logo soe
a feminina voz de seus encantos.
Recordo apenas a vigília da rua,
teimando em suas portas e janelas.
Inútil aguardar que a viagem
anuncie algum final. A vida nos dá
com a curva de todas as perdas,
uma palavra precária, uma ausência
impossível. Não se deixa a morte
seduzir por silêncios. Ouço-a
agora confundida com as pedras
da rua, e quase toco sua imagem.
Sombras que se debatem em busca
de um corpo. Cantarão sempre.
3.
De que é teu corpo? De que são
tuas palavras recortadas em tábuas?
De que é tua língua que chove
e molha-me os olhos que te buscam?
De que são tuas páginas escritas
enquanto chove e parece ser noite?
De que são os monstros talhados
por teu silêncio? De que é a realidade?
De que são a pele, o fósforo da imagem,
o material de perdas, as falsas pistas,
o golpe errante, o rol de súplicas
da linguagem para que a imitemos
até que não mais se reconheça em si?
De que é tua herança entre traças?
De que são tuas folhas em repouso?
De que é a realidade? De que são
os livros que nos deixam fora de tudo?
De que é a volúpia que toca teu seio
e derrama-se por toda a noite?
De que são os números de tua desordem?
De que é o esplendor de tua memória,
íncubo ridente em sua dança? De que
são teus poemas extintos, tuas sombras
raptadas, os diálogos entre fantasmas,
as baladas do peregrino, teus jogos
que supomos inevitáveis, tuas falhas
plenas? De que é mesmo a realidade?
4.
Seu corpo é a razão de todo mistério.
Não importa a serpente emplumada
que lhe habite. Passo-lhe as páginas.
Suores me afligem em tenebrosa pele.
Deitam-se sobre mim à espera do golpe
do acaso. Desconhecemos todas
as nossas súplicas. Somos de repente,
e logo mudamos de lugar. Seu corpo
amontoa-se sobre o meu, à espera
do esplendor jamais anunciado.
Corpos são cadáveres no umbral do gozo.
Atravesso suas noites. Penso tocar
o abismo. Livros depois já não sabemos
quanto custa despistar o instante.
Deliro fiel à memória dos espelhos,
inquieta ainda em seu milagre de cinzas.
Pele desfiada, águas de um corpo a outro.
Rumores de nomes e enigmas,
mulher, jamais vista de outra maneira.
Tudo a faz vibrar em sua remota casa.
Nada nos atormenta como uma vitrina,
onde o relâmpago de seu corpo desfia
a imagem que distorce todo desejo.
Pareço um assassino preso a seu plano?
Liquida-me em teus braços, mulher,
corpo é tudo o que salta de tuas páginas.
AS TINTAS NEGRAS DO JARDIM
Eu vou fotografar a lua
diretamente do céu
para você, meu amor
Tom Waits (The Black Rider, 1993)
O que vejo é teu olho dançando no jardim:
descreve a si mesmo com tamanha paixão
o olho pintor de seus quadros em movimento
– confessa-se uma máscara de Lucebert,
três vezes estivera com seu espírito maligno,
quase um pária, quase um duende, o olho.
Sua áspera voz correspondia às imagens
com que seguia redimensionando o jardim.
Fotos de combate, estatuetas corroídas,
papéis amassados, bosta de rato, explosão
de desordem por todos os ângulos, no ateliê,
ainda legível um recorte amassado ao chão:
“um poeta que pinte não pode dar grande coisa”.
Segue o universo caindo de si, quase um olho,
tomado de imagens como janelas a descascar.
O que vejo no jardim são detalhes do horror
que ainda comove pequenas histórias ilustradas
– o poeta alimentando o caos, os santos óleos,
pequenas salas de costura onde o mundo se refaz,
olhar inquieto em seu infortúnio: resplendor
dos signos decaídos, guaches de abismos em chamas,
dançávamos e ele não parava de cantar, o olho:
I’ll shoot the moon right out of the sky for you baby
– mostra-me, criatura, as evidências de tua máscara,
não somente o irrefutável, mas sua lástima de si.
O olho excelso no caminho ilumina meu espanto.
Seu bailado acentua-se por toda a pele do jardim:
afeito a dissonâncias, rende-se à dor a criatura.
Uivam figuras patéticas à distância, dança mítica,
legado de antigos filósofos que viam deuses em toda parte.
O olho no jardim é um grande oceano que sangra,
pouco entende do tempo que ocupa com suas serpentes e letras que segue traçando em tintas
negras e árvores-pincéis as imagens que nada têm em comum com a eternidade a simples
representação do momento em que as coisas são menos e menos o despojo de sua própria
agonia quando o desejo confunde-se com o impossível e instaura-se a multa por transgressão e
não somente Hölderlin mas todos os poetas
viveram algum momento como se fossem deuses.
O olho é a proteção do ardor mais secreto da beleza,
embora o jardim contaminado por imagens,
luz que já não se derrama sobre Goethe,
a última rosa do verão, o filme que se esvai
com a noite que atravessa de um encanto a outro.
A semente que cai (novamente a voz de Lucebert),
cai sobre o olho que assimila aquilo que vê.
Pintura e poesia. Mais do que o bailado dos signos
no atônito jardim tomado por seus dramas,
o compasso de nosso corpo negro
firmado no horizonte, sinuosa orquestra de timbres,
os traços caindo inspirados em arabescos
e flautas, bambus refletidos contra o sol,
amuletos-linces, rajas de opala do rio da linguagem,
o olho do amante engana, com seu lápis-trenó,
não existe apenas para a salvação dos cegos.
É grave como a página escrita e o bailado de Mondrian.
O olho é o jardim, mesmo que tomado de paixão.
Projeta-se sobre a ideia [sua] da imagem, um signo branco.
E segue a dançar: vôo de luas em um céu de pincéis.
DILETO DISFARCE DO MITO
Havia um silêncio ali perdido pelo meio da noite.
Talvez por entre as rachaduras no espinhaço do tempo.
Ou uma cicatriz inflamada alucinando o passado que perdera.
Nunca se sabe o quanto uma dor repercute.
Sofrê-la está no limite da consciência.
Algumas cidades sabem mais do que outras como abandonar a si mesma.
As luzes estavam como se a noite mal dormisse.
As escadas relutavam a ensinar o caminho àqueles que se mostravam melhor leitores das aflições
urbanas.
A arqueologia nos diz sobre trilhas subterrâneas, pedra, musgo e água que abrigam certos lacres
insuspeitos da história.
Tudo nos leva a crer que o passado se revela quando cavamos abaixo.
Porém há cidades que escondem sua história no piso superior.
Um abandono de si mesmo bordado nas alturas, encoberto pela agitação térrea da maquiagem
urbana.
Cidades planas e sem escavações hereditárias.
Quem sabe a minha, talvez a tua, certamente a cidade de alguém.
Lugares à beira-mar que se utilizam do sol para distrair a melancolia incorpórea.
E que desmatam sua essência como uma erva daninha.
Cidades atormentadas pela recusa da própria sombra.
A noite aqui não dorme nunca.
Recapitula o silêncio ao qual se sente imposta.
Este vazio desconcertado das ruínas mais jovens da história.
Ruínas aéreas, cujas escadas o mito tenta disfarçar.
Possivelmente restos de algum pecado que desconhecemos.
ENIGMA DOS CORPOS AMOROSOS
Acender o fogo pela sombra da chama.
Atear luz no olhar do tempo esquecido.
Assim um corpo diz como deseja
ser escrito pelo outro que o visita.
Ensinar ao corpo como sair de si.
Traçar eqüidistâncias entre as quedas.
Os pormenores do fogo [ela afiança]
são o melhor regaço dentro do olhar.
E o fixa com tanto esmero que as dobras
do corpo se despem ante o ruído dos passos
[dela] que são vestígios da sumição
das roupas [dele]. Por onde o enigma
apura suas harmonias? Por onde um corpo
aprende a soletrar o outro? [ela não diz]
Esvaziar a noite de vícios que a definam.
Deixá-la sem chance de reconhecer-se.
Estar a esboçar um tratado de trevas
requer a cegueira precisa em cada afeição.
Quem plagiaria o suicídio ou a ruína?
Os dons são mecânicos, uma fábula gasta?
Na balbúrdia dos corpos descobrindo-se
um soletra o dia, o outro deslinda a noite.
Qual risco a língua desenha ao passar
de uma boca a outra? Não há exatidão,
exceto no desejo. Um corpo [ela o tenta],
ao cair no outro, é em si que repercute.
O amor tateia entre nódulos [ele matuta].
Uma atração sublime pelas dissonâncias
parece iludir a queda dos corpos amorosos.
O que tens no ventre [diz ele] é o abismo
de que me sirvo para um dia alcançar-me.
Apenas o acaso resguarda tais planos [ela].
Os corpos sondam o pendor pelo extremo.
Atear luz no olhar do tempo esquecido.
Acender o fogo pela sombra da chama.
VIRTUDES DA IRONIA
A morte é uma estátua.
Francis Picabia
Para onde vamos nada tem princípio.
Uma mínima noite se esgota em si mesma.
Toda história se esvai com o poente.
Caminhamos pelas ruas de um deserto onde o silêncio não se enfurece com a ausência de
memória da imensidão que se ocupa de nossos gestos mais fugazes.
Tu não estás aqui para dizer que sempre me amaste.
Não há nada mais desconcertante no esquecimento do que os rumores de outra existência.
Quanto do que jamais fomos carregamos dentro de nós como um sinal de indiferença?
Mal pronunciamos os vislumbres da identidade.
Para onde vamos imagem alguma nos reconhece.
A neutralidade absoluta em todos os idiomas.
Não me esperes para romper o lacre de tuas inquietudes.
O infortúnio transita como uma oferenda insuspeita.
Todos somos as pedras marcadas de um jogo que não se completa.
A morbidez ama suas luzes decaídas.
Lemos complacentes as crônicas que nos encharcam de verossimilhança.
A realidade não faz a menor ideia do papel que desempenha em nossas vidas.
Seguimos a caminho de um lugar onde o caos se refaz considerando a apuração dos fatos.
Não me revelarás nada que eu já não tenha dissipado.
Livre dos destroços sentimentais.
Livre dos pronomes pessoais.
Avançamos para longe da clandestinidade cidadã em que a ficção nos viciou.
Não há lugar para o que não seja a branda areia da escritura dos missais ante o bocejo do mar.
O que há de lícito na beleza independe de sua idade.
A minha angústia quer estremecer em tuas mãos.
Corta o cerco.
Rasga o bloqueio.
Não tens que estar aqui.
Não podes me amar dessa maneira.
Para onde vamos nada será demasiado.
Suportarás o mundo absolutamente correto em descrições de caminhos que não se repetem e
anseios enfim concretizados de jamais voltar a tocar em qualquer assunto.
O amor estará morto quando cessar de se repetir.
Não recordamos um engano que acabamos de cometer.
Nem sabemos o que é certo.
É possível que um dia um poeta tenha escrito que a morte é uma estátua.
A ficção converteu-se na única convicção de que a realidade não pode ser molestada em seus
caminhos sem princípio algum.
Não me amaste até aqui apenas para escrever um livro.
Não temos nenhuma ideia precisa do que somos.
ALGURES UM MAPA
Quantas serão as migalhas do espírito,
quando este mal soletra seus extravios?
Um bocado de nada, quanto lhe custa?
Quantas vezes suportará o desatino de ser
tão excessivamente nada entre escombros?
Qual preço em cada agulha que o desfia?
Uma vez que empalidece o mapa da ilusão,
já não reconhece um vestígio próprio.
De tanto olhar para si, quantos vê ainda?
Será deste modo que se esvai, tão líquido?
Quem quer que encontre durante a queda,
com nenhum contará que o defenda de si.
Estará sempre em débito com os espelhos,
as imagens se despedaçando a cada lustre.
Que importa quantas eram um minuto antes?
Ao levar as mãos aos olhos quanto repinta
do que até então nem presume haver perdido?
Saberia se desfazer do que ainda não teve?
Quanto escavará a lembrança e a ambição,
sem distinguir a qual cova mais se dedique?
Ao roer as vozes que o cercam, apenas cinzas.
Formas arrastadas para o limite do ilegível.
Onde pouso a mão sem que me escapes, diz.
E já quase nada mais dizia, limitado à queda.
Planejaria tornar a cada espelho submerso,
para refazer-se da imagem mal vislumbrada?
Quanto lhe custaria em naufrágios, interessa?
Corpos da ilusão imersos em água salgada,
como rios atormentados por um ritual.
Quantas vezes não somos senão o que fomos?
Algures um deus, um menino travesso, luz
queimada em plena ilustração do espírito.
Quanto custa percorrer a dor inteira?
O que mais revira o ser que seu reverso?
Uma grande língua que vare toda a vida,
e que nos fale o que temos de mais íntimo.
Cair na traquinagem do tempo ou do espaço,
eis como ceder à arte de matar o espírito.
Quanto de mim deposito na conta do viver?
Em comum, os escrúpulos da inocência
e as suspeitas de crime, o que têm?
Decaído o espírito flerta com vagos perfis.
Quem sabe o peso do vazio e seu destino,
calcule a tarifa da postagem e lamba
o selo como o espinhaço do infortúnio.
O que subscrevo quando me livro de mim?
Para onde vou se observo o mar caindo
por toda parte e tudo é rio desmoronado?
Esticar o limite do fim até que rebente.
Que a ilusão não tenha sossego e se rompa,
como a esperança arruinada por capricho.
Quantas as migalhas vagando pelo bosque,
desencontradas do que já nem fantasiam,
o espírito encalhado em conjecturas?
Um rosário de quedas, a que preço?
Qual transparência suporta uma noite
de sono bem acomodada em si mesma?
As imagens se retorcem, feito uma chama
dentro do fogo. Um pássaro diz-se outro
ao desfazer-se de suas asas carbonizadas.
Como reter a escrita de um espírito findo?
Por onde cai salpica labirintos e ressurge
e, ósseo, volta a morrer por toda parte.
Desfazer-se da neblina, da areia, dos golpes
do desejo lavrados na pele da prudência,
custa mais caro que a insônia, quem banca?
Quanto se pede pelo enredo da semelhança?
Dívida assim não se paga em vida. Deus
algum cobraria tão pouco por seus mortos.
A vida é excessivamente nula do que somos,
e revela-se na dor que desferimos contra
o espelho, quebra, guarda, nenhum desconto.
ÚLTIMAS PISTAS
Náufrago desperto em números
Detido no jogo do vento
Em suas artérias de presságios
Ossos de um mesmo e exposto cadáver
Longe canta a eternidade sua desprezada justiça
Canções de trevas
Relâmpagos risíveis
Náufrago iluminado pelo contágio
Contando lágrimas sob a língua
Longe longe a pretensa história de seus mortos
Quem por terra cai ali se esvai
Em súbito monumento de chamas
Ardiam os dias sepulcros à deriva
Horror delicado das súplicas
Paisagem com seus planos de histeria
Um lampejo de traumas
Arrastam-se os lábios por toda a fala
Tenebrosa estrela
És o equívoco silencioso
Náufrago à borda de teu miserável destino
Tempo contemplado em despojos
Por onde o fogo a desfolhar-se começa?
Como o abismo reconhecer gotejando suas aves?
Pondo as coisas para andar
Para cantar a selva sua paciente tragédia
Fantasmas a cada passo
Absoluto absurdo
Para cantar as formas que são a vertigem do tempo
A intimidade disforme de tudo quanto sonhas
Náufrago desfeito em um sistema de perdas
Quantas refletem tua queda?
Qual a irreparável vocação?
Será tua a vez de assumir o desastre
Das formas perderem a fala
Do espaço evadir-se de si
Quem és?
Oh náufrago com o homem às costas
Como eletrificastes as circunstâncias?
Visionários guias
Rumores cristalizados
Destinos em série
De que se ri a imóvel paisagem?
Foram-se os outros todos náufragos
Um precioso talho de árvores em fuga
Caos contra o infortúnio
Ânima contestada
Formas resumidas a um breve bosque de catástrofes
Que vida prolonga o poema?
Que célebre demência ancora na esfera fulminada?
Para mudar tua vida o canto
Dar nome ao silêncio ao verbo ao esquecimento
Riscar os fósforos de todos os domicílios da beleza
Uma última onda até morrer o sentido
Linguagem arenosa
Monastério da dúvida
Comporta-se o náufrago como um farol caído
A tudo vê passar sem utilidade alguma
Escombros da própria agonia
Interminável a conta das lágrimas seus estudos de silêncio
Terra insolente sobre os prodígios de sua queda
Fronteira onde não floresce uma ave uma luz vulgar uma voz
Náufrago o náufrago de si mesmo
Soberbo ataúde
Nenhuma treva lhe cai tão bem
Recordará um dia sua fortuna recusando-se ao enterro
Caminhos os temos em silêncio aos berros
Vozes recuperam-se de crimes da cortina de delitos do alimento de lamentos da convulsão de sons
São como ases
Um poema repleto de vozes
Um templo contra a morte
Ávida beleza infernal de aves corroendo o céu com seus véus
Naufrague a pedra o homem a árvore
Ali onde sabemos a eternidade magnético equívoco
Místico pavor quando tudo pode esperar
Não há um triunfo da forma
As honras são todas da dor
Náufrago o náufrago caído em números
Perfeito o veneno sobre seu dorso abandonado
Quem o toque em naufrágio iguala-se
Lúbricas as transfigurações do ser
O monumento do náufrago a si mesmo
Uma história de angústias em rostos desfigurados
Ali soam suas vértebras a seiva a solidez
Sombras que se urdem acumuladas em gozo
Ressurgem o mito as vozes migratórias a árvore que canta
Dá-se que tudo é naufrágio
– trema um sentido decaia uma dor retire-se um abismo
O corpo detido em destino
Despedaçado em sombras
Náufrago de que lei?
Febre de areias sobre seu dorso
Imagens circulares refazendo-se sob o sol
Sobre a morte interroga-se
É sua língua desmedida
Deserto é afeto desfeito o ermo do medo da solidão
Aproxima-se de si o náufrago
Sem mais temer sua fábula
Dá-se a cicatrizar a memória
O rio do náufrago o sal sem pressa o sonho o barco desvirado a imagem sangrenta delirante
agulha o infinito a montanha o mar a pesca de anseios o engulho de algas a dor do céu a rosa
molhada os lábios comidos de areia o milagre do esquecimento
Não há tempo a perder no náufrago
Gramática é a sua do rumor desperto em êxtase
Loucura a linguagem recriar-se soberba ambígua
Incalculável farol nos lábios do náufrago
Dorso de sal
Inclemência do verbo
Alegoria do ser
Parábola do verso sobre a agonia humana
Areia areia areia
Diante do próprio naufrágio o náufrago mal consegue respirar suas aves
REINO DE VERTIGENS
A Socorro Nunes
Teu corpo e o meu caindo sobre o mundo:
noite saqueada por uma caravana de relâmpagos.
Despojos do tempo foragido de sua fonte,
minando abismos à deriva, perdas flutuantes.
O rosto deformado da beleza que as ruínas cultuam,
linguagem extraviada ao querer entrar em si.
Teu corpo e o meu em sua queda mais secreta.
Um labirinto que fosse um deserto e um deus
ciente que dali não há retorno. Fuga de trevas.
Os disfarces fatais da memória ante o infinito.
Indetíveis sombras caindo sobre o mundo.
Teu corpo e o meu: o que resta de um no outro.
VINHETA
Viajas pela terra, vês tudo o que está dentro dela, observas todos os negócios da
tua casa, e comes pão, tendo sido efetuadas por ti transformações iguais às de
Baba.
Texto funerário de Taquert-P-Uru-Abt
Teu corpo floresce selado em páginas necessárias.
Santuário que surge e pousa e torna a ausentar-se.
Um abraço de folhas naquele que te abre à luz
de enigmas proporcionados pelo tempo. As porções
de um mesmo dia que albergam tremor e sombras
de tudo quanto o homem julga torná-lo um santo.
E um chão de folhas caídas (a cela repleta de folhas)
a traduzir a travessia do que recita a própria agonia.
Tarde passas por aqui, vinda de tarefas que te inundam,
o corpo ainda em sopro majestoso florindo um suave
estojo de frases do coração e a saúde de ritos erguidos
por todos os feitos vitoriosos da respiração. Onde estás?
Tuas letras nos chegam em súplicas e cuidadosas dores.
O homem é preservado graças a seu duplo. E floresce
em papiros relutantes enrolados em teu corpo. Aceita
a companhia de deuses para que dali triunfante saia
a soletrar seus martírios e dobre as folhas lidas de modo
a não retornar nunca ao que supõe ter sido um dia.
Onde estás? Mesmo que digas que o vazio é como estar
perto de ti, ergue-se o dia a cada dia sem rejubilar-se
por tal façanha. Os deuses alargam o passo. Os homens
se julgam santos. Uma mesma tinta glorificada lacra
sua passagem de um tempo a outro: a memória
é o sangue, as palavras mágicas, a firmeza da ilusão,
a rubrica de dotes sacrificiais implantados no espírito.
Teu corpo floresce exaltado pelo nome e por todas
as formas que exaurem a devoção. Teu corpo oculto
como um pássaro no céu a degustar os tremores do vôo.
Refiro-me à visão de uma ave em que pomos a mão
e se desfaz. Uma miragem da letra e sua soberana sombra.
A presença do homem sentindo-se divino entre deuses,
salvo não sem relutância por seu duplo com sua alma
anônima. Se te queres ali um sol desmaiado sobre o templo,
requer piedade (deusa) para que sejas feliz. A cumplicidade
de alguns poetas, o suborno a uns tantos inimigos, a voz
gravada do morto para que deslacres sua fausta memória.
Não fará mal recitar versos que atestem o conhecimento
sobre as coisas perdidas, ainda que seja um simples trono
ou mesmo uma tora de fogo a sublinhar um tempo de gozos.
Invocas a eternidade e somos levados a seus descaminhos.
Uma vez trouxeste contigo um inimigo, outra a irrigação e o pão.
És o engano e devo ser a sombra ofertada em seu nome.
O azinhavre imperioso da oração. O tecido de incenso.
O quanto tem custado nossa fé tão satisfeita. Um deus
ao inclinar-se requer juntar-se a seus fiéis. Um outro
posta-se ereto sempre para que deixe o coração bater.
O que se mostra envolto por uma serpente seduz
pela oferenda de seu próprio mistério. O corpo floresce
por libações do desejo. Desenhamos as letras inferiores
para que sejam evitadas ou aviltadas? O próprio escriba
entalha o tende piedade do escriba que aja contra
a letra. Apenas teu nome safa-se de toda tempestade.
Não o repelimos ou assimilamos. Dele nos livrarmos
não podemos. Devora-nos e os ossos recriam sua forma
incessante e repete-se ao ponto de não mais sabermos
se somos carne ou espírito, dor ou símbolo, nume ou nada.
Decerto será misericordioso o calor de teu corpo
estendido ali onde a miséria triunfa. Ali onde causa dano
a oportunidade perdida. Ali onde continuamente o ser
perde sua linguagem. Bem ali onde morreremos inúmeras
vezes, onde as vozes escolhem seus louvores e assinamos
com trêmulo vigor as faixas que garantem que teu corpo
não seja jamais despedaçado. Onde temperamos a odisseia
de ilusões de que floresces. Onde és o corpo sob nossos pés.
Deusa de um túmulo encravado em nosso espírito.
Não há quem a proteja de si mesma. Rabiscos por toda
a pedra santa. O verso é o verbo diante de si. Dentro
do livro está o homem: carregado de sombras e vertigens.
III. A QUEDA
Reúno teus restos em volta do mundo,
ali destroças a anunciada súplica do esquecimento.
Indagam os úmidos tesouros do espelho
pelos corais de tua pele, o atlas de teu ser.
Rumoreja o inimigo antes que nos escape,
uma fuga de trevas tecida em suas entranhas.
Deixa que teus rastros se evaporem, amor,
que se desfaça toda a matéria ardente sonhada
e o ciclo de teus desmaios diante do sol.
Rompe em tremores as formas de tua dor,
em seus degraus vou perdendo meus dons.
Não se evocam sinistras sombras em vão,
o tempo se ordena diante de sua própria queda.
Prolongo em cortes a sigilosa tarefa do fogo
nos lugares abandonados do mundo.
Alguém necessita prosseguir no combate,
além dos círculos agônicos, dos sinais obscuros.
Reúno os ossos de uma pesada árvore,
a idade perdida de tuas resinas, velho amor,
o peixe esculpido em teu ventre e o idioma
com que deciframos a espiral dos desígnios.
Contente em te perseguir, disse: “Náufraga minha,
tua dor se mescla à alegria do mundo, o íntimo
de tuas silenciosas perdas sua doce mensagem:
o poema traspassa a perplexidade de seu salto,
surpreende a visão dos deuses que lhes são próprios,
dissimula a ronda de toda espécie de torpor.”
Não pode ser outra a cena de teu mistério isolado.
Romper com o bosque de seus murmúrios
requer uma parábola muito além do incêndio.
Movem-se escamosas figuras em torno ao sonho,
voluptuosas aventuras da dor, desmaios pronunciados.
Reúno tuas peças fixas, ainda que dispersas,
sem que nos preocupe o caos de suas fontes.
A extensão de teu enigma toca-me luz e sombra:
“De que calabouço pensas trazer minha alma?
Descenderei acaso da tribo errante de tuas espinhas?
Serei teu caos escolhido em uma vitrine?”
Um velho hóspede esquecido te desfaz em molduras,
as fabulosas cenas de sua própria miséria.
Devemos tomar cuidado com o tempo, eterno amor,
dentro de sua dura geometria temos lugar certo,
segundo suas ordens e a epifania de seus lamentos.
Tudo o que vivemos é pegajosa travessia,
o abismo que em nossas vísceras testemunha
o sabor insólito de toda sabedoria, decerto nos reserva
a metáfora de seus servos raptando nossas sombras.
Reúno os despojos encaminhados à partilha
de tua lenta agonia, as invisíveis páginas
do livro que nos deu nome e saboroso peso e fim.
Restituirá a memória algo além de vermes?
Que minério torna potente a angústia, o desamparo?
Passamos por debaixo do relevo dos sonhos,
o corpo curvado empenhado em não tecer ruídos,
nada que desperte a epígrafe voraz de nossas vidas.
Presságios, rios silenciosos, calabouços e grutas
– tudo o que em nós se dava como uma dança do gelo,
o círculo imóvel de nossos próprios vapores.
Tua voz sempre segada por meus disfarces:
“O amor devora o lobo das noites, lambe a ferida
de seus deuses, destrona o método de toda infâmia”.
Saíamos de nós para a avidez de escombros, descalços
coincidíamos nossos passos com o vidro moído das trilhas.
Que canção voltamos a cantar em nome do amor?
De antigos funerais recolhemos seus úmidos signos:
“Tudo no homem se dá no rapto de si mesmo”, “A arte
requer um relevo de miséria e um número garantido
de quedas dissimuladas”, “Suas mãos atadas tocam
a fonte do renascimento”. Qual será a misteriosa
tribo que escapa a todo escrito. Qual a fúria que penetra
o labirinto das horas, a árvore enlouquecida insurgente
contra a boscagem murmurante de tanta fábula?
“Qual será o nome do amor?” Haverá quem escape
de tal trama? Sátiros nos levam de volta ao lar.
Reúno tuas cenas em um mesmo filme, empenhado
em dividir o fogo a cada toque órfico da memória.
Tua metade me sonha e sei que sou a testemunha
de seus conhecimentos entrados no fulgor das noites,
o portal de seus ruídos convertidos em versos.
Outra parte do amor me chega fiel ao desamparo:
“Nada em ti aceita reconhecer os traços de um mistério,
as agulhas que exalam semelhança justo nas bordas
com que polimos a firmeza de nossas feridas,
quando entalhamos o impenetrável de nossa alma”.
Recusas o golpe de toda liturgia e nisto destróis
as entradas flamejantes da ordem dos desvios.
Reúno os objetos sagrados de tua representação:
as imaginárias colunas por onde o amor se enrosca,
um tema recolhido em leituras que é tua pele,
as passagens que levam tua alma a regressar à minha.
Por onde retomo teu vulto, o centro de tua semelhança?
Como regressar à epifania de teus assombros?
De onde mais vem a ventura de contraditórios encantos?
“Diverso o amor nos defende da imortalidade.
A enlouquecida forma é sua própria chave,
tanto quanto a carícia compreende-lhe os trágicos esmeros.”
Reúno as páginas de um livro muito antigo,
cujo esplendor disfarçadamente percorre nossa espinha.
Sinto-me sem ti, meu profundo amor, atracado
em um único corpo, encerrado na fuligem das páginas
de uma cidade que deveria ser queimada.
“Que espécie de naufrágio requer a dor uma única vez?
Que golpe nos permite ir além de seus efeitos?”
A farsa dos fragmentos toma rápidas decisões,
célere proclama a dispersão de suas partes: folhas,
ossos, escamas, versos, estações, toda a umidade
de um saber que se transfigura em si próprio ao ser tocado.
Para onde vai tua memória? Como evitar aqui seu exílio?
Reúno tuas feridas, o redemoinho de suas imagens.
Por inúmeras vezes pensei que estivesse comigo o amor.
“Os corpos se perdem em suas nuanças; as dores, não”.

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