o caipira científico - física com o prof. wilson

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o caipira científico - física com o prof. wilson
O CAIPIRA CIENTÍFICO
Wilson Gonçalves da Cruz
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O CAIPIRA CIENTÍFICO
Wilson Gonçalves da Cruz
ISBN: 590 332 L1 129 P138
Todos direitos autorais reservados.
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AGRADECIMENTO
À Deus por permitir que eu tome parte do milagre maior
da vida com discernimento, a meus pais Fileto e Emília
pelo amor irrestrito; à minha amada Eliana pela
confiança e estímulo incondicional e a meus filhos
Vanessa, Michel, Marcel e Priscila.
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O autor:
Wilson Gonçalves da Cruz é morador nato de Lins-SP.
Professor formado em Física pela Faculdade Auxilium de Filosofia Ciências e Letras
de Lins-SP. Possui Especializações em: Física pela PUC de Belo Horizonte em Minas
Gerais; Astrofísica e Cosmologia pelo Observatório Nacional do Rio de Janeiro;
Docência em Ensino Superior e Mestrado em Odontologia pela USC de Bauru-SP.
Com experiência de décadas em ensino superior e secundário, atualmente dedica-se a
música, leitura e à escrita.
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SUMÁRIO
Capítulo 1 – O milagre que veio do céu--------07
Capítulo 2 – O golpe ------------------------------14
Capítulo 3 – Fugindo para sobreviver ----------26
Capítulo 4 – O enigma ----------------------------40
Capítulo 5 – Ladrões no cemitério---------------55
Capítulo 6 – Um tiro, uma mulher --------------66
Capítulo 7 – De volta à zona de guerra --------81
Capítulo 8 – O fundo do poço -------------------88
Capítulo 9 – Retomando os caminhos ---------93
Capítulo 10 – A recompensa--------------------103
Capítulo 11 – A prova final ----------------------110
Ilustrações da aventura----------------------------122
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CAPÍTULO 1
O MILAGRE QUE VEIO DO CÉU.
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O galo começava a cantar.
Era o anúncio costumeiro de um novo dia para Tonho, que há anos
presenciava diariamente essa cena acontecer. Abriu os olhos depois de uma
noite mal dormida e contemplou novamente o leve clarear do dia por entre
os largos vãos de seu barraco.
Casa de madeira tão desgastada pelo tempo, pobre e humilde que
simbolizava bem a natureza de Tonho que, com um grande nó na garganta
e uma forte dor no peito via esse cenário, seu mundo, pela última vez.
No dia anterior havia sido despedido como empregado da fazenda
Jacinta, lugar que ocupava nos últimos dez anos, desde que se separara de
Guilhermina, sua amásia com quem conviveu por alguns anos.
Tonho trabalhava como um dos empregados do Dr. Rui, proprietário
da bela fazenda Jacinta que estava sofrendo uma desapropriação, de modo
que, na mente de Tonho, circulava a lembrança dos momentos em que foi
chamado e teve que enfrentar o Dr. Rui para ouvir o que temia: ser
despedido. Durante algum tempo esse confronto foi rejeitado pelos
pensamentos de Tonho, depois que ficou sabendo que os empregados
estavam sendo chamados no escritório da fazenda e sendo despedidos.
Algumas palavras, que no dia anterior haviam sido pronunciadas
pelo Dr. Rui, consolaram-no nesse amanhecer:
-Tonho, você é um homem especial e merece todo respeito e
consideração, por ser trabalhador, honesto e uma pessoa de bom coração.
Sempre nos serviu e eu gosto muito de você, mas infelizmente tenho que
dispensar seus trabalhos. Estou totalmente sem posses e perdi quase tudo
que eu tinha.
Mas quero pagar o que ainda lhe devo. Além do seu dinheiro, leve
com você o burro Malhado. Ele está sob seus cuidados há tantos anos e
vocês se dão muito bem... é como se você fosse seu dono. Ele obedece a
você e sei que lhe vai ser útil. Quando desejar, você poderá vendê-lo e
conseguir algum dinheiro.
Tonho não estava feliz. Não queria deixar aquela vida que, embora
sem possibilidades de progresso, tinha sido seu mundo durante tantos anos.
Mas, de certo modo, algo confortava seu coração: ultimamente vinha
pensando muito em voltar para sua casa de infância onde morava com seus
avós.
Desde pequeno Tonho não vira mais sua avó. Quando tinha 12 anos,
não querendo mais voltar para escola, fugiu de casa e passou a trabalhar em
um circo, depois de enganar seu dono com uma história mirabolante em
que ele se passou por um garoto desamparado que perdeu a mãe e era
violentado pelo padrasto. De lá para cá, além de alguns anos no circo,
Tonho só trabalhou na zona rural, em muitas fazendas e era um matuto
nato.
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Ultimamente Tonho andava sonhando, vez ou outra, com a avó e
sentia que ela estava ainda viva, mas que deveria estar precisando dele
devido à velhice. Esse pensamento perseguia-o, desde quando soube da
morte do avô, alguns meses após sua morte. Dessa forma, voltar para casa
da avó era reconfortante apesar de tudo. Havia, pois, chegado o momento.
Como pretendia sair com o raiar do dia, Tonho já havia preparado
algumas coisas para levar. Algumas poucas peças de roupa, um galão de
água, algumas ervas, palha, fumo e, também, alguns pães para viagem.
Tonho não possuía bens além de uma cama, um guarda roupa velho e uma
mesa. E, também, não podia levar nada, mesmo que tivesse.
Pegou os preparativos para viagem, colocou no arreio do burro
Malhado e deixaram a casa rumo à estrada que passava na entrada da
fazenda, a oito quilômetros da casa que ocupava.
A paisagem da fazenda exibia uma belíssima visão com o relevo
montanhoso e muito verde da relva ainda úmida e das árvores exuberantes
que refletiam um colorido estonteante sobre as águas do lago.
Emocionado meio aos cantos dos pássaros e com o coração tomado
de tristeza ele falava com o burro Malhado.
- É, Maiado,...agora a coisa ta feia. To disimpregado, só cum
dinheirin di nada, i cuma baita viage pa fazê. E pa piora num sei se vai
vale a pena vortá ...e se avó tive murrido? Vamu criditá qui naum.
E uce, Maiado, acho bão i cumeno um poco dessa grama verdinha
que é pa mode enche o buchu pruque a viage é danada de longe até o sítio
qui trabaia u Bilermino. A fazenda qui u Bilermino trabai tamem é uma
mensidão e tem muita potranca. Vo dexa uce cum ele. Ele vai cuida muito
bem duce...e vai te arruma umas namorada pur lá.
Eu sei que uce já ta meio baquiado e cansado de tanto trabaiá i
pricisa dum bom lugar pa fica. Lá oce vai fica bem...mas é longi...e nesse
passo di tartaruga que oce ta só vamo chega lá nu ano que vem...
O Malhado era um burro qualquer, porém, sua relação com o Tonho
o tornava muito especial. Ele parecia entender Tonho, sobretudo obedecia
aos seus comandos, aliás, somente a ele, Malhado obedecia. No entanto era
espetacular o modo como Malhado obedecia Tonho. Se pedia para sentar,
ou deitar, por exemplo, Malhado atendia prontamente, além de muitos
outros comandos.
Absorto em seus pensamentos e conversando com o burro –
provavelmente para evitar o excesso de pranto – Tonho percorreu a
estradinha da fazenda por entre os grandes montes verdes e, quando estava
próximo aos limites da propriedade, algo extraordinário aconteceu. Tonho
nem imaginava que aquele momento traria consequências que mudariam
drasticamente a sua vida. Um avião teco-teco, voando muito baixo e
mostrando claramente que tinha problemas devidos às manobras
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desesperadas que executava, voou em sua direção e fez uma desastrosa
aterrissagem por entre os arbustos. Foi a cena mais assustadora que Tonho
já havia presenciado em toda sua vida.
- Arriegua. Qui diabo é isso, Maiado? Essa coisa quaisqui tiro
minha cabeça...até arranco meu chapél!
Espantado com a cena e o barulho, correu até o avião que estava a
poucos metros dele. No avião havia apenas o piloto, uma bonita mulher que
estava totalmente presa entre as ferragens meio à fumaça e combustível.
Mesmo assim, Tonho aproximou-se da mulher com a intenção de
socorrê-la, mas ela estava muito ferida e imóvel.
- Ajude-me, implorava. Eu vou morrer... não há mais esperança para
mim. Agora estou perdida e eles venceram.
Rápido! Tire os meus brincos. O avião vai explodir. Tire os meus
brincos... é só puxar das orelhas...TIRE MEUS BRINCOS...
Obedecendo, Tonho puxou seus brincos e cada um tinha uma grande
pérola.
Nesse momento, assustados, viram ao longe na estrada dois
automóveis que se aproximavam com grande velocidade.
- Esconda esses brincos... isso não pode cair nas mãos deles. Eles
vão me matar e matam qualquer um. Você precisa fugir e esconder essa
joia. Dentro de cada pérola há uma bolinha azul que se parece com uma
pequena bala. Não deixe que eles peguem essas balas. Depois que fugir
com elas... abra uma das pérolas e chupe a balinha azul que está dentro
dela...mas apenas uma. Se chupar uma bala você vai ter muito mais chance
de devolver a única amostra que restará. A outra deve ser entregue ao
professor Dr. Ramon... encontre-o ... ele precisa muito disso....e sai daqui
agora...o avião vai explodir...sai daqui...fuja, fuja...corra.
Enquanto falava essas palavras, foi perdendo as forças e o cheiro de
combustível tomou conta do lugar...
- Cumu é qui é moça?...onde eu vou axa esse professo Rumão...e
como qui eu vo sabe que ele é ele mes?
E a moça murmurou: ele tem um braço diferente...você vai saber que
é ele...sai daqui...foge...foge...não deixe que eles fiquem com os brincos.
Confuso, Tonho correu por um instante pra lá e pra cá...foi até o
burro que estava a alguns metros dali, colocou os brincos no arreio e
ordenou:
- Maiado, vai pra casa...vai, Maiado, vai pra casa.
E o burro afastou-se, sozinho, de volta, em galope, obedecendo a
uma ordem que Tonho constantemente lhe dava.
Assim que o animal saiu em disparada, Tonho tentou voltar ao avião,
mas, nesse exato momento, os dois veículos chegaram bruscamente e
estacionaram levantando muita poeira.
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Todos puderam então presenciar uma grande explosão do avião
acidentado, seguida por uma nuvem de fumaça, enquanto as portas dos
automóveis se escancaravam. Homens bem vestidos e armados desceram
dos carros e mandaram Tonho afastar-se. Com certeza pensaram que o
caipira havia chegado junto com eles e não perceberam toda movimentação
que ali houvera, muito menos o burro que se afastou rapidamente por entre
as árvores.
Um dos brutamontes ainda gritou com Tonho, enquanto disparou uns
tiros para o alto:
-Sai daqui, Zémane. Aqui não tem nada pra você...
- Zemané? Ei ta mi confundino cum otru. Vo pica mula qui os omi
num tão di brincadera!
Assim, Tonho tratou de correr e sumiu por entre a vegetação
regressando para a casa que acabava de deixar. Andou o caminho de volta
quase que em disparada até a metade do percurso e só depois reduziu o
ritmo.
Quando se aproximou do curral deu de cara com o próprio Dr Rui e
dois empregados ao lado de um caminhão de boi, conversando com o
motorista. Espantado ele interrogou:
-Tonho, você por aqui? Eu achava que você já estava longe.
-Ahh, Doto, cunteceu uma tragédia horrive na entrada da fazenda.
Cail um avião i isprudiu. O Maiado disispero i saiu correno qui nem um
buscapé e deve te vortado pra casa e eu vim busca ei i já to vortano di
novo.
Com a notícia recebida, Dr. Rui e o motorista do caminhão já se
mobilizaram. Tonho afastou-se e encontrou Malhado pastando perto da
casa que ele estava deixando. Aproximou-se do burro, verificou seus
pertences e tudo estava em ordem, olhou dos lados para ver se não havia
ninguém olhando e pegou os brincos que recebeu da jovem mulher
moribunda. Chacoalhou e viu que realmente tinha algo solto dentro de cada
pérola.
As cenas do acidente invadiram novamente sua lembrança.
-Ajude-me, implorava.
Eu vou morrer... não há mais esperança para mim.
Agora eles vão me pegar. Tire rápido o meu brinco. O avião vai
explodir. Tire os meus brincos... é só puxar das orelhas...TIRE MEUS
BRINCOS...
Tonho fechou os olhos, viu e sentiu tudo novamente recordando
todos os detalhes:
-Você precisa esconder essa joia. Dentro de cada pérola há uma
bolinha azul que se parece com uma pequena bala. Não deixe que eles
peguem essas balas. Depois que fugir com elas... abra uma das pérolas e
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chupe a balinha azul...mas apenas uma delas. Se chupar a bala, você vai
ter muito mais chances de devolver a única amostra que restará. A outra
deve ser entregue ao professor Ramon... encontre-o ... ele precisa muito
disso....e saia daqui, agora...o avião vai explodir...sai daqui...foge.
Guardou o par de brincos com todo zelo, escondendo-os entre seus
pertences. Montou e tratou de ir embora de volta para estrada.
Ao passar no local do acidente existia uma grande movimentação de
carros, dois caminhões e, também, um helicóptero, todos do exército que
isolara a área. A fumaça ainda persistia. Mas não viu nenhum dos dois
automóveis que estiveram ali com ele.
Tonho ainda estava assustado e curioso com tudo o que se passou e
pegou a estrada para Santa Rita, rumo ao “sítio do Bilermino”, onde
pretendia deixar Malhado.
Caminhou o restante do dia até o pôr do sol, quando chegou, já
cansado, a um pequeno posto de combustível, que mais parecia um oásis na
imensidão do estradão poeirento. O lugar era pequeno, humilde, com uma
bomba de combustível, um pequeno bar e alguns quartos, usados para
pernoite.
Tonho soltou o burro embaixo de uma grande árvore, abasteceu-se
com a água de uma torneira do posto, lavou o rosto e levou um pouco de
água para o Malhado num pedaço de pneu velho que achou por ali.
Comeu uns pedaços de pão e relaxou, encostando-se no tronco da
árvore.
Estava exausto e sabia que ia pegar no sono ali mesmo, mas,
novamente lembrou-se das palavras da linda mulher que viu morrer
tragicamente:
-Depois que fugir com elas... abra uma das pérolas e chupe a
balinha azul que vai encontrar dentro dela...mas apenas uma delas.
Tonho só havia comido pão e um pedaço de linguiça e a ideia de
chupar uma bala não era má. Afinal, que mal havia? Se isso fosse
realmente perigoso a jovem mulher que explodiu com o avião não lhe teria
pedido para guardar e proteger uma das balas e entregar para o tal professor
Ramon, pensou!
Assim, Tonho abriu uma das falsas pérolas com os dentes, tirou a tal
balinha azul que estava dentro, cheirou – tinha um leve aroma de anis – e
enfiou na boca. Não mascou, nem foi preciso, pois rapidamente, ela se
dissolveu com calor da boca e deixou um frescor levemente amargo. Tonho
ainda lambeu os beiços, ajeitou-se melhor e entregou-se profundamente ao
sono.
Depois das primeiras horas de sono, muitos sonhos tomaram conta
da mente de Tonho. Viajou, voando entre números, séries numéricas,
frações, equações, figuras geométricas, tudo com muitas cores e texturas e
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o cansado homem parecia gostar do que sonhava, pois esboçava um
marcante semblante que delineava um sorriso, enquanto babava e roncava
com o chapéu de palha cobrindo os olhos.
A noite foi longa e os sonhos não paravam. Muitas luzes e cores
como cenário de um mundo onde os números e a ciência pareciam ganhar
vida. E em seu sonho Tonho admirava:
-Mãe di Deus. Qui diabo é isso. É tudin diferenti mas to intendeno
sô. Óia as raiz quadrada,, us triango...alá a dona hiputenusa i us
cateto...nossasiora (Nossa Senhora) que catetin...nossa qui catetão!
O que Tonho não imaginava é que aquelas duas balinhas contidas no
par de brincos da jovem mulher que pilotava o avião que sofrera aquele
acidente trágico era o resultado de quase dez anos de trabalho de um ultrasecreto centro de pesquisa tecnológica do governo, envolvendo códigos
biogenéticos e nanotecnologia.
A jovem que conduzia o avião e as duas balas era quase tudo que
havia restado depois de um ataque inesperado que sofreram e que fora
promovido por um núcleo terrorista internacional que devastou o centro de
pesquisa que tinha suas instalações subterrâneas a uns oitenta quilômetros
dali, numa base militar.
O Dr. Ramon era o cientista responsável pela pesquisa e a jovem
mulher que morrera no avião era a cientista Drª. Nancy. Eram muito
amigos e compartilhavam em segredo o êxito das pesquisas que culminou
com a obtenção da substância contida nas duas balinhas que Tonho agora
possuía.
Após inúmeras pressões para concluírem a pesquisa de caráter
militar Dr. Ramon e Drª Nancy ocultavam o produto final depois que
souberam que o fruto de seus trabalhos seria usado com propósitos bélicos,
muito diferentes daqueles que faziam parte do projeto. Assim, ambos
pretendiam fugir e difundir suas descobertas para objetivos humanitários.
Entretanto foram descobertos e a Drª. Nancy conseguira fugir, apesar
de estar sendo perseguida. Ela não sabia o que houvera com o Dr. Ramon,
porém, acreditava que ele também deveria ter escapado ao atentado,
utilizando uma das suas estratégias para situações de emergência, já que era
tão meticuloso e astuto.
O produto final dos dez anos de trabalho do centro de pesquisa
resultou nas balinhas que poderiam transformar drasticamente a mente de
quem a ingerisse.
De modo excepcional as substâncias contidas nas cápsulas em forma
de balinhas atuavam no cérebro de quem as digerisse fazendo com que,
como num passe de mágica, a pessoa adquirisse alto conhecimento
matemático e científico. O real motivo de como isso ocorria ainda estava
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sendo investigado pelos dois cientistas, entretanto, o importante é que a
aquisição de conhecimentos era inevitável e crescente, com o tempo.
Assim, apesar de a substância não alterar seu comportamento,
trejeitos e linguagem, indubitavelmente, a vida de Tonho sofreria grandes
mudanças.
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CAPÍTULO 2
O GOLPE
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Na manhã seguinte, já perto das nove horas da manhã, Tonho
acordou com o Malhado lambendo seu rosto. Há muitos anos ele não
acordava tão tarde. Abriu os olhos e ficou assustado com o que viu.
Tudo estava muito igual, mas, ao mesmo tempo, novas formas de
observar apareceram. Todo cenário estava recheado de conhecimentos.
Formas geométricas como as do prédio do posto, da cerca ao lado; o
formato das árvores, das nuvens e quase tudo se mostrava numérico e
científico. Via e compreendia claramente coisas que jamais imaginara e
não entendia como aqueles pensamentos passavam pela sua mente como
uma música. A luz, o calor, a eletricidade e o magnetismo e muitos outros
tópicos das ciências passavam a fazer parte de seu conhecimento.
Levantou-se e tentou não dar muita importância a tudo isso. Dirigiuse até a torneira, lavou o rosto e voltou até o burro. Nesse momento um
homem aproximou-se deles educadamente. Tonho desligou-se dos
devaneios científicos e concentrou-se no recém-chegado.
- Bom dia, senhor!
- Dia, moço.
-Muito prazer. Meu nome é Carlos.
-Praze tamém, Tonho...
- Esse burro malhado é seu?
- É sinsinhô.
-E como é o nome dele?
- Maiado.
- E ele sabe fazer alguma coisa especial?
- Num sei se é especiá mai ei mi bedece.
-Pode demonstrar alguma coisa que ele faz?
-Posso. Maiado!
E o burro olhou para Tonho.
Sai pralá! Sai pralá, Maiado!
E o burro afastou-se umas dez ou doze passadas, virou-se para ele e
parou.
-Deita! E o burro deitou.
-Ta veno. Ei mi bedece. Num bedece mai ninguém, só eu.
-É fantástico.
-Escute. Você quer ganhar um bom dinheiro fácil?
- Depende, moço. Se num fo nada qui põe a puliça trás di mim,
porque o so muito dereito.
-Não é nada disso. Você só precisa me emprestar o burro por uma
noite.
-Isso num dá certo não, moço. Maiado é como um irmão. Nóis é
muito pegado.
-Além dumais nóis tamu viajanu. Vamu pru sur.
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-Se vai para o sul então vai passar por Santa Rita que está a
cinqüenta quilômetros daqui, não vai?
- Vo sinsinho, mas vo deixa o Maiado no sítio que trabaia o
Bilermino, que só ta a uns trinta quilômetros daqui, purisso eu vou passa
em Santa Rita, mai u burro, naum. Prumiti pro Maiado que vo deixa ei lá.
O Bilermino é muito quirido pelos patrão i a fazenda que ei trabaia tem
muita jumenta pu Maiado iscoie pa namora, num sabe? Ei vai gosta di lá.
Si eu pudessi lavava ei cumigo, mais eu vo pa muito longi. Temo que
separa mes, faze o que.
-Tenho uma proposta pra você. Ouça:
Estou levando uma caminhonete com três animais. Um burro
também malhado, uma égua branca e um cavalo preto. São todos animais
de raça e valem muito dinheiro. Vou entregar esses animais numa fazenda
da família Pedreira pertinho de Santa Rita hoje, no fim do dia. Venha até o
carro que vou lhe mostrar eexplicar melhor.
Enquanto se dirigiam para a caminhonete ao som da tagarelice do
rapaz com a mão no ombro do caipira, Tonho parecia interessado já que
podia pegar uma carona com Malhado até seu primeiro destino e ainda
ganhar algum dinheiro.
- Isso parecia bom.
Tonho ficou espantado com a beleza dos animais e, a caminhonete
tinha espaço para quatro animais em compartimentos independentes e
Malhado poderia viajar ali sem problemas.
Também percebeu que a forte interferência científica a que agora
estava sujeito não afetava seu modo de ser e muito menos causava
perturbação de congestionamento de ideias se ele não desse importância a
esse fato e se concentrasse no que estava fazendo.
E...continuou Carlos.
- Minha proposta é a seguinte: Você e seu burro vêm comigo na
caminhonete e vamos viajar pra Santa Rita. Chegando lá eu deixo o meu
burro num lugar seguro. Você vem comigo e nós entregamos o seu Maiado
e os outros dois na fazenda, mas eu te prometo que é só por essa noite.
Amanhã cedinho nós vamos pra Santa Rita que eu tenho que encontrar um
cliente na estação às oito horas, quando o trem for sair. Assim que eu
conversar com ele, nós voltamos para a fazenda, trocamos o meu burro
pelo seu e eu te dou uma nota de 100. Além disso, nós voltamos e levo
vocês até a fazenda em que trabalha seu amigo, onde você quer deixar o
burro. O que acha?
- O Maiado num vai te qui trabaia? Só vai passa a noite lá e é só
isso?
Ta muito isquisito isso moço. Gosto da fruita mai num gostu di inguli
caroço!
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I oce acha qui eis vão aceita o Maiado? A égua e o cavalo são uma
maravia. O Maiado ainda ta jeitoso mais num si compara eis. Eis é bichu
de raça.
- Mas é aí que você entra e faz seu serviço. Você dá umas ordens
para seu burro e, depois que ele lhe obedecer, vão achar que o burro foi
comprado porque seu grande porte está na inteligência. Fique tranquilo.
Amanhã cedo, quando eu chegar para trocar o burro, eles vão
aceitar imediatamente quando olharem para o meu burro. Ele tem muito
mais corpo e basta olhar pra ele e a gente nota que é um animal especial.
Confie em mim que vai dar tudo certo.
É só isso. Eu entrego o seu burro hoje no pôr do sol. Você fica com
meu burro que é de raça e muito valioso durante essa noite, como
garantia. Amanhã cedo, vamos à cidade. Enquanto você toma um
cafezinho, eu falo com meu cliente na estação. Voltamos, trocamos os
burros e eu o deixo na fazenda do seu amigo, você e seu animal e ainda
ganha uma nota de 100 e eu lhe pago agora. Combinado?
Tonho pensou por um instante e Carlos já lhe entregavou o dinheiro.
Meio duvidoso o caipira topou.
E assim fizeram: ajeitaram o animal na caminhonete e partiram
depois de o caipira esconder em seus trajes o outro brinco, sem que Carlos
percebesse.
Durante a viagem Carlos e Tonho conversaram bastante. Carlos lhe
contou do seu trabalho transportando animais valiosos. Demonstrou
conhecer toda a região, nome de fazendas famosas e seus proprietários e até
comentou que também pretende viajar para o sul, como Tonho, porém,
quando chegasse a hora, disse resignado e que estava se preparando para
isso.
Carlos ficou intrigado com Tonho porque, algumas vezes durante a
viagem, o caipira pronunciava números grandes como, por exemplo,
setenta e oito mil novecentos e trinta e oito, ou falava coisas que ele não
entendia, tal como polarização, fotossíntese térmica, ressonância e outros
termos esquisitos. Quando questionado sobre isso, Tonho disse que gostava
de números, matemática e, também, de ciências. O rapaz ficou intrigado,
mas não deu muita importância para isso e, como era do tipo falador,
continuou tagarelando.
Tonho se mostrava bem matuto e sem cultura, apesar de seu olhar,
agora mais atento. Tinha um ralo e fino bigode, era meio dentuço com os
dentes da frente ligeiramente separados e não tirava o chapéu de palha da
cabeça. Tinha o andar meio desengonçado e uma leve barriguinha.
Carlos era moreno, estatura mediana, magrelo, ágil e usava
cavanhaque.
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Chegando à cidade, foram imediatamente para a fazenda onde
deixariam os animais. Carlos parecia conhecer muito bem o local. Antes
porém, afastou-se a uma pequena estradinha deserta e escondeu o burro de
raça amarrado com corrente e cadeado, na sombra de uma árvore.
Dirigiram-se à fazenda e logo na entrada foram recebidos por dois
empregados que o encaminharam para o estábulo onde se encontrava o
administrador e mais meia dúzia de empregados.
Enquanto tiravam os animais da caminhonete, o administrador
indagou:
-Espere um pouco. Dá pra ver claramente que a égua e o cavalo são
animais de raça. Mas e esse burro? Ele não parece ter a qualidade dos
animais que vivem aqui. Não tem algum erro nisso?
Imediatamente Carlos interferiu:
-Conheço seu patrão, o senhor Almir Pedreira, e sei que ele está
viajando e só chega na semana que vem. Porém, ontem ele estava em
Esperança e lá comprou esses animais num leilão. Meu patrão, um dos
diretores do leilão deu-me a tarefa de entregar esses animais aqui. Quando
o senhor Pedreira chegar, na semana vindoura, vai confirmar a compra.
- Além disso, está enganado quanto a esse animal, meu senhor,
afirmou Carlos.
-Ele é especial. Quer ver?
-Tonho. Dê alguma ordem ao burro para esses senhores apreciarem
a qualidade desse animal.
E Tonho ordenou:
-Maiado! Sai pralá. Sai pralá, Maiado.
E o burro afastou-se uns quinze passos, virou-se para ele e parou.
-Deita! E o burro deitou.
-Vem, Maiado! E o burro aproximou-se.
Está bem, disse o administrador, ainda desconfiado. Considere
entregues os animais.
E assim, quase noite voltaram para a cidade depois de buscar o burro
de raça. Trataram de ir para uma pequena pousada nos arredores da cidade
para passar a noite.
Um quarto com duas camas custava mais barato que dois quartos
individuais e, assim, Tonho que nunca se hospedara em lugar nenhum
preferiu estar junto a Carlos.
Na verdade o plano de Carlos era desonesto, porém tramava tudo
escondendo a verdade de Tonho. Sabia que o caipira era honesto e, de
modo algum, concordaria em praticar algum delito.
Almir Pedreira e Osmar Pedreira eram dois irmãos ricos fazendeiros
que se tornaram inimigos mortais após a morte do pai que lhes deixou
grandes fazendas e muita fortuna. Acabaram recebendo partes diferentes na
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herança do velho pai devido à existência de dois testamentos que gerou até
briga corporal entre eles durante a disputa judicial. Mesmo assim eram
muito ricos, mas se odiavam. Um culpava o outro pela morte do velho.
Viviam em permanente disputa de poderes e, cada um queria se mostrar
melhor que o outro.
Almir era o proprietário da fazenda onde os animais foram entregues,
porém, no dia do leilão Osmar estava presente e também almejou o animal
e só desistiu dos lances devido ao alto valor que o burro tinha atingido pela
disputa nos lances dados pelos dois irmãos inimigos. Osmar desistiu, mas
ficou furioso.
Na verdade ambos os irmãos não ficaram satisfeitos. Osmar, porque
não adquiriu o burro e Almir, por ter desembolsado tanto dinheiro pelo
animal. Cerca de trinta mil. Valor muito maior que a quantia que o animal
valia realmente.
Carlos tinha conhecimento de que o Sr. Osmar Pedreira, irmão rival
de Almir, iria embarcar no trem que passa em Santa Rita numa viagem para
capital. Sua intenção era ir até à estação antes de ele chegar, dispensar
Tonho de alguma maneira e oferecer o burro à venda por apenas dez mil.
Na verdade ele já tinha planejado uma história que acusava seu
patrão de ter ocultado o animal que agora lhe oferecia, para um próximo
leilão. Garantiria que o burro que estava na caminhonete seria irmão gêmeo
do burro que seu irmão havia adquirido.
Tinha plena convicção de que o Sr. Osmar compraria o animal e
pediria que o entregasse na sua fazenda. Só teria que receber na mesma
hora da venda e até imaginava que receberia um cheque que, sem nenhum
problema, poderia ser descontado num banco da cidade. Depois de
descontar o cheque, pretendia realmente trocar o burro com o Malhado,
livrar-se do caipira e fugir com o carro. Osmar pagaria, mas ficaria sem o
animal.
A partir daí ele sabia que seria então procurado pela grande confusão
que armaria, mas, de posse do dinheiro e da caminhonete, pretendia ir para
muito longe e desaparecer de vez da região sem intenção de um dia voltar
por ali.
E assim a trapaça desenrolou-se.
Acordaram muito cedo e deslocaram-se rumo à estação ferroviária.
Chegaram por volta das sete horas e trinta minutos. Carlos sabia que não
adiantava chegar muito antes porque, muito provavelmente, o Sr. Osmar só
chegaria em cima da hora de o trem partir, já que era um homem de
negócios e muito ocupado.
Carlos sabia que, mesmo que Tonho não se afastasse de perto da
caminhonete, na hora que o esperado chegasse, ele diria para Tonho ficar
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distante, enquanto falava com o seu “tal cliente” por isso, estacionou o
automóvel um tanto afastado no pátio da estação. Mesmo assim, sugeriu:
-Tonho, você sabe que tenho negócios pra tratar com um cliente
agora, antes de o trem partir. É melhor eu ficar sozinho por aqui
esperando por ele.
Você, está vendo ali adiante aquelas pessoas e aquelas barracas? É
uma feira. Lá há muita coisa pra você olhar e comprar, se quiser. Também
pode tomar um bom café da manhã. Assim que o trem apitar para partir
você vem e vamos trocar os burros, não gosta da ideia?
-Ce acha qui so besta? retrucou Tonho.
Se eu sai di perto duce oce pode imbora i mi larga na mão. A genti
mar si conheci, cumo posso confia...
- Não seja por isso, afirmou Carlos, sacando do bolso o documento
do automóvel.
- Fique com ele até você voltar. Depois me devolve, ta bem?
-Ta bem eu vo mai ce tem qui dexa cumigo tamem a chavi do carru.
Não vendo saída e preferindo que Tonho se afastasse logo e não
presenciasse sua transação, concordou, depois de muito recomendar
atenção com a chave e os documentos do veículo.
Minutos depois de o caipira afastar-se da caminhonete chegou o
homem. Desceu de um carro de luxo cercado por quatro capangas e já se
preparavam para subir à plataforma da estação, quando Carlos se
aproximou em passos largos dirigindo-se à vítima:
-Bom dia, senhor Osmar Pedreira. Perdoe minha intromissão, mas o
senhor se lembra de mim?
-Acho que sim, disse o homem com cara de poucos amigos.
- Já vi você no leilão. Acho que é empregado dos donos, não é isso?
- Isso mesmo. Acontece que trago uma pechincha para o senhor.
Lembra-se do burro que desistiu de comprar, depois que ofertou vinte e um
mil e seu irmão saltou a oferta para trinta mil?
O rosto do homem tomou um aspecto ainda pior e seus olhos
brilharam com ódio.
-Pois bem. Meu patrão tinha mais um burro igual àquele. Eles são
gêmeos, filhos da mesma mãe. Ele só mostrou um no leilão e guardou esse
que esta comigo para um próximo evento. Acontece que seu irmão pagou
trinta mil no animal e, no final das contas, acabou tendo uma discussão
calorosa na hora de pagar o que comprou. Estava furioso e reclamou
muito. Pelo que eu entendi meu chefe tinha prometido a ele algum tipo de
ajuda durante a disputa. Assim seu irmão pensou que não precisaria pagar
os trinta mil que ofereceu exageradamente como lance, mas, pelo visto,
não foi isso que lhe foi prometido e descontente, ele teve que pagar para o
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empregado responsável por receber as vendas, os trinta mil para levar o
animal. Deu uma grande confusão.
No outro dia meu chefe tomou conhecimento dessa discussão e,
como ele tem um xodó pelo seu irmão e, não querendo perdê-lo nos
próximos eventos, me mandou ir até ele e oferecer essa pechincha. Esse
excelente animal por apenas dez mil, que é um valor muito bom no
mercado. Ele acredita que dessa forma seu irmão vai se sentir mais
satisfeito, pois no final da história, terá adquirido dois animais excelentes
por quarenta mil. Trinta de um mais dez do outro e isso deve deixá-lo
contente.
Mas eu acho que isso não está certo e por isso vim, por conta
própria, oferecer o animal ao senhor. Sei que isso pode até complicar
minha vida quando meu patrão ficar sabendo, mas vai demorar um pouco
até que ele saiba e, pelos meus riscos... achei que o Sr. também poderia me
dar uma pequena recompensa por esse feito.
Devo acrescentar que eu faço isso também, porque não gosto do seu
irmão. Ele foi muito grosso comigo num evento alguns meses atrás e
acabei levando uma surra de seus capangas.
-Onde está o animal? Interrogou o homem já interessado.
Aproximaram-se da caminhonete e ouviram o som do apito do trem
que se aproximava ao longe. O homem examinou o burro e gostou do que
viu.
-Está bem, concordou.
Vou lhe dar dez mil e quinhentos. Dez pelo burro e mais quinhentos
pra você.
- Muito obrigado, senhor, exclamou Carlos animadíssimo – o senhor
pode me dar um cheque que eu desconto.
-Nada disso, esnobou o homem. Vamos até meu carro.
Pegou em seu interior uma pasta preta e abriu sobre o capô do
carro. Estava completamente cheia de dinheiro. Pegou um dos maços com
dez mil em notas de cem e contou mais quinhentos de um outro maço.
Os olhos de Carlos brilhavam, porém a próxima frase do Sr. Osmar
Pedreira fez Carlos bambear.
- Paulão!
- Sim, senhor! Prontificou-se um dos capangas – um brutamonte de
dois metros de altura.
-Você não vai mais viajar comigo.
- Sim senhor!
- Acompanhe esse homem até minha fazenda e certifique-se que o
animal vai ser colocado lá, ordenou.
- Sim senhor, não se preocupe!
- Agora vamos senão eu perco o trem.
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E se afastou junto a seus capangas seguidores em direção à
plataforma de embarque onde o trem já apitava o sinal de partida.
Carlos e o capanga mal encarado foram rumo à caminhonete e,
quando se aproximaram dela, depararam-se com Tonho trazendo uma
gorda e grande leitoa puxada por uma cordinha, acompanhando seus
passos.
- Carlo, mi ajuda a po essa porca no carro. É qui ganhei essi bicho
na fera.
- Ganhou? Como é isso?Do que você está falando?
- Carma homi, adispois o isprico.
E o brutamonte do Paulão reagiu.
- Peraí. Ninguém vai por nada de nada. O trato não é esse. Nós
vamos entregar o burro na fazenda do Sr. Pedreira e é só isso. Nem esse
baguá, garantiu apontando para Tonho, e muito menos essa porca vão
subir na caminhonete.
- Espere, Sr, disse Carlos. O carro é dele. Mostre a ele, Tonho.
E o caipira tirou do bolso a chave e o documento do carro.
- Não estou entendendo e muito menos gostando de tudo isso, mas...
Está certo então, seus idiotas. Fazer o quê? Estamos perdendo
tempo. Ponham logo esse bicho no carro e vamos embora.
Enquanto Tonho e Carlos colocavam a porca na carroceria da
caminhonete, Tonho questionava o golpista desesperadamente, aos
cochichos:
- Essi qui é seu criente? U homi mais pareci um quardaropa. E cumu
oce tem boca grandi i já falo prele que nóis vamu dexá u burro na fazendo
do Pedrera!
- Fica quieto. A gente tem que se livrar dele senão nunca mais você
verá seu burro.
- Cumu assim?
- Vamos com isso, gritou Paulão.
- Psiu. Fique quieto. Vou pensar alguma coisa. A gente tem que se
livrar dele.
Entraram na caminhonete e Tonho sentou-se no meio entre Carlos e
Paulão e seguiram rumo à fazenda do Sr. Osmar, que ficava do outro lado
da cidade e percorreram alguns quilômetros em completo silêncio.
Nesse momento todos estavam confusos. Paulão não entendia muito
bem tudo o que estava acontecendo. Ia apenas acompanhar a entrega de um
burro e agora estava na caminhonete de um caipira com uma porca gorda.
Tonho não entendia porque não estavam no caminho que vieram e se
afastavam ainda mais da fazenda onde estava Malhado e Carlos, matutando
desesperadamente, um modo de se livrar do Paulão.
Foi ai que o Paulão perguntou.
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- E então. Conta pra nós como foi que você ganhou essa leitoa.
- Bão. La na fera tinha um povaréo ino e vino e comprano. Tamém
tinha uns vendedô di barraca gritano qui nem loco.
Mai tinha uma barraca qui um homi prumitia qui qualqué um pudia
ganha um premio. Pra ganha o caboco tinha qui arrespunde certinho um
pobrema.
Ei gritava u qui tava iscritu num cartais grudadu na barraca deli.
Essa melancia pesa um quilu mai meia melancia iguar a ela. Quanto é qui
pesa uma melancia i meia? Quem acerta i porva (provar) leva o premio! E
eu acertei i ganhei u brindi que era a Mariaduarda.
-Quem é Maria Eduarda? – questionou Paulão.
- A porca uai. Já di um nomi prela, - respondeu orgulhoso.
- E como fez para acertar a resposta, indagou Carlos.
- Eu carculei, ué. Acha qui tenho cabeça pa separa oréia? I oces
sabe a resposta poracaso?
- Deixe-me pensar, disse Paulão, e repetiu o problema:
“ Uma melancia pesa um quilo mais meia melancia igual a ela.
Quanto pesa uma melancia e meia?” ... é isso?
- É sinsinho.
Carlos e Paulão olharam um para o outro, pensaram, pensaram,
disseram algumas respostas erradas e o caipira continuou:
- I num bastava só acerta a resposta. U homi queria que provaci cum
a matemática.
- Já vi qui uceis tamém num sabi e é muito faci.
- Qual é a resposta, perguntaram.
- A resposta certa é treis quilo.
- E como chegou à resposta, disse Carlos, curioso.
- Facim. Eu maginei a balança di dois prato cum uma melancia num
prato i nu otro prato meia melancia mai um peso di um quilo, certo?
Intãu pensei qui si eu tirasse a meia melancia de um prato ela ia fica
quilibradinha ainda si eu tirasse meia melancia tamém du otro prato. Isso
qué dize que ia sobra meia melancia num prato e o peso de um quilo no
otro. Então, meia melancia pesa um quilo. Uma melancia pesa dois quilo e
finarmente, uma melancia i meia pesa treis quilo.
- Que esperteza, comentou Carlos.
- É mai o homi num aceito essa minha ispricação i falo que eu so ia
leva u premio se mataci a cobra i mostraci u pau, pruque a Girtrudi era u
premio mai importanti du dia. Ei quiria que eu iscrivinhaci tudo isso ca
matemática. Intão, eu mostrei preli, uai.
- E como fez isso, indagaram ao mesmo tempo.
- Bão, num sei si oceis vão intende mai eu arrezurvi pra ei num
pedaçu di papel di pão.
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Si u peso da melancia é m e o pobrema dizia: m = 1 +(1/2)m . Intão
isso qué dize que m – (1/2) m = 1.
Cumu m menos meio m é meio m, intão (1/2) m = 1. Issu é, uma
melancia pesava dois quilo. Facim pra acha que uma melancia e meia era
treis quilo. Prontin ganhei a porca.
Sem entenderem nada Paulão e Carlos se entreolharam espantados e
surpresos. Paulão finalizou:
- Esse cara não é desse planeta!
Chamando o peso da melancia de X,
o peso de meia melancia é de ½ X.
Assim, pode-se equacionar:
X=1+½X
Resolvendo a equação obtem-se X = 2,
ou seja, o peso da melancia vale 2 kg.
Nesse instante um estouro ouviu-se e a caminhonete serpenteou pela
estrada até parar. Um dos pneus estourou. Por sorte encontravam-se a uns
cem metros de um outro posto e tiveram que empurrar a caminhonete até
lá. Apesar de ela ter estepe, não possuía macaco.
Nesse percurso Tonho tomou o volante da caminhonete, enquanto
empurravam, pois o caipira se recusou a empurrar o carro, alegando ser o
dono do veículo.
Empurram até a borracharia do posto e dirigiram-se ao banheiro.
Lavaram as mãos e fizeram um xixi, mas também perceberam que
havia uma larga rachadura na parede que dava para o lado do banheiro das
mulheres. Aproximando o olho bem perto da fresta, ela focalizava
precisamente o local embaixo de um chuveiro.
Afastaram-se dali e entraram na lanchonete onde uma bela mulher
com um decote generoso lhes serviu café. Ninguém se atreveu a olhar
detalhadamente para a bela mulher, já que seu forte e mal encarado marido
trabalhava junto a ela, do lado de dentro do balcão.
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Depois de pagarem pelo café, o caipira ficou para trás, enquanto
olhava alguns “souvenires” que estavam à venda. Paulão e Carlos foram até
a borracharia, mas antes do borracheiro apertar o último parafuso Tonho
chegou comentando:
- Viru qui muierão é aquela? A muié parece uma potranca! I oceis
qué sabe? ... ela vai toma um banho agora. Iscuitei ela dize isso pu marido
quando ia saino da lanchonete.
Imediatamente, Paulão afirmou.
-A caminhonete já está quase pronta, mas esperem por mim que me
deu uma dor de barriga agora. Eu volto já.
E saiu apressadamente em direção ao banheiro masculino com
intenção de buraquear a mulher.
- Ce num quiria se livra dele? Intão é agora, cochichou Tonho a
Carlos.
Pagaram rapidamente o conserto e afastaram-se em disparada
deixando Paulão para trás.
- É verdade mesmo que a mulher ia tomar banho? interrogou Carlos
assim que saíram.
- Não, afirmou o caipira.
- Quem ia tuma banho era o marido dela... e caíram na gargalhada.
Retomaram o plano inicial e foram imediatamente à fazenda onde
trocariam o burro de raça pelo Malhado. Lá chegando a cena se repetiu.
Foram recebidos à entrada, por dois empregados, só que, desta vez, um dos
homens acompanhou, a cavalo, a caminhonete até próximo ao estábulo.
Antes mesmo de o carro parar já ouviram o administrador da fazenda
gritar de modo desbocado:
- Bom mesmo que voltou para dar jeito nesse pangaré orelhudo que
não atende a ninguém. Não obedece a comando nenhum, mais parece uma
porta! Sabia que havia algo errado.
-Calma meu senhor, interrompeu Carlos.
- Voltamos para resolver um mal entendido. O burro malhado que
está com o senhor não era para ser trazido com os outros animais. Foi um
erro do meu patrão. Esse animal que está na caminhonete é o que deveria
ter recebido. Sinto muito, senhor, mas viemos trocá-lo.
O homem aproximou-se de Carlos olhando bem dentro de seus olhos
e concordou:
-Eu seria um louco, se não aceitasse trocar esse burro tantã por esse
animal que trouxe agora. Mesmo assim, estou farejando que tem alguma
coisa muito errada nessa história. Por isso vou aceitar a troca, mas...
também vou chamar a polícia, porque sei que “nesse pau tem mel”.
Não demonstrando uma falsa tranquilidade Carlos comentou
eloquente:
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- Sabe senhor. Cada dia que passa eu percebo o quanto meu chefe
merece que eu tire o chapéu para ele. Antes de eu sair de lá com esse
animal quase divino, ele me disse o quanto o senhor é homem meticuloso e
quanto gosta das coisas muito certinhas. Por isso ele me pediu para que
lhe trouxesse um presente para o próximo final de ano. Vê na caminhonete
essa leitoa que mais parece uma princesa? Pois é sua. Seu Natal já estará
garantido! Ele também me recomendou muito que eu não esquecesse dos
seus sinceros pedidos de desculpa por qualquer transtorno.
Tonho arregalou os olhos, mas se calou, entendendo a piscadela que
Carlos lhe dirigiu.
-Está bem, concordou o homem. Dessa vez passa... e mande um
abraço para seu chefe.
E ordenou a dois empregados que fizessem a troca dos animais e
afastou-se.
Já no interior da caminhonete respiraram aliviados, mas antes mesmo
de saírem da fazenda Tonho protestou.
- Ce ta doido que deu a minha Mariaduarda pa esse animá?
- E o que você queria? Perder seu burro e a gente ir pra cadeia?
(fim da amostra)
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