Camilla Ezequiel Jardim
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Camilla Ezequiel Jardim
INDÚSTRIA, TRABALHO E ENSINO INDUSTRIAL NO PENSAMENTO DE ROBERTO COCHRANE SIMONSEN: a presença do americanismo Maxwel Ferreira da Silva José Geraldo Pedrosa, Dr. RESUMO Este trabalho insere-se no Programa de Pós-graduação em Educação Tecnológica do CEFET/MG. Vincula-se, de modo mais singular, ao programa de pesquisa Americanismo, Trabalho e Educação. Investiga-se o americanismo (suas influências) no pensamento de Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948), industrialista estrênuo, intelectual orgânico e político brasileiro, e a confluência das suas ideias no processo de constituição do Ensino Industrial no Brasil. Americanismo refere-se ao ethos dos Estados Unidos da América (EUA). Enquanto conceito, possui duas grandes vertentes: uma endógena e outra exógena. Esta diz respeito ao olhar da alteridade sobre os EUA, aquela se refere aos significados do termo entre os próprios ianques. O que ambas têm em comum é a percepção de que os EUA são diferentes da Europa e esta diferença, para alguns, inscreve-se em termos civilizatórios. Neste trabalho, americanismo liga-se ao fordismo, um modo de produção que implica um determinado modo de vida. Objetiva-se compreender a presença e relevância do americanismo no pensamento de Roberto Cochrane Simonsen, altercando de quais modos o americanismo influenciou sua postura em relação ao trabalho e ao Ensino Profissional no Brasil na década de 1940. A natureza da abordagem será, sobretudo, filosófica e histórica, enquadrando-se numa perspectiva da teoria crítica. PALAVRAS-CHAVE: Simonsen; Americanismo; Fordismo; Ensino Industrial. 1 INTRODUÇÃO Este trabalho insere-se na linha de pesquisa Ciência, Tecnologia e Trabalho: abordagens filosóficas, históricas e sociológicas do Programa de Pós-graduação – Mestrado em Educação Tecnológica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET/MG. Vincula-se, de modo mais singular, ao programa de pesquisa Americanismo, Trabalho e Educação que é a principal ponte entre a referida linha de pesquisa e este estudo, cujo tema é a Educação Profissional e Tecnológica no Brasil, focalizando a Educação Profissional e, de modo particular, o Ensino Industrial que ganha maior relevância a partir da década de 1940. Investiga-se o americanismo (suas influências) no pensamento de Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948), industrialista estrênuo, intelectual orgânico e político brasileiro, e a confluência das suas ideias no processo de constituição do Ensino Industrial no Brasil. A problemática da pesquisa gira em torno da seguinte questão: ao propor o desenvolvimento do Brasil pela via da industrialização, e tendo como forte referencial o fordismo, sabendo-se que, conforme Gramsci (2001), não se realiza o fordismo sem uma mudança ontológica na sociedade, i.e., sem as condições sociais necessárias para realizálo, qual e como é a presença de princípios e práticas pertencentes ao americanismo no pensamento de Roberto Cochrane Simonsen. Além disso, como o americanismo influenciou sua concepção sobre o trabalho e Ensino Profissional no Brasil na década de 1940? Objetiva-se compreender a presença e relevância do americanismo no pensamento de Roberto Cochrane Simonsen, altercando de quais modos o americanismo influenciou sua postura em relação ao trabalho e ao Ensino Profissional no Brasil na década de 1940. Mais especificamente, objetiva-se identificar e examinar a presença do americanismo nas obras selecionadas de Roberto Simonsen; analisar suas concepções sobre o trabalho e sobre o Ensino Industrial e cotejá-las ao americanismo. O objeto da pesquisa é o americanismo no pensamento de Roberto Cochrane Simonsen e a fonte para tal objeto é o conjunto selecionado de cinco obras de Roberto Simonsen, a maioria uma compilação de discursos e conferências. São elas: O trabalho moderno (1919); Á margem da profissão ([1932]); Ensaios sociais, políticos e econômicos (1943); História Econômica do Brasil 1500-1820 (1944); e Evolução industrial do Brasil e outros estudos (1973). Reserva-se à pesquisa a possibilidade de consultar outros textos do autor, especialmente alguns discursos que não foram incorporados em livros, como Roosevelt, discurso pronunciado no Teatro Municipal de São Paulo nas comemorações do dia do Pan-americano, em 1945. Com exceção de História econômica do Brasil 1500-1820, cujo interesse maior da pesquisa é examinar a concepção que Simonsen construiu sobre o Brasil até o início do século XIX para entender suas propostas desenvolvimentistas que se farão adiante, todas as outras obras serão lidas e examinadas com a finalidade de se compreender como o americanismo nelas aparece, explicito ou implicitamente, e nelas significa. A natureza da abordagem será, sobretudo, filosófica e histórica, enquadrando-se numa perspectiva da teoria crítica. A teoria tem um papel fundamental para a pesquisa, sendo simultaneamente sustentáculo para as reflexões e trampolim para possíveis inferências e descobertas e deverá, o quanto for possível, ser concomitantemente explicativa, normativa, prática e autorreflexiva. Como a pesquisa não tem a pretensão de apenas extrair dos textos de Simonsen o sentido, i.e., a presença do americanismo, mas antes, visa compreender neles como o americanismo produz sentidos, como ele está investido de significância para e por Simonsen, opta-se pela Análise do Discurso (AD) como método para a realização da pesquisa. A delimitação do corpus de análise não seguirá critérios empíricos, mas teóricos, o que significa dizer que ao escolher o que faz ou não parte do corpus já se estará fazendo a seleção de propriedades discursivas. Convém ressaltar que, conforme Orlandi (2009), a AD não se interessa pelo texto como objeto final de sua explicação, mas como uma unidade que permite acesso ao discurso. Em outras palavras, o texto não será fim para análise, mas meio de acesso ao discurso. 2 ROBERTO COCHRANE SIMONSEN: O “CAPITÃO DA INDÚSTRIA” Roberto Cochrane Simonsen nasceu no Rio de Janeiro em 18 de fevereiro de 1889, embora tivesse preferido declarar-se santista e paulista (LIMA, 1976). Proveio de famílias britânicas, tendo ascendência aristocrática do lado materno.1 Sua mãe, Robertina Velasco da Gama Cochrane Simonsen (1862-1942), também carioca, descendente de ilustre família escocesa, filha do famigerado Inácio Wallace da Gama Cochrane. Seu pai, Sydney Martin Simonsen (1850-1930), engenheiro de família inglesa tradicional que veio de Londres para o Brasil aos 25 anos de idade, tendo se estabelecido em Santos. Roberto Simonsen foi o segundo de cinco irmãos. Estudou o curso primário no Colégio Tarquínio da Silva, em Santos, e realizou o curso secundário em São Paulo, no Colégio Anglo-Brasileiro, destacando-se como primeiro aluno (LIMA, 1976). Aos 15 anos de idade, ingressou na Escola Politécnica de São Paulo, hoje integrante da Universidade de São Paulo, formando-se engenheiro civil em 1910, antes de completar 21 anos, sendo na época um dos engenheiros mais jovens do Brasil. Abstendo-se de algumas regalias, pois tinha direito a ocupar um cargo público após a colação de grau, e mantendo o espírito de “agir criando”, Simonsen trabalhou como engenheiro na Southern Brazilian Railway (Ferrovia do Sul do Brasil) e depois na Prefeitura de Santos. Em 1911, casou-se com Raquel Cardoso e tiveram quatro filhos: Roberto, Fernando, Eduardo e Victor (LIMA, 1976). Fundou em parceria de amigos a Companhia Construtora de Santos, que se destacou por contrapor-se ao amadorismo das empresas do ramo na época. A organização executou projetos técnicos e modernos, pavimentou parte da cidade (de Santos) e construiu estabelecimentos, dentre eles a Bolsa de Café e a Associação Comercial, e a Base da Aviação Naval. Simonsen definia a si mesmo como um homem de trabalho e um técnico de outras atividades (SIMONSEN, 1933). 1 O nome Cochrane está associado ao aristocrata britânico Thomas Alexander Cochrane, nascido em Annsfield, na Escócia, em 14 de dezembro de 1775, filho do conde de Dundonald, nono do nome. Lord Cochrane teve uma importante participação na história do Brasil, especialmente no processo de independência; e sua atuação foi marcante em solo baiano. Foi o primeiro Almirante da Marinha Imperial brasileira (PINHO, [s.d.]) e protagonista das guerras de independência de vários países latino-americanos. Faleceu em 1860, aos 85 anos. A tradição da família de Simonsen liga seu nome (Cochrane) ao do famigerado almirante (GIORDANO, 2012). A economista Rosa Maria Vieira (apud MARINGONI, 2010) dividiu a vida pública de Simonsen em três fases. A primeira compreende o período de 1918 a 1927 e foi marcada pelo interesse em racionalizar a produção, sobretudo agrária, e de detectar os gargalos do Brasil.2 Na segunda fase, de 1928 a 1939, foi um dos fundadores do CIESP – Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, em 1928; da ELSP – Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (atual Fundação Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo), em 19333; e iniciou sua carreira parlamentar.4 Por fim, no período que vai de 1940 até sua morte, em 1948, formulou com mais maturidade suas ideias sobre a indústria, sobre a economia e sobre o desenvolvimento nacional.5 Seu nome está associado à criação do SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, em 1942; e do SESI – Serviço Social da Indústria, em 1946. A justificativa de Simonsen para a criação dessas instituições, especialmente as que visavam formação profissional, era proporcionar fundamentos para a “nova mentalidade”, qualificando-a a responder com propriedade os desafios da sociedade moderna erigida sobre os pilares da ciência e da técnica (TENCA, 1987). Ao fundar a ELSP, Simonsen, em companhia de outros patrícios, instituiu uma escola para as elites dirigentes. Já o SENAI estava destinado à formação da mão de obra da indústria. Conforme Fonseca (1952) e Giordano (2012), Simonsen foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Santos e Rio de Janeiro; da Academia Paulistana de Letras; da Sociedade Capistrano de Abreu do Rio de Janeiro; da Academia Portuguesa de História de Lisboa; do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro; do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Pesquisas Econômicas (Rio de Janeiro); consultor técnico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; presidente do Conselho de Economia da Confederação Nacional da Indústria; membro do Instituto de Engenharia de São Paulo; do Conselho 2 Em 1919, foi designado membro da Missão Comercial Brasileira à Inglaterra e representante no Congresso Internacional dos Industriais de Algodão ocorrido na França. Também integrou a comitiva na Conferência Internacional do Trabalho realizada nos EUA. Embora já tivesse uma vida pública notável, foi com a construção de quartéis (obra encomendada pelo Ministro da Guerra do governo de Epitácio Pessoa, Pandiá Calógeras), obra que se estendeu a vinte e seis cidades e nove estados, que Simonsen atingiu o ponto culminante de sua atividade como engenheiro civil (CARONE, 1971). Notável e pioneira foi sua gestão administrativa e sua aplicação dos conceitos científicos advindos do taylorismo e fordismo. Simonsen foi diretor da Companhia Nacional de Artefatos de Cobre (19261928) e presidente da Companhia Nacional de Borracha (1926-1927). 3 Simonsen não foi autor do projeto da escola, mas foi porta-voz dos fundadores. Fez parte do grupo que elaborou o primeiro projeto pedagógico e lecionou na ELSP, o que não o torna um acadêmico. Segundo Maza (2004), foi de Simonsen a sugestão acatada de contratar professores americanos, assim como foi dele a visão única da identidade da ELSP. 4 Segundo Carone (1971), Simonsen foi presidente do Sindicato Nacional de Combustíveis Líquidos (1923-1928) e tornou-se sócio da Casa Comissária Murray Simonsen Co. (Sic), uma tradição de sua família também mantida por seu avô. Foi eleito presidente do Instituto de Engenharia de São Paulo (1933-1934) e da Confederação Industrial do Brasil (1933-1934). Pertenceu ao Conselho de Expansão Econômica do Estado de São Paulo (1938-1941) e do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, et ultra. Participou da mobilização industrial paulista durante a revolta de 1932, foi eleito deputado constituinte (1933-1934) e deputado federal (1933-1937). 5 Foi senador da República de 1947 a 1948, ano em que veio a falecer. consultivo do IDORT – Instituto de Organização Racional do Trabalho; vice-presidente do Conselho Superior da ELSP; membro da American Society of Civil Engineers (de Nova Iorque); do Inter-American Statistical Institute (de Washington); da Population Association of America (de Washington); da National Geographic Society (de Washington); do Conselho de Editores (Economia do Brasil) do Handbook of Latin American Studies (de Harvard, nos EUA); da Royal Geographic Society (de Londres); e do British Institute of Philosophy (de Londres). Faleceu no salão nobre da Academia Brasileira de Letras, em 25 de maio de 1948, quando discursava ao primeiro-ministro belga, Paul van Zeeland, em visita oficial ao Brasil. Sabe-se que nenhum homem pode ser desvinculado de seu tempo. Do nascimento à morte de Simonsen, notáveis fatos e mudanças decisivas estavam ocorrendo no mundo. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, os países não industrializados, como o Brasil, perceberam o quão eram frágeis e dependentes do comércio exterior, pois essencialmente agrícolas. De acordo com Doellinger (1977), o Brasil fazia relativos avanços entre 1922 e 1929, importando alguns bens de capital para as indústrias têxtil e de alimentos, quando o crack da Bolsa de Nova Iorque reduziu drasticamente o comércio mundial. O padrão-ouro e o liberalismo comercial, pilares sustentados pela supremacia britânica, perderam a validade já com a Segunda Guerra Mundial, o que resultou no fechamento comercial e financeiro de muitos países (DOELLINGER, 1977). O mundo vivia um período de desordenamento econômico e político. Embora coadjuvante na cena internacional, no início da década de 1930, o Brasil vivia importantes acontecimentos internos. A República Velha com suas rígidas políticas monetárias já não dava conta de sustentar as demandas daquele período. Contudo, destacou Doellinger (1977) que a Revolução de 30 não apresentou uma direção clara. A política brasileira continuou conservadora até 1937 e o que se buscou foi estabilidade monetária. Para Oliveira (2012), a transformação da sociedade brasileira durante o governo Vargas e os impactos da Segunda Guerra Mundial alteraram a ideia de nação que se tinha no Brasil e o cotidiano da sociedade brasileira, notadamente nos centros em industrialização. Segundo a autora, no final de 1930 o Brasil tinha dois modelos a imitar: a França e os EUA. A elite culta brasileira nutria forte abjeção à cultura dos EUA, taxando-a como bárbara.6 No entanto, após a Primeira Guerra Mundial parte dessa mesma elite começou a questionar o paradigma europeu e inclinou seu olhar para os EUA, que, 6 Um exemplo disso é a opinião de Sérgio Buarque de Holanda (2005, p. 43), para o qual nos EUA reinava um utilitarismo bárbaro e havia “[...] um ar infecto de corrupção que exala das classes que governam, difícil de ser encontrado na Europa. O utilitarismo e a preocupação de ganhar dinheiro [...] conquistaram os norte-americanos em detrimento do espírito intelectual, da moralidade política e da própria liberdade individual”. enquanto novidade civilizatória7, atraia para si os holofotes do mundo. Foi com a Política da Boa Vizinhança do Governo de Roosevelt8 que começou a se estabelecer um contato efetivo entre o Brasil e os EUA. Para Warde (2000), a partir de 1822, projetos começavam a circular no Brasil cujas propostas tinham como referência os EUA. Sabe-se, por exemplo, que o modelo urbano para a cidade de São Paulo no período de 1914 foi a cidade de Chicago. Até então, a França nutriu os ensejos políticos e os projetos de modernidade no Brasil, tendo sido uma forte referência; “dos brados de liberdade à sofisticação da belle époque, da moda à organização disciplinar do ensino médio; é com Paris que a intelectualidade brasileira e os socialmente emergentes aprendiam a adquirir lustro e tornar menos enfadonhos os seus dias provincianos” (WARDE, 2000, p. 38). Todavia, o que não tardou a constatar-se é que não era na França que a utopia revolucionária e modernizadora estava se realizando, mas nos EUA. 3 AMERICANISMO É FORDISMO Gramsci (2001) fez uma perspicaz distinção entre ação real e o espírito do gladiador, para ser referir aos EUA em contraponto à Europa. Enquanto o espírito do gladiador modifica apenas as palavras e os gestos, a ação real modifica em essência tanto o homem como a realidade exterior. O espírito do gladiador é ridículo, pois apenas cria fantoches que compõem bem o cenário que ocupam, mas quando são cortadas as cordas que os sustentam, tornam-se inanimados. O americanismo, afirmou Gramsci (2001), é uma ação real. Não tem muitas teorias, não se restringe à reflexão apenas, mas cria um futuro que nasce de dentro de sua atividade objetiva. Efetua-se, sobretudo, na ação. A América, além da sua riqueza natural, é uma nação que já nasceu livre, o que implica dizer que “[...] não tem grandes “tradições históricas e culturais”, mas tampouco está sufocada por esta camada de chumbo: é esta uma das principais razões [...] de sua formidável acumulação de capitais [...]” (GRAMSCI, 2001, p. 247). A Europa, numa expressão de Vittorio Mussolini, é stravecchia9, i.e., está carregada de um passado que ela mesma jamais poderá negar e, ao mesmo tempo em que isso a enriquece, torna-a incapaz de dar passos largos em direção ao novo. Para Gramsci (2001), a Europa gerou ao longo de 7 Max Lerner (1902-1992), pedagogo e jornalista nascido na Rússia e radicado nos EUA, publicou uma coleção de quatro volumes intitulada Civilização norte-americana, em que defende os EUA como uma notória cultura-nação-civilização, de hábitos e costumes inigualáveis (Cf. LERNER, 1960). 8 Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) foi o 32° presidente dos EUA e exerceu seus mandatos do período que vai de 1933 a 1945. 9 “muito velha” (Cf. LOSURDO, 2010). sua história uma massa ociosa e inútil que vive de um passado que não existe mais. Eis a condição primeira para o americanismo: uma racional composição da demografia. Ou seja, na América “[...] não existem classes numerosas sem uma função essencial no mundo produtivo, isto é, classes absolutamente parasitárias” (GRAMSCI, 2001, p. 243) e a ausência dessas classes parasitárias proporcionou uma base sadia para a indústria e para o comércio.10 Sobre essa base sadia surgiu o fordismo que, para Gramsci (2001), é indissociável do americanismo. O fordismo foi o grande responsável por imprimir no ianque uma segunda natureza. Afinal, conforme lembrou Gramsci (2001, p. 266), “[...] os novos métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro”. Para Gramsci (2001), o americanismo e fordismo produziram um novo homem, uma segunda natureza humana que pode ser compreendida no sentido ontológico, como se a indústria fosse uma entidade demiúrgica e fabricasse para si o perfil de homem de que necessitava, forçando-o a adaptar-se ao seu meio e selecionando os mais aptos e mais fortes. Ele reconheceu no americanismo uma nova ordem e uma nova forma de produção. Em suma, a exogeneidade da ideia de americanismo significa uma novidade estruturante no modus vivendi ocidental que se distingue da civilização europeia, sobretudo em questões fundamentais como organização política, modos de produção, educação escolar etc. Americanismo, assim como o termo americanização, sugere “[...] que os Estados Unidos teriam criado uma civilização própria, distinta daquela dos países europeus de onde partiram [...]” (WARDE, 2011, p. 2). Nos EUA, os raios do iluminismo desencadearam uma coisa diferente do que proporcionaram na Europa. Americanismo ligase ao fordismo, uma vez que o fordismo, muito mais que um sistema de produção em massa, configura um modo de vida. A expressão americanismo é genérica e comporta outras que, no conjunto, compõem o ethos ianque. Das mais notáveis influências que Simonsen sofreu do americanismo destacam-se o taylorismo e, sobretudo, o fordismo.11 O taylorismo foi uma referência que nutriu sua 10 A americanização exige um determinado ambiente, uma determinada estrutura social (ou a decidida vontade de criá-la) e um determinado tipo de Estado. O Estado é o Estado liberal, não no sentido do livre-cambismo ou da efetiva liberdade política, mas no sentido mais fundamental da livre iniciativa e do individualismo econômico que chega com meios próprios, como “sociedade civil”, através do próprio desenvolvimento histórico, ao regime da concentração industrial e do monopólio. (GRAMSCI, 2001, p. 259) 11 Conforme Harvey (1993), as tecnologias utilizadas por Ford já existiam, no entanto, seu mérito consistiu em racionalizá-las e em organizar de forma pormenorizada a divisão de trabalho preexistente. O famigerado tratado-manual de Frederick W. Taylor, Os Princípios da Administração Científica – que aduzia contribuições de Frank Bunker Gilbreth, um dos fundadores do taylorismo, a Karl Marx – já tinha sido publicado em 1911, três anos antes do marco simbólico para o início do fordismo. Isso significa que Ford teve contato com as ideias de Taylor e, a partir delas, estabeleceu concepção de organização da produção e do trabalho, o que significa dizer que sua abordagem trabalhista girava em torno do princípio do homo economicus. No entanto, a partir do final dos anos 1920, a referência ampliou-se, incorporando o fordismo, que corresponde a uma superação do taylorismo. A fábrica fordista introduziu os princípios da fragmentação das tarefas e aumento do ritmo de trabalho, recorrendo a processos técnicos que permitiam o fluxo contínuo da produção. Mas, enquanto no taylorismo sua justificativa ideológica se resumia a uma maior produção que beneficiaria a todos, operários, empresários e consumidor, no fordismo eram agregados “valores sociais e morais adequados” para “internalizar o senso de disciplina para ter um bom desempenho no novo ambiente industrial” (MAZA, 2004, p. 97). O fordismo é um sistema de produção que define um modo de vida, i.e., fordismo pressupõe americanismo. Se Simonsen, assim como a grande burguesia industrial paulista, serviu-se do fordismo para efetuar o projeto de industrialização, necessariamente, foi tendo como modelo os EUA que isso se tornou possível. Simonsen foi um industrioso12 e um industrialista estrênuo que não se reduziu à realidade fabril; e seu audacioso projeto desenvolvimentista tinha por objetivo moldar a sociedade sob a ótica da grande indústria (TENCA, 1987). A hipótese é que Simonsen não trouxe apenas o fordismo para suas empresas, mas todo um estilo de vida necessário à sua implementação. Não apenas o operário, mas também os dirigentes precisavam ser formados nessa nova mentalidade de produção. Nesse sentido, as propostas de Simonsen para o ensino industrial levaram em conta aspectos americanistas. REFERÊNCIAS CARONE, Edgard. Roberto C. Simonsen e sua obra. Revista de Administração de Empresas. Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 23-28, out./dez. 1971. as mudanças na jornada de trabalho e na forma de recompensa dos trabalhadores da linha automática de montagem de carros que ele mesmo organizou em Michigan, em 1913. Harvey (1993, p. 121) destacou que o que distingue o fordismo do taylorismo é o reconhecimento de Ford de que a produção de massa implica necessariamente num consumo de massa, “[...] um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista”. 12 Conforme o Visconde de Cairu, José da Silva Lisboa (1999, p. 43-44), “[...] é industrioso um homem que trabalha com viveza e constantemente para ganhar a vida; e se chama preguiçoso, e inerte um homem sem indústria. Porém mais ordinariamente se aplica aquele termo ao trabalho engenhoso, que se executa com algum considerável grau de inteligência, para se distinguir do mero grosseiro trabalho braçal; e, com especialidade se usa de tal nome para se exprimir o trabalho exercido nas artes e manufaturas mais refinadas.” (grifos do autor). DOELLINGER, Carlos von. Introdução. 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