A Canção de Ninar em Musicoterapia como facilitadora da
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A Canção de Ninar em Musicoterapia como facilitadora da
A CANÇÃO DE NINAR EM MUSICOTERAPIA COMO FACILITADORA DA CONSTRUÇÃO E FORTALECIMENTO DO VÍNCULO MÃE-BEBÊ Gláucia Tomaz Marques Pereira1 Resumo: O presente trabalho é desenvolvido no CRASA/APAE, Anápolis-GO, que atende crianças com disfunção neuromotora e síndromes diversas, com objetivo de trabalhar vínculo mãe-bebê e expressão de conteúdos internos, através da construção de canções de ninar. Estratégia essa utilizada como primeira etapa de um projeto desenvolvido pela Musicoterapeuta e Psicóloga da instituição, em atuação transdisciplinar. Serão apresentadas reflexões sobre a voz da mãe, canção em Musicoterapia e canção de ninar – potencialidade para promover e facilitar a construção do vínculo mãe-bebê, além de promover acolhimento devido à constatação de que a criança nasceu diferente. Palavras-chave: Canção de ninar. Musicoterapia. Vínculo mãe-bebê. Este trabalho pretende descrever o referencial teórico conceitual utilizado em uma das etapas do projeto desenvolvido para as mães de bebês com necessidades especiais no CRASA – Centro de Reabilitação e Atenção à Saúde Auditiva – unidade da APAE2, Anápolis-Goiás, que atende usuários com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, disfunção neuromotora e síndromes diversas; e, também apresentar metodologicamente a primeira etapa desse projeto que é intitulado: Mães Que Cantam. O projeto foi desenvolvido para acolhimento da mãe que vivencia a constatação de que “seu filho não corresponderá à perfeição por ela idealizada” (SOUZA, 2003). Esse reconhecimento pode trazer prejuízos na relação mãe-bebê e influenciar nos aspectos de desenvolvimento psicossocial da criança e na dinâmica família. Mesmo os recém-nascidos já são “capazes de sentir o ambiente psíquico a seu redor. E nessa situação estarão também envolvidos em todos os sentimentos de tristeza e rejeição dos pais” (ibid, p. 3). Devido à problemática existente nesse processo, as profissionais Musicoterapeuta e Psicóloga desenvolveram um projeto com atuação transdisciplinar para ajudar a mãe a elaborar os sentimentos decorrentes dessa constatação. O projeto tem como objetivo geral trabalhar o vínculo mãe-bebê e conteúdos pertinentes ao reconhecimento de que a criança nasceu diferente. Estabelece três etapas 1 Especialização em Artes pela FIJ (Faculdades Integradas de Jacarepaguá, Rio de Janeiro, 2009). Bacharel em Musicoterapia pela Universidade Federal de Goiás (ano 2005). Desde dezembro de 2009, atua como Musicoterapeuta do Centro de Reabilitação e Atenção à Saúde Auditiva da APAE, Anápolis-GO, atendendo pacientes com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, disfunção neuromotora e/ou síndromes diversas. Email: [email protected]. 2 Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais inicias: fortalecimento e construção do vínculo mãe-bebê, etapas do desenvolvimento da criança e vida familiar. Este trabalho propõe refletir sobre a primeira etapa do projeto, em que se utiliza a canção de ninar em Musicoterapia para abertura do canal de comunicação e expressão dos conteúdos internos, além de favorecer, a partir da ação de cantar e compor, a construção e/ou fortalecimento do vínculo da mãe com o seu bebê. A Voz que Fala, Canta e Embala as Canções de Ninar A voz é um instrumento a serviço de dois atos: a fala e o canto. Pellizzari (1993) afirma que a voz é a produção sonora emergente de um corpo vivo. O primeiro contato com o mundo dos sons advém das experiências sonoras intra-uterinas e da voz da mãe. Esta voz materna envolve o bebê com os sons que parte da fala, das canções que canta. A voz da mãe é importante para o bebê e a sua fala é do mesmo modo especial. O modo particular que caracteriza a fala materna foi nomeado por vários pesquisadores como “motherese”. No Brasil, essa fala pode ser nomeada como “manhês”, “mamanhês” ou “maternalês” (MARIANO, 2010, p. 33). O “manhês” é a voz da mãe expressa de forma significativa para a criança. O bebê, mesmo que não responda verbalmente para a mãe, pode expressar seus sentimentos através do sorriso, gestos ou balbucios. Ferreira (2000) acrescenta que o “manhês” não é próprio da mãe, mas, sim, a construção de um diálogo entre mãe e bebê “a partir de significados que a mãe atribui aos sinais produzidos pela criança” (s/p). Em relação à música, Ferreira (2000) afirma que os elementos do “manhês” são muito próximos aos elementos musicais. “Nas canções de ninar a melodia é simples e, como no “motherese”, os sons são repetitivos e rítmicos (...). Emitindo sons, a partir do balbucio, a criança estaria criando alguma coisa a partir do que ouve da mãe, identificando-se com ela.” (s/p). Para Benenzon (1985), a voz da mãe se faz presente na identidade sonora universal do bebê: “nos primeiros momentos do nascimento e dias do novo ser” (p. 46). O ISO universal é descrito pelo autor como uma “identidade sonora que caracteriza ou identifica a todos os seres humanos, independente de seus contextos sociais, culturais, históricos e psicofisiológicos particulares”. (p. 46). Passarini (2009, apud BENENZON, 2008) registra que o ISO universal representa os sons inseridos no inconsciente, e estes estão relacionados aos sons produzidos pelos batimentos cardíacos, pela inspiração e expiração, os sons da natureza como vento e água. A autora acrescenta que, em termos musicais, algumas canções de ninar, ritmos binários e alguns intervalos entre notas também fazem parte dessa identidade sonora universal. Assim sendo, a voz da mãe e algumas canções de ninar podem fazer parte da identidade sonora que identifica o bebê desde os primeiros dias de nascido. Pensando sobre a relação da canção de ninar e a Musicoterapia, Arnon (2011) relata que o uso das canções de ninar como ferramenta de intervenção, deve-se ao fato de que apresentam estrutura musical simples, e neste caso, os lactentes podem diferenciá-las claramente, além de apresentar um tom mais baixo e ritmo mais lento, usado e reconhecido em várias culturas. “O recém-nascido e, principalmente, o lactente pré-termo são incapazes de discriminar canções complexas” (p. 184). O autor descrevendo sobre o trabalho desenvolvido no ambiente da terapia intensiva neonatal, a partir do uso da canção de ninar como ferramenta musicoterápica, constatou índice mais elevado de aleitamento materno nos grupos que participaram das sessões de Musicoterapia que no grupo controle. Verificou também que música ao vivo, cantada por voz feminina, apresentou efeitos positivos para os lactentes prematuros estáveis. “O cantar da mãe, especialmente aliado a outros estímulos, como contato pele a pele (por exemplo, no método mãe-canguru), pode ser uma maneira bastante eficaz para acalmar os lactentes.” (ibid). A canção de acalanto é apresentada por Millecco Filho et al. (2001) como uma ação que envolve o cantar e o contato corporal. A respeito das canções de ninar brasileiras, o autor reflete sobre a “aparente contradição” (pag. 38) entre conteúdos, ora poéticos e ora assustadores, dividindo essas canções nas seguintes características: exorcizadoras, ameaçadoras, afetivas, tranquilizadoras ou desmistificadoras, religiosas; contudo, independente da forma do acalanto “há a presença, a voz suave e o abraço de quem acalenta. Mesmo os perigos aparentes contidos nas letras mais ameaçadoras, são neutralizados por essa presença, por esse abraço, por essa voz” (2001, p. 41). Para Karst (2004), a mãe cantar músicas que sejam significativas para relação mãe-bebê pode fortalecer os laços afetivos entre os dois. A autora (2004, p. 30), citando Stahlschmidt (in: ROHENKOHL, 2002, p. 261), completa quer canções escolhidas, quer canções compostas especialmente em homenagem ao bebê, estas funcionam, aparentemente, como ilustrações do papel de espelho da mãe, descrito por Winnicott (1975) como uma das primeiras formas de percepção do bebê sobre si mesmo, a partir do que observa quando olha para a mãe e esta demonstra, em seu olhar, como o percebe. Millecco Filho et al. (2001) acrescenta que a maternagem é a condição básica para que a criança se sinta suficientemente amada para prosseguir desenvolvendo-se. O Projeto: algumas reflexões O projeto Mães que Cantam acolhe mãe e bebê encaminhados para o setor de Musicoterapia e Psicologia. As terapeutas realizam a entrevista inicial para coletar dados específicos da sua área de atuação e para detectar possíveis dificuldades sócio-afetivas que envolvem a relação mãe-bebê. A anamnese musicoterápica, realizada pela Musicoterapeuta, objetiva coletar informações sobre a vivência sonora familiar, aspectos sociais e culturais da criança/família, breve histórico sobre o período gestacional da mãe, nascimento da criança, hipótese diagnóstica e medicamentos administrados, registrando-as na Ficha Musicoterápica3. A Psicóloga, na anamnese psicológica4, coleta informações sobre aspectos psicológicos e sociais; encaminhando, se necessário, a mãe para o projeto. Após a entrevista inicial, a dupla terapêutica se reúne e define os objetivos específicos. O atendimento terapêutico ocorre uma vez por semana, no período de trinta minutos, na sala de Musicoterapia. A ação conjunta das profissionais no mesmo espaço de atendimento realiza-se a partir da atuação transdisciplinar, em que, após o “estabelecimento de objetivos comuns e investigações sobre o modo de atuação de cada um, trabalham juntos numa mesma sessão com o paciente” (VON BARANOW, 1999, p. 52). Para a primeira etapa do projeto são estabelecidos procedimentos específicos que objetivam acolher a mãe e o bebê, pois é no espaço da terapia que a mãe estabelece o primeiro contato com as profissionais, com a música, com sua musicalidade, com sua expressão, ambiente este preparado para abertura do canal de comunicação. Também, nesse momento inicial, o bebê participa escutando e respondendo aos estímulos sonoros através dos gestos, balbucios e/ou vocalizações. Em Musicoterapia, o cantar é um veículo auto-expressivo, em que a mãe pode utilizar essa ferramenta como um caminho que facilite a emersão e liberação dos seus conteúdos internos. Para Queiroz (2003), a auto-expressão advinda do cantar promove a comunicação, integração do individuo com ele mesmo e com o outro, isto é, a mãe integrada com o seu bebê. 3 4 BENENZON, 1985: p. 72, 73. Modelo adaptado para a clientela da instituição. CABALLO & SIMON, 2005. Formulário para entrevista clínica inicial. Modelo adaptado pela Psicóloga. Inicialmente, as terapeutas apresentam o projeto e reforçam o contrato terapêutico. Posteriormente, a Musicoterapeuta propõe para mãe compor uma canção de ninar para o seu bebê, como um presente sonoro, para projetar o que acredita ser importante no momento acalentar. Nesse momento, a canção de ninar é utilizada em Musicoterapia como ferramenta para que a mãe possa se expressar, voltando o olhar, o toque e a voz para o seu bebê. Na Musicoterapia, a composição de canções é uma prática em que o cliente cria a melodia, a letra ou qualquer produto relacionado à canção, registrando-a de alguma forma. O Musicoterapeuta auxilia o cliente neste processo, às vezes assumindo a responsabilidade dos aspectos mais técnicos do processo, adequando “a participação do cliente de acordo com sua capacidade musical” (BRUSCIA, 2000, p. 128). No Projeto Mães Que Cantam, a mãe é estimulada a escolher entre compor uma nova canção de ninar: melodia, ritmo, letra e harmonia, ou parodiar uma canção conhecida – escolha livre da melodia –, que seja do seu universo sonoro ou utilizando melodia apresentada em áudio5 pela Musicoterapeuta. (...) os acalantos, canções infantis ou canções que fazem parte da identidade sonora da mãe, fortalecem o vínculo mãe-bebê, como é possível observar na constatação de FRACALOSSI (2003, p. 9) a partir de atendimentos musicoterápicos com mães de prematuros: a música que elas gostam, diz mais delas. As músicas que gostam, provavelmente ouviam durante a gestação, sendo também as que os bebês estão mais familiarizados. O quê a mãe ouve e sente é o quê o bebê também ouve e sente. (KARST, 2006, p. 10) No decorrer do processo, observou-se que algumas mães apresentaram dificuldade inicial para cantar, criar, produzir, afirmando não ter capacidade para executar a atividade proposta; o que pareceu também refletir a dificuldade de algumas mães no acalentar, olhar, falar e interagir com o bebê. Estas mães foram acolhidas nas suas necessidades, recebendo o suporte da Musicoterapeuta e a intervenção Psicológica, para que o processo da sua construção fosse facilitado e para que pudessem expressar seus sentimentos e conteúdos internos. Entretanto, outras mães apresentaram facilidade para compor, nomear e cantar suas canções, parecendo satisfeitas com o cumprimento da tarefa. Estas observações sobre o comportamento das mães mediante a atividade proposta na primeira etapa do processo terapêutico são importantes, pois fornecem informações que auxiliam a condução do trabalho e facilitam estabelecer novas estratégias para as outras etapas do processo. 5 CD contendo canções de ninar instrumentadas. Considerações Finais Uma notícia inesperada pode causar muitos problemas, a descoberta de que o bebê desejado tem uma condição especial pode abalar a dinâmica familiar. A mãe, quando não consegue elaborar seus sentimentos mediante a constatação de que seu filho é diferente, apresenta prejuízos na relação com o bebê, ações que interferem no modo de olhar, tocar, embalar e acalentar. O fortalecimento do vínculo mãe-bebê é a primeira estratégia para o enfrentamento da problemática da criança, pois essa relação é importante tanto para o desenvolvimento e manutenção do bem-estar físico e emocional do bebê como para modificar o estado emocional da mãe. A voz da mãe faz parte do universo sonoro da criança e a mãe que canta, embala, acalma e acalenta. Vários autores apresentam a importância da canção de ninar como estratégia para o fortalecimento do vínculo mãe-bebê, seja pela estrutura musical simples da canção ou pela ação de voltar o olhar, tocar e abraçar o bebê durante o cantar. Em Musicoterapia, a canção se apresenta como uma ferramenta expressiva e um veículo facilitador para liberação dos conteúdos internos. A composição de canção é uma estratégia para que a mãe possa expressar seus sentimentos, sendo acolhida e apoiada pela Musicoterapeuta no processo de criar. No Projeto Mães Que Cantam percebemos que a composição de canções de ninar tem-se apresentado como ferramenta para a melhora do vínculo, aumento do contato visual e físico, maior interação e aceitação sobre a problemática da criança. As mães que apresentaram dificuldade para compor foram acolhidas pelas profissionais, sendo valorizadas em cada etapa do processo dessa construção. Referências Bibliográficas ARNON, S. Music therapy intervention in the neonatal intensive care unit environment. In: JORNAL DE PEDIATRIA, Rio de Janeiro, v. 87, n. 3, p. 183-185, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/jped/v87n3/en_a01v87n03.pdf>. Acesso em: 26 mai. 2012. BENENZON, R. O Manual de Musicoterapia. Trad. Clementina Nastari. Rio de Janeiro: Enelivros, 1985. BRUSCIA, K. E. Definindo Musicoterapia. Trad. Mariza Velloso Fernandez Conde. Rio de Janeiro: Enelivros, 2000. CABALLO, V. E.; SIMON, M. A. Manual de Psicologia Clínica Infantil: transtornos específicos. São Paulo: Livraria Santos Editora, 2005. FERREIRA, S. S. Por que falar ao bebê se ele não compreende? In: II CONGRESSO NACIONAL SOBRE O BEBÊ: PSICANÁLISE E INTERDISCIPLINARIDADE, 2000, Recife. Disponível em: <http://www.interseccaopsicanalitica.com.br/art051.htm>. 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