Serra do Mar: Uma viagem à Mata Atlântica
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Serra do Mar: Uma viagem à Mata Atlântica
Governo do Estado de São Paulo Geraldo Alckmim/Governador Secretaria de Estado do Meio Ambiente José Goldemberg/Secretário Serra do Mar: Uma viagem à Mata Atlântica (2ª edição) - São Paulo, 2001 1 Ficha técnica 2ª edição Ficha Técnica da 1ª edição Preparação e revisão de textos Maria Julieta A.C.Penteado Revisão técnica e novos textos Sueli Angelo Furlan Série Educação Ambiental ISSN 0103-2658 © Secretaria do Meio Ambiente Coordenação da Publicação Josilene Ticianelli Vannuzini Ferrer Apoio técnico Sonally R. Paulino da Costa Pelizon Sandra N.S. Almeida Pesquisa e redação Wanda Teresinha Passos de Vasconcellos Maldonado Maria Beatriz Santos Grellet Maria Julieta de Alcântara Carreira Penteado Projeto gráfico Letra e Imagem Apoio à pesquisa Eliana de Cássia Berte (estagiária) Márcia Cristina de Paula Soares (estagiária) Patrícia Bardawil Postiglione Kfouri (estagiária) Renato Horácio Pinto (estagiário) Sérgio Luiz Nogueira Bernardes (estagiário) Informática Pedro Orlando V. Galletta Capa Wittrockia spiralipetala in Bromélia da Mata Atlântica Preparação e revisão de texto Maria Julieta de Alcântara Carreira Penteado Agradecimentos especiais Ana Fernandes Xavier, Sérgio Luis Pompéia, Suzana Ehlin Martins, Clayton Ferreira Lino, Maria Inês Ladeira, Geraldo Barbosa Linhares, Lucia Maria Gonçalves Marins Consultoria e revisão técnica Sueli Angelo Furlan Ficha Catalográfica São Paulo (Estado). Secretaria do Meio Ambiente. Coordenadoria de Educação Ambiental. Serra do Mar: Uma viagem à Mata Atlântica. 2ª Ed. São Paulo: SMA/CEAM, 2001 (Série Educação Ambiental) Bibliografia. ISBN 85.86347.07.8 1.Mata Atlântica 2. Ecologia 3. Educação Ambiental 4. Serra do Mar I. Título II. Série CDD 574.56242098161 2 Serra do Mar: Uma viagem à Mata Atlântica Governo do Estado de São Paulo Geraldo Alckmim Governador Secretaria de Estado do Meio Ambiente José Goldemberg Secretário Coordenadoria de Planejamento Ambiental Estratégico e Educação Ambiental Lucia Bastos Ribeiro de Sena Coordenadora 3 Cananéia vista do Mar Pequeno 4 Sumário Introdução - 9 Estação de Embarque nº 1: A Floresta – 13 A mata vista de fora e de dentro – 13 Moradores da mata – 14 Olhando da serra para o mar – 16 É tempo de refletir – 20 Estação de Embarque nº 2: O Homem na Floresta – 23 Os índios – 23 As comunidades tradicionais – 29 É tempo de refletir – 34 Estação de Embarque nº 3: O Homem e o Urbano – 39 Uma volta a 1500 – 39 Um salto para a era industrial – 42 Falando um pouco da Baixada Santista... especialmente de Cubatão – 43 Pela estrada afora... para o litoral norte – 47 Pegando a estrada para o litoral sul – 51 É tempo de refletir – 56 Última Estação: Recuperando a Mata Perdida – 61 O desmatamento tem uma história – 61 A natureza também tem seus métodos – 64 A delicada trama da recuperação – 65 O papel do Estado na trajetória da conservação – 66 Aproximando o foco: a proteção da Mata Atlântica – 68 Uma pergunta final – 70 Bibliografia – 74 5 “...foi que vi pela primeira vez as inteira. Porém, lá, não estavas nua, Terra. Por mais distante, o errante [...] Do mar se diz `terra à vista´; para a mão carícia; outros astros Terra, Terra. Por mais distante, o te esqueceria.” 6 tais fotografias em que apareces e sim coberta de nuvens. Terra, navegante, quem jamais te esqueceria. terra, para o pé firmeza; terra, te são guia. errante navegante, quem jamais Trecho da canção Terra, de Caetano Veloso. 7 8 Introdução E ste é um convite para viajarmos juntos. Percorreremos uma região do Brasil de 1.500.000 ha – onde a Mata Atlântica recobre a Serra do Mar e as planícies costeiras do Estado de São Paulo. Mas, iremos muito mais longe no tempo: recuaremos 100, 200, 500 anos e até mais. Voltaremos ao presente, retornaremos ao passado. Haverá paradas para algum olhar mais atento. Detalhes revelarão processos e mostrarão modos de viver, pensar e trabalhar das pessoas; reflexões apontarão caminhos. Muitas perguntas vão surgir; respostas, nem todas. O trajeto começa na mata, passa pelo homem que viveu e vive nela, distancia-se um pouco para ver o que há em torno e volta. Vamos nos deter em alguns pontos para conhecer aspectos das relações entre o homem e a mata. Veremos modos de vida diferentes. Formas de economia altamente destrutivas, outras mais cooperativas. Conversaremos sobre problemas. Mostraremos algumas iniciativas do poder público para conservar o que restou dessa convivência de muitos séculos entre o homem e a Mata Atlântica no litoral do Estado de São Paulo. 9 A Mata Atlântica, como é comumente conhecida, não é uma única floresta. Na verdade, é um conjunto de florestas diferentes, que têm em comum o fato de localizarem-se no lado atlântico do continente. Essa vegetação que cobriu no passado as encostas das montanhas voltadas para o Oceano Atlântico, de norte a sul do País, avançando para o interior em muitos pontos, acha-se hoje reduzida a manchas esparsas, cujas porções mais extensas, significativas e conservadas encontram-se no litoral dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. Sua principal característica é a de concentrar grande número de espécies da flora e da fauna, fato que faz aumentar a responsabilidade quanto à conservação, pois destruir trechos da mata, ainda que pequenos, significa perder muitas espécies que nunca mais serão conhecidas. A decisão de escrever sobre este conjunto de florestas deve-se à sua grande importância, atualmente, para o Brasil e de modo particular para o Estado de São Paulo. Outro motivo importante para falar da Mata Atlântica no trecho paulista da Serra do Mar é o fato de tratar-se de uma região que, por um lado, veio sofrendo forte impacto ambiental, desde o período da colonização, a partir de 1500, até as últimas décadas do século XX, quando conheceu os efeitos da industrialização e da urbanização. Por outro lado, manteve formas tradicionais de economia em comuni10 dades com estreitas ligações com a natureza. O tema será abordado sob vários aspectos – biológicos, geográficos, históricos, culturais, sociais e econômicos –, que se entrecruzam, articulados de modo a propiciar ao leitor a reflexão acerca da necessidade e da abrangência das ações possíveis para conservar a região. Procurando traduzir em linguagem clara e acessível conceitos desses vários ramos da ciência, este trabalho pode ser aplicado em programas de educação ambiental, cujo objetivo for discutir a conservação. Pode ser útil a todos os que se interessam pela questão ecológica e também aos educadores em geral. Estes últimos poderão aproveitá-lo, conforme suas necessidades, no todo ou em parte, como ponto de partida para uma reflexão mais aprofundada ou estímulo para trabalhos práticos de educação ambiental. Espera-se que esta publicação seja mais um instrumento a contribuir com informações e sensibilização para as questões de que trata, abrindo um espaço de discussão e um tempo de amadurecimento, que resultem na participação do leitor em ações concretas de conservação dos recursos naturais. Boa leitura. E vamos embarcar! Mata Atlântica vista de dentro, revelando sua riqueza e exuberância. 11 12 ESTAÇÃO DE EMBARQUE Nº 1: A FLORESTA E inúmeras nascentes, cujas águas irão formar m São Paulo, a Serra do Mar e a de rios e cachoeiras de porte considerável. Paranapiacaba marcam um limite Entre os rios mais importantes dessa região, geográfico entre litoral e interior. Estas não poderiam deixar de ser citados o duas serras são formadas por rochas Ribeira do Iguape, o Juquiá, o Cubatão, o datadas de milhões de anos e muito 1 Itapanhaú, o Juqueriquerê e o Fazenda, resistentes ao intemperismo . Sobre entre outros. essas rochas, existe uma camada de solo geralmente pouco profunda, A mata vista de fora e de dentro formada por partículas de rocha, que vão se desprendendo com o passar do Olhada de fora e de uma certa distântempo sob a ação das chuvas e dos cia, como numa vista aérea, a primeira ventos, entre outros fatores, restos de imagem que se tem da Mata Atlântica é de animais e vegetais em vários graus de uma grande cobertura, como se fosse um decomposição, e material transportado enorme manto, formado pelas copas por ação da força da gravidade. Nestas verdes de árvores com mais de 20 metros condições de relevo e solos variados, a de altura. É o que se costuma chamar de Mata Atlântica se instalou. Muriqui, o maior primata brasileiro, vive dossel. Nas encostas da serra, geralmente A floresta é resultado da ação do nos fragmentos florestais da Mata Atlântica. os troncos são finos como os das palmeiras clima. Os ventos quentes e úmidos vinO muriqui ou mono-carvoeiro é uma espécie ameaçada de extinção (Estação e embaúbas, com as copas se concentrando dos constantemente do oceano, ao se Ecológica Juréia-Itatins). no alto. Mas há também árvores com defrontarem com o relevo serrano, troncos largos e majestosos como a figueira, a peroba, a elevam-se e resfriam-se, formando nuvens baixas, que canela, o pau d’óleo e o pau d’alho, entre outras. podem precipitar-se sob a forma de chuva ou neblina. Ao entrar na floresta, a primeira impressão que se tem é As chuvas frequentes, a neblina e o tipo de solo propia de que todos os espaços estão preenchidos. Há uma ciam o acúmulo de água no subsolo, o que dá origem a 13 profusão de plantas em todos os níveis. Olhando de cima para baixo, encontra-se logo depois do dossel uma camada de vegetação formada por árvores menores, com troncos finos e longos, cujos ramos e folhas, a exemplo das grandes árvores, concentram-se no alto das plantas. É o caso do palmiteiro, da samambaia-açu, de plantas jovens que atingirão mais tarde o dossel e, finalmente, de plantas que germinam na sombra. Uma das características das florestas tropicais úm idas2 , particularmente da Mata Atlântica, é a variedade de plantas. Chamam a atenção, de modo especial, aquelas que ocupam os troncos das árvores: epífitas, lianas, musgos e liquens. As duas primeiras são mais visíveis na Mata Atlântica da Região Sudeste do Brasil. As epífitas instalam-se sobre o tronco e os ramos de certas árvores, conseguindo, assim, captar a luz do sol, essencial na produção do seu próprio alimento. Para obter a água e os sais minerais de que necessitam, algumas emitem raízes que chegam até o solo; outras valem-se das folhas em forma de calha, onde a água é armazenada. As plantas mais representativas da Mata Atlântica e exclusivas do mundo tropical são as bromélias e orquídeas, de beleza incomparável na forma e no colorido. Lianas são trepadeiras que sobem pelas O lobo-guará é um animal solitário e noturno. O nome guará, vermelho em tupi-guaraní, é devido a seu pelo que tem esta côr. 14 Líquens pendentes de galhos. árvores em busca da luz do sol, prendendo-se nos troncos por meio de garras, como é o caso das jibóias, dos imbés e da costela-de-adão. Os musgos recobrem troncos e pedras como um tecido verde, delicado e macio, cuja textura lembra o veludo. Os liquens são formações vegetais presentes em ambientes úmidos, onde a poluição é baixa ou inexistente. Por isso funcionam como um sinal de boa qualidade ambiental. Há um tipo, cujos fios muito finos, parecendo uma cabeleira leve e transparente, dependuram-se nos galhos das outras plantas: é a úsnia ou barba-de-velho, muito semelhante a um tipo de bromélia. Moradores da mata Toda essa riqueza de formas de vegetação cria condições para uma fauna de dossel, de tronco e de chão muito rica, espalhada pelos diferentes ambientes. Os mamíferos de chão desse tipo de floresta têm porte pequeno e alongado, adaptados a viver e se deslocar entre os troncos das árvores. Um alce – um animal de formações vegetais abertas – ficaria com seus chifres presos no emaranhado de plantas, na primeira tentativa de passeio. E a girafa, como faria com seu pescoço tão longo? Trecho do Parque Estadual cortado pela rodovia dos Imigrantes na região do município de Cubatão. Ao contrário das plantas, que se mostram em toda a exuberância ao visitante, é difícil ver os animais. Além de se esconderem ao menor indício da presença humana, muitos só saem à noite, como os gatos do mato, os morcegos, os gambás e as cuícas, e outros são mais visíveis em determinadas estações do ano. Assim, dependendo do horário que se entra na floresta, o que se ouve é um ou outro ruído, o pio de um pássaro; o que se sente, os insetos; e o que se vê, alguns animais de solo ou de tronco de árvores. O resto são apenas vestígios dos demais habitantes: pegadas, penas, pelos, ossos, fezes, tocas. E, muitas vezes, apenas estes vestígios norteiam o pesquisador no seu trabalho. A observação direta dos animais é mais difícil. Eis aí um dos motivos pelos quais existem mais informações disponíveis sobre a flora do que sobre a fauna. No entanto, mais de um milhão de espécies de insetos e centenas de aves e mamíferos vivem nas matas atlânticas, estabelecendo com a floresta relações vitais para a sua própria manutenção e determinantes nos processos ecológicos. Há realmente várias trocas. A floresta fornece abrigo e alimento aos animais, e eles retribuem, por exemplo, carregando para longe, na pelagem ou no aparelho digestivo, as sementes e os grãos de pólen das plantas. . A vida neste verdadeiro edifício Nos andares superiores, nas copas das árvores e dos arbustos, vivem o macaco-muriqui – também conhecido como mono-carvoeiro –, o bugio, o tucano-de-bico-verde e o papagaio-de-cara-roxa, entre muitos outros. Mais embaixo, habitam vários pássaros. Outros animais moram predominantemente no chão como a paca, a jaguatirica e o quati; ou mesmo em tocas, como os tatus. Essa distribuição por andares não é estática. Há trânsito no sentido horizontal, vertical, na terra e no ar. Enquanto as aves que sobrevoam o imenso dossel verde entram na mata em busca de alimento, outros animais o fazem percorrendo quilômetros por terra. O cardápio dessa fauna é variadíssimo. O caxinguelê, também conhecido como esquilo brasileiro, come brotos e sementes oleoginosas; o macuco alimenta-se de insetos, vermes e frutos caídos no manto de folhagem que cobre o solo; já a cutia sustenta-se de raízes e talos suculentos, além de frutos. Os felinos – a jaguatirica, o gato-do-mato, entre outros – são carnívoros, que devoram pequenas aves e mamíferos. Um dos mais belos gaviões brasileiros – o gavião-pega-macaco – alimenta-se de macacos, de outros mamíferos e de aves. 15 Olhando da serra para o mar Depois desse contato com o interior da mata, suas plantas e seus animais, caminharemos num sentido diferente – do planalto para o mar. A caminhada começa com a descida da encosta, para chegar depois ao ambiente de restinga. Daí pode-se atingir o mar pelas praias e pelos costões rochosos – dois ambientes contra os quais as ondas quebram. Outra opção é acompanhar um rio qualquer até o ponto em que suas águas doces encontram-se com a água salgada. É bem comum, no litoral brasileiro, que esse ponto seja um local de solo lodoso, cheiro forte e vegetação típica, cuja riqueza e importância ecológica são pouco conhecidas e valorizadas. Trata-se do mangue. É importante que nessa descida da serra sejam observadas as mudanças que vão ocorrendo. A umidade muda à medida que se desce. O solo altera-se continuamente, sofrendo a influência de vários fatores: da inclinação dos terrenos, das rochas, da água, da salinidade do mar. Isso causa modificações tanto em cada planta, como no conjunto que compõe a vegetação, transformando sensivelmente a sua fisionomia. Na planície, a mata vai perdendo densidade e altura. Já não se vê Manguezal com raízes-escora, no Rio Itapanhaú na região de Bertioga. 16 Vegetação rasteira em terreno arenoso à beira d’água. aquele dossel contínuo. O solo, cada vez mais arenoso, recobrese de plantas baixas, e mais resistentes à ação do sol e à salinidade do mar, que as atinge nos borrifos ou na subida da maré. Toda essa região de planície se modificou muito ao longo do tempo. Muitas planícies atuais estiveram submersas há dezenas de milhares de anos. Com o recuo dos oceanos, nas glaciações, surgiu uma faixa terrestre com um solo de elevação muito suave, formando cordões ou fileiras, semelhante ao mar quando se encrespa levemente sob a ação do vento. São os chamados cordões de restinga. A vegetação desse tipo de solo varia desde a mata pluvial de planície, à de restinga, passando por pequenas árvores e arbustos, até as plantas de porte baixo, como a orelha-de-onça e plantas rasteiras de caule estolonífero3, como a açariçoba e o feijão-de-praia. O contraste com essa paisagem de ondulações suaves é dado pelas dunas que ocorrem em alguns setores do litoral paulista. Nestas formações arenosas de altura variada, observa-se escassa vegetação estolonífera. . Um berçário quase flutuante Percorrendo com o olhar os pouco arejado, movediço, constantemente inundado e com ambientes alagadiços próximos aos estuários, vemos o alto teor de salinidade. Um exemplo dessa adaptação é a mangue, que não se parece com um berçário, é claro, mas estrutura das raízes aéreas: raízes-escora, que ajudam a cuja função mais importante é oferecer boas condições para a reprodução das espécies e dar proteção a espécimes jovens planta a fixar-se, e pneumatóforos6, através dos quais a planta capta o oxigênio de que necessita. que nele se abrigam. E por quê? Nos manguezais do litoral O primeiro motivo é a de São Paulo, predominam constituição do seu solo, 4 bosques de mangue vermelho, rico em nutrientes , devido branco e preto (siriúba), à decomposição de associados a uma grande detritos de rochas, de riqueza de outros tipos de sedimentos de solo e de plantas, como as algas, os matéria orgânica trazida liquens, as orquídeas, as pelos rios, além de um bromélias e, em alguns índice elevado de pontos, um tipo de vegetação salinidade, em virtude do rasteira, onde se destaca uma encontro com a água do gramínea chamada spartina. mar. Não nos esqueçamos de que o mangue é o ponto Como as coisas de encontro de duas águas acontecem? – a doce e a marinha – e Neste rápido passeio pela de sedimentos5 terrestres. Mata Atlântica, pudemos ver Outro motivo é uma um pouco como ela é. questão de localização. Os Percebemos ligações entre o manguezais desenvolvemrelevo, o solo, a vegetação e a se em locais abrigados da fauna. Notamos uma intercosta e banhados pelas relação vital em tudo que marés, e em desembocacompõe esse ambiente. Mas duras de rios. O relevo, Detalhe de uma inflorescência de Bromélia. P. E. Serra do Mar. faltou saber como isso em geral suave, permite acontece, o que rege todo esse acesso fácil a muitas movimento, enfim, os processos naturais. espécies marinhas. Peixes, crustáceos, aves e, também, Há processos que garantem a sobrevivência; outros que fungos e bactérias desenvolvem-se ali, alimentam-se e explicam o comportamento de reprodução dos seres vivos; servem de alimento, estabelecendo assim importantes aqueles que envolvem transformações no ambiente; e cadeias alimentares. Nesse ambiente, tão propício aos animais, as únicas plan- muitos outros, que não poderão ser abordados neste trabalho. tas que crescem são aquelas que se adaptam ao solo lodoso, . 17 . . Adaptações e resistência Em busca de um lugar ao sol É assim que podem ser chaA chuva forte, o vento ou madas a constituição e a estrumesmo a ação do homem podem tura das plantas que sobrevivem derrubar as árvores da mata, em ambientes pouco propícios, abrindo uma clareira. Quando isso nos quais há desafios a vencer. acontece, as plantas de camadas Por exemplo, as grandes árvores mais internas saem da penumbra e como as figueiras ou sapopemas passam a receber diretamente a luz têm raízes avantajadas e em do sol. As sementes de algumas forma de lâmina, para protegêplantas que estavam adormecidas las da ação dos ventos, das 7 brotam e, aos poucos, a vegetação fortes declividades e do rastejo se recompõe, preenchendo do solo, além de aumentar a novamente o espaço vazio. Está se área de absorção ou captura de formando a mata secundária, alimentos e garantir-lhes o através de um processo comum na oxigênio, escasso no solo da Mata Atlântica – o processo de mata devido à umidade e sucessão biológica, no qual as temperatura elevadas, e à espécies vegetais vão sendo presença de grande quantidade substituídas gradualmente, com o de raízes, microrganismos e passar do tempo, umas animais. colaborando com as outras. O gravatá – bromélia de chão – resolve o problema da pouca Um sistema curioso de água disponível, armazenando-a semeadura nas suas folhas grandes e A paisagem da floresta é suculentas. marcada pela presença de plantas No cardo-da-praia, as folhas Na Mata Atlântica muitos animais ao se alimentarem da mesma espécie, em pontos transformaram-se em espinhos de plantas carregam no seu aparelho digestivo as sementes distantes entre si. A ação do vento e o caule armazena a água. que serão defecadas em lugares distantes. atua na semeadura de muitas A vegetação de mangue plantas das matas atlânticas, mas é firma-se no lodo com a ajuda de mínima dentro da mata, sendo mais freqüente quando se abre inúmeras raízes aéreas do tipo escora, que lhe dão aquele uma clareira. Então, quem leva as sementes para longe? Os aspecto emaranhado na base do tronco. E as plantas responsáveis por isso são principalmente os animais. Além de rasteiras, vistas na areia, desenvolvem-se nesse tipo de solo carregá-las na pelagem, deixando-as cair por onde passam, o graças a caules subterrâneos, conhecidos como estolões, fixados por pequenos tufos de raízes. . 18 seu aparelho digestivo pode funcionar como meio de transporte. É que ao comer o fruto, eles engolem também as sementes. Passado algum tempo e longe da planta matriz, essas sementes vão sendo devolvidas à terra, pelas fezes ou pelo regurgitamento. É um processo de dispersão das sementes. Deixadas em diferentes pontos da mata, muitas delas germinam e crescem. . Triângulo amoroso entre duas flores e um animal Por causa da sua capacidade de locomover-se, os animais representam um papel importante na reprodução de certas flores: eles levam o pólen, gameta masculino das flores, para o óvulo de uma flor “feminina”, que, depois da sua visita, fertiliza-se. Este é o processo de polinização, que acontece aparentemente por acaso. O polinizador, que pode ser uma abelha, um beija-flor, ou um determinado tipo de morcego, tem intenção apenas de alimentar-se; o que vai buscar nas flores é o néctar de que necessita. Mas, ao fazer isso, seu corpo fica coberto de pólen que ele acidentalmente deposita de flor em flor. . Relações, contatos e transferências Os seres mantêm-se vivos porque obtêm energia ao se alimentarem uns dos outros. Por exemplo, as plantas são comidas pelos insetos, que são comidos por sapos, que são comidos por cobras. Ou, então, as plantas são comidas por roedores, que são comidos por aves. A transferência da energia contida nos alimentos, por meio de uma série de organismos que repetidamente se alimentam e servem de alimento, chama-se cadeia alimentar. As plantas que formam o primeiro elo da cadeia alimentar são chamadas de produtoras, porque produzem seu próprio alimento a partir da energia solar, de nutrientes, sais minerais e água: é a fotossíntese. Os animais são conhecidos como consumidores e temos, ainda, os decompositores – bactérias, fungos e vários outros invertebrados, que decompõem restos de plantas e animais –, os quais se misturam depois com o solo, a água e o ar, e voltam para os animais e para as plantas, iniciandose, assim, um novo ciclo. O consumidor recebe diferentes denominações confor- onça pintada Esquema da cadeia alimentar jaguatirica Rede alimentar tucano sapo inseto rato pássaro quati 19 me a posição na cadeia alimentar. Quando se alimenta de plantas é herbívoro ou consumidor primário; quando se alimenta de herbívoros, é consumidor secundário, como os carnívoros; quando se alimenta desses carnívoros é terciário; quando se alimenta de um terciário, é quaternário e assim por diante. Os exemplos dados até agora são simples, lineares, mas na natureza as inter-relações entre produtores, consumidores e decompositores são mais complexas, configurando teias alimentares, em que um animal ou planta podem ser consumidos por vários outros e com isso ocupar posições diferentes nas cadeias em que está presente. É tempo de refletir Chegando ao fim desta primeira etapa da nossa viagem, é importante pensar um pouco a respeito do modo como compreendemos os fenômenos naturais. É inevitável ao homem uma interpretação desses fenômenos, carregada de valores vinculados à sua história e à sua cultura. E é essa interpretação que torna relativas e, às vezes, até 20 O quati vive mais nas árvores, em pequenos bandos e possui hábitos diurnos. contraditórias, suas atitudes, decisões e opiniões. No passado, os estudos sobre os processos da natureza ressaltavam apenas a competição, a luta pela sobrevivência e a lei do mais forte. A vida dos animais e das plantas era interpretada como uma verdadeira guerra de extermínio. Era a idéia da seleção natural pela competição. Hoje, são reconhecidos, também, muitos exemplos de cooperação: o beija-flor extrai o néctar e, em contrapartida, traz o pólen; o animal come o fruto, porém guarda intacta a semente; por uma clareira na mata entram a luz e a água que permitem à semente desenvolver-se. As adaptações podem ser vista como formas de cooperação entre elementos opostos, que encontram um modo sutil de conviver, sem o qual pelo menos um deles seria destruído. Reconhecer e preservar essas relações de cooperação pode indicar um amadurecimento da sociedade, no sentido de uma atitude menos predatória e de uma consciência mais aguda da necessidade de proteger e recuperar o ambiente. Continuemos a nossa viagem. Índios Guarani, habitantes da Mata Atlântica no litoral paulista. 21 22 ESTAÇÃO DE EMBARQUE Nº 2: O HOMEM NA FLORESTA M ais do que nunca, interessam-nos todas as relações de cooperação ou de agressão, só que agora entre os elementos da natureza e as diferentes culturas humanas, uma vez que os homens também se relacionam com a mata. Os índios A Mata Atlântica não era um espaço onde cresciam apenas plantas e animais. Espalhadas pelo imenso território encontrado pelos portugueses em 1500, viviam nações indígenas, com línguas e costumes próprios. No espaço que é hoje o litoral do Estado de São Paulo, concentravam-se os grupos de língua tupi-guarani, cuja história, durante a colonização, assemelha-se a de outros povos indígenas existentes em áreas descobertas pelos portugueses. Estes povos nativos foram considerados não somente propriedade, mas também um bom instrumento para as tarefas necessárias à realização do projeto de colonização. Para garantir o domínio efetivo sobre o novo território, os portugueses necessitavam do índio como mão-de-obra para os diversos serviços braçais e também como guias, que lhes mostrassem os recursos naturais existentes e lhes abrissem caminho num meio natural acidentado e coberto por densa floresta tropical. Assalto dos Tupinambá contra os tupiniquins e portugueses, segundo Hans Staden, viajante alemão do séc. XVI. 23 Ao encontrar resistência por parte dos indígenas à sua dominação, os portugueses deram início a um dos capítulos de violência mais tristes da nossa história. No decorrer dos quase quatro séculos em que o Brasil permaneceu colônia de Portugal, os povos indígenas foram perseguidos, escravizados e, muitas vezes, dizimados numa luta desigual. O trabalho imposto a eles não tinha qualquer relação com a sua cultura. Suas mulheres eram violadas. E a catequese a que os missionários jesuítas dedicaram-se foi mais um instrumento de dominação sobre os povos nativos. Mas houve resistência. As relações entre indígenas e europeus foram marcadas por violentos confrontos. Grupos inimigos entre si compunham alianças com os portugueses, acirrando ainda mais os conflitos; vários destes foram registrados por viajantes naturalistas e estudados por historiadores. Embora dominados pelos brancos, os povos indígenas vêm lutando até hoje para sobreviver e resistir à descaracterização cultural. As informações que nos chegam, veiculadas pela televisão ou por revistas, contam-nos muito pouco sobre o seu modo de vida e seus costumes; por isso, vale a pena olhar mais atentamente para um grupo próximo de nós – o de língua guarani, da família tupi-guarani, do tronco tupi. Quadro das famílias indígenas 24 . O povo Guarani e seu território Entre o litoral e o planalto do Estado de São Paulo, existem aldeias indígenas, habitadas pelos Mbya e Ñandeva, grupos cuja língua é dialeto do guarani. O território, para o guarani, não se limita à área das aldeias onde ele habita; é toda parte pela qual o povo transita hoje, ou transitou no passado. Engloba cidades e países, bastando para isso que suas tradições revelem a presença de seus antepassados na região. O território não é exclusivo de seu povo, podendo haver convivência pacífica com os brancos. O local de moradia, porém, deve estar protegido da interferência de estranhos, sendo necessário haver mata, água e terra para plantar. Essas são as condições que garantem os padrões tradicionais de vida, ou seja, o exercício da caça, da coleta, da pesca e da agricultura. Mas nem sempre isto aconteceu. . para outras mais distantes. Hoje, a distribuição das habitações no território não obedece mais à configuração tradicional. As casas dispersas ligam-se umas às outras, por caminhos abertos e a distância entre elas relaciona-se com o grau de parentesco de seus moradores. Diante da casa do líder existe uma área para a realização dos rituais coletivos. Modo de vida Todas as atividades deste povo O trabalho com a terra estão ligadas aos aspectos mágicos e Os guarani produzem para o próprio rituais contidos na sua tradição sustento, por meio da agricultura, da cultural. caça, da pesca e da coleta; e para o As coisas acontecem como sempre comércio, por meio do artesanato. aconteceram, ou melhor, como os Os guarani são semi-nômades e, mais velhos contam que aconteceram. sempre fixaram-se em função da ativiÉ esse relato oral carregado de lendas dade agrícola. O tipo de agricultura que orienta as gerações mais novas, tradicionalmente praticado pelos garantindo a perpetuação dos usos e guarani é o sistema de roças de coivara. costumes. Esta técnica, que consiste na queima da Os aldeamentos de todo o vegetação sem limpeza do terreno, na território guarani estão ligados por utilização do que restou da queimada estreitos laços de parentesco e por como adubo natural e na plantação de intercâmbio econômico. As visitas mais de uma cultura na mesma área, entre os habitantes das aldeias do espalhou-se pelo litoral e interior, sendo litoral e do planalto são constantes e Índias de aldeia em Silveiras. utilizada atualmente por inúmeras feitas a pé. As trilhas percorridas na comunidades tradicionais. Serra do Mar são as mesmas utilizadas pelos seus Os guarani desenvolveram, no decorrer do tempo, antepassados há séculos. técnicas para o cultivo de muitas espécies, algumas das quais Cada núcleo é formado por poucas famílias compostas servem de alimento, hoje, para grande parte da população, por pais, filhos, genros e netos, que obedecem ao líder como o milho, a mandioca, o feijão, o amendoim, o mamão político-espiritual, que transmite o que aprendeu dos ane a erva-mate, entre outras. tepassados e possui o dom de comunicar-se com os deuses. Dedicaram-se também à melhoria de algumas plantas A população numa aldeia é pouco numerosa e bastante nativas, através de experimentos simples. Assim, conseguiinstável, devido aos deslocamentos constantes, em função ram aumentar a resistência biológica do milho, cuja produde casamentos ou cisões entre as famílias. ção foi ampliada. Uma aldeia pode ainda servir como ponto de passagem . 25 Conheciam muitos tipos diferentes de mandioca e sabiam tratar a mandioca brava para consumo humano, extraindo-lhe a substância tóxica. . Uma partida de pesca, reproduzida do livro Duas Viagens ao Brasil, de Hans Staden. Mitos de origem Um mito tupinambá, que é o povo que habitou o litoral norte do Estado de São Paulo, conta que certa estrela vermelha que aparece perto da lua, a que davam o nome de lanovare, ia ao seu encalço para devorá-la. E quando a lua, no período das chuvas, depois de muitos dias sem aparecer, tornava a surgir, vermelha, acreditavam que estava iminente o momento de ser alcançada pelo lanovare. Acreditavam que seria o fim do mundo. Os homens gritavam de alegria, saudando o avô mítico que iriam encontrar, mas as mulheres, com medo da morte, gritavam, chorando e se lamentando. O cultivo do milho, motivo de celebração Dissemos que aspectos sagrados e rituais envolvem todas as atividades da vida do povo guarani. O ciclo de cultivo do milho é um exemplo: suas fases são marcadas por vários rituais que celebram acontecimentos sociais e religiosos. A colheita anual abre-se com uma grande festa, durante a qual as crianças das famílias de várias aldeias recebem seus nomes. Quando uma família se muda, deve começar a caminhada antes da época do plantio, para que já esteja instalada na outra aldeia, no momento de fazer a roça. . Aproveitando o que a natureza dá As tradições culturais guarani também orientam a pesca, a caça e a coleta. Esta última, que consiste na extração de mel e plantas da mata, além de prover o grupo com alimentos, fornece taquara para as flechas, fibras para as cordas e cestos, tintas para a pintura do corpo, cera e resina utilizadas como cola, e remédios. Através deste trabalho, que é masculino, os índios obtêm matéria-prima para sua principal atividade comercial: o artesanato. O modo de caçar e pescar dos guarani é muito diferente 26 daquele do branco. No lugar das armas de fogo, estão arcos e flechas; instrumentos rústicos entalhados com as próprias mãos, além do timbó, substituem anzóis e redes sofisticadas. (O timbó é uma substância extraída de algumas plantas, que, jogada na água, entorpece os peixes. Nesse estado, eles vêm à superfície, boiam e isso facilita a captura.) . As mãos: o instrumento de trabalho O trabalho artesanal sempre fez parte da cultura guarani. Na aldeia confeccionam-se utensílios e instrumentos de uso cotidiano: cestos, esteiras, potes, armas e objetos rituais. A proximidade entre as aldeias indígenas e os centros urbanos possibilitou a comercialização desses objetos, que se tornaram uma fonte de recursos para a compra de alimentos na entressafra e de outros produtos de que a aldeia não dispõe. Toda família participa desta atividade, que hoje, mistura elementos do meio natural e industrializados. A venda direta é feita pelo produtor em praças públicas, feiras e estradas, principalmente por mulheres e crianças, e a indireta, nas lojas de artesanato. . Índios guarani paramentados com artesanato indígena: cocares, colares para diferentes idades. O saber Guarani Toda a sabedoria do povo guarani está contida nos ritos e implícita na sua tradição. Para manter o modo de vida tradicional, os indígenas contam com o conhecimento precioso das relações entre os seres vivos e o meio ambiente local – condição essencial para sua sobrevivência física e cultural. Para caçar é preciso conhecer os hábitos dos animais; para a coleta, reconhecer a época em que os frutos amadurecem e o poder de cura das plantas; para a pesca e a agricultura, conhecer astronomia e sua relação com as chuvas e marés. A previsão de chuvas, por exemplo, é feita a partir do surgimento de determinadas estrelas. A dimensão artística faz-se presente nos utensílios para uso diário, nos objetos para uso ritual, nos cânticos e nas 27 danças. As vestimentas, enfeites e pinturas no corpo, especiais para cada cerimônia, também revelam a sensibilidade artística, presente na beleza e harmonia das combinações de formas e cores. Cada grupo tem suas características peculiares de expressão e isso pode ser observado ao compararmos o trançado dos cestos, o ritmo dos cânticos e os passos das danças. À direita, Staden orando em agradecimento pela realização de um milagre, junto a uma cruz, erguida na aldeia de Ubatuba. À esquerda, mulheres trabalhando com seus filhos enfaixados às costas. 28 . A resistência indígena A existência física e cultural de aldeias indígenas na Serra do Mar e no litoral do Estado de São Paulo é prova da resistência deste povo à dominação a que tem sido submetido ao longo de sua história. A pressão sobre os guarani não se resumiu ao período colonial, em que os indígenas foram massacrados pelos colonizadores. Ainda hoje, eles enfrentam inúmeros obstáculos à manutenção do seu modo de vida, e um deles se relaciona com a questão do acesso à terra. Os guarani agora lutam pela reconquista de um território que, no passado, foi do seu povo, não mais com arcos e flechas, mas através das leis que, ao demarcarem as reservas, reconhecem o seu direito ao território coletivo que lhes permite viver com dignidade. Os guarani das diversas aldeias têm se organizado através da Ação Guarani Indígena-Aguai que, além de atuar na solução dos problemas decorrentes de conflitos fundiários, incentiva a organização dos tembiguai – associações internas em cada aldeia, por meio das quais os jovens assessoram os caciques em projetos comunitários, como é o caso da criação de abelhas e peixes na aldeia de Ubatuba. Esta é uma iniciativa e há outras no sentido da permanência dessa cultura minoritária. Além da questão ética, do direito de manifestação e expressão das minorias, que outro motivo justificaria a manutenção do modo de vida guarani? No momento em que a sociedade volta as suas preocupações para a busca do equilíbrio entre desenvolvimento e aproveitamento dos recursos, é importante a existência de uma cultura que lida com os recursos naturais, de um modo bastante alternativo ao da sociedade abrangente, e que estendeu sua influência a outros grupos com os quais manteve contato nesse espaço da Mata Atlântica, a saber: no litoral, os caiçaras; nas margens dos rios, os ribeirinhos; no interior, os caboclos. Conhecidos também como comunidades tradicionais, esses grupos expressam no seu modo de vida dela os meios para ARTESÃO X ARTESANATO sua sobrevivência. Grande parte dos Artesão é aquele que detém o seu instrumentos de As comunidades tradicionais conhecimento com tal maestria, que o seu trabalho, dos utentrabalho se destaca pela criatividade, utisílios domésticos e O índio é a influência preponderante na formação dessas lidade e beleza. O artesão domina a técdos objetos de adorcomunidades, depois do europeu, principalmente o nica e as qualidades do material e isso no é confeccionada português, que foi fator dominante, sem esquecer do negro, lhe confere o reconhecimento de toda a comunidade. Sua fama muitas vezes ulpela própria comuque completa o quadro dessa pluralidade cultural. trapassa os limites do seu núcleo, chegannidade. O material é Da miscigenação originou-se uma população com do a lugares muito distantes. retirado diretamente profundas marcas da cultura indígena, que vive hoje em Artesanato significa trabalho feida natureza: fibras, contato muito próximo com a Mata Atlântica. Essas peto com as mãos, para o qual é necessário madeiras, folhas e quenas comunidades mantêm diferentes estágios de contato o conhecimento das técnicas e dos materiais adequados. argila transformamcom os centros urbanos, em maior ou menor grau de isolamento, em pequenos núcleos esparsos, seja nas ilhas, na se nas mãos do artesão em gamelas, cuias, mobílias, redes, remos e canoas. beira do mar ou dos rios, ou nas encostas da Serra. São Da necessidade de sobreviver apenas dos recursos chamadas de tradicionais porque, à semelhança dos índios, o disponíveis na mata e no hábito da mar, e do contato direto transmissão oral dos com suas plantas e costumes e animais, esses grupos conhecimentos é foram acumulando um muito forte. Sua conhecimento empírico 8 cultura baseia-se na e profundo dos ecossistradição. temas da região. Suas Esses grupos atividades foram desencaracterizam-se por volvidas de forma a conum modo de vida ciliar as necessidades de semi-fechado em sobrevivência própria graus variados, com a dos recursos geralmente à naturais dos quais elas margem do dependem. processo de E é essa sabedoria desenvolvimento. que nos interessa Permanecendo em Covo, apetrecho de pesca fabricado artesanalmente, utilizando conhecer agora, registrar contato direto com a material vegetal coletado na floresta ou manguezal. e aplicar. natureza, extraem muitos aspectos da cultura indígena que vale a pena resgatar. 29 . Como se desenvolve a economia tradicional Dependendo do grau de isolamento em que as comunidades tradicionais se encontram, sua economia pode diferir total ou parcialmente daquela do sistema de mercado, como o conhecemos nas cidades. Porém, há pontos comuns entre os diversos grupos, o que nos permite falar de uma economia tradicional. O aproveitamento dos recursos naturais dá-se diretamente por meio da coleta manual ou com o auxílio de instrumentos simples, pela caça e a pesca, sem passar pelas etapas de transformação próprias do processo industrial. É uma atividade de baixo impacto ao meio ambiente, devido principalmente à pequena quantidade exigida para o consumo dessas populações. A relação com esses recursos exige do indivíduo conhecer muito bem as estações do ano, os ciclos e outras condições da natureza, como a melhor época e o melhor terreno para a semeadura, colheita, caça, pesca e coleta. A produção visa suprir basicamente as necessidades do grupo, não havendo a preocupação de estocar para comercialização futura. O estoque do que é necessário à sobrevivência encontra-se na natureza, resultando daí o empenho em preservá-la. Grande parte da produção dentro dessas comunidades é realizada de forma artesanal. O método e os instrumentos utilizados no trabalho são muito semelhantes aos usados pelas gerações passadas, embora já se tenha introduzido elementos próprios da produção industrial, como a motosserra, a rede de náilon e os motores das embarcações, entre outros. Isto de certo modo vem alterando a economia tradicional. 30 Casa da Farinha típica do Parque Estadual da Serra do Mar - Núcleo Picinguaba. Preparação do solo Plantio Colheita Plantio e colheita na mesma época Calendário agrícola de uma comunidade do Rio Verde. Estação Ecológica de Juréia – Itatins . queima-se aquilo que foi cortado, que Uma relação com a terra: plantar COMO A MANDIOCA vai funcionar como adubo ali mesmo. Nas comunidades tradicionais B R A V A V I R A F A R I N H A As pragas são geralmente controlaplanta-se o que faz parte da alimentação das de forma natural. Utiliza-se mais diária: arroz, mandioca, milho, feijão, Depois de colhida, a mandioca é de um tipo de semente para cada batata, banana e outras frutas. processada na casa de farinha, presente cultura, pois se uma delas for As frutas, com exceção da banana, em quase todo bairro ou vila dessas coatingida por alguma praga, outras são plantadas nos quintais das casas; as munidades. Em geral de uso comunitápoderão estar imunes, garantindo a outras culturas são realizadas na roça, rio, consiste num conjunto de equipamentos rústicos, semelhantes aos que os produção esperada. ou seja, em locais próprios para cada índios usavam há centenas de anos. Ali O produto da lavoura destina-se, em tipo de cultivo. se descasca, lava, moe e peneira a mangeral, à subsistência; comercializa-se A agricultura praticada é a de roças dioca, que depois é utilizada como aliquando a safra rende além das expectaitinerantes. Trata-se de um processo mento em forma de farinha. Cada um que tivas de consumo. Outras vezes, os caracterizado pelo descanso da terra, leva a mandioca para fazer farinha, deixa uma certa quantidade para o dono do produtos agrícolas entram num sistema quando o solo dá mostras de esgotaequipamento, que depois a vende. de trocas dentro da comunidade ou mento. O sinal de recuperação de uma fora dela. Um dos produtos plantados área que foi abandonada após o cultivo com o objetivo de comércio é a banana. é expresso pelo surgimento de um novo tipo de vegetação Em muitas comunidades o sistema de trabalho agrícola é no local: as capoeiras. coletivo ou cooperativo nas etapas de preparo da terra, Também é utilizado um sistema no qual mais de uma plantio e colheita. O proprietário da roça convida pessoas do cultura divide o mesmo espaço de roça: o consorciamento. local, e até de fora, para o mutirão e oferece a refeição em Como exemplo, temos o milho com o arroz, o cará indaiá troca do trabalho. O final da colheita, em alguns casos, é ou o cará branco com a mandioca, o milho com a mandiocomemorado com uma grande festa, com bebida, comida, ca e a cana com a mandioca. A cana é plantada para a música e danças características. obtenção do açúcar mascavo, a rapadura e a garapa. Esses pequenos agricultores têm encontrado muitos As plantas nativas são outro sinal para os agricultores; obstáculos para continuar sobrevivendo. A valorização das mostram qual é a lavoura adequada ao local. Assim, onde terras com vistas a empreendimentos imobiliários e a prescrescem a caxeta e a cana-do-brejo, pode-se plantar arroz, são exercida pelos seus responsáveis levam os moradores a pois aquelas plantas indicam áreas inundáveis, propícias vender suas pequenas propriedades. Aqueles que resistem ao cultivo deste cereal. enfrentam, em alguns casos, a proibição de usar a terra para Obedecer o ciclo agrícola anual é muito importante o cultivo, porque, atualmente, a maioria das terras cobertas para essas comunidades, pois cada colheita fornece sepela Mata Atlântica está colocada sob a proteção da legislamentes para o plantio do ano seguinte. As técnicas de ção ambiental, que também coíbe suas atividades. Em preparo do solo são marcas deixadas pela influência da muitos casos, como no dos parques, estações ecológicas e cultura indígena. Vinte dias antes da semeadura, as plantas reservas biológicas, a legislação não permite nenhuma e os troncos finos são roçados; o machado vem depois, atividade de agricultura ou extrativismo. Essas dificuldades cortando as madeiras grossas. Na véspera do plantio, 31 tor, precisa conhecer muito bem o complexo sistema de funcionamento da natureza: as épocas de reprodução dos peixes, o período adequado para sua captura – em que fase da lua, em que maré, se à noite ou durante o dia – e o local propício para a pesca de cada espécie. Quantos são esses pescadores? É difícil A pesca calcular seu número, Pesca artesanal é A pesca comercial utiliza barcos motorizados e emprega pescadores pagando salários. mas o que importa saber aquela realizada nos Traineira em Ubatuba – litoral norte de São Paulo. é que o fruto da sua rios, nos estuários e atividade abastece no mar, próximo ao significativamente mercados locais e regionais. continente, com instrumentos em geral confeccionados A partir da década de 60 a pesca industrial/empresarial pelos próprios pescadores e embarcações simples, muitas passou a exercer grande pressão sobre a pesca artesanal. vezes sem motor. O pescador artesanal é autônomo, não tem patrão. Traba- Com embarcações motorizadas mais velozes, redes e demais apetrechos mais sofisticados, as empresas de pesca apanham lha principalmente em grupos familiares ou em parceria. o produto em locais distantes da costa e em quantidade Embora possa dedicar-se eventualmente a outra atividade muito maior. como a agricultura, a pesca é sua principal fonte de renda. A técnica de captura dos animais que têm valor comerO produto da pesca é dividido em partes com colegas da cial, muitas vezes, depreda o estoque natural. É o caso da comunidade: uma vai para o dono do barco e a outra é parelha, uma técnica de pesca industrial em que dois barcos repartida entre os camaradas ou parceiros. Muitas vezes, quem leva esse produto até o consumidor, atualmente, é um emparelhados dirigem-se à costa, arrastando uma rede que varre o fundo do mar e provoca a destruição da fauna e da intermediário – chamado de atravessador –, responsável flora marinhas. Isto porque nesse movimento capturam-se, pela colocação do peixe no mercado. também, filhotes e jovens que serviriam para a reprodução. Os principais produtos da pesca artesanal no litoral paulista são a tainha, o parati, a pescada, o bagre, a manjuba A conseqüência é a ameaça de desaparecimento das espécies de maior interesse econômico. A parelha arrasta consigo as e a corvina. redes de espera e os cercos flutuantes, destruindo-os. Para pescar, o pescador, do mesmo modo que o agriculobrigam o morador local a procurar trabalho nos centros urbanos, sem habilitação para conseguir os empregos melhor remunerados na cidade; assim, ele é colocado numa situação profissional e de vida que, muitas vezes, beira a marginalidade. . 32 A pesca industrial tem prejudicado a pesca artesanal e ao pescador não resta outra alternativa a não ser a de tornar-se empregado desse sistema industrial – o embarcado –, que lhe rouba as condições que o faziam dono do seu trabalho, um artesão. A garantia de salário e os benefícios decorrentes do registro em carteira apresentam-se como vantagem, principalmente quando os estoques de pescado diminuem e o mercado se organiza para a produção industrial. Outras ameaças à pesca artesanal advêm da valorização imobiliária nas áreas de praia e da ação da poluição, que restringem ou degradam o espaço de pesca, obrigando o pescador a deslocar-se por maiores distâncias, o que ele poderá fazer somente se tiver melhores condições. . Os “doutores” da Mata Atlântica A intimidade das comunidades com o meio natural e o conhecimento da fauna e da flora permitem a existência de “médicos” na floresta. A utilização da flora para a cura de doenças corriqueiras é muito comum entre os moradores da mata, mas há pessoas que se destacam pela capacidade de curar. Distinguem o que causa os diferentes sintomas e sabem o que fazer para curar o doente, associando plantas e materiais de origem animal. Seu conhecimento não se resume a informações como o tipo de planta e onde encontrá-la, mas abrange qual a parte indicada para cada doença e como fazer sua combinação com outras plantas, como preparar medicamentos. Este “doutor”, que aprendeu o que sabe com os pais e avós e o ensinará aos seus filhos, lida também com o aspecto sagrado e religioso, mantendo contato constante com os espíritos da mata, que protegem as plantas garantindo-lhes as virtudes. Geralmente líder religioso na sua comunidade, acrescenta rituais, benzedura e “simpatias” aos processos de cura. . A mata transformada em objetos de uso Vários tipos de plantas são extraídas para a construção de casas, canoas, barcos e utensílios domésticos; as folhas, depois de trançadas, servem como telhados; e óleos, resinas e fibras tiradas das árvores têm utilidade. É o caso do tanino que, depois de preparado, serve para proteger as redes de pesca contra a fixação de algas e animais. O turismo transformou a confecção de objetos artesanais para uso diário em atividade comercial. Essas peças feitas à mão chamaram a atenção dos turistas que começaram a procurá-las cada vez mais. A procura incentivou uma produção em maior quantidade, melhor acabada e mais colorida, bem ao gosto do comprador urbano. Assim, cestos, gamelas, cuias, abanos, esteiras e redes foram, muitas vezes, parar nas paredes e recantos das casas, como peças decorativas. Cerco fixo – técnica artesanal utilizada pelos caiçaras para a pesca em rios e canais que sofrem influência das marés. 33 Cerâmica folclórica de Apiaí. No primeiro caso, o machado derruba pequena quantidade; já para o aproveitamento industrial entra em cena a motosserra, capaz de retirar mais madeira em menos tempo. Algumas comunidades encontram-se envolvidas com essas duas formas bem distintas de produção. É tempo de refletir . Uma economia mista Falamos um pouco antes que a economia tradicional misturava-se à industrial. E, de fato, há elementos como produção em série, mercado intermediário e outros, embutidos no trabalho das comunidades da mata. Isso depende das relações das comunidades com a sociedade mais ampla em que se encontram inseridas. Quanto menor a resistência a mudanças dentro das comunidades, quanto maior o grau de contato com os centros urbanos, mais transformações vão ocorrendo. Dá-se, assim, uma verdadeira troca de influências na economia dessas comunidades. Bons exemplos dessa mistura ocorrem na extração do palmito e da caxeta. Quando se destina à alimentação das comunidades, o palmito é retirado em pequena escala; mas, se o objetivo é abastecer os centros urbanos, muito mais árvores são derrubadas. No caso da caxeta, sua madeira macia presta-se à confecção de artesanato em comunidades próximas à sua área de ocorrência e também é utilizada na indústria para a fabricação de lápis de excelente qualidade. Estamos chegando ao fim da segunda etapa de nossa viagem. Neste trecho, procuramos conhecer alguma coisa da dinâmica das relações, com o meio ambiente e com a sociedade urbana, de pequenos grupos humanos muito próximos da Mata Atlântica, cuja economia privilegia uma produção de pequena escala e para os quais a floresta é uma companheira. Como uma forma de nos despedir dessas comunidades tradicionais vamos participar de um acontecimento muito importante, uma manifestação da cultura caiçara que mistura trabalho, conhecimento, festa, e que é, enfim, expressão da vida: a pesca da tainha. . Apresentação da tainha A tainha é um peixe do mar, da família dos mugilídeos. Cria-se, porém, em água doce e vive, durante a primeira fase de sua vida (que coincide com os meses de verão), em lagoas, rios e estuários, no sul do País; depois, vai para o mar. Quando, em abril, os primeiros ventos minuanos trazem o frio andino, as tainhas nadam para o norte, próximas à costa. A pesca da tainha dura cerca de três meses no litoral paulista e apresenta três fases em que o envolvimento dos pescadores é bastante distinto. 34 Pesca da tainha Antes da chegada do peixe, os pescadores dedicam-se ao conserto das redes, como o tresmalho, substituindo as partes corroídas pelo uso no ano anterior. Fabricam redes novas que receberão o tratamento de um banho de tanino feito com a casca da aroeira, mangue vermelho ou cajueiro, por exemplo, antes de estrearem nas águas do mar. No final do mês de maio, quando chega o vento sudoeste, “o vento que encosta a tainha”, os pescadores sabem que o peixe se aproxima e saem, à noite, à sua procura. Neste início não importa tanto o lucro que possa advir da venda do peixe, mas a emoção de ostentar os primeiros resultados da pescaria. Os meses de junho e julho representam o ponto alto da pesca. Os pescadores estão organizados e voltados inteiramente para esta tarefa. Mesmo aqueles que se dedicam à pesca de outros produtos têm que aproveitar a chegada da tainha, para garantirem a sua subsistência. No final de cada tarde, um “vigia” se coloca numa posição de onde possa observar o mar e, ao perceber a movimentação do cardume, anuncia-o aos outros. Todos tomam posição nos barcos, cada qual com sua tarefa, e passam, muitas vezes, a noite toda pescando. O resultado da pesca é dividido em partes. A festa da tainha é o grande acontecimento social para esses caiçaras. É comemorada no dia de São Pedro – padroeiro dos pescadores –, ou de outros santos, cuja data coincida com a temporada da tainha, conforme a região. Com o mês de agosto vai terminando a pesca. O “peixe de arribada” – aquele que sobra – está começando sua volta para o sul. Outras espécies de peixe vão requerer outros instrumentos, outra rotina. . Comparando as coisas Podemos aproveitar a descrição da pesca da tainha para fazer uma ligeira comparação com as rotinas de trabalho de um habitante qualquer da cidade grande. Vamos lá? • Na cidade há uma separação clara entre moradia e local de trabalho; para o caiçara, o espaço do trabalho é um prolongamento do local onde ele mora. • O tempo do trabalhador urbano é o tempo do relógio, seu ritmo está ligado às exigências da produção; na pesca, a natureza é quem dita o ritmo da vida. • A escola é, no meio urbano, um importante espaço de aprendizagem da profissão; na arte da pesca – inclusive a técnica de construção de embarcações e instrumentos – todo o conhecimento é aprendido na prática do trabalho, ao acompanhar os mais velhos, desde cedo, na realização das atividades. Essas diferenças nos dão a idéia de como é possível, em 35 lugares bem próximos no espaço e no tempo, coexistirem modos de vida tão distintos. Quando nos interessamos em compreender uma cultura diferente da nossa, temos que estar atentos para o fato de que vamos fazê-lo a partir do nosso ponto de vista, usando as nossas medidas e os nossos valores, o que pode nos levar a julgar como inferior aquilo que é diferente. Cada cultura tem suas características. Conceitos como progresso, civilização, novo e moderno são relativos; não guardam em si garantia absoluta de qualidade ou vantagem. Tendo isso em mente, estaremos abertos para o que há de particular e interessante em outros modos de vida. Nem melhores, nem piores, apenas diferentes! Mas, afinal, o que nos interessa em tudo isso? O simples fato de existir comunidades tradicionais convivendo com uma população urbana, num sistema industriali- zado, já seria motivo de interesse para uma análise e um registro. Mais do que isso, interessa-nos identificar e divulgar formas menos agressivas de explorar a natureza, numa área importante, em que se encontra o pouco que resta da Mata Atlântica em São Paulo. Não se pretende substituir tecnologias avançadas de produção pelas formas tradicionais aqui apresentadas. As relações que essas comunidades estabelecem com o meio natural não são modelo para sociedades urbanas, com milhões de habitantes. Porém, o desenvolvimento tecnológico e o avanço científico não substituem o conhecimento empírico e as formas tradicionais de vida. A alternativa que se coloca é a possibilidade de reunião de diferentes formas de saber – o tradicional e o moderno – para, quem sabe, a partir disso, começarmos a desenvolver sem destruir. 36 Porto de Santos localizado no estuário da Baixada Santista. 37 38 ESTAÇÃO DE EMBARQUE Nº 3: O HOMEM E O URBANO P elo modo como temos caminhado até agora, fica claro que os índios e as comunidades tradicionais não são os únicos habitantes da região pela qual viajamos. Ao contrário, representam uma minoria, no meio da vasta população urbana que vive de forma muito diferente, oposta mesmo, onde as atividades econômicas obedecem a outro ritmo – o tempo da fábrica –, cujas origens encontram-se muitos séculos atrás e longe do Brasil, na Europa, que vivia um período de plena expansão comercial. Voltemos no tempo e atravessemos o Oceano Atlântico. Continuemos viajando. Uma volta a 1500 Tudo começou porque Portugal, dotado de um projeto mercantil colonial semelhante ao de outros países da Europa, entre os séculos XV e XVI, expandiu seus domínios, cruzando os mares e apossando-se das novas terras encontradas. Foi por isso que, navegadores europeus e, no caso do Brasil, principalmente os portugueses, empreenderam viagens a terras americanas, procurando novas fontes para o abastecimento do mercado mundial. O Brasil, como uma dessas fontes, acabou sendo transformado em colônia de Portugal. Ao desembarcarem na costa brasileira, os portugueses traziam em sua bagagem uma visão da natureza bem de acordo com o momento expansionista em que se encontravam. A atração exercida pela fauna prendiase à possibilidade de exploração dos recursos naturais que representava. A natureza aí estava, pronta para ser 39 usufruída e aproveitada. Para o colonizador, o fantástico desafio de dominá-la, transformando-a em objeto de lucro, constituía a motivação para suas ações. Implantou-se aqui uma economia predatória, na qual importava retirar, de imediato, o que tinha valor comercial, sem qualquer preocupação com o futuro da colônia. Foi o início de uma atitude de destruição da natureza que, depois, incorporou-se ao modo de vida da sociedade brasileira. A extração, concentrada nos recursos naturais que interessavam à Coroa, localizou-se, inicialmente, apenas em alguns pontos da colônia, devido às limitações de conhecimento do território e da capacidade de absorção, pelo mercado mundial. Assim, trechos da costa atlântica, revestidos por exuberante mata, começaram a sofrer a extração dos seus recursos, como o pau-brasil, e a servirem para o cultivo do que mais interessava, no momento, ao mercado mundial, que era a cana-de-açúcar. Pela proximidade com o litoral, a Mata Atlântica foi a floresta mais prejudicada com a entrada deste novo homem em cena – o colonizador. Como diz Vital Farias, num trecho da sua canção Saga da Amazônia, “se a floresta, meu amigo, tivesse pé para andar, eu garanto, meu amigo, com o perigo, não tinha ficado lá”. . Mata Atlântica, a preferida do colonizador Uma das regiões mais exploradas desde o início da colonização foi o litoral brasileiro, onde naquela época predominavam as matas atlânticas e outros ecossistemas associados. As matas atlânticas acompanhavam o litoral brasileiro, do Rio Grande do Norte até o Rio Grande do Sul. Em São Paulo, foram exploradas desde os primeiros ciclos econômicos, na época da Colônia. Duas vilas destacaram-se na história do Brasil Colônia: a Vila de São Vicente e a Vila de São João Batista de Cananéia, fundadas na primeira metade do século XVI. Sua localização era estratégica e correspondia ao que os portugueses procuravam em toda costa: pontos favoráveis para a atracação9 das embarcações, com águas calmas e protegidas. . Jóias para a Coroa De Cananéia partiram para o interior expedições em 40 busca de ouro e pedras preciosas. Da primeira, que seguiu para o interior pelo rio Ribeira de Iguape, não se teve notícias, mas o ouro foi encontrado algum tempo depois, no alto desse mesmo rio, nos atuais municípios de Apiaí e Iporanga. Nessa região, que corresponde hoje ao Vale do Ribeira e ao litoral sul de São Paulo, o ouro foi o principal produto de exploração e o centro de todas as atividades. Vários povoados foram fundados nas margens do rio e o porto de Iguape passou a realizar as exportações. A cidade, transformada em pólo regional, viveu seus “anos dourados” enquanto durou esse ciclo. . O Ciclo da cana Mais ao norte, a Vila de São Vicente firmava-se. A paisagem começava a ser alterada com a introdução de animais domésticos, como o gado e o cavalo, e da cana-deaçúcar, trazida da Ilha da Madeira, outra colônia portuguesa. Na planície costeira, estabeleceram-se extensas lavouras canavieiras e grandes engenhos junto às grandes propriedades, o que gerou uma organização do espaço com base na monocultura – cultivo exclusivo de um produto, no caso, a cana-de-açúcar. Sua produção era ali beneficiada e depois exportada. Porém, a área disponível para o cultivo da cana-de-açúcar nessa região era limitada, devido à presença de locais inundáveis, como brejos e mangues, e das escarpas da Serra do Mar, inadequadas para a agricultura. O nordeste do Brasil, por sua vez, já estava produzindo o açúcar com custos mais baixos, em virtude de melhores condições de transporte e da qualidade dos solos na Zona da Mata. A produção de açúcar da Vila de São Vicente entrou em decadência e perdeu expressão no mercado mundial. A função portuária passou a ser exercida em Santos que, apresentando condições mais favoráveis de atracação, transformou-se em pólo de exportação dos produtos do planalto, para onde a colonização já havia se dirigido. A cana-de-açúcar persistiu no litoral por meio de uma nova tentativa de monocultura em grandes áreas, dessa vez em São Sebastião e Ubatuba, no litoral norte. Essa região, que até a metade do século XVIII manteve pequenos núcleos 41 populacionais isolados, produzindo para a subsistência, começou a conhecer a devastação da economia predatória já instalada em outros pontos do país. O açúcar, produzido em larga escala, e a aguardente tinham o mesmo destino que a produção de São Vicente no século XVI: o mercado europeu. Mas as características geográficas também aí não eram propícias para a lavoura canavieira; o litoral recortado e as escarpas da Serra do Mar aproximando-se da linha da costa deixavam poucas áreas de planícies. . Um pouco de café? O café para exportação também foi experimentado no litoral norte, nos primeiros anos do século XIX. O seu cultivo cresceu economicamente até 1850, mas foi abandonado em função da produção das lavouras do Vale do Paraíba, que suplantaram a produção litorânea, com suas terras mais extensas e férteis. Assim, o ouro, a cana-de-açúcar e o café estabeleceram ciclos que tiveram, em comum, um caráter de depredação, palavra que tem como sinônimos saque, pilhagem, devastação. Também a pesca da baleia teve importância regional, porque dela extraía-se o óleo utilizado na iluminação das vilas. A Ilha do Bom Abrigo, várias localidades no município de São Sebastião e Bertioga eram locais que se destacavam e Armação, Baleia e Espia são nomes de praias que guardam a lembrança dessa atividade extrativista, responsável pelo desaparecimento das baleias na costa paulista. Com os interesses coloniais caminhando para outras direções, esse litoral passou a ser ocupado de formas variadas, ligando-se à metrópole apenas com relação ao escoamento dos produtos da terra, principalmente através do porto de Santos. O povoamento já estabelecido continuou a desenvolverse, baseado, na maior parte das áreas, numa agricultura de subsistência. No entanto, nota-se a presença de ciclos bem pontuais, como o do arroz, em Iguape, no fim do século XIX e início do século XX. Um salto para a era industrial De 1822, data da independência do Brasil, até as primeiras décadas de 1900, alguns trechos das regiões litorâneas e da Serra do Mar mantiveram-se à margem do desenvolvimento do Estado, o que permitiu a recuperação natural de muitas áreas devastadas, que hoje formam a mata secundária existente. No final do século XIX, algumas indústrias de pequeno porte haviam se instalado no litoral. Eram fábricas que beneficiavam produtos agrícolas, como o arroz em Iguape e a banana na Baixada Santista, além de olarias e curtumes. Indústrias de anilinas, adubos e papel foram implantadas no litoral central. Essa situação perdurou até meados do século XX, quando a economia predatória retornou ao litoral, desta vez não Mapa de Cubatão em 1852. 42 mais para extração de recursos, mas visando o aproveitamento do solo para a construção. Novamente, os interesses e as decisões encontravam-se distantes dali. A infra-estrutura de transporte montada como apoio às atividades do porto de Santos favoreceu a concentração industrial, o desenvolvimento do comércio e das atividades de serviço, e a conseqüente urbanização da Baixada Santista. As condições ambientais e a proximidade com o maior centro produtor e consumidor – São Paulo –, aliadas às facilidades do transporte nacional e internacional oferecidas pelo porto, trouxeram para a região o maior pólo petroquímico do País. Foi uma decisão oportuna, na perspectiva dos grandes interesses econômicos, que, no entanto, provocou resultados dramáticos em termos ambientais. Bairro-cota, nome dos assentamentos nos limites do Parque Estadual da Serra do Mar, na região de Cubatão. com extensas formações de manguezais. É uma região de grande crescimento econômico, com graves problemas decorrentes da industrialização, principalmente em Cubatão, onde a urbanização caótica criou sérios problemas ambientais. O turismo sem planejamento na Baixada Santista criou também uma paisagem urbana marcada pelos arranha-céus, que criaram outra muralha, agora de cimento e concreto. Nesta região, a Mata Atlântica tem uma parte protegida pelo Parque Estadual da Serra do Mar – que é o maior parque do Estado. CU BA TÃ O Falando um pouco da Baixada Santista... especialmente de Cubatão A paisagem do litoral central ou Baixada Santista é marcada pelas escarpas da Serra do Mar, uma muralha coberta por florestas que cercam o mar, como bem observaram os colonizadores portugueses ao chegarem a essa região. Da muralha ao mar, uma rede de drenagens desce e encontra a planície formada por cordões arenosos da restinga, e uma grande área estuarina SANTOS BE RT IO GA GU PR AR AI UJ AG MO Á RA NG N AG DE UA ITA NH AE M PE RU IBE Mapa do litoral central. 43 pudesse suprir de energia elétrica o A Baixada Santista é formada por novo empreendimento. vários municípios, como mostra o Com a refinaria chegaram outras mapa. Além de Cubatão e dos muniindústrias nacionais e estrangeiras, cípios costeiros, fazem parte da Baicujo objetivo era utilizar produtos e xada Santista várias ilhas, dentre elas subprodutos dela gerados, ou aproa de São Vicente – onde se localiza a veitar a infra-estrutura e as vantagens sede do município de Santos – e a de governamentais concedidas para a Santo Amaro – onde fica o município formação daquele pólo industrial. de Guarujá. Em 1964 foi instalada a CompaA cidade de Cubatão fica na planínhia Siderúrgica Paulista – Cosipa, cie onde se dá o encontro da foz de a maior siderúrgica do País, para a dois grandes rios que descem a Serra produção de chapas de aço destinado Mar: o Cubatão e o Mogi. Essa das principalmente à fabricação de planície é cercada quase totalmente automóveis. pela escarpa da Serra do Mar. Atualmente, o pólo abrange mais Os ventos que vêm do mar, enconde 20 indústrias, a maioria delas para trando esse obstáculo, elevam-se e fabricar produtos químicos, como provocam aquela neblina tão caractecloro, soda cáustica, ácido clorídrico rística da serra; porém, é pouca a e fertilizantes. circulação do ar. Sangramento das encostas da Serra decorrente Num local assim, em que o ar da poluição na região do pólo industrial E olha aí o resultado quase não se renova, a fumaça que sai de Cubatão, em 1985. A decisão de destinar parte da área do das chaminés das fábricas causou uma município à atividade industrial poluição de dimensões dramáticas desafiou a administração pública a lidar com os sérios para a vida das pessoas e da vegetação. Pois foi exatamentranstornos causados à população local. te nessa região que se implantou um pólo petroquímico. Os altos índices de poluição do ar literalmente destruíram a vegetação das encostas, que não se refez. Perdendo Refinando o petróleo e engrossando o caldo as plantas que o seguravam, o solo da escarpa sofreu Na década de 50, o governo federal decidiu implantar violenta erosão. A terra deslocada com a erosão começou a uma grande refinaria de petróleo no País – a Refinaria assorear10 o estuário, comprometendo a reprodução de Presidente Arthur Bernardes. Depois de acirrada disputa inúmeras espécies animais e vegetais. Todos os ambientes política entre os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, a foram afetados. Até as indústrias passaram a correr perigo escolha recaiu sobre São Paulo. por causa desses escorregamentos. O assoreamento atinForam investidos muitos recursos públicos na região. giu também o Porto de Santos que, pelas suas condições Por exemplo, o curso do rio Pinheiros na capital paulista geográficas, exige ser dragado periodicamente para manter teve de ser revertido, para que a Usina Henry Borden . . 44 a sua profundidade. Além disto, muitas indústrias foram construídas em aterros sobre manguezais. Os resíduos industriais, por sua vez, contaminaram as águas e o solo, provocando sérios problemas de abastecimento. Deste quadro, resultaram graves conseqüências sociais e para a saúde. A construção das indústrias atraiu trabalhadores de várias partes do Brasil, muitos dos quais, terminadas as obras, ficaram desempregados, tendo de se valer do subemprego para sobreviver. Os moradores antigos também sofreram com as profundas mudanças que as indústrias trouxeram para o seu modo de vida. Quase sem espaço e com o ambiente degradado, não podiam exercer plenamente suas atividades. Marginalizaram-se. A vida em condições de extrema pobreza transformou esses grupos sociais em agentes da degradação. Isso porque houve ocupação de áreas impróprias para a habitação: barracos foram levantados nas encostas da Serra e nos manguezais, colocando a vida em risco, frente ao perigo de deslizamentos iminentes a cada temporada de chuvas. Produtos perigosos transportados em encanamentos subterrâneos provocaram graves acidentes, como a explosão ocorrida na Vila Socó, em 1984. . Correndo para pagar o prejuízo Face a este cenário insuportável de poluição e devasta- Plântula de Tibouchina pulchra, espécie utilizada na semeadura aérea para recuperar as encostas desmatadas da Serra do Mar, no setor que margeia Cubatão. ção, que se tornou de conhecimento público e sensibilizou a sociedade civil nacional e internacional, o governo do Estado de São Paulo começou a buscar soluções para prevenir, recuperar e remediar o mal já instalado. Diversos órgãos receberam verbas para pesquisas que permitissem acompanhar e controlar as fontes de poluição do ar, da água e do solo, e fiscalizar as indústrias, principalmente quanto à instalação de filtros nas chaminés e tratamento de efluentes industriais. Um programa de controle permanente da poluição e dos escorregamentos foi criado na década de 80, e várias outras ações governamentais desencadearam-se na região. Muitas obras foram realizadas para contenção de encostas, com a finalidade de reduzir o perigo de escorregamento da Serra, a cada estação de chuvas. Os canais assoreados pelo material proveniente da destruição dos manguezais foram dragados3 e, para recuperar a vegetação das encostas da Serra, foi realizada, em caráter experimental, a primeira semeadura aérea de espécies nativas. . “Nós vamos invadir sua praia” Outro aspecto bastante polêmico do desenvolvimento é a atividade turística, da forma como ela acontece no Brasil. 45 No litoral do Estado de São Paulo, tudo começou na Baixada Santista. O município de Santos sempre se destacou como balneário. Nas primeiras décadas deste século, as chácaras de veraneio na orla marítima foram substituídas, aos poucos, por palacetes de propriedade de fazendeiros e comerciantes do café. A implantação da infra-estrutura hoteleira na região teve início em 1914, com a inauguração do Hotel Parque Balneário, na praia do Gonzaga, que funcionava também como cassino. Nos anos 30, Santos começou a receber um público de todas as camadas sociais, o que gerou a necessidade de diversificar os tipos de alojamento: palacetes passaram a funcionar como pensões e proliferaram as cabines para banho e troca de roupa, na avenida à beira-mar. Tômbolo que liga a Ilha Porchat (primeiro plano) à Ilha de São Vicente (segundo plano). Com a inauguração da via Anchieta, em 1947, a situação sofreu nova mudança: o acesso a Santos ficou muito mais rápido, significando uma alternativa de lazer para o paulistano, que já podia descer a Serra de trem, ônibus ou automóvel e permanecer no litoral apenas por um dia. O paulista do interior também tinha onde passar suas férias, ou mesmo o fim de semana. O panorama da orla transformou-se rapidamente com a construção de edifícios de apartamentos, cujo apelo promocional era o de uma segunda residência, ou de um investimento seguro. O comércio de produtos e serviços cresceu rapidamente para atender a um volume enorme de pessoas. A construção da Rodovia dos Imigrantes, no início da década de 70, e da Pedro Taques, facilitou ainda mais o acesso à Baixada Santista. Santos ressentiu-se e começou a mostrar sinais de saturação: a falta de água, energia, problemas de esgoto e de abastecimento de produtos tornaram-se fatos comuns. Suas praias poluíram-se, perdendo as condições de uso durante os períodos de férias. O espaço urbano, repleto de edifícios, fechou a paisagem da orla marítima. A expansão para outras áreas tornou-se inevitável e o caminho foi São Vicente, Ilha Porchat e Guarujá. A partir da década de 70, a Prefeitura de Santos restringiu a utilização das praias, fechando as cabines de banho e proibindo o estacionamento de ônibus fretados. Lá se foram os chamados “farofeiros” em direção à Ponte Pênsil. Atravessando-a, sairam para outros locais, principalmente a Praia Grande. E o fluxo turístico foi caminhando: Mongaguá, Suarão, Itanhaém, Peruíbe. Inúmeros bairros cresceram entre esses centros mais populosos. Os veranistas que freqüentavam o Guarujá, tornaram a balsa mais uma vez, agora com destino à Bertioga e outras praias mais isoladas. 46 Vista de uma das poucas praias e restingas não atingidas pela especulação imobiliária, no litoral norte de São Paulo. Praia da Fazenda – Núcleo Picinguaba – Parque Estadual da Serra do Mar. Pela estrada afora... para o litoral norte As estradas Piaçaguera-Guarujá e Mogi-Bertioga intensificaram a tendência para o nordeste do Estado, porque eliminavam as longas filas à espera de uma balsa. Porém, o que permitiu que o turismo em grande escala pegasse a estrada rumo a esse litoral exuberante, foi a construção da Rio-Santos – a BR 101 – famosa por seu traçado, muitas vezes, a poucos metros do mar. A paisagem observada da estrada que serpenteia pelas escarpas, morros isolados e planícies, é magnífica. De muitos pontos o viajante pode apreciar a costa recortada, cujo relevo irregular causa um efeito de forte impacto, que a cor turquesa do mar ajuda a reforçar. Em vários trechos as ondas arrebentam nos costões rochosos de esporões da Serra do Mar. Esse litoral rendilhado inclui baías onde se concentra o maior número de ilhas rochosas do litoral paulista. As que podemos observar nada mais são do que BA antigos morros, os quais TU A B U CA SÃO SEB RA AST G U AT UT BA IÃO IL B HA EL A um dia, quando o mar esteve mais recuado, portanto mais baixo, já estiveram ligados ao continente. Por isso sua vegetação apresenta características semelhantes àquelas encontradas na Serra do Mar. Até 1950, a situação dos moradores dos diversos bairros dos municípios do litoral norte, inclusive das ilhas, era de relativo isolamento, pois dependiam quase que somente do mar como via de contato. Havia poucas estradas de terra e apenas algumas trilhas abertas na mata, como a antiga rota de tropeiros ligando Ubatuba a Parati, atual Trilha do Corisco, no Parque Estadual da Serra do Mar – Núcleo Picinguaba. A construção da estrada Caraguatatuba-Ubatuba deu início à interligação entre os municípios do litoral norte, mas foi somente nos anos 70, com o início dos investimentos no setor imobiliário, que a região deu um salto quanto ao fluxo de visitantes. A abertura da Rodovia dos Tamoios – na altura de São José dos Campos – que desce até Caraguatatuba, e alguns trechos da Rio-Santos, uniram pontos importantes Litoral norte 47 Litoral norte de São Paulo – no primeiro plano, Ilha das Couves; no segundo, Núcleo Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar. desse pedaço do litoral e também foram responsáveis pelo crescimento sócioeconômico da região. Hoje, a Rodovia Carvalho Pinto também se tornou uma nova interligação importante e provavelmente desencadeará novos processos sócioeconômicos. . De Bertioga a São Sebastião Saindo de Bertioga, depois de ampla planície com áreas inundáveis de ambos os lados da estrada, surge uma seqüência de praias, de tamanho muito variado. Após cada curva, uma nova imagem: a praia de Toque-Toque, por exemplo, com sua belíssima cachoeira na beira da estrada. Em vilas mais populosas, como Boissucanga, predominam as casas de veranistas, os hotéis e as pousadas. Na direção da Serra, temos o chamado “sertão”, onde agora vivem os caiçaras, cada vez mais distantes do mar. Em muitas praias desembocam pequenos rios que se pode acompanhar até o pé da serra. Durante o percurso, poços e cachoeiras com o fundo pedregoso e as águas geladas compõem um cenário perfeito para a magia de borboletas amarelas que brincam em pleno ar. Alguns rios deste trecho, como o Juqueí, tiveram o curso alterado, próximo ao mar, em função de escorregamentos durante a construção da BR-101. O município de São Sebastião tem um centro urbano com infra-estrutura de bancos, supermercados, um comércio variado e o porto, que guarda a lembrança de glórias passadas, além de ser considerado como um dos principais terminais petrolíferos do Estado de São Paulo. Tudo isto faz de São Sebastião um município com função de pólo para a rede de cidades vizinhas, principalmente para a lindíssima Ilhabela, que fica bem em frente. O Terminal Almirante Barroso–Tebar da Petrobras é uma extensão de Cubatão no litoral norte. Recebe petróleo vindo do exterior, envia-o à Refinaria Arthur Bernardes através de oleodutos e recebe-o de volta, dessa vez para distribuir o produto já refinado a vários pontos do território nacional. Instalado na década de 60, trouxe consigo a ameaça e a concretização de grandes desastres ecológicos. Os constan48 Costão rochoso em Caraguatatuba. tes vazamentos de óleo de grandes proporções destroem a fauna marinha e chegam até as praias, prejudicando a pesca dos moradores locais e o lazer dos turistas. . Ilhabela Mesmo de longe, Ilhabela encanta o observador. Atravessando o canal de São Sebastião, a beleza se confirma: são praias, costões, cachoeiras e a água límpida, agitada por cardumes coloridos. A arquitetura arrojada de algumas casas de veraneio impõe-se na paisagem, contrastando com a simplicidade das moradias dos pescadores. No pequeno centro urbano, as construções nos remetem ao passado da Vila Bela da Princesa, famosa pela produção de açúcar e aguardente de primeira qualidade. Cerca de 80% da ilha encontram-se protegidos pelo Parque Estadual de Ilhabela, que abrange outras ilhas do arquipélago, entre elas, a Vitória e a de Búzios. . Caraguatatuba Caraguatatuba é a cidade que mais cedo conheceu o turismo no litoral norte. A facilidade de acesso às suas praias tornou-as muito procuradas principalmente durante a década de 50. Isso provocou a instalação de uma infraestrutura de serviços que contribuiu para o aumento da população urbana. Ainda hoje, muito freqüentada por turis- tas, Caraguatatuba tornou-se ponto de passagem para quem se dirige a outras praias do litoral, descendo pela Rodovia dos Tamoios. No quilômetro 20, na pista que desce, encontra-se o acesso ao Núcleo Caraguatatuba do Parque Estadual da Serra do Mar. . Ubatuba Nessa costa bastante recortada, Ubatuba destaca-se com um colar de pequenas praias que seguem rumo à divisa com o Rio de Janeiro. O centro urbano, como o de outras cidades desta porção do litoral, dispõe de infra-estrutura tanto para os moradores locais como para turistas. No Perequê-Açu, o convívio entre moradores e turistas é muito próximo. Praias mais distantes 49 Índios de uma aldeia na região de Ubatuba. do centro fazem o contraponto, alojando exclusivamente turistas, em condomínios de alto luxo e residências que reproduzem os padrões de conforto da cidade grande. O Saco da Ribeira, o mais importante atracadouro da região, parece um pátio de estacionamento para lanchas, iates e escunas, que os proprietários vêm usar nos períodos de férias ou feriados. Este ponto é saída para o Parque Estadual da Ilha Anchieta onde, além das belezas naturais, encontra-se um antigo presídio de triste memória, que abrigou presos políticos na época do Estado Novo, período da ditadura de Getúlio Vargas. O edifício foi projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo e tombado pelo Patrimônio Histórico. De volta ao continente e sempre para o norte, a estrada segue os contornos da serra: ora plana, quase no nível do mar, ora sinuosa, a alguns metros de altitude, permitindo ver o mar salpicado de pequenas ilhas. A pujante vegetação encontra-se protegida pelo Parque Estadual da Serra do Mar/ Núcleos Santa Virgínia e Cunha, na serra, e Picinguaba, na costa. Neste último, a vila do mesmo nome e o bairro do Camburi reúnem antigos povoados de pescadores, a casa da farinha restaurada de uma fazenda, além de importantes ambientes costeiros. . Turismo no litoral norte: culpado ou inocente? O turismo parece a atividade mais adequada ao potencial desta belíssima região. Porém, a política de abertura de estradas por parte do governo federal favoreceu uma atividade imobiliária selvagem, onde se permitiu o investimento maciço na construção de condomínios de luxo, que exigiram o desmatamento de grandes áreas, ou o avanço para a orla marítima. Uma verdadeira barreira de moradias modificou a paisagem, impedindo, muitas vezes, o acesso às praias e interferindo até mesmo na visão que se pode ter do mar a alguma distância. Esses condomínios e loteamentos encontraram clientela principalmente na elite paulista que, fugindo da saturação do turismo na Baixada Santista, procurava locais mais sossegados para o seu lazer. 50 Outra conseqüência da abertura de acesso sem planejamento e sem restrições de uso do solo, desrespeitando, aliás, leis já existentes, foi uma vertiginosa valorização das terras localizadas à beira-mar, onde viviam e trabalhavam os caiçaras – tradicionais moradores das praias. Empurrados para o interior, muitos deles mudaram-se para o “sertão”, ou para os bairros periféricos dos centros urbanos próximos. Até as encostas – áreas de risco ambiental ou de proteção a mananciais12 de abastecimento para cidades litorâneas – começaram a ser habitadas. Os mesmos problemas se repetiram nas ilhas litorâneas, exploradas por esse tipo de turismo. O litoral norte, pelos recursos naturais que oferece à contemplação e ao lazer, pela posição geográfica em que se encontra, muito perto de grandes cidades do Vale do Paraíba, e pela facilidade cada vez maior de acesso, é um grande pólo turístico do Estado de São Paulo. Mas não se deve reproduzir neste trecho o que aconteceu na Baixada Santista, sob risco de vermos sucumbir, ao mesmo tempo, uma fonte de renda para a população local e IGUAPE as belezas que encantam CA N É AN IA ILHA COMPRIDA qualquer pessoa sensível. Aliás, desafios semelhantes apresentam-se no último trecho dessa nossa viagem: o litoral sul e sudeste, e o Vale do Ribeira. Pegando a estrada para o litoral sul Um dos caminhos para se chegar ao litoral sul é por Peruíbe, seguindo pela Rodovia Pedro Taques. Em Peruíbe, podemos sentir o primeiro impacto das sensações que vão nos acompanhar na visita a essa região: o majestoso Maciço do Itatins, protegido pela Estação Ecológica de JuréiaItatins, ao pé do qual serpenteia o rio Una do Prelado. E por todo o litoral sul e Vale do Rio Ribeira de Iguape a imponência da vegetação, a imensidão das águas e a originalidade dos extensos manguezais nos passarão uma impressão de natureza intocada de grande beleza cênica. Mas para entrarmos em contato com o homem que vive nessa região, escolhemos um outro trajeto, que sai da cidade de São Paulo e entra em diversos municípios desse trecho majestoso da Mata Atlântica. Da capital paulista rumo ao sul pela Rodovia Régis Bittencourt, BR-116, passamos por uma região intensamente urbanizada, próxima a São Paulo. Após Taboão da Serra, a paisagem começa a mudar. É o “cinturão verde”: chácaras de lazer e vastas hortas responsáveis em grande parte pelo abastecimento de hortifrutigranjeiros da capital. A vegetação que vemos da estrada até onde a vista alcança é remanescente da própria Mata Atlântica. Lembremonos das condições climáticas desta parte da Serra, da elevação e do resfriamento dos ventos vindos do Oceano Atlântico, e muito cuidado com a neblina! Litoral sul 51 Pequenos bairros em pontos esparsos da estrada dedicam-se à prestação de serviços ao viajante. Bem mais para dentro da floresta, próximo ao município de Miracatu, há povoados que desenvolvem a agricultura para auto-sustento e que obtêm sua renda através da extração de produtos da mata. Terminada a descida da Serra, entramos numa vasta região plana. A sinalização anuncia o município de Juquiá. Ali, no início do século XX, foi construída a ferrovia Santos-Juquiá, que alterou o fluxo de transporte, dirigido até então para o litoral do próprio Vale, no sentido da Baixada Santista. Isso reforçou uma tendência já existente de centralizar todas as exportações do Estado a partir do Porto de Santos. Mais alguns quilômetros e passamos por uma ponte sobre o maior rio de todo o trajeto: o Ribeira de Iguape. . guesa –, no começo da colonização. No início do século XX, imigrantes japoneses instalaram-se no local por conta de um projeto de assentamento agrícola, apoiados por uma agência de seu país, a KKKK-Kaigai Kogai Kabushi Kajsha/Companhia Ultramarina de Empréstimo S/A. Os japoneses se dedicaram à agricultura, produzindo novos produtos e técnicas de cultivo. As plantações de chá que são vistas da estrada passaram a ocupar vastas áreas, tanto em Registro, quanto em municípios vizinhos. Após beneficiamento em indústrias locais, o chá – um dos principais produtos agrícolas da região – é exportado, além de abastecer o mercado interno. Retomando o caminho, deixamos a BR-116, a única rodovia que liga o sul ao sudeste do Brasil, e entramos na estrada que atravessa a pequena cidade de Pariqüera-Açu, em direção à Iguape. Registro Conhecida como a “capital do Vale”, Registro destaca-se pela infra-estrutura de que dispõe. Localizada nas margens do rio Ribeira, foi o ponto de passagem daqueles que se aventuravam em busca do ouro; ali era cobrado o quinto – imposto sobre a extração do ouro devido à Coroa Portu- . Iguape As ruas e edificações revelam um passado de muita riqueza. No século XVI, esta cidade fundada na foz do rio Ribeira de Iguape sediava o principal porto para escoamento do ouro encontrado no alto do rio Ribeira, o que a tornou um pólo regional. Até companhias teatrais européias apresentavam-se regularmente na cidade. Terminado o ciclo do ouro no final do século XVIII, o que sustentou Iguape a partir daí foi a característica de cidade portuária. Em meados do século XIX, um fato novo veio Prédio da Cooperativa Agrícola de Registro. 52 Vista aérea da cidade de Iguape. alterar este quadro: a decisão de reduzir o trecho final do percurso até o porto. Para isso, foi necessário abrir um canal artificial entre o rio e o Mar Pequeno, cortando perpendicularmente a planície e transformando parte de Iguape numa ilha. Porém, pouco depois de construído, a ação da correnteza provocou desbarrancamentos, alargando tanto o leito e as margens do canal que ele passou a ser o caminho preferencial do rio. Os sedimentos carregados para o Mar Pequeno provocaram o assoreamento do porto, inviabilizando sua utilização. Perdia-se, assim, uma das únicas vias de escoamento da produção da região. A atividade mais prejudicada foi a rizicultura. Embora o arroz produzido no Vale tenha recebido prêmios por sua qualidade, já havia dificuldades em competir no mercado com outras regiões produtoras. Com o assoreamento do porto, os custos com transportes inviabilizaram seus preços, causando o encerramento de mais um período de importância econômica para a região. Hoje, a população de Iguape vive principalmente do aproveitamento de parte do seu potencial turístico e da pesca da manjuba, do camarão e da tainha. Iguape é riquíssima em recursos naturais, como todos os municípios do Vale do Ribeira. Não é por acaso que algumas das Unidades de Conservação mais importantes do Estado localizam-se nessa área, como a Estação Ecológica de Juréia-Itatins, criada a partir de um grande movimento da opinião pública, contrária à proposta de se instalarem ali usinas nucleares. Uma balsa sai de Iguape e nos leva ao município de Ilha Comprida, transformada em Área de Proteção Ambiental – APA. A Ilha formou-se a partir da deposição de sedimentos marinhos e continentais; seu solo arenoso resiste pouco à ocupação Festa do Bom Jesus de Iguape. 53 Cananéia humana e às modificações que isso traz ao ambiente, como os desmatamentos da vegetação natural. Como o próprio nome diz, a ilha é comprida, alongando-se numa única praia de 70 quilômetros de extensão. Mais para o sul, surgem as ilhas do Bom Abrigo e do Cardoso. E agora a balsa nos levará à Ilha de Cananéia: uma nova parada. . Cananéia Cananéia foi uma das primeiras vilas ocupadas pelos colonizadores. A arquitetura da cidade testemunha isso: ruas estreitas e construções coloniais trazem o passado para os nossos olhos. Desde o início, Cananéia destacou-se por seus estaleiros, onde se construíam embarcações marítimas e fluviais – atividade que faz parte da vida dos moradores até hoje. Duas grandes instalações marcam presença na beira do canal, ambas construídas na década de 70: o Hotel Glória, administrado até 1989 pelo governo do Estado e, posteriormente, pela prefeitura de Cananéia, e o entreposto de pesca que recebe o pescado da região e abastece parte da capital paulista. Saindo da Ilha de Cananéia, as águas calmas do canal da baía de Trapandé nos levarão ao extremo sul do litoral paulista. Do lado direito, o continente; do lado esquerdo, o Parque Estadual da Ilha do Cardoso, onde foi criado, também nos anos 70, o Centro de Pesquisas Aplicadas aos Recursos Naturais da Ilha do Cardoso, o Ceparnic. Com o objetivo de realizar estudos sobre a região, o Centro foi equipado com laboratórios e alojamentos para cientistas, mas desde a sua abertura tem sido subaproveitado. De ambos os lados do canal uma visão fantástica: a ondulação dos morros e a vegetação dos mangues com suas raízes na beira d’água. Durante alguns quilômetros estaremos percorrendo um ambiente cuja importância é reconhecida no mundo inteiro: o complexo estuarino-lagunar Iguape-Cananéia-Paranaguá13. Formado pelo encontro das águas de rios com as águas salgadas do mar, este ambiente é extremamente propício à vida marinha e possui os manguezais mais preservados do País. Próximo desses manguezais podemos ver saliências como se fossem morrinhos de conchas: são os sambaquis ou casqueiros. Na Ilha do Cardoso, uma ou outra casa nos chamará a atenção. Mais adiante a fisionomia da ilha se altera: em lugar dos morros cobertos por imensas árvores, uma planície com cerca de 500 metros separa o canal do mar. Daí até o final da ilha, algumas pequenas vilas de pescadores com54 SAMBAQUI Os sambaquis são amontoados de conchas, instrumentos e ossadas humanas encontradas em algumas áreas perto de lagoas e estuários. Essas formações estão sendo pesquisadas desde o início deste século, e o resultado permite afirmar que povos primitivos habitaram a região, há mais de seis mil anos! O estudo do material revelou ainda que esses povos desconheciam a agricultura, viviam da coleta, pesca e caça; utilizavam instrumentos bastante rudimentares; instalavam-se em locais onde poderiam facilmente dispor de alimentos; ali permaneciam por cerca de 40 anos e depois mudavam-se, em função do esgotamento temporário dos recursos. Ainda não se sabe ao certo a causa do desaparecimento do “homem do sambaqui”. Guerras com povos mais adiantados ou alterações no ambiente natural? Não se sabe... O que se sabe é que esses achados constituem verdadeiras Caverna Morro Preto, uma das cavernas mais visitadas do Núcleo Santana, situada no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – Petar. relíquias arqueológicas, pois por meio deles é possível obter-se informações acerca do modo de vida do homem brasileiro daquela época. pletam o cenário. Marujá, a maior delas, destaca-se por sua beleza natural e pelo modo de vida de seus moradores – profundos conhecedores do ambiente que habitam. Esse conhecimento pode ser observado a partir de um instrumento de pesca extremamente eficiente: o cerco. A riqueza ambiental continua em direção ao Paraná, mas nós nos dirigiremos até alguns pontos interioranos do Vale do Alto Ribeira, como Apiaí e Iporanga. Ali, está localizado o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – Petar, onde o relevo de rochas calcárias, comum nesta região, possibilitou o desenvolvimento de inúmeras cavernas, grutas e abismos. A visão que se tem na entrada e no interior de uma caverna é fascinante. Além do Petar, que se destaca por possuir o maior número de cavernas, também no Parque Estadual Intervales e no Parque Estadual de Jacupiranga – com a conhecida Caverna do Diabo – podemos contemplar esse tipo de formação. . Muito bonito o litoral sul, porém... Apesar da riqueza ambiental, histórica e cultural do Vale do Ribeira esta região esteve, na maior parte do tempo, à margem do desenvolvimento do Estado de São Paulo. Várias atividades econômicas que se estabeleceram com sucesso em outras regiões, foram tentadas também ali, mas, com vias de acesso escassas e um tipo de solo pouco propício 55 para a agricultura, os resultados foram inexpressivos. tação – os posseiros. Não bastando, existem, ainda, terras Assim, seus municípios mantiveram-se centrados basicacuja documentação em cartório confere propriedade a mais mente numa agricultura de subsistência e no extrativismo de uma pessoa. Questão antiga na região, agravou-se com a dos recursos naturais, por meio da pesca, da coleta vegetal instalação da infra-estrutura viária e turística. A conseqüente e da extração mineral. valorização das terras aprofundou conflitos fundiários Não somente o isolamento geográfico, mas também a antigos, que resultaram em concentração das terras nas mãos baixa densidade demográfica entre outros fatores favorecede poucos, e na sistemática expulsão e marginalização dos ram, na década de 70, que integrantes de movimentos de antigos moradores. Com isso, estava aberto o caminho para contestação ao regime político a especulação, além do aproveiinstalado no País, em 1964, ali se tamento pelo setor turísticorefugiassem e treinassem grupos imobiliário, que acabou ocupanguerrilheiros. Tal atividade foi do áreas sem aptidão para a energicamente reprimida pelo construção, como é o caso dos Exército, que aniquilou a guerrimangues e da restinga, e, de lha. Porém, a partir desse episómodo especial, muitas áreas da dio, as autoridades. governamenIlha Comprida. tais voltaram sua atenção para a Isolamento, pobreza, quesregião e passaram a investir em tões fundiárias, Mata Atlântica infra-estrutura básica, buscando quase intocada, grande volume diminuir o isolamento e evitar de água, ecossistemas preciosos, com isso o risco de repetição do são algumas das expressões que A Ilha Comprida – litoral sul – teve suas restingas desmatadas para dar lugar a loteamentos. acontecido. definem este último ponto da A retomada do desenvolvimennossa viagem – o litoral sul e o to deu-se através de medidas concretas de incentivo à agriVale do rio Ribeira de Iguape. cultura, à pesca e à ocupação imobiliária, que incluíram a construção de inúmeras obras, principalmente estradas É tempo de refletir vicinais14, abrindo o acesso à região. Muito antes disso, o litoral sul e o Vale do Ribeira já O caminho para a busca de soluções talvez se encontre na eram palco de problemas sociais muito graves, que permaresposta a algumas perguntas. necem até hoje sem solução. Na base deles encontra-se a Qual a vocação desta região, cuja forma de desenvolviquestão fundiária, ou seja, a questão da posse legítima e mento resultou na preservação espontânea de alguns espaços documentada das terras. A situação é complexa, porque naturais extremamente importantes para o equilíbrio existem ali inúmeras áreas das antigas províncias do Impéambiental da região? rio, que passaram, a partir de 1891, a constituir território Qual é a saída para desenvolver e, ao mesmo tempo, dos Estados – as terras devolutas –, além de pessoas que manter a riqueza ambiental? ocupam as terras antes dos processos legais de regulamenHá, de fato, oposição entre desenvolvimento econômico 56 e conservação dos recursos naturais? É justo a população de uma região considerada patrimônio de toda a humanidade arcar sozinha com o ônus de conservá-la? Existem mecanismos políticos e econômicos que permitam aos moradores da região desenvolver atividades econômicas compatíveis com a conservação da riqueza do seu ambiente? Responder a essas e a outras perguntas com ações efetivas é o grande desafio que se coloca para todo aquele que se interessa e tem responsabilidade sobre o futuro da conservação da Mata Atlântica no Estado de São Paulo. 57 58 A capivara é o maior roedor do mundo e vive próxima a lagoas e áreas alagadas, porque só defeca na água. 59 60 ÚLTIMA ESTAÇÃO : RECUPERANDO A MATA PERDIDA E neste ponto vamos começar a fechar o círculo da nossa trajetória. Até aqui vimos como e por que este conjunto de florestas sofreu tamanha devastação. Agora vamos ver como o homem tem reagido frente ao desafio que significa equilibrar desenvolvimento e conservação. Muitas iniciativas no sentido de defender os recursos naturais surgiram, fruto não apenas de ações individuais, mas de decisões oficiais, expressas em leis. É verdade que os objetivos da conservação desses fragmentos de floresta ampliaram-se, embora as intervenções para recuperar a mata ainda sejam pontuais. Não é tarefa fácil. Requer muita pesquisa, colaboração das pessoas e fundamentalmente dinheiro para investir. São muitos os objetivos dessa recuperação. Um deles é atenuar pressões sobre os remanescentes, criando uma espécie de reserva complementar de matérias-primas, para evitar o saque nas matas ainda conservadas. Outro é o de recuperar para garantir qualidade ambiental, recursos hídricos, biomassa vegetal etc. Existe ainda uma proposta de criação de zonas-tampão para proteção de áreas singulares que conservam espécies originais da fauna ou da flora. Para entender bem esta questão, vamos discutir um pouco o desmatamento. O desmatamento tem uma história O desmatamento tem sido um dos principais problemas para o que ainda restou da Mata Atlântica. As matas atlânticas foram intensamente destruídas ao longo da história brasileira. Originariamente, elas ocorriam ao longo do litoral brasileiro, de norte a sul, e ocupavam também grandes extensões de terras do interior nas Regiões Sudeste e Sul. Hoje, restam apenas 5% de um total de 1.000.000 de quilômetros quadrados dessas matas, localizados em sua maior parte no Estado de São Paulo. Se observarmos bem, perceberemos que as maiores cidades brasileiras, onde vivem cerca de 80 milhões de pessoas, ou mais de 50% da população brasileira, localizam-se em áreas em que dominavam essas matas. O mesmo acontecendo com os grandes pólos industriais, químicos, petroleiros e portuários do Brasil, que são responsáveis por 80% do PIB nacional. O nosso Estado, por exemplo, fica numa região de domínio das matas atlânticas. Foi aqui que elas mais avançaram interior a dentro, por isso é que o seu desmatamento é muito significativo. No interior de São Paulo, quase toda a vegetação de florestas tropicais foi 61 dizimada, restando apenas algumas manchas abrigadas em Unidades de Conservação, que significam 3% da cobertura vegetal original. Embora os maiores desmatamentos tenham ocorrido no ciclo cafeeiro, hoje ainda temos uma forte tendência de utilizar áreas de floresta para construir hidrelétricas e expandir investimentos turísticos imobiliários, principalmente na zona litorânea. No século XVI, o Estado de São Paulo possuía aproximadamente 81,8 % de seu território coberto por florestas, segundo estudo de Mauro Victor (1975), abrangendo uma variedade de matas determinada pelo clima e pelo relevo, presentes desde as escarpas litorâneas até as barrancas do Rio Paraná. Estas florestas, pouco estudadas ecologicamente, receberam denominações diferentes, conforme a condição de localização e clima em que se desenvolveram ou, simplesmente, conforme a sua fisionomia. Assim, é possível encontrar na literatura, principalmente nos relatos de botânicos e viajantes naturalistas, designações, tais como: florestas pluviais (as da faixa litorânea), mesófilas de interior, de altitude (nas regiões serranas), matas frias de araucária (no planalto atlântico), entre outras. Várias destas formações foram praticamente extintas durante os diferentes ciclos econômicos que comandaram a agricultura, a industrialização e a urbanização. Atualmente, as chamadas mesófilas e as matas de araucárias, destruídas com a expansão do café, estão representadas por pequenas manchas isoladas. No sudeste brasileiro, à época do ciclo do café, os desmatamentos progrediram pela região litorânea, a partir da fronteira com o Estado do Rio de Janeiro, alcançando o Vale do Rio Paraíba. A cafeicultura expandiu-se para o interior, abrangendo quase todo o Estado, e nos anos 20 deste século, a devastação já havia reduzido a cobertura original a 44,8% de sua área total. Na década de 50, restavam apenas 26%. Hoje as estimativas apontam remanescentes de cobertura florestal em torno de 8,3% para todo o Estado. Outras culturas também colaboraram para a extinção das florestas paulistas, como a do eucalipto e do pinheiro do Caribe, a da cana-de-açúcar e as pastagens. Estas estatísticas devem ser olhadas com cuidado pois se referem também a uma média para o Estado. No Vale do Ribeira encontram-se as maiores extensões de florestas remanescentes, significando uma porcentagem de mais de 50% de sua área original. Flores que sinalizam a presença de mata secundária irrompem do majestoso dossel verde da Mata Atlântica. 62 Áreas cobertas por remanescentes de mata atlântica e ecossistemas associados no Estado de São Paulo. 1985 Classe Floresta Restinga Mangue ha 1.792.629 175.936 16.460 1990 %* 7,42 0,73 0,07 há 1.731.472 174.793 16.359 Evolução da perda de cobertura florestal no Vale do Ribeira – Estado de São Paulo. Ano Área (x100 ha) Área* (%) 1500 15.000 94,5 1854 14.990 94,4 1886 14.960 94,2 1907 14.940 94,1 1920 14.900 93,8 1935 14.720 92,7 1952 14.590 91,9 1962 13.930 87,8 1973 11.270 71,0 1985 8.680 54,7 1990 8.540 53,8 * Relativo à área total do Estado. Fontes: Victor (1975) 1500 a 1973; Fundação SOS Mata Atlântica (1992); 1985 a 1990 Incremento %* 7,16 0,72 0,07 ha 563 0 0 %** 0,03 0,00 0,00 Decremento ha 61.720 1.153 101 %** 3,44 0,66 0,61 A explicação para essas diferenças na intensidade de desmatamento encontra-se no fato de que o Vale do Ribeira nunca acompanhou os ciclos econômicos dominantes no Estado, configurando-se sempre como uma região de economia marginal. Somente a partir da década de 70, com a abertura de estradas, é que a agricultura da banana se expandiu pelo centro do Vale, ao mesmo tempo que os municípios ao longo da rodovia apresentavam um crescimento urbano. Recentemente, quase todas as áreas de florestas remanescentes nesta região foram incluídas em Unidades de Conservação, que abrangem cerca de 58,51% das terras florestadas do Vale. As florestas remanescentes que recobrem a Serra do Mar e de Paranapiacaba em São Paulo têm como característica fundamental uma elevada biodiversidade, reflexo de um mosaico natural que se desenvolveu em conseqüência de fatores como altitude, topografia e tipo de solo. Essas diferentes formações florestais interligam-se por complexos processos ecológicos. Matas de encosta e de montanha fazem transição, por um lado, com as das planícies aluviais e marinhas e, por outro, com formações mais 63 secas do reverso da serra; tudo isso permeado por manchas de capoeirões e matas secundárias de extensões variáveis, ainda mal conhecidas em profundidade. A complexidade ambiental e a biodiversidade também são resultado da ação, sobre essas florestas, das populações que se sucederam, como vimos durante esta nossa viagem. . maior no campo da educação ambiental, ao conscientizar a população contra o desperdício e a favor da recuperação e respeito à natureza. Outra dimensão dos projetos de recuperação ambiental é a possibilidade de orientar os estudos sobre conservação florestal para finalidades múltiplas, sejam elas corretivas, ecológicas ou produtivas. Atualmente, crescem as possibilidades técnicas de propor alternativas combinadas, buscando responder a necessidades sócioambientais legítimas, uma vez que muitas áreas críticas são as mesmas onde a ocupação humana é mais intensa. Neste caso, um projeto de recuperação deve cumprir função social mais ampla, indo além da estética da paisagem e da ecologia para alcançar também uma dimensão econômica. Consertar, enquanto é tempo Existem no Brasil várias iniciativas de recuperação florestal em áreas degradadas pelo desmatamento, mineração, urbanização, agropecuária, barragens e estradas. Depois da grande onda preservacionista da década de 80, os anos 90 parecem marcados pela busca de alternativas de recuperação. Além dos objetivos ecológicos, a recuperação de florestas também tem a Regeneração natural da Mata Atlântica com Tibouchina. Caminho do Mar, Cubatão/SP. finalidade de buscar alternativas para aliviar as pressões humanas sobre o que A natureza também tem seus métodos resta de florestas no País. A tendência atual é direcionar os esforços de conservação Conhecemos pouco sobre o funcionamento de nossas não apenas para aspectos preventivos, punitivos ou compenflorestas, mas a urgência do problema da degradação tem satórios, mas reabilitar áreas degradadas também para incentivado as pesquisas neste campo. Como os conhecirecuperar as qualidades ecológicas e estéticas, e, em muitos mentos adquiridos ainda não permitem generalizações, casos, para garantir a segurança da população do entorno alguns estudiosos consideram que as intervenções de manedessas áreas. jo ainda são empíricas. Assim, cada pesquisa se converte Os projetos de recuperação representam também uma num experimento. oportunidade de desenvolver novos conhecimentos sobre Em relação às florestas naturais é preciso decidir, por dinâmica ambiental e capacitar diferentes agentes para o uso exemplo, quais delas podem e devem ser manejadas para sustentável dos recursos. Tais projetos, quando feitos com a finalidades econômicas. Um ponto fundamental neste tipo participação da comunidade, ganham uma projeção ainda 64 de manejo deve ser o conhecimento de como e por que determinadas plantas ocorrem no bosque, distribuem-se nele, qual o seu potencial de exploração e quais as suas necessidades para a manutenção dos processos reprodutivos, de crescimento etc. Algumas experiências de manejo já foram acumuladas e, em geral, sua proposta é a de otimizar as práticas da população local. É o caso da exploração da castanha-do-pará, da borracha, das fibras e frutos em reservas extrativistas. Outro ponto muito importante nesta questão de recuperação é que as florestas podem se recuperar naturalmente. Vejamos como isto acontece. Quando por alguma razão uma floresta tropical é derrubada, o clima daquele pedaço, chamado de microclima original, desaparece. O solo fica diretamente exposto à luz do sol, o ar e o solo secam e a temperatura sofre flutuações acentuadas entre o dia e a noite. Certas espécies de árvores pioneiras estão adaptadas para tirar proveito desta situação: crescem rápido, porém sua vida é breve; morrem antes dos quinze anos. Uma segunda onda de pioneiras que também exige luz abundante, cresce com rapidez, porém vive mais tempo, talvez mais de um século. Estas árvores fixam grandes quantidades de nitrogênio, desempenhando um importantíssimo papel na recuperação das reservas de nutrientes. Elas criam as condições para o retorno das espécies da fase madura. Essas fases de sucessão duram tempos variáveis conforme o tipo de floresta, intensidade de degradação e principalmente ao tipo de pioneiras que se instalam. Segundo alguns autores, na Mata Atlântica, a fase de plantas secundárias, antes da idade madura da floresta, pode durar até 200 anos e mesmo uma fase de secundárias pode se repetir várias vezes. A eliminação de toda a vegetação com tratores pode trazer sérias conseqüências para o processo natural de recuperação. Os solos podem se tornar empobrecidos para sempre, o que pode transformar uma floresta rica e exube- rante numa vegetação de ervas ou arbustos secos. As mudanças no clima também influem. Se as plantas de uma floresta madura foram geradas em períodos de clima mais úmidos do que o atual, nunca se formará outra floresta igual à que foi destruída, pois o seu ponto ótimo em termos de clima já teria deixado de existir. A delicada trama da recuperação As estratégias para a recuperação de matas atlânticas têm revelado como esta tarefa é delicada. Vários experimentos vem se desenvolvendo há mais de duas décadas em áreas da Serra do Mar que sofreram deslizamentos de encosta. Um dos primeiros projetos de recomposição florestal foi implantado na Serra do Mar, no município de Cubatão. Tudo começou quando, em meados da década de 80, um grupo de trabalho da Secretaria da Agricultura concluiu, depois de uma ampla avaliação, que: • as informações disponíveis para recompor a vegetação não permitiam a proposição de medidas concretas e emergenciais, visando a recuperação e o repovoamento de florestas na encosta da Serra do Mar; • uma das medidas urgentes era fazer um diagnóstico da situação ambiental que informasse sobre as condições da vegetação, da serapilheira, dos solos e da água, nas áreas degradadas pela emissão de poluentes do complexo industrial de Cubatão; • uma forma emergencial de conter os processos erosivos era a introdução experimental de espécies exóticas, adaptáveis ao ambiente degradado; • deveriam ser estimuladas todas as iniciativas institucionais, das universidades e dos órgãos de governo, tendo em vista a urgência do problema e as conseqüências nefastas para a população local, caso os movimentos de massa viessem a ocorrer no período das chuvas, naquela região. Uma das primeiras propostas causou uma avalanche de 65 críticas por parte de pesquisadores e ambientalistas. A proposta consistia no seguinte: seriam implantados projetos emergenciais com gramíneas, para conter o escoamento superficial da água e preparar o solo para receber espécies florestais nativas. Uma grande polêmica nascia em torno da questão da recomposição e recuperação ambiental. De um lado, colocavam-se aqueles que defendiam um estilo de recuperação que utilizava plantas exóticas e nativas, e até mesmo obras de engenharia, para controlar o risco ambiental de acidentes de grandes proporções, como o que já havia ocorrido na Serra do Mar, em Caraguatatuba, 1978. Nessa ocasião, durante o verão, houve um grande deslizamento de terra, que destruiu moradias, matando pessoas e gerando uma situação de calamidade pública. De outro lado, posicionavam-se aqueles que consideravam essas soluções como paliativas e de resultados duvidosos. Sua sugestão era experimentos de reflorestamento, considerando aspectos ecológicos da floresta já conhecidos nas academias. O princípio desta proposta era procurar imitar a própria floresta, auxiliando-a nos seus processos sucessórios naturais. A recomposição, neste caso, deveria apoiar-se na flora nativa da Serra do Mar e nos seus próprios mecanismos sucessórios. O problema era que pouco se conhecia sobre esse processo para empreendê-lo com segurança, além do que, a emissão dos gases tóxicos das industrias, que era a principal causa da destruição florestal, foi combatida com timidez. Era preciso combater as causas e não os efeitos da degradação. Estes experimentos iniciais, se surtiram pouco efeito, muito contribuíram para multiplicar experiências em outras áreas e acumular conhecimentos sobre os procedimentos para recuperação de áreas degradadas por poluição. Significaram o pontapé inicial para uma série de experimentos de recomposição florestal e pesquisas sobre sucessão ecológica e fitossociologia na Mata Atlântica que viriam em seguida. 66 Ainda na década de 80, surge o primeiro projeto neste sentido, utilizando uma metodologia sofisticada de dispersão artificial de sementes de espécies nativas, próprias da sucessão da Mata Atlântica. Estudos prévios determinaram quais espécies eram resistentes a ambientes degradados por poluição. As sementes destas plantas foram preparadas em laboratório, num processo chamado de peletização. Simplificadamente esse processo consiste em juntar um grupo de sementes num gel protetor em forma de pelete. Um helicóptero despejava chuvas desses grupos de sementes nas encostas de Cubatão. O processo foi válido, mas recebeu muitas críticas, quanto aos custos e às vinculações políticas a que esteve submetido. Outros pesquisadores, utilizando técnicas mais baratas de cultivo de plântulas em viveiros e replantio manual dessas mudas, obtiveram resultados muito próximos. O papel do Estado na tragetória da conservação O poder público desenvolve ações concretas para a conservação do ambiente, procurando defender a vegetação, disciplinar o extrativismo ou proteger os mananciais. E essa preocupação com os recursos naturais é muito antiga, embora os motivos que lhe deram origem fossem muito diferentes dos atuais, refletindo preocupações e interesses próprios do contexto de uma outra época. Todas as medidas no sentido da proteção da natureza sempre expressam as condições políticas, sociais, econômicas e culturais que definem a relação entre poder público, sociedade civil e meio natural, naquele determinado momento. Por exemplo, no Brasil colonial, as medidas de proteção das florestas visavam resguardar o monopólio da Coroa Portuguesa sobre os recursos. E as preocupações iniciais giravam em torno do aproveitamento econômico e da sua possibilidade de uso. A proteção aos mananciais seguia a linha da conservação dos recursos hídricos com fins exclusivos de abastecimento. Foi assim que se criou na cidade de São Paulo o Parque da Cidade, na Serra da Cantareira, onde se localizava o ponto de captação de água para o abastecimento do município. Alguns episódios desta história demonstram ações oficiais no sentido da proteção das riquezas naturais. Por exemplo: • no século XVII, Maurício de Nassau apresentou medidas para proteger as florestas da Região Nordeste do País; • no século XVIII, em 1796 e 1797, as Cartas Régias decretaram como propriedade da Coroa Portuguesa todas as matas e arvoredos da borda da costa ou dos rios, utilizados para o transporte de madeira. Alertavam para a necessidade de conservação das florestas; • no século XIX, em 1821, José Bonifácio de Andrada e Silva propôs a criação de um setor administrativo responsável por matas e bosques; em 1876, André Rebouças propôs a criação de parques nacionais na Ilha do Bananal e em Sete Quedas; em 1896, foi criado o Parque da Cidade ou Reserva Florestal da Cantareira, em São Paulo; • no século XX, na década de 30, tivemos alguns fatos: em 1934, o Código Florestal e o Código das Águas; em 1937, a criação do Parque Nacional de Itatiaia, no Rio de Janeiro, e a legislação de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional; e em 1939, a criação do Parque Nacional de Iguaçu (PR). Uma das formas que o Estado possui para proteger os recursos naturais é declarar uma determinada área ou local como Unidade de Conservação, passando assim a ser responsável pelo que ocorre dentro dos seus limites. A demarcação de áreas naturais esteve, até há pouco tempo, mais ligada à idéia de reserva – local destinado a experimentos científicos ou ao aproveitamento da madeira para a produção e consumo – do que à concepção de conservação ecológica, com o objetivo de intervir minimamente na paisagem. Nas reservas introduziam-se espécies vegetais exóticas, como o pínus e o eucalipto, visando a produção de madeira, e as pesquisas eram conduzidas para verificar a adaptação dessas espécies ao novo habitat. As espécies nativas eram protegidas com a intenção de garantir estoques para o futuro. Uma área é escolhida para receber legislação que a proteja, quando se revela de interesse ecológico e cultural. Atualmente, o conceito de unidade de conservação é bastante abrangente; envolve áreas que abrigam ambientes ecologicamente importantes, representativos do que restou da vegetação que outrora cobria grande parte do território, cuja destruição pode ameaçar de extinção a fauna e a flora. Envolve também locais onde existem monumentos ou comunidades cujo modo de vida e relação com o meio natural representam um patrimônio a ser conservado. . Como se implanta uma Unidade de Conservação Proteger oficialmente uma área ou um monumento requer uma série de medidas. Após defini-la, realiza-se um estudo, em que são levantadas as características naturais, o grau de ocupação humana e demais aspectos do trecho em questão. Esse estudo orienta a escolha do melhor tipo de proteção para aquela área, ou seja, a categoria de manejo mais adequada. Há várias categorias de manejo: parque estadual, estação ecológica, área de proteção ambiental e outras. A área protegida é enquadrada na categoria mais apropriada às suas características, através de um diploma legal. Essa etapa é muito importante, pois qualquer falha no estudo ou, principalmente, a sua ausência podem acarretar um enquadramento inadequado que dificultará a implantação. No ato da criação, é necessário demarcar a área, definir seus limites. Esse trabalho de gabinete e de campo deve criar condições, tanto para uma fiscalização eficiente do uso dos recursos naturais, como para o levantamento da situação 67 fundiária. Essa é a primeira etapa do processo de regularização fundiária. Nos casos em que o Estado deve tornar-se proprietário da área, é preciso indenizar ou propor permutas aos donos das terras. Para tanto, o governo necessita de documentação que comprove claramente a propriedade. Isto pode ser difícil e demorado no caso de terras devolutas ou de propriedade indefinida, além do que, a indenização em geral exige do Estado recursos financeiros vultosos. Outro passo para a implantação de uma Unidade é definir a sua utilização. Isto é feito por meio de um plano de manejo que estabelece um zoneamento que pode destinar áreas para preservação constante, pesquisa e visitação pública. Esse processo deve envolver todos os interessados. Os Planos de Gestão têm sido uma tentativa de definir as diretrizes básicas para esse manejo, a partir da realidade local, incluindo os conflitos de interesse. Finalmente, para que uma Unidade de Conservação possa funcionar, é necessário dotá-la de infra-estrutura administrativa adequada aos seus diferentes objetivos. Essas fases de implantação não acontecem obrigatoriamente na ordem em que foram explicadas e isso depende da situação real de cada Unidade. A Mata Atlântica é protegida por diferentes categorias de manejo, tais como: Reserva da Biosfera da Mata Atlântica Parque Nacional Parque Estadual Estação Ecológica Reserva Biológica Área de Proteção Ambiental Área de Relevante Interesse Ecológico Área Natural Tombada Área sob Proteção Especial Corredores Ecológicos Terras Indígenas Reservas Particulares do Patrimônio Nacional . . . . . . . . . . . . 68 Aproximando o foco: a proteção da Mata Atlântica QUARESMEIRA A quaresmeira, jacatirão ou manacá-da-serra, cresce em abundância na Mata Atlântica. Entre milhares de espécies distribuídas principalmente nas regiões tropicais, a quaresmeira é uma planta da vegetação secundária, cujo colorido rosa, roxo ou branco, destaca-se do imenso dossel verde. É uma planta ornamental e esse efeito pode ser apreciado também nas ruas das cidades onde é utilizada para arborização. No Estado de São Paulo, a quaresmeira foi introduzida, pois sua área original de distribuição localiza-se acima do Estado do Rio de Janeiro. A Mata Atlântica na Serra do Mar começou a ser protegida em 1935, com a criação da Reserva Estadual de Pilões ou Queiroz. Dessa data até a década de 70, a idéia de proteção começou a incluir áreas que se estacavam por sua beleza natural. A partir da década de 70, um importante conceito passou a ser introduzido nas estratégias de conservação: é o conceito de áreas contínuas, que garantem uma área de vida extensa para as espécies da fauna e da flora. O Parque Estadual da Serra do Mar, criado em 1977, fruto da junção de 14 áreas protegidas, é um ótimo exemplo dessa idéia inovadora. Nos anos 80, a criação de Unidades de Conservação ligou-se cada vez mais à necessidade de proteção ecológica das áreas naturais, o que se traduz por uma preocupação maior com o fato de que os recursos naturais se esgotam e podem extinguir-se. Um passo decisivo para a conservação da Mata Atlântica, por exemplo, foi dado a partir da criação da Estação Ecológica Juréia-Itatins, pelo governo federal. O objetivo dessa medida era reservar a área para estudos que subsidiariam a implantação de usinas nucleares, como parte do programa energético do País. A opinião pública, contrária à presença de usinas nucleares em local tão preservado, mobilizou-se contra o empreendimento. E embora já existissem algumas entidades dedicadas à defesa do ambiente, essa iniciativa em defesa da Juréia propiciou grande participação, incentivou o surgimento de vários grupos e fez crescer o movimento ambientalista. Depois disso, a atuação em benefício da conservação de áreas naturais passou a ser mais significativa, ultrapassando os limites daquela região. No período de dez anos, entre 1977 e 1987, muitas Unidades de Conservação foram criadas na Mata Atlântica, com maior ou menor restrição de uso. Integradas a uma estratégia ampla de conservação, que tem como eixo central o planejamento ambiental, elas protegem os recursos naturais e procuram compatibilizar o desenvolvimento de atividades econômicas com as características ambientais locais. O tombamento da Serra do Mar, em 1985, foi o coroamento desse novo conceito de conservação que procura proteger uma grande mancha de Mata Atlântica. Ampliando o território protegido, instalou uma zona de contenção do processo de degradação, ou de ocupação desordenada, junto às áreas de proteção integral do ambiente. Assim, a Mata Atlântica no Estado de São Paulo é resguardada através de vários tipos de Unidades de Conservação, que vão ajudando a configurar a área contínua de proteção, como podemos observar no mapa das páginas 72 e 73. O planejamento, a fiscalização e a educação são outros Estação Ecológica Juréia-Itatins. poderosos instrumentos de proteção de que o poder público dispõe para a defesa das áreas naturais. O planejamento ambiental estabelece medidas que definem o melhor tipo de atividade econômica a ser desenvolvida em determinadas áreas. A fiscalização ambiental pode atuar de modo preventivo mediante orientação, ou punitivo por meio de penalidades que variam conforme o estabelecido pela legislação. A educação ambiental tem um vasto caminho por onde enveredar para cumprir seu papel, a saber: através de campanhas de mobilização com alvos específicos, como a limpeza de praias ou a prevenção de incêndios florestais; dando apoio à rede formal de ensino; atuando na formação de agentes multiplicadores; e utilizando as áreas naturais 69 protegidas enquanto espaço para divulgação de informações. Uma pergunta final Depois de tudo o que vimos e dos lugares por onde passamos, talvez reste ainda uma pergunta: por que preservar a Mata Atlântica? A esta altura cabem respostas que, embora concisas, traduzem a abrangência das questões que quisemos levantar: as plantas, os animais e o homem têm direito à vida; na Mata Atlântica existem espécies da fauna e da flora que não são encontradas em nenhum outro conjunto de florestas: é direito das gerações futuras conhecê-las e saber usá-las; a Mata Atlântica concentra grande volume de água – elemento indispensável à vida –, que nas próximas décadas se tornará escasso; muitas plantas e animais destas matas ainda são desconhecidos. É preciso dar tempo para que suas possibilidades alimentares e terapêuticas sejam pesquisadas; esse espaço natural constitui-se num precioso laboratório de experiências, cujos resultados podem conter as respostas para futuros problemas ecológicos; a sua paisagem oferece oportunidade de lazer e descanso, em contato com uma extrema beleza natural; a Mata Atlântica tem potencial para tornar-se uma importante fonte de recursos econômicos; as populações tradicionais que ali vivem possuem algo importantíssimo a nos ensinar: a forma branda de explorar os recursos da mata, a partir da qual novas tecnologias podem ser aperfeiçoadas. Essas populações têm direitos sociais que precisam ser respeitados; a Mata Atlântica é hoje reconhecida como patrimônio mundial; o homem é natureza; faz parte dela. E qualquer quebra desta unidade põe em risco a vida na Terra. . . . . . . . . . . 70 FAUNA E FLORA EM EXTINÇÃO A extinção biológica de uma espécie significa o seu desaparecimento completo devido à não-adaptação às mudanças ambientais. Trata-se de um processo natural que existe desde que surgiu a vida no planeta, e que se define pela impossibilidade de uma espécie manter-se por reprodução. O que caracteriza a extinção é a morte do último casal, o enfraquecimento que impede os representantes de se reproduzir ou a taxa de mortalidade maior que a taxa de natalidade. Alguns fatores que podem ser responsáveis pela extinção: a competição entre os seres vivos por espaço, alimento etc.; o isolamento geográfico de uma população muito pequena; as alterações geológicas e climáticas; a ação predatória do homem. A ação do homem sobre a natureza, hoje, é de tal ordem que a palavra extinção terminou por ganhar um significado dramático. Tornou-se sinônimo de desaparecimento prematuro e repentino de plantas e animais que não estão em processo natural de desaparecimento. Isto porque os ecossistemas foram muito reduzidos em área ou foram transformados por ações predatórias indiretas, tais como o desbaste seletivo de espécies, a ponto de causar problemas de espaço ou alimento para os que vivem neles. Infelizmente há muitas espécies de peixes, aves e insetos que já desapareceram sem que pudéssemos sequer conhecêlas. Para evitar que isto continue acontecendo é necessário voltar as atenções para espécies em perigo de extinção, que devem ser objeto de pesquisa, como já vem acontecendo com o jacaré-depapo-amarelo e o mono-carvoeiro. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA AB’SABER, Aziz Nacib. Potencialidades paisagísticas brasileiras. São Paulo: Instituto de Geografia – USP, 1977. (Geomorgologia, 55). _______. A Serra do Mar e o Litoral de Santos. s.l.p., 1962. P.70-77. (Not. Geomorf. Campinas, 5). _______. 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Caule estolonífero – Caule lateral subterrâneo, delgado, em geral longo, que nasce na base de um caule preexistente e se expande, enraizando-se em certos nós e geralmente formando ramos aéreos. Este caule é capaz de formar outros ramos da planta. 4. Nutrientes – Substâncias ou elementos químicos que fornecem matérias ou energia necessária para um organismo; recurso alimentar. 5. Sedimentos – Material originário da destrição (decomposição) de qualquer tipo de rocha ou material de origem biológica, que é transportado e depositado na superfície de qualquer terreno. 10. Assorear – Obstruir – por areia ou por sedimentos quaisquer – um rio, canal ou estuário, tornando-os mais rasos. 11. Dragagem – Remoção de material sólido do fundo de um ambiente aquático. 12. Mananciais – Nascentes de água; fonte. Conjunto de nascentes. 13. Complexo estuarino-lagunar-Iguape-CananéiaParanaguá – Região da costa paulista onde ocorre o encontro da vários rios de água doce com a água do mar. Formam-se canais de água salobra, delimitados por cordões de sedimentos, onde se desenvolve o mangue. 14. Estrada vicinal – Caminho ou estrada que liga povoações próximas. 6. Pneumatóforos – Raiz aérea, submersa ou exposta. Raiz respiratória do mangue siriúba. 7. Rastejo – Processo de movimentação do solo. É mais comum quanto mais ingreme é a encosta, que reflete o seu grau de instabilidade. São indicadores de rastejo o conjunto de árvore inclinadas, blocos deslocados e degraus na encosta. 77 CRÉDITOS – FOTOS E FONTE DAS ILUSTRAÇÕES SERRA DO MAR: UMA VIAGEM À MATA ATLÂNTICA Fotos: Adriana Mattoso Foto pág. 30 Antonio Gaudério Fotos págs. 13, 18, 21 e 27 Ilustrações: – Fontes: - Clayton Ferreira Lino Fotos págs. 14, 54, 55 e 62 Elton M. C. Leme Foto capa Igrécio Perez Flora Fotos págs. 4, 52 e 53 Neréia Massini Foto pág. 46 - - - Sérgio Pompéia Fotos págs. 15, 37, 43, 44 e 45 Sueli Ângelo Furlan Fotos págs. 17 e 47 - Página 19: Cadeia Alimentar 1 – Livro Serra do Mar – 2ª edição Página 19: Rede Alimentar 2 – Livro Serra do Mar – 2º edição Página 23: Livro Duas viagens ao Brasil. Hans Staden. Ed. Itatiaia Edusp, 1988 Página 24: Quadro famílias indígenas – Livro Serra do Mar – 2ª edição Página 26: Uma partida de pesca – Fonte: Duas viagens ao Brasil, Hans Staden. Ed. Itatiaia, Edusp, 1988 Página 28: À direita, Staden orando em agradecimento da realização de um milagre, junto a uma cruz, erguida na aldeia de Ubatuba. À esquerda, mulheres trabalhando com seus filhos enfaixados às costas – Fonte: Duas viagens ao Brasil. Hans Staden. Ed. Itatiaia Edusp, 1988 Página 30: Calendário Agrícola de uma comunidade do Rio Verde. Estação Ecológica de Juréia-Itatins – Fonte: Equipe da Juréia – Instituto Florestal/SMA Página 42: Mapa de Cubatão – Fonte: Ab’Saber, A. N. Um exemplo a não ser seguido. Ciência Hoje, v.I, nº 1. jul. ago.1982; baseado no livro Romagem pela Terra dos Andradas, de Costa e Silva Sobrinho Página 43: Mapa do Litoral Central – SMA/CPLA/DPAA/DPVI/SP Página 47: Mapa do Litoral Norte – SMA/CPLA/DPAA/DPVI/SP Página 51: Mapa do Litoral Sul – SMA/CPLA/DPAA/DPVI/SP Wilson Rizzo Fotos págs. 29 e 33 Agradecemos especialmente a Caetano Veloso pela autorização da publicação da letra da música “Terra” (Caetano Veloso); copyright by Guilherme Araújo Produções Artísticas Ltda. (Adm. por Warner/Chappel Edições Musicais Ltda.), todos os direitos reservados. 78