Livro - Fundação Araucária
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A Educação Física na história do pensamento educacional: apontamentos Universidade Estadual do Centro-Oeste Guarapuava - Irati - Paraná - Brasil www.unicentro.br Carlos Herold Junior A Educação Física na história do pensamento educacional: apontamentos UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE UNICENTRO Reitor: Vitor Hugo Zanette Vice-Reitor: Aldo Nelson Bona Editora UNICENTRO Conselho Editorial Direção: Beatriz Anselmo Olinto Assessoria Técnica: Carlos de Bortoli, Oséias de Oliveira e Waldemar Feller Divisão de Editoração: Renata Daletese Divisão de Revisão: Rosana Gonçalves Seção de Revisão Lingüística: Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira Correção: Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira e Rosana Gonçalves Diagramação: Anna Júlia Peccinelli Minieri, Andréa do Rio Alvares, Bruna Silva, Eduardo Alexandre Santos de Oliveira Diagramadora: Andréa do Rio Alvares Capa: Lucas Gomes Thimóteo Impressão: Gráfica UNICENTRO Direção: Lourival Gonschorowski Presidente: Marco Aurélio Romano Beatriz Anselmo Olinto Carlos Alberto Kühl Helio Sochodolak Luciano Farinha Watzlawick Luiz Antonio Penteado de Carvalho Marcos Antonio Quinaia Maria Regiane Trincaus Osmar Ambrosio de Souza Paulo Costa de Oliveira Filho Poliana Fabíula Cardozo Rosanna Rita Silva Ruth Rieth Leonhardt Ficha catalográfica Catalogação na Publicação Regiane de Souza Martins -CRB9/1372 Biblioteca Central Campus Guarapuava Herold Junior, Carlos H561e A educação física na história do pensamento educacional: apontamentos / Carlos Herold Junior. – – Guarapuava: UNICENTRO, 2008. 200 p. Bibliografia ISBN 978-85-7891-010-5 1. Educação Física. 2. Educação Física – História. 3. Educação Física – Educação. 4. Educação Física – Ensino Superior. 5. Educação Física – Capitalismo. I. Título. CDD 796.07 Copyright © 2008 Editora UNICENTRO Sumário 9 Apresentação 27 Os projetos de educação do corpo nas transformações da antigüidade grega 55 A Educação Física no pensamento educacional moderno durante o contexto francês do século XVIII 85 A Educação Física e os sistemas nacionais de ensino 109 A Educação Física nas atas do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro (1884) 151 Corpo, Educação Física e o trabalho no capitalismo industrial (1860-1920) 185 Referências Apresentação A aproximação entre educação física e os estudos efetuados nos cursos de pós-graduação em Educação é tributária de um imenso processo de questionamento e revisão dos instrumentais teóricos vivenciados em cada área que fez com que, a partir das décadas de 80 e 90, um grande contingente de professores de educação física se preocupasse com as dimensões sociológica, antropológica, filosófica e histórica da sua atuação. Ao se aproximarem dos teóricos da área de Educação, acompanharam a inflexão feita por esses estudiosos em sua busca de verificar os limites e as possibilidades educacionais numa sociedade marcada por processos de desenvolvimento econômico e social caracterizados pela desigualdade e pela combinação dessa desigualdade em nível planetário. O resultado mais visível desse processo foi a profusão de obras e estudos que mostraram de forma inequívoca as “determinações” advindas do capitalismo e que teriam sido responsáveis por aquilo que se 12 criticava nas aulas de Educação Física nas escolas e pelos problemas observados na formação desses profissionais: discriminação, instrumentalização do corpo e das diferentes práticas corporais, falta de criatividade do professor, o apego à rotina, concepções mecanicistas de corpo e educação, autoritarismo, desconexão entre essas aulas e a realidade concreta de cada educando, o desenvolvimento de valências físicas em detrimento de características cognitivas e afetivas... Esse resultado marcou e foi marcado pelos estudos na área de história da educação que tematizaram as práticas educativas em diferentes momentos da sociedade brasileira. Tratou-se, então, de mostrar aquilo que, até então, tinha sido feito, constituira-se em base de todo um conjunto de práticas e pensamentos que deveriam ser ultrapassados pela “análise crítica”. A tentativa foi mostrar que a intenção em dar para a educação física uma preocupação “legitimamente pedagógica” (BRACHT, 1992) pressupunha lutar contra a “herança” e séculos de uma concepção de educação que, “cartesianamente”, via o corpo como uma máquina para ser desenvolvida para a satisfação de interesses da “classe dominante”. Os diferentes olhares lançados na história da educação por parte dos professores de Educação Física esforçavamse por mostrar as diferentes tentativas de construir aquilo que, na atualidade, deveria ser ultrapassado. A análise histórica, assim, servia como uma justificativa das questões enfrentadas por professores e alunos no momento em que escreviam suas análises. A história da educação era utilizada como uma grande e amarga lição dos limites indesejáveis experimentados cotidianamente pelos professores de Educação Física. Com as transformações sociais e culturais observadas na década de 90 e início do século XXI, bem como pelo desenvolvimento mais visível da pós-graduação em Educação Física, observamos que o relacionamento entre a Educação e a Educação Física, no que diz respeito à análise histórica, passou por mudanças. Em primeiro lugar, no âmbito cultural mais amplo, o conjunto de concepções estéticas e filosóficas, 13 normalmente conhecidas como pós-modernistas, acabaram imprimindo questionamentos na matriz de análise acima, que primavam pela relação entre educação e as lutas pela transformação/manutenção social. Como resultado, na 14 história da educação, por exemplo, passou-se a questionar e a denominar as abordagens, até então, levadas a cabo de “azevedianas”, mecanicistas e economicistas. A busca por “novos objetos” e “novas abordagens” culminou na proliferação de estudos que defendiam a necessidade de se “reconstruir” o cotidiano e a “cultura escolar” (JÚLIA, 2001), primando pelas descontinuidades passíveis de serem observadas em cada país, região, estado, cidade e instituição escolar. A preocupação com a história na área de Educação Física passou a primar pelas questões de caráter cultural, focando a memória sobre as diferentes práticas esportivas, a construção de gênero nessas práticas, bem como a necessidade de se estudar historicamente as variadas práticas e estratégias de lazer nas diferentes cidades do país. Há que se ter claro que essas mudanças agregaram questões de extrema relevância e que devem ser consideradas. A advertência que pretendemos aportar, entretanto, é a necessidade de reformular algumas das “velhas” estratégias analíticas para que elas entabulem um diálogo mais profícuo com essa mudança teórica assistida na década de 90, colocando questões para colaborar nos importantes questionamentos levados a cabo no seio desse movimento. Não se trata de proceder de forma conciliatória ou eclética. Mas não se trata, também, de assumir um posicionamento ingênuo e maniqueísta que simplesmente nega as “novidades” ou abandona as matrizes de análises que até então tinham sido feitas, vulgarmente vistas como “ultrapassadas”. Observamos que atitudes simplórias e também posicionamentos marcados pelo cuidado analítico existem. Como um exemplo de posicionamento que funda a idéia de ser necessário o abandono das matrizes de análises até então existentes, temos o pensamento de Baudrillard (1999, 2005). Foucault (2005), por sua vez, demonstra o referido cuidado, quando, mesmo criticando o materialismo histórico, não desconsidera que a obra de Marx apresenta importantes esclarecimentos sobre a questão do corpo na modernidade. Konder (1998), por outro lado, reprova a atitude de marxistas 15 que desconsideram de forma unilateral as análises desenvolvidas pelos pós-modernistas, observando a necessidade de encarar esse movimento para entender os rumos que a sociedade atual vem tomando e os 16 instrumentais com que ela se analisa. Entre as temáticas desconsideradas pelos marxistas, afirma Konder (1998), estão as questões concernentes ao corpo e a sua educação. Isso também, pode ser observado em Wood (1999), ao afirmar que os marxistas não deveriam desconsiderar as temáticas analisadas pelos pós-modernistas, mas sim se esforçarem por mostrar como essas temáticas poderiam ser mais profundamente entendidas se tomassem como suporte teórico o materialismo dialético. Essas considerações são relevantes, pois as análises contidas neste livro remetem diretamente para uma temática que surge do fortalecimento do ideário pós-moderno: o corpo e sua educação. Por outro lado, tentamos mostrar que esse tema pode ser mais bem focalizado se tomarmos como baliza analítica as diferentes formas históricas de trabalho. Ou seja, se a grande justificativa do pós-modernismo em entabular a análise dos processos formativos do corpo é o fato de ele materializar a riqueza informalizável do cotidiano e do específico, buscamos amarrar essa importante constatação com as questões mais amplas da sociedade e que tocam questões pertinentes à defesa da transformação ou da permanência das diferentes organizações sociais na história, utilizando-as como fundamento para realizar a análise histórica do pensamento educacional sobre o corpo. Além de fugir das armadilhas metodológicas, que dizem respeito à forma como o debate atual em torno das viabilidades e dos problemas do pós-modernismo e do marxismo, objetivamos preencher outras lacunas. Mesmo no momento em que a aproximação entre educação física e educação se deu, não houve a elaboração de estudos que se debruçassem sobre o pensamento pedagógico moderno no âmbito da educação corporal. Menções a esse pensamento são raras e quando acontecem, desconsideram o longo processo de criação e transformação do pensamento educacional liberal e sua conseqüência mais importante: a pedagogização da educação corporal no interior da escola pública do século XIX na Europa e sua discussão no Brasil. Não podemos deixar de considerar, também, os citados debates acadêmicos que acontecem no interior da história da educação e que, de forma freqüente, 17 assumem a análise do pensamento pedagógico como algo a ser evitado ou como uma atitude que simboliza um procedimento a ser ultrapassado, em nome dos já mencionados “novos objetos” e das “novas abordagens”. 18 Concordamos com essa crítica quando ela dirige seu foco ao procedimento de se encarar essas idéias de forma evolutiva e cumulativa, além de ver nesse pensamento o ponto do qual se irradiam as práticas pedagógicas de um tempo. Nesse sentido, observamos que um procedimento mais condizente com os desdobramentos na nova história cultural, não é o abandono dos estudos dos grandes pensadores da educação, mas sim, verificar as mediações entre essas idéias e os diferentes sujeitos e espaços escolares erigidos na história, analisando proximidades, rupturas e as diferentes apropriações desse pensamento nas diferentes realidades. Com isso, não vemos oposição entre essa análise do pensamento pedagógico sobre o corpo e as análises de Foucault (2005) e Chartier (1990), por exemplo, mesmo que neste trabalho optemos por assumir apenas o estudo dos diferentes pensadores da educação quando eles pensam sobre o corpo e sua educação. Se na área de Educação Física é muito difícil encontrar análises históricas que se inquietem com o desenvolvimento do pensamento educacional, sobretudo, com perspectivas ou de conjunto (reunindo vários pensadores) ou de globalidade (acompanhando os impasses da modernidade), observamos algo diferente na área de educação. Nos manuais de história da educação ou da pedagogia, encontramos de forma intensa a menção à educação corporal e física, principalmente quando são analisadas a Antigüidade Clássica e a Modernidade. Entretanto, uma análise desses manuais evidencia a necessidade de contemplar de maneira mais próxima o desenvolvimento da história das idéias pedagógicas em relação à educação do corpo. O que nos impulsiona a sustentar essa necessidade, é o fato de as análises sobre a temática apresentarem-se sem uma consideração mais detida sobre o papel e os limites da educação do corpo nos momentos analisados pelos manuais. Não que a leitura dessas obras não seja importante, mas notamos que a questão da educação do corpo e/ou da educação física pode e precisa ser tratada de modo mais aprofundado. Compreendemos que os limites e os objetivos dessas 19 obras impossibilitam qualquer aprofundamento. O que nos preocupa e nos impulsiona na realização desta análise é o fato de serem essas leituras as grandes formadoras do entendimento que temos sobre a educação do corpo 20 na história do pensamento educacional. Eby (1970), ao focalizar a educação na modernidade, analisa a Educação Física em poucos momentos de sua obra e se limita, apenas, a citar algumas informações sem almejar uma reflexão mais aprofundada: 1) depois de afirmar que a educação do corpo fora deixada de lado na Idade Média, ele afirma a retomada dessa modalidade educativa na arte cavalheiresca e no elogio das obras da Antigüidade Clássica; 2) Ao analisar a obra de Ricardo Mulcaster (1530-1611), na Inglaterra, evidencia que este autor valorizava intensamente várias atividades físicas; 3) Ao falar das idéias de Locke, Eby sumariza o primeiro capítulo de Pensamentos sobre a educação, em um parágrafo; 4) Há, também, a afirmação da importância da Educação física na obra de Basedow e as influências que ele recebera de Rousseau. Um ponto que merece ser destacado é que nas obras que versam sobre a história da educação na Antigüidade, a Educação Física recebe uma atenção maior, mesmo que ainda limitada. Jaeger (1995), ao analisar a formação e a importância da Paidéia, dedica-se, em dois capítulos, a entender a importância da ginástica na República, de Platão, e verificar o papel da Medicina na formação do homem grego, respectivamente. Neles, Jaeger defende que a Paidéia grega era, essencialmente, a busca do desenvolvimento humano em sua plenitude corporal e espiritual. Já Marrou (1975) vê com suspeição essa idéia, afirmando que há uma passagem de uma cultura física e guerreira, para uma intelectualização e para a vida política da sociedade. Marrou (1975) adverte que o tão aclamado desenvolvimento harmônico imputado à educação grega só acontecera em um curto período de tempo em que a moral guerreira e a política ainda coexistiam. Manacorda (2006), ao analisar a história da educação da antigüidade aos dias atuais, contempla a Educação Física de forma a analisá-la em quase todos os momentos da história, excetuado o início da modernidade. O autor contempla a educação do corpo no antigo Egito, na Grécia clássica, em Roma, na educação guerreira dos povos bárbaros, a educação dos 21 cavaleiros e os desenvolvimentos da educação física e do esporte no século XIX e início do XX. O que observamos nas relevantes análises de Manacorda é, devido aos limites que um manual necessariamente possui, a 22 falta de aprofundamento das questões, reduzidas que foram aos processos descritivos das atividades e da constatação alternada entre a criação, desaparecimento e renascimento da educação corpo. Cambi (1999) contempla a questão da educação do corpo e da educação física escolar. O autor italiano apresenta rápidas análises sobre a temática, citando 1) os jogos agonísticos gregos, 2) a condenação da corporeidade nas epístolas paulinas, 3) os modelos educativos em oposição na alta Idade Média, 4) a importância do corpo no processo de construção do Estado moderno, 5) o controle corporal nas relações humanas estabelecidas na vida cotidiana, 6) a importância da ginástica em Vittorino de Feltre, 7) o pensamento de Locke e a ginástica, 8) análise da obra de Rousseau, 9) a relevância da Educação Física na pedagogia alemã século XIX, 10) a necessidade dessa modalidade educativa na obra de Spencer, 11) a justificativa dada pelos socialistas utópicos e marxistas à educação física e 12) ao focalizar a importância da educação do corpo na Alemanha nazista, expressa em Mein Kampf. A relevância dessas análises é indiscutível para o entendimento das maneiras como os homens pensaram e realizaram a educação do corpo na história. Entretanto, queremos colaborar com esses estudos cruzando as informações e conclusões que elas trazem com as transformações no mundo de trabalho que ocorrem e que ocorreram na história. Ao pretender colaborar com o debate metodológico mais amplo que tem lugar na área de Educação e Educação Física, e, também ao intencionar contemplar uma análise de conjunto do pensamento educacional moderno sobre o corpo, acreditamos que estas reflexões dirigem-se para a satisfação de um duplo interesse. Primeiramente, justificamos a realização desta obra por acreditarmos ser necessário, no âmbito da pesquisa sobre a educação do corpo, concatenar idéias e análises que, normalmente, vistas como antípodas, poderiam oferecer mutuamente complementações enriquecedoras. Tal é o caso da polarização entre os aspectos gerais e específicos, 23 entre os da coletividade e os da individualidade, entre economia e cultura etc, que dirigem as opções teóricas dos analistas. Assim, compomos este livro com a atenção voltada para as inquietações dos pesquisadores nas duas 24 áreas, sentidas na hora de elaborar suas leituras sobre os processos educacionais na história. Em segundo lugar, evidenciamos o possível valor deste estudo pela lacuna mencionada em análises que investigam os caminhos percorridos pelo pensamento educacional referente à educação do corpo. Com isso, acreditamos que o conjunto dos textos é de grande interesse para os cursos de formação de professores em geral e de Educação Física em particular, por oferecer uma leitura e convidar à realização de outras a todos aqueles que iniciam a construção de uma reflexão histórica sobre os limites e as possibilidades da Educação Física. Os textos que compõem este livro foram elaborados no decorrer dos últimos cinco anos e refletem a intenção de refletir sobre as formas históricas de se pensar e fazer a educação corporal das sociedades. É esse ponto que une todos os capítulos do livro. Isoladamente, porém, os capítulos focam temáticas históricas específicas, podendo ser lidos de forma desvinculada dos demais. Dito de outra forma, optamos por fazer apontamentos sobre a Educação Física na história do pensamento educacional a redigir um manual ou um texto que fosse desenvolvendo uma única reflexão do “começo” ao “fim”, tal qual encontramos em teses, dissertações e em manuais de história da educação. Os capítulos foram publicados, parcial ou integralmente, em diferentes periódicos na área de educação, em circulação no país. Agradecemos aos editores da Revista Histedbr-Online, Analecta, UNICENTRO e Publicatio, UEPG. Agradecemos, também, à Fundação Araucária pelos recursos que possibilitaram a publicação desta obra. 25 Os projetos de educação do corpo nas transformações da antigüidade grega Ao analisarmos a história da Educação Física, podemos ver que de forma freqüente os gregos são tomados como ponto de partida. Isso é possível de ser observado tanto no pensamento educacional moderno, nos debates sobre a criação da disciplina escolar de educação física no final do século XIX e início do século XX, bem como na produção acadêmica hodierna sobre o corpo e a educação. Acompanhando o processo de desenvolvimento da sociedade capitalista, percebemos que Rabelais, Montaigne, Locke, Rousseau, todos eles, de uma maneira ou de outra, utilizam os exemplos advindos da Antigüidade, sobretudo a grega, para endossar a necessidade de se defender a relevância de uma educação do corpo que fosse considerada como a base de todo o processo educativo. Resguardadas algumas diferenças entre esses autores, principalmente, quando aceitam ou refutam a rigidez espartana para com o cultivo da força e 30 das habilidades guerreiras, é unâmine o reconhecimento do “equilíbrio” com que os gregos (principalmente os atenienses) teriam educado os membros da sua sociedade. Verificando a questão no Brasil, no início do século XX, notamos que Fernando de Azevedo (1915), em sua Poesia do Corpo, também recorre de forma constante à história da Antigüidade para verificar a urgência de se entabular a Gimnástica Racional. Mesmo com o autor fazendo uma abrangente retomada histórica que abarca também a Índia e a China, é na Grécia que ele vai se espelhar e mostrar o que poderia fazer a atenção à educação corporal na escola. Nas obras de Marrou (1975) e Jaeger (1995), a profundidade com que analisam a educação na Grécia condiciona a existência de capítulos específicos e de referências espalhadas em toda obra sobre a relevância do corpo e da sua educação para o entendimento desse período da história educacional. Braustein e Pépin (1999), ao analisarem O lugar do corpo na cultura ocidental, dedicam um longo capítulo, perfazendo quase um terço da obra, para a reflexão sobre a questão no pensamento grego. O mesmo acontece com manuais, tais como os de Cambi (1999) e Manacorda (2006), que sinalizam como uma das especificidades da educação grega e um dos traços que a manteria como de grande valor para as análises contemporâneas, o fato de ela ter se detido de forma meticulosa sobre a Educação Física. Como resultado, observamos que, na produção acadêmica sobre a educação física, na atualidade, há uma quantidade importante de estudos que objetivam estudar os gregos e sua educação corporal. Em um levantamento preliminar, as dissertações de Da Mata (2000) e de Gnecco (1999) trazem colaborações extremamente relevantes para o aprofundamento dos estudos históricos sobre a Educação Física. Em uma coletânea intitulada Corpo e História, Silva (2001) e Carvalho (2001) dedicam-se a tematizar o corpo “para os gregos, pelos gregos [...]” (CARVALHO, 2001, p.163). Essa autora justifica essa intenção afirmando que “Poucos, nas últimas décadas, e em particular na área de 31 Educação Física, foram formados lendo e usufruindo os clássicos” (p.164). Se essa afirmação não pode ser negada, não podemos esquecer, entretanto, que justamente essa advertência endossa o fato de os gregos permearem uma 32 parte não negligenciável da reflexão sobre a educação física. O chamado de Carvalho (2001) explicita isso. É, a partir dessa constatação, que pretendemos colaborar com esse importante conjunto de análises, endossando alguns posicionamentos com textos normalmente deixados de lado pelos analistas da Educação Física, assim como lançar as bases para que algumas idéias sobre a educação física dos gregos e sua apropriação pela modernidade e contemporaneidade sejam problematizados. Para isso, fazendo dialogar autores e textos escritos nos diferentes períodos da história grega com estudiosos na área de história e filosofia da educação, objetivamos reconstruir o processo pelo qual o pensamento educacional grego focaliza o corpo pedagogicamente, em consonância com as transformações históricas vivenciadas por aqueles que pensaram a sociedade, o homem e sua educação no interior de transformações históricas que culminaram com construção da sociedade grega clássica. Ao utilizarmos em um mesmo texto as obras de Homero, Hesíodo, dos poetas Líricos Gregos, de Aristófanes e Platão, reconhecemos o amplo recorte temporal. Essa opção, entretanto, justificamos pela especificidade que será buscada nesses autores: as diferentes formas como o corpo e sua educação foram concebidos nos diferentes momentos históricos da sociedade grega. 1 - O elogio do corpo guerreiro em Homero: a educação do corpo pela necessidade Primeiramente, ao olharmos para a forma de organização da sociedade nos tempos descritos por Homero, vemos que os homens mantinham fortes vínculos com sua família e com a terra da qual tiravam seu sustento e onde enterravam seus antepassados. O conceito de propriedade privada era incipiente, sendo a terra e o que em cima dela estava de posse comum. Podemos ver isso na Ilíada, quando Homero, insistentemente, ao referir-se aos seus heróis, atribui o prestígio destes de acordo com a paternidade conhecida. O trabalho existia à medida em que era possibilitado pelas características naturais do local onde 33 estava fixada a família. Essa dificuldade, inerente à difícil situação geográfica grega, fazia da guerra, do saque e da pilhagem atividades necessárias e, por isso, elogiadas pelos homens. As narrativas homéricas corroboravam a 34 maior importância atribuída à prática guerreira do que ao trabalho nas terras. Nesse sentido, diz Homero: “Para eles todos, realmente, mais doce era, então, dar combates do que voltar para a pátria querida nas côncavas naves”. (p.181, verso 10, Canto XI.) Ao contemplarmos a obra Homérica, podemos ver que a exaltação do herói não chega a se caracterizar num culto ao indivíduo que realiza proezas na guerra, mas sim na exaltação da família beneficiada por este ou aquele ato de heroísmo. Isso, longe de ser uma injustiça ao realizador das proezas, é visto como absolutamente normal tanto para a família quanto para o próprio guerreiro. Assim, Aquiles, Agamêmnon, Nestor, são “corporificações” da tribo ou da organização que representam. Neste ínterim, o guerreiro só podia ser pensado em suas qualidades de forma a atender completamente às necessidades colocadas por tal prática. Ora, numa vida regida por valores eminentemente coletivos, onde a vida e a morte dependiam da força guerreira, podemos dizer que tanto as qualidades psicológicas, quanto as necessidades corporais, eram pensadas para atender a esses valores. No que diz respeito à coragem e ao medo, o ímpeto para a luta, a vontade para matar o adversário era ladeada pela crítica voraz à fuga e ao medo de ser ferido em combate. No que tange ao corpo, podemos sentir a forma como ele era visto em dois momentos: primeiro, na exaltação das qualidades físicas dos heróis que, ao defenderem com destreza sua pátria, eram com orgulho elogiadas pelos demais, e, também, na forma com que as cenas de morte ou de dor eram narradas. No trecho abaixo, Homero expressa ambos momentos na mesma passagem: Pelas fileiras dos outros guerreiros prossegue Agamêmnon, ora a vibrar a lança e espada, ora pedras enormes jogando, enquanto o sangue manava, ainda quente, da grande ferida. Mas, logo que esta secou, quando o sangue não mais escorria, dores pungentes, então, sobrevieram ao filho de Atreu. Tal como sofre mulher em trabalho de parto, ao lhe enviarem as filhas de Hera, as cruéis Ilitiias, seus dardos acerbos. (HOMERO, s.d. , p.187, verso 264-270, CantoXI.) Em um conjunto de relações em que a força, velocidade e a coragem eram necessárias no dia a dia, 35 pensar em meios de conscientizar a respeito sobre esta necessidade, não era um imperativo. A própria prática dos homens se encarregava desta “pedagogia” do corpo, bem como de sua centralidade. Dessa maneira, em uma 36 sociedade onde a vida dependia da força coletiva, onde a força física era prerrogativa óbvia a qualquer homem, ficava inviabilizada a necessidade da idéia de “preparar” (treinar), ou pelo menos, demonstrar a importância de formar o homem para a guerra, educando-o para tal. Por outro lado, não podemos deixar de perceber na Ilíada vestígios de que a organização social em questão estava apresentando sinais claros de desgaste. Aliás, o cerne da trama é a desavença entre Aquiles e Agamêmnon, em que este repudia as duras acusações de Aquiles, delatando-o como oportunista e como o maior beneficiado nas divisões dos bens saqueados, em suma, acusando-o de egoísta ou de considerar em primeiro lugar seu interesse individual. Apesar de ainda se viver em um contexto amplamente guerreiro, o germe da transformação social começava a se colocar. Não somente em Agamêmnon, acusado de usurpar os seus governados com o seu interesse individual, mas também Aquiles, que reclama nesse momento os bens que não recebera e que antes não os pedia, refletem o esfacelamento de uma ordem social calcada na posse coletiva da terra. A moral guerreira, bem como a força corporal dos homens que antes eram inquestionáveis e absolutas, começam a entrar em decadência. Agamêmnon, além de tudo, na acalorada discussão com seu rival, diz: “Sempre encontraste prazer em contendas, combates e lutas. Se de robusto te orgulhas, tua força de um deus é presente”. ( p.47. verso 177-178, Canto I). Esse prazer, que durante toda obra é expresso de forma natural, “contraditoriamente”, é criticado por um dos mais importantes personagens, logo no início da Ilíada. 2 - O questionamento ao corpo guerreiro pelo sofrimento no trabalho e pela inteligência na política Podemos também observar, só que de forma mais clara, a transformação que se operava na sociedade antiga na obra de Hesíodo. Principalmente em Os Trabalhos e os Dias, ele expressa a passagem da valorização da guerra, para a valorização do trabalho e dos valores coletivos, ao nascimento do indivíduo. Sem dúvida que, tudo que diz respeito ao corpo e sua educação, também, passa por reformulações radicais. 37 Em primeiro lugar, Hesíodo começa por delinear aquilo que será sua preocupação central: mostrar a nova forma como os homens devem viver. Para isso, ele deixa explícito como era a maneira antiga e como deveria 38 ser a nova. Se antes os homens lutavam e saqueavam para sobreviver, no tempo e espaço de Hesíodo cada homem deveria tirar do trabalho o seu sustento. No que diz respeito a essa radical diferença entre o homem hesiódico e o homem homérico, o próprio Hesíodo faz uma distinção ao lançar mão da Lenda das Cinco Raças. No caso do antigo homem guerreiro, Hesíodo o vê como pertencente à Raça de Bronze. Em contraposição, assim ele define a Raça de Ferro: Antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça, mais cedo tivesse morrido ou nascido depois. Pois agora é a raça de ferro e nunca durante o dia cessarão de labutar e penar e nem à noite de se destruir; e árduas angústias os deuses lhes darão. Entretanto a esses males bens estarão misturados. (HESÍODO, 1991, p.35, verso 173-180) Há de se notar que, apesar de colocar o trabalho como a atividade responsável pela existência e não mais a guerra, Hesíodo não o faz de forma a atribuir à atividade laboral o prazer ou o amor. É a clareza de que tal atividade vem como necessariamente diferente da anterior, mas nem por isso, sem sofrimento. Nessa nova ordem, em que o indivíduo deverá cuidar de seus bens, os laços familiares se afrouxam. Antes todos eram reunidos e, juntos lutavam, literalmente, pela sobrevivência. Agora, a luta é entre indivíduos. Isso acarreta mudanças radicais nos valores. O respeito à família era incontestável. Agora, nas próprias palavras de Hesíodo: Nem pai a filhos se assemelhará, nem filhos a pai; nem hóspedes hospedeiro ou companheiro a companheiro, e nem irmão a irmão caro, será como já havia sido: vão desonrar os pais tão logo estes envelheçam e vão censurá-los, com duras palavras insultandoos.(HESÍODO, 1991, p.36-37, verso 182-186) Além de romper com os laços de família, que antes eram rigorosamente respeitados, entre os próprios indivíduos, haverá, adverte o autor, males que irão trazer muitos pesares. A facilidade de se pensar em todos como se fossem um deixa de existir. Na nova circunstância, o 39 outro só existe à medida que o prejudica ou é prejudicado em seus interesses. Hesíodo diferentemente de Homero, fala do presente; já lida com sua realidade em um “sentido 40 pedagógico”, ao afirmar valores que devem existir, mas que não existem. Se na prática existe a cobiça, a inveja e o egoísmo, Hesíodo trata de freá-los com a idéia de Justiça: A Justiça escuta e o Excesso esquece de vez! Pois esta lei aos homens o Cronida dispôs: que peixes, animais e pássaros que voam devorem-se entre si, pois entre eles justiça não há; aos homens deu a Justiça que é de longe o bem maior; pois se alguém quiser as coisas justas proclamar sabiamente, prosperidade lhe dá o longevidente Zeus; mas quem deliberadamente jurar com perjúrios e, mentindo, ofender a Justiça, comete irreparável crime; deste, a estirpe no futuro se torna obscura, mas do homem fiel ao juramento a estirpe será melhor. (HESÍODO, 1991, p.43, verso 275-285) Apesar de ser a Justiça aquela que deveria imperar entre homens que, no novo contexto passam, individualmente, a “lutarem” entre si, Hesíodo adverte que “Mesmo ao irmão, sorrindo, impõe uma testemunha: confiança e desconfiança os homens aniquilam por igual.”(HESÍODO, 1991, p.43, verso 275-285) Com isso, qual é a nova forma de se pensar o corpo? Qual é a necessidade por ele satisfeita neste novo momento? O que é que nasce e o que morre, em relação ao corpo, com a nova forma de ser da sociedade? Jaeger (1995) diz que em Hesíodo a idéia de direito aparece em franca luta com o uso da força, o que faz o helenista, sobre o conteúdo “formativo” do poema, concluir: A educação e prudência na vida do povo não conhecem nada de semelhante à formação da personalidade total do homem, à harmonia do corpo e do espírito, à destreza igual no uso das armas e das palavras, nas canções e nos atos, tal como exigia o ideal cavalheiresco. Em contrapartida, impõe-se uma ética vigorosa e constante, que se conserva imutável através dos séculos, na vida material dos camponeses e no trabalho diário da sua profissão. Este código é mais real e mais próximo da Terra, embora lhe falta uma grande meta ideal. (JAEGER, 1995, p.90) Ao se basear no trabalho, a nova sociedade que ia surgindo, sustentada pelo direito que regrava as disputas 41 - antes resolvidas pelas qualidades do corpo, como a força e a velocidade - inicia um processo de reflexão sobre a relação entre a prática da vida cotidiana e a teoria educacional. A idéia de justiça, de obediência à lei não se 42 desenvolvia por si: era necessária a reflexão sistematizada sobre como “formar” o homem, que liberado dos laços familiares, assumisse a existência política. O nascimento da reflexão pedagógica grega, atinada com as contradições e necessidades da pólis, resultou em dois discursos pedagógicos sobre o corpo: aquele que valoriza o corpo como fonte das realizações do espírito e aquele que vê no cultivo do corpo o embotamento dessas qualidades. De qualquer maneira, a centralidade das valências físicas, ou a sua imediata utilidade, é secundarizada em relação à palavra e à reflexão. Ou seja, em Homero a prática social e a prática educativa coincidiam e, em ambas, o corpo e suas forças eram vistas como pressupostos. A educação do corpo, efetivada no dia-a-dia da sociedade guerreira descrita por Homero, ou passa a ser executada pela “pedagogia” para atingir a um fim que transcende à força muscular, ou é rechaçada como sinal de um tempo que não mais existia. Nesse sentido, os poetas Líricos Gregos expressam com segurança a malha de determinações e de valores que agora são elogiados ou criticados e que tocam, diretamente, a questão da educação corporal. Ao vislumbrarmos os homens que viveram essas mudanças, notamos que deixando de ser a guerra a atividade principal, os valores guerreiros, já no período de Arquíloco (687-652 a.C.), começam a serem criticados e até zombados. Antes, um guerreiro tinha como algo de maior valor seu escudo, seu elmo e suas armas, e agora, nas palavras de Arquíloco: Um dos Saios, nossos inimigos regozija-se agora com meu escudo, arma impecável que sem querer deixei ficar num matagal. No entanto, escapei à morte, que é o fim de tudo. Quero lá saber deste escudo! Comprarei outro melhor. Que é um escudo, afinal, senão um pedaço de pele curtida, com uns adornos de metal brilhante! (LÍRICOS GREGOS, 1956, s.p) De um lado, temos o escárnio como o sinal de que o valor guerreiro já não mais responde as necessidades dos homens. De outro, temos o saudosismo de Tirteo 43 (Sec. VII), que insiste em lembrar o que fora esquecido, ou seja, aquilo que não mais acontece “naturalmente”: 44 Assim, pois, oh jovens lutais unidos e não deis sinal de fuga vergonhosa nem de medo; faze grande e forte no peito vosso coração e não tenhais amor por vossas vidas quando lutas com o inimigo. Não fujais abandonando aos velhos, os de mais idade, caídos, cujos joelhos já não são ágeis. É vergonhoso ver, caído na primeira fila deitado no solo diante de jovens, um homem de mais idade, de cabeça branca e barba branca, exalando no pó sua alma generosa, com as ensangüentadas vergonhas escondidas entre as mãos [...]. (LÍRICOS GREGOS, 1956, Op. Cit. p.4, verso 6) A luta de Tirteo em fazer os homens lembraremse daqueles valores coletivos e guerreiros, respondia a uma necessidade: a saber, não mais aquela que é a fonte das lembranças buscadas, mas sim a realidade regida pela propriedade individual, em que aqueles valores (coragem, respeito aos velhos, abdicação da vida própria), serviam muito mais para conter os excessos citados por Hesíodo, do que garantir a sobrevivência, como em Homero. No que tange à forma como o corpo passa a ser visto, Xenófanes (+-570 - +-470) vivendo já sob a égide da nova maneira de organização, na qual o trabalho, a palavra e a habilidade de fazer leis que regulam as práticas individuais de cada homem são mais importantes, deixa explícito que a antiga necessidade do corpo forte, ágil, sendo ultrapassada, faz com que os homens vejam o que antes era elogiado, como alvo de críticas: Os vencedores das Olimpíadas, que recebem distinções como sentar na primeira fila de um teatro, homenagens da cidade, são contestados pelo poeta. Diz ele [...] No entanto, esses vencedores são menos dignos dessas honrarias que eu porque a minha sabedoria é melhor do que a força dos homens e dos cavalos. Porém, sobre isso há muitas opiniões equivocadas. Não é justo preferir a força à verdadeira sabedoria. Se há na cidade um bom pugilista ou um bom atleta distinguido no Pentatlon, na luta ou na corrida - que é a mais importante das provas atléticas nas competições entre os homens - nem por isso estará, por ele, melhor governada. Pouco prazer pode dar a uma cidade um atleta que vença junto às margens do rio de Pisa posto que isso não enriquece os cofres da cidade. (LÍRICOS GREGOS, 1956, p.15, verso 2) 45 Podemos, ainda, endossar a posição de Xenófanes, com a seguinte passagem de Teógnis (610-520):“A inteligência e a língua são um tesouro; porém são coisas que poucos homens possuem e que tem dificuldades de 46 fazer bom uso de ambas.”(LÍRICOS GREGOS, 1956, p.20, verso 1185) Assim, esses posicionamentos são compreensíveis ao considerarmos o pano de fundo histórico que dá as razões para que tais idéias se realizem. A força e o altruísmo eram as peças-chave para a garantia de sobrevivência. Com os desenvolvimentos que culminariam na existência política, são as habilidades no falar e no pensar - inerentes as práticas do comércio e da política - que garantem a realização dos interesses individuais. Estes, por sua vez, se levados ao exagero, destruiriam as possibilidades de viabilização de qualquer organização social, onde estes interesses se realizam. Sobre isso, afirma Teógnis: Quando os malvados se decidem a mostrar sua insolência, corrompem o povo e dão sentenças a favor dos injustos para buscar lucros e poder próprio. Não esperes que essa cidade, ainda que esteja na maior calma, permaneça tranqüila por muito tempo uma vez que os malvados se agarram às vantagens com prejuízo público. Disso nascem as lutas civis, as matanças de cidadãos e dos tiranos [...]. (LÍRICOS GREGOS, 1956, p.14, verso 44.) Com o desenvolvimento da pólis e da democracia, notamos que essas discussões sobre o valor educativo ou prático do desenvolvimento do corpo ganham em intensidade e sistematização. Podemos notar a existência do debate entre o elogio e a crítica à educação física em As Nuvens, de Aristófanes. Quando do diálogo entre os raciocínios das duas formas educacionais em luta, ele faz o “Raciocínio Justo”, crítico do intelectualismo sofístico, afirmar: Se fizer o que eu digo e atentar nesses conselhos, terá sempre peito robusto, côres brilhantes, ombros largos, língua curta, quadris grandes e membro pequeno. Mas se praticar os hábitos de hoje, logo terá pele pálida ombros estreitos, peito acanhado, língua grande, quadris pequenos, membro comprido e longos decretos. E ele persuadirá você a pensar que tudo que é vergonhoso é belo e o belo, vergonhoso. (ARISTÓFANES, 1967, p.194) (Sem grifos no original) 47 Fica evidente que a menção aos “hábitos de hoje” diz respeito ao fortalecimento da política em relação à guerra e à perda de importância da educação corporal nessa ordem. 48 A oposição entre a “língua grande” do especialista em discursos e os “ombros largos” do guerreiro como exemplos de práticas educacionais diferenciadas assume grande importância pelas nuances que recebe no pensamento de Platão. Através de Sócrates, no Fédon, diz o autor de A República: [...] purificar a alma não é o mesmo, como diz a antiga tradição, que separá-la do corpo e acostumá-la a encerrar-se e recolher-se em si mesma, partindo de todos os pontos do corpo, e viver, seja nesta vida, seja na outra, sozinha e separada do corpo como liberta de uma cadeia? (PLATÃO, 1996, p.129) Isso, todavia, não deve levar à assunção de que Platão desconsidera a educação do corpo como momento importante de sua obra filosófica. A atenção dada ao cuidado e à educação corporal n’A República endossa a advertência, feita por Watanabe (1995): Platão considera a existência humana sob um ponto de vista pitagórico, isto é, como coexistência de alma e corpo.[...] A tradição cristã fez dessas afirmações uma teoria platônica da espiritualidade da alma, desconhecendo a sofisticada encenação dos Diálogos. Desse modo, exagerou-se o papel da recusa do corpo em favor da alma no contexto da obra de Platão. Se o corpo (em grego, soma) é considerado como o túmulo (em grego, sema) da alma, é porque é preciso inverter as perspectivas e pensar a morte como passagem para a nova vida.[...] Sócrates reconhece que, pregada ao corpo como que por meio de pregos e ferros, é por intermédio do prazer e da dor que o corpo produz que alma exercita sua memória [...]. (WATANABE, 1995, p.95-96) Por outro lado, com o mesmo cuidado de Watanabe (1995), Marrou (1975), por sua vez, não deixa de dizer que: [...] o lugar que Platão concede, em sua discussão, aos aspectos propriamente espirituais da cultura, mostra claramente ter já o papel da educação física passado para segundo plano: lentamente, a cultura helênica se distancia de suas origens cavalheirescas e evolui na direção de uma cultura de letrados. (MARROU, 1975, p.118) 49 Essas observações colocam bases para entender a necessidade de analisar a história da Educação Física na Antigüidade de forma a contemplar a dinamicidade do processo de formação e de superação de discursos 50 pedagógicos que ou assumiam o corpo como pressuposto, ou o viam como irrelevante frente às novas configurações sociais ou que, ainda, viam-no como importante justamente pelo desenvolvimento da política e da filosofia e o predomínio da inteligência que elas pressupõem. Quando analisamos a educação grega, devemos levar em conta, assim, a existência de projetos históricos e pedagógicos conflitantes (enfim, de educações gregas) em relação ao corpo e à sociedade. O mesmo deve ser dito sobre as sociedades que se sucederam e que, de forma inegável, determinaram as várias leituras que foram e que são feitas da Antigüidade. Apontamentos Finais Iniciamos este capítulo objetivando refletir sobre a importância atribuída à “educação grega” por parte dos estudiosos da Educação Física. Analisar o desenvolvimento do pensamento educacional grego tomando as transformações históricas da época homérica à clássica, serviu para mostrar a multiplicidade de projetos educacionais atinentes ou contrários à educação do corpo. Antes, o homem altruísta, guerreiro e forte estava diluído no interior da sociedade. Por outro lado, no novo contexto que surgia, tratava-se de lidar pedagogicamente com o corpo e formá-lo naqueles valores, caso fosse visto o seu valor para embasar o desenvolvimento das capacidades volitivas e intelectuais necessárias para coesão política. Dito de outra maneira, a força, a velocidade, a habilidade com as armas [...] tratava-se de formá-las em condições especial e “artificialmente” preparadas para que o homem possuísse esses atributos, sem querer isso dizer que eles fossem imediatamente ou “concretamente” úteis, como foram durante na vitória sobre Tróia, por exemplo. Para o sofista do “raciocínio injusto” de Aristófanes, isso era perda de tempo. O governante-filófoso de Platão, por sua vez, deveria ser formado nessa “pedagogia do corpo” que, no fim, condicionaria a existência e o desenvolvimento de sua capacidade de reflexão e ação. Nesse sentido, as transformações no pensamento educacional grego, com suas conseqüências específicas sobre a questão do corpo, mostra a necessidade de buscarmos as várias e complexas mediações entre as transformações da 51 sociedade e a maneira como ela pensa e executa (ou pela vida cotidiana, ou pela pedagogia) a educação corporal. Como conseqüência, Marrou (1975) chama atenção de forma clara para essa necessidade ao colocar uma questão 52 no resultado mais constante dessa desconsideração ao se analisar a educação física na Antigüidade: Aqui, devo exorcizar um mito moderno, o de uma síntese harmoniosa entre ‘a beleza da raça, a perfeição suprema da arte e os mais altos vôos do pensamento especulativo’que a civilização helênica teria podido realizar plenamente. Esse ideal de um espírito plenamente desabrochado num corpo soberbamente desenvolvido, não é, sem dúvida imaginário; existiu, pelo menos, no pensamento de Platão, quando ele desenhava suas inesquecíveis figuras jovens; [...] Mas é necessário considerar também que, se ele pôde realizar-se na prática, só o pôde num instante fugidio de equilíbrio instável entre duas tendências que evoluíam em sentido contrário, e das quais somente uma pôde progredir, acarretando a regressão da primeira, de início dominante. (MARROU, 1975, p.75) (Sem grifos no original) Partindo das apropriações cristãs da filosofia grega, passando por Montaigne, Rabelais, Locke, Rousseau, Rui Barbosa, Fernando de Azevedo; passando também pela retomada dos Jogos Olímpicos em 1896 e sua elaboração nazista na década de 30, chegamos aos esforços contemporâneos de se buscar, defender e concretizar as potencialidades educacionais da Educação Física. Em todas essas idéias e fatos, os variados formatos e concepções sobre a educação do corpo ou foram muito criticados ou defendidos, porém tendo, freqüentemente, como anteparo a “educação grega”. Com as reflexões feitas neste texto, pretendemos ter mostrado que essa “educação grega”, além de ter sido multifacetada para os próprios gregos, originou diferentes interpretações fazendo com que a análise desse período histórico seja dotada de grande vitalidade. Assim, esse reconhecimento, longe de tirar o fascínio que atribuímos aos gregos, dá ainda mais valor e atualidade para o seu estudo pelo fato de historicizá-lo. Atualidade essa passível de ser vista justamente no cuidado em se lançar mão desse período histórico evitando anacronismos que, com o passar dos anos, tornaram-se grandes chavões que dificultam tanto a reflexão hodierna, quanto o entendimento da especifidade dos limites e da perenidade das realizações educacionais dos antigos gregos. 53 A Educação Física no pensamento educacional moderno durante o contexto francês do século XVIII No pensamento educacional moderno, a preocupação com o corpo era inseparável da existência individual. A liberdade, conquistada na luta contra os resquícios feudais, significava que cada indivíduo seria responsável pela produção de sua própria vida. Significava, também, que a possibilidade de uma existência cada vez mais confortável dependia do esforço de cada um. Daí, porque, o corpo ter sido alvo de cuidados, de prescrições nutricionais, de usos de vestimentas e de exercícios cuidadosamente selecionados. Esses postulados conservaram sua validade na literatura apesar do tempo. A eles foram apenas sendo acrescentados os avanços da ciência e da tecnologia. O que mudou ao longo da história é que, de pensada inicialmente para a educação privada dos filhos das famílias abastadas, a educação do corpo foi amplamente divulgada e efetivada na escola pública do século XIX. Mas essa mudança de uma educação física doméstica 58 para uma efetivada em um espaço público não se deu de forma evolutiva. Foi preciso a existência de condições históricas determinadas para que se instaurasse um longo e acirrado debate sobre a extensão das práticas corporais de uma forma universal. Ao contemplar esse processo já efetivado, não se pode perder de vista que o pensamento educacional liberal transita da necessidade da educação do corpo como prática privada e exclusiva de uma classe para, já no interior da revolução, conjeturar, conceber e, com denodo, debater, em alguns projetos educacionais, a educação do físico oferecida a toda sociedade. Dessa maneira, o objetivo deste capítulo é analisar a forma como o pensamento liberal, no contexto francês pré e imediatamente pósrevolucionário, elaborou, no interior das discussões mais amplas sobre os rumos sociais, a necessidade de se educar o corpo. Apoiando-se no estudo dos representantes mais destacados do pensamento educacional desse momento, procurar-se-á evidenciar como e porque a educação física, antes pensada como modalidade educativa na e para a vida privada, passou a ter sua utilidade pública passível de ser regulada pelo Estado, veementemente discutida. 1 - A educação do corpo no limite entre o privado e público Tocqueville (1989), em O Antigo Regime e a Revolução, ao dizer que a Revolução Francesa surpreendeu a Europa, já que ninguém esperava por ela, “esqueceuse”, no entanto, de dizer que Rousseau (1992) a previra quase trinta anos antes de sua erupção. No Emílio, diz o pensador genebrino: Confiais na ordem presente da sociedade sem pensar que esta ordem está sujeita a revoluções inevitáveis [...] Aproximamos do estado de crise e do século das revoluções [...] tudo o que os homens fizeram os homens podem destruir. (1992, p.213) A originalidade de Rousseau, no entanto, não foi “profetizar” a grande revolução que destruiria o antigo regime, mas de antecipar a crítica à sociedade burguesa que substituiria a sociedade feudal. Essa crítica o inclui 59 entre os filósofos iluministas, mas sua aversão à nova sociedade o exclui literalmente desse movimento, isolando-o dos filósofos, seus contemporâneos. A Inglaterra, que ainda segundo Tocqueville (1989), havia 60 mudado gradativamente o espírito de suas instituições sem precisar destruí-las, era o modelo de civilização dos iluministas franceses. Mas não era o de Rousseau, devido a sua defesa do interesse público. Para ele, a instauração de qualquer sociedade que tem como princípio básico o interesse individual, como a que se organizava na Inglaterra de Locke para defender a propriedade privada, não podia ser chamada de civilizada, pois nascia com a sociabilidade entre os homens comprometida. Emílio foi educado para ser o homem de Rousseau em duas situações: ou viver um novo Contrato Social (ROUSSEAU, 1983) (que ele próprio havia concebido sem nenhuma certeza de iria realmente ser implementado), ou escolher o país que mais se assemelhasse a ele, caso as transformações resultassem no que era esperado pelos iluministas. Nas duas situações, Emílio seria antes de tudo cidadão, não como no passado, em que o indivíduo não existia, mas como aquele que submete o interesse individual ao interesse coletivo. Em meio a um conjunto de instituições vistas como doentias, que só faziam imputar aos homens vícios e erros, Rousseau coloca a necessidade de existência de outras, que fizessem o homem sair desse estado vicioso de egoísmo, organizando o particular de acordo com o todo e não o contrário, como queriam seus contemporâneos. Desde a mais tenra idade, Emílio é educado de modo a conhecer e desenvolver suas forças e capacidades, que usaria para benefício próprio e também para os outros. Homem que abre mão de tudo que é imediato, pequeno e individual, agindo de acordo com os deveres da sociedade como um todo. Nesse processo, a educação do corpo assume uma posição de destaque, pois é com ela que, na fase inicial de educação, a criança reconhece suas habilidades, potencialidades e desenvolve todo o seu vigor para contar sempre com um corpo pronto, saudável e em condições de agir, seja na produção da existência, seja no altruístico dever de defender, acima de tudo, a sociedade. A importância da educação corporal é apontada como a base sobre a qual erguer-se-ia toda a grandeza moral e intelectual do indivíduo que, ao pensar na coletividade, ganharia da sociedade dobrado o que 61 perderia se vivesse isolado como nos moldes naturais, moldes esses que no entender de Rousseau eram, infelizmente, não mais possíveis de serem vivenciados. Essa importância é enfatizada pelo próprio autor ao 62 analisar a “educação primeira”: “Exercitai seu corpo, seus órgãos, seus sentidos, suas forças, mas deixai sua alma ociosa enquanto for possível” (1992, p.80). Além disso, o filósofo relaciona de maneira relevante à educação do corpo à maneira defendida pela antigüidade clássica ao afirmar que: Vós vos preocupais com a ver gastar seus primeiros anos em não fazer nada. Como! Ser feliz será não fazer nada? Não será nada pular, correr, brincar o dia inteiro? Em toda a sua existência não andará mais ocupada. Platão, em sua “República”, que acreditam tão austera, só educa as crianças com festas, jogos, canções, passatempos: parece que fez tudo ensinandolhes a se divertirem. E Sêneca diz, falando da antiga juventude romana: estava sempre em pé e nada se lhe ensinava que devesse aprender sentada. (1992, p.97) Rousseau faz questão de deixar claro que a diferença entre o que ele pensa e o que os demais pensaram reside em questões mais gerais. A aversão que tinha o filósofo pelos vícios advindos da sociedade distancia-o de maneira muito intensa de Montaigne, pelo respeito que este autor concede à liberdade do indivíduo que aprende o que for útil para ele. Opõe-se, também, a Locke, que atribuía maior peso às experiências, ao convívio, à possibilidade de se formar o homem de negócios. O autor de Emílio não quer formar nem o homem barroco de Montaigne, nem o homem moldado pelo ambiente (individualista) de Locke. Entretanto, os três são unânimes em afirmar a educação do corpo, mesmo que desemboquem em perfis humanos diferenciados. Rousseau tem consciência disso: Todos os que refletiram acerca da maneira de viver dos antigos atribuem aos exercícios de ginástica o vigor do corpo e de alma que os distinguem mais sensivelmente dos modernos. O modo pelo qual Montaigne corrobora esse sentimento mostra que estava fortemente compenetrado disso; volta ao assunto sem cessar e de mil maneiras. Falando da educação de uma criança, diz que, para fortalecer-lhe a alma, cumpre enrijecer-lhe os músculos; acostumando-a ao trabalho, habituamna à dor: é preciso afazê-la à dureza dos exercícios, para adestrá-la às asperezas das luxações, das cólicas e de 63 64 todos os males. O avisado Locke, o bom Rolim, o sábio Fleury, o pedante Crouzas, tão diferentes entre si em tudo o mais, concordam todos neste único ponto: exercitar muito o corpo das crianças. É o mais judicioso de seus preceitos; é o que é e será sempre mais negligenciado. Já falei suficientemente de sua importância, e como a respeito não é possível dar melhores razões nem regras mais sensatas que as que se encontram no livro de Locke, contentar-me-ei com recomendá-lo, depois de tomar a liberdade acrescentar algumas observações às suas. (1992, p.123) (Sem grifos no original) A necessidade de fazer sua sociedade assumir uma característica mais coletiva pode, a quem analisa a obra de Rousseau sem o devido cuidado, levar a atribuí-lhe a base do pensamento educacional que privilegiaria a educação pública. Entretanto, a admiração de Rousseau por Esparta e o fato do seu Contrato Social baseado no respeito à “Vontade Geral”, não significam a ruptura do autor com a linha mestra do pensamento educacional burguês. Apesar de ser um filósofo extremamente contraditório e criticar tanto a sociedade decadente do antigo regime como os rumos “individualistas” que a sociedade francesa já apresentava como tendência, Rousseau concebe a educação como necessidade tão somente de quem tem posses e de quem vai recebê-las. Nesse sentido, ele afirma no Emílio que O pobre não precisa de educação; é obrigatória a de sua condição, não poderia ter outra. Ao contrário, a educação que o rico recebe de sua condição é a que menos lhe convém tanto para si mesmo quanto para a sociedade. (1992, p.29) Os pobres estão mais próximos da natureza boa do homem. O sofrimento causado pela pobreza era considerado corporalmente educativo. A revolução antevista por Rousseau acontecera. A burguesia francesa conseguiu enterrar os vestígios políticos remanescentes da feudalidade. Com as vitórias e os novos problemas enfrentados, a classe que fez renascer a educação do corpo para formar o indivíduo talentoso e cheio de forças, refez conceitos, analisou novas demandas e seu pensamento educacional acompanha o processo tortuoso e complicado de construção e consolidação da ordem social. 65 2 - O debate sobre a educação física pública na revolução Durante a Revolução, o pensamento educacional liberal passa por várias reformulações importantes. Longe 66 de serem somente intensos debates intestinos, pode-se dizer que ele sofreu alterações quanto aos meios, fins e a quem deveria ser dirigida à educação. Constituintes e filósofos entregam-se a fervorosas contendas sobre a educação responsável pela consolidação da ordem deflagrada em 1789. A educação do corpo, antes pensada para os nobres e potentários da nascente burguesia, denominados por Locke de “homens de negócios”, passa a ser conjeturada para toda a sociedade, como dever do Estado. Condorcet, no período constituinte da Revolução, destacou-se como um dos mais fortes defensores da “instrução pública”. Para ele, a revolução estaria incompleta se a desigualdade entre os homens não fosse legitimada pela diferença de talentos. Para essa legitimação ter coerência com o projeto político alardeado no calor revolucionário, acreditava Condorcet que era obrigação do Estado dar a base sobre a qual estas diferenças seriam construídas. Quanto a isso, afirma o próprio membro da Constituinte, que começou a apresentar seu projeto em 20 de Abril de 1792: A instrução pública é um dever da sociedade para os cidadãos. Em vão se teria declarado que todos os homens possuem o mesmo direito; em vão as leis teriam respeitado o primeiro princípio da justiça eterna, se a desigualdade quanto às faculdades morais impedisse o maior número de homens de desfrutar de seus direitos em toda a sua extensão [...] É impossível que uma instrução de fato igualitária não proporcione a superioridade daqueles que a natureza dotou de uma complexão mais feliz. (CONDORCET apud BOTO, 1996, p.117) Há que se notar que a crença de Condorcet na instrução como fonte de transformação de uma estrutura desigual ou, também, na viabilização de uma desigualdade “legítima”, levava em conta os limites impostos pelo nível de desenvolvimento dos meios de produção. No seu projeto colocava como obrigatória a escola primária, reconhecendo que as escolas secundárias ficariam para os filhos daquelas famílias que pudessem abrir mão do trabalho dos filhos. Para as famílias que não pudessem 67 ter seus filhos na escola, a educação do corpo dar-se-ia na prática produtiva do campo ou das manufaturas. Os esforços entabulados pela burguesia, ao discutir os limites entre o público e o privado em relação 68 à educação, calcavam-se nas dúvidas trazidas pelo desenrolar da Revolução e os caminhos por ela assumidos. Tratava-se, diz Boto (1996), de se criar uma pedagogia permanente (que) agiria no sentido de imprimir no subjetivo daquela população [...] uma dada idéia que delimitaria aqueles tempos revolucionários como origem de um mundo completamente novo. (p.162) Até que ponto o Estado deveria ser responsável pela educação do homem e até que ponto ela deveria ser ministrada a toda sociedade foi a questão central no interior da revolução. Nesse sentido, afirma Hunt (1991), ao analisar a vida privada na Revolução Francesa: Durante a Revolução, as fronteiras entre a vida pública e a vida privada mostraram uma grande flutuação. A coisa pública, o espírito público invadiram os domínios habitualmente privados da vida. Não resta dúvida que o desenvolvimento do espaço público e a politização da vida cotidiana foram definitivamente responsáveis pela redefinição mais clara do espaço privado no início do século XIX. O domínio da vida pública, principalmente entre 1789 e 1794, ampliou-se de maneira constante, preparando o movimento romântico do fechamento do indivíduo sobre si mesmo e da dedicação à família, num espaço doméstico determinado com uma maior precisão. (1991,p.21) A contrapartida da organização política ao libertar o indivíduo das amarras feudais, era a construção de uma série de laços jurídicos e cívicos que permitiriam a cada um viver satisfazendo seus interesses, construindo um mundo novo. A nova moral, baseada no indivíduo, pressupunha uma elaboração e um repensar da vida nas mais variadas dimensões e até os últimos recônditos sociais. Nesse ínterim, a educação veio a se configurar, no ideal revolucionário, como um dos pontos de apoio sobre o qual se ergueria uma sociedade baseada em indivíduos livres. Se as lutas anteriores não fizeram a burguesia pensar a educação para toda sociedade, agora, impulsionada pela revolução, o debate dessa questão atinge seu auge, sobretudo durante o jacobinismo. Foi nesse momento que o “público” 69 ganha muita força e todos os corpos passam a ser passíveis de serem educados e enrijecidos por esse ideário: 70 [...] essa França Jacobina, onde a escola unificadora constrói um modelo coerente e bastante rígido de cidadania e civilidade, empertigando os corpos, investindo contra os dialetos regionais, corrigindo as pronúncias, impondo a todos, migrantes internos ou externos, seu modelo de integração de eficácia inquestionável - como ela parece autoconfiante! [...] outras provas dessa diluição do privado diante do público. (PERROT, 1991, p.19) Nesse debate, as reflexões de Lepeletier são de grande relevância. É com a leitura de Robespierre que o projeto de Lepeletier é apresentado em 13 de julho de 1793. Esse projeto aprofundou algumas considerações feitas por Condorcet, criticando-o em vários momentos. Um dos primeiros pontos criticados por Lepeletier é a viabilidade e a validade dos conhecimentos como fonte de unidade cívica. Para isso, o autor do projeto antecipa a discussão entre a importância da educação versus da instrução. Para Lepeletier, [...] antes desses degraus superiores, que são úteis apenas para um pequeno número de homens, eu busco uma instrução geral para todos, que convenha às necessidades de todos, em uma palavra, uma educação verdadeira e universalmente nacional. (apud BOTO, 1996, p.169) Além dessa importante diferenciação, há que situar esse projeto na sua historicidade. Lepeletier, assim como Condorcet, propunha uma estrutura educativa que objetivava entrar em cada lar, em cada família, formar cada criança componente da nova sociedade. Entretanto, os limites históricos inerentes às estruturas produtivas faziam esses homens pensarem a infância de maneira a diferenciar aqueles que tinham condições de crescer sem trabalho, daqueles que não tinham essa possibilidade. O limite dessa educação pensada para todos, Lepeletier expressa-os da seguinte maneira: Mas quanto à classe indigente, como será? Essa criança pobre, você lhe oferece instrução; mas antes lhe falta o pão. Seu pai trabalhador priva-se de uma porção para lhe oferecer; mas é necessário que a criança ganhe outra. Seu tempo é encarcerado no trabalho 71 72 porque no trabalho está a sua subsistência. Depois de haver passado no campo uma jornada penosa, vocês querem que, como penoso, ela se dirija a uma escola distante talvez meia légua de seu domicílio? Em vão, vocês estabeleceriam uma lei coercitiva contra o pai; este não poderia prescindir do trabalho de uma criança que, com oito, nove, ou dez anos, ganha já qualquer coisa. Um pequeno número de horas por semana é o máximo que ele pode sacrificar. Assim, o estabelecimento de escolas tal como foi proposto seria, para falar a verdade, um bem produtivo apenas para o pequeno número de cidadãos, independentes em sua vida material, livres das constrições das necessidades (apud BOTO, 1996, p.170). Diferentemente do pensamento educacional moderno nos albores da sociedade capitalista, Lepeletier dimensiona de maneira interessante, devido às lutas enfrentadas pela burguesia francesa no final do século XVIII, o papel dos antigos. Do grande elogio a eles feito por Montaigne, Rabelais, Locke e Rousseau, passase, no novo momento, a reconsiderar essa importância sem, no entanto, negar o papel dos exemplos vindos da antigüidade clássica. Essa admiração, com reservas, é expressa da seguinte maneira: Prolongar a instituição pública até o fim da adolescência é um belo sonho; algumas vezes nós o imaginamos deliciosamente com Platão; por vezes nós o lemos com entusiasmo, realizado nos fastos da Lacedônia; algumas vezes nós reencontramos na sua insípida caricatura nos colégios; mas Platão só formava filósofos, Licurgo só fazia soldados, nossos professores só formam estudantes; a República francesa, cujo esplendor consiste no comércio e na agricultura, tem necessidade de fazer homens para todos ofícios: então não será mais nas escolas que eles serão encerrados, mas nos diversos “ateliers”, qualquer outra idéia é uma quimera que, sob a enganosa aparência da perfeição, paralisaria os braços necessários, exterminaria a indústria, reduziria o corpo social e em pouco tempo engendraria sua dissolução. (apud BOTO, 1996, p.172). (Sem grifos no original) Em que consiste, então, a importância dos exemplos tirados das antigas Grécia e Roma? Para Boto (1996), essa relevância é configurada da seguinte maneira: [...] da república dos filósofos com Platão até o modelo espartano de formação de subjetividades para o serviço integral da pátria, o homem novo da cidade nova mapeada pela recém-fundada República francesa 73 teria as feições do coletivo. É por isso também que a Matriz do aperfeiçoamento individual tão cara ao espírito da Ilustração será aqui substituída pelo interesse público, em nome do qual todos os sacrifícios seriam, por si, legítimos. (p.173) 74 No interior da Revolução, nota-se que os referenciais com os quais a burguesia pensa a educação da sociedade flutuam entre do privado para o público. O auge desta mudança, atestada pelo jacobinismo, manifesta-se de maneira forte na educação do corpo. O ponto de mudança, como já afirmava Rousseau, não é o valor da atividade em si, mas o que ela pretende formar. Para Lepeletier, assim como Locke, Montaigne, Rabelais, o corpo tem uma importância muito grande, só que para atingir finalidades diferentes. Para estes, o culto ao corpo e sua educação vêm no sentido de instrumentalizar o indivíduo que busca sua riqueza e sucesso, com saúde, força e beleza. Para aquele, trata-se de educar o “corpo social” de uma organização jurídica baseado na igualdade de direitos políticos na forma defendida por Robespierre. Essa educação do corpo, oferecida ao maior número possível de pessoas, é colocada da seguinte maneira por Lepeletier: Continuamente pelas mãos e sob os olhos de uma ativa vigilância, cada hora será reservada, quer para o repouso, quer para a refeição, o trabalho, o exercício, o descanso; todo o regime de vida será invariavelmente regrado; os desafios graduais e sucessivos serão determinados; os gêneros de trabalhos corporais serão designados; os exercícios de ginástica serão indicados, um regulamento salutar e uniforme prescreverá todos esses detalhes e uma execução constante e fácil lhes assegurará os êxitos. (apud BOTO, p.175) Essa necessidade defendida por Lepeletier do Estado tutelar a educação do corpo da sociedade, não era unanimidade. Vários críticos, no interior da própria Revolução, negavam fazer essa passagem das preocupações educativas do âmbito privado ao público. Nesse sentido, um discurso pronunciado em 30 de julho de 1793, por Grégoire, é explícito por representar a resistência da burguesia em fazer essa alteração fundamental em suas considerações sobre a educação e, conjuntamente, sobre a educação do corpo: Passo a examinar os efeitos morais que resultam da educação comum e principiarei perguntando-lhes qual é o processo mais de acordo com a natureza: aquele de 75 76 deixar as crianças no seio de suas famílias ou, o outro e lhes fazer morar em casas comunitárias. A resposta não deixa dúvidas; a segunda possibilidade é artificial. A natureza é mais sábia do que nós; estejamos certos que, ao nos afastarmos de suas inspirações, nos distanciaremos da felicidade. Ora, pretendo provar que o sistema de subtrair as crianças das famílias para concentrá-las permanentemente em casa de educação comum é contrário à felicidade e à moralidade de pais e filhos. Entrem na cidade em uma casa sem crianças, é uma espécie de deserto. Vocês nunca observaram que as crianças são habitualmente um elo de amizade entre o marido e mulher? (apud BOTO, p.184) Essa idéia, que via na intervenção pública uma ameaça ao espaço privado, seria colocada em prática após o encerramento do ciclo revolucionário. A sociedade burguesa, vitoriosa em sua luta contra a feudalidade, oscilou entre pensar a educação do corpo como pública para catalisar sua vitória como um fator realmente importante desse processo. Mas assim que os velhos empecilhos foram varridos, a consideração da educação e sua preocupação com o corpo foram, novamente, passadas para a esfera privada. 3 - Pujança social pela educação do indivíduo: o triunfo do capital Foi durante seu triunfo, breve e temporário na expressão de Hobsbawn (1988), que a sociedade burguesa conseguiu representar-se a si mesma por aquilo que já era, mas não pelo que viria a ser. Mais precisamente no período compreendido entre a Revolução e meados do século XIX realizou esse feito livrando-se tanto dos vestígios feudais como os do mundo antigo, que lhe ombreara na difícil tarefa de criar uma nova civilização, mas com o qual não poderia mais ser confundida. Essa luta contra a presença dos antigos nos rumos sociais e, especificamente, educacionais teve como uma das expressões representativas desse período o escritor e publicista francês Benjamin Constant (1767-1830). Em um discurso pronunciado no Ateneu Real de Paris, em 1819, ele fornece interessantes bases para que se possa verificar a postura da sociedade em relação às influências da antigüidade nos rumos a serem tomados. Objetivando discutir o conceito de liberdade, analisa o tipo de liberdade necessária para a consecução das necessidades 77 de sua época, contrapondo-as às necessidades dos antigos que, por isso mesmo, possuíam um outro conceito sobre “ser livre”. Para o autor, é a diferença entre as formas de cada sociedade - as antigas e as contemporâneas 78 - cuidar dos seus interesses - a guerra e o comércio, respectivamente - que condiciona, lá, o apego à liberdade coletiva de deliberar em praça pública com total sujeição da vida privada e, na sociedade francesa do século XIX, a valorização da liberdade individual para fazer e desfazer de suas posses. Na prática social, agora livre dos entraves feudais varridos pela fúria revolucionária, o homem tem a sua conduta totalmente delineada. Da incerteza dos primeiros tempos do capitalismo à França pós-revolucionária, a burguesia já tinha condições de saber o que caracterizava a sua prática, podendo, assim, fazer com que as restrições à sua liberdade de iniciativa, grandemente instaladas pelo traslado das instituições e modelos da antigüidade, fossem extirpadas para dar vazão, definitivamente, às atitudes típicas de uma sociedade capitalista. É essa luta por deixar a nova forma dos homens organizarem a sua existência que Constant (1994) expressa. No que diz respeito à educação, pode-se observar que, a partir do momento em que a sociedade burguesa venceu todos os obstáculos do passado feudal e, por isso, conseguiu definir o conceito de homem e a atitude humana socialmente necessários, os antigos perderam o seu valor. Se antes, os exemplos de coragem, saúde, beleza, sapiência enchiam os olhos dos arautos da nova sociedade, agora Constant passa a observar nessas idéias características que nada tinham a ver com a liberdade do indivíduo de usar as suas posses, piorado pela consideração de que lá, na antigüidade, o Estado “interferia” na educação dos seus jovens. Constant não podia concordar com essa intromissão política na vida privada de cada família, de cada indivíduo, no momento em que a burguesia encontrou o terreno limpo para a prática capitalista: O que nos dizem sobre a necessidade de permitir que o governo se apodere das gerações nascentes para moldálas a seu bel prazer e em quais citações eruditas fica apoiada essa teoria? Os persas, os egípcios, a Grécia, a Gália e a Itália vêm alternadamente figurar em nosso olhar! Senhores, não somos nem persas submetidos a 79 80 um déspota, nem egípcios subjugados por sacerdotes, nem gauleses podendo ser sacrificados por seus druidas, nem enfim gregos e romanos cuja a participação na autoridade consolava da sujeição privada. Nós somos modernos, que queremos gozar, cada um, de nossos direitos; desenvolver, cada um, nossas faculdades como bem nos parece, sem prejudicar o outro; velar sobre o desenvolvimento dessas faculdades nas crianças que a natureza confia à nossa afeição, tanto mais esclarecida quanto mais viva é, e não tendo necessidade da autoridade senão para dela reter os meios gerais de instrução que pode reunir; como os viajantes aceitam dela os grandes caminhos, sem estarem dirigidos por ela na rota que querem seguir. (1994, p.24) Por fim, para ele, as novas necessidades permitem ao Estado, e de tudo que dele possa vir, a educação, por exemplo, somente o fomentar de alguns “caminhos”, deixando as “rotas” a serem escolhidas a encargo de cada indivíduo. No momento em que a burguesia tem a hegemonia de suas relações produtivas, nada é mais importante para o fomento de atitudes produtivas do que a própria prática produtiva. O esforço educativo de Rabelais, Montaigne e Locke, tornam-se “pleonasmos” históricos de uma prática social que, por si só, estimula o que estes pensadores lutaram tanto para fazer nascer: a iniciativa estimulada pelo progresso individual, construindo a pujança da sociedade. Nesse sentido, tendo por base as novas necessidades, a burguesia só poderia ver naquilo que a Renascença resgatou dos gregos e romanos antigos não mais inspiração, mas sim intromissão e empecilhos à iniciativa pessoal, materializada, entre outras coisas, no desrespeito advindo da “ousadia” de se propor uma educação do Estado, em detrimento da educação doméstica fornecida pela família a seus descendentes. No que diz respeito à educação física, seriam, então, as condições domésticas que decidiriam sobre as possibilidades e os meios de se buscar os corolários dessa modalidade educativa. Apontamentos Finais O trajeto de construção do capitalismo encontra no contexto revolucionário francês o momento no qual o pensamento liberal sobre educação cogita suas preocupações como sendo contempladas pelo Estado a toda sociedade. 81 Se em nenhum momento a validade da educação física fora questionada, o mesmo não se pode dizer sobre a validade de sua abrangência e sobre os responsáveis sobre a sua execução. Rousseau, seguindo os exemplos 82 dados por Locke, é um exemplo claro do tempo em que pensamento pedagógico moderno praticamente desconsidera a validade desta modalidade estendida universalmente. Para o pensador genebrino, a miséria aproximava os homens da natureza, dispensando estes (e os demais) de se preocuparem com a Educação Física. Por outro lado, quando se tratou se consolidar os rumos tomados pela revolução e evitar retrocessos, os debates franceses sobre a educação e educação física reconsideram essa idéia, pois a consolidação dos ideais revolucionários passava pela necessidade de educar o “novo homem” (BOTO, 1996), formando o novo “corpo social”, educando, também corporalmente, cada indivíduo. As incertezas quanto aos caminhos a serem trilhados pela sociedade fez com que os homens chamassem para o Estado a responsabilidade de educar o homem, conformando-o com os novos tempos, que marchariam tendo como acicate o interesse individual. Essas dúvidas foram as responsáveis por essa oscilação do privado ao público no pensamento educacional moderno, especificamente no que diz respeito à educação física. Sem esquecer que essa “oscilação” sempre esteve caracterizada pelos limites da época, expressa na consideração de que o Estado deveria estar atento ao fato de que muitas famílias dependiam das potencialidades corporais infantis concretizadas e “desenvolvidas” na produção e não em uma educação física sistematizada. Com a vitória da burguesia, porém, os homens que debateram a educação no período pós-revolucionário, já certos sobre os rumos sociais a serem trilhados, puderam seguramente rechaçar qualquer intervenção pública na esfera educativa, deixando, entre outras coisas, a educação física como preocupação educativa justa, porém a ser realizada segundo as condições individuais. Constant mostra isso de forma explícita quando trata de evidenciar a diferença entre a liberdade dos antigos e dos modernos. Para ele, a interferência do poder público em um assunto tão privado, tal qual a educação (e neste caso a educação física), seria um equívoco. 83 Há que se observar que a perspectiva de que a luta travada pela burguesia havia sido encerrada e vencida e que, dali em diante, era só acreditar no progresso social oriundo do livre desenvolvimento das forças 84 individuais, começa a ser revista a partir do momento que a primeira grande crise de superprodução capitalista se instaura na Europa, com graves conseqüências sociais e políticas. A organização do movimento operário e as primeiras irrupções revolucionárias da classe trabalhadora mostravam à burguesia que um novo processo de luta estava começando. As idéias sobre a educação do corpo, sugeridas no processo de luta pela ascensão e consolidação da sociedade burguesa, são elucidativas dos novos preceitos a elas incorporados, tendo em vista o processo revolucionário que se abria e que possibilitou a criação da escola pública de ensino obrigatório e as bases sobre as quais foi criada, no interior dessa escola, a disciplina Educação Física. A Educação Física sistemas ensino nacionais e os de O século XIX para a história da educação é de extrema relevância. Afinal, é nele que os ideais educativos debatidos no interior da Revolução Francesa são efetivados nos sistemas nacionais de ensino. Obviamente, concatenados com os novos desafios enfrentados pela sociedade, sobretudo após 1848, esses ideais e a sua concretização fizeram com que o pensamento pedagógico passasse por reestruturações importantes para que fossem atendidas às diretrizes postas pelo debate mais amplo. Neste capítulo, em particular, dessas alterações no pensamento pedagógico ocorridos nesse momento, as questões relativas à educação física serão focalizadas. A delimitação desse foco, contudo, não deve secundarizar o fato de que o debate levado a cabo em torno da criação da escola pública, assim como a expansão das forças produtivas do capitalismo, foram fenômenos que se estenderam pelo mundo. Aliás, tem-se como pressuposto que é a resolução das contradições entre o 88 modo e as relações sociais de produção que relacionam, e relacionaram no século XIX, as especificidades das transformações culturais, sociais, econômicas e políticas da sociedade brasileira, com os desafios enfrentados pelo contexto europeu, principalmente aqueles que diziam respeito aos limites do capital. Tendo isso por base, verifica-se, também, que “O século XIX é particularmente importante para o entendimento da Educação Física [...]” (1994, p.9), afirma Carmen Soares em Educação Física - raízes européias e Brasil. Aliás, é tendo como pressuposto o imbricamento de ambos os contextos que a obra acima constrói uma análise sobre a história da Educação Física no século XIX, preocupandose com as “raízes européias” da disciplina no Brasil. Para alcançar tal intento, a autora busca entender como o conjunto de transformações da sociedade européia culminou em um forte processo de higienização, determinando a influência do pensamento médico sobre as questões relativas à educação e ao controle do corpo. Elenca, para isso, as influências das ciências biológicas e naturais no entendimento da corporeidade humana de forma “desenraizada” da história, o que, por sua vez, fez com que essa modalidade educativa, concebida no sentido mais amplo, atendesse a interesses estranhos à vontade de se construir uma sociedade mais justa e efetivamente democrática. Esses esclarecimentos são importantes à medida que oferecem bases para diferenciar este trabalho das relevantes análises desenvolvidas por Soares (1994). Objetivando fazer um estudo comparativo entre o pensamento educacional europeu e brasileiro no século XIX, abarcando as questões referentes à Educação Física no período de 1870 a 1915, este trabalho não busca as “raízes” da disciplina no Brasil naquele pensamento, mas sim analisa o fato de pensamentos pedagógicos semelhantes defenderem questões afins servindo a contextos particulares, porém intimamente relacionados. Além disso, focalizará somente as questões pertinentes ao esforço para se pensar a “pedagogização” das atividades físicas, verificado no embate feito por professores e políticos para se mostrar a viabilidade de se trabalhar com a educação do corpo na nascente escola pública. 89 As questões referentes à educação do corpo que tiveram lugar no bojo social, paralelas ao contexto escolar, não serão desenvolvidas por se acreditar que elas já foram tematizadas pela obra de Soares (1994). A preocupação 90 em se dirigir a análise para a questão especificamente escolar também contempla uma questão que não está totalmente ausente da referida obra, porém não é o seu escopo, possibilitando, dessa maneira, um importante espaço de análise que este capítulo pretende colaborar no seu desenvolvimento. Para tanto, ele será dividido em três momentos: no primeiro, o pensamento europeu sobre a inclusão da Educação Física na escola pública será mostrado em seu esforço de justificar a importância dessa disciplina para a efetivação das ambições educativas da própria escola pública; no segundo momento, a mesma análise será feita no contexto brasileiro. Esses dois momentos serão realizados tendo por base obras escritas no período por professores e interessados na criação da disciplina escolar de educação física; nas considerações finais, a unidade histórica do processo será refeita objetivando mostrar as formas como a concatenação entre o pensamento europeu e brasileiro, sobre a necessidade de se colocar a educação física na escola pública, em seus sucessos e fracassos, só podem ser explicados à luz do processo mundializador das contradições do capital. 1 - Pensamento educacional e educação física na europa Na escola pública, a educação corporal, retomada desde o Renascimento, converte-se em disciplina obrigatória, revestida da mesma moralidade que as demais. Se a escola era defendida como o local responsável por fomentar os valores sociais, indispensáveis ao restabelecimento da ordem perdida na crise, a educação do corpo deveria adequar-se a esse projeto. Esse esforço pode ser observado em todos os educadores que focalizaram sua atenção sobre tal problemática. A instituição da Educação Física como disciplina de ensino obrigatório vem carregada de um forte componente moral. Mais do que desenvolver as forças individuais necessárias à luta pela vida, que se trava nas relações de troca entre indivíduos livres, ela se preocupa em disciplinar esses embates. O levantamento das idéias produzidas sobre a Educação Física na Europa, no final do século XIX, demonstra que elas passam pela crítica dos procedimentos 91 desenvolvidos até então, pois estes estavam eivados de “imperfeições” como a vaidade e o egoísmo, advindos de um atletismo tido como desmensurado. Esses procedimentos deveriam ser substituídos por exercícios 92 corporais feitos “corretamente”, tendo em vista seu caráter moralizador. A Alemanha e a França destacaram-se como modelos para os países em processo de criação de seus sistemas nacionais de ensino, sobretudo o sistema alemão, tido como responsável pelo desenvolvimento econômico e pela vitória militar sobre a França em 1871. Biewend (1862), em German System of Gymnastics, destaca os princípios básicos da escola, inspirando-se no sistema alemão, porém com algumas ressalvas em relação à disciplina Educação Física. O que mais lhe chamou atenção nos métodos educativos da Alemanha foi a capacidade de construir um sistema nacional de ensino que privilegiasse o indivíduo em todas as suas dimensões. Apesar da tradição alemã nos exercícios com aparelhos, que em nada favoreceram o culto de valores mais elevados, o autor vê com bons olhos o exemplo germânico, desde que tivesse sanado os vícios individualistas que ainda restavam na sua educação corporal. A interligação entre vontade e exercícios físicos faz com que o exercício pelo exercício e o exagero do atletismo sejam criticados. Neste sentido, o autor, que é americano, mas pensa as questões da educação física com os olhos voltados para Europa, afirma que é preciso reconhecer a verdadeira coragem a ser estimulada pelos exercícios corporais: “Não apenas o corpo, mas a mente também, é feita jovem pelo exercício ginástico. Pelo exercício físico regular [...] nós criamos uma firmeza de caráter” (1862, p.7). Essas idéias, apesar de expressarem o pensamento educacional da época, encontraram oposição. Mesmo com a forte argumentação em favor da criação da disciplina Educação Física, para permitir a entrada das atividades corporais na escola, suas idéias não foram aceitas, e o educador acaba sendo acusado daquilo que denuncia e assim se defende: Por outro lado, nós achamos estranho que o Senhor Rothestein acusasse-nos de uma abstração anti-natural, dividindo o ser humano, que, ao seus olhos, forma uma indissociável unidade, em metades (Biewend, 1862, p.4). 93 Dox (1884) descreve as funções de uma “ginástica racional”. Contrariamente a Biewend, que enfrentou uma luta mais encruada para ver o reconhecimento da disciplina Educação Física no seio escolar, Dox vê com 94 satisfação o encaminhamento dado pelas autoridades francesas e pela sociedade como um todo: As autoridades governamentais e comunais compreenderam que um interesse nacional da mais alta importância comanda nosso país, feliz e próspero, de fazer grandes sacrifícios pela educação física de suas crianças (DOX, 1884, p.2). O culto “exagerado” ao corpo, às qualidades físicas, à complexidade de movimentos e às acrobacias não deveriam fazer parte da rotina escolar. Para que essas práticas ganhassem o estatuto de “escolares” ou “educativas”, deveria-se zelar pela busca da simplicidade e da naturalidade dos movimentos: “Para que a ginástica pudesse entrar na escola, as façanhas, as formas complicadas e as aplicações artísticas deveriam desaparecer e dar lugar à simplicidade e ao natural” (1884, p.25). Apesar de ser a escola o espaço que remediaria os excessos do individualismo existentes na prática social, Dox vai mais longe ao acreditar que eles devessem ser excluídos também do lado de fora dos muros escolares: “Esta exclusão, absolutamente necessária na escola, não é menos desejável nas sociedades (1884, p.36).” Angelo Mosso (1904), professor italiano, foi uma das maiores expressões na defesa da educação física na Europa durante o período estudado. Nessa época já havia estabelecimentos ou ginásios em que a prática de exercícios corporais eram realizados. Como a questão não era somente alardear a prática desses exercícios, mas enfatizar seus aspectos “educativos” , o autor ao mesmo tempo que critica a maneira a qual a juventude se entregava a esta prática, mostra que ela poderia ser conduzida para um fim superior do qual toda a sociedade se beneficiaria. É o que ele expressa quando afirma: “A harmonia nas formas, o amor da disciplina que faz uma nação poderosa, a habilidade nas armas para a guerra, [...] nobres fins que se proporiam à educação (1904, p.10).” O desenvolvimento descomunal da força, velocidade e resistência não se coadunava com as finalidades propostas à Educação Física na escola pública. Se a “nova escola” combatia o desenvolvimento exclusivo do intelecto, a “nova 95 educação física” combatia o desenvolvimento exclusivo dos músculos. Para isso, ela deveria refutar toda e qualquer manifestação do “nefasto” atletismo. Se a desconsideração pelo corpo, normalmente 96 imputada aos medievos não mais acontecia, era necessário, agora, fazer com que o culto ao indivíduo, fortalecido na época renascentista, fosse repensado. Cada um deveria se ver como parte de uma sociedade na qual tem direitos, mas sobretudo deveres. Se no momento em que as estruturas feudais se rompiam, aliviando seu peso sobre os homens, havia a exaltação do livre jogo das forças individuais na luta pela vida, na virada do século XIX ao século XX, Mosso (1904) ambicionava que essas forças fossem exercidas e “exercitadas” na escola para corrigir os efeitos de um individualismo desagregador das sociedades do século XIX. Apesar do autor italiano estar em sintonia com o pensamento educacional corrente na Europa do final do século XIX, difere em algumas considerações operacionais, porém de extrema importância dentro do debate sobre o papel do Estado na educação. Mesmo admirando a Alemanha pelo papel educativo da Educação Física, que lá enfrentara uma batalha dura contra o atletismo do “Turnen”, o autor se opõe a uma outra questão polêmica do século XIX, que diz respeito a tutela do Estado sobre a educação, mais especificamente, à implantação dessa disciplina. Ao justificar esse ponto de vista, não vacila em deixar de lado os sucessos educativos da Alemanha em afeiçoar-se às também bem sucedidas estruturas educacionais inglesa e norte-americana, mais liberais. Segundo esse autor, a regulamentação pelo Estado fere as diferenças individuais e regionais. Escrevendo na Itália, o autor é tributário das dificuldades inerentes daquele país em construir uma unidade nacional que, para ele, só poderá ser efetivada pela educação que considerasse a disciplina Educação Física. Schereber (s.d.), em Educação Doméstica, Médica e Hygienica, lutou em prol da instituição da disciplina e suas idéias foram amplamente divulgadas no Brasil. A questão central que ele debate não é diferente daquela dos No levantamento feito, não foi possível detectar a data correta da publicação deste autor. Entretanto, dada freqüência com que esse autor citado pelos seus contemporâneos, pode-se, com certeza, elencá-lo como formulador do pensamento sobre a educação física no final do século XIX e início do XX. 97 renascentistas: educar o corpo e a alma. A diferença, no entanto, se mostra na elevação dessa unidade entre corpo e alma para além do temido e amoral intelectualismo e dos exercícios corporais “materialistas” e individualistas, 98 baseados no atletismo gratuito. Também Marx (1994a), ao analisar a legislação fabril inglesa, chama atenção para a importância das atividades corporais numa concepção de educação que comungasse com os interesses da classe operária. Marx, no momento em que estudava as idéias de Owen, afirma que “brotou o germe da educação do futuro que conjugará o trabalho produtivo de todos os meninos além de uma certa idade com o ensino e a ginástica [...]” (1994, p.554) Para Marx, as reivindicações da classe operária, que deveriam culminar no internacionalismo revolucionário, não podiam negligenciar esse ponto da pauta educativa. Dessa maneira, resguardadas algumas diferenças entre os autores analisados, pode-se observar que o mote central do debate sobre a educação física no século XIX na Europa é o fato de se buscar as bases educativas dessas práticas, para que, então, já com caráter de disciplina escolar oferecida a todos, ela pudesse influir na dissolução da crise social: de forma conservadora ao enquadrar-se nos limites do pensamento educacional liberal, mas também colaborando com a subversão das relações sociais capitalistas, tal qual as propostas de Marx ao colocar a educação física no bojo das reivindicações educacionais do operariado. É essa discussão que fundamenta as diferentes opções metodológicas com as quais a Educação Física se materializaria no interior da escola pública européia. 2 - O pensamento pedagógico, a escola pública e a disciplina de Educação Física no Brasil Essa questão mais ampla também foi sentida no debate pela instituição da Educação Física no Brasil. A dimensão corporal da educação deveria ser adjetivada como educação física, diferente das práticas corporais arraigadas que, afeitas ao individualismo e ao sensualismo, eram concebidas como instrução física. Dirigida pelo e para o interesse público, a Educação Física no Brasil, assim como na Europa, deveria unir o povo brasileiro em torno da idéia de pátria, para que todos se dispusessem a trabalhar com energia para o progresso do país, integrando-o no cenário mundial. Revestida 99 dessa nova finalidade, a discussão prossegue no sentido de diferenciar atividades que são educativas das que não o são. Certo estava, somente, que qualquer prática que inibisse o desenvolvimento correto da iniciativa individual - livre do 100 individualismo - estava condenada. O cerne metodológico que expressa essa preocupação é o equilíbrio entre instruir e educar. Na prática, essa questão significa a superação do exercício pelo exercício, da força pela força, da habilidade pela habilidade, para se alcançar fins “mais elevados”. Assim como a instrução pela instrução era criticada pela sua incapacidade moralizadora, o desenvolvimento dos músculos pelos músculos não era considerado educativo. Com relação a esse aspecto, Fernando de Azevedo (1915) observa que nos clubes, associações e em algumas escolas, os exercícios do corpo eram totalmente voltados para o treinamento e desenvolvimento de capacidades acrobáticas. Advindos dos precursores da ginástica alemã, os exercícios sobre os aparelhos não podiam entrar na futura escola pública. Afinal, onde estava o seu aspecto educativo? Desde a instauração desse método no Brasil, argumenta o autor, nada de proveitoso se colheu. Pelo contrário, além de alimentar o preconceito em relação aos exercícios corporais, produziu um “bando de jovens” voltados para a vaidade de sua força, conquistada em prejuízo dos atributos intelectuais e morais e, portanto, sem utilidade social: “É preciso, pois, no ensino dar de mão à rotina. Longe das escolas o funambulismo. Só assim é que ‘abrir escolas seria fechar hospitaes.’ ” (1915, p.75) (Grafia original) A crítica aos exageros do desenvolvimento muscular por ele mesmo e ao funambulismo é ponto passível em todos os educadores que pensaram a Educação Física escolar nesse momento de transição da sociedade brasileira. Qualificada como “educativa”, a educação física integraria o conjunto das disciplinas da nova escola a ser aberta a todos os brasileiros. Sob a denominação de “Ginástica Racional”, Azevedo reproduz, também, o que ainda se esperava da “nova educação física”. O desenvolvimento concomitante dos músculos e do cérebro deveria contribuir para “que a innervação Para uma análise do caráter de funambulismo das atividades físicas, lamentando a perda deste caráter pelas preconizadas idéias sobre a Educação Física, ver BRUHNS, H. T. O corpo parceiro e o corpo adversário. Campinas: Papirus, 1993. 101 vibratil e poderosa se justaponha a uma compleição inteiriça e resistente feita para as rudes batidas do deserto: ou apparelhadas para as diuturnas lucubrações do cerebro e embates repetidos da lucta pela vida?” (1915, p.78) (Grafia original) 102 De acordo com Azevedo (1915), todos, independentemente de classe social, devem ser educados fisicamente. Se no seio da sociedade imperial houve iniciativas na institucionalização da educação física, grande parte delas comungou com uma instrução física que não ia ao encontro das novas necessidades. No novo projeto de sociedade, baseado nas trocas, nas relações de competição de quem produz e vende mais, deveria-se buscar uma educação pelo esforço, pela fadiga enquanto meio educativo e não desvirtualizador da moral ou da valorização de sentimentos egoístas prejudiciais ao “engrandecimento social”: “Deve-se educar o esforço mas não pelo esforço.” (1915, p.51) A educação física sem a educação moral, segundo Azevedo (1915), era interpretada como erro imperdoável. Primando pelo “engrossamento do músculo” e relegando o desenvolvimento moral para as “considerações cerebrinas” da pedagogia, a “velha educação física” representava o próprio atraso do Brasil. Esse atraso, também, era reputado ao exército, que era considerado o foco de maior resistência aos “progressos da pedagogia moderna”. Responsável pela aplicação de exercícios físicos voltados para o mero desenvolvimento muscular em suas escolas, essa instituição foi uma das principais propagadoras dessas formas de atividades na sociedade brasileira. Esses exercícios, sem nenhum compromisso educativo com a “integralidade” do homem, deveriam ser esquecidos em nome de outros, que respeitassem o indivíduo, que o educassem integralmente, que fossem racionais, científicos e que aproximassem a educação física da educação moral. A pedagogia do exército, segundo Azevedo (1915), era contrária à nova pedagogia. Trinta anos antes, Rui Barbosa, que rechaçara a crítica ao “materialismo” das idéias educacionais, dava aos exercícios militares um sentido diferente. No lugar de formar contingentes para o combate bélico, davalhes um caráter formativo mais amplo de civismo. A nova pedagogia, ao lançar mão dos exercícios militares, tinha em vista a formação cívica, mas não desprezava a atmosfera belicosa que reinava entre as nações de 103 expansão imperialista e que obrigava as demais a uma atitude defensiva. Por outro lado, os apelos à “nova educação física”, fartos e qualitativamente embasados no que 104 havia de mais “moderno” no período em questão, não encontrou a ressonância necessária no cotidiano escolar. A forma como Rui Barbosa entregou-se ao debate, fundamentando-se em um minucioso estudo das legislações européias, fez com que ele defendesse suas idéias como um vencedor inevitável: Felizmente, a causa da educação física está ganha, e a rotina pouco poderia retardar o seu triunfo em toda parte. Todas as competências superiores em matéria de educação e todas as legislações modelos do ensino pronunciam-se a uma voz em seu favor. (1946, p.74) Entretanto, em sua luta para fazer a sociedade de seu tempo assumir rumos condizentes com as novas necessidades, indignou-se por não ter seu projeto bem recebido: [...] todo o mundo civilizado, podemo-lo dizer, impõe hoje como necessidade vital, na organização da escola, a ginástica, ampliada aos dois sexos. A comissão, portanto, não tinha que vacilar em lhe reconhecer o que, pelas mais rigorosas das exigências racionais, toca a esse ramo do ensino. (1946, p.90) Com isso, verifica-se que somente após condições históricas mais favoráveis, dependentes do complexo relacionamento entre as especificidades do capitalismo brasileiro e a totalidade desse modo de produção, é que a força necessária para a realização dessa disciplina escolar e a importância educativa das atividades corporais racional e educativamente oferecida para todos, seriam concretamente reconhecidas. Apontamentos Finais Pensar a relação entre o pensamento educacional europeu e o brasileiro no século XIX é uma oportunidade valiosa para se verificar a forma complexa com que as análises em Educação Física devem buscar o imbricamento dessa modalidade educativa com as necessidades e os limites do capitalismo. Este trabalho buscou colaborar nesse processo ao verificar que tanto a Europa, quanto o Brasil estavam empenhados em mostrar a validade social das atividades 105 físicas para a solvência de crises mais amplas, que atingiam os contextos diferenciadamente, porém com uma inegável e mútua influência. No que diz respeito ao pensamento educacional 106 sobre a educação física no século XIX, as duas realidades focadas neste capítulo buscavam evidenciar a necessidade de se “pedagogizar” as atividades corporais, livrando-as das influências socialmente deletérias do atletismo, do funambulismo e, também, da própria aversão a “qualquer” esforço físico. Essas questões específicas da Educação Física, levadas a cabo no interior dos debates educacionais sobre a criação da escola pública, evidenciam o inescapável relacionamento entre a educação do corpo e suas atividades com os debates que diziam respeito à conservação ou à transformação da sociedade, mediados pela discussão em torno da criação escola pública. No caso europeu, a luta entre trabalho e capital, fez com que ambos defendessem a inclusão da Educação Física na escola, desde que as atividades fossem livres de qualquer “ranço” individualista que, no fim, mais prejudicavam a consecução dos objetivos a elas propostos. No Brasil, os dilemas evidenciados pelas transformações no século XIX e a forma como eles foram sendo enfrentados, também colocou a Educação Física escolar na ordem do dia. A análise mostrou, todavia, que o “desânimo” dos defensores brasileiros dessa causa era claro, restando a esses professores a incompreensão sobre o fato de idéias tão “racionais” não encontrarem ressonância. A Educação Física escolar no Brasil era defendida de forma clara e atinada com o que havia de mais moderno no que tange ao pensamento educacional. Apesar de enfrentar praticamente os mesmos argumentos educacionais contrários, por exemplo, que não impediram franceses e alemães de criar a disciplina em seus sistemas nacionais de ensino, a realidade brasileira “esperou” os anos 30 para começar a concretizar tanto a sua educação pública, como, no interior dela, a prática “pedagógica” de atividades físicas. Isso evidencia que em nível mundial, os impasses em torno ou dos limites ou das possibilidades do capitalismo, tocam diferenciadamente o mundo escolar. É no entendimento desses impasses que a capacidade de se realizar as reformas nas estruturas educacionais deve ser buscada, possibilitando, por sua vez, a apreensão da capacidade dessas alterações influírem, ou não, nos rumos sociais. 107 A Educação Física nas atas do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro (1884) O século XIX é o momento em que as idéias de pensadores como Montaigne (1984), Locke (1986) e Rousseau (1992), que primavam sobre a necessidade de bem educar fisicamente para o sucesso da educação moral e intelectual, começaram a ser alvos de preocupação pública e tornaram-se traços inseparáveis dos debates sobre a criação dos Sistemas Nacionais de Ensino. Fernando de Azevedo, em 1915, afirmava que o Renascimento Cultural tinha sido um fenômeno fora de hora. Dito de outro modo seriam as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX que veriam as idéias dos filósofos da modernidade terem um resultado efetivo. O testemunho de Fernando de Azevedo é indicativo que o Brasil também fez parte desses debates e constatações. Tanto a criação da escola pública quanto a criação da disciplina escolar de Educação Física foram temáticas sempre recorrentes e mutuamente dependentes. Um outro sinal relevante que evidencia a forma 112 intensa como a educação passou a ser alvo de debates e análises, foi a existência de congressos, seminários e exposições sobre a problemática educativa que começaram a ter lugar na segunda metade do século XIX. Bastos (2006), ao analisar esse contexto e esses eventos, afirma que A segunda metade do século XIX, no Brasil, foi profícua na realização de eventos para promover a educação. Pretendendo integrar-se às nações desenvolvidas, o Estado brasileiro faz da educação um grande espetáculo [...]. (BASTOS, 2006, p.116) Apontando motivos também referentes ao incremento do mercado editorial (p.117), Bastos (2006) vê uma “espetacularização” da questão educativa a partir da segunda metade do século XIX, justamente pelo número de eventos e iniciativas de se debater publicamente a questão educativa. Se a tese da “educação como espetáculo” no século XIX merece maiores discussões, não há como negar, porém, que as conferências e os congressos representam um repositório extremamente rico para o estudo da história da educação no Brasil. Nesse sentido, nos colocamos em total concordância com Bastos, quando ela afirma: Essas conferências são um valioso registro das idéias que agitaram o ambiente intelectual brasileiro após 1870. Expressam um amplo debate travado sobre as questões educacionais: método de ensino, matérias de ensino, co-educação, educação das mulheres, educação e trabalho, escolas mistas, ensino primário, ensino secundário, escola normal, universidade gratuidade e obrigatoriedade do ensino, liberdade de ensino, magistério etc. (2006, p.118) Para se ter uma idéia da amplitude das inquietações, além de preceitos fundamentais sobre a educação pública que serão analisados neste trabalho, encontramos também reformulações específicas que deveriam abarcar todos os aspectos da educação, dentre elas a estrutura física dos prédios escolares: O edificio deve comprehender: o vestibulo, a secretaria, o vestiario, salas de trabalho, pateo coberto para os exercicios physicos, refeitorio, dormitorio, latrinas 113 para os educandos e para as professoras. (LEAL apud ACTAS, 1884, p.7) Neste estudo, particularmente, nos ocuparemos das idéias sobre a educação física nas Actas e Pareceres do 114 Congresso de Instrucção no Rio de Janeiro (1884). O congresso, inicialmente marcado para 1883, acabou não acontecendo, como mostra Bastos (2006), pela justificativa da falta de recursos. Entretanto, os pareceres e as atas enviados para o evento foram publicados em 1884. Dessa maneira, o objetivo deste trabalho é analisar a forma como a questão da educação física fora vista nos pareceres reunidos e que seriam debatidos no evento. Para tanto, dividimos o texto em dois momentos: no primeiro, abordaremos os debates educacionais que tocam a educação física em nível mundial na segunda metade do século XIX para, na segunda parte, descrever e analisar as idéias sobre a educação física que estão presentes nos documentos redigidos por aqueles que participariam do referido evento. Para apresentação dessas idéias, utilizaremos, ao mesmo tempo, um procedimento descritivo e um analítico. Justificamos ladear a análise com a descrição, pois acreditamos que as idéias contidas nesses pareceres expressam de forma importante o tom das discussões sobre a disciplina no final do século, o que justificaria uma maior atenção por parte dos estudiosos da história da educação e da educação física em relação a elas. 1 - A educação física na crise do capital: da instrução para a educação física Uma das conseqüências educacionais da crise do capitalismo nos século XIX é o surgimento do debate e da criação dos Sistemas Nacionais de Ensino (LEONEL, 1994). A exposição cabal das contradições do capitalismo fez com que o pensamento educacional moderno, farto em recomendações sobre o bem educar, tivesse seus fins reestruturados. Se Montaigne, Locke e Rousseau elaboraram suas análises educacionais para nobres e proprietários, os analistas do século XIX se debruçaram sobre a educação popular. As idéias sobre a educação física acompanharam o sentido assumido pelos debates educativos de forma mais geral. Verificamos que o debate sobre a criação da disciplina escolar de Educação Física veio como uma componente de 115 grande relevância para a formação do cidadão (HEROLD JR, 2004). Nesse sentido, as idéias educacionais erigidas na modernidade só seriam contempladas no interior 116 da nascente escola pública se elas colaborassem com a finalidade precípua de construir as bases para a conservação das relações sociais, abaladas pela contestação revolucionária da classe trabalhadora. O parâmetro dessas discussões era o arcabouço intelectual do positivismo que, ao diagnosticar o surgimento do estágio positivo no capitalismo do século XIX, atribuiu a origem dos problemas à incapacidade individual de viver em sociedade, propondo a educação como solução para as crises. Abundam nos estudos sobre a Educação Física desse momento, as justificativas mais variadas que criticam as práticas até então feitas. Elas eram vistas como fonte de vícios e exageros funambulescos, militares e atléticos. No lugar dessas atividades, os educadores propunham que as atividades corporais, para terem seu lugar na escola, deveriam ser “educativas”, entendendo eles, com isso, a capacidade dessas atividades em formar os cidadãos responsáveis para usufruírem e protegerem uma sociedade que atingira seu “estágio positivo”. Um dos exemplos desse tipo de consideração é encontrado em Dox (1884), quando diz que a educação física “[...] inculca os princípios de ordem, inspira nobres sentimentos e ensina a servir a humanidade em serviço da pátria” (p.2). Na realidade brasileira, os impactos das crises do capitalismo na Europa se fizeram sentir intensamente não só nas reestruturações políticas, econômicas e sociais, mas no acirramento dos debates sobre a questão educativa. Mesmo com os discursos inflamados sobre a relevância da educação na recuperação do “atraso” brasileiro e na construção de um país livre de uma história marcada pela colonização, pelo trabalho escravo e pela instabilidade política, Cury (1996) mostra que aqueles que defendiam a presença do Estado na garantia de uma estrutura educacional que, nas palavras de Veríssimo (1985), construísse uma “nação gigante”, foram derrotados. A falta de força das idéias sobre o papel do Estado na condução da educação brasileira pode ser percebida nos debates sobre a criação da disciplina de Educação Física no país. Da mesma forma como ocorrera com a escola 117 pública de forma geral, mesmo a concordância sobre a relevância dessa modalidade educativa não resultara em medidas concretas para sua efetivação. Se assumirmos a criação dos Sistemas Nacionais de Ensino e o surgimento 118 da disciplina de Educação Física como fatos interligados, entenderemos que tal como na Europa, o caráter educativo das atividades corporais só seria reconhecido quando a escola pública fosse criada. É nesse contexto de fervilhamento e, ao mesmo tempo, de reconhecimento das suas limitações perante uma sociedade “atrasada”, que foram redigidos os pareceres do Congresso de Instrução. Os temas que seriam abordados no evento tocavam a quase universalidade de questões suscitadas pelas investigações educacionais em nível mundial. O tom dos pareceres é indicativo da relevância depositada na educação para o contorno dos problemas e incertezas de uma sociedade que se via em transição. Uma das conseqüências diretas dessa crença na educação como panacéia das mazelas sociais foi pensá-la como pública e obrigatória. A obrigatoriedade da educação foi reconhecida pelos educadores participantes do congresso como um dos pilares das sociedades industriais modernas. A educação, esparramada até o maior grau e ao maior número de pessoas, seria a responsável para fomentar o espírito de pátria, aumentando a força dos “braços” e das idéias morais. Nessa empreitada, Silvio Romero (1884) toma como exemplo a Prússia, que, no seu entendimento, mostrava ao mundo uma sociedade pujante, tendo superado pela educação as limitações impostas pela falta de unidade nacional e pela estrutura econômica basicamente feudal: O principio da obrigatoriedade do ensino é uma das conquistas mais esplendidas da civilização moderna. [...] As nações modernas, com a descoberta e desbravamento de regiões inteiras desconhecidas, com a função de patrias novas, com o augmento pasmoso da população, com a decrepitude das velhas organizações militares, com o advento das industrias, viram surgir um grande numero de problemas urgentes, inilludiveis e comprehenderam que na luta pela existencia os seus concidadãos não teriam de então em diante a contar só com o braço; seria necessario contar antes e acima de tudo com a idéia. D’ahi a alta conta em que foi tida a instrucção; d’ahi como arma de aperfeiçoamenio e de luta progressiva para as classes populares - a obrigatoriedade do ensino elementar. - A nação illustre 119 que se póde considerar o grande exemplo em materia de educação intellectual, a Prussia - é a grande mestra do ensino obrigatório. (apud ACTAS, 1884, p.1) Discutiam-se os meios, as formas, as justificativas, 120 as necessidades, enfim, tudo vinha no sentido de negar a prática e a ineficiência da educação de então, em favor de uma nova educação pautada por princípios diferentes e, principalmente, acessível a toda população. As formas pelas quais esse ideal seria concretizado eram iguais a dos países desenvolvidos: Os meios praticos de tornar effectiva a obrigatoriedade do ensino são de tres ordens: a sua gratuidade aos pobres, a diffusão de escolas por todo o paiz, especialmente nos centros mais populosos, e a imposição de penas aos pais, tutores, protectores, etc, que não mandarem á escola seus filhos, pupilos, protegidos, etc. (ROMERO apud ACTAS, 1884, p.2) As reflexões dos autores serão citadas com o número da página do texto de cada autor e serão referenciadas como nome do autor apud ACTAS. A localização dos autores nas Atas e Pareceres do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro (1884) não apresenta qualquer problema. O material utilizado para a pesquisa encontra-se micro-filmado na Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. 2 - Corpo e educação nos pareceres do Congresso de Instrução A Educação Física foi largamente analisada nos pareceres do Congresso de Instrução. Para dar conta da amplitude de idéias contidas nos pareceres e que versaram especificamente sobre o corpo e sua educação, dividiremos o conteúdo em cinco temáticas que, no nosso entendimento foram as mais recorrentes nas reflexões dos pareceristas. 2.1 - A obrigatoriedade da Educação Física José Manoel Garcia defende a Educação Física, colocando-a em igual importância com a educação intelectual e moral, afirmando, também, que para a realização deste tipo de educação integral, deveria ser considerada a responsabilidade do “governo” que, até aquele momento, sobre a égide do império, era visto como omisso e responsável pelos números que atestavam a não disseminação dessa modalidade educativa no país. Isso mostra o quanto a idéia de educação pública, obrigatória, gratuita e integral, rondava a cabeça dos educadores da época, que clamavam para a sua realização: 121 122 Educar os sentidos e a razão, e inculcar ás massas populares noções exactas e precisas a respeito do mundo material que as cerca e de mundo moral em que vivem, tal deve ser o fim de todo o systema racional de ensino primario, cujos effeitos sobre a saude, sobre a intelligencia e sobre o coração não podem deixar de merecer o mais serio cuidado do governo, a quem incumbe regulal-o e distribuil-o. (GARCIA apud ACTAS, 1884, p.6) João Pedro Aquino chega a nomear a Educação Física como a questão das questões: De todas as questões de pedagogia moderna, aquella que mais interesse e solicitude deve merecer da parte das familias brazileiras, e sobretudo do governo imperial, é sem duvida alguma a Educação Physica. (apud ACTAS, 1884, p.1) 2.2 - A importância da Educação Física Outro participante cujas considerações versaram sobre a Educação Física, foi Januário dos Santos Sabino. Sem aprofundar questões metodológicas, tratou de colocar a importância da Educação Física como capaz de desenvolver um grande número de qualidades físicas, morais e intelectuais: Mas a aquisição de taes qualidades não está dependente do ensino de disciplina alguma, e sim de exercicios apropriados a desenvolver gradualmente os orgãos do corpo, e de cuidados incessantes destinado a manter nelles a maior regularidade. Cumpre, pois, empregar os exercicios gymnasticos e os cuidados hygienicos, unicos meios capazes de obtel-as. (SABINO apud ACTAS, 1884, p.2) Sabino também elaborou um conjunto de conhecimentos e práticas que deveriam ser trabalhadas nas três modalidades de educação: moral, intelectual e física, sempre frisando a interdependência entre elas: No entanto, já porque algumas das disciplinas são a base para a acquisição de novas, como a leitura e a escripta, já porque outras apenas devem ser principiadas nesta escola, como a historia e geographia, nos parece que deverão constituir o ensino elementar as seguintes que vão distribuidas pelos tres ramos de educacão: Educação moral: Deveres dos homens. Educação intellectual: leitura, escripta, elementos da 123 lingua nacional, noções essenciaes de cousas, principios elementares de arithmetica, desenho linear, historia e geographia do Brazil. Educação physica: Exercicios gymnasticos, canto, trabalhos manuaes, cuidados higienicos. (SABINO apud ACTAS, p.4-5) 124 A educação física não deveria se fixar somente nos cuidados higiênicos. Estes fariam parte das preocupações que, entretanto, eram mais largas e eram relacionadas com as funções da escola como um todo: A insufficiencia do programma adoptado em nossas escolas, a inefficacia dos methodos nellas seguidos, são questões que por evidentes não precisam ser mais discutidas. Escolas que abandonam a educação physica, limitando--a a cuidados hygienicos; escolas que em sua organização não attendem nem ao numero nem a idade dos alumnos; escolas que não facultam ao professor os meios necessarios ao emprego de methodos mais racionaes, não podem preencher os altos fins a que se destinam. (SABINO apud ACTAS, 1884, p.1) Já, Aquino, sobre a integração entre a Educação Física e a educação mais geral, afirma que: Baseada na physiologia e na hygiene, intimamente ligada com a educação moral e intellectual, ella offerece uma serie tão grande de assumptos importantes, que é muito difficil, senão impossivel, tratar de todos elles minuciosamente em um simples parecer, como este, que tenho a honra de apresentar. (AQUINO apud ACTAS, 1884, s.p.) Para Antonio Estevam da Costa e Cunha, a necessidade da consideração entre o físico e o psíquico como fenômenos intimamente ligados é uma afirmação que não merecia discussão, tal era a clareza com que ela se manifestava em todos os fenômenos sociais. É a assunção da impossibilidade de se desenvolver um domínio sem atingir o outro, de se prejudicar um sem prejudicar também o outro, enfim, é a íntima relação que, para o sucesso educativo, deveria ser buscada, realizada e utilizada na construção de um homem educado física, intelectual e moralmente: Os dous ramos geraes da educação, o physico e psychico, são entre si tão concatenados que nenhuma educação será completa e irracional sem o cultivo parallelo e simultaneo de ambos; entretanto, considerando-se 125 que não ha intelligencia lucida nem vontade firme sem ter por base a sanidade do corpo, concebe-se logo que a educação physica é o esteio em que se firma a outra, e conseguintemente o elemento primordial de toda a educação. (CUNHA apud ACTAS, 1884, s. p.) 126 Contrariamente àqueles que trabalhavam com a instrução do físico nos colégios guiados pelo culto à força e ao pragmatismo imediato da educação militarizada, Cunha encaminha uma proposta que se coadunava com as finalidades da nova escola. Mantendo suas particularidades metodológicas, a Educação Física se pautaria pela educação da vontade em favor do trabalho, do civismo e do progresso: É tambem grande elemento moral, porque a sensibilidade dos nervos opéra immensamente sobre os costumes; é um poderoso elemento de civilizaçao, porque só com o cerebro tranquilo se podem desempenhar convenientemente os innumeros encargos sociaes; é, finalmente, o elemento fundamental da educação infantil, adolescente e madura, porque o cerebro debilitado enfraquece a memoria, o gosto de aprender o amor ao trabalho, e vai traçando paralella á vida uma linha melancolica do abatimento moral. (CUNHA apud ACTAS, 1884, p.4) Nessa importante missão educativa, e Educação Física teria um papel primordial atestado pela natureza do ser humano que, a priori, passou a ser vista como de total interação entre as dimensões físicas e psíquicas. É baseada nessa natureza que a Educação Física teria condições de se tornar peça chave no processo educativo, ao contrário do que vinha acontecendo. É a consideração da natureza como forma de redimir ou os equívocos da educação física, ou a sua total inexistência e inutilidade no século XIX: Formar um são temperamento na puericia, augmentar-lhe as forças, favorecer-lhe o crescimento, desenvolver-lhe a destreza e agilidade, endurecela até certo ponto contra a fadiga, as intemperies, a privação momentanea das primeiras necessidades da vida, habitual-a ao exercicio e ao trabalho, - taes são os fins da educação physica. (CUNHA apud ACTAS, 1884, p.1) Essas afirmações endossavam de maneira inegável que tanto o corpo quanto o intelecto e a moral deveriam 127 ser educados pari passu, influenciando-se mutuamente para construir um homem diferente do homem com a “cabeça cheia” de conhecimentos inúteis para a prática social e com o corpo doente e obliterador das forças 128 volitivas. Já não era possível negar, reflete Cunha, que Assim como o nosso ser incorporeo não póde permanecer sem pensar, assim o nosso ser material não póde passar sem mover-se, e este facto, que muito verdadeiro para os homens, sobe de ponto e de importancia, tratando-se da meninice. (s.p.) Esta contemplação das relações entre o físico e o psíquico, além de trazer inegáveis benefícios à funcionalidade educativa, vinha também como fonte explicativa do próprio caos da corrente educação. No diaa-dia dos colégios, professores que submetiam seus alunos a um regime totalmente “antinatural” e “anti-educativo”, sofriam de maneira considerável a conseqüência destes procedimentos. A indisciplina, a imoralidade, o ambiente de guerra que predominava nesses colégios, antes de serem fatos oriundos da própria estrutura do aluno, eram agora vistos pelos novos educadores, como um sinal inegável de que a velha educação não satisfazia as necessidades de quem freqüentava suas escolas. Ora, mesmo com a ciência já afirmando que o corpo deveria entrar e ocupar um lugar proeminente na educação, os professores presos a antigas noções, faziam seus pupilos ficarem imóveis por longos períodos em suas cadeiras, fora de qualquer padrão que atendesse à necessidade de corpos em desenvolvimento. Esse conjunto de fatores práticos, só poderia resultar em uma escola que, no entender de vários dos pareceristas, nada ensinava, que não educava e que tornava o corpo doente e sem utilidade, fazendo com que os alunos criassem, para sua defesa, formas de se movimentar e fugir dessas instruções e, conseqüentemente, fazendo com que os professores os punissem de forma severa: A tendencia que esta tem para oppor-se á quietação, é uma força latente que a natureza faz actuar em seu organismo com o fim de auxiliar o desentorpecimento, o desembaraço, o crescimento harmonico e simultaneo de todas as suas faculdades physicas e não physicas, e a natureza não consente que se infrinjam impunemente suas leis. Si quizermos sopear aquella força, condemnando a puericia á immobiliadade, a natureza vinga-se, vinga-se também a meninada. (CUNHA apud ACTAS, 1884, s.p.) 129 Por conta disso, a tão freqüente prática de castigos corporais era, ao mesmo tempo, uma causa e um resultado daquilo que Fernando de Azevedo, em 1915, chamou de “considerações cerebrinas da pedagogia”. Isso 130 já não tinha passado despercebido pelos pareceristas do Congresso de Instrucção, tal é o caso de Leal, ao afirmar que: Longe, para bem longe das conquistas do ensino a idéa dos castigos corporaes, só proprios do instincto maligno de brutos disfarçados em pedagogos. Homens desnaturados, escravos da materia e indignos de qualquer posição social, [...] applaudem a efficacia do emprego da força onde só devem influir a razão e a prudencia. Que anachronico e barbaro expediente em pura perda! Que esforço contraproducente! Querer penetrar n’alma, arrancar-lhe ou incutir-lhe uma idéa, movel-a para o bem, como quem excava terras, extrahe dentes ou fustiga quadrúpedes! (LEAL apud ACTAS, 1884, p.7) 2.3 - A nova metodologia da educação física e as críticas as antigas formas de educação corporal Joaquim Menezes de Vieira coloca de maneira muito contundente que a substituição da “ginástica normal” pelos “jogos livres”, longe de ser uma mera substituição de uma atividade por outra, tem um sentido muito mais profundo por expressar a nova pedagogia em relação aos fins da educação. Uma “simples” decisão como a escolha entre um jogo ou uma ginástica era reveladora de preocupações de grande importância para com as forças físicas, morais e intelectuais dos homens para uma sociedade em processo de profundas transformações. A preocupação de Vieira com a falta de ânimo, a indolência e apatia da população escolar, é esclarecedora da preocupação mais geral da sociedade brasileira com o trabalho, que era discutido e passava a ser visto como dependente da vontade e da disposição de cada indivíduo: É dolorosissimo o quadro, que apresenta a nossa população escolar: um batalhão de crianças decrepitas, caminhando certeiro ao encontro da fatal tubercolose. Que differença entre as nossas crianças cacheticas ou nevropathicas e as rosas baies da Inglaterra! É o nosso clima [...] Não, que entre nós vivem inglezinhos tão vivos e robustos como lá. É a hygiene, são os exercicios religiosamente executados pelos inglezes e adaptados a todas as edades e profissões. Desde o jardim de crianças 131 132 até a universidade, nos salões mais aristocraticos, cada dia, cada estação tem o seu passatempo physico especial. A gymnastica entre nós ainda é considerada materia facultativa, uma cousa de luxo, que apenas figura nos programmas dos estabelecimentos officiaes do ensino secundario. Si o governo, em sua sabedoria, rebaixando deste modo a gymnastica, nenhuma influencia tivesse sobre os estabelecimentos particulares, nada teriamos a dizer e esperariamos que mais tarde viesse, como já tem vindo, fazendo-nos o seu poenitet.Mas o governo nenhuma importancia lhe dando, induz muitos pais em erro gravissimo. (VIEIRA apud ACTAS 1884, p.5) Evidenciando o caráter de crítica dirigida aos procedimentos até então adotados nos colégios em relação à Educação Física que, além dos aspectos morais e intelectuais já apontados, também em nada contribuía para a saúde dos alunos, Leal ressaltou as características a serem afastadas e os novos procedimentos para que a Educação Física tivesse seu acesso na escola, garantindo na prática nacional, aquilo que cientistas e educadores do momento já haviam provado na teoria e prática de outros países: Reclamo para nossas escolas a gymnastica obrigatoria, feita nos intervallos do estudo, e nem ha por que contestar sua utilidade e necessidade hygienica. Não quero essa gymnastica de saltos forçados, esse acrobatismo no trapezio; mas a gymnastica elementar e racional, constando de exercicios physiologicamente bem dirigidos, pondo em movimentos todos os grupos dos musculos do corpo, conforme o methodo salutar de Spiess-Neggeler, e que nossos professores aprenderão por si mesmos, ou com explicações mui summarias. (LEAL, 1884, p.5) A crítica aos exageros do desenvolvimento do músculo por ele mesmo e ao funambulismo eram pontos passíveis em todos os educadores que pensaram a educação física no interior do Congresso de Instrução. Podemos observar que, por trás dessas críticas metodológicas, estava a superação de toda uma formação de organização social que já não mais atendia às necessidades de reprodução social. No que diz respeito à Educação Física, o remédio para este estado seria a racionalidade, um método “científico” e o adjetivo de educativa, para que ela deixasse de ser encarada como um mero exercício desenvolvedor de músculos e obliterador da moral, do intelecto e da saúde, entendida esta como um estado harmônico do organismo 133 e não a formação de um homem cujo único atributo seria a força física: 134 Uma hora, meia hora que seja em cada dia, dessa gymnastica physiologica, aproveita muito mais do que tres horas de carreiras, de pulos, de lutas de braço, sem direcção e sem methodo. Ella combate poderosamente a influencia malefica das más attitudes, da posição assentada por muito tempo, e previne as enfermidades que della resultam. (LEAL apud ACTAS, 1884, p.5) Na base metodológica que concretizaria esse tipo de Educação Física, apoiada pela razão e coadunada à educação moral e intelectual, estariam outras atividades, diferentes das que tinham sido desenvolvidas nos colégios até então, tais como: conversas moraes e instructivas, jogos, brinquedos, canticos, exercicios manuaes de construcção, de modelação, de recorte, de picado, de trançado, de desenho [...]. (LEAL apud ACTAS, 1884, p.3) Aquino colaborou com a atribuição de valor educativo às atividades do corpo evidenciando que deveria ser rechaçada a ginástica alemã. Segundo seu ponto de vista, diferentemente do de Silvio Romero, a Alemanha, apesar de construir seus instrumentos para imitar situações naturais, acabou por enveredar em um exagerado culto à performance, pedagogicamente inviável para atender às novas exigências da Educação Física. Assim ele pondera: A gymnastica com apparelhos fixos, taes como barra fixa, barras parallelas, mastros, trapezios e argolas, está hoje condemnada por quasi todos os educadores modernos, como servindo mais para acrobacia do que para pedagogia. Outros exercicios de não menos utilidade são: a natação, a equitação, a esgrima e a remação; os quaes não podem ser aqui descriptos por falta de tempo. (AQUINO, apud ACTAS, 1884, p.5) Nesse momento, quando as preocupações com a individualização do ensino se acirraram, Garcia aponta que a educação física, por estar inserida neste movimento pedagógico, deveria buscar também esta caracterização individualizante. Por outro lado, as dificuldades práticas de tempo e espaço, colocavam limitações para que isso se efetivasse. Era para isso que o responsável pelas sessões de ginástica deveria ter um olhar acurado, pois, por ser necessário desenvolver as aulas em grupos, deveria 135 organizá-los de maneira que fossem agrupados alunos de igual condição fisiológica para que coletivamente a utilidade individual da ginástica se realizasse. Esse ponto é uma forte manifestação de luta contra as velhas 136 concepções que, ao se afeiçoarem aos antigos exageros, não consideravam a individualidade do aluno e passavam por cima de qualquer análise que possibilitasse uma atuação educativa. Quanto a isso complementa o autor: No ensino da gymnastica, em que o methodo póde ser collectivo ou individual, o pouco tempo e o numero de alumnos obrigam o professor áquelle. Competelhe esforçar-se por evitar os excessos, de que podem sobrevir grandes inconvenientes. Assim, sendo muitos os discipulos, deverá dividil-os em classes, segundo suas idades, forças e temperamentos, e designar a cada uma o aparelho e os exercicios convenientes, vigiando que ninguem faça mais do que as forças lhe permitirem. A seu prudente arbitrio fica a ordem desses exercicios, porquanto os disciplinares e elementares, os passos rithmicos, as marchas, os jogos e sobretudo o uso do portico e seus apparelhos, excepto para o sexo feminino, dependem do desenvolvimento e do estado de saude de cada alumno. (GARCIA apud ACTAS, 1884, p.7) Sendo a natureza uma fonte de grande inspiração para a busca de procedimentos metodológicos, deveria se ver nas atividades feitas pelas crianças aquelas que poderiam ser úteis enquanto instrumentos educativos. No caso da Educação Física, não deveria a escola ver nas brincadeiras infantis, um mero passatempo. Dentro do contexto educativo, as brincadeiras serviriam de um rico meio para o professor colocar em atividades as forças intelectuais e morais dos alunos, em que estes, ao mesmo tempo, o fariam com prazer e satisfação, construindo uma série de qualidades que, de acordo com os velhos preconceitos, só seriam passíveis de serem feitos na base da carrranca, dos castigos e da memória. Quanto a isso, Cunha afirma: As brincadeiras dos meninos, diz um (Dumonchel), são uma gymnastica natural, que prefiro, quanto ao desenvolvimento physico e á saude da infancia, a todos os processos gymnasticos possiveis. Ha na liberdade do folguedo uma liberdade acção que faz com os meninos exerçam seus musculos de todos os modos e desenvolvam tambem por todas as maneiras os orgãos locomotores. (CUNHA apud ACTAS, 1884, p.13) 137 Essa consideração da natureza como fonte de justificativas e procedimentos para a Educação Física, redundava, em alguns pareceristas, na retomada do pensamento de Rousseau. Aquino raciocina que a 138 diferença entre o homem selvagem de Rousseau e o homem moderno era que este não teria mais o contato íntimo que aquele tinha com a natureza. Por isso, aquele era fisicamente mais apto. Entretanto, socialmente o homem moderno criou forças que o tornavam capaz de vencer qualquer batalha com o homem selvagem, não devido a sua força física, mas sim aos instrumentos criados pela inteligência. Outro diferenciador seria o fato de o homem nascido com a modernidade ter tido a necessidade de criar uma estrutura moral e intelectual que o possibilitasse vencer as “lutas” entre competências pela vida. Dessa maneira, a Educação Física seria um meio de recriar uma situação que não era mais hegemônica: o uso da força, para que esta atuasse na solidificação das necessidades que realmente eram necessárias para o sucesso do homem do século XIX: a inteligência e o regramento moral. Todavia, quanto à relação entre homem selvagem, homem moderno e educação física, afirma Aquino: A maior prova desta verdade está em que o homem selvagem é physicamente mais apto do que o homem civilisado.E, si nas lutas contra os civilisados nem sempre vencem os selvagens, é por que estes não possuem armas de guerra iguaes aos daquelles; e tambem porque os selvagens não têm aquella moralidade e instrucção que, revestindo a consciencia do homem de uma certa superioridade, olhe dá ao mesmo tempo toda a coragem de que elle necessita para resistir aos perigos. (AQUINO apud ACTAS, 1884, s.p.) 2.4 - A Educação Física da infância Como conseqüência dessa retomada das idéias educacionais de Rousseau, notamos que os pareceres do Congresso de Instrução (1884) permitem visualizar a direção das reformas educacionais, que deveriam ser iniciadas pelas preocupações concernentes à educação infantil. Das vinte e nove questões propostas, é a oitava questão do leque proposto, que versava sobre “A educação physica nos jardins da infância, nas escolas primárias e collégios (p.5)”, em que essa consideração aparece de forma clara. As novas idéias sobre a educação física, juntamente com as críticas mais 139 veementes aos antigos processos adotados foram abordadas de diferentes ângulos. Vieira, por exemplo, centrou suas reflexões em torno da educação da infância, dando o tom do novo discurso que se tornaria hegemônico: 140 Para que o jardim de infancia constitua a base da escola primaria e proveja a insufficiencia material e espiritual das familias, cumpre que organize-se conforme o methodo de Fröebel; cultive racionalmente as forças physicas, intellectuaes e moraes. (apud ACTAS, 1884, p.3) Joaquim Teixeira de Macedo, além de primar pelo aspecto formativo da educação física em sua relação para a formação do temperamento da criança, colocoua como responsável pelo desenvolvimento de qualidades necessárias para o aprendizado intelectual a ser conseguido nas séries subseqüentes do ensino: A educação physica, diz um notavel escriptor, tem um duplo fim: por um lado fortificar o corpo, formar o temperamento da criança, collocal-a em condições hygienicas favoravel ao seu desenvolvimento; e por outro fazel-a adquirir desde logo agilidade, destresa da mão, promptidão e segurança de movimentos: qualidades que precisas para todos, são mais particularmente necessarias aos alumnos das escolas primarias que em sua maioria se destinam a profissões manuaes. (MACEDO apud ACTAS, 1884, s.p.) 2.5 - A educação física das mulheres Os pareceres também contemplaram a educação física das mulheres. Para Cunha, o ponto crucial da luta das novas necessidades educativas era a educação física feminina. Ela deveria ser capaz de acelerar e realizar a construção de uma raça mais forte física e moralmente. Para isso, a escola, grande fonte dos preconceitos de aversão em relação aos exercícios físicos por parte das mulheres, deveria mudar esses conceitos, e ver na mulher aquela responsável pela educação doméstica dos futuros brasileiros, que com mães já educadas fisicamente, teriam já em casa os cuidados de uma “educadora” que desde cedo devotaria forte respeito e cuidado com a educação física Além da defesa da educação física da criança e da mulher, também encontramos nos pareceres reflexões sobre a educação física do cego. Um dos pareceristas que o faz é Feliciano Pinheiro de Bittencourt, ao afirmar que “Assim pois, si a educação moral e intellectual devem merecer todo o cuidado todo o zelo, não seja desprezada a educação physica do cego, que traz como consequencia a transformação do seu organismo e o melhoramento da sua saude” ( apud ACTAS, 1884, p.4). 141 de suas crianças. Interessante notar que neste processo de discussão, o autor leva a questão educativa até as últimas conseqüências, estendendo-a a todas instâncias sociais, partindo da escola, para chegar a sociedade e vice-versa. 142 Afirma Cunha, quanto à educação das mulheres: É da mulher brazileira, ó meus compatriotas, que ha de provir ou a nossa força ou a nossa eterna fraqueza. Para oppôr uma barrera a esta, só ha o meio da educação da mulher infante; organizemos, pois, quanto antes, o programma de educacão e exijamos o estricto cumprimento delas. (CUNHA apud ACTAS, 1884, p.18) Contrapõem, ainda o autor, alguns dos preconceitos mais correntes em sua época: Os exercicios physicos, a gymnastica especial e simples não prejudicam o decoro, a pudicia, o recato da menina, como muita gente suppõe, antes aumentam-lhe o donaire e a gentileza, dando-lhe graça, saude e vigor. (CUNHA apud ACTAS, 1884, p.18) Finalmente, na citação abaixo, ele resume de forma contundente, todas suas considerações sobre Educação Física, sobre a necessidade desta, sobre os preconceitos e sobre a importância de sua aplicação para a mulher: A reforma de ensino em nossa terra deve começar por prestar-se a maior attenção á educação da mulher, porque é meio caminho andado para se conseguir a do homem, e porque é incalculavel a serie de males de ordem phisica e moral que resulta para a sociedade, para a familia e para a propria mulher da falta desta educação. (CUNHA apud ACTAS, 1884, p.18) 2.6 – Críticas à resistência sofrida pelas novas idéias sobre a importância da Educação Física O fato de serem variados os argumentos a favor da Educação Física e de eles surgirem como resultados dos avanços pedagógicos e “científicos” da época, não implicou uma confiança inquebrantável por parte dos analistas que participariam do congresso. Em vários deles havia, mesclada à clareza e à inquestionabilidade de suas idéias, a sensação de que defendiam algo que ainda demoraria muito para ser aceito e concretizado pela sociedade brasileira. As novas idéias, no entender de Antonio Costa e Cunha (1884), encontravam resistência no arraigado preconceito advindo de uma sociedade 143 acostumada com o trabalho escravo e sem iniciativa. A resistência de amplos setores da sociedade, sobretudo, dos que eram favorecidos com as dificuldades das reformas, deixou um rastro de pessimismo nos defensores das novas 144 idéias: E si alguem clama em favor della, é o mesmo que prégar no deserto, perde seu tempo e seu latim; e si algum estadista patriota intenta dar-lhe o impulso e direcção, surge-lhe pela frente a rhetorica tribunicia com as suas phantasmagorias, salteam-n’o os interesses desencontrados e os demais obices que se levantam nesta terra contra tudo que útil, bom ou grande, até que aquelle cidadão fatigado, enfastiado, desgostoso ou ceda ou retroceda. (CUNHA apud ACTAS, 1884, p.2) Qualificada como “educativa”, a Educação Física integraria o conjunto das disciplinas da nova escola a ser aberta a todos os brasileiros. Entretanto, como diz Cunha, apesar de serem idéias já correntes e fáceis de serem aceitas, a reforma no sistema educacional de qualidade educativa, e não apenas instrutiva, parecia um sonho distante: Sem embargo disto, porém, e apezar de tão intuitivas serem estas verdades, a educação physica (ou melhor, toda a educação) tem sido sempre para nós objecto de grande indifferença e não menor incuria. Fallamos muito de instrucção publica, e esta, boa ou soffrivel, certo já a possuimos; mas, de educação publica, que é muito mais necessaria do que aquella, e o unico elemento capaz de formar o caracter de uma nação, dessa não temos noticia. (CUNHA apud ACTAS, 1884, p.2) Atento para as especificidades brasileiras, Joaquim Teixeira de Macedo, via grande importância nos teóricos da educação que floresceram no século XIX. Entretanto, apesar das idéias, Macedo notava que a prática pedagógica não as realizava, preocupando-o e fazendo-o pensar em formas de utilizar tais idéias indiscutivelmente nobres, mas que, se mal compreendidas, ou ecoavam no vazio, ou tornar-se-iam em mais uma fonte legitimadora dos preconceitos, dos equívocos e dos já citados exageros da educação física, em especial: Antes de adaptar ás circunstancias do nosso paiz o systema de Froebel, é necessario conhecer bem a historia da pedagogia desde Comenius até a época actual; cumpre saber que elle sahiu de anteriores systemas, e como sahiu, não se tornando possivel a sua 145 146 applicação senão pelos esforços successivos de homens universalmente venerados, como o mesmo Comenius, Rousseau, Basedow, Pestalozzim J. Paulo Richter e Fichte. É uma historia que até a propria instituidora ou directora de cada estabelecimento deve aprender, porque, dizem os especialistas de primeira plaina, só assim poderá ella presidir ao desenvolvimento physico e moral das crianças confiadas aos seus cuidaddos, e terá consciencia clara do que vai fazer. (MACEDO apud ACTAS, 1884, p.7) Apontamentos Finais As idéias apresentadas e as reflexões entabuladas neste trabalho tiveram como um de seus objetivos mostrar a relevância das idéias contidas nas Atas e Pareceres do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro. Para isso, buscamos apoio nas idéias de Bastos (2006), quando ela afirma: As idéias que circularam no Brasil, através das conferências pedagógicas, das conferências populares, do Congresso de Instrução, da exposição pedagógica e escolar, do museu escolar e pedagógico, dos impressos, faziam parte de um movimento internacional, no qual a elite intelectual brasileira procurava integrar- se e vivenciá-lo na sua realidade social. Ao mesmo tempo que participavam do Estado, favorecendo a sua manutenção, esses intelectuais preconizavam transformações nas estruturas sociais, na perspectiva de que a educação equivalia a “progresso”. (BASTOS, 2006, p.130) A importância dessa constatação, que também ficou evidenciada na análise que fizemos sobre a questão da educação física, não secundariza, por outro lado, o fato de elas terem enfrentado extremas dificuldades para sua realização na sociedade brasileira do século XIX. A falta dos recursos que financiaram o evento, que por si só já problematiza a tese da “espetacularização da educação” por parte do governo que Bastos (2006) propõe, não deve, porém, ser vista como um mero problema administrativo ou burocrático: Schelbauer (1997) mostra que a distância entre as idéias pedagógicas e a sua realização é passível de ser entendida na concatenação entre o geral e o específico das lutas pedagógicas e históricas, impossibilitando que conceitos e reformas, das quais ninguém duvidava a importância, encontrassem espaços e “recursos” para sua realização. 147 O mesmo pode ser dito das idéias que circularam nas Atas e Pareceres do Congresso e que versaram sobre a Educação Física. A importância da Educação Física, a constatação de sua relação com as outras esferas 148 educativas, a defesa de uma nova concepção metodológica mais racional e individualizada, a sua necessidade para a criança e a mulher, não foram suficientes para vencer as resistências práticas contra sua implementação. Isso pode ser visto como um problema que não só o Congresso discutiria, mas que já tomava conta da sociedade e que continuaria a incomodar teóricos e políticos. Mesmo com Fernando de Azevedo (1915) assumindo que chegara a hora de um real despertar sobre a Educação Física; mesmo com Rui Barbosa (1946) tomando como certa e inquestionável as idéias sobre a relevância da Educação Física, encontramos nos dois autores constantes lamentos sobre o fato dessas reflexões não encontrarem na sociedade brasileira o eco esperado. Ao analisarmos essas questões como esforços para a modernização da sociedade brasileira no século XIX, podemos afirmar: Segundo Rui Barbosa, “a ginástica, em quase todos os países, estende-se a ambos os sexos; e, em muitos, obrigatoriamente para um e para o outro”. Tratavase, pois de uma lógica clara e simples: fazer o que o mundo inteiro estava fazendo sem perder tempo com discussões. Entretanto, a história não tem a mesma “exatidão” da lógica matemática e a sociedade brasileira teria que esperar pelos acontecimentos das décadas seguintes para reconhecer essas “verdades” que primavam sobre o caráter socialmente “educativo” das atividades físicas oferecidas a toda sociedade sob a tutela do Estado. (HEROLD JR, 2005, p.253) Acreditamos, assim, que a relevância dos pareceres sobre a Educação Física, contidos nos anais do Congresso de Instrução do Rio de Janeiro, deve ser vista como uma manifestação da complexidade que o analista deve considerar ao estudar historicamente as idéias educacionais. Se história da educação não é feita somente de grandes pensadores, há que se ter claro que a análise dos limites e dos fracassos de idéias “das quais ninguém discorda”, constitui-se em um grande campo de estudos para enriquecermos o entendimento histórico das estruturas, dos atores e do cotidiano escolar em um determinado momento. Com este estudo, pretendemos mostrar que esse é o caso da Educação Física, apesar 149 de ela só ter tido seu processo de efetivação iniciado a partir da década de 30, mesmo com o grande conjunto de eminentes políticos, juristas e educadores que já a defendiam no final do século XIX. 150 Corpo, Educação Física e o trabalho no capitalismo industrial (1860-1920) O esforço de se estabelecer as mediações entre as transformações no mundo do trabalho e as instituições e práticas educativas na história deve considerar o fato de que a categoria trabalho, nos últimos anos, vem sofrendo as mais variadas críticas quanto ao seu potencial heurístico. Os teóricos defensores do “fim do trabalho” e, conseqüentemente, de sua não-centralidade veem sua utilização nas diferentes áreas do conhecimento como um resquício de procedimentos ultrapassados, economicistas e teleológicos. Conseqüentemente, as práticas culturais, sociais, artísticas, bem como o campo das idéias, passam a ser estudados desenraizados de qualquer forma de objetividade, sendo assumidos como construções discursivas, passíveis de serem construídas e desconstruídas pela infinita capacidade de leitura do “texto social”. Nas mais variadas áreas do conhecimento, esse fenômeno tem sua presença marcante, passível de ser visto 154 pelo surgimento de “novos” procedimentos metodológicos e de objetos de estudo. Observamos que um dos tópicos que começam a ser discutidos fortemente a partir das décadas de 80 e 90, no esteio do debate metodológico acima, é a questão do corpo e da sua educação. Na sociologia, na antropologia, na filosofia e na história multiplicamse estudos sobre essa temática. Eagleton (1993) diz que os estudos do corpo combinam com a desconfiança pós-moderna em relação às metanarrativas, resultando disso um apego à subjetividade e às idiossincrasias. O interessante é observar que, ao mesmo tempo em que o corpo é absorvido como temática recorrente nas mais variadas áreas, há no interior do mesmo processo e das mesmas concepções um conjunto de idéias, atinadas às apologias da “sociedade do conhecimento” que veem na materialidade corporal o grande empecilho para a circulação da informação e da inteligência. O corpo, nesse sentido, dissolver-se-ia ou em bits ou em genes. Disso tudo, um dos resultados constatáveis é que a questão da corporeidade e da educação deixam de ser estudadas pelas mudanças no mundo do trabalho, vistas demasiadamente distantes uma da outra, ou como desnecessárias em um momento em que o trabalho teria se tornado inteligente, e o corpo ou uma dificuldade frente à virtualidade e à velocidade da informação, ou um assunto a ser estudado somente nas dimensões da cultura, da arte e da psicologia. O número de limites dessas afirmações deve colocar para os interessados nas questões do corpo, da educação e do trabalho, condições para que essa relação seja problematizada, evidenciando o potencial explicativo mútuo que o corpo, educação e trabalho possuem entre si, dissipando as análises que ideologicamente enxergam nos atuais reordenamentos do capital um processo de humanização do capital. Não negamos que na atualidade a pesquisa da relação entre corpo, trabalho e educação adquire nuances e características que dificultam sua apreensão crítica e cuidadosa. Entretanto, é justamente essa dificuldade que evidencia que essas relações são prementes de serem abordadas, importância esta justificada, inclusive, pela 155 sua visibilidade menor, se comparada a outros momentos da história. Neste capítulo, queremos chamar a atenção para essa importância do trabalho oferecendo um anteparo 156 analítico à questão, que surge na atualidade pelos detratores dos estudos sobre as transformações nas práticas produtivas e do numeroso grupo de apologetas da “sociedade do conhecimento” de um lado, e de estudiosos que veem no corpo o referencial para se compreender as questões que afligem a sociedade e a construção de subjetividades, de outro. Com isso, o objetivo deste estudo é analisar a relação entre corpo, trabalho e educação no limiar entre o século XIX e XX, levantando possibilidades e advertências sobre as mediações existentes entre as transformações no capitalismo e as questões debatidas na esfera educativa concernentes à educação corporal e à educação física. Para tanto, dividiremos o capítulo em três partes: na primeira exporemos os cuidados no trato com a categoria trabalho que a possibilita ser utilizada como uma ferramenta para os estudos históricos sobre a relação entre corpo, trabalho e educação. Na segunda parte, verificaremos como as temáticas do corpo e trabalho se relacionam nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX; na terceira, tendo por base as análises precedentes, mostraremos a viabilidade e os cuidados da utilização das transformações do mundo do trabalho para estudar as questões concernentes à Educação Física, enfatizando as proximidades, os distanciamentos e as mediações necessárias entre as crises e reordenamentos do modo de produção capitalista e as idéias educacionais sobre a educação física, enfatizando a necessidade se evitar tanto uma análise mecânica e economicista, bem como contornar as tão recorrentes análises que enxergam as práticas educacionais como desenraizadas das transformações nas práticas produtivas e das discussões sobre o mundo do trabalho. Para isso, utilizaremos obras que, redigidas no momento em estudo, pensaram a Educação Física no interior das problemáticas que afligiram o contexto em que foram produzidas. 1 - A relevância da categoria trabalho para a história da educação física De uma maneira geral, na história, nas ciências humanas e na filosofia, existe uma tendência muito presente 157 em se levantar os limites das bases metodológicas do materialismo histórico para a produção e a reflexão sobre o conhecimento. A positividade desse posicionamento crítico em relação à forma como as idéias de Marx foram utilizadas, 158 é evidenciar a limitação de determinadas abordagens que, ao apropriarem-se de forma descontextualizada da relação entre infra e superestrutura, acabaram incorrendo em posturas que Marx e Engels já criticavam em Hegel, Feuerbach, Proudhon e Dühring. Kosik (1970) adverte que a abordagem materialista das questões que surgem na sociedade deve considerar a totalidade de produção da existência social como produção não somente como um “fator econômico”, mas sim como o conjunto de relações sociais estabelecidas pelos homens para a produção da existência social. Nisso, a materialidade envolve não somente os cálculos dos economistas, mas as mediações estabelecidas entre essa produção e as produções humanas nas esferas políticas, sociais, educacionais, artísticas e filosóficas. Ou seja, em vários momentos da obra de Marx, mostra Vasquez (1990), o materialismo histórico não se apresenta como método que deduz uma obra artística, por exemplo, automaticamente das transformações que ocorrem na fábrica, mas sim como procedimento que as enxerga em suas múltiplas mediações, reconhecendo sua ocorrência em espaços e tempos diferenciados, em um processo só possível de ser determinado levando-se em conta tanto as especificidades de um contexto, quanto a generalidade do movimento do capital. Nesse sentido, o desenvolvimento das reflexões de Lukács (1979, 2004), sobre a centralidade da categoria trabalho é fundamental para os objetivos deste estudo. Na sua Ontologia, o filósofo húngaro oferece uma reflexão em que trabalho é colocado como ponto fulcral da reflexão histórica e sociológica, sem, por sua vez, incorrer nas limitações e simplificações que os críticos enxergam em Marx, mas que competem muito mais às apreensões mecânicas e economicistas já repudiadas pelo autor de O Capital. Lukács mostra que é pelo trabalho que se processa o salto da natureza para a sociedade, pois é pelo trabalho que vários elementos dispersos se reúnem, libertando o homem de forma relativa das imposições e dos ritmos naturais. Quando o homem, a partir de suas condições concretas (que dizem respeito às suas capacidades e 159 ao meio em que encontra) tem condições de idear sua atividade, inicia-se, então, um processo extremamente complexo de imbricamento entre natureza e cultura, culminando nas mais variadas sociedades humanas. 160 No interior dessa diversidade, adverte também Lukács, é que se formam organizações sociais que, devido às suas especificidades, conseguem enxergar ou atribuir ao trabalho maior ou menor importância sobre o conjunto social. Assim, mesmo estando sempre o trabalho como o elemento deflagrador e sustentador das sociedades em toda a história, não podemos buscar nele, automática e inadvertidamente, as explicações para a enormidade de manifestações humanas ligadas à cultura e às representações. Para isso, há que se atentar para a necessidade de estudar as devidas mediações que proporcionem transparência em cada ato, em cada pensamento e em cada manifestação cultural dos indivíduos e grupos, bem como ao fato de eles viverem em uma sociedade que luta pela ou contra transformação nas formas de trabalho. No interior dessas reflexões, é preciso atentar para a diferença, já exposta por Marx, entre trabalho concreto e trabalho abstrato. Também explorada por Lukács (1979, 2004) e por Kosik (1970), essa diferenciação é relevante, pois coloca a possibilidade de utilizarmos o trabalho como ponto de partida para a criação e desenvolvimento da sociedade e das capacidades humanas na história (trabalho concreto), ao mesmo tempo em que cria condições para que não esqueçamos que em cada modo de produção, o trabalho está subsumido às exigências históricas da classe que detém o controle dos meios do processo produtivo. No caso da sociedade capitalista, a divisão da sociedade em classes implica o atrelamento inescapável do relacionamento entre homem e natureza pelo trabalho, às exigências da produção de mais-valia, tornando-se trabalho abstrato. No que tange à história da educação do corpo e suas relações com as transformações no mundo do trabalho, a centralidade do trabalho concebida por Marx e desenvolvida por Lukács, colocam como base a própria existência e a necessidade da temática. Na atualidade, os analistas, ao conceberem as relações entre corpo, trabalho e educação baseados em um entendimento limitado do mundo do trabalho, acabam por sucumbir às mistificações que giram em torno do 161 epíteto “sociedade do conhecimento”, concluindo, assim que a análise do trabalho, hoje, demandaria uma atenção mais próxima das questões pertinentes à inteligência e não ao corpo e a sua educação. Essa assunção acaba 162 por silenciar a investigação da questão historicamente. (HEROLD JR, 2006) Uma análise em alguns trabalhos na área de Trabalho e Educação (OLIVEIRA, 2003; PINTO, 1991) e na área de Educação Física (BRACHT, 1992; NOZAKI, 1999; SILVA, 1996) evidencia um entendimento da relação entre corpo e trabalho baseado na dicotomia entre corpo e inteligência: o trabalho que demanda processos de tomada de decisão, é visto como o trabalho inteligente e descorporificado; e o trabalho que possui demanda energética e de movimentos é corporal, destituído de cognição. Para os analistas preocupados com a questão da educação do corpo, esse tipo de observação redunda na recusa peremptória da utilização do trabalho como ponto de partida e chegada das questões educativas, afinal, hoje, o trabalho dispensaria o corpo. Além disso, vale observar, esses estudiosos dão a entender que a relação só valeria a pena ser estudada no passado (BRACHT, 1992). Entretanto, uma concepção limitada das relações entre corpo e trabalho na atualidade, inviabiliza também uma compreensão crítica e cuidadosa da história. Em termos historiográficos, o resultado mais visível desse limite da análise histórica proporcionado pelos problemas na consideração das questões hodiernas que envolvem o trabalho é a idéia de que a educação física e corporal foram sempre pensadas nos momentos em que as práticas produtivas exigiam mais a força e a resistência do trabalhador. A visão de que a educação física “formava a mão-de-obra” pelas suas atividades é o resultado, assim, de um determinado entendimento do mundo do trabalho baseado em fundamentos mecanicistas e economicistas que, por sua vez, sustentam a recorrente afirmação de que o mundo do trabalho, hoje, não oferece nem respostas e nem questões. De uma forma geral, há o entendimento de que as relações entre corpo, educação e trabalho na história se dão de forma a endossar uma pressão unilateral das atividades de trabalho sobre o mundo da educação. Assim, as importantes análises de Soares (1994) e Castellani Filho (1988) defendem que a relação entre Educação Física e capitalismo na história, dá-se pelo atrelamento da disciplina às necessidades de formação de mão-de-obra, em 163 um processo em as questões metodológicas acompanham linearmente os avanços técnicos do mundo produtivo. Uma conseqüência desse entendimento limitado sobre as relações entre corpo, trabalho e educação, pode ser visualizada 164 em Gleyse (1995), que por estudar as transformações do trabalho limitadamente, afirma uma “cognomorfose” nas práticas produtivas, observando o mesmo resultado nos estudos em Educação Física pelo fato de elas defenderem uma abordagem psicologizante ou cognitivista do corpo. Para problematizarmos essas afirmações, evidenciaremos que mesmo a proximidade entre as questões do corpo, da educação e do trabalho no final do século XIX e início do século XX deve ser analisada com cuidado para evitar conclusões sobre a história da referida relação que forneçam bases para as críticas à centralidade do trabalho tanto no passado, quando na atualidade. 2 - As transformações e as discussões em torno do trabalho e seus impactos no entendimento sobre a corporeidade Rabinbach (1992), ao analisar o surgimento e o desenvolvimento do taylorismo nos EUA e das ciências do trabalho na Europa, conclui pela presença do “human- motor” como baliza de análise das questões concernentes às exigências feitas pelo trabalho industrial ao operário. Central para a investigação do “human motor” foi a preocupação que os analistas tiveram em relação do corpo do trabalhador. Interessante observar que a base desse processo que atrelou trabalho e corpo no século XIX foi, além das transformações do capitalismo e a iminência dos questionamentos feitos pelo movimento operário, o desenvolvimento das pesquisas de Helmholtz que possibilitou entender que o “trabalho” está ligado à transformação de energia que ocorre em toda natureza, desde uma célula, passando pelo corpo humano, chegando ao movimento dos astros. A luta de classes que explicitava as contradições do capital manifestava-se, de um lado, na tentativa de Taylor em ampliar, cada vez mais, os processos exploratórios da gerência que primavam pela vigilância da correção e da velocidade na execução das atividades, e de outro, dos estudos baseados nas ciências do trabalho européias, que ao encontrarem um padrão “científico” para a análise do trabalho, esforçava-se por encontrar um ponto de aproveitamento do trabalho corporal que fosse “racional”, 165 além do qual, assim como aquém, acarretaria um mau-uso por excesso ou falta da mão-de-obra operária. Rabinbach (1992), nesse sentido, afirma: 166 Até o final de 1910 a ciência do trabalho convenceu-se de que nem o capital nem o trabalho poderiam perceber, precisamente, que o gasto de energia transcendia a ideologia. Se o capital tinha de ser ensinado a não ver o trabalho como inimigo da produtividade e do lucro, o trabalho devia ser ensinado que o trabalho do corpo poderia se conformar mais às leis da energia e menos aos imperativos da política. (RABINBACH, 1992, p.236) A tentativa dos investigadores da ciência do trabalho era buscar uma abordagem que resolvesse a luta de classes que no final do século XIX e início do século XX apresentava-se em toda sua clareza. Para tanto, esses analistas enxergaram o corpo trabalhador como o centro das investigações que permitiriam, depois de desvendadas suas leis, uma exploração “correta” que possibilitasse pedir ao corpo o que ele poderia “naturalmente” providenciar, contornando as justificativas pela falta de empenho nas rotinas trabalho. Uma conseqüência dessa maneira de encarar o trabalho colocando o corpo do trabalhador como o pilar das reflexões, foi a crítica feita pelos cientistas do trabalho ao fato de se querer exaltar os trabalhadores com discursos de base moral. Procedimento recorrente a ser ultrapassado, ele acabava por secundarizar o lado científico do trabalho baseado no “human motor”. Para Marey, Lahy e Mosso, a partir do momento em que se elaborasse um panorama explicativo amplo do funcionamento corporal no trabalho, ele aconteceria naturalmente, sem sofrimento por parte do trabalhador, acalmando, assim, a fúria revolucionária que girava em torno de questões como redução do tempo de trabalho, legislação contra acidentes, aumentos de salários etc. Por mais que essa visão estivesse enraizada nas lutas e no contexto social e político do século XIX e início do XX, fica claro o fato de ela mostrar e esconder a realidade que analisava. A eclosão da primeira grande guerra evidenciou, contrariamente aos “dados científicos” dos estudiosos, que o corpo humano poderia ser explorado de forma nunca antes imaginada para fins que nada tinham de “naturais”. Por conta disso, 167 entre as precauções da ciência do trabalho européia e as fórmulas de exploração maximizada de Taylor, a prática produtiva capitalista, historicamente, privilegiou a segunda, sem querer isso dizer que as pesquisas dos 168 especialistas deixassem de existir e que, academicamente, sempre enfatizaram o caráter limitado, equivocado e “ultrapassado” das idéias e práticas de Taylor. Entretanto, a “prática” capitalista construída nas bases da aplicação da ciência no desenvolvimento das forças produtivas, recusou os pressupostos das ciências que advogavam uma “exploração racional”, e adotou o cronômetro taylorista como o que havia de mais “avançado”. Na tensão entre tayloristas e cientistas europeus o que estava em discussão era a centralidade do corpo e do trabalho para a reflexão das questões pertinentes à solução dos conflitos sociais que aconteciam. Esta centralidade, entretanto, não significa que as questões educativas foram impactadas de forma direta e sem mediações. O debate em torno das possibilidades exploratórias do trabalho em relação ao corpo e o limites naturais deste em relação a esta exploração evidencia que as nuances do processo devem ser respeitadas para captar as particularidades dos debates em torno da relevância da educação do corpo que, no contexto do século XIX e início do século XX, aconteceram tendo por centro a criação dos Sistemas Nacionais de Ensino e, dentro deles, da disciplina de Educação Física. O caráter universal desse debate pode ser visualizado nas conseqüências que o desenvolvimento do industrialismo e a crise do capital no século XIX tiveram em outros países, como o Brasil. É esse caráter universalista do capital que proporcionou também que os debates educacionais em torno da educação do corpo e da disciplina escolar de Educação Física também acontecem de forma semelhante na Europa e no Brasil. A clareza da presença e das características desse debate é fundamental para que possamos colocar algumas condições para concatenar a universalidade do debate, as especificidades educacionais e históricas de cada realidade e suas relações com as transformações mais avançadas na forma de produção da sociedade. 3 - Trabalho e educação: as mediações entre as práticas produtivas e as discussões sobre a educação física no século XIX A investigação dos debates sobre a criação dos Sistemas Nacionais de Ensino no século XIX e nas primeiras 169 décadas do século XIX é de extrema relevância para problematizarmos esse tipo de entendimento que tem como ponto de partida e chegada a simplificação e a desvalorização do mundo do trabalho para se pensar as 170 questões educativas pertinentes ao corpo. A questão da prática da educação corporal na nascente escola pública fora um ponto debatido de maneira universal, tocando Europa, Estados Unidos, Japão, Brasil, entre outros. Se não podemos negar que a questão da educação do corpo já vinha sendo largamente debatida, é o século XIX e as primeiras décadas do século XX que fazem desse debate um ponto fulcral nas questões educacionais. Ilustrativo dessa relevância é Azevedo (1915), que, ao comparar o seu momento e a Renascença, afirma: Nem Muller errava, quando, referindo-se à educação physica em plena civilização européa affirmava há alguns anoos que a humanidade em geral ainda não conseguiu acabar de vez com os preconceitos da edade medieval. Sob este ponto de vista, accrescenta elle no seu estylo pittoresco, “a renascença póde ser comparada a um accordar fora de horas; o doemnte despertou cêdo de mais, e depois de se espreguiçar tornou a deitar-se e a adormecer para o outro lado. O somno durou até aos primeiros annos do sec. XIX, época em que começa a acordar d’este profundo lethargo, graças a energia e ao trabalho de homens como Basedow, Jan, Nactigall, Ling e tantos outros que lhe seguiram o exemplo. (AZEVEDO, 1915, p.138) O mesmo entendimento possui Veríssimo, quando diz: Entre nós, quando se fala em educação física quase se subentendem os exercícios ginásticos e, principalmente, os chamados acrobáticos. Não é esta a verdadeira e utilíssima compreensão dessa forma de educação que, não obstante preconizada desde Montaigne, Locke, J.J. Rousseau, Hufeland e Fröebel, apenas agora começa a sair do domínio da especulação para o da prática. Como deixa manifesto a citada passagem de Spencer, a educação física não se limita apenas, como vulgarmente se supõe, aos exercícios físicos, mas abrange a Higiene, e considerada esta, segunda a excelente definição de Littré e Robi, como o conjunto de “regras a seguir na escolha dos meios convenientes para entreter a ação normal dos órgãos nas diversas idades, constituições, condições da vida e profissões. (VERÍSSIMO, 1985, p.82) 171 O surgimento da problemática em torno da Educação Física fez com que a reformulação de seus métodos e a adequação em relação aos novos fins, fossem questões debatidas em vários países. O interessante 172 a observar é que a educação do corpo na escola fora tematizada sempre tendo em vista os fins educativos que buscavam cimentar o conjunto de atitudes necessárias para a manutenção das relações sociais, secundarizando os resultados a serem obtidos em termos motores e fisiológicos. Esses nada mais eram do que meios para se atingir a um fim maior. Sobre isso, expressa Dox: As autoridades governamentais e comunais compreenderam que um interesse nacional da mais alta importância comanda nosso país, feliz e próspero, de fazer grandes sacrifícios pela educação física de suas crianças.[...] ela inculca os princípios de ordem, inspira nobres sentimentos e aprende a servir a humanidade em serviço da pátria. (DOX, 1884, p.2) Base para essa defesa em prol da Educação Física é o diagnóstico dos envolvidos na questão no momento de crise da sociedade, que era vista como a manifestação de um rebaixamento do nível moral. Biewend, nesse sentido diz que: Grande e séria é a necessidade de forte ajuda; apenas vigorosas e decididas medidas podem prevenir a moralidade jovem, exposta como está, por todos os lados por contradições e disputas em todos setores da vida, a muitas desastrosas vacilações e enganosas aberrações. (BIEWEND, 1862, s.p.) A importância da Educação Física e a sua relação com as questões pertinentes ao desenvolvimento moral e intelectual demandadas pelas crises do capital no século XIX parte do diagnóstico concernente as mudanças da sociedade. Um dos passos mais interessantes dessa reflexão é a constatação de a educação do corpo se faz cada vez mais necessária justamente no momento em a que “cultura do espírito” é mais presente, se comparada com o passado. É o que afirma Schreber: A elevação gradual, embora vagarosa, do nivel da cultura do espirito reclama tambem, como condição fundamental do bom resultado dos seus progressos ulteriores, um gráu de cultura corporal muito mais elevado, e consequentemente harmonico e equivalente ao gráu de cultura do espirito. É evidente que, para que as flores e os fructos da arvore da vida do espirito possam adquirir força e vigor, é necessário que as 173 raizes, de que brotam, se achem sempre em um estado de desenvolvimento regular e de conveniente energia. (SCHEREBER, s.d., p.11, grafia original) No mesmo sentido vai Fernando de Azevedo 174 (1915) que, ao justificar a importância da “ginástica racional”, defende: [...] exactamente por causa da mutação de nossas tendencias sociaes, e da proeminência actual do cérebro na realização do fim individual e collectivo, a importância destes exercicios subiu de ponto, tornando-se uma necessidade palpitante e indeclinável. (p.32) O autor de Cultura Brasileira explora de forma ainda mais próxima essa questão e, após constatar o enciclopedismo e a “generalização do regimen sedentario” (p.34), assim como ao analisar sua realidade comparando-a com a dos gregos e a importância que davam às atividades do corpo, afirma: Não nos illudamos. A lucta persiste ainda, não sob o ponto de vista internacional, não a lucta pelas armas, mas a incruenta lucta inter-individual, a lucta dos espíritos e das competências, sem treguas nem quartel e que é hoje a fórma por excelência da acção; e o cérebro precisa mais do músculo do que o próprio braço incumbido de um grande esforço. (AZEVEDO, 1915, p.34) A clareza com que essas idéias eram defendidas dão a entender que a “causa da educação física”(Barbosa 1946) era um consenso. Rabinbach (1992) observa que mesmo na Europa a questão era alvo de debates, apesar dos avanços das ciências fisiológicas que mostram que as atividades do corpo não eram: […] distribuição desorganizada e difusa de exaustão e dor, mas um rigoroso e uniforme conjunto de atividades baseadas no emprego calculado e repetido de energia física. Como Lagrange sucintamente coloca, “o que é higiênico no exercício não é o esforço, mas o trabalho.”. (RABINBACH, 1992, p.224) No Brasil, a questão apresenta ares ainda mais interessantes, afinal, se na Europa o debate educacional em torno da Escola Pública e da disciplina escolar de Educação Física tinha apresentado resultados palpáveis apesar da celeuma, aqui, a clareza e a obviedade das idéias não foram suficientes para fazer com que nem a 175 escola pública e, muito menos a Educação Física, fizessem parte da realidade educacional. Para exemplificar, temos Rui Barbosa que afirma: 176 Felizmente, a causa da educação física está ganha, e a rotina pouco poderia retardar o seu triunfo em toda parte. Todas as competências superiores em matéria de educação e todas as legislações modelos do ensino pronunciam-se a uma voz em seu favor (1946, p.74). Entretanto, o jurista também reconhece a necessidade de defender as idéias em favor da Educação Física contra a pecha de materialismo e, mais a frente, lamenta: todo o mundo civilizado, podemo-lo dizer, impõe hoje como necessidade vital, na organização da escola, a ginástica, ampliada aos dois sexos. A comissão, portanto, não tinha que vacilar em lhe reconhecer o que, pelas mais rigorosas das exigências racionais, toca a esse ramo do ensino .(1946, p.90) Assim, o que temos é a importância da Educação Física sendo defendida como evidente tanto na Europa quanto no Brasil, importância essa sempre justificada não pela aplicação “concreta” da resistência, da força e da velocidade em situações específicas, como as de trabalho. Os autores deixam claro que a Educação Física se justifica para o fomento de características que não dizem respeito ao “corpo”, ao fisiológico, mas sim pelo caráter “educativo” que as atividades corporais possam ter. Além disso, mesmo com essa importância, vemos que essas idéias sofreram resistências, tanto na Europa do capitalismo industrial e questionado pelo movimento operário, assim como no Brasil que lutava para se viabilizar no contexto da crise do escravismo e na premência de instaurar o “trabalho livre”. Frente a peculiaridades tão diversas e às vezes opostas, acreditamos poder levantar algumas bases para podermos defender a importância da categoria trabalho na construção de um entendimento da história da Educação Física no século XIX e início do XX que dê conta de concatenar as distâncias e as proximidades entre os discursos e as práticas educacionais, assim como os debates em torno da questão da educação corpo. Para isso, é preciso ter claro, então, que historiograficamente, a consideração descuidada da categoria trabalho apresenta um resultado interessante: negar a existência da relação entre corpo, educação e trabalho na atualidade, implica assumir essa relação de maneira simplista e linearmente na história, tal qual fazem 177 Castellani Filho (1988) Soares (1994) e Gleyse (1995), quando enxergam paralelismos entre a fábrica e a escola. Por outro lado, ao assumirmos a categoria trabalho nas acepções de Marx (1994a) e Lukács (1979, 2004), 178 observamos que entre a fábrica e as práticas educacionais sempre há relação, havendo a necessidade de se construir mediações específicas de cada momento. Tendo por base esse referencial, observamos que no século XIX e início do XX, a relação entre corpo, trabalho e educação se dava de forma importante, porém ricamente mediada em que os discursos sobre o trabalho e sobre a educação se interpenetram, se influenciam, mas, mesmo assim, apresentam especificidades e às vezes oposições: o apelo à moralização da Educação Física em um momento em que o corpo era visto como “naturalmente” gerador de energia e trabalho, bem como o fato da “inquestionável” Educação Física sofrer oposições na Europa e ser “recusada” pela sociedade brasileira, apesar da força e da coerência de seus defensores. Com isso, a educação do corpo está relacionada ao trabalho, sem querer isso dizer que ela formava diretamente para as atividades produtivas: na Europa, ela formava para a vida em sociedade em que o trabalho humano é explorado para a produção de mais- valia, sendo essa característica a base para entendermos o fato das estruturas legais brasileiras contemplarem de forma efetiva essa modalidade educativa somente a partir da década de 30. Concluindo e endossando as possibilidades para a utilização da categoria trabalho para a história da educação física A complexificação do entendimento que se tem da categoria trabalho é uma atitude fundamental para fomentar mais estudos sobre a questão do corpo e da sua educação, tanto na atualidade quanto na história. A falta de um entendimento mais acurado sobre os relacionamentos e as mediações entre as transformações nas formas de trabalho e as discussões sobre a corporeidade, impede a busca dessas relações na história, da mesma maneira que a busca desse relacionamento na história, sem considerar criticamente o papel do trabalho na construção da sociedade e sua instrumentalização diferenciada em cada modo de produção na história, inviabiliza que na atualidade os estudos sobre o corpo vejam no trabalho um ponto deflagrador de pesquisas e questionamentos. 179 Partindo, então, do entendimento que Marx e Lukács apresentam sobre a dialética entre trabalho concreto e trabalho abstrato, constatamos que esse entendimento não está presente de forma ampla nos 180 analistas hodiernos do mundo do trabalho, que acabam por decretar o “fim dos empregos”, o “adeus ao trabalho” e o surgimento da “sociedade do conhecimento”, em momento que o corpo, na análise de Gil (1997), ”tornou-se o significante despótico que resolverá tudo, desde o declínio da cultura ocidental, até aos menores conflitos intra-individuais” (p.14). Isso sem esquecer a visão da corporeidade como algo a ser superado por passar ela a ser vista como “demasiadamente real” para a circulação virtual da informação (SIBÍLIA 2002). As mesmas observações podem ser vistas quando a relação entre corpo, trabalho e educação é estabelecida na história. Por conta disso, nos debruçamos sobre esse relacionamento no final do século XIX e início do XX para verificar a necessidade de proceder de maneira a conquistar um duplo objetivo: a) evidenciar que as relações entre corpo, trabalho e educação possuem mediações complexas no período em foco; e b) explicitar que essa análise histórica só pode ser feita a partir do momento em que um entendimento hodierno mais crítico das transformações hodiernas do trabalho se dê. Podemos defender que as relações entre corpo, trabalho e educação no período analisado, apesar de serem mais facilmente visualizadas se comparadas com as da atualidade, não devem ser vistas de forma a buscar um paralelismo entre questões concernentes ao trabalho e à Educação Física. Rabinbach (1992) mostra que o corpo assumiu uma importância central nos debates sobre o trabalho entre as análises de Taylor e dos cientistas Europeus. A mesma importância do corpo e de sua educação podemos encontrar nas discussões educacionais. Entretanto, se os estudiosos do trabalho buscavam afastar as análises do trabalho das questões morais, enxergando o corpo como human motor, passível de ser “corretamente” explorado de forma a inviabilizar qualquer conflito social, vimos, por outro lado, que os debates educativos sobre o corpo sempre se justificaram pelo “caráter educativo” das atividades. O pensamento educacional sobre a educação física, em nenhum dos autores analisados, concebeu 181 a Educação Física e suas atividades com objetivos instrucionais, pragmáticos, voltados para a aplicação direta ou ao trabalho, ou à guerra. Na realidade, eles constatavam que era justamente a falta de necessidade 182 do envolvimento corporal para a manutenção da vida cotidiana que clamava uma educação corporal, só possível de nomeada de “educação”, pelo fato dela fazer ecoar em todas dimensões dos educandos seus resultados morais e intelectuais. Rabinbach (1992) evidencia que a questão do trabalho e da boa utilização do human motor passava longe da exortação moral ao trabalho, sendo muito mais um fruto do cálculo científico dos responsáveis pelo planejamento das rotinas produtivas. O interessante é que os rumos assumidos pelo capitalismo abriram mão dessas análises e forneceram bases para se pensar a educação e a educação corporal de forma diferenciada: a eclosão da primeira guerra, mostrou que os “cálculos científicos” não tinham muita utilidade desde que o contingente de trabalhadores fosse grande, podendo serem eles utilizados até o fim de suas forças. No Brasil, a vinda da mão-de-obra imigrante (SCHELBAUER, 1998) fez com que as idéias amplamente defendidas sobre a importância da educação física fossem abandonadas. Azevedo (1915), que atribuiu ao Renascimento, um despertar antecipado em relação à educação física, teve que constatar que, pelo menos no Brasil, a temática da Educação Física nas escolas, voltaria a adormecer. Com isso, esperamos evidenciar que as relações entre corpo, educação e as transformações no mundo do trabalho deve evitar tanto a negligência quanto as abordagens que a analisam de forma simplificada. No que diz respeito ao século XIX e às primeiras décadas do XX, a conjugação de idéias semelhantes em contextos diferentes, além do fato de se ter uma forma de trabalho que estimula determinados posicionamentos teóricos para negá-los na prática, mostra que as transformações no mundo do trabalho podem se configurar em um campo de análise historiográfica extremamente engrandecedora, que poderia contribuir para a problematização, também, dos limites com que essas transformações são analisadas na atualidade. 183 Referências ACTAS E PARECERES DO CONGRESSO DE INSTRUCÇÃO DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1883. ARISTÓFANES. As nuvens. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. AZEVEDO, F. de. A poesia do corpo. Bello Horizonte: Imprensa official do Estado de Minas, 1915. BARBOSA, R. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública (1882). In: Obras completas de Rui Barbosa. 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