a escrita multimeios de samuel beckett: film (1963-64

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a escrita multimeios de samuel beckett: film (1963-64
A ESCRITA MULTIMEIOS DE SAMUEL BECKETT: FILM
(1963-64), ENTRE A IMAGEM E A PALAVRA.
Mauro de Araújo Menine Jr*
ABSTRACT: The writing of Samuel Beckett (1906-1989) is inter-media as it is articulated in
the entr'acte of multiple means of expression - cinema, literature, theater, television and
radio. The historical course of his artistic production reveals relationships intertextuality,
transversality and trans-creativity in his work as writer, director, producer, screenwriter and
adapter itself. From his only screenplay, Film (1963-64), are introduced the aesthetic
elements dialogic between word and image that contaminate multimedia author's writing.
KEYWORDS: comparative literature, Samuel Beckett, Film (1963-64).
RESUMO: A escrita de Samuel Beckett (1906-1989) é inter-midiática, uma vez que se
articula no entreato de múltiplos meios de expressão – cinema, literatura, teatro, televisão e
rádio. O percurso histórico de sua produção artística desvela relações de intertextualidade,
transversalidade e trans-criatividade em sua atuação como escritor, diretor, encenador,
roteirista e adaptador de si mesmo. A partir de seu único roteiro cinematográfico, Film
(1963-64), introduzem-se os elementos estéticos dialógicos entre a palavra e a imagem que
contaminarão a escrita multimídia do autor.
PALAVRAS-CHAVE: literatura comparada, Samuel Beckett, Film (1963-64).
Introduzindo Beckett
A escrita de Samuel Beckett (1906-1989) é multimídia, uma vez que se articula no
entreato de múltiplos meios de expressão, como cinema, literatura, teatro, televisão e rádio. O
percurso histórico de sua produção artística desvela relações de intertextualidade,
transversalidade e transcriatividade em sua atuação como critico literário, diretor, escritor,
roteirista, tradutor e adaptador de si mesmo. Partindo de um formalismo abstrato e de uma
cosmovisão nonsense, dá-se a identificação de uma taxonomia de elementos ético-estéticos e
intertextuais, compreendendo-se a [in]formação de um imaginário idiossincrático e de uma
*
Doutorando em Literatura Comparada – Linha: Teorias Literárias e Intertextualidades - Programa de Pós-graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
economia poética oblíquos a todos os multimeios em que se expressou, por exemplo,
presentes tanto na inerente teatralidade de seus textos em primeira pessoa quanto de suas
audiovisualidades experimentais. Assim, a representação beckettiana é equacionada em
personagens solitários, prisioneiros em um espaço-tempo indeterminado, autores-narradores
de suas próprias histórias e impressões, em permanente devir à espera de algo que nunca se
sabe o que realmente é. Logo, o elemento solipsista é recorrente e o monólogo interior é, por
excelência, a sua técnica narrativa.
O presente relato do projeto de tese de doutorado em Literatura Comparada (Linha de
Pesquisa: Teorias Literárias e Interdisciplinaridade), intitulado O Monólogo Multimídia de
Samuel Beckett, desenvolvida dentro do PPGLetras/UFRGS, destacando o recorte acerca da
transcriação e as relações entre imagem e palavra, a partir de seu único roteiro e realização
cinematográfica, Film1 (1963-64). A pesquisa se constituiu a partir dos seguintes
pressupostos: o monólogo como estrutura predominante; a transcriação literária em outro
medium; e, obras em que Beckett atuou como escritor, diretor, encenador, roteirista, tradutor
ou adaptador de si mesmo em qualquer estágio de transposição de um meio a outro. Assim,
definiu-se o corpus: Krapp’s Last Tape (peça teatral, 1958), Embers (peça-radiofônica, 1959),
Film (roteiro cinematográfico, 1963-1964) e Not I (peça teatral adaptada como tele-peça,
1972), a fim de identificar sua ética-estética [in]formadora de uma poética própria.
Inicialmente, apresentar-se-ão algumas das reflexões teóricas articuladoras dos
fundamentos do estudo, por conseguinte, um recorte da produção artística e intelectual do
autor, partido de uma abordagem mais ampla para se deter na problemática específica do
monólogo interior, indicadores de sua poética e objeto propriamente da futura tese.
Posteriormente, situar-se-ão as relações de Beckett com as novas tecnologias de seu tempo,
exemplificando-as em algumas de suas criações e traduções nas diferentes mídias e de como
as mesmas influenciaram a solitária produção cinematográfica, comprovando sua estética
trans-midiática e o qualificando como um dos pioneiros no contágio irreversível das
linguagens.
Segundo S.E.Gontarski, “muito da prosa curta de Beckett habita as margens entre
prosa e poesia, entre narrativa e drama, e, finalmente, entre completude e incompletude 2”
(GONTARSKI, 1995, p.xii), ou seja, por extensão a escrita beckettiana é um traçado híbrido
entre as fronteiras dos gêneros literários, assim como destes em relação as suas respectivas
transliterações para outros meios. Originalmente, tal espaço entre que a obra [in]forma se
encontra esboçado em sua produção crítica e epistolar, logo, tais completudes e
incompletudes revelam ao pesquisador que explorar tal universo é um processo de leitura em
die cutting, camada por camada. Em sua “Carta Alemã” à Axel Kaun, de 1937, justifica-se
por seu procedimento de depuração da linguagem:
Está se tornando mais e mais difícil, até sem sentido, para mim, escrever num inglês
oficial. E, mais e mais, minha própria língua me parece como um véu que precisa
ser rasgado para chegar às coisas (ou ao Nada) por trás dele. [...] Uma máscara. [...]
Como não podemos eliminar a linguagem de uma vez por todas, devemos pelo
menos não deixar por fazer nada que possa contribuir para sua desgraça. Cavar nela
um buraco atrás do outro, até que aquilo que está a espreita por trás – seja isto
alguma coisa ou nada – comece atravessar; não consigo imaginar um objetivo mais
elevado para um escritor hoje3 (BECKETT apud ANDRADE, 2001, p.169).
Tal atitude de desfiguração da realidade frente ao ato criativo visava, em primeiro
lugar, combater as convenções literárias do real-naturalismo dominante à época, identificada
na ideia de que na Recherche proustiana o autor “não terá liberdade absoluta para separar
efeito e causa. [...] Pesaroso, ele aceita a régua e o compasso sagrados da geometria literária”
(BECKETT, 2003, p.09-10). Isto é, a descrição espacial cede à descrição temporal, às
projeções imagéticas de um espaço-tempo indeterminados, introduzindo o vácuo narrativo
como no conto Assumption (1929), de Beckett. Dessa forma, encontram-se diferenças
estilísticas entre as obras em terceira pessoa como Murphy (1934-38) e Watt (1942-44), que
não distanciam-se de uma mimese aristotélica, em relação à narrativas em primeira pessoa
como a trilogia aberta por Molloy e a radicalidade de Comment c’est (1958-60), obras antimiméticas.
Para a busca de uma linguagem própria, Beckett optou por ultrapassar a sedutora
apoteose joyceana da palavra em busca de uma desconfiança da mesma a fim de transformar a
linguagem, ou melhor, renová-la através de um estilo transparente e depurado, além de
dissolver os mitos em personagens efêmeros, negando o subjetivismo ou a abstração em seu
tratamento, enfim, de uma prosa eivada de “coincidência dos contrários” (BECKETT, 1992,
324), isto é, lado a lado, a recusa à representação do mundo e a aderência à
hipersubjetividade, o solipsismo como última fronteira, uma realidade que escapa ao logos
porque incompleta.
Em ensaios como Dante... Bruno, Vico... Joyce (1929), Le monde et le pantalon
(1945), Peintres de l’empêchement (1948), Bram van Veld (1948) e Henri Hayden, hommepeintre (1952) extraem-se alguns dos traços vaticinadores dessa ética-estética, contudo, é em
Proust (1931) - crítica de À la recherche du temps perdu (1913-1927), de Marcel Proust - que
se desvela preliminarmente a visão de mundo beckettiana: “estamos sós. Incapazes de
compreender e incapazes de sermos compreendidos. „O homem é a criatura que não consegue
sair de si, que só conhece os outros em si mesmo e que, quando afirma o contrário, mente”
(BECKETT, 2003, p.70). Ou ainda, na narrativa curta The Calmative (1946): “todos os
mortais que eu via estavam sós e como que afogados em si mesmos. Deve-se ver isso todos os
dias, mas misturado com outra coisa, imagino”4. Ao contrário da “apoteose da palavra” do
contemporâneo James Joyce, que, da negação do ser, nasça uma crença renovada no próprio
ser, Samuel Beckett descrê na expressão pela palavra ou mesmo na redenção desse mesmo
ser.
Para Beckett, “crítica literária não é contabilidade5” (BECKETT, 1992, p.323), isto é,
devem-se comparar as semelhanças e dissemelhanças entre os textos originais e suas
respectivas traduções para o inglês ou francês, e vice-versa, para sobrepô-los sobre a camada
da adaptação ao medium em questão, exemplificando: Whoroscope6 (1930), o primeiro poema
publicado sob seu nome é acompanhado por notas explicativas que, de certa forma, são a
extensão do mesmo; a edição bilíngue de Quatre Poèmes/Four Poems (1937, 1948) traduzida
pelo próprio autor; por fim, o monólogo Not I (publicado originalmente em inglês, no ano de
1972) é sobreposto à Pas Moi (a tradução francesa de 1975) que, por sua vez, perpassam pela
releitura da transcriação televisiva de Not I (produzida para a rede de televisão inglesa BBC2,
em 1977). A prática é beckettiana em si.
No plano ficcional, o espaço entre permite que forma e conteúdo de Quoi oú (1982),
drama em um ato, originalmente publicado e encenado no teatro, fosse transcrito
posteriormente para a televisão; por outro lado, narrativas curtas como Premier amour (1946)
e Enough (1960) são adaptadas ao palco por sua intrínseca teatralidade, do mesmo modo que
a peça radiofônica All that Fall (1956); Krapp’s Last Tape (1958) foi dos palcos às
transmissões de rádio; a trilogia de romances composta por Molloy (1951), Malone muert
(1951) e L’Innommable (1953) e a peça teatral A Piece of Monologue (1979) são monólogos
abertos tanto à literalidade da narrativa quanto à performance teatral e radiofônica. Para
E.Grossman, trata-se de uma espécie de tecido que a quase tudo cobre com "sua beleza
plástica e musical dos textos-quadros, esses textos-partituras" (GROSSMAN, 1998, p.9), que
moldam-se aos diferentes meios expressivos da linguagem.
O monólogo evoca as imagens e as sonoridades, assim como alimenta a
bidimensionalidade da tela ou do som e a tridimensionalidade da cena, tanto do presentepassado quanto do presente-presente do texto: pode ser imaginário e/ou imaginação, portanto,
molda-se conforme a necessidade da linguagem do meio operado. Enfim, a voz em primeira
pessoa dos autores-narradores becketianos constrói uma fronteira adaptável às diferentes
linguagens.
A fusão da relação entre o Eu narrador e o Eu da ação, ou seja, a autonarração
monologada como atividade norteadora do discursivo, recai na representação evocativa de
memória, de retrospecção, de incursão ao escrutínio do passado. O discurso se apresenta ao
mesmo tempo de forma dissonante ao privilegiar o Eu narrador frente ao Eu da ação, bem
como de maneira consonante ao evidenciar uma estrutura narrativa em que o passado é aceito
como incongruente, onírico, mera impressão para o Eu presente da narr[ação]. O solipsismo é
a própria realidade, a forma e o conteúdo da escrita ou, sob a perspectiva filosófica de
L.Wittgenstein - influência decisiva na visão de mundo de Beckett -, “que o mundo é meu
mundo, mostra-se no fato de que os limites da [minha] linguagem significam os limites de
meu mundo” (WITTGENSTEIN, 1959, § 5.62).
Concluindo, para ultrapassar o sentido literal da ilustração empírica do real ou o
conteúdo abstrato e filosófico de qualquer camada textual7 e aproximar o olhar e a leitura
sobre a imagem produzida de forma literária, sonora ou visual, é imprescindível que tanto
roteiro quanto filme sejam interpretados como uma única obra constituída por superfícies
dialógicas e interdependentes.
Film: imagens e palavras beckettianas
A partir do anos 1950, o autor implode com o naturalismo e o realismo teatral, ao
escrever e encenar peças que rompiam com as regras do drama burguês, logo, com a
representação paradigmática da mimese realista, elevando a palavra acima dos elementos
integrantes da teatralidade. A depuração da linguagem cênica tem início com En attendant
Godot (1952-53) e Fin de Partie (1957), todavia a imobilidade da cena, do discurso e da ação
tem em peças como Happy Days (1961), Not I (1972) e That Time (1975) seu ápice ao
decompor o corpo, a voz e a ação, até o limite da [re]presentação: a dissolução entre o espaço
e o tempo, entre o diálogo – monologado ou não – e a ação, entre o real e o imaginário dos
personagens, instauram um estado de inércia, de opacidade, de fantasmagoria.
É inegável a reciprocidade ética-estética entre os meios eletrônicos – rádio, cinema e
televisão – e o teatro de Beckett, uma vez que nos mesmos anos 1950, o autor inicia seu
trabalho na Radio BBC. A obra do autor foi uma das precursoras no dialogismo entre
literatura, teatralidade e as novas tecnologias de sua geração ao colaborar, a partir dos anos
1950, com a Radio BBC8 (Inglaterra) e a ORTF9 (França), e nos anos 1960, com as emissoras
BBC210 (Inglaterra) e SDR11 (Alemanha). Para G.Borges, “os trabalhos de Beckett para o
cinema e para a televisão [e, por que não, para o teatro] não podem ser analisados se não for
considerada a sua experimentação no meio radiofônico. A sua fascinação pelo rádio foi
marcante na exploração da voz, dos sons e na busca de ritmos diversos” (BORGES, 2009,
p.29). O contato com a linguagem do rádio introduziu alguns dos futuros recursos de
depuração da teatralidade beckettiana.
Nas peças radiofônicas All That Fall12 (1956) e Embers13 (1957-59), a composição
entre as vozes, os efeitos sonoros e os ruídos sublinhados pela música, criam para a primeira
um efeito pitoresco, enquanto que, para a última, uma atmosfera de melancolia. O flerte com
certo realismo na representação sonora se faz presente, contudo antecede o uso da música
como personagem ao executar Der Tod und das Madchen (1824), de F.P. Schubert em All
That Fall e um piano em Embers. O mesmo ocorre em Words and Music14 (1962),
Cascando15 (1963) e Rough for Radio I e II16 (1976), em que a música protagoniza com as
vozes um estranho diálogo: o realismo cede ao abstracionismo.
Na televisão, estreia em 1966, na SDR, a tele-peça He Joe17, seguida por sua versão
inglesa – Eh Joe18 –, na BBC2, e francesa – Dis Joe19 –, em 1968, tendo ainda outras duas
versões, co-dirigidas por Beckett, respectivamente em 1979 e 1989. O roteiro retoma uma
temática cara a Beckett, o olhar e a percepção do olhar - a câmera-olho e Voice, personagens
que atormentam o personagem principal num diálogo entre imaginação e memória. Em Ghost
trio20 (1977), a abstração preenche o quadro com os fantasmas de Waiting for Godot. As
imagens da memória e a intertextualidade com seu próprio universo, evocando a escrita de
Marcel Proust, sob a inspiração do poema The Tower, de W.B. Yeats, materializam ...but the
clouds...21 (1977). Em Quad22 (1981), repetição e diferença no fluxo televisual do espaçotempo incessantemente desenhado por bailarinos-personagens. Por fim, a última tele-peça
escrita é Nacht und Träume23 (1983), em que as imagens dissolvem a relação espaçotemporal, criando uma atmosfera onírica, sob a música de F.P. Schubert.
As criações de Beckett para a televisão se caracterizam pelo seu não-naturalismo e
anti-realismo, pela opacidade dos meios técnicos operados e pelo desarranjo das noções de
espaço e tempo narrativos. Através de manipulações formais da linguagem audiovisual, como
o uso da edição, criava efeitos de distanciamento crítico e de recusa ao espectador da cômoda
transparência do cinema clássico, dessa maneira o público se via obrigado a abandonar seus
pré-conceitos narrativos e fílmicos, embarcando numa diegese que lhe exigia, antes de tudo,
reflexão, nunca absorção.
As transcriações beckettianas, além dos jogos de linguagem nas traduções de seus
próprios textos entre o inglês, francês e alemão e as transmutações do texto para a
performance da cena, do som e da tela e/ou vice-versa comprovam o contágio da linguagem
na própria operação de se reescreverem em outros meios que não os seus de origem. O
diálogo entre o cinema, o ensaio, a literatura, o rádio e a televisão se fazem presentes tanto
nas possibilidades de adaptação de sua obra entre os meios, como, por exemplo, a peça teatral
What Where24 (1986) para televisão, além dos trabalhos supracitados, quanto nas
incorporações de referências aos meios nas indicações de textos, como o gravador de voz em
That Time (1974) e Rockaby (1980).
Em 1963, Beckett escreveu seu único roteiro cinematográfico, Film. Dirigido por Alan
Schneider, no ano de 1964, em Nova York, com co-direção do próprio autor e protagonizado
por Buster Keaton, é laureado com o Prêmio da Jovem Crítica, no Festival de Veneza, em
1965, entre outras premiações posteriores. Durante sua realização, Beckett reescrevia o roteiro
conforme as impossibilidades técnicas apareciam na captação das imagens, assim como
adaptava os enquadramentos conforme as indicações de seu texto.
O roteiro inicia com o aforismo de Berkeley Esse est percipi (“existir é ser percebido”)
na qual o filme é inspirado. O enredo se constitui a partir da cisão do protagonista O
(personagem-objeto interpretado por Buster Keaton) em seu duplo E (personagem-câmera
derivado da palavra inglesa eye, olho em português), em que O escapa da percepção de E, mas
não da percepção de si mesmo, o que se descobre apenas no final da projeção. Tal processo é
desencadeado pelo recurso técnico da câmera-olho ou câmera subjetiva que parte em dois o
ponto de vista do espectador, negando-lhe os pontos de vista da própria câmera que captura a
ação enquadrada a partir do jogo com o protagonista em perceber a si mesmo como ser
observador e objeto observado. Para tanto, Beckett estabelece um ângulo de imunidade de 45
graus, em que O está imune à percepção de E, todavia quando ultrapassado o protagonista
entra na zona de agonia de percepção, tomando consciência do outro e de si. A história é
dividida em três partes interdependentes: nas duas primeiras, respectivamente, “A Rua” e “As
Escadas”, onde a percepção predominante é a de E, para que na última parte, “O Quarto”, as
percepções sejam intercaladas com O.
Segundo C. Berrettinni, “introduz Beckett o tema do olhar e da percepção no centro
de sua marcha criadora e esta, como bem aponta Alfred Simon, questiona „o próprio
espetáculo‟, pois cada um „apenas existe na medida em que é visto pelo olhar das mídias”
(BERRETTINNI, 2004, p. 197). Isto é, Beckett ao eleger a câmera ou E como antagonista do
personagem O, o duplo frente ao real que o percebe e é percebido por ele, exerce a
metalinguagem como ferramenta de reflexão do dispositivo cinematográfico e da própria
condição humana: retoma-se a noção wittgensteiniana do meu mundo como o limite do
próprio mundo, ou seja, o solipsismo como única visão de mundo. Film introduz os elementos
estéticos dialógicos entre a palavra e a imagem do autor que contaminarão o trabalho
posterior em suas produções televisivas experimentais citadas anteriormente.
A produção é um curta-metragem preto e branco, sem áudio, exceto por um sssh! na
primeira parte do filme. A abertura, segundo o roteiro, seria realizada por um plano-sequência
que situaria a diegese fílmica no tempo e no espaço, contudo fora substituída por um olho em
close-up, revelando sua estrutura circular ao ser finalizado pelo mesmo enquadramento com o
rosto de Buster Keaton e seu tapa-olho. Com uma atmosfera cômica e irreal, ambientado em
1929, faz inúmeras referências estéticas aos filmes dada-surrealistas da década de 1920 e ao
cinema mudo, além de citações à Un chien andalou (1929), de Luiz Buñuel e Salvador Dali
como o olho na sequencia de abertura. Apesar da interpretação de Buster Keaton, Film não
segue as convenções de gênero das comédias mudas no estilo slapstick – humor saturado de
situações absurdas - e vaudeville – o primeiro cinema de atrações variadas -, pois prima por
uma narrativa com enquadramentos em planos médios, em movimento, sem música ou
letreiros, com uma economia nas gags visuais e no gestual do ator.
As notas de produção reproduzidas no roteiro demonstram a preocupação do autor na
transcriação do texto em filme de tal maneira que algumas indicações são demonstradas por
desenhos como o ângulo de imunidade de 45 graus, o encontro com o casal na fuga pela rua, a
subida das escadas, a circularidade do quarto e a gag com o gato. As descrições são precisas,
embora não totalmente realizadas na filmagem.
De forma implícita o aforismo de Berkeley existir é ser percebido é a referência para a
construção do personagem que ao mesmo tempo é objeto e sujeito da percepção, isto é,
perceber e ser percebido. Tanto objeto quanto sujeito existem nesta relação entre percepções,
assim em nenhum deles está o domínio da mesma.
Film [re]cria uma poética dialógica entre suas audiovisualidades, sonoridades e
teatralidades, através de um minimalismo, ou melhor, de uma economia estética
desagregadora da ficção, do real e do imaginário através da cisão do personagem e da negação
ao espectador de uma percepção de autoria para o filme, pois o que é percebido é a visão de
mundo do personagem O/E. Instaura-se um estranhamento pelo deslocamento do olhar que
impede a identificação com o que se está assistindo. Da mesma maneira que decompõe a
própria linguagem do ser, tal escrita fílmica introduz um universo onde o visível e o invisível
se revelam na circularidade da narrativa.
A importância de Beckett na relação entre palavra e imagem não se encontra em seu
pioneirismo na miscigenação das tecnologias no seu trabalho, mas no fato de que sua obra
descerra novas práticas estéticas para o que comumente [re]conhecemos como teatralidade,
audiovisualidade e sonoridade. Enfim, na transformação da própria noção de representação
cênica, audiovisual e/ou sonora ao agregar aos textos, às vozes, às imagens, ao gestual e à
ação do performer outras corporalidades e técnicas que constroem outra ficção para o espaçotempo da cena, do enquadramento e do som, em que todos são tridimensionais, seja no real ou
no imaginário.
1
Film (curta-metragem, mudo, p&b, 22‟, 1963-64). Vencedor do Prêmio da Crítica do Festival de Veneza (1965), Prêmio
Especial do Júri do Festival Internacional de Curtas de Tours (1966) e o Prêmio Especial do Festival de Oberhausen (1966).
2
Todas as traduções são de minha responsabilidade.
3
Cf. BECKETT, Samuel. “Carta de Samuel Beckett a Axel Kaun, a „Carta Alemã‟ de 1937” in ANDRADE, Fábio de Souza.
Samuel Beckett: o silêncio possível. Cotia: Ateliê Editorial, 2001.
4
Cf. “All the mortals I saw were alone and as if sunk in themselves. It must be a commom sight, but mixed with something
else I imagine”. In: GONTARSKI, S.E. The Complete Short Prose, 1929-1989. New York, Groove Press, 1995, p.70.
5
Cf.BECEKTT, Samuel. “Dante... Bruno. Vico... Joyce” in NESTROVSKI, Arthur (org). Riverun: ensaios sobre James
Joyce. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p.232-338. Publicado originalmente em: BECKETT et al., Our
Examination Round His Factificarion for Incaminatio os Work in Progress (Paris, Shakespeare & Co., 1929).
6
BECKETT, Samuel. Poems in english. London, Calder and Boyars, 1961. Originalmente publicado por Nancy Cunard, em
The Hours Press, no ano de 1930. Existe uma tradução para o português realizada por Jorge Rosa e Armando da Silva
Carvalho e publicada nos Cadernos de Poesia 10, pela Dom Quixote de Lisboa, em 1970.
7
Cf. HALL, Stuart. Representation: Cultural Representations and Signifying Pratices. London, Sage, 1997.
8
Cf. sigla para British Broadcasting Corporation, emissora pública de rádio e televisão britânica, fundada em 1922. (fonte:
http://www.bbc.co.uk/ - acessado em 1º/06/2012)
9
Cf. sigla para Office de Radiodiffusion-Télévision Française, emissora pública de radio e televisão francesa, fundada em
1964, a partir da formação da Radiodiffusion Française (RDF), em 1945, posteriormente renomeada, em 1949, de
Radiodiffusion-Télévision Française (RTF). (fonte: http://www.rfi.fr/ - acessado em 1º/06/2012).
10
Cf. nota 2.
11
Cf. sigla para Süddeutscher Rundfunk, emissora pública de rádio e televisão alemã, localizada em Stuttgart e fundada em
1924. Em 1998, é renomeada para SWR - Südwestrundfunk. (fonte: http://www.swr.de/ - acessado em 1º/06/2010)
12
Dirigida por Donald McWhinnie, estreou em 1957 na Radio BBC.
13
Dirigida por Donald McWhinnie, estreou em 1959 na Radio BBC, ganhando o prêmio da RAI (Radiotelevizione Italiana).
14
Com música composta por John Beckett, estreou em 1962, na Radio BBC.
15
Com música composta por Marcel Mihalovici, estreou em 1963, na ORTF e em 1963, na Radio BBC.
16
Ambas as peças radiofônicas foram escritas no início dos anos 1960, porém, publicas em livro e estreadas no rádio em
1976, na BBC Radio 3.
17
Dirigida por Samuel Beckett.
18
Dirigida por Alan Gibson e Samuel Beckett.
19
Dirigida por Pierre Bureau na ORTF.
20
Dirigido por Samuel Beckett na SDR, e por Tristam Powell na BBC2.
21
Dirigido por Tristam Powell na BBC2, e por Samuel Beckett na SDR com o título de ... nur noch Gewölk...
22
Dirigido por Samuel Beckett para a BBC2 e na versão para a SDR, com o título de Quadrat 1 +2.
23
Dirigido por Samuel Beckett na SDR.
24
Dirigido por Samuel Beckett na SDR.
BIBLIOGRAFIA
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2001.
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