31 . gt - acesso à justiça

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31 . gt - acesso à justiça
ANAIS
CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E
SOCIEDADE DO UNILASALLE
GT – ACESSO À JUSTIÇA
CANOAS, 2015
2481
A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO NAS DEMANDAS PROPOSTAS
POR IDOSOS RELATIVAS AO DIREITO À SAÚDE
Sônia Beatriz da Silva Chamaniego
Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira
RESUMO: A pesquisa examina a doutrina sobre a razoável duração do processo
nas demandas propostas por idosos (mais de 60 anos), bem como analisa a
duração de processos, a partir de julgados do ano de 2014 no Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS). Nesse sentido, busca investigar se
houve respeito ao preceito constitucional da razoável duração do processo nas
demandas judiciais propostas pelo idoso, aferindo a efetividade e a celeridade na
prestação jurisdicional, em face do caráter preferencial do idoso, especialmente
no tema do direito à saúde. Portanto, ao examinar esse aspecto do acesso à
justiça, o objetivo é verificar se houve ou não a efetividade e a celeridade da
prestação jurisdicional ao idoso prevista no art. 5º, inciso LXXVIII da Constituição
de 1988 e regulamentada pela Lei 10.741/2003. A metodologia do estudo foi
baseada em revisão bibliográfica e na análise de dados jurisprudenciais e
processuais. A pesquisa de dados foi na área específica do direito à saúde,
precisamente na internação hospitalar, colacionados nessa matéria, todos os
acórdãos de apelação em ação ordinária, do ano de 2014, do Tribunal De Justiça
do Rio Grande do Sul, a partir do seu site oficial. Foram examinados os dados
iniciais de 186 processos e, após, restringida a matéria, apontados os casos em
que houve tutela antecipada e separados os processos envolvendo idosos e os
que não envolveram idosos e, por fim, contados os dias de tramitação de todos os
processos da amostragem, desde a propositura da ação até a data da publicação
do julgamento pelo TJRS. Com o cálculo do número médio de dias de duração
entre processos de idosos e não idosos, considera-se que não houve maior
celeridade nos processos envolvendo idosos nesse caso.
PALAVRAS-CHAVE: acesso à justiça; duração razoável do processo; direito à
saúde do idoso.
1 INTRODUÇÃO
A população idosa no mundo cresce significativamente. Os dados do
Censo populacional feito no Brasil no ano de 2010, realizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelaram um aumento da população
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com 65 anos de idade ou mais, que era de 4,8% em 1991, passando a 5,9% em
2000 e chegando a 7,4% em 2010. Ficou constatado que as regiões sul e
sudeste, são as que apresentam as maiores proporções de idosos na população
total, constituindo-se nas duas regiões de população mais envelhecida do Brasil.
Ambas tinham em 2010, 8,1% da população formada por idosos com 65 anos ou
mais (IBGE, 2010). Esta realidade delineia um novo contexto social, tornando
substancial a necessidade de adequação de políticas sociais, com foco nesta
população. Evidencia-se também a relevância de estudos científicos a respeito
desta faixa etária, 60 anos ou mais, de maneira a identificar melhores formas de
se atender demandas peculiares das pessoas que se encontram em tal momento
do ciclo de desenvolvimento humano.
Através de uma prestação jurisdicional qualificada pela especificidade da
tutela e pela duração razoável do processo, o legislador emendou a Constituição
de 1988, acrescendo ao seu art. 5º o inciso LXXVIII. Pela leitura do inciso, na
parte que interessa ao presente trabalho, o idoso detém o direito fundamental,
quando estiver em litígio (judicial), de ver assegurada uma duração processual ao
menos razoável, assim como os meios necessários à garantia de um processo
célere. O legislativo editou a Lei nº 10.741/2003, buscando a concretização do
direito fundamental estabelecido constitucionalmente.
2 DESENVOLVIMENTO DO ARTIGO
2.1 O Acesso à Justiça e a Duração Razoável do Processo
O acesso à justiça está previsto no artigo 5º, XXXV da Constituição de
1988 que diz: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça de direito.” Pode ser chamado também de princípio da inafastabilidade do
controle jurisdicional ou princípio do direito de ação, o qual significa, em linhas
gerais, que o Estado não pode negar-se a solucionar quaisquer conflitos em que
alguém alegue lesão ou ameaça de direito. Por conseguinte, o cidadão, por meio
do direito de ação, postulará a tutela jurisdicional ao Estado. Pode-se afirmar,
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portanto, que este é o conceito de acesso à justiça sob uma perspectiva interna
do processo, sinônimo de acesso ao Poder judiciário.
Esse fundamento constitucional para o acesso à justiça deve ser
interpretado como princípio da ordem jurídica justa conforme GRINOVER (2008,
p. 39), que acrescenta que se trata do “oferecimento da ampla admissão ao
processo - mediante a garantia constitucional de assistência jurídica integral e
gratuita -; a observância das regras que consubstanciam o devido processo legal;
a justiça das decisões; e a utilidade das decisões”. A ideia de amplo acesso à
justiça deve ser conjugada com o efetivo acesso a todos, como é lembrado por
CAPPELLETTI e GARTH (2002, p. 12), como “o requisito fundamental – o mais
básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que
pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. Posteriormente,
ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos”.
Acerca do fundamento do acesso à justiça, além da Constituição de 1988,
o artigo 8º da 1ª Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos de São José
da Costa Rica, da qual o Brasil é signatário, também garante que “Toda pessoa
tem direito de ser ouvida, com as garantias e dentro de um prazo razoável, por
um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido
anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal contra ela, ou
para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista,
fiscal ou de qualquer natureza.” Desta forma, (TORRES, 2002) o direito do acesso
à justiça supera uma garantia constitucional, sendo elevado a uma prerrogativa de
Direitos Humanos, tamanha sua importância para a humanidade.
O acesso à justiça deve ser compreendido ao lado da duração razoável do
processo também na Constituição de 1988. A redação do inciso LXXVIII do artigo
do artigo 5º da Constituição de 1988, que foi alvo da Emenda Constitucional
45/2005, refere que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados
a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação.” Acerca desse fundamento constitucional, no Brasil o princípio da
duração razoável do processo foi inserido, por força do §2º do artigo 5º da
Constituição de 1988, que elenca que “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
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adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte”, uma vez que fomos adeptos ao Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos que trazia o referido princípio em seu texto. Contudo, conta-se com o
princípio da duração razoável do processo como direito fundamental inequívoco
após o advento da Emenda Constitucional 45/2004. Desta forma, o princípio já se
encontrava expressamente no ordenamento jurídico brasileiro como direito
fundamental por força do parágrafo segundo do art. 5º da Constituição de 1988,
que acolhe os direitos fundamentais consagrados em tratados internacionais que
o Brasil fizer parte (NICOLITT: 2006, p.19). Em outros termos, a previsão derivada
da combinação do art. 5º, §2º, com os artigos 9 e 14 do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos, sem olvidar o Pacto de São José da Costa Rica, que
ingressou no Brasil em 1992. Todavia, com a sua adoção expressa pela
Constituição, não resta dúvida sobre o relevo e realce que ganhou, significando
um verdadeiro convite ou exigência constitucional à comunidade jurídica, a fim de
dar efetividade ao princípio.
Ambos, acesso à justiça e duração razoável do processo, devem ser
considerados direitos fundamentais. Nesse sentido é que STEINMETZ (2004,
p.78) relaciona objetivamente os direitos fundamentais ao Estado de Direito: (i) os
direitos fundamentais são limites ao poder do Estado, (ii) o Estado limitado e
controlado é o Estado de Direito, (iii) os direitos fundamentais são tutelados ex
lege e não ex Constitutione, (iv) os direitos fundamentais vinculam a
Administração Pública por meio do princípio da legalidade e o Poder Judiciário por
meio do dever de interpretação e aplicação da lei, e (v) o Estado de Direito é um
“Estado Legislativo de Direito”, porque o Poder Legislativo não está vinculado
juridicamente à Constituição e, por consequência, aos direitos fundamentais”. Na
mesma linha SARLET (2005, p. 72) refere a íntima vinculação entre as noções de
Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais e considera os direitos
fundamentais sob o aspecto de “concretizações do princípio da dignidade da
pessoa humana, bem como dos valores da igualdade, liberdade e justiça,
constituem condição de existência e medida da legitimidade de um autêntico
Estado Democrático e Social de Direito”. Daí se percebe a relevância dos direitos
fundamentais de acesso à justiça e de duração razoável do processo.
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O significado da duração razoável do processo não está em um direito a
processo rápido, pois a ideia de processo já exclui a noção de resultado imediato.
Ao contrário, BULOS (2009, p.591) define que “Pelo princípio da razoável duração
do processo, as autoridades jurisdicionais (processo judicial) e administrativas
(processo administrativo) devem exercer suas atribuições com rapidez, presteza e
segurança, sem tecnicismos exagerados, ou demoras injustificáveis, viabilizando,
a curto prazo, a solução dos conflitos”. Nesse sentido a ideia em MITIDIERO,
MARINONI e SARLET (2012, p.678-9): “O que a Constituição determina é a
eliminação do tempo patológico – a desproporcionalidade entre duração do
processo e a complexidade do debate da causa que nele tem lugar. Nesse
sentido, a expressão processo sem dilações indevidas, utilizada pela Constituição
espanhola (art. 24, segunda parte), é assaz expressiva. O direito ao processo
justo implica sua duração em tempo justo”. A duração razoável do processo não
é, portanto, conceito absoluto, mas a ser aferido nas circunstâncias específicas
dos casos. E por essa razão a duração do processo não deve ser classificada
como um conceito estático, mas sim dinâmico, a depender do caso concreto, pois
é evidente que situações mais complexas corresponderão a processos mais
demorados, ao passo que casos mais simples, serão resolvidos em menos
tempo. Cabe ressaltar que celeridade demais em muitos casos pode até implicar
injustiça, pois a ânsia de resolver o assunto com rapidez pode resultar em
trabalho mal feito, em análise inadequada.
Ademais, o direito à razoável duração do processo, da maneira como vem
expresso
na
Constituição
de
1988,
não
apresenta
sanções
a
seu
descumprimento. Em verdade, é comando direcionado ao legislador que deve
produzir normas destinadas a otimizar e promover a celeridade dos processos,
bem como ao administrador, no sentido de que suas técnicas de gestão
conduzam a decisões de qualidade no menor tempo possível e ao juiz no sentido
de que preste a tutela jurisdicional em espaço de tempo razoável, pois a duração
razoável do processo gera confiança por parte da sociedade na eficácia da ordem
jurídica (DANTAS: 2012).
Refira-se ainda que o direito à duração razoável do processo exige
prestações positivas do legislador, do administrador e do juiz, devendo o Estado
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dar tempestividade à tutela jurisdicional conforme MARINONI (2009). Nesse
contexto, passa-se a analisar o legislador como destinatário do direito ao
fundamental ao processo justo, em seu dever de proteção normativa. MITIDIERO,
MARINONI e SARLET (2012, p.678-9) apontam que o direito fundamental à
duração razoável do processo vincula o legislador no sentido de que ele deve
viabilizar técnicas processuais que permitam a prestação tempestiva da tutela
jurisdicional, normas que reprimam comportamentos atentatórios à duração
razoável, e deve estabelecer a previsão de responsabilidade civil do Estado pelo
descumprimento do referido direito fundamental.
Neste sentido, MARINONI
(2009) assevera que o legislador é obrigado a dar proteção normativa à duração
razoável do processo em três dimensões, (a) devendo editar normas com o fim de
regular a prática dos atos processuais em prazo razoável, estabelecer prazos que
realmente permitam a prática dos atos processuais e fixar sanções preclusivas
diante da não observância dos prazos; (b) devendo "dar às partes meios de
controle das decisões judiciais que violem as normas processuais destinadas a
dar proteção ao direito fundamental à duração razoável, assim como formas de
controle das decisões que, sem atentar contra regras infraconstitucionais, neguem
diretamente o direito fundamental à duração razoável"; e (c) devendo "instituir
meios processuais capazes de permitir o exercício da pretensão à tutela
ressarcitória contra o Estado".
Se hoje está consagrada a duração razoável do processo como direito
fundamental, houve um percurso histórico desde 15 de junho de 1215, quando o
Rei João, também conhecido como “o Sem Terra”, na Inglaterra, foi signatário da
Magna Carta das Liberdades (Great Chartes of Liberties), que no artigo 39 trazia:
“To no one will we sell, to no one will we refuse or delay, rigth or justice”. (Para
ninguém nós venderemos, recusaremos ou atrasaremos o direito ou a justiça). Na
Constituição dos Estados Unidos da América, do ano de 1776, esta já fazia
alusão de se exigir um processo rápido. A convenção Europeia dos Direitos do
Homem no artigo 6º, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos no seu
artigo 9º e 14º, a Carta Africana de Direitos Humanos no artigo 7º e o artigo 24º
da Constituição Espanhola são alguns exemplos lembrados por NICOLITT (2006).
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De tudo, percebe-se que o acesso à justiça e a duração razoável do
processo devem ser considerados como direitos fundamentais, ligados à noção
de Estado Democrático de Direito, que devem ser concretizados pelo Estado por
meio das normas jurídicas dirigidas aos Poderes de Estado. Não há como, na
vigência da Constituição de 1988, negar aplicação do acesso à justiça e da
duração razoável do processo aos cidadãos.
2.2 O Estatuto do Idoso e a tramitação preferencial
Com relação ao acesso à justiça da pessoa idosa analisado na perspectiva
da prioridade, da sua garantia e da obrigatoriedade institucional do Estado, da
Sociedade e da Família em viabilizar as formas desse acesso traz normas
específicas que tratam dessa proteção, através das instituições públicas e
privadas que viabilizam esse acesso.
O Estatuto do idoso é a Lei 10.741/03, publicada no Diário Oficial da União
em 01.10.2003, que traz o conceito de idoso em seu primeiro artigo, quando
leciona que “É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos
assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos”. Ou
seja, idosa é aquela pessoa cuja idade se iguala há 60 anos ou mais, sendo que a
esta classe de indivíduos é assegurada todos os direitos elencados no segundo
artigo do Estatuto, combinado, é claro, com outros em nossa legislação. Diz o
artigo 2º:
Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
assegurando-se lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades
e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de
liberdade e dignidade.
No direito processual, assegurando a tramitação preferencial dos
processos e procedimentos aos idosos, a previsão vem no artigo 71 do referido
Estatuto:
Art. 71. É assegurada prioridade na tramitação dos processos e
procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que
figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a
60 (sessenta) anos, em qualquer instância.
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A pessoa idosa terá prioridade na tramitação dos processos. Esse
mecanismo espera igualar a pessoa idosa às pessoas que estejam em melhores
condições com perspectiva de vida, tendendo à efetivação da justiça social. A
prioridade na tramitação dos processos em que o idoso é parte visa o
cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade a que
busca o Estatuto. Em razão disto está assegurada a prioridade na tramitação dos
processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que
seja parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos,
em qualquer instância do Poder Judiciário.
É necessário para a obtenção do benefício à comprovação de sua idade,
bem como o requerimento à autoridade judiciária competente para decidir o feito,
que determinará as providências a serem cumpridas, anotando-se essa
circunstância em local visível nos autos do processo.
A prioridade na tramitação não descontinuará com a morte do beneficiado,
mas estende-se em favor do cônjuge supérstite, companheiro ou companheira,
com união estável, maior de sessenta anos. Igualmente, a prioridade se amplia
aos processos e procedimentos na Administração Pública, instituições financeiras,
empresas prestadoras de serviços públicos e ao atendimento preferencial junto à
Defensoria Pública da União, dos Estados e do Distrito Federal em relação aos
Serviços de Assistência Judiciária. A prioridade de tramitação ao idoso não se
aplica de forma integral às ações coletivas movidas pelo Ministério Público, visto
que estas seguem o rito processual próprio e também nestas aplica-se o art. 6° do
CPC, a substituição processual.
Dos 186 processos pesquisados no sitio do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul, a partir do descritor: saúde, apelação, cível, acórdão,
ordinário e internação hospitalar, no período de 01/01/2014 a 01/012015, foi
possível evidenciar que: 128 processos requereram a internação hospitalar,
sendo 06 de idosos, 77 de não idosos - procedimento ordinário, sendo que em
66% de processos dos idosos foi concedida tutela antecipada. No entanto, nos
processos dos não idosos foi concedido tutela antecipada em 75% dos processos,
sendo que 01 processo não foi concedido tutela antecipada e 45 processos de
internações foram de procedimentos especiais. Os demais referiam-se a: 01 de
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medicamentos, 15 de serviços hospitalares, 01 de plano de saúde, 04 de acidente
de trânsito, 05 de seguro, 06 de dano moral, 01 de ação de cobrança, 01 de ação
indenizatória, 02 de fornecimento de aparelhos, 01 de responsabilidade civil, 01
de previdência privada, 01 de remoção, 01 de custeio.
Adicionalmente, dos 77 processos pesquisados de internação hospitalar de
pessoas não idosas eram internações compulsórias por transtornos mentais e
pessoas usuárias de drogas.
Verificou-se que a tramitação dos processos dos idosos levou em média
780 dias e dos não idosos levou em média de 738 dias, o que demonstrou que
nos processos de internação hospitalar de não idosos a tramitação processual foi
mais rápida que a do idoso.
Pelo exame dos processos acima citados, evidenciou-se o desrespeito ao
preceito legal do Estatuto do Idoso, sob o enfoque da celeridade processual, e
encontra seu fundamento de validade na Constituição de 1988, tendo ainda
operado efeito em sua efetividade com a Emenda Constitucional nº 45/04,
promulgada com vistas à melhoria do andamento das demandas dos processos.
Foi possível verificar junto à Corregedoria Geral da Justiça do Rio Grande
do Sul, que a Consolidação Normativa Judicial do Tribunal, provimento de nº
13/01-CGJ e 05/02-CGJ, estabelece nos artigos 662 a 664-A, Seção XIV – Dos
processos com tramitação preferencial nos seguintes termos:
Art. 662 – Os processos judiciais ou administrativos em que figure como
parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos terão
prioridade na tramitação em todas as diligências e atos a eles pertinentes.
Provimento nº 26/04-CGJ; Provimento nº 30/04-CGJ; Provimento nº 12/05-CGJ.
Art. 662 – Os processos judiciais ou administrativos em que figure como
parte ou interessado pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos ou
portador de doença grave prevista no inciso IV do artigo 69-A da Lei nº 9.784, de
29 de janeiro de 1999, incluído pela Lei nº 12.008 de 29 de julho de 2009, terão
prioridade na tramitação em todas as diligências e atos a eles pertinentes.
Parágrafo único – Também terão prioridade na tramitação os processos
administrativos em que figure como parte ou interessado pessoa portadora de
deficiência física ou mental. Provimento nº 17/2010-CGJ.
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Art. 663 – O interessado na obtenção desse benefício deverá requerê-lo ao
Juiz que presidir o processo.
Parágrafo único – A prova da idade deverá ser feita através de qualquer
documento hábil (carteira de identidade, carteira de habilitação, certidão de
nascimento, de casamento, carteira profissional, CTPS, dentre outros), cuja cópia
deverá ser juntada aos autos.
Parágrafo único – A prova da idade deverá ser feita através de qualquer
documento hábil (carteira de identidade, carteira de habilitação, certidão de
nascimento, de casamento, carteira profissional, CTPS, dentre outros), cuja cópia
deverá ser juntada aos autos. A comprovação da doença grave será feita
mediante juntada de atestado ou laudo médico.
Parágrafo único alterado pelo Provimento nº 17/2010-CGJ.
Art. 664 – A prioridade na tramitação dos feitos de que tratam os artigos
antecedentes será observada dentro da mesma classe de processos em que os
mesmos se insiram não se sobrepondo a outras prioridades previstas em lei.
Assim, exemplificativamente, processos comuns ordinários envolvendo idosos
terão tramitação preferencial em relação a outros processos comuns ordinários,
mas não em relação a processos cautelares e mandados de segurança.
Provimento nº 17/2010-CGJ.
Art. 664a – É assegurado às pessoas com idade igual ou superior a
sessenta anos o atendimento preferencial imediato no âmbito dos Cartórios
Judiciais, incluindo-se os adjuntos e da Distribuição e Contadoria.
Parágrafo único – Deverá ser afixado cartaz visível ao público com
caracteres legíveis, no âmbito da serventia, com a seguinte redação:
“Nos termos da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, é assegurado o
atendimento preferencial imediato às pessoas que possuam idade igual ou
superior a sessenta anos”. Artigo criado pelo Provimento nº 26/04-CGJ.
A corregedoria Geral de Justiça ao incluir na sua consolidação normativa, a
tramitação preferencial para processos que possuem pessoa idosa, estabelece o
mesmo dispositivo da lei 10.741/2003, não especificando sua tramitação nas
respectivas varas, de que forma é dada essa preferência.
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho nos permitiu concluir que, embora a legislação
brasileira abrigue os direitos fundamentais do acesso à justiça e da duração
razoável do processo, em especial sua aplicação à população de pessoas idosas,
na prática não parece haver regulação suficiente para aplicação de tal princípio.
Os processos pesquisados evidenciaram que a tramitação daqueles
envolvendo pedidos de pessoas idosas não foram mais céleres do que aqueles
em que figuraram no polo ativo pessoas não idosas. Uma das razões poderá ser
a celeridade natural dos processos envolvendo direitos à saúde, mas de qualquer
forma não houve demonstração de menor duração de processos envolvendo
idosos.
A fim de alcançar a efetividade da duração razoável do processo e
celeridade processual em relação aos processos envolvendo idosos, faz-se
necessária uma regulação mais específica acerca da tramitação processual nas
instâncias jurisdicionais a partir da verificação das possíveis causas do fato de
que os processos que tem como parte a pessoa idosa não têm duração
significativamente mais célere do que os demais, em iguais condições
processuais.
REFERÊNCIAS
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CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
DANTAS, R. P. O direito fundamental à razoável duração do processo. Conteúdo
Juridico, Brasilia-DF: 10 out. 2012. Disponivel em:
<http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.39924&seo=1>. Acesso em:
16 abr. 2015.
GRINOVER, A. P; CINTRA, A. C. e DINAMARCO, C. R. Teoria Geral do
Processo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo de 2010.
Brasília. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 03. Mar. 2015.
2492
MARINONI, L. G. Direito fundamental à duração razoável do processo. Revista
Jurídica, n. 379, p. 12-13, 2009.
MITIDIERO, D; MARINONI, L. G.; SARLET, I. W. Curso de direito
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NICOLITT, A. L. A duração razoável do processo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,
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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei nº 10741de 1º de outubro de 2003.
Disponível em <http://www4.planalto.gov.br/legislacao>. Acesso em :23 fevereiro
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SARLET, I. W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5 ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005.
STEINMETZ, W. A Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais.
Editora Malheiros: São Paulo, 2004.
TORRES, A. F. M. Acesso à justiça, In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, III n. 10,
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Consulta Jurisprudência.
Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 04 de março de 2015.
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PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE COMO
FORMA CONCRETA DE ACESSO À JUSTIÇA
Anderson von Heimburg
Suely Marisco Gayer
Cristiane Feldmann Dutra
RESUMO: O tratamento de inúmeras doenças é feito com base em
medicamentos. Contudo, existem casos que os pacientes necessidades
alimentares especiais; nestes casos, o tratamento é feito com a retirada de
determinados alimentos (por causarem malefícios à saúde do paciente) e a
inclusão de outros alimentos específicos (com o intuito de evitar a desnutrição e o
consequente óbito do paciente). Apesar do consumo dos alimentos em questão
não possuir o caráter volitivo, grande parte dos pacientes não realizam o
tratamento por não possuírem condições de arcar com os custos. Os pacientes
também não buscam o subsídio do referido tratamento junto ao SUS, por nem
mesmo saberem que são possuidores do referido direito. Assim sendo, o acesso
à justiça só é real, quando as previsões existentes na norma se consubstanciam
em atos que abrangem os detentores do dito direito.
PALAVRAS-CHAVE: direitos humanos, direitos fundamentais, direito à Saúde.
1 INTRODUÇÃO
O reconhecimento dos direitos humanos e dos direitos fundamentais
sociais, hodiernamente, é uma realidade que ultrapassa as barreiras políticas e
geográficas entre as mais diversas culturas e Estados – alguns ainda com certa
resistência. No entanto, percebe-se ainda um espaço abissal entre o
reconhecimento e a efetivação de ambos os direitos.
A efetivação dos direitos humanos e, via de consequência, dos direitos
fundamentais sociais – notadamente o direito à saúde e à alimentação, é
alicerçada, sobremaneira, no direito à vida e à dignidade da pessoa humana que
motivam o Estado a interferir e a agir com o escopo de assegurar a concretização
destes direitos.
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O fornecimento de medicamentos essenciais, abarcado pelos direitos
fundamentais sociais, enfrenta obstáculos jurídicos e administrativos. Apesar de
ser um direito plenamente reconhecido pelo Poder Público, cerca de dois bilhões
de pessoas não possuem acesso a estes medicamentos. Os óbices vão da
incapacidade financeira do Estado até a indefinição da essencialidade de um
determinado medicamento.1
O Estado Brasileiro reconhece a obrigatoriedade do fornecimento de
medicamentos essenciais. Em virtude disso, com base na Lei 8.080 de 19 de
setembro de 19902 e na Política Nacional de Medicamentos3, elabora e atualiza a
Relação de Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). A partir disso, o
Estado faz a aquisição e distribuição dos medicamentos.4
Em que pese à existência de órgãos governamentais empenhados em
desenvolver e colocar em prática a política farmacêutica, este fato não impede a
existência de distorções e omissões acerca do assunto. Seja por não constar no
RENAME, seja por existir uma limitação teórica de conceito de medicamento
utilizado em nosso Estado, ou por outros tantos motivos, existe uma gama de
doenças que não possuem o tratamento contemplado pelo RENAME, o que gera
inúmeras demandas judiciais em busca de medicamentos não agraciados na
referida relação.
Neste contexto, indico o exemplo da Alergia à Proteína do Leite de Vaca,
doença que não possui cura, devendo ser tratada enquanto a criança necessitar
da alimentação baseada exclusivamente no leite. O tratamento é fundado em uma
“fórmula” que é desenvolvida especificamente para alimentar a criança acometida
pela doença, sendo a única forma de nutrição possível nos meses iniciais de vida.
5
A referida doença possui tratamento reconhecido internacionalmente. No
entanto, a substância para o tratamento não é encarada como alimento e sim
como medicamento. Em nossa legislação pátria, é definida como Alimento para
Fins Especiais. Em virtude disso, o Estado pode vir a restringir a distribuição de
substâncias imprescindíveis para o adequado tratamento da enfermidade.
O objetivo do presente artigo é verificar se as substâncias utilizadas para o
tratamento desta doença são identificadas como Alimentos, Alimentos Especiais,
2495
Suplementos Alimentares, Medicamentos ou outro conceito correlato. Cumpre
ainda analisar se esta identificação possui amparo legal, bem como se esta
indefinição causa prejuízo ao requerente no momento de pleitear o fornecimento
do tratamento pelo Estado.
Neste contexto, o entendimento jurisprudencial é de suma importância, o
qual será o objetivo do primeiro tópico. Na sequência, será abordada a visão
relativa ao Direito à Saúde. No terceiro capítulo abordará o Direito Fundamental à
Alimentação, que englobará a Política Nacional de Alimentação e Nutrição,
atualizada em 2012.
Para o presente trabalho, será utilizado o método qualitativo desenvolvido
por Levantamento Bibliográfico, Revisão Legal e Análise Jurisprudencial.
2 LEVANTAMENTO E ANÁLISE DE PROBLEMAS JURÍDICOS
Com o intuito de verificar se a imprecisão na definição do conceito afeta o
fornecimento, por via administrativa, de substância para alimentação das pessoas
portadoras da alergia à proteína do leite de vaca, foi realizado um levantamento
jurisprudencial no âmbito da Justiça Federal da 4º Região. A pesquisa foi
realizada, por intermédio do site da Justiça Federal, delimitando a análise a
provimentos jurisdicionais prolatados pelo Tribunal Regional Federal, relativos aos
anos de 2012 e 2013. Os descritores de pesquisa utilizados foram Proteína do
Leite, Suplemento Alimentar, Processo Eletrônico, Apelação. Foram obtidos os
seguintes
resultados:
7
76.2012.404.7204 –SC
86.2010.404.7204 –SC
9
6
5002168-38.2011.404.7215 –SC
,
5000660-90.2011.404.7204 –SC
, 5006462-81.2011.404.7200 –SC
10
,
8
5006511,
5002997e 5002650-
43.2011.404.7002 –PR 11.
Neste ponto em questão, o presente artigo ,faz uso de dados de um estudo
já realizado durante o curso de mestrado em direitos humanos de Anderson von
Heimburg.
Analisando atentamente os processos, verificou-se que, em todos os
casos, a demanda foi originada em razão do indeferimento do pedido de
2496
fornecimento da substância pelo Executivo em todas as suas esferas de governo
Federal, Estadual e Municipal.
Em relação às Petições Iniciais foi observado que a faixa etária dos autores
está abaixo de um ano de idade, apenas em um caso, a parte autora possuía dois
anos. Os autores foram defendidos, em 66% das vezes, por escritórios
particulares, sendo em um caso o demandante defendido pelo Ministério Público
Federal (MPF) e outro pela Defensoria Pública da União. Em todas as ações, foi
solicitado o fornecimento da substância, sendo 83% Neocade e 16% Pregomin,
Pediasure e Kalyamon. Quanto à duração do fornecimento pelo Poder Público, o
pedido, em 83% dos casos, foi no sentido de que perdurasse até o final da
doença, sendo, em apenas um caso, limitado aos seis meses, em razão de o
autor possuir dois anos de idade. Saliento que, na oportunidade em que o MPF
defendeu um autor, foi solicitado o fornecimento da substância, não apenas ao
demandante, mas a todas as crianças do município que apresentassem a mesma
doença, pretendendo um efeito erga omnes. No entanto, a prescindibilidade de
ação judicial restou indeferida.
Em todas as petições iniciais foram utilizadas a argumentação do direito a
vida do Art. 1º e no direito à saúde, contido no Art. 6º e Art. 196, todos da
Constituição Federal. A hipossuficiência foi arguida em 66% das iniciais; a saúde
como um direito fundamental e o dever de ser provido pelo Estado, com base no
Art. 2º da Lei 8080/90 foi elencada em 50% das petições; e o atendimento integral
com base no Art. 198, inciso II, da CF/88 foi utilizado em 16% dos casos.
Em contrapartida, as Contestações versaram acerca da impossibilidade do
fornecimento das substâncias. Em todas as vezes que os municípios foram
chamados à lide, sustentaram a ilegitimidade passiva, pelo tratamento ser de
elevado custo, defendendo o redirecionamento do pólo passivo ao Estado e à
União; em 83% dos processos, a União alegou a ilegitimidade passiva por ser
gestora e não financiadora do SUS; em todos os casos, pelo menos uma das
partes passivas, alegou que não poderia fornecer a substância com base na
teoria da “reserva do possível”. Por fim, em 83% das ações, pelo menos um dos
pólos passivos alegou que não deveria fornecer o produto pleiteado por não haver
2497
previsão de fornecimento deste pelo SUS, se referenciando aos produtos como
“medicamento”, “suplemento alimentar” ou “alimento”.
Em 83% das ações foram realizadas perícias, no curso do processo por
determinação do Juízo de 1º Grau ou por solicitação de uma das partes
demandadas.
A tutela antecipada foi requerida e concedida em todos os casos. No
primeiro grau todas as sentenças deram provimento ao fornecimento da
substância pleiteada.
O município apelou de 50% das sentenças, o Estado 33% e a União em
83% das vezes. Desta forma, em todos os processos ao menos uma das partes
do pólo passivo apelaram da sentença.
Por fim no 2º Grau todas as sentenças foram mantidas, sempre por
votação unânime dos desembargadores.
.
A argumentação do tribunal foi dividida em dois sentidos principais.
Entenderam alguns magistrados que os produtos pleiteados possuem a natureza
de medicamento; enquanto os demais decidiram que o fornecimento deve ser
feito pelo Poder Executivo, por intermédio do SUS, independente de ser
medicamento ou alimento.
Com o estudo jurisprudencial exposto, afere-se que a inexistência de um
conceito claro acerca da substância pleiteada – se alimento ou medicamento provoca
um
prejuízo
ao
seu
fornecimento
pelo
Executivo,
resultando
inexoravelmente em demandas judiciais para prover a insuficiência do Estado.
Desta forma resta provado que o Executivo segue orientação da
Coordenadora Geral da Política de Alimentos e Nutrição do Departamento de
Alimentação Básica do Ministério da Saúde, Ana Beatriz Pinto de Almeida
Vasconcellos, a qual, em audiência pública realizada no STF em abril de 2009,
orientou o Poder Executivo a considerar estes componentes como alimentos
especiais e não medicamentos. Em virtude disso, sustentou que as substâncias
não devem ser fornecidos pelo Sistema Único de Saúde. 12
3
PRINCÍPIO
DA
INTEGRALIDADE
FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS
DO
DIREITO
À
SAÚDE
E
O
2498
Este princípio alcança três campos de atuação, quais sejam, as práticas dos
profissionais de saúde, a organização dos serviços de saúde e a políticas de
saúde. 13
É importante salientar que é o princípio da integralidade que não nos permite
reduzir o direito à saúde a uma “cesta básica” de serviços que contempla apenas
o vital para uma grande maioria. Devemos entender o conceito de direito a saúde
no sentido de contemplar todos de forma essencial, garantindo a dignidade dos
indivíduos. 14
A integralidade é aludida na CF/88 em seu Art. 198 que dita que as ações e
serviços públicos constituem um sistema único, organizado de acordo com
algumas diretrizes, dentre elas o atendimento integral, com prioridade para as
atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais.15
Em consonância com a CF/88, a Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990,
preleciona que o Sistema Único de Saúde tem como um de seus objetivos a
assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e
recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das
atividades preventivas. Em seu Art. 6º, discrimina que o SUS possui como campo
de atuação a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica. Por fim, em
seu Art. 7º, determina como princípio do SUS a integralidade de assistência, que
deve ser entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços
preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos
os níveis de complexidade do sistema. 16
A leitura da norma deve ser feita com atenção pois, conforme WEICHIERT,
existe diferença entre direito à assistência farmacêutica e direito de consumo de
medicamentos
17
No mesmo rumo, RIOS adverte que a integralidade requer
racionalização do sistema de serviço, com intuito de articular ações de baixa,
média e alta complexidade e humanizar os serviços e as ações do SUS. Em
relação ao fornecimento de medicamentos, não podemos confundir, com base na
integralidade, uma visão reducionista do direito à saúde ao fenômeno da
chamada “farmaceuticalização” da política de saúde que deve sim ser combatida
por ser incapaz de promover a efetiva melhoria das condições de saúde. 18
2499
Com intuito de evitar entendimento errôneo, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária, em consonância com o art. 4º, inciso II, da Lei 5.991/73, define como
medicamentos o “produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com
finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico”. 19
Em relação ao direto de um indivíduo de receber um medicamento fornecido
pelo Estado, este tema é enfrentado tanto no âmbito internacional como no
interno.
A Organização Mundial da Saúde orienta cada país a elaborar um rol de
medicamentos essenciais que deve ser atualizado periodicamente.
20
Esta
elaboração e revisão deve ser guiada pelas necessidades terapêuticas de
determinada população, excluindo medicamentos de eficácia não comprovada e
que possam apresentar maiores riscos que benefícios na sua utilização. Desta
forma, o rol de medicamentos essenciais não deve estar relacionado com o custo
financeiro.21
No âmbito nacional, é reafirmada a obrigação de fornecer determinados
medicamentos essenciais para pessoas em determinadas condições, por
intermédio do Ministério da Saúde que divulga anualmente a Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais (RENAME). 22
4 DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO
O acesso à alimentação é um direito humano e, no caso brasileiro, um
direito fundamental que se constitui no próprio direito à vida. A negação a tal
direito ao ser humano é a negação da própria vida. 23
4.1 Normas que prescrevem o Direito Fundamental à Alimentação
A normatização relativa ao direito à alimentação, tal como o direito ao
recebimento de medicamentos fornecidos pelo Estado, é prevista na legislação
internacional e pátria, garantindo, pois, de forma positiva o direito à alimentação.
O Artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que
“Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
2500
família saúde e bem estar, inclusive alimentação[...]”. Esta norma, cita o direito à
alimentação; contudo, não delimita sua amplitude. 24
Posteriormente a sobredita declaração, surge no âmbito internacional o
principal estatuto normativo garantidor do direito à alimentação como já havíamos
comentado em trabalho anterior. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PDESC), estatuto normativo do qual o Brasil é signatário, em
especial no seu artigo 11, além de explicitar o direito à alimentação a todas as
pessoas, determina que os Estados Partes providenciem medidas que assegurem
a realização deste direito. Dispõe ainda acerca do dever dos Estados de abrigar
todos da fome com programas concretos. 25
Em 1999, no cenário internacional, o Comitê de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais das Nações Unidas aprovou o Comentário Geral nº 12 ao Art
11 do PDESC, alertando, no item 6, que só se consubstancia o direito à
alimentação adequada quando se tem acesso físico e econômico em todos os
momentos de alimentos ou meios adequados para sua aquisição. 25
Em nossa legislação pátria, o direito à alimentação foi introduzido, de forma
expressa, no art. 6º da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional nº
64/2010, elevando de forma explícita o direito à alimentação a um patamar de
direito fundamental social. Em outros dispositivos constitucionais, também é
possível observar a alusão explícita, como ocorre nos seguintes artigos: Art. 7º,
inciso IV; Art. 208, inciso VII; Art. 212, § 4º, e Art. 227. No entanto, já se
observava o direito à alimentação proferido de forma implícita, no Art. 1º da
CF/88, quando há menção a um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil, qual seja, o da dignidade da pessoa humana. 15
Já a legislação infraconstitucional, por meio da Lei Orgânica de Segurança
Alimentar e Nutricional (LOSAN - Lei n. 11.346/2006), determinou ampla
participação de representantes do governo na concretização do direito. No artigo
2º prevê o direito à alimentação adequada como um direito fundamental e
estabelece ser um dever do Estado à adoção de políticas e ações necessárias
para promover e garantir a segurança nutricional e alimentar. Por fim, esclarece
que a obrigação de prover a alimentação está imbricada ao direito de estar livre
da fome. 26
2501
Da mesma forma, a Política Nacional de Alimentação de Nutrição que é
elaborada e atualizada periodicamente pelo Ministério da Saúde traz conceitos
atualizados e possui o propósito de melhorar as condições de alimentação e
nutrição. 27
4.2 Conceito de Direito Fundamental à Alimentação
Antes de delimitar o conceito do direito fundamental à alimentação, é
importante salientar que existem conceitos correlatos e que constantemente são
confundidos com o referido direito, estes estão previstos na Política Nacional de
Alimentação e Nutrição e no Decreto-lei nº 986 / 69. Vejamos.
O conceito genérico de alimento é toda substância ou mistura de
substâncias destinadas a fornecer ao organismo humano os elementos normais à
sua formação, manutenção e desenvolvimento. 28
Por vezes, observamos uma nomenclatura utilizada de forma equivocada,
qual seja, o alimento enriquecido, que é um alimento que possui adição de
substância nutriente com a finalidade de reforçar o seu valor nutritivo. 32
Outra nomenclatura equivocadamente utilizada é a de suplementos
nutricionais, que são alimentos que servem para complementar, com calorias e ou
nutrientes, a dieta diária de pessoas saudáveis. 27
Para o caso concreto estudado no presente artigo científico, um conceito
fundamental é o de alimentos para fins especiais. Estes alimentos são
especialmente formulados ou processados, na medida em que são introduzidas
modificações no conteúdo de nutrientes adequados à utilização em dietas
diferenciadas e/ou opcionais, atendendo necessidades de pessoas em condições
metabólicas e fisiológicas específicas, como é o caso da alergia à proteína do
leite de vaca. 27
Neste contexto, a alergia da proteína do leite de vaca não pode ser
confundida com a intolerância alimentar, doença esta que apenas produz reações
adversas a alimentos, não dependendo de mecanismos imunológicos. Esta
intolerância pode ocorrer pela falta de enzimas digestivas, a qual produz, na
maioria dos casos, disenteria e a não-absorção de nutrientes. Este sintoma é
2502
característico da intolerância a lactose, doença distinta a estudada no presente
artigo. 27
O caso da alergia da proteína do leite de vaca é decorrente da alergia
alimentar que se caracteriza por reações adversas ao alimento, dependente de
mecanismos imunológicos, possuindo reações bem mais severas que intolerância
alimentar. 27
Superada a diferenciação de conceitos, tem-se que o direito humano à
alimentação adequada consubstancia-se no acesso regular, permanente e
irrestrito, a todas as pessoas, quer diretamente, quer por meio de aquisições
financeiras, a alimentos seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade
adequadas e suficientes, a fim de garantir uma vida digna e plena nas dimensões
física e mental, individual e coletiva. 27
4.3 Política Nacional de Alimentação e Nutrição - 2012
A alimentação e a nutrição constituem-se pré-requisitos básicos para a
promoção e a proteção da saúde, por intermédio dos quais asseguram-se o pleno
potencial de crescimento e desenvolvimento humano, com qualidade de vida. 29
A Política Nacional de Alimentação e Nutrição – 2012 - é embasada nos
princípios que regulam o Sistema Único de Saúde, sendo o de maior relevância
para o presente estudo o Princípio da Integralidade, já analisado alhures,
observando que seus três campos de atuação são fundamentais para a
concretização da Política Nacional de Alimentação e Nutrição . No caso do direito
à alimentação, a aplicação do princípio busca a afastar o reducionismo que
objetiva aviltar o direito humano à alimentação, aproximando as práticas de saúde
com qualidade, tanto no âmbito preventivo, como no paliativo. 13
Em uma leitura contextualizada do art. 6º da Lei nº 8.080, denota-se que é
incluído, no campo de atuação do SUS, a execução de ações de assistência
terapêutica integral. Desta forma, por meio do Princípio da Integralidade, presente
na Política Nacional de Alimentação e Nutrição, é possível justificar a
obrigatoriedade do SUS em colocar em prática as políticas que amparem as
2503
pessoas com alergia à proteína do leite de vaca, inclusive fornecendo as
substâncias adequadas às pessoas hipossuficientes.16
Salienta-se que as pessoas com alergia à proteína do leite de vaca são
portadoras de uma deficiência que limita seu desenvolvimento e, por vezes, o
suporte à vida. Sua deficiência gera subnutrição que, por sua vez, causa uma
limitação física. Em razão disso, pode-se classificar como uma pessoa portadora
de deficiência. 30
No entanto, nem na Política Nacional de Alimentação e Nutrição, nem em
outro diploma normativo, há determinação explícita do fornecimento de alimentos
(descrição genérica) que é a nomenclatura comumentemente utilizada, o que não
afasta a possibilidade do fornecimento da substância para o tratamento das
pessoas portadoras da doença da alergia à proteína do leite, se utilizarmos uma
nomenclatura específica já existente.
Com efeito, o fornecimento é possível pelo fato de a Política Nacional
entender que, entre os cuidados relativos à alimentação e nutrição, está o
fornecimento de alimentos para fins especiais e que o Estado tem o dever de
normatizar seu acesso. O mesmo diploma define os alimentos para fins especiais.
Deste modo, esta definição afasta o entendimento de que tais substâncias sejam
medicamento,
tampouco
suplementos
nutricionais
que
servem
para
complementar, com calorias e ou nutrientes, a dieta diária de uma pessoa
saudável. 27
Assim sendo, ao utilizarmos a definição correta das substâncias para o
tratamento das pessoas com alergia à proteína do leite como um alimento para
fins especiais, se torna possível sustentar seu fornecimento pelo Estado com
base na Política Nacional de Alimentação e Nutrição, pois esta determina que
“deverão ainda ser normatizados os critérios para o acesso a alimentos para fins
especiais de modo a promover a equidade e a regulação no acesso a esses
produtos.” 27
Contudo, hodiernamente, o fornecimento de alimento para fins especiais
esbarra na inexistência de um órgão estatal que forneça tais substâncias, assim
como na inexistência de norma técnica que defina os critérios para seu acesso. O
Poder Executivo, por intermédio do SUS, conforme observado nos processos
2504
estudados no presente artigo, nega o seu fornecimento. Assim, as pessoas com
deficiência que necessitam do tratamento financiado pelo Estado encontram-se
desamparadas, pois a substância definida como alimento para fins especiais não
encontra normatização e regulamentação para o seu fornecimento por órgão
estatal, o que não ocorre em relação ao já existente sistema de fornecimento de
medicamentos. Em uma segunda definição, adotada em alguns julgamentos, tais
substâncias são equiparadas a medicamento. Neste caso, o Executivo, alegando
não ser um medicamento, nega o fornecimento, conforme palavras de Ana Beatriz
Pinto de Almenida Vasconcellos - Coordenadora Geral da Política de Alimentação
e Nutrição do Ministério da Saúde. 12
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo das decisões do TRF da 4ª Região mostra, de forma clarividente,
que a inaplicabilidade correta do um conceito adequado de alimento para fins
especiais gera litígio. A inexistência do conceito correto possibilita o argumento no
sentido de que o SUS não possa adquirir tais produtos, fazendo com que o
Executivo negue seu fornecimento. No estudo jurisprudencial, observa-se que,
independentemente da nomenclatura utilizada, as decisões foram sempre no
sentido de dar provimento ao pedido de fornecimento pelo Executivo.
É de fundamental importância a utilização da nomenclatura de alimento
para fins especiais, não apenas para fortalecer ainda mais os fundamentos que
embasam o Poder Judiciário a compelir o Estado a fornecer um tratamento
adequando, mas notadamente pelo fato de a Política Nacional de Alimentação e
Nutrição, que é expedida pelo Ministério da Saúde, determinar que devam ser
normatizados os critérios para o acesso a alimentos para fins especiais de modo
a promover a equidade e a regulação no acesso a esses produtos. Com este
entendimento o próprio Poder Executivo se compromete com o fornecimento da
substância.
O Direito Fundamental à Saúde, em sua ampla legislação pátria e
internacional ampara e obriga o fornecimento de substância que seja
2505
indispensável à manutenção da vida. No caso nacional tal direito é reforçado pelo
Princípio da Integralidade do SUS. O direito vem sendo garantido independente
da nomenclatura utilizada pelo Executivo ou Judiciário, conforme se afere com a
fundamentação do Tribunal nos pleitos decorrentes da inércia do Poder
Executivo.
Já o Direito Fundamental à Alimentação, amparado de forma semelhante
ao Direito à Saúde, amplia os direitos do cidadão e deveres do Estado. No caso
brasileiro, possui ainda amparo na Política Nacional de Alimentação que
determina a normatização para o fornecimento dos alimentos para fins especiais.
Desta forma, o tratamento das pessoas acometidas pela alergia da
proteína do leite de vaca com base nos alimentos para fins especiais possui
fundamentação normativa e doutrinária para que o Estado subsidie o tratamento
nos casos de hipossuficiência, amparados no Direito à Saúde assim como no
Direito à Alimentação.
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2509
COMPARATIVO ENTRE OS JUIZADOS ESPECIAIS E AS SMALL CLAIM
COURTS: A FILTRAGEM DA DEMANDA ATRAVÉS DA POSSIBILIDADE DE
ACORDO COMO MEIO DE ACESSO À JUSTIÇA
Michelle Fernanda Martins
RESUMO: Os juizados especiais foram instituídos no Brasil com o propósito de
proporcionar o acesso à justiça, assim como com o objetivo de reduzir a
morosidade processual, do mesmo modo em que foram instituídas as small
claims courts norte-americanas. As últimas, após terem apresentado alguns
problemas e sofrido críticas, passaram por um processo de reestruturação do
modelo no final do século XX. O propósito deste artigo é analisar se estas
mesmas dificuldades não são apresentadas pelos juizados especiais brasileiros e
se as reformas lá realizadas não se aplicariam na experiência brasileira na busca
pelo efetivo acesso à justiça.
PALAVRAS-CHAVE: juizados especiais; acesso à justiça; small claim courts.
1 INTRODUÇÃO
Uma das influências da criação dos Juizados Especiais no âmbito brasileiro
é a instituição das Small Claim Courts1, as quais foram criadas nos Estados
Unidos. Ambas as iniciativas procuravam garantir o acesso à justiça, além de
reduzir a morosidade processual, sendo responsáveis pelas causas de menor
complexidade. No entanto, apesar desta boa intenção, algumas dificuldades se
apresentam nesta busca de garantir o “acesso à justiça”, como, por exemplo, a
grande quantidade de processos que são ajuizados no Juizado Especial Cível, às
vezes, até ultrapassando a Justiça Comum .
No caso das Small Claim Courts, após estas terem sofrido duras críticas,
houve um processo de reinvenção no período de 1950 a 1970, ocorrendo a
instituição de novas medidas para que o acesso à justiça se tornasse igualitário e
acessível a todos. Uma destas medidas é que, quando a parte ingressa com a
ação, é questionada sobre a sua vontade de ser julgada perante um juiz ou um
1
Os tribunais de pequenas causas da Inglaterra também são assim denominados.
2510
árbitro, sendo tomados direcionamentos diversos conforme a opção da parte, o
que facilitaria a condução adequada do processo ao fim que se destina, além de
terem sido criados centros alternativos de resolução de conflitos, onde as partes
buscam a conciliação através da alternative dispute resolution (ADR).
Assim sendo, questiona-se se estas providências poderiam influenciar uma
reestruturação nos Juizados Especiais, buscando garantir o acesso à justiça de
forma igualitária e eficiente a todos e, principalmente, visando à garantia de uma
prestação jurisdicional adequada.
2 O ACESSO À JUSTIÇA
Para entender o ponto central deste trabalho, é necessário, primeiramente,
tecer considerações acerca do que seria o “acesso à justiça” e quais os
problemas a serem enfrentados na busca pela efetivação deste direito.
Segundo Cappelletti e Garth, o “acesso à justiça” passou por três situações
básicas, as quais teriam emergido em ordem cronológica. Os autores explicam
estas situações como se fossem ondas, se apresentando como prováveis
soluções para os problemas que limitavam o acesso à justiça, embora elas ainda
requeressem maior reflexão (CAPELLETTI; GARTH, 1998, p. 31).
Em síntese, a primeira onda seria garantir a assistência jurídica aos
pobres; a segunda onda diria respeito às reformas tendentes a proporcionar
representação jurídica para os interesses difusos, especialmente no tocante ao
direito do consumidor e no direito ambiental; e a terceira onda seria o ‘enfoque de
acesso à justiça’, isto é, a priorização de uma reforma interna no processo na
busca da efetiva tutela jurisdicional (CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 31-73).
2.1. A Primeira Onda
Quanto à primeira onda, Cappelletti e Garth destacam que os primeiros
esforços
dos
países
ocidentais
para
proporcionar
o
acesso
à
justiça
concentraram-se em oferecer os serviços jurídicos para os pobres, já que o
auxílio de um advogado é fundamental para entender “leis misteriosas” e
2511
desvendar “procedimentos misteriosos”. Assim sendo, o acesso à justiça foi
reconhecido; no entanto, os serviços de assistência judiciária de diversos países
se mostraram insuficientes e inadequados, já que se fundamentavam, na maior
parte dos casos, em serviços prestados por advogados sem contraprestação. Isto
é, o Estado não adotava qualquer ação positiva para garantir o acesso à justiça,
denotando uma assistência judiciária gratuita ineficiente (CAPPELLETTI; GARTH;
1988; p. 31-32).
Assim sendo, diversos países iniciaram a adotar soluções para efetivar
estes direitos; contudo, não se descreverá estas experiências, pois não é o
objetivo do presente trabalho. Em síntese, existiram três formas de sistema de
assistência jurídica aos pobres: a) o sistema judicare; b) o advogado remunerado
pelos cofres públicos e c) os modelos combinados (CAPPELLETTI; GARTH;
1988; p. 35-43).
O sistema judicare consiste essencialmente em um sistema no qual a
assistência jurídica é prestada a todas as pessoas, sendo os advogados
particulares pagos pelo Estado. Neste caso, o objetivo é fornecer aos litigantes de
baixa renda o advogado que teriam se pudessem pagar. Questiona-se, neste
sistema, a falta de auxílio para “casos teste” e ações coletivas em favor dos
pobres, já que estes só poderiam ser ajuizados quando justificados pelo interesse
de casa indivíduo. Argumenta-se que, enfrentando os pobres muitos problemas
como
grupo
ou
classe,
os
remédios
individuais
seriam
insatisfatórios
(CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 35-39).
Já o sistema de advogados remunerados pelos cofres públicos defende
que “os serviços jurídicos deveriam ser prestados por ‘escritórios da vizinhança’,
atendidos por advogados pagos pelo governo e encarregados de promover os
interesses dos pobres, enquanto classe”. Neste caso, busca-se que os indivíduos
com escassos recursos tenham conhecimento de seus direitos, de modo a apoiar
os interesses difusos ou de classe das pessoas pobres. No entanto, este modelo
também apresenta dificuldades: (a) a capacidade de criar tais advogados, pois há
a possibilidade de o advogado vir a negligenciar os interesses de clientes
particulares atraído pelos bons resultados dos “casos testes”e iniciativa de
reformas legais; (b) tratar os pobres como incapazes de perseguir seus próprios
2512
interesses poderia ser considerado uma posição muito “paternalista”; (c) o
sistema necessariamente precisa de apoio governamental para atividade de
natureza política, sendo que muitas vezes a pretensão será dirigida contra o
próprio governo (CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 39-43).
O sistema combinado foi adotado pela Suécia e pela província de Quebec
do Canadá, onde era oferecido atendimento ou por advogados servidores
públicos ou por advogados particulares, de modo que seria possível auxiliar tanto
a pessoa menos favorecida quanto o pobre como grupo. Os autores salientam
que esta solução tem implicações ao acesso à justiça; contudo representa “um
passo além da simples assistência judiciária” (CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p.
43-47).
Cappelletti e Garth referem que, para o efetivo acesso à justiça no tocante
a primeira onda, se mostra necessário: (a) um grande número de advogados; (b)
que os advogados se tornem disponíveis para auxiliar aqueles que não podem
pagar pelos seus serviços; (c) uma especial atenção para o problema das
pequenas causas individuais (CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 47-48).
2.2 A Segunda Onda
No tocante à segunda onda, a preocupação se refere à representação
adequada e efetiva dos interesses difusos, assim denominados os interesses
coletivos ou grupais. Em que pese a preocupação anteriormente apresentada
acerca da representação dos pobres enquanto grupo,
se ignoravam direitos
difusos, como a proteção ao meio ambiente ou ao direito do consumidor
(CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 49-50).
Esta segunda onda de reformas demandou reflexão sobre noções
tradicionais do processo civil, assim como conceitos, já que a concepção
tradicional do processo não abria espaço para a proteção dos direitos difusos,
pois “as regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a
atuação do juiz não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses
difusos intentados por particulares” (CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 49-50).
2513
Assim sendo, reformas legislativas e importantes decisões dos tribunais
iniciaram a permitir que indivíduos e grupos atuassem em representação de
interesses difusos. Do mesmo modo, iniciou-se uma transformação do papel do
juiz e de conceitos básicos, como a “citação, “direito de ser ouvido”e “coisa
julgada, já que nem todos os titulares de um direito difusos podem comparecer a
juízo, de modo que é necessário que haja um “representante adequado” para agir
em nome da coletividade, bem como a decisão deve se estender a todos os
membros do grupo, ainda que nem todos tenham sido escutados. Dessa forma,
surgem, por exemplo, as class actions do direito norte-americano, as quais
vinculam os membros ausentes de determinada classe, mesmo que eles não
tenham tido informação prévia sobre o processo. A visão individualista do
processo cede, dando espaço a uma concepção mais “coletiva” (CAPPELLETTI;
GARTH; 1988; p. 49-50).
A despeito de ser a ação governamental o principal método para efetivar os
interesses difusos, fato é que esta, por si só, não foi muito bem sucedida, eis que
o Ministério Público e as instituições análogas não se demonstram capazes de
assumir totalmente a defesa dos interesses difusos. Estes novos direitos, muitas
vezes, requerem conhecimentos em áreas técnicas, não jurídicas, como
urbanismo, contabilidade, medicina, de modo que estas instituições não possuem
o treinamento e a experiência necessários para a defesa destes direitos
(CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 51-52).
Como resposta a esta problemática, apresentam-se uma eficiente ação de
grupos particulares e uma combinação de recursos, como as ações coletivas, as
sociedades de advogados do interesse público, a assessoria pública e o
advogado público. Apesar destes grupos necessitarem de recursos econômicos,
experiência e especialização para poder defender apropriadamente um interesse
difuso e os advogados públicos não serem responsabilizáveis pelos interesses
que defendem e existir dúvida quanto à sua viabilidade a longo prazo, estas
soluções são um ponto de partida para a reivindicação dos interesses difusos de
forma adequada e eficiente (CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 55-67).
2514
2.3 A Terceira Onda
A terceira onda atende sob o nome de “enfoque de acesso à Justiça”, em
razão de sua abrangência. Em síntese, esta onda reconhece a importância das
duas ondas anteriores, mas ressalta que seus limites devem ser conhecidos,
direcionando a sua atenção ao “conjunto geral de instituições e mecanismos,
pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas
nas sociedades modernas”. Em síntese, esta posição procura mecanismos para
efetivar o acesso à justiça e, por conseguinte, os direitos (CAPPELLETTI;
GARTH; 1988; p. 67-71).
Ela sugere diversas reformas, tais como “alterações nas formas de
procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos
tribunais, o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto
como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios
ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais para a
solução de litígios” (CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 71).
Além disso, esta onda defende a necessidade de adaptação do processo
civil ao litígio, já que os litígios são diversos em sua complexidade, necessitando
de adequação cada caso concreto. Assim, cada litígio deve ser bem analisado.
Além disso, deve-se analisar tanto a repercussão individual quanto a repercussão
coletiva de determinado caso (CAPPELLETTI; GARTH; 1988; p. 71-72).
Por fim, destaca-se que, neste caso, a ideia é verificar o papel e a
importância dos limites e questões envolvidas, objetivando o desenvolvimento de
instituições efetivas na busca do acesso à justiça (CAPPELLETTI; GARTH; 1988;
p. 71-72).
3 AS SMALL CLAIM COURTS
Antes de adentrar no eixo central do trabalho, mostra-se necessário
conceituar o que seriam as Small Claim Courts, surgidas no direito norteamericano, e qual a serventia destas, assim como analisar a sua reestruturação
ocorrida entre 1950 e 1970.
2515
3.1 Surgimento das Small Claim Courts
O primeiro órgão com atribuição especial para cuidar das “pequenas
causas” surgiu, nos Estados Unidos da América, em 1913, sendo denominada
poor man’s court (corte dos homens pobres), a qual era uma espécie de filial da
Corte Municipal (FRIEDMAN, 1984, p. 58-59).
É importante observar que esta corte surgiu após uma mudança de
distribuição populacional significativa na América do Norte, quando ocorreu um
declínio na população rural e um aumento da população urbana, pois vinham
imigrantes de outra região, assim como se estabeleciam novas indústrias (de
ferro, de automóveis e de energia elétrica) (MIRANDA; OLIVEIRA FILHO;
PETRILLO, p. 4).
Como consequência desta mobilização social, os desníveis salariais
aumentaram e tornaram as pessoas vulneráveis ao desemprego e a
marginalização social, já que não se promovia uma efetiva distribuição de renda.
Assim sendo, esta nova realidade, com a modificação da estrutura social, trouxe
novos litígios nas comunidades urbanas, o que obrigou a criação de novas
estruturas para responder a estas questões. Do mesmo modo, mostrava-se
necessário garantir o acesso à justiça a quem não podia custear o processo
judicial comum (MIRANDA; OLIVEIRA FILHO; PETRILLO, p. 4).
Posteriormente, em 1934, foi criada a primeira poor man’s court na cidade
de Nova Iorque, com a finalidade de julgar as causas inferiores a cinquenta
dólares, fruto de um processo de grande modificação social nos Estados Unidos,
após a quebra da Bolsa de Valores em Nova Iorque em 1929 (MIRANDA;
OLIVEIRA FILHO; PETRILLO, p. 5).
As principais características destas cortes são o fato de serem populares,
atendendo pessoas da baixa e média população, e ter baixo custo aos seus
usuários. São informais e dispensam os advogados e as formalidades
processuais. (MIRANDA; OLIVEIRA FILHO; PETRILLO, p. 7).
No caso dos Estados Unidos, o grande número de processos dos Tribunais
comuns oportunizou o papel fundamental dos Juizados Especiais no direito norte-
2516
americano e, em especial, em Nova Iorque (JACOBSEN, Gilson; LAZZARI, João
Batista, 2012, p. 119).
Atualmente, a alçada das Small Claim Courts é de causas cujo valor não
excedem a US$5.000,00 e para assuntos entre inquilinos e proprietários de valor
ilimitado e violações do código de habitação, conforme se extrai em consulta ao
site nycourts.com.
3.2. Problemas surgidos em relação a Small Claim Courts e o processo de
reinvenção no período de 1950-1970
No entanto, apesar destas cortes norte-americanas terem sido criadas para
atender as causas mais simples e assim garantir o acesso à justiça aos cidadãos
menos favorecidos, diversos problemas apareceram e estas cortes sofreram
duras críticas, em especial no período de 1950 a 1970.
Aos poucos, as Small Claim Courts se transformaram em “fóruns de
defesas dos empresários e locadores nos quais o homem comum aparece na
condição de explorado”. Além do alto índice em que as empresas figuravam como
autoras em ações de cobranças, elas também venciam as ações em proporção
elevada, assim como existia um alto percentual de revelia dos réus, cidadãos
comuns, restando evidente o desequilíbrio entre as partes. Atribuiu-se tal
resultado a experiência com a justiça e com a representação de advogado, o que
muitos réus não possuíam, quando cobrados pelas empresas (CHASIN, 2012, p.
237). Isto é, considerava-se que tinha sido criada uma justiça eficiente, rápida e
barata; no entanto, o sistema não era acessível e igualitário a todos, já que os
pobres participavam na condição de réus e, na maioria das vezes, perdiam
(MEIRELLES; MELLO, 2010, p. 378).
Para resolver tais problemas, os Estados Unidos iniciaram pela imposição
de restrições, vedando o ingresso de ações por parte de empresas, com a
ampliação dos poderes dos juízes e com a dispensa dos advogados, sendo
posteriormente simplificado o procedimento para agilizar o julgamento. Foi criada
a ADR (Alternative Dispute Resolution) e algumas cortes, como a de Nova Iorque,
se organizaram como um tribunal multiportas. Os cidadãos tentam resolver sua
2517
ação primeiramente por conciliação ou mediação, depois por arbitramento,
restando um pequeno percentual para o magistrado togado. (HERMANN, 2010,
p. 118).
Uma destas reformas dizia respeito à resolução alternativa de conflitos,
tendo inclusive sido elaborado o Dispute Resolution Act (lei de resolução de
disputas), centro criados centros alternativos de conflitos. A ideia era tornar
acessível a resolução de disputas pequenas, que estariam inacessíveis, em razão
de barreiras econômicas, cultural, psicológica e de linguagem) (HARRIGTON, p.
29-33, 79-85).
Atualmente, as Small Claim Courts de Nova Iorque são abertas aos
maiores de 18 anos que desejam ingressar com ações cujo valor não excedem a
US$5.000,00. Quando a parte ingressa com a ação, deve preencher um
formulário explicando o seu pedido, assim como deve pagar uma taxa (US$15 a
US$20).
Há também as Commercial Small Claim para as corporações,
associações, sociedade e cessionários; no entanto, neste caso, é necessário
pagar uma taxa de US$25 e nenhuma destas pode ter mais de cinco reclamações
em todo o Estado por mês (GEBBIN; FISHER; LIPPMAN, PFAU; 2010, p. 5).
Nas cortes de New York City e Nassau County, a parte pode escolher se
seu caso será julgado por um arbitrator (árbitro) ou por um judge (juiz). Na corte
Suffolk County, o caso será julgado por um árbitro. O árbitro é um advogado
experiente com treinamento em small claims causes (pequenas causas). O juiz e
o árbitro aplicaram a mesma lei ao caso; no entanto, o árbitro é menos formal
(GEBBIN; FISHER; LIPPMAN, PFAU, 2010, p. 17-18).
Se a escolha for pelo juiz, a parte terá que voltar outro dia, enquanto que
se a opção for pelo árbitro, será iniciado o julgamento. No caso da corte de New
York e da opção do julgamento pelo juiz, se não existir data disponível, a parte
será encaminhada para a mediation (mediação) ou para o pretrial conference
(conferência pré-julgamento). A conferência poderá resolver o caso. Caso não
resolva, será designada uma nova data para o julgamento (GEBBIN; FISHER;
LIPPMAN, PFAU, 2010, p. 18).
2518
É possível apelas dos casos decididos por um juiz; contudo, não é possível
apelar dos casos resolvidos por um árbitro (GEBBIN; FISHER; LIPPMAN, PFAU,
2010, p. 17-18).
Oportuno ressaltar ainda que as partes têm a opção de buscar a solução
do seu problema sem necessariamente ir a corte, pois todo município do Estado
de Nova Iorque tem um centro de comunidade de resolução de litígios que
oferece mediação gratuitamente GEBBIN; FISHER; LIPPMAN, PFAU, 2010, p. 9).
Dessa forma, verifica-se que os cidadãos norte-americanos, no Estado de
Nova Iorque possuem diversas formas de buscarem resolver seus conflitos. Há a
possibilidade de ir direto à mediação, assim como a possibilidade de acessar a
small claim court, corte para casos de até US$5.000,00, quando poderá se
escolher se o julgamento será realizado por um árbitro ou um juiz.
Apesar de existir uma grande filtragem das demandas através das
escolhas pela mediação e pela arbitragem, há ainda a possibilidade da parte ser
escutada e sua demanda ser decidida pelo juiz. Verifica-se, portanto, que cada
ação pode ter três conduções diferenciadas, conforme for o interesse da parte.
Pode-se dizer que tal procedimento ajudaria a efetivar o acesso à justiça, já que
dá pleno acesso de escolha ao indivíduo e, do mesmo modo, ajuda a reduzir os
casos submetidos à corte, ainda que se trate de uma corte de causas de menor
complexidade.
Deve-se ressaltar o exemplo das small claim courts da Inglaterra, onde
quando a parte ingressa com a ação, deve preencher um formulário informando
se deseja resolver sua ação através de ADR (alternative dispute resolution),
buscando uma forma alternativa de composição de litígio e sendo possível dar o
encaminhamento adequado ao processo. Ambas as partes precisam concordar
com a opção pela ADR.
4 OS JUIZADOS ESPECIAIS
4.1. Surgimento e competência dos juizados especiais
2519
No direito brasileiro, objetivando reduzir o problema da morosidade e do
grande número de ações judiciais, assim como atender as causas de menor valor
que estavam excluídas da apreciação judicial em razão do valor das custas, das
despesas processuais e dos honorários advocatícios, criou-se os “juizados de
pequenas causas”, criado pela Lei 7.244, de 07 de novembro de 1984 (SANTOS,
2011, p. 73).
A Constituição Federal de 1988 reconheceu o sucesso destes juizados,
passando a denominá-los “juizados especiais” em seu artigo 98, inciso I.
Primeiramente, foram criados os juizados no âmbito da justiça estadual, depois no
âmbito federal e, recentemente, as causas foram estendidas aquelas que
envolvam interesses das fazendas públicas dos estados, do Distrito Federal, dos
territórios e dos municípios (SANTOS, 2011, p. 73).
Os juizados especiais estaduais foram criados pela Lei 9.099, de 05 de
outubro de 1995, sendo competentes para decidir as causas até 40 salários
mínimos ou se estiverem na matéria arrolada no artigo 3º2 ou no artigo 603 desta
lei.
2
Art. 3º, Lei 9.099/95. O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e
julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas:
I - as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo;
II - as enumeradas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil;
III - a ação de despejo para uso próprio;
IV - as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente ao fixado no inciso I deste
artigo.
Art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil. Observar-se-á o procedimento sumário:
(Redação dada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995):
I - nas causas cujo valor não exceda a 60 (sessenta) vezes o valor do salário mínimo; (Redação
dada pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)
II - nas causas, qualquer que seja o valor (Redação dada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
a) de arrendamento rural e de parceria agrícola; (Redação dada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
b) de cobrança ao condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio; (Redação dada pela
Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
c) de ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico; (Redação dada pela Lei nº 9.245, de
26.12.1995)
d) de ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre; (Redação dada
pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
e) de cobrança de seguro, relativamente aos danos causados em acidente de veículo, ressalvados
os casos de processo de execução; (Redação dada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
f) de cobrança de honorários dos profissionais liberais, ressalvado o disposto em legislação
especial; (Redação dada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
g) que versem sobre revogação de doação; (Redação dada pela Lei nº 9.245, de 26.12.1995)
h) nos demais casos previstos em lei. (Incluído pela Lei nº 12.122, de 2009).
2520
Os juizados especiais federais foram criados pela Lei 10.259, de 07 de
dezembro de 2001, possuindo competência para as causas de até 60 salários
mínimos (juizados especiais federais cíveis) ou nas infrações criminais de menor
potencial ofensivo (juizados especiais federais criminais)4.
Os juizados especiais da Fazenda Pública nos Estados, Distrito Federal,
Territórios e Municípios foram instituídos pela Lei 12.153/2009 que possui como
competência processar, conciliar e julgar causas cíveis de interesse dos Estados,
do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, até o valor de 60 (sessenta)
salários mínimos (artigo 2º da Lei).
4.2. Composição e procedimento dos Juizados Especiais
Tanto os juizados especiais estaduais quanto os juizados especiais
federais dividem-se em juizados especiais cíveis e em juizados especiais
criminais. Os dois juizados são compostos por juízes de direito, juízes leigos,
conciliadores e servidores (escrivães, escreventes, oficiais de justiça, contadores
e demais auxiliares). Os juizados possuem competência para conciliar e julgar
(SANTOS, 2011, p. 74).
O objetivo é sempre buscar a conciliação, conforme se verifica no artigo 2º
da Lei 9.099/95, sendo sempre obrigatório que uma audiência de conciliação
preceda a audiência de instrução e julgamento (SANTOS, 2011, p. 74).
Tanto nos juizados especiais estaduais, quanto nos juizados especiais
federais, assim como nos juizados especiais da Fazenda Pública, sempre haverá
3
Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem
competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor
potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. (Redação dada pela Lei nº
11.313, de 2006)
4
Art. 2 , Lei 10.259. Compete ao Juizado Especial Federal Criminal processar e julgar os feitos
de competência da Justiça Federal relativos às infrações de menor potencial ofensivo,
respeitadas as regras de conexão e continência. (Redação dada pela Lei nº 11.313, de 2006)
o,
o
Art. 3 , Lei 10. 259. Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar
causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como
executar as suas sentenças.
2521
uma audiência de conciliação antes de proceder a instrução e julgamento do
processo, conforme já supra mencionado.
A Lei 9.099/95, em seu artigo 24, traz ainda a possibilidade das partes
optarem, de comum acordo, pelo juízo arbitral, embora não seja uma prática
comumente utilizada nos juizados especiais brasileiros.
4.3. Princípios informativos dos Juizados Especiais
Os
juizados
especiais
norteiam-se
pelos
princípios
da
oralidade,
simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade5. Esses princípios
informativos também servem como referência na tarefa de suprir eventuais
lacunas existentes na lei que instituiu os juizados especiais (SANTORO, 2009, p.
59).
O princípio da oralidade baseia-se na ideia de que as declarações perante
os juízes e tribunais possuem mais eficácia quando formuladas oralmente,
embora não se deva excluir a utilização da escrita. Oportuno referir que o
procedimento oral se fundamenta em provas produzidas. Do mesmo modo, este
princípio apregoa que somente os atos considerados essenciais devem ser
registrados e, portanto, escritos. O pedido, a contestação, o pedido contraposto,
os embargos declaratórios e a prova podem ser produzidos oralmente
(SANTORO, 2009, p. 59-60).
Já o princípio da simplicidade apregoa a simplificação do procedimento,
buscando diminuir as exigências burocráticas desarrazoadas, como, por exemplo,
a juntada de documentos desnecessários aos autos e trazendo práticas
facilitadoras, como a possibilidade de realização de intimação por qualquer
mecanismo idôneo de comunicação, como o telefone (SANTORO, 2009, p. 6061).
O princípio da informalidade consiste em evitar o formalismo excessivo; no
entanto, isto não quer dizer que haja a isenção de formalidades essenciais. Por
5
Art. 2º, Lei 9.099/95. O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade,
informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação
ou a transação.
2522
este princípios, os atos serão válidos sempre que preencherem a sua finalidade
essencial (SANTORO, 2009, p. 60-61).
O princípio da economia processual permite a otimização e racionalização
dos procedimentos, objetivando a efetividade dos juizados especiais, já que seu
conteúdo dispõe que o julgador deve dirigir-se ao processo concedendo às partes
o máximo de resultado com o mínimo de esforço processual. São apontadas
como exemplo deste princípio a possibilidade dos pedidos mencionados no artigo
3º da Lei 9.099/95 serem cumulativos (desde que conexos e a soma não
ultrapasse o limite do teto) ou alternados, bem como a possibilidade da
conciliação ser instaurada quando do comparecimento das duas partes,
independente de pedido e citação (SANTORO, 2009, p. 63-64).
Por fim, o princípio da celeridade processual consiste na prestação de uma
justiça rápida e eficiente, representando a essência da Lei 9.099/95 (SANTORO,
2009, p. 64).
5 SMAIL CLAIM COURTS X JUIZADOS ESPECIAIS: A QUESTÃO DO
ACESSO À JUSTIÇA
Analisando as três ondas concebidas por Cappelletti e Garth, assim como
analisando a instituição dos juizados especiais, é possível verificar que assim
como a criação destes tribunais de menor complexidade apresentam resultados
efetivos no acesso à justiça, da mesma forma apresentam problemas, sendo
necessária uma maior reflexão sobre o instituto.
Será feita uma análise sobre as ondas tanto no processo brasileiro, como
especificamente na instituição dos juizados especiais.
5.1 As três ondas de Cappelletti e Garth: aplicação no direito brasileiro e nos
juizados especiais
A) A Primeira Onda
2523
No que tange à primeira onda, o direito brasileiro a recepcionou através da
Lei 1.060/1951, que se funda na vulnerabilidade econômica, garantindo
assistência judiciária gratuita aos “necessitados”. Posteriormente, com a
Constituição Federal de 1988, instituiu-se a Defensoria Pública, em seu artigo
134, que fornece “orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos
necessitados na forma do artigo 5º, LXXIV”, o qual garante a “assistência jurídica
integral e gratuita para os que comprovarem insuficiência de recursos”
(MANCUSO, 2011, p. 143-144).
Quanto aos juizados especiais, verifica-se que a onda é atendida, na
medida em que há isenção de custas para as partes ingressarem com a ação. Do
mesmo modo, é atendida, pois há assistência judiciária gratuita, uma vez que a
presença do advogado é dispensada nas ações cujo valor não ultrapassa a 20
(vinte) salários mínimos. Não bastasse isso, muitas vezes são nomeados ou
defensores públicos ou defensores dativos, a depender do Estado da federação, a
representar a parte sem advogado para atender seus interesses.
Contudo, questiona-se se esta é a melhor forma de representação
processual, haja vista que muitas vezes o defensor público e/ou defensor dativo
tem conhecimento da demanda no momento da audiência de instrução e
julgamento, que deve ser rápida e célere. A parte receberá orientação jurídica
quando não terá mais oportunidade de anexar os documentos necessários à
comprovação do seu pedido, no caso de não ter conhecimento de quais deveria
ter levado. Apesar de muitas vezes esta informação ser prestada na audiência de
conciliação, é oportuno lembrar que muitas vezes os autores das ações são
pessoas leigas e hipossuficientes, que tem dificuldades para entender como
funciona o procedimento do juizado especial.
Além disso, tanto na audiência de conciliação quanto na de instrução,
poderá haver a oferta de acordo por parte do demandado, que muitas vezes
serão empresas de grande porte, sendo que o autor, sem orientação ou
conhecimentos jurídico, poderá ficar perdido entre as opções, sem saber se
deverá escolher prosseguir a instrução ou aceitar o acordo.
B) A Segunda Onda
2524
Quanto à segunda onda, verifica-se que o direito brasileiro iniciou a
positivar interesses difusos e mecanismo para protegê-los, como a Lei 6.938/81
(Lei de defesa do meio ambiente), Lei 7.347/85 (Lei da ação civil pública), Lei
8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) – que trouxe o conceito de
interesses difusos -, dispositivo constitucional disponibilizando a defesa do meio
ambiente pelo Ministério Público (artigo 129, inciso III), entre outros (MANCUSO,
2011, p. 143-144).
Além disso, o legislador previu uma legitimidade concorrente-disjuntiva (art.
5º da Lei 7.347/85 e artigo 82 da Lei 8.078/90) para perseguir estes interesses e
uma coisa julgada de eficácia estendida (erga omnes ou ultra partes). Também
são positivados direitos coletivos (artigo 81, parágrafo único, inciso II, da Lei
8.078/90), assim como há a possibilidade de mandado de segurança coletivo
(arts. 21 e 22 da Lei 12.016/2009) (MANCUSO, 2011, p. 144-145).
No aspecto dos juizados especiais, o acesso à justiça referente à segunda
onda está longe de ser alcançado, tendo em vista que não há uma representação
adequada para os interesses difusos e coletivos, sendo que diversas ações
idênticas de consumo são ali submetidas sem qualquer padronização (FERRAZ,
1999, p. 161-167), atendendo tão somente ao direito individual.
Os Juizados foram criados para atender demandas de menor expressão
econômica, dando sempre preferência a conciliação, não tendo sido pensados
para o julgamento de causas envolvendo interesses difusos e coletivos. Todavia,
são ajuizadas diversas ações desta natureza nos juizados, principalmente no
tocante ao direito do consumidor, sendo resolvidas de maneira individual, embora
certos casos requisitassem um julgamento coletivo, como no caso de contestação
do reajuste do plano de saúde X (FERRAZ, 1999, p. 161-166).
Tal fragmentação, além de comprometer a facilitação do acesso à justiça,
retiraria o peso político deste tipo de ação, além de banalizar a demanda
(FERRAZ, 1999, p. 167).
C) A Terceira Onda
2525
No tocante à terceira onda, o direito brasileiro teria iniciado a sua
implementação, com a alternativa de resolução de conflitos através da
conciliação, mediação e arbitragem, onde são utilizadas pessoas leigas ou
paraprofissionais para conduzirem a demanda. Neste sentido, verifica-se uma
tendência a desjudicialização de conflitos (MANCUSO, 2011, p. 145-146).
Destaca-se que, em outros países, como nos Estados Unidos, a
conciliação e a mediação e outros meios de auto e heterocomposição se
oferecem não só anteriormente a eventual judicialização do conflito, como
também em face da própria arbitragem. Nos Estados Unidos, a ADR (alternative
dispute resolution) é antecedente a arbitragem, somente se chegando nela no
caso de não ter ocorrido um acordo anterior (MACUSO, 2011, p. 147).
No âmbito dos Juizados Especiais, o acesso à justiça referente à terceira
onda também não se mostra efetivo, atendendo tão somente este movimento no
que toca a utilização de pessoas leigas como juízes.
Em que pese a tentativa na Lei 9.099/95 da possibilidade do juízo arbitral
para simplificar os procedimentos submetidos aos juizados especiais, tal solução
não se mostrou viável. Atribui-se a não prática do juízo arbitral nos juizados
especiais brasileiros ao fato do árbitro ser escolhido dentre os juízes leigos, já que
as partes não conheceriam o árbitro, o que não possibilitaria a confiança das
partes, requisito essencial para a prática da arbitragem, (COSTE, 2006, p. 146).
Imputa-se também ao fato de que sendo o árbitro um juiz leigo, não será
conhecedor da prática objeto da lide, mas tão somente possuirá conhecimento
jurídico, o que difere da arbitragem, que é muito defendida em razão do
conhecimento especializado do árbitro (CÔRREA, 2008, p. 100).
Além disso, questiona-se qual seria a diferença de uma decisão tomada
por um juiz leigo como árbitro de uma decisão tomada pelo juiz leigo atuando
como juiz leigo. Talvez a única diferença seja o fato da decisão arbitral não ser
recorrível, enquanto há a possibilidade de recurso da decisão do juiz leigo para as
Turmas Recursais (CÔRREA, 2008, p. 100), o que, por si só, já evidencia a
dificuldade nesta opção.
2526
5.2 Small Claim Courts X Juizados Especiais: o acesso à justiça
Pelo acima exposto, verifica-se que, para alcançar o efetivo acesso à
justiça no âmbito dos juizados especiais, há ainda muito a se refletir a respeito de
seu funcionamento, de modo a viabilizar reformas que melhorem a sua estrutura.
É inegável que os juizados especiais avançaram muito na efetivação do
acesso à justiça, através da simplificação dos procedimentos e sua proximidade
com o cidadão, o levando a buscar seus direitos.
Tal situação pode se atribuir as medidas instituídas pela Lei 9.099/95, que
tornou gratuitos os atos de primeiro grau, facultaou os gastos com honorários
advocatícios nas ações cujo valor seja inferior a 20 salários mínimos, incentivou a
busca da conciliação, a informalidade e ampliou o poder do magistrado, sendo
possível inclusive a antecipação de tutela em casos emergenciais (SANTORO,
2009, p. 66).
Também é notória a celeridade de seu procedimento em face da
morosidade à Justiça Comum, tratando-se, portanto, de uma prestação
jurisdicional rápida.
No entanto, conforme acima destacado, é evidente que os juizados
especiais não atendem de forma efetiva as três ondas do acesso à justiça
formuladas por Cappelletti e Garth, pelas questões já acima destacadas.
Assim sendo, sugere-se a reflexão sob a implementação das medidas
adotadas pelas Small Claim Courts no direito norte-americano quando da sua
crise no final do século XX, já que há notória influência destas no juizado
brasileiros.
As reformas adotadas pelas Small Claim Courts de Nova Iorque
consistiram em vedar o ingresso de ações por parte de empresas, com a
ampliação dos poderes dos juízes e com a dispensa dos advogados, sendo
posteriormente simplificado o procedimento para agilizar o julgamento. Do mesmo
modo, foi criada a ADR (Alternative Dispute Resolution) e instituído o juízo
arbitral.
Nos juizados especiais brasileiros, já temos certas vedações ao ingresso
de ações por parte de empresas, assim como há a dispensa de advogados para
2527
as causas de até 20 salários mínimos. Do mesmo modo, o juiz tem poder amplo
na condução do processo.
Sobra, portanto, o ponto relativo à alternative dispute resolution. Questionase, após toda esta exposição, se não seria possível e mais simples reformular o
procedimento dos Juizados Especiais, onde a parte, quando ingressa com a ação,
pudesse informar a sua vontade de realizar ou não um acordo, podendo ser dado
um direcionamento diverso a demanda, a exemplo do que ocorre nas small claim
courts inglesas ou ainda se poderia submter seu processo diretamente à
mediação, como nas small claim courts norte-americanas.
Apesar de serem negáveis as vantagens da conciliação, não se pode
obrigar a parte a realizar um acordo contra a sua vontade, situação que poderia
até a vir a obstar seu mais amplo acesso à justiça.
Verificam-se, na prática, muitas audiências de conciliação desnecessárias,
já que ambas as partes não possuem qualquer intenção de realizar um acordo.
Do mesmo modo, verificam-se audiências de instrução desnecessárias, quando
as partes eram desejosas da realização de um acordo; contudo, precisavam de
tempo para conversar.
Pergunta-se ainda se não seria interessante direcionar o processo para a
conciliação ou para a instrução conforme a vontade da parte, não sendo
obrigatória a audiência de conciliação, de modo a aperfeiçoar a adequada
prestação jurisdicional e não submeter as partes a conciliar apenas pela
necessidade de reduzir o número de processos.
É possível perceber que a Lei 9.099/95 procurava trazer novas alternativas
de composição de conflitos, tanto que estipulou a possibilidade do juízo arbitral,
claramente se inspirando no exemplo das small claim courts norte-americanas.
No entanto, tal dispositivo acabou por tornar-se letra morta, já que aplicada a uma
realidade diferente daquela, na qual o juiz leigo tanto poderá ser o árbitro ou o
julgador da demanda, sendo que, no primeiro caso, ocorrerá a irrecorribilidade da
decisão, não apresentando qualquer vantagem nesta opção.
Assim sendo, ao invés da possibilidade do juízo arbitral, o presente artigo
propõe uma reflexão acerca da possibilidade de reduzir o número de processos
combinado com a adequada prestação jurisdicional, atendendo ao que a parte
2528
deseja, ao mesmo tempo em que evita burocracias desnecessárias, não tornando
a conciliação imprescindível para a instrução, mas sim procedimento autônomo, o
que permitiria uma melhor condução do processo.
Não se diz aqui que tal medida resolveria os problemas do acesso à justiça
acima apresentados, mas poderia representar um avanço no acesso à justiça, em
especial em relação a terceira onda de Cappelletti e Garth, onde todos os
operadores do direito buscam a prestação jurisdicional da forma mais adequada
possível.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por tudo que foi aqui discutido, percebe-se que a experiência dos juizados
especiais, no direito brasileiro, consiste em inegável avanço no acesso à justiça,
pois aproxima os cidadãos do judiciário. Os indivíduos são estimulados a
pleitearem seus direitos, já que não precisam pagar custas, assim como não são
obrigados a contratarem advogados para as causas cujo valor não ultrapasse 20
(vinte) salários mínimos.
Contudo, ainda que se verifique um inegável avanço na garantia do direito
fundamental à jurisdição, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição
Federal, assim como no acesso à justiça, vislumbra-se que ainda existem muitos
problemas a serem enfrentados ou, ao menos, a demandarem reflexão.
Os pontos que demandam questionamento são: a) se há efetiva
assistência judiciária aos cidadãos; b) se há uma representação adequada dos
direitos difusos e coletivos e se eles não estariam sido interpostos nos juizados
especiais de forma inadequada; c) se os procedimentos dos juizados especiais
estão adequados para o efetivo acesso à justiça ou se não seria possível uma
reformulação, visando a melhor atender ao cidadão.
O presente artigo propõe-se a debater em especial a última questão,
referente à terceira onda de Cappelletti e Garth, intentando levantar a discussão
acerca da necessidade da conciliação antes da instrução e se esta não poderia
constituir processo autônomo, sendo questionado ao autor, quando do ingresso
da ação, se deseja conciliar, como ocorre nas cortes de pequenas causas na
2529
Inglaterra ou como ocorre nos Estados Unidos, onde pode ocorrer a mediação ao
invés da submissão da demanda ao tribunal de pequenas causas.
Questiona-se se, com a alteração do procedimento, a prestação
jurisdicional não seria mais adequada, ao invés de tentar impor à parte algo que
ela não deseja (conciliar ou não conciliar), sendo que, muitas vezes, esta
imposição tem como causa o desejo de reduzir o número de processos ao invés
de encontrar a melhor solução para aquele caso.
O único objetivo deste artigo é levantar essa discussão, que certamente
demanda maior reflexão, mas que pode se apresentar como um primeiro passo
na busca do acesso à justiça de modo igualitário e acessível a todos, de forma
material.
Como dizem Cappelletti e Garth, não se trata de “fazer uma justiça
mais‘pobre’, mas torná-la acessível a todos, inclusive aos pobres”, buscando uma
igualdade efetiva e material e não tão somente uma igualdade formal
(CAPPELLETTI; GARTH; p. 165).
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O PARADOXO DO ACESSO À JUSTIÇA: A SOCIOLOGIA DE LUHMANN
COMO CRÍTICA AO MODELO DE ACESSO À JUSTIÇA BRASILEIRO
Miguel Marzinetti França
Lucas de Alvarenga Gontijo
RESUMO: Objetiva-se demonstrar que a noção de acesso à justiça na
perspectiva quantitativa, tida como aceitável pela quase integralidade da doutrina,
mostra-se incompatível com as contingências contemporâneas e com a ordem
constitucional democrática, a partir do que se evidenciará a necessidade e
possibilidade de readequação hermenêutica da noção de inafastabilidade da
jurisdição com alicerce no acesso à justiça qualitativo para atingimento de um
sistema multiportas, pautando-se na sociologia jurídica de Niklas Luhmann.
PALAVRAS CHAVE: acesso à justiça; sociologia; Luhmann; jurisdição.
1 INTRODUÇÃO
1.1 Inafastabilidade da jurisdição e o acesso à justiça sob a ótica
quantitativa
Examinando-se a Constituição da República, percebe-se ausente menção
explícita ao direito de acesso à justiça. Há, não obstante, disposição sobre a qual
a doutrina tem assentado a afirmação da presença deste preceito inerente ao
Estado Democrático, na medida em que tem posto o referido direito como
elemento constitutivo da ideia de inafastabilidade da jurisdição contida no artigo
5º, inciso XXXV, onde se lê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
A
decorrência
interpretativa
do
acesso
à
justiça
derivado
da
inafastabilidade acaba por contagiar aquele preceito com o parâmetro quantitativo
a partir do qual se compreende este, funcionando de modo a dilatar a
admissibilidade daquilo que possa tornar-se objeto de apreciação judicial.
Com a quase ilimitada gama do que pode ser submetido à análise do
Estado-juiz, mormente pela uníssona vinculação que se dá ao mencionado artigo
2533
da Constituição da República a um acesso à justiça meramente quantitativo,
olvidando-se que os limites da atuação do Poder Judiciário devam pautar-se,
também, pelo postulado do acesso à justiça qualitativo, tudo acaba por subir à
apreciação dos magistrados, o que encerra por deslindar em provimentos
jurisdicionais que tem por objeto questões de toda e qualquer ordem e que
comumente percorrem mais de um grau de jurisdição até o atingimento de seu
trânsito em julgado.
Invariavelmente a circunstância gera inibição no surgimento de proposições
visando à apresentação de formas alternativas de resolução de controvérsias,
tanto como a implementação destas formas alternativas e, identicamente, inibem
o estancamento do excessivo demandismo que tem como encorajamento esta
ótica quantitativa que é própria das análises atuais do acesso à justiça
1.2 Os excessos do acesso e os números do Conselho Nacional de Justiça
A ideia de que pelos provimentos jurisdicionais estatais atingir-se-á a
salvação contra as moléstias sociais, incluindo-se aquelas que versam acerca das
questão mais intimistas e particulares que seja possível conjecturar, tanto como a
ausência de outras vias institucionais extrajudiciais para solução de litígios no
Brasil, faz advir uma contaminação dos pretórios, que, por um lado, acabam se
tornando por demasiado poderosos, implicando o invariável crescimento de
arbitrariedades judiciais, já havendo um cenário em que a autocracia judicial resta
por se transformar num severo óbice ao acesso à justiça qualitativo e, firmemente,
na impossibilidade de concretização do Estado Democrático, enquanto por outro
lado há uma drástica redução da qualidade da tutela dos direitos, o que
caracteriza óbice da mesma natureza.
Numericamente a sobrecarga dos pretórios se faz mais que óbvia,
conforme se extrai dos trechos do relatório Justiça em Números6, publicado pelo
CNJ no ano de 2014, tendo como ano-base 2013, entre as páginas 32 a 35, onde
se explana o panorama global do judiciário brasileiro.
6
Disponível
em
http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-etransparencia/pj-justica-em-numeros, acesso aos 29 de outubro de 2014
2534
O Poder Judiciário apresentou em 2013 quantitativo de 16.429
magistrados, sendo que 13.841 (84%) atuam na primeira instância e
2.305 (14%) são desembargadores. Somam-se a esses os 77 ministros
atuantes nos quatro tribunais superiores (STJ, TST, TSE e STM), além
dos juízes de Turmas Recursais e Turmas Regionais de Uniformização.
[...]
Os aumentos com as despesas e com a força de trabalho foram
acompanhados do aumento na quantidade de casos novos e do
estoque, em 1,2% e 4,2% no último ano, respectivamente, o que
impactou o crescimento da carga de trabalho por magistrado (1,8%),
sendo que tramitaram, no ano de 2013, em média, 6.041 processos por
magistrado.
Em linhas gerais, há um crescimento da litigiosidade de forma mais
acentuada que os recursos humanos e as despesas. Enquanto que, no
último ano (2013), houve crescimento de 1,5% nos gastos totais, 1,8%
no número de magistrados e 2% no de servidores, tramitaram cerca de
3,3% a mais de processos nesse período, sendo 1,2% a mais de casos
novos e 4,2% de casos pendentes de anos anteriores. Já o total de
processos baixados aumentou em apenas 0,1% em relação ao ano
anterior, ou seja, o aumento na estrutura orçamentária, de pessoal e da
demanda processual dos tribunais não resultou necessariamente em
aumento, proporcional, da produtividade.
Tramitaram aproximadamente 95,14 milhões de processos na Justiça,
sendo que, dentre eles, 70%, ou seja, 66,8 milhões já estavam
pendentes desde o início de 2013, com ingresso no decorrer do ano de
28,3 milhões de casos novos (30%). É preocupante constatar o
progressivo e constante aumento do acervo processual, que tem
crescido a cada ano, a um percentual médio de 3,4%. Some-se a isto o
aumento gradual dos casos novos, e se tem como resultado que o total
de processos em tramitação cresceu, em números absolutos, em quase
12 milhões em relação ao observado em 2009 (variação no quinquênio
de 13,9%). Apenas para que se tenha uma dimensão desse incremento
de processos, a cifra acrescida no último quinquênio equivale a soma do
acervo total existente, no início do ano de 2013, em dois dos três
maiores tribunais da Justiça Estadual, quais sejam: TJRJ e TJMG.
O total de processos baixados, por sua vez, aumenta em proporções
menores desde o ano de 2010, com crescimento de 0,1% no último ano
e de 9,3% no quinquênio. Tal comportamento é semelhante ao
apresentado pelos casos novos, conforme o Gráfico 9. Desde o ano de
2011 o quantitativo de processos baixados é inferior ao de casos novos,
ou seja, o Poder Judiciário não consegue baixar nem o quantitativo de
processos ingressados, aumentando ano a ano o número de casos
pendentes. Este indicador do total de processos baixados divididos pelo
número de casos novos é conhecido como o Índice de Atendimento à
Demanda (IAD), que diminui desde o ano de 2009, passando de 103%
nesse ano para 98% em 2013.
Assim, desaguando todas as controvérsias sociais no Judiciário, não é
crível que se espere que o Estado suporte e assuma integrais encargos por
tamanha litigiosidade, onde se tem a aproximação média de um processo judicial
para cada dois habitantes no Brasil.
Ademais, e como se vê, em quantidade crescente a cada ano, sendo o
número de processos baixados superado pelo número de processos distribuídos,
2535
levando, quando divididos o número total de processos pelo número total de
magistrados, ao acervo de 6.041 processos por magistrado.
Há quem culpe a falta de infraestrutura, o despreparo de magistrados e
servidores e outras tantas questões institucionais com os fins de buscar
justificativa plausível para a sobrecarga da Justiça brasileira, afirmando
igualmente que este demandismo tem raízes culturais.
Que há uma tendência à litigiosidade na sociedade brasileira, é muito claro,
noutra perspectiva, contudo, este mesmo demandismo é justificado a partir da
cláusula
da
inafastabilidade
da
jurisdição,
por
constitucionalistas
e
processualistas, com operadores do direito reproduzindo tal justificação, e
aceitando, numa noção estritamente quantitativa do acesso à justiça, que todos
os anseios e angústias sociais tenham vazão direta para o Estado-juiz.
Simultaneamente, e aí se configura o paradoxo, estes mesmos
doutrinadores e operadores do direito caem em lamúrias acerca da conjuntura
atual da crise da Justiça pátria.
1.3 A necessidade de adequação hermenêutica na perspectiva qualitativa
Em que pese a preocupação doutrinária e jurisprudencial com a qualidade
da prestação jurisdicional e sua adequação à cláusula do devido processo de
direito, uma análise do acesso à justiça sob o aspecto quantitativo ou, mais
claramente, uma perspectiva a partir da qual prepondera a possibilidade
exacerbada do exercício do acesso ao judiciário, e não à justiça, com esta
indevida prevalência da noção de inafastabilidade da jurisdição, impede, dentre
outras questões já apontadas, que se construa, no Brasil, uma noção de acesso à
justiça voltada para acesso ao meio mais efetivo de solução da controvérsia, os
quais perpassariam pela arbitragem, pela mediação, pela conciliação e por outras
alternativas já existentes, capazes de estruturar um sistema multiportas de
solução de litígios.
Não apenas com um arco procedimental integralmente pautado pelo
contraditório tomado como direito de influência e não surpresa, onde a
estruturação discursiva permitirá a limitação da autocracia judicial, como já se
2536
propõe no novo Código de Processo Civil, mas também pela redução dos limites
da atuação jurisdicional analisada sob o prisma do acesso à justiça qualitativo em
detrimento do acesso meramente quantitativo, frente ao princípio da eficiência da
prestação jurisdicional, é que se edificará um espaço propício à construção do
Estado Democrático de Direito já delineado na Constituição da República e,
sobretudo, haverá maior garantia de um acesso à justiça que congregue todos os
elementos essenciais à tutela efetiva dos direitos.
Justamente por ser espaço de concretização do Estado pautado pelo
paradigma da democracia, ultrapassando a noção formal decorrente das
reminiscências jurídico-filosóficas oitocentistas de que o processo é tido como
mero instrumento da jurisdição, é que deve haver a limitação, daquilo que deva ou
não tornar-se objeto de processo judicial, a ser explorada.
Trazida ao lume tal problematização, tornar-se-á forçosa a análise e a
demonstração de que o monopólio da jurisdição pelo Estado não deságua no
rígido entendimento pela amplitude exacerbada daquilo que deva ser objeto de
apreciação judicial.
Nesta vereda, por todo o exposto, com os fins de se permitir a adequação
hermenêutica pautada no acesso qualitativo à justiça, derrubando a corrente
uníssona da vinculação do acesso à justiça pela ótica quantitativa da
inafastabilidade, se mostra necessária a aproximação de elementos de Teoria do
Direito, perpassando pela Filosofia e pela Sociologia jurídicas, que são aptas a
servirem de sólidos alicerces ao movimento qualitativo que se propõe, resolvendo
um problema que parte da noção de acesso à justiça, elemento estudado
essencialmente por processualistas, mas que tem consequências diretas a todos
os ramos da pesquisa jurídica comprometida com a efetivação do Estado
Democrático de Direito. Daí, pois, Niklas Luhmann surge como parâmetro crítico
fundamental a ser mais e melhor trabalhado.
2537
2
ACESSO
À
JUSTIÇA,
A
DOUTRINA
PROCESSUAL,
EFICIÊNCIA,
RAZOÁVEL DURUÇÃO DO PROCESSO E A POSSIBILIDADE DE CRÍTICA A
PARTIR DE LUHMANN
Pela problematização da perspectiva quantitativa do acesso à justiça frente
à necessidade de concretização do Estado Democrático de Direito, será possível
estabelecer uma adequação hermenêutica pautada num prisma qualitativo, com o
devido ajuste interpretativo da disposição constitucional de onde se extrai a
inafastabilidade da jurisdição, pautando-se pela eficiência da prestação
jurisdicional, buscando a tutela efetiva dos direitos, com a superação da ótica
estritamente quantitativa que usualmente se dá ao instituto.
Isso porque tal disposição, apesar de ser interpretada ainda pela
predominância da inafastabilidade, será observada por um prisma mais estreito,
dada a proposta de diminuição dos limites da atuação do Estado pela via da tutela
jurisdicional.
Em síntese, será tida como inafastável a jurisdição desde que o objeto a
ser submetido à apreciação do Estado-juiz esteja dentro das fronteiras em que se
terá por necessária a atuação jurisdicional, a qual parece dever ser considerada
enquanto não se mostrar plausível que outro terceiro desinteressado, que não o
magistrado, possa solucionar a controvérsia, de forma a permitir que o Estado-juiz
atue num ambiente onde se torne possível a prática de atos decisórios
conscientes e voltados à construção do Estado Democrático de Direito.
Nesta senda se fará viável consolidar o estabelecimento de parâmetros
teóricos capazes de consolidar uma jurisdição estatal democrática, almejando
transformar o processo em algo mais que mero instrumento de prestação da
tutela jurisdicional, mas sim um meio de edificação da democracia.
Ademais, com os parâmetros teóricos da jurisdição no Estado Democrático
de Direito, respeitadas tais diretrizes e bases teóricas, permitir-se-á o
estancamento da crescente autocracia judicial, resultando, por mais essa razão,
na garantia de um acesso à justiça qualitativo.
Contudo, para que se torne possível a adequação hermenêutica proposta,
é forçosa a apresentação de fundamentos relevantes que sirvam de via de análise
2538
e problematização da perspectiva quantitativa e suas consequências negativas
para o Direito e o sistema judiciário.
Assim, no que tangencia os fundamentos que sirvam de via de análise e
problematização da perspectiva quantitativa e suas consequências, mostra-se
apropriada a compreensão sociológica de Niklas Luhmann acerca do Direito, que
tomando o Direito num viés sistêmico de complexidade elevada, daí decorrendo o
altíssimo nível de contingências no sistema, as quais perpassam pela vereda
quantitativa, acaba por esclarecer os mecanismos de simplificação decisória de
funcionamento condicional, binário, inadequado à efetiva tutela dos direitos numa
jurisdição democrática.
É de se ressaltar que Luhmann aponta com total clareza a ocorrência do
afastamento da consciência do juiz dos efeitos do ato decisório na prestação da
tutela jurisdicional, na medida em que o julgador funciona de modo automatizado
pela programação condicional do sistema, implicando superficialidade na análise
casuística e também a simplificação dos mecanismos de controle qualitativo do
ato decisional dos órgãos judicantes hierarquicamente inferiores pelos órgãos
hierarquicamente superiores.
Ter-se-á de forma sólida, pois, a possibilidade de problematização da
perspectiva quantitativa do acesso à justiça e o embasamento necessário à
adequação hermenêutica focada no acesso qualitativo, com propósito à ideia de
acesso ao melhor meio de solução de controvérsia e, também, capaz de tornar
mais relevante a possibilidade de se erigir um modelo de Estado Democrático de
Direito a partir desta consciência qualitativa, a qual, igualmente, servirá de
fundamento para a estabilização decisória dos tribunais brasileiros, podendo
assim suas decisões servirem de parâmetro de condutas para a sociedade.
Há, efetivamente, é de se salientar, um problema ideológico. A construção
doutrinária e jurisprudencial da garantia do acesso à justiça na Constituição da
República tem gerado um caminhar na mão inversa da implementação de um
Estado Democrático de Direito.
Logo, pela apresentação de parâmetros jurisfilosóficos para uma jurisdição
atual, tendo como balizadores o princípio da eficiência e a necessidade de
fomentar a resolução extrajudicial de conflitos, buscar-se-á a imperiosa ampliação
2539
da visão de processo como meio de concretização do Estado Democrático de
Direito, o que por certo é temática essencial à compreensão e evolução da ciência
jurídica.
No prisma teórico, tem-se por apropriada a atualização da concepção de
acesso à justiça, a otimizar e fornecer critérios qualitativos elementares para
construção de uma teoria que permita discutir a eficiência do Judiciário, com foco
na redução de custos temporal, financeiro e pessoal.
Para além do interesse aos processualistas e constitucionalistas, os quais
usualmente se debruçam sobre a temática do acesso à justiça, é igualmente
relevante para todos os jurisdicionados e operadores do direito, na prática forense
cotidiana, os quais se beneficiariam pela técnica de melhor uso do exercício
intelectual dos magistrados, posto que estes exerceriam a função jurisdicional a
partir de uma seleção daquilo que seria objeto de sua apreciação, com uma
racionalização da atuação do Estado por meio da tutela jurisdicional.
Tudo isso, com fundamento essencial e central na Teoria do Direito
comprometida com a ideia de justiça e seu uso para que se compreenda e se
edifique o Estado Democrático de Direito, servirá de garantia ao encaminhamento
do Direito no Brasil ao rumo da superação deste problema ideológico que é óbice
à noção de acesso à justiça como acesso ao meio mais adequado de solução
para determinada controvérsia, o que permitiria um melhor tratamento às
contingências da contemporaneidade e, assim, a eficaz consolidação do Estado
Democrático de Direito.
Avançando, pois, e tomando uma perspectiva histórica, é de se destacar a
vinculação que já se tinha no medievo, em Portugal, de justiça e um poder divino,
conforme bem salienta ALBUQUERQUE (2012), quem ainda demonstra que a
virtude da justiça era tida como inerente à grandiosidade da figura da realeza, o
que de certa forma se transmitiu à figura dos juízes e persevera como
reminiscência histórica, apesar de tomar outras feições.
Na idade moderna, ainda em Portugal, também se percebe proeminência
da autocracia judicial, evidenciada por HOMEM (2003) ao destacar a liberdade
dada aos magistrados para decidir.
2540
Daí porque, com devir dos anos, atingindo a contemporaneidade, é que se
faz capital a crítica trazida por LEAL (2002), abarcando a autocracia judicial, a
questão da decisão e a impossibilidade de se sustentar as noções clássicas de
jurisdição quando se toma por paradigma o Estado Democrático de Direito.
Ainda assim muitissimo pouco se vê na doutrina processual pátria
discussão acerca do acesso à justiça, na perspectiva qualitativa, que promova o
exame desta questão sob o ângulo qualitativo.
Não apenas pela morosidade do sistema e nem para que a ideia funcione
como válvula de escape de modo que se torne forma de solução efêmera desta
morosidade é que se levanta o questionamento relativo à visão qualitativa de
acesso à justiça, mas sim pelo questionamento, considerada a monopolização da
jurisdição, de qual seria o limite da atuação jurisdicional do Estado frente a
problemas que em tese poderiam ter resolução extrajudicial, seja no âmbito
privado ou público, mas são levados ao Judiciário.
Importante salientar que também não se questiona a monopolização da
jurisdição pelo Estado, mas tão apenas suas implicações se se toma a regulação
quantitativa do acesso aos órgãos judiciários.
Quanto aos entraves, severos são os apontamentos de LACERDA (2009,
pp. 16-17), os quais refletem o quadro contraproducente que se estabeleceu.
Afirma o doutrinador que neste quadro:
Pouco importa que os pretórios se inundem de processos. Tudo deve
forçosamente subir à consideração do magistrado porque este garante
uma justiça perfeita por presunção. […] tudo [...] deve convergir para o
judiciário. Que este se entulhe de autos e que, em consequência, haja
autêntica denegação da justiça, pouco importa. Salve-se o princípio da
oportunidade a todos de uma justiça individual perfeita, embora ninguém
na prática receba essa justiça, na oportunidade devida. […]
Constituintes, legisladores, juízes e advogados, também, nada mais
fazem que espelhar o reflexo de uma cultura individualista e, por vezes,
atrozmente egoísta.
Ademais, neste cenário, se por um lado há aqueles que estabelecem
discurso quanto ao deficit de infra-estrutura ou do número de magistrados como
fonte causadora dos problemas de sobrecarga do judiciário, por outro se tem
juízes e tribunais aceitando enxurradas de demandas sob o pretexto da máxima
da inafastabilidade da jurisdição.
2541
Enxurrada que se origina da atividade dos advogados que, além de
enxergarem a função jurisdicional com a lente da inafastabilidade do controle
jurisdicional e, portanto, ligada a uma premissa quantitativa, se vêem sem
alternativas extrajudiciais a serem empregadas em condições de apresentar
resultados concretos; tanto como há, de modo geral, falhas na própria formação
profissional destes operadores do direito naquilo que toca a tentativa de resolução
extrajudicial dos conflitos, o que resulta numa deturpação ainda maior da visão
qualitativa que se poderia ter tangenciando o acesso à justiça.
Curioso é o que se percebe na obra de CAPELLETTI e GARTH (1988, p.
81), primeiramente quando apontam que:
Os reformadores estão utilizando, cada vez mais, o juízo arbitral, a
conciliação e os incentivos econômicos para a solução dos litígios fora
dos tribunais. Essas técnicas, é preciso de que se diga, podem ser
obrigatórias para algumas ou todas as demandas, ou podem tornar-se
disponíveis como opção para as partes.
A asserção já demonstra a necessidade de uma perspectiva que venha a
estabelecer novos parâmetros teóricos para uma jurisdição democrática,
preocupando-se eficazmente com uma reflexão qualitativa do acesso à justiça,
daí porque a eventualidade de se tornarem obrigatórios estes meios alternativos.
Entretanto, e grande atenção deve ser dada a tal consideração, os autores
ainda trabalhavam com premissa mais otimista do que a realidade do
demandismo brasileiro hodierno.
Isso porquanto, em nota de rodapé, fazem menção a estudo de
FRIEDMAN e PERCIVAL (1976, p. 267), no qual constataram os doutrinadores
que “sem dúvida, os tribunais ainda são muito úteis, de numerosas formas; mas
eles quase não são procurados pelos indivíduos para resolver problemas
pessoais”.
Realidade completamente diversa daquilo que se vivencia no cotidiano dos
órgãos jurisdicionais pátrios, o que, resta concluir, faz mais urgente a
inevitabilidade de uma análise qualitativa em detrimento da quantitativa e, para
tanto, faz-se pertinente a adequação hermenêutica da noção de inafastabilidade
da jusridição na sistemática constitucional, para o estabelecimento uma nova
concepção de jurisdição.
2542
Como apontamento preliminar à reconstrução hermenêutica, importante,
principalmente pela harmonia que há entre esta ideia e o que preleciona
OLIVEIRA (2003, pp. 9-10), porque:
Qualquer pensamento moderno acerca dos procedimentos deve tomar
em consideração suas conexões internas e externas. O simples estudo
da técnica – um mero meio de obter certo resultado – não é suficiente,
porque os procedimentos, enquanto um fenômeno cultural, conformamse a valores sociais, ideias, utopias, estratégias de poder, fatores
sociais, econômicos e políticos. Portanto, é sempre necessário se
atentar aos laços da realidade social exterior: a maior miopia que pode
afetar um especialista em processo é considerar o processo como uma
medida para tudo. Nenhuma tentativa para controlar a discricionariedade
do Estado e ao mesmo tempo estabelecer padrões que permitam que o
processo alcance seus objetivos em tempo razoável e também somar à
justiça pode resultar frutífera se ele não considera as correntes políticas,
culturais e axiológicas dos fatores condicionantes determinantes do seu
7
processo de organização e estruturação.
Certo é que a Constituição da República estabelece a estruturação de um
Estado Democrático, evidentemente tornando tal modelo estatal o próprio
paradigma interpretativo a ser considerado. Tomada tal consideração, é o que
prelecionam NUNES e TEIXEIRA (2013, p. 13), porque o que se deve pretender
é:
Desenvolver uma compreensão do acesso á justiça à luz do paradigma
procedimental do Estado Democrático de Direito (Habermas). […]
conceito que exige do pensamento jurídico o compromisso não só com a
produtividade numérica, com o socorro da crise do Judiciário, mas,
sobretudo, com a qualidade das decisões e com a legitimidade do
exercício do poder jurisdicional.
No paradigma do Estado de Democrático, destaca SILVA (2012, p. 40), o
processo funciona como forma de “concretizar a elaboração, a fiscalização e a
reconstrução do direito”.
Portanto, em última análise, pode-se concluir que serve o processo como
meio de construção e efetivação do próprio Estado Democrático, o que faz
forçoso que a interpretação dos institutos processuais convirja a tal finalidade, de
7
No original: Any modern thinking about the proceedings must take their internal and external
connections into consideration. The sheer study of technique - a simple means to obtain a certain
result - is not enough, because the proceedings, as a cultural phenomenon, conform to a
society’s values, ideas, utopies, power strategies, social, economic and political factors. So, it is
always necessary to pay attention to the ties of the outside social reality: the greatest myopia a
procedural expert may suffer from is to regard the proceedings as a measurement for everything.
No attempt to control state discretion and at the same time establish patterns which allow the
proceedings to reach their goals in reasonable time and also add up to justice may result fruitful if
it does not regard political, cultural and axiological currents of the conditioning and determining
factors of its structural process and organization.
2543
onde se espera um acesso à justiça qualitativo, destacadamente na perspectiva
da função jurisdicional do Estado, considerando, a partir deste ponto, que a
monopolização da jurisdição pelo Estado não implica em invariável análise
quantitativa deste fenômeno.
Importante ter como base, indica MITIDIERO (2007, p. 90), que há
vinculação direta do “problema do direito à tutela jurisdicional ao problema da
concretização das normas constitucionais”.
Disto se torna viável infirmar a ideia de que pelo desígnio a que se presta o
poder judiciário, detentor da jurisdição monopolizada pelo Estado, precisa ser
exercida maior regulação daquilo que deva ou não ser objeto do desempenho
desta atividade que lhe é própria
O agir pelo raciocínio quantitativo acaba por desviar a eficiência pretendida
da atuação jurisdicional para questões que, sob um olhar qualitativo, não
mereceriam este dispêndio de eficiência, o qual contribui grandemente para os
entraves que maculam o exercício da prestação do poder de jurisdição do Estado.
A eficiência tem caráter bastante vasto neste âmbito, conforme bem
destaca BRÊTAS (2009, p. 150):
A eficiência e a adequação do serviço público jurisdicional constituem
dever jurídico do Estado, por força de recomendação constitucional, e
pressupõem, por parte dos órgãos jurisdicionais, obediência ao
ordenamento jurídico e utilização dos meios racionais e técnicas
modernas que produzam o efeito desejado, qual seja, serviço público
jurisdicional prestado a tempo e modo, por meio da garantia
constitucional do devido processo legal, preenchendo sua finalidade
constitucional, a de realizar imperativa e imparcialmente o ordenamento
jurídico, apto a proporcionar um resultado útil às partes.
Pela proposição que se construiu até o momento, válida se faz a
consideração trazida por BEDAQUE (2006, p. 50), para quem “efetividade,
celeridade e economia processual são importantíssimos princípios processuais
relacionados diretamente com a promessa constitucional de acesso à justiça”.
Ainda nesta linha, retornando à alusão feita à razoável duração do
processo como consequência da eficiência estatal na prestação jurisdicional, e
considerando neste exame o apontamento da geração de entraves pelo desvio de
eficiência nascido da visão quantitativa do acesso à justiça, bem revela BRÊTAS
(2009, pp. 161-162) a importância do provimento jurisdicional tempestivo, porque:
2544
[…] o povo tem não só o direito fundamental à jurisdição, como, também,
o direito a que este serviço público monopolizado e essencial do Estado
lhe seja prestado dentro de um prazo razoável. […] Logo, o direito
fundamental do povo de acesso à jurisdição também abrange o direito
de obter do Estado um pronunciamento decisório em prazo razoável. Se
descumprida pelo Estado esta recomendação constitucional, a função
jurisdicional se qualifica como inacessível ao povo […].
Mostra-se, pois, imperativa a busca por uma visão atual da jurisdição,
pautada no paradigma do Estado Democrático de Direito, com os fins de propiciar
um acesso à justiça com maior ênfase à perspectiva qualitativa, com foco na
eficiência da prestação jurisdicional e reduzindo, como consequência, a
autocracia judicial.
Para esse fim, se mostra adequada a análise sociológica desenvolvida por
Niklas Luhmann.
Quanto à percepção Luhmanniana, há trecho que traz à baila relevante
ideia capaz de funcionar como dínamo das críticas que se pretende realizar ao
sistema focado na perspectiva quantitativa. Nesta linha, no segundo volume de
seu Sociologia do Direito, LUHMANN (1985, p. 31) aduz que:
É necessário reconhecer que o estilo da decisão jurídica submetida a
programações condicionais implica necessariamente que junto com o
“se” estatui-se também o “então”, aceitando suas consequências sem
calculá-las ou valorá-las.
Nas páginas seguintes, LUHMAN (1985, p. 33-34) apresenta síntese desta
ideia:
Em resumo, a forma da programação condicional possibilita uma
expansão das capacidades, imprescindível para reestruturação do direito
no sentido da positividade e o respectivo aumento da complexidade do
direito: possibilidade de variação racional, desafogamento de exigências
desmedidas em termos de atenção, responsabilidade por consequencias
e de comunicação coordenadora. À especificação e à positivação
funcionais o direito corresponde uma redução do nível das exigências
quanto a esses aspectos. Tais renúncias, no entanto, não são
irrelevantes – e isso pode ser nitidamente observado na renúncias à
responsabilidade pelas consequencias. Elas deixam diversos problemas
em aberto, provocando assim a procura de dispositivos suplementares e
compensadores.
Deste modo, resta preclara a constação e crítica de Luhmann, a partir do
que é possível desenvolver a problematização do acesso à justiça vinculado à
inafastabilidade da jurisdição, o que a acaba por diminuir qualitativamente os
resultados da prestação jurisdicional.
2545
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se pretendeu foi a demonstração de que novos parâmetros teóricos
para a compreensão da garantia constitucional do acesso à justiça no Brasil,
pautados numa perspectiva qualitativa, são essenciais para a superação da
caótica situação hodierna da Justiça brasileira, situação esta que se constituiu
historicamente
a
partir
do
trabalho
de
doutrinadores
e
legisladores
descompromissados com a Teoria do Direito.
Acredita-se, portanto, que a Teoria do Direito é capaz de se organizar
como um campo fértil de debate para a problematização e solução de questões
normalmente tidas como objeto de estudo de outras áreas de especialidade do
Direito, e que são capitais para a implementação de um Estado Democrático de
Direito, o que acaba por evidenciar que tais problemas, quando intrinsecamente
vinculados ou passíveis de serem solucionados a partir de definições sociológicas
ou filosóficas, são essencialmente problemas da própria Teoria do Direito.
A ideia de democracia, pois, perpassa pela gestão otimizada dos serviços
públicos, uma vez que a qualidade do serviço prestado à população garante a
eficiência do sistema democrático de direito, mormente enquanto se tem a função
jurisdicional do Estado como núcleo do estudo a se desenvolver.
Estudo esse que, além das implicações teóricas relevantes, tem pleno
potencial para gerar resultados práticos diretos para a contenção do crescente
colapso institucional do Judiciário pátrio.
Se, pois, Luhmann aponta uma realidade de empobrecimento nas práticas
decisionais, torna-se possível o uso de suas construções teóricas aspirando fazer
transparecer, com toda clareza, as impropriedades das políticas públicas e dos
posicionamentos doutrinários majoritários acerca do acesso à justiça.
Daí porque, pelo aprofundamento e pela expansão de conceitos
Luhmannianos, tal como o de desafogamento de atenção, permitir-se-á uma nova
delineação do que se pretende na atuação da jurisdição estatal no Brasil.
2546
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2548
CRISE DA JURISDIÇÃO, DO ACESSO À JUSTIÇA E MEDIAÇÃO COMO
PARÂMETRO EMANCIPATÓRIO E PARTICIPATIVO NA RESOLUÇÃO DE
CONFLITO
THE CRISIS OF JURISDICTION, ACCESS TO JUSTICE AND MEDIATION AS
AN EMANCIPATORY AND PARTICIPATORY PARAMETER IN CONFLICT
RESOLUTION
Thaíse Nara Graziottin Costa8
Cheila Aparecida de Oliveira9
RESUMO: O presente artigo pretende apontar a crise e a transformação da
jurisdição e do acesso à justiça, bem como sugerir a oportunidade de uma
jurisdição complexa e humanista pela opção dos jurisdicionados como parâmetro
emancipatório e participativo do cidadão na resolução de conflitos. Utiliza-se o
método hipotético-dedutivo, com base em pesquisas bibliográficas. Assim,
inicialmente a abordagem está centrada na crise da jurisdição tradicional e da
crise do próprio Estado, ressaltando as três perspectivas da crise: crise estrutural,
crise objetiva ou pragmática e crise subjetiva ou tecnológica. A seguir procura-se
apontar o direito de acesso à justiça e os obstáculos que ocorrem na
modernidade. Ainda procura-se demonstrar a necessidade do Estado construir
um sistema jurídico e procedimental mais humano, por meio de políticas públicas
que proporcione o acesso a justiça, deixando de lado o puro instrumentalismo, a
formalidade e a morosidade do Judiciário para assegurar a justiça, bem como
satisfazer uma sociedade cada vez mais multicultural, plural e afetiva. Logo em
seguida, aponta-se o direito de acesso à justiça e os obstáculos da modernidade
e, para concluir, apresenta-se a oportunidade de uma inovação na forma de
jurisdição com a possibilidade da mediação como meio emancipatório e
participativo do cidadão na resolução de seus conflitos.
PALAVRAS-CHAVE: crise; jurisdição; acesso; justiça; medição.
8
9
Doutoranda da Faculdade Estácio de Sá do Rio de Janeiro, Mestre em Direito pela Universidade
Federal do Paraná, Advogada, Mediadora Judicial e Professora de Direito Civil, Prática Jurídica
IV,(Mediação) Família, Sucessões da Imed - Faculdade Meridional de Passo Fundo.RS
Doutoranda da Universidade Estácio de Sá do Rio de janeiro, Mestre em Direito, Advogada e
professor de Direito Civil, na Faculdade Meridional de Passo Fundo - RS
2549
ABSTRACT: This article points to the crisis and transformation of jurisdiction and
access to justice, as well as the opportunity to suggest a complex and humanistic
jurisdiction by the jurisdictional option as emancipatory and participatory citizen
parameter in conflict resolution. We use the hypothetical- deductive method,
based on literature searches. Thus, initially the approach is centered on the
traditional jurisdiction and the Crisis of the State crisis, highlighting the three
perspectives of the crisis: structural crisis, crisis and pragmatic objective or
subjective or technological crisis. The following seeks to point the right of access
to justice and obstacles that occur in modernity. Also seeks to demonstrate the
need for the state to build a more humane legal and procedural system , through
public policies that provide access to justice , leaving aside pure instrumentalism ,
formality and lengthy judiciary to ensure justice and satisfy an increasingly
multicultural , pluralistic society and affective . Soon after, it points to the right of
access to justice and obstacles of modernity and, to conclude, it presents the
opportunity to innovate in a form of jurisdiction with the possibility of mediation
through emanciapatório and participatory citizen in resolving their conflicts.
KEYWORDS: crisis; jurisdiction; access; justice; measurement.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende debater sobre o Direito Privado, a Crise da
Jurisdição e a questão do acesso à justiça com a possibilidade da Mediação de
conflito na perspectiva emancipatória e participativa do cidadão na solução de
seus próprios conflitos, por meio de técnica não adversarial.
Embora a prerrogativa constitucional de que o Estado não deixará de
jurisdicionar sobre lesão ou ameaça de direito (art. 5º, no inciso XXXV) levada ao
seu conhecimento garanta a todos os indivíduos o direito de acesso à Justiça, tal
direito não tem sido sinônimo de prestação jurisdicional efetiva. Significa afirmar,
em outras palavras, que o Poder Judiciário, embora sustente um papel ativo na
resolução das demandas sociais que são levadas à sua apreciação, para que a
solução seja encontrada, precisa garantir uma mais direta participação da
sociedade, como forma de democratização do acesso à justiça.
O acesso à justiça, portanto, não se resume apenas à possibilidade de
submeter o conflito, por meio do processo, ao crivo do Poder Judiciário. É muito
mais. É superar o puro instrumentalismo, a formalidade e a morosidade do
2550
Judiciário para assegurar a justiça, ou, segundo uma ótica mais abrangente, é dar
maior celeridade aos instrumentos e técnicas existentes e capazes de solucionar
os conflitos, sem que o Judiciário tenha o único protagonismo das decisões. É a
possibilidade de inovar, de assumir a complexidade das relações e necessidade
de incluir o sujeito e o diálogo construtivo nas decisões tanto no âmbito público
como privado. E uma das técnicas capazes de democratizar o acesso à justiça é,
sem dúvida, a mediação de conflitos.
O modelo tradicional de jurisdição, na contemporaneidade, se apresenta
como atividade de monopólio estatal, exercida pelos juízes e esgotada pela
sentença, em uma função declaratória, impositiva, ineficaz e lenta, apenas
conferindo um direito formal ao cidadão, que é o direito de ação, na maioria das
vezes, insuficiente e insatisfatório.
No panorama de crise jurisdicional na modernidade atingiu também a
Parte Geral do Direito Civil, ou seja, mas podemos dizer que houveram
transformações significativas “com a pessoa, com o negócio jurídico, o contrato,
a propriedade e a culpa.” (LORENZETTI, 1998, p.60).
Ainda, a questão de análise da noção de Estado traz uma resposta tão
simples quanto repleta de consequências, segundo Burdeau: (2005, p.XI).
[...] os homens inventaram o Estado para não obedecer aos homens,
fizeram dele a sede e o suporte do poder cuja necessidade e cujo peso
sente todos os dias, mas que , desde que seja imputada ao Estado,
permite-lhes curvar a uma autoridade que sabem inevitável sem, porém,
sentirem-se sujeitos a vontades humanas. O Estado é uma forma de
Poder que enobrece a obediência. Sua razão de ser primordial é
fornecer ao espírito uma representação do alicerce do Poder que
autoriza fundamentar a diferenciação entre governantes e governados
sobre uma base que não seja relações de força.
Aliada a uma sociedade multicultural temos o pluralismo jurídico, pois
podemos considerar “a coexistência, em dado momento, num mesmo grupo
político, de vários focos geradores de ordem jurídica (a família, a empresa, o
sindicato, por exemplo), que criam um direito que se justapõe ao que emana das
agências oficiais.” (BURDEAU, 1998, p.72).
Ademais o “movimento de acesso à justiça tem sido descrito como uma
reação contra o positivismo jurídico, que reduzia o papel do Juiz a exclusiva
aplicação da lei, sua origem encontram-se no realismo jurídico, e na
jurisprudência de interesses.” (LORENZETTI, 1998, p.92).
2551
Como o direito é visto como um sistema aberto, vinculado, apoiando-se em
uma interpretação contextual, não apenas pode ser analisada a dogmática
procedimental, mas também a sua duração, a influência das custas, do tempo, o
impacto sobre os indivíduos, os grupos e a sociedade.
Nesse sentido, Lorenzetti aponta obstáculos encontrados ao efetivo acesso
à Justiça, que são: o econômico, pelo qual muitas pessoas não têm acesso à
justiça, em virtude em virtude de sua pobreza; o organizativo, pelo qual o
interesse coletivo ou difuso não são eficaz mente protegidos; o processual, pelo
qual o processo tradicional são ineficaz para garantir este interesse. (1998, p. 93).
Ainda, outros problemas perfazem a Jurisdição na atualidade, ou seja, a
falta de preparo para assumir uma nova organização judiciária focada na
eficiência e administração de processos, os novos ramos de abrangência que
diversificou muito a atuação dos juízes nos mais diversos temas: “[...] os Litígios
de alta complexidade, de espécies distintas, 3. De
tramitação complicada –
supremacia da Constituição 4. O litígio constitucional, 5 De reposta imediata. 6.
Ações Civil pública, 7. Litígio de justiça privada.8. Processos transnacionais entre
outros,” (LORENZETTI, 1898, p. 95), assim cabe aos juízes, intensificar seus
estudos em maior eficiência através de especializações.
Um aspecto importantíssimo da questão do acesso à Jurisdição é a
possibilidade de flexibilização das estruturas formais do processo tradicional, que
para um Poder Judiciário tradicional, hierarquizado, formal, inflexível e duro, ainda
existe uma dificuldade grande de dar uma abertura para novas formas de acesso
à justiça, sem estar conectado no processualismo positivista do século passado.
O tradicionalismo do Poder Jurisdicional torna-se rígido e inflexível o
direito, assim a velho do rigorismo jurídico é um entrave para ocorrer mudanças
no Judiciário, pois a herança do direito privado do código de 1916, acredita que a
Jurisdição propriamente dita é aquela exercida pelo Estado-Juiz, desta forma
outras formas estariam percorrendo a segunda classe do direito, assim reflete
Lorenzetti:
Sugere-se a mediação, a arbitragem, a oralidade, o abandono da rigidez
jurisdicional, a superação da inflexibilidade do direito subjetivo como
sustentáculo da ação, tribunais de pequenas causas, tribunais vicinais e
uma atividade criadora, quase livre, do juiz.
2552
Trata-se de um processo diferente, mais barato, mais flexível, que
favorece o acesso.
Poderia isso representar uma justiça de segunda classe? Talvez seja
este o risco maior que apresenta esta alternativa, que, ao buscar a
eficiência, pode acabar por violar as regras do devido processo. O que
se pretende, em definitivo, é o processo justo. (LORENZETTI, 1998.p.
96).
O Poder Judiciário não pode mais ser considerado o único meio de
resolução de conflitos, pois não é capaz de decidir de maneira célere e eficaz os
litígios atuais.
Este estudo tem o escopo de analisar o modelo de Jurisdição tradicional,
hierarquizado, autoritário e repressivo, apresentar a crise jurisdicional e sua
transformação e a inovação que é possível fazer com a mediação de conflitos,
uma oportunidade de construção da cidadania participativa, onde o diálogo surge
como ferramenta capaz de assegurar a participação voluntária dos envolvidos na
resolução pacífica dos seus conflitos, principalmente, aconselha-se nas causas de
direito privado e que envolvam as relações continuadas nas mais diversas áreas
do Direito (família, consumidor, sucessória, imobiliária e até no âmbito
trabalhista.). A figura do mediador não vem para substituir o Juiz, aparece como
elo facilitador do diálogo, sem imposições, sem a figura autor e réu, ganhador ou
perdedor do processo tradicional. A função do mediador não é ser uma segunda
classe de justiça, mas a classe de eleição dos jurisdicionados que escolheram
como opção de diálogo, bem estar e tratamento do conflito.
2 A CRISE E A TRANSFORMAÇÃO DA JURISDIÇÃO TRADICIONAL
Na visão tradicional e dogmática de jurisdição como uma atividade estatal
exercida pelos juízes e distinta das funções administrativas e de produção de leis,
mostra-se uma atividade meramente declaratória de direitos, desta forma merece
um resgate histórico, pois nem sempre tratada desta forma. Em Roma,
primitivamente eram duas espécies de justiça, que segundo Cintra “uma no
interior da “gens” onde eram discutidas as questões entre os membros da “gens”,
entre plebeus agregados à “gens” sobre questões de propriedade, de relação de
família, entre outras.” (1958, p.58).
2553
Posteriormente adveio a Justiça da Civitas que segundo Alberton era
“reunião dos cidadãos e cabeça de famílias que constituíam o aglomerado social
da sociedade. O procedimento era o Sacramentum, de caráter ritual. O rei e os
pontífices eram os guardiões das fórmulas e formas sagradas. A busca do direito
e da justiça tinha um lastro de caráter divino.” (2009, p. 58). Cabe salientar que
esta atividade jurisdicional nesse período é questionável.
No período da Idade Média, o jurisdicto apresentava-se mais abrangente,
incluía um complexo de poderes previstos pelo ordenamento jurídico, porém com
o Estado Absoluto, o Imperador exercia a jurisdição plena.
Os senhores feudais, com a intenção de libertar-se do mando da Igreja e
seu poder, assumiram a produção do direito, elaborando um ordenamento jurídico
que pudesse atender aos diferentes ordenamentos feudais, centralizado e
unificado num Direito de acordo com a vontade do príncipe.
A Crise do Estado Absoluto e o surgimento do Estado liberal trouxeram
consigo o conceito de separação de poderes, “pretendia-se evitar a arbitrariedade
de concentrar em um único indivíduo o poder de legislar, julgar e oprimir”
(MELEU, 2009, p. 59). Porém, temos que considerar que ao mesmo tempo, evita
a concentração de poderes e restringe os poderes dos juízes, pois “mais do que a
boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que desta lei não podem
moderar nem a força nem o rigor.” (MONTESQUIEU, 2004, p. 166).
Chiovenda considerava a jurisdição uma função de Soberania do Estado,
distinguindo a atividade jurisdicional em duas funções bem distintas, ou seja, a
função administrador que a lei é seu limite e a do juiz que a lei é seu fim. Assim
afirma: “pelos lábios do juiz a vontade concreta da lei se afirma tal e se atua como
se isso acontecesse por força sua própria, automaticamente”. (2000, p. 17).
Allorio sustenta que o ato jurisdicional está em sua aptidão para produzir
coisa julgada, tal teoria deixa sem explicação a judicialidade das decisões que
não estão sujeitas a coisa julgada. (Apud SILVA E GOMES, p.65).
A jurisdição para Carnelutti “consiste na justa composição da lide, mediante
sentença de natureza declarativa, por meio da qual o Juiz dicit ius; daí porque,
segundo ele, não haveria jurisdição no processo executivo.” (1936, p.132).
2554
No entendimento de Greco Filho na modernidade “a jurisdição atua por
meio de um instrumento que é o processo, e ao interessado a ordem jurídica
outorga o direito de ação, isto é, o direito de pleitear, em juízo, a prevenção ou
reparação das violações dos direitos.” (1996, p. 35).
Para Silva, a jurisdição está vinculada a autonomia do Estado e assim
afirma:
A verdadeira e autêntica jurisdição apenas surgiu a partir do momento
em que o Estado assumiu uma posição de maior independência,
desvinculando-se dos valores estritamente religiosos e passando a
exercer um poder mais acentuado de controle social. (2002, p.24).
Diante da transformação histórica da Jurisdição aponta-se uma crise da
jurisdição que está intimamente ligada a crise do Estado, assumindo a função
central de regulação social, os mecanismos econômicos, sociais e jurídicos de
regulação do Estado padecem de efetividade em decorrência dessa inevitável
perda de soberania e autonomia dos Estados Nacionais.
Streck, por sua vez, entende que a crise do Direito ainda não foi
descoberta “como” crise, já que o paradigma liberal-individualista-normativista não
morreu e o modelo forjado a partir do Estado Democrático de Direito, entendido
este como plus normativo em relação aos paradigmas do Estado Liberal e Estado
Social, ainda não nasceu. (2003, p.205).
A inadequação estatal se apresenta devido à complexidade das relações
sociais, nas quais o homem, passando a ser compreendido a partir de seu
contexto social, econômico e cultural, como bem destaca Habermas “não há
referenciais mudanças pura e simplesmente livres de contextos”, (2002, p.46.),
desta forma as mudanças devem ocorrer a partir do paradigma e do contexto
social em que vive.
No intuito de entender a crise da jurisdição estatal temos que analisar a
crise do Estado de Direito como afirma Morais:
Devido a essa assertiva é que se deve discutir a tão aclamada crise da
jurisdição a partir da crise do Estado, observando sua gradativa perda de
soberania, sua incapacidade de dar respostas céleres aos litígios atuais,
de tomar as rédeas de seu destino, sua fragilidade nas esferas
Legislativa, Executiva e Judiciária, enfim, sua quase total perda na
exclusividade de dizer e aplicar o direito. Em decorrência das pressões
centrífugas de desteriorialização da produção e da transnacionalização
dos mercados, o Judiciário, enquanto estrutura fortemente hierarquizada,
fechada, orientada por uma lógica legal-racional, submisso à lei, se torna
2555
uma instituição que precisa enfrentar o desafio de alargar os limites de
sua jurisdição, modernizar suas estruturas organizacionais e rever seus
padrões funcionais para sobreviver como um poder autônomo e
independente. (2012, p.76-77).
No entendimento de Barreto,
A crise do direito, por sua vez, tem um duplo sentido, pois se refere à
crise na prestação jurisdicional, e, também, a crise nos próprios institutos
jurídicos do estado liberal clássico. O contrato encontra-se em crise, face
ao momento de globalização da economia; a propriedade deixou de ser
basicamente fundiária e passa pela crise das novas formas de
propriedade do mundo globalizado e da Nasdaq; a família, até então
secularmente protegida no formalismo do direito liberal clássico, também
passa por uma crise, que alguns, mais temerosos, chegam a identificar
como a etapa final desse grupo social, enquanto novos e, talvez, mais
duradouras formas de organização familiar começam a ser construídas,
no contexto dos enfraquecidos alicerces culturais, sociais e jurídicos da
família liberal burguesa. (Apud FACHIN, 2001. prefácio sem p.).
Apontar as transformações da jurisdição é reconhecer como ela se
apresenta no momento atual para avaliar quais os padrões merecem ser mantidos
e ter condições de revelar aqueles que devem ser revistos limites e possibilidades
a seguir através de políticas públicas estatais de acesso justiça à população,
assim, como afirma Morais “consciente dessa realidade lançamos mão do debate
que relaciona tempo, direito e sociedade na busca de uma “construção” que tenha
por base o consenso dos litigantes, na busca de outras respostas: a
“jurisconstrução”. (2012, p.80).
3 O DIREITO DE
MODERNIDADE
ACESSO
À
JUSTIÇA
E
OS
OBSTÁCULOS
DA
Falar de acesso à Justiça na atualidade é um desafio, pois embora exista a
prerrogativa constitucional de que o Estado não deixará de jurisdicionar sobre
lesão ou ameaça de direito (art. 5º, no inciso XXXV) levada ao seu conhecimento
garanta a todos os indivíduos o direito de acesso à Justiça, tal direito não tem sido
sinônimo de prestação jurisdicional efetiva.
O Poder Judiciário, embora sustente um papel ativo na resolução das
demandas sociais que são levadas à sua apreciação, para que a solução seja
encontrada, precisa garantir uma mais direta participação da sociedade, como
forma de democratização do acesso à justiça.
2556
Os obstáculos ao acesso à justiça são muito maiores que a reação contra o
positivismo jurídico e na visão de Lazaretti “sua origem encontram-se no realismo
jurídico, e na Jurisprudência de interesses” (1998, p. 92). Desta forma, temos o
obstáculo econômico de uma justiça cara, assim é para poucos seu acesso. Ainda
enfrentamos a questão de uma justiça lenta e despreparada para demandas mais
complexas, pois o modelo organizativo está preparado para demandas
individuais, sendo que as demandas coletivas ou difusas não são atendidas a
contento.
Resta por fim, o obstáculo processual cultural do cultivo ao litígio, pois até
hoje toda e qualquer demanda propõe-se no Judiciário, inclusive as demandas de
pouca complexidade que são de direito privado, outorga-se ao Juiz decidir algo
que as partes poderiam flexibilizar e buscar na através da mediação, conciliação e
arbitragem sua resolução.
No entendimento de Cappelletti e Grath (1988, p. 87) o acesso à justiça
está atrelado ao binômio possibilidade-viabilidade de ter condições de acessar o
sistema jurídico brasileiro em igualdade de condições a todos os cidadãos, como
prerrogativa de direitos humanos.
Neste sentido afirmam Trindade e Morais:
Nesse contexto, parece inevitável discutir o papel do Poder Judiciário e
os seus limites de atuação num paradigma democrático. Isto porque, se
os demais poderes constituídos teriam a sua legitimidade derivada dos
tradicionais dogmas da soberania e da democracia representativa, o
Judiciário inscrever-se-ia na tradição de um poder contramajoritário, ao
qual compete a garantia dos direitos individuais. Ou seja, o Judiciário
teria a experiência de proteger o cidadão da atuação invasiva do Estado,
e não de estipular os meios próprios à realização de um modelo
prestacional. (2012, p.110).
Hoje, a noção de jurisdição repousa não apenas no escopo jurídico, mas
engloba uma efetividade ampla abrangendo o que afirma Moraes “eliminação de
insatisfação, o cumprimento do direito com justiça, a participação ativa dos
indivíduos, além de construir inspiração para o exercício e respeito dos direitos e
da própria cidadania”. (2008, p. 31).
Para Cappelleti “o direito, não é encarado apenas do ponto de vista dos
seus produtores e do seu produto (normas gerais e especiais): mais é encarado,
principalmente, pelo ângulo dos consumidores do direito e da justiça, enfim, sob o
ponto de vista dos usuários do serviço processual. (1988, p.88)
2557
Ainda, a administração da justiça merece uma análise do fenômeno social
e cultural, pois nos estudos de Santos “[...] revelam que a distância dos cidadãos
em relação à administração da justiça é tanto menor quanto mais baixo é o nível
social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não
apenas fatores econômicos [...]”. (2008, p. 168).
Sabe-se que o direito de acesso à Justiça atualmente é considerado um
direito social básico, mas a efetividade desse direito é um tanto vaga. Entende-se
que o direito ao acesso a Justiça não pode se limitar ao direito de acessar o
judiciário, ter apenas o direito a ação, possui uma abrangência maior, ou seja,
uma ordem jurídica justa, que deve ser estendida a maior quantidade de pessoas
possível.
As soluções buscadas para a problemática do acesso à Justiça nos países
ocidentais foram denominadas de “ondas renovatórias” do direito, sendo que a
“primeira onda consistiu na assistência judiciária aos menos favorecidos.”
(AMARAL, 2009, p.51-52). O segundo movimento foi à representação dos
interesses difusos, transformando o processo civil em proteção aos novos direitos,
pois o processo limitava-se a interesses individuais entre as partes.
A terceira onda renovatória trouxe um novo paradigma de acesso à justiça,
pois segundo Cappelletti e Garth encoraja uma ampla variedade de reformas:
[...] incluindo alterações nas formas de procedimento, mudanças na
estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas
leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores,
modificações no direito substantivo destinado a evitar litígios ou facilitar
sua solução e a utilização de mecanismo privados ou informais de
solução de litígios. (2002, p.71).
Pensar em outra forma de jurisdição, não necessariamente pela
interferência estatal é uma onda renovatória de entender o direito, mas o desafio
torna-se maior quando um método não adversarial é apresentado, no qual o
resultado do conflito não é o denominado ganha e perde dos processos
tradicionais. Este método apresenta-se para resolver o conflito de forma integral e
não apenas a (pretensão x resistência) da lide processual.
A mudança de concepção sobre a jurisdição e a flexibilização de estruturas
formais de acesso à justiça é um desafio a ser enfrentado tanto na concepção de
advogados como na dos operadores da justiça, bem como na dificuldade do
2558
Estado lidar com a rigidez jurisdicional e sua capacidade de atuação. Tais
questões não podem ser enfrentadas com o paradigma do processualismo
tradicional, porque desta forma assinalaria para o entendimento de que a busca
da eficiência pode acabar por violar as regras do devido processo legal.
Na visão de Santos, o impacto das transformações no mercado e na
comunidade para o Estado tem sido enorme e de forma substancial, assim afirma:
O Estado nacional parece ter perdido em parte sua capacidade em parte
a vontade política para continuar a regular as diversas esferas da
produção (privatizações, desregulação da economia) e da reprodução
social (retracção das políticas sociais, crise do Estado-Providência); a
trasnacioanlização da economia e o capital político que ela transporta
transformam o Estado numa unidade de análise relativamente obsoleta,
não só nos países periféricos e semiperiféricos, como quase sempre
sucedeu , mas também, crescentemente, nos países contrais, esta
fraqueza extrema do Estado é , no entanto, compensada pelo aumento
do autoritarismo do Estado, que é produzido em parte pela própria
congestão institucional da burocracia do Estado e em parte pela própria
políticas do Estado no sentido de devolver à sociedade civil
competências e funções que assumiu no segundo período e que agora
parece estrutural e irremediavelmente incapaz
de exercer e
desempenhar. (2003, p.88-89).
Na busca de abertura e alternativa temos que centralizar o objeto da
jurisdição no sujeito que a postula e não no objeto que se postula, desta forma
busca-se a justiça sem esbarrar no aspecto econômico, social ou até mesmo
processual dos tribunais.
4 A OPORTUNIDADE DE INOVAÇÃO TRANSFORMADORA E HUMANISTA: A
MEDIAÇÃO COMO POSSIBILIDADE EMANCIPATÓRIA E PARTICIPATIVA DO
CIDADÃO NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
Nota-se que ocorreram ao longo dos anos profundas modificações sociais,
histórias, políticas e econômicas conduzindo os países a pensar possibilidades
para enfrentar alguns problemas que são atuais e emergentes, tais como: grande
massa
da
população
se
direcionando
aos
grandes
centros,
intensas
reivindicações pelo bem da vida e aumento da necessidade de serviços públicos
que atendam as demandas. Frente a esse panorama temos “inserido o dever do
Estado de distribuir a justiça e aplicar o direito, verifica-se uma desatualização do
sistema jurídico processual e uma profunda ineficiência do próprio aparato do
Estado.” (MORAIS E SPENGLER, 2012. p. 105).
2559
Na busca de mecanismo já existentes que auxiliassem o Estado a resolver
conflitos de forma mais efetiva, bem como no funcionamento adequado da justiça,
tanto no âmbito privado como no público, incentiva-se além do sistema tradicional
estatal e a arbitragem - que são formas heterônomas de resolução de conflitos, as
formas autônomas, tais como, a mediação, a negociação e a conciliação que
podem descongestionar os tribunais e reduzir o custo e a demora procedimental.
A mediação, objeto do presente estudo, apresenta-se no cenário nacional
como um gênero de justiça consensual que se origina do latim mediare, que
“significa mediar, dividir ao meio ou intervir, se colocar no meio. Estas expressões
sugerem a acepção moderna do termo mediação que é o processo pacífico e não
adversarial de ajuste de conflitos.” (SERPA, 1997, p. 145). Assim, a mediação se
apresenta como um elo de ganhar e ganhar, uma forma de responsabilização do
indivíduo pela resolução de seus conflitos, tratando o conflito, promovendo uma
mudança no trato social do indivíduo e em sua amplitude. O mediador é um
terceiro neutro, sem poder decisório ou consultivo, mas que amplia o consenso, o
diálogo, um facilitador da comunicação entre os interessados na resolução do
conflito de forma não violenta.
A importância do tema mediação de conflitos se dá como uma
oportunidade de construção da cidadania participativa dos direitos humanos, a
parte se torna autora da decisão, constrói a decisão e assume tal resolução como
compromisso de vida.
Os ensinamentos de Habermas (2002, p. 56) que formula uma teoria
reconstrutiva inserida na esfera das interações comunicativas. O autor parte do
pressuposto de que o sujeito é capaz de linguagem e ação, assim é possível
estabelecer práticas argumentativas por meio das quais se asseguram de que,
intersubjetivamente, compartilhem de um contexto comum, de um “mundo da
vida”.
A teoria comunicativa de Habermas (2002, p. 57) estabelece um meio
emancipatório para o indivíduo resolver seus conflitos de interesses, pois na
medida em que os membros de uma determinada sociedade realizam uma
interação por meio da linguagem, orientada pela razão comunicativa, excluem o
individualismo assoberbado e despertam para as suas responsabilidades como
2560
membro dessa sociedade. Esta interação terá o escopo de bem estar ao indivíduo
e será construída pelo diálogo, cooperação e solidariedade. Mediante essa
interação, abre-se a oportunidade para a modificação da relação entre os
indivíduos, ampliando as possibilidades para uma maior compreensão tanto dos
fenômenos individuais como dos recorrentes no mundo a sua volta, criando-se a
possibilidade para uma maior compreensão tanto dos fenômenos individuais
como dos recorrentes no mundo.
A mediação assume uma dimensão política, ou seja, “a mediação como
expressão estrutural dos Direitos Humanos de alteridade e de cidadania dialógica”
(EGGER, 2008, p.480). Essa concepção foi desenvolvida pelo professor Warat o
qual afirma que “concepções do paradigma moderno sobre cidadania e direitos
humanos são individualistas, não estão fundamentadas como uma forma de
consenso em relação as diferenças em relação a uma idéia de cidadania e
direitos humanos, vista como uma forma de direitos subjetivos e, não como
exercício de relações vinculantes.” (WARAT, 2001, p. 93).
Na mediação, o diálogo é fundamental para a resolução dos conflitos, ao
contrário do que ocorre no Judiciário, onde temos a figura do autor, do réu e da
configuração da lide (pretensão resistida da teoria de Liebman), que outorgam ao
processo e ao Juiz (um terceiro imparcial), o poder de decisão dos conflitos.
Na mediação, o mediador dialoga, escuta e participa como ente facilitador
da linguagem entre as partes, ao contrário do que ocorre com o Juiz que detém o
poder de julgamento, de sentenciar e fazer cumprir tal decisão pela ação
coercitiva. O mediador como afirma Sales “é a pessoa que auxilia na construção
desse diálogo” (2007, p.54) e pelo diálogo e podendo utilizar a ética discursiva de
Habermas, que está fundada no princípio U (universalisierungsgybdsarz),
determina-se a validade da norma a partir da aceitação de seus efeitos e
consequências por todos os envolvidos, trata-se, na verdade, de um padrão de
argumentação no âmbito das questões práticas.
Segundo Barretto “a constituição por ter uma fonte moral, pois é fruto da
manifestação da vontade de agentes morais autônomos, estabelece limites ao
arbítrio e à desigualdade social”, assim nasce a importância da recuperação da
tradição kantiana, pois o “regime democrático é mais do que a simples
2561
manifestação da vontade da maioria e torna-se um regime dotado de valores
morais que o fundamentam e justificam” (2013, p.41).
Num viés filosófico Sandel afirma
De acordo com Kant, o valor moral de uma ação não consiste em suas
consequências, mas na intenção com a qual a ação é realizada. O que
importa é o motivo, que deve ser de uma determinada natureza. O que
importa é fazer a coisa certa porque é a coisa certa, e não por algum
outro motivo exterior a ela. (2012, p. 143).
Temos como imperativo categórico da teoria de Kant: “Age segundo a
máxima que possa simultaneamente fazer-se a si mesma lei universal.”
(BARRETO, 2013, p.53). Assim, no caso específico da mediação familiar, onde o
dever é priorizar a criança e o adolescente em caso de ação de guarda, fixação
de alimentos e responsabilidade para com os filhos, se os interessados
participarem voluntariamente da sessão de mediação por acreditarem estar
fazendo a coisa certa (imperativo categórico- ação necessária por si mesma) ou
seja, deixar de lado o rancor e o desamor ocorrido na separação ou divórcio e
buscar com a mediação cumprir o dever de pais e do princípio constitucional do
melhor interesse da criança e do adolescente, estarão segundo Kant fazendo a
coisa certa pelos motivos certos.
Porém, se os interessados participarem das sessões de mediações
somente porque foi sugerida pelo Juiz, ou ainda, para parecer evidenciar
interesses próprios financeiros, ou ainda, tentativas de satisfazer as suas próprias
vontades e preferências, (tentar a fixação de alimentos num patamar mais baixo
somente pela voluntariedade de conciliar) estarão realizando a coisa certa pelos
motivos errados, então esta ação não terá valor moral.
Para a Psicologia a mediação constitui-se em técnica não adversarial de
resolução de conflitos em que um profissional devidamente preparado auxilia as
partes a encontrarem seus verdadeiros interesses e a preservá-los num acordo
criativo, em que ambas ganham. (VEZZULLA, 2006, p.76).
Com o auxílio da psicanálise verificar-se-á que o mediador deve estar em
constante estudo de si para entender o conflito consciente e o inconsciente que
habita as relações do outro, pois como afirma Zimerman:
Na verdade, o inconsciente comanda a vida da espécie humana muito
mais do que, uma primeira vista, possa se imaginar. Para esclarecer
essa afirmativa, vamos à uma metáfora, empregada por FREUD, com
2562
um iceberg, no qual a parte visível dessa montanha de gelo pode ser
comparada ao nosso consciente, no entanto, a parte oculta, equivalente
ao inconsciente humano, é muitíssimo maior e é justamente onde os
navios se espatifam, assim como os psicóticos, psicopatas e neuróticos
comandados pro graves conflitos inconscientes podem espatifar as suas
vidas e a de outros.(2010, p.118).
Os mediadores devem estudar a psicanálise, realizar muitas sessões, pois
a “psicanálise gira unicamente em torno dos conflitos psíquicos, resultantes do
embate entre pulsões e sentimentos recalcados, habitantes do inconsciente,
versus defesas do ego, de sorte que, conforme fossem os tipos de mecanismo
defensivos utilizados, assim se estruturariam os diversos tipos de sintomas
psíquicos [...]” (ZIMERMAN, 2010, p.119).
A mediação num sentido psicanalítico, conforme afirma Egger, é “uma
capacidade de treinamento das pessoas para poder superar suas situações
conflitivas ou traumáticas, coaching, assistidas por um terceiro, o treinador
(coach)” (2008, p.51).
Nos estudos realizados por Warat a mediação deve ser entendida como
um novo paradigma de aprender a viver e assim afirma:
A mediação, enquanto um novo e grande paradigma, como pedagogia
que ajuda a aprender a viver, é um novo paradigma, específico, da
produção de Direito (agora entendido como pedagogia que ajuda
aprender a viver e não mais como lei que pune o que considera
conflitivo. (2004, p. 52).
O conflito possibilita o crescimento dos sujeitos, e a mediação objetiva
transformar o conflito, trabalhar as questões que envolvem paixões e inserir o
tema diferenças e semelhanças com a meta de alcançar o diálogo, o consenso, o
entendimento saudável.
Neste sentido, Warat assegura que a mediação começa quando as partes
conseguem interpretar o significado dos comportamentos, das suas diferenças e
se disponibilizam a dialogar e construir o acordo. (1999, p. 69).
A mediação de conflitos é um prolongamento e aperfeiçoamento do
processo de negociação, que envolve a interferência de uma aceitável terceira
pessoa, que aceita pelas partes, conduzirá o diálogo responsável e não
autoritário. Desta maneira, a mediação é um processo voluntário em que os
participantes devem estar dispostos a aceitar a colaboração do interventor, se sua
2563
função for ajudá-los a lidar com suas diferenças e resolvê-las (MOORE, 2003, p.
44).
A mediação de conflitos, nessa perspectiva, é considerada como um jogo
inter-relacional no qual cada um participa de um contexto em que cada sujeito
influi e é influenciado (VASCONCELLOS, 2002, p.130).
No entendimento de Warat, “a mediação difere da negociação direta por
ser, precisamente, uma autocomposição assistida [...]”; já na negociação existe a
interferência direta de terceira pessoa propondo e negociando o conflito, já a
mediação “é um trabalho de reconstrução simbólica imaginária e sensível, como
outro do conflito; de produção como o outro das diferenças que nos permitam
superar as divergências e forma identidades culturais.” (2004, p. 57-58).
A mediação de conflito propõe propiciar uma autonomia ao indivíduo, “a
terapia do reencontro é uma ajuda para deixar de ser carreirista, é uma forma de
encontrar-se com o outro, abrindo-se a outra realidade. Não estamos no mundo
para ganhar de ninguém” (WARAT, 2008, p.47).
Para a solução de conflitos faz-se necessária a possibilidade de diálogo e
de escuta. Tempo para escutar e tempo para falar. É imprescindível o respeito
mútuo, o que muitas vezes, teoricamente, seria impraticável, tendo em vista, em
alguns casos, a existência de mágoas profundas e amores mal resolvidos
(SALES, 2003, p. 84).
Num
cenário
de
transformações
significativas
(sociais,
políticas,
econômicas e tecnológicas) como o atual, a mediação de conflitos surge como
uma proposta que apresenta a possibilidade de superar o litígio, respeitando as
individualidades e reduzindo os danos afetivos e emocionais. Assim, nas últimas
décadas, emergiram em todo mundo programas de solução de disputas e
conflitos. Tais programas são utilizados em vários contextos, como empresas,
famílias, empresa, escolas e comunidades (consumidora, condominiais, civis,
entre outras).
A proposta de mediação de conflitos, portanto, caracteriza-se por um
contexto mais flexível na condução de disputas. É uma proposta que tem uma
prática geralmente formalizada em várias etapas, que variam segundo as escolas
2564
de mediação, baseadas em diferentes fundamentações teóricas e modelos
(SUARES, 1997, p.78).
São três os modelos teóricos mais utilizados nos países que praticam a
mediação de conflitos. O modelo de Harvard, também chamado de tradicional
linear, o modelo transformativo de Busch e Foger (1992) e o modelo circular
narrativo de Sara Cobb (1994).
No modelo de Harvard, a comunicação acontece de maneira linear,
centrada no verbal, importando o conteúdo. A função do mediador é ser um
facilitador da comunicação. Esse modelo baseia-se numa causalidade linear do
conflito, não levando em consideração o contexto em que surgiu, nem sua
história. É reforçado o aspecto intrapsíquico, sem levar em conta o fator
relacional. O fundamental neste modelo é chegar a um acordo (BUCHERMALUSCHKE, 2007, p.118).
No modelo transformativo, proposto por Bush e Folger (1992, p. 145), o
interesse concentra-se nos aspectos relacionais do conflito e está focalizado na
relação interpessoal, supondo uma concepção de causalidade e transformação do
conflito. Os desacordos não são importantes, valorizando-se apenas a aquisição
de habilidades de tratamento de conflitos.
A mediação inicialmente tinha por objetivo, neste modelo, diminuir as
diferenças entre as partes, ou eliminá-las por meio do acordo. Com o
aperfeiçoamento dos processos de mediação, o objetivo se ampliou, visando ao
desenvolvimento do reconhecimento da alteridade, do reconhecimento do outro
como sujeito pensante, desejante e sofredor (BUCHER-MALUSCHKE, 2007, p.
112).
Busca-se então alcançar o desenvolvimento de mudanças nas pessoas, ao
descobrir suas próprias habilidades, potencialidades, responsabilidades e o
reconhecimento do outro, como parte do conflito.
O objetivo consiste em modificar a relação entre as partes, não importando
se chegam ou não a um acordo. Não está centrado na resolução do conflito, mas
sim na transformação relacional (CEZAR-FERREIRA, 2004, p. 78).
O modelo circular narrativo, inspirado nos princípios da teoria dos sistemas,
considera a retroalimentação do conflito. Visa melhorar as relações interpessoais,
2565
independentemente da efetivação do acordo. Trata-se de um modelo proposto por
Sarah Cobb, em que a comunicação é entendida como um todo no qual estão
incluídas duas ou mais pessoas. A mensagem transmitida inclui elementos
verbais (conteúdo) e para-verbais (corporais, gestuais, etc). Busca-se, neste
modelo, fomentar a reflexão, mudar o significado da história e do conflito,
possibilitando que as partes interajam de maneira diferente, modifiquem o
discurso e alcancem um acordo, ainda que essa não seja a meta fundamental
(ALVAREZ, 1999, P. 201).
No Brasil, algumas experiências pioneiras de mediação de conflitos vêm
sendo destacadas e multiplicadas em diversas cidades. No Estado de São Paulo,
existem setores de mediação anexos às varas judiciais em várias cidades como
São Paulo, Serra Negra, Patrocínio Paulista, Guarulhos, Jundiaí, dentre outras
(PLIGHER, 2007, p.25).
Afirma Watanabe, “aliás, o CNJ já vem entendendo que lhe cabe “fixar a
implementação de diretrizes nacionais para nortear a atuação institucional de
todos os órgãos do Poder Judiciário, tendo em vista sua unicidade”, pelo que , na
Resolução 70, de 18 de março de 2009, dispôs sobre o Planejamento e a Gestão
Estratégica no âmbito do Poder Judiciário” (2011, p.5). Então o art. 5º, inciso
XXXV da Constituição Federal deve ser implementado não apenas como o mero
acesso à Justiça, mas segundo o autor “como garantia de acesso à ordem jurídica
justa, de forma efetiva, tempestiva e adequada.” (2011, p.5).
É imperioso o estabelecimento pelo próprio judiciário de uma política
pública de tratamento adequado dos conflitos de interesses, mais do que isso,
que o próprio judiciário estimule e realize a propaganda de sua utilização, em
nível nacional visando fortalecer a mediação e resolução de conflitos de forma
não adversarial. Nesse sentido conclui-se “que cabe ao Poder Judiciário, pelo
CNJ, organizar os serviços de tratamento de conflitos por todos os mecanismos
adequados, e não apenas por meio da adjudicação de solução estatal em
processo contencioso, cabendo-lhe em especial institucionalizar, em caráter
permanente, os meios consensuais de solução de conflitos de interesses, como a
mediação e a conciliação.” (WATANABE, 2011, p.5).
2566
A partir da publicação da Resolução 125 do CNJ em 29 de novembro de
2010 o Poder judiciário tem realizado políticas públicas com a criação de
Mediação Judicial tanto no primeiro grau como no segundo grau. Não como
justiça de segunda classe, mas como opção para os interessados que possuem
relações continuadas e desejarem dialogar. Ainda, far-se-á necessário a criação
de Núcleos permanentes de resolução de conflitos (art. 7º) e (art. 8º) Centro de
Mediadores em convênio com Faculdades e Universidades para realização de
boas práticas gerencias e técnicas autocompositivas.
Com a aprovação do Código de Processo Civil a mediação entrou em
pauta de forma efetiva , porém cabe a todos partícipes encara-la com seriedade
não levando a banalização de ser apenas um “rito de passagem” a ser cumprido.
Ligados às Instituições de Ensino Superior, é possível destacar, entre as
várias iniciativas, a proposta de Mediação de Conflitos da Faculdade Meridional
de Passo Fundo - IMED e o Poder Judiciário (CNJ) e as duas Varas de Família,
sendo que tal proposta tem como objetivo de promover formas não adversariais
de resolução de conflitos para o século XXI, considerando os avanços, limites,
questionamentos e as novas perspectivas de acesso à jurisdição.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A jurisdição estatal tal qual se apresenta na atualidade está em crise e em
transformação, visto que o acesso à justiça como o mais básico dos direitos
humanos não está sendo contemplado, seja pela não efetividade do acesso à
justiça e a ineficácia do processo formal na resolução dos conflitos levados à
apreciação do Poder Judiciário, seja pela complexidade e multiplicidade das
relações humanas trazendo como opção para uma justiça mais justa e eficaz de
tratamento do conflito propondo a mediação, que no parâmetro de ganha e ganha
leva os interessados a um nível menos hierárquico e tradicional e mais
emancipatório e participativo do cidadão na gestão de seus próprios conflitos.
O Estado está ciente de seu dever apontado pela prerrogativa
constitucional de que não poderá deixar de jurisdicionar sobre lesão ou ameaça
de direito (art. 5º, no inciso XXXV) levada ao seu conhecimento, bem como
2567
garantir a postulação dos direitos a todos os indivíduos e o direito de acesso à
Justiça, tal direito não tem sido sinônimo de prestação jurisdicional efetiva, visto
que as demandas judiciais são morosas e as sentenças muitas vezes somente
refletem a legalidade e não o direito clamado entre as partes.
O Poder Judiciário, no seu sistema processual, hierarquizado, moroso,
formalista e amparado num exacerbado processualismo, embora sustente um
papel ativo na resolução das demandas sociais que são levadas à sua
apreciação, deve buscar soluções para ultrapassar esta barreira em que se
encontra e realizar movimentos que assegurem a via preferencial da
acessibilidade e efetividade na forma de democratização do acesso à justiça.
Sabe-se que a crise da jurisdição tradicional está intimamente ligada a
crise em que passa o Estado Democrático do Direito, assim podemos apontar em
três categorias, pois a primeira diz respeito à crise estrutural onde sabemos que o
judiciário está com carência de infraestrutura, de pessoal, de equipamentos e
custos desnecessários devido o alongamento das demandas.
A segunda crise é pragmática e diz respeito ao formalismo exacerbado
utilizado nos rituais e trabalhos forenses, a burocratização de processos e sua
lentidão pelo acúmulo de demandas, mas a terceira, que pode ser a mais difícil de
ser solucionada
profissionais
do
é a crise subjetiva ou tecnológica que é a dificuldade dos
direito
de
lidar
com
novas
realidades
dos
conflitos
contemporâneos, sejam eles individuais, difusos ou transindividuais.
Nota-se que as necessidades sociais, o conteúdo das demandas e os
sujeitos envolvidos atingiram proporções significativas e complexas, porém o
Estado ainda possui os mesmos instrumentos do século passado, ou seja, a
utilização da jurisdição tradicional através de um processo embasado no
formalismo e na lógica do ganha e perde, bem como ao final, uma resposta
denominada de sentença amparada na legalidade positivista.
Ao apontar a crise da jurisdição estatal estamos falando também em crise
do direito e da justiça, por isso o Estado deve buscar alternativas ao cidadão para
que possa aproximar-se do objetivo esperado pela sociedade plural, afetiva,
multicultural que vive na coletividade e deseja que assegure e garanta a sua
individualidade.
2568
A jurisdição estatal deve ser reinventada, inovada e flexibilizada mantendose as garantias constitucionais, porém com a possibilidade de permitir ao
indivíduo formas autônomas de resolução de conflitos, criando oportunidade de
opção na esfera Estatal heterônoma e dar oportunidade a forma autônoma de
tratamento do conflito, incentivando a mediação e divulgando o instituto na sua
essência por meio do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
A mediação será a oportunidade de atender uma sociedade e possibilitar
um parâmetro emancipatório e participativo aos cidadãos de resolução de
conflitos de forma não adversarial, primando pelo diálogo, facilitando a
negociação efetiva entre os indivíduos, pois a mediação de sentido transformador
consiste na visualização do conflito como uma oportunidade para o oferecimento
às partes da possibilidade de uma melhora na qualidade de vida.
Ainda, far-se-á necessário realizar capacitações aos mediadores com o
intuito de aplicar tal método de tratar o conflito como fenômeno natural, e assim
seja entendido na forma positiva, com intuito de buscar a paz, o entendimento, a
solução, a compreensão, a felicidade, o afeto, o crescimento, o ganho e a
aproximação das partes e afastando os demais conflitos do judiciário tradicional e
formalista que conduzem a prática de ganhar e perder das demandas.
A vantagem de realizar técnicas autocompositivas de resolução de conflitos
autoriza as partes a dialogar e compreender comportamentos, analisar intenções,
buscar soluções e gerir suas próprias emoções de forma voluntária, construtiva e
justa.
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2578
AUTOEXCLUSÃO: UMA ANÁLISE SOBRE AS RELAÇÕES SOCIAIS E O
CONHECIMENTO JURÍDICO10
Renata Caroline Pereira de Macedo11
Heitor Romero Marques12
RESUMO: A pesquisa aqui relatada, valeu-se de revisão bibliográfica e tem como
objeto o estudo do comportamento humano frente ao conhecimento jurídico, uma
vez que a história humana reflete a acomodação aos padrões tradicionalmente
transmitidos nas comunidades. A pesquisa procurou entender a realidade sócio
jurídica e por extensão os principais motivos da falta de interesse e conhecimento
pela área jurídica, bem como procurou indicar soluções para que os indivíduos se
informem dos seus direitos e lutem por um ambiente mais justo e harmonioso.
PALAVRAS-CHAVE: conhecimento; direitos; comunidade.
ABSTRACT: The research reported here, earned thirst literature review and has
as its object the study of human behavior outside the legal knowledge, since
human history reflects the accommodation standards traditionally handed down in
communities. The research sought to understand the socio-legal and by extension
the main reasons for the lack of interest and knowledge for the legal and sought
solutions to indicate that individuals inform themselves of their rights and fight for a
more just and harmonious.
KEYWORDS: Knowledge, Rights, Community
1 INTRODUÇÃO
O Direito é uma ciência que visa contribuir com a evolução e
desenvolvimento da sociedade, analisando o comportamento humano e o
convívio social. Com isso, incumbe a essa ciência combater a injustiça por meio
da luta dos povos, indivíduos, classes e governos.
10
Trabalho realizado no contexto do PIBIC/UCDB/CNPq no ciclo 2012_2013.
Acadêmica do curso de Direito da Universidade Católica Dom Bosco. Pesquisadora do
PIBIC/UCDB/CNPq no ciclo 2012_2013 Contato: [email protected]
11
12
Licenciado em Ciências e Pedagogia, Especialista em Filosofia e História da Educação, Mestre
em Educação e Doutor em Desarrollo Local y Planteamiento Territorial. Contato:
[email protected] e [email protected]
2579
Essa evolução que o Direito busca é desenvolvida pela globalização, sendo
essa uma ação de causalidade, em que alguns se beneficiam e outros não.
Muitos não conseguem se beneficiar devido a exclusão social presente nas
sociedades capitalistas. A exclusão abrange todos aqueles que não possuem
acesso aos direitos fundamentais, e não podem se alimentar, ter um lar, acesso à
saúde, à educação, a um emprego digno.
O acesso à justiça é fundamental, pois é o tipo de direito humano básico,
que visa garantir e não apenas proclamar os direitos dos cidadãos, em vista da
evolução social.
Com a evolução das sociedades, a democracia predomina na maior parte
do mundo e por ser um governo do povo visa estabelecer um equilíbrio entre
sociedade e Estado. A democracia é direito positivo de toda e qualquer pessoa, e
aquela que não a exerce desenvolve uma exclusão fatal. Justamente para evitar
essa exclusão fatal é que o acesso à justiça é um direito social fundamental,
sendo a principal garantia dos direitos subjetivos. Em torno dele estão todas as
garantias destinadas a promover a efetiva tutela dos direitos fundamentais, assim
como trata a Constituição Federal brasileira em seu Art 5º, XXXV: “a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
2 O ACESSO A JUSTIÇA COMO DIREITO CONSTITUCIONAL
A Carta de Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 traz em
sua introdução "que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros
da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo".
Foi em 1950 que foi redigido o primeiro documento de repercussão
internacional sobre o direito à prestação jurisdicional em prazo razoável devido a
1ª Convenção Europeia de Direitos Humanos e somente em 1969 com o Pacto
de São José da Costa Rica que todos os indivíduos passaram a ter esse direito
fundamental sem dilações indevidas.
O Brasil, no entanto, devido ao atraso democrático ocasionado pela
ditadura e pelas crises econômicas, somente ratificou a Convenção em 1992 pelo
2580
Decreto nº 678/2004, inserindo-a no rol dos direitos fundamentais com a Emenda
Constitucional 45/2004.
A Constituição Federal de 1988 trata de princípios que confirmam que
todos os cidadãos têm direito a procurar o poder judiciário para resolver alguma
pendência que esteja prejudicando o convívio em sociedade. E nesse
pensamento, Cappelletti e Garth (1988, p. 13) retratam que:
O acesso não é apenas um direito social fundamental, crescentemente
reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da
moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e
aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica.
O Direito existe para organizar a vida social e é capaz de garantir a paz e a
realização do espírito humano. Nesse sentido dizia Rui Barbosa que “Não há
nada mais relevante para a vida social que a formação do sentimento da justiça”,
por isso é que a justiça precisa ser dinâmica e simples para que não crie entraves
que dificultem o acesso à solução do direito lesado. Essa realidade é retratada
por Cintra, Grinover e Dinamarco (2002, p. 33) quando afirmam:
Seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando
simplesmente uma pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia
satisfazê-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma
solução que faça justiça a ambos os participantes do conflito e do
processo. Por isso é que o processo deve ser manipulado de modo a
propiciar às partes o acesso à justiça, o qual se resolve, na expressão
muito feliz da doutrina brasileira recente em “acesso à ordem jurídica
justa.
O Direito é o existir da vontade livre, como a única forma de existência da
liberdade, tendo por objeto o comportamento de múltiplos sujeitos, na projeção da
liberdade em sua exterioridade, fixando os limites entre justo e injusto, licito e
ilícito.
A professora Ada Pellegrini Grinover afirma que: “Pode-se dizer, pois, sem
exagerar, que a Constituição de 1988 representa o que de mais moderno existe
na tendência universal rumo à diminuição da distância entre o povo e a justiça”.
Nesse mesmo sentido, na lição de Dinamarco cita Kazuo Watanabe (2002, p.
114):
Acesso à justiça é acesso à ordem jurídica justa, ou seja, obtenção de
justiça substancial. Não obtém justiça substancial quem não consegue
sequer o exame de suas pretensões pelo Poder Judiciário e também
quem recebe soluções atrasadas para suas pretensões, ou soluções que
não lhe melhorem efetivamente a vida em relação ao bem pretendido.
Todas as garantias integrantes da tutela constitucional do processo
2581
convergem a essa promessa-síntese que é a garantia do acesso à
justiça assim compreendido.
O ser humano é construtor da realidade das coisas na idealidade da razão
e com a criação das leis torna racional o que é real. Exemplos dessa
racionalidade foi a criação do Código de Defesa do Consumidor, Lei nº8778/1990;
o Código da Criança e do Adolescente, Lei nº 8069/1990; a Lei nº 9079/1995, a lei
da arbitragem (Lei nº9307/1996, entre outras que contribuem para as relações
humanas.
A criação dessas leis destaca principalmente as atitudes que as pessoas
tomam mediante as situações do dia-a-dia.
Essas normas foram criadas
baseadas na lealdade, igualdade, boa-fé e confiança recíprocas entre os sujeitos.
3 OS MOTIVOS QUE LEVAM A EXCLUSÃO JURÍDICA
A cidadania é um dos direitos mais importantes para a sociedade, pois é
por ela que o indivíduo conhece o Estado em que vive, e conforme a razão e a
natureza leva as pessoas à harmonia do bem estar social. A sociedade civil
forma-se como uma rede de instituições públicas e privadas, que se apoiam nos
seus membros buscando como única finalidade o bem comum.
Ser cidadão é ter consciência de ser sujeito de direitos e deveres, não
podendo por isso alegar o desconhecimento da lei. O acesso à justiça é
considerado um direito humano que leva ao caminho da redução das
desigualdades sociais em termos econômicos e sociais, pois onde não houver
justiça não haverá democracia. Nessa esteira de entendimento Carlos Alberto
Menezes Direito (1998, p. 142) leciona que:
[...] o maior esforço que a ciência do direito pode oferecer para
assegurar os direitos humanos é voltar-se, precipuamente, para a
construção de meios necessários à sua realização nos Estados e, ainda,
para o fortalecimento dos modos necessários de acesso à Justiça com
vistas ao melhoramento e celeridade da prestação jurisdicional.
A desigualdade social é a grande vilã no Brasil, tornando o acesso à
justiça das pessoas mais carentes ainda mais difícil, tornando o Direito
excludente. Em seu Curso de Direito Constitucional o Professor José Afonso da
Silva (1998, p. 222) comenta as dificuldades das classes de menor renda:
2582
Os pobres têm acesso muito precário à Justiça, porque carecem de
recursos, para contratar bons advogados e que o patrocínio gratuito se
revelou de alarmante deficiência. O outro lado da moeda, destarte, é que
os ricos, não têm acesso precário à Justiça, porque não carecem de
recursos, para contratar bons advogados. Fica-nos a ilusão, que os
jurisdicionados ricos têm uma justiça rápida e imparcial, mesmo contra o
Estado.
Nesse sentido, ficou comprovado que a comunidade do bairro São
Conrado enfrenta o que o ilustre professor Boaventura (1997, p.46) discorre, ou
seja, a comunidade enfrenta três barreiras que limitam o acesso à justiça, sendo
eles o social, o econômico e o cultural. Ilustra ainda que:
A igualdade do cidadãos perante a lei passou a ser confrontada com a
desigualdade da lei perante os cidadãos, uma confrontação que em
breve se tornou num vasto campo de análise sociológica e de inovação
social centrado na questão do acesso diferencial ao direito e à justiça por
parte das diferentes classes e estratos sociais.
Diante a questão do acesso à justiça em função do poder aquisitivo
Thomas Hobbes era claro em afirmar que “[...] quem deve governar é o gênero
humano”, mas o que prevalece na sociedade atual é o gênero capitalista. O
que deveria ser um direito social fundamental para garantir direitos, acaba se
tornando um grande vilão da população. Um judiciário lento, com funcionários
despreparados e que não se atualizam, dificulta quem realmente precisa de ajuda
e proteção da justiça. Grande parte da população não procura conhecer, pois não
possui confiança, na verdade elas acreditam que o judiciário não tem
credibilidade. Acadêmicos da Faculdade de Direito de Vitória acreditam que:
Essa morosidade suscita nos indivíduos um descrédito quanto à
efetividade do Judiciário. A sociedade como um todo passa a não confiar
no Estado para que este promova a solução de conflitos, julgando,
portanto, esse poder como lento e incompetente. Os maus exemplos
cometidos por quem deveria ser exemplar em suas ações, explicam,
então, o desrespeito e a desconfiança da população.
Essa descrença do judiciário é provada não só na comunidade estudada
em Mato Grosso do Sul, mas também no Brasil. Uma pesquisa feita no final de
2011 pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas revela que
89% dos entrevistados consideram a resolução de conflitos lenta ou muito lenta
no país e além disso, 87% disseram que os custos para acessar o Judiciário são
altos ou muito altos e 72% acreditam que o Judiciário é difícil ou muito difícil para
utilizar.
2583
Hans Kelsen (1998) em sua obra O problema da justiça é firme em criticar
que “Os efeitos dessas delongas, especialmente se considerados os índices de
inflação, podem ser devastadores”, pois justiça lenta é injustiça.
Outro fator que contribui para a desilusão dos cidadãos em relação a
proteção da justiça são os escândalos de corrupção e a criação de leis que
beneficiam somente uma parcela da população. O Direito tem sido excludente e
toda a manipulação do poder público consegue fazer com que a população fique
cada vez mais ignorante e inerte em relação aos direitos de proteção judicial. O
Professor Luiz Flávio Gomes (2010) discorre que:
O Poder Judiciário tem menos prestígio que a Polícia Federal, que a
Mídia etc. Isso decorre da morosidade da prestação jurisdicional assim
como das notícias de corrupção. O modelo de Justiça preponderante no
Brasil (o adversarial, o conflitivo) está falido.
A esperança de ter informação e conseguir acesso ao judiciário se desfaz,
pois apesar do avanço das tecnologias, grande parte da população ainda sofre
com a falta de comunicação. Segundo o Ibope até dezembro de 2012, menos da
metade da população brasileira tinha acesso a Internet. As gerações mais novas
acreditam que
a forma mais fácil de buscar os direitos é pelos meios de
comunicação, seja pela Internet, televisão ou rádio. Já quanto o acesso à justiça,
não são para todos justamente por se ter essa grande desigualdade social, pois a
comunicação acaba não sendo suficiente para informar as pessoas e acaba
interferindo de maneira equivocada.
O Ministro do STF, Joaquim Barbosa critica a mídia dizendo que é de
direita e que a Justiça é racista, “A justiça condena pobres e pretos, gente sem
conexão. As pessoas são tratadas de forma diferente de acordo com seu status,
cor de pele ou poder econômico", relata que a mídia não tem mais o mesmo
respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. A mídia acaba por
produzir uma publicidade opressiva, passando informações manipuladas e
criando pré-conceitos que prejudicam o andamento de ações.
Nesse mesmo sentido o que acarreta para uma fuga ainda maior dos
direitos é a falta de profissionais qualificados, principalmente advogados, já que
os pesquisados da comunidade do bairro São Conrado os classificaram como
obsessivos por dinheiro e não preocupados em solucionar os problemas das
2584
pessoas que os procuram, destacando que o judiciário é corrupto e recebe
propinas para decidir a favor de algum caso especifico. É latente a ameaça a
cada dia mais de profissionais do Direito com formação inadequada, carentes de
conhecimentos jurídicos e principalmente de experiências reais que prezem pela
moral e ética, impossibilitados de serem construtores de uma nação mais
igualitária e que visem o bem comum.
Apesar do âmbito judiciário ser para todos, em termos de equidade,
sempre a justiça é para os mais ricos e isso ocorre devido aos péssimos
profissionais no mercado que descridibilizam os demais perante o judiciário e ao
mercado de cliente. Contudo, o fato mais visível é que os cidadãos somente
buscam seus direitos quando estão em conflito devido a correria do dia-a-dia em
busca de uma melhor qualidade de vida, muitas vezes esquecendo de que é
melhor prevenir o conflito do que enfrentá-lo.
A falta de interesse predomina pois, a geração mais nova tem a certeza de
que a informação é passada à população e que a única falha é quanto a estrutura
que precisa ser melhorada para que as informações cheguem de maneira mais
rápida à população.
Quanto as gerações mais antigas, essas estão convictas de que não há
informação suficiente para que todos tenham conhecimento sobre os direitos.
Mesmo tendo todas as tecnologias que facilitam o acesso, eles acreditam que
falta mais ação do poder público para que todos tenham acesso aos direitos.
4 . O ACESSO À JUSTIÇA NA VISÃO DOS OPERADORES DO DIREITO.
O Direito é uma ciência que não pode ser rígida, mas deve basear-se na
razão e na natureza que levam os cidadãos a virtude, devendo procurar descrever
o funcionamento das normas jurídicas, pois elas são o princípio e o fim de todo o
sistema jurídico.
A maior importância dessa ciência é a validade, já que segundo Kelsen a
teoria do Direito possui dois juízos de valor: valores de direto, na qual o objetivo é
a norma jurídica (licito ou ilícito), e valores de justiça (justo ou injusto), sendo a
norma a única segurança para a teoria do direito.
2585
Nesse contexto, quem aplica o Direito exerce a chamada interpretação
autêntica do direito, em que a norma pode ser válida e justa, válida e injusta,
inválida e justa, inválida e injusta.
Para grande parte dos juristas na maioria dos casos hoje no país, a norma
é aplicada de forma válida porém injusta, pois o Estado deixa de identificar a
relação de objetividade dele com a subjetividade dos indivíduos. A doutrinadora
Gisele Góes (2004, p. 111) expõe que:
O acesso à justiça não se esgota somente com a propositura da ação no
Poder Judiciário, porque, se a tutela jurisdicional não tiver meios de fazer
cumprir suas decisões, não adiantará o ingresso com a ação, tendo em
vista a inefetividade desse acesso à justiça.
O Direito acaba sendo tratado como mera tentativa de resolução de
conflitos e não como deveria ser realmente tratado, ou seja, como objeto de
comportamento de múltiplos sujeitos, sendo na projeção da liberdade, na fixação
de limites entre justo e injusto, licito ou ilícito.
O sujeito por ser construtor da realidade das coisas na idealidade da razão
crê que a justiça é um conjunto de ideias que norteia a própria formação do
Direito e que justa é a decisão imparcial e não a arbitrária. Dessa forma, o
ensinamento da justiça não deve ser objeto de conhecimento do jurista, pois
muitas vezes o fato de se ter estudado o Direito faz com que muitos operadores
esqueçam de sua principal função, ou seja, auxiliar quem realmente necessita
para a resolução de um conflito. No dizer de José Renato Nalini prefaciando Lídia
Reis de Almeida Prado (2003, p. 11),
[...] para julgar um ser humano, o juiz precisa ser cada vez mais humano.
O excesso de técnica pode ajudar a distanciá-lo desse ideal. É uma
armadura a mais para afastá-lo do drama de que o processo está
impregnado.
A diferença de tratamentos dentro do sistema judiciário só faz dificultar o
acesso à justiça, já que a razão deveria predominar ao contrário do orgulho, mas
o que se percebe é que a forma de comunicação e diálogo torna extremamente
complicada a relação da Justiça com a população. Nesse sentido destaca o
Professor Luiz Guilherme Marinoni (2005, p.54-5) que:
[...] em nome da liberdade dos cidadãos que foi sustentada por muito
tempo, a neutralidade do juiz que, hoje, sabidamente é mito, supondo-se
ser possível um juiz despido de vontade inconsciente, ser a lei, como
pretendeu Montesquieu, uma relação necessária fundada na natureza
2586
das coisas, além de predominar no processo o interesse das partes, e
não o interesse público, na realização da “justiça”.
Esse raciocínio se estende aos demais cargos do judiciário, a advogados e
estagiários, pois a humildade está se perdendo ao decorrer do tempo,
contribuindo ainda mais para o desinteresse de toda a comunidade brasileira.
O valor das custas processuais também é muito discutido entre os
operadores já que a renda média do brasileiro é extremamente incompatível com
os valores atribuídos para mover uma ação judicial. Mesmo existindo a Defensoria
Pública, o posicionamento é claro quanto a que esses valores poderiam ser
ajustados e a diferença aplicada pelo Estado em outras áreas básicas de
necessidade mais urgente dos cidadãos. Portanto, a verdade, a virtude e a justiça
devem ser buscadas com o objetivo de alcançar o bem maior, e essas
ferramentas devem contribuir para que haja a integração de todos.
5 MÉTODOS PARA MINIMIZAR A AUTOEXCLUSÃO
As regras para o convívio social somente podem ser elaborados pelos
homens e nesse sentido todo o erro produzido é fruto da ignorância, enquanto
que toda a virtude conquistada é fruto de conhecimento. Com isso, a maior luta
brasileira e a humana é a melhoria na educação e a busca da virtude é a do
saber.
A pesquisa no bairro São Conrado não serviu somente para contribuir para
a melhoria da comunidade, mas para a própria melhoria pessoal. A população
anseia pela melhoria não só do sistema judiciário, mas de todas as áreas sociais.
O acesso à justiça deveria ser um direito natural, onde todos tivessem a
vontade de se interessarem pela harmonia do meio social. Para Allan Kardec
(1857 p. 876)
O critério da verdadeira justiça é de fato o de se querer para os outros
aquilo que se quer para si mesmo, e não de querer para si o que se
deseja para os outros, o que não é a mesma coisa. Como não é natural
que se queira o próprio mal, se tomarmos o desejo pessoal por norma ou
ponto de partida, podemos estar certos de jamais desejar ao próximo
senão o bem. Desde todos os tempos e em todas as crenças, o homem
procurou sempre fazer prevalecer o seu direito pessoal.
2587
Dessa forma, o que se anseia é a busca não só dos direitos pessoais, mas
também pelos direitos coletivos, pois todas as comunidades estão condicionadas
à lei e essa só deveria ser modificada com a evolução da razão humana. Nesse
caminho, ensina Tavares que: (2003 p. 09)
O princípio de acesso ao judiciário é um dos pilares sobre o qual se
ergue o Estado de Direito, pois de nada adiantariam as leis regularmente
votadas pelos representantes populares, se em sua aplicação,
pudessem padecer do desrespeito direto e não-controlável, seja por
parte da sociedade, seja pelos operadores oficiais de Direito. É
necessário que se estabeleça um órgão com a competência especifica
para proceder o controle da observância do princípio da soberania
popular, de respeito às leis.
A celeridade ao acesso à justiça será possível a partir do momento em que
estudantes de Direito, advogados, juízes, promotores e demais operadores da
justiça participarem de mutirões com o intuito de passar as principais informações
que a população muitas vezes tem dificuldade em ter.
A conciliação é uma das formas que tornam o acesso à justiça mais célere,
pois ela objetiva criar entre os sujeitos a ideia de paz social, diminuir o tempo de
litígio,
viabilizar
a
solução
de
conflitos
de
maneira
mais
simples
e
consequentemente diminuir drasticamente o número de processos.
O Direito não é para ser praticado dentro das faculdades, escritórios e
fóruns, mas sim nas ruas, tendo contato com as pessoas e não somente com
livros e processos.
A auto exclusão somente será reduzida quando o ensino jurídico for
ensinado a partir do ensino fundamental e médio, pois os cidadãos precisar
conhecer desde cedo seus direitos. É preciso incentivar crianças e adolescentes a
serem críticos, severos quanto a melhoria de vida. A principal estratégia é
estender a área de formação escolar para que ocorra uma elevação intelectual e
Gramsci (2004, p.19) afirma que:
A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis.
A complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser
objetivamente medida pela quantidade das escolas especializadas e
pela hierarquização: quanto mais extensa for a área escolar e quanto
mais numerosos forem os graus verticais da escola, tão mais complexo
será o mundo cultural, a civilização, de um determinado Estado.
O esclarecimento e sensibilização a respeito de direitos e deveres do
exercício da cidadania de forma individual e coletiva é fundamental para que a
auto exclusão minimize, pois o principal objetivo das ciências jurídicas é formar
2588
cidadãos críticos, e esses precisam repassar para toda a sociedade que os
direitos existem, leis foram criadas para serem cumpridas e que a educação é
necessária para formar cidadãos com autonomia e protagonistas de suas próprias
histórias, pois o Direito visa sempre o bem coletivo.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objeto da ciência da filosofia do Direito é a ideia do direito, o conceito e
sua realização. A exclusão jurídica está presente não somente nas comunidades
mais carentes, mas em cada lugar da cidade de Campo Grande -MS e com a
mais devida certeza em todo o país.
A clareza e o conhecimento das leis são fundamentais para minimizar esse
male que está presente em nossa sociedade, e o Direito deve ser usado como
instrumento humano de coesão social, visando a realização do bem comum, que
consiste em integrar todos os humanos, alcançando todas as virtudes.
O conhecimento é a base do agir ético, só erra quem desconhece, pois a
ignorância é o maior dos males e sua extinção se dá pela educação, sendo essa
tarefa de todos aqueles que possuem o menor conhecimento jurídico, pois a lição
da vida ética é a uma lição de justiça. Essa é uma lição de justiça comutativa a
mais perfeita realização de interações voluntárias.
Com certeza o estudo da exclusão jurídica proporcionou abranger outras
áreas que necessitam de atenção, porque a exclusão é gerada por fatores diários
vivenciados no dia-a-dia. A morosidade do judiciário, a falta de informação, a
credibilidade, a responsabilidade e a política somente são alguns desses fatores
que desestimulam a sociedade pela busca de seus direitos. Portanto, a exclusão
vai muito além das fronteiras do judiciário, gerando também exclusão política e
social. Toda essa exclusão contribui para a formação de cidadãos alienados,
despreocupados com a melhoria de vida e desenvolvimento do país. Um país rico
não é aquele que possui a maior quantidade de dinheiro, mas sim aquele país
que investe nas pessoas, na educação, na saúde, nas condições básicas de vida
e acima de tudo na valorização da justiça, pois justo é aquele que se preocupa
com o outro e não somente com si próprio.
2589
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XIBERRAS, M. Les théories de L’exclusion. Paris: Meridiens-Klincksieck, 1993.
2591
A JUSTIÇA ITINERANTE COMO POLÍTICA DE DEMOCRATIZAÇÃO DO
ACESSO À JUSTIÇA: ESTUDOS DE CASO DO BAILIQUE (AP) E DO
COMPLEXO DO ALEMÃO (RJ)
Leslie Shérida Ferraz
RESUMO: O objetivo deste artigo é avaliar a potencialidade da Justiça
Itinerante para promover o acesso à Justiça, sobretudo das camadas mais
fragilizadas da população. Para tanto, apresenta dois estudos de caso:
arquipélago do Bailique e Complexo do Alemão. A análise é norteada pela
capacidade dos programas em suplantar os principais obstáculos ao acesso
propostos pela doutrina: longas distâncias, restrições financeiras, falta de
advogados e de cultura legal. Os dados foram coletados em diversas pesquisas
empíricas conduzidas sob minha coordenação13.
PALAVRAS-CHAVE: acesso à justiça; justiça itinerante, pesquisa empírica em
direito.
1 INTRODUÇÃO
No início dos anos 1990, instituiu-se, no Brasil, uma criativa modalidade de
prestação jurisdicional: a Justiça Itinerante, fóruns móveis adaptados em veículos
(ônibus, vans e barcos) que se deslocam até áreas remotas ou não atendidas
pelo Judiciário.
O objetivo deste artigo é avaliar a potencialidade da Justiça Itinerante para
promover o acesso à Justiça das camadas desprivilegiadas da população14. Para
tanto, serão apresentados dois estudos de caso: Complexo do Alemão (Rio de
Janeiro) e arquipélago do Bailique (Amapá).
13
Junho de 2005: Pesquisa nacional sobre Juizados Especiais Cíveis (CEBEPEJ/Secretaria de
Reforma do Judiciário); Setembro de 2011: Pesquisa de campo exploratória sobre a Justiça
Itinerante, desenvolvida pela autora com recursos recebidos pelo prêmio nacional de Estatísticas
Judiciárias/CNJ; Pesquisa nacional sobre Justiça Itinerante (Ipea/ProRedes, no prelo).
14
Serão utilizados os relatórios regionais provisórios da pesquisa “Democratização do acesso à
Justiça e efetivação de direitos: a Justiça Itinerante no Brasil”, conduzida sob minha
coordenação, com financiamento do Ipea Proredes. O relatório da região Sudeste foi elaborado
por Eduardo Caetano da Silva; o da região Norte, por Juliana Pedro, Michelly Rodrigues e Sônia
Ribeiro.
2592
A escolha se justifica pelo alto grau de institucionalização dos programas;
por atenderem uma população de baixa renda e escolaridade, que gravita à
margem dos serviços estatais; e, sobretudo, pelo seu contraste: o projeto do
Amapá atende a uma comunidade isolada, que vive nas margens do Rio
Amazonas, enquanto o programa do Rio de Janeiro funciona em um bairro
extremamente populoso, encravado na segunda maior metrópole do país. Apesar
disso, contam com um elemento comum: um histórico recente de ausência
sistemática do Estado.
Inicialmente, descrevo os principais óbices ao acesso à Justiça e traço um
panorama geral da itinerância no Brasil. Após, apresento os estudos de caso, que
contemplam uma descrição do local e do programa de itinerância, seguida da
avaliação da sua potencialidade em promover o acesso à Justiça, norteada pelos
seus principais obstáculos. Ao final, trago breves reflexões conclusivas.
2 ÓBICES AO ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL
O acesso à Justiça evidencia a tensão existente entre a igualdade jurídicoformal e as desigualdades socioeconômicas15 e ressalta a importância de efetivar
– e não apenas proclamar – os direitos dos cidadãos. Neste contexto, a detecção
de óbices ao acesso e a análise de mecanismos aptos a suplantá-los é um
método bastante eficaz para embasar a formulação de políticas de inclusão e
efetivação dos direitos.
No Brasil, os desafios mais óbvios ao acesso à Justiça são as grandes
dimensões geográficas e as profundas disparidades econômicas. Não é por
acaso que a distribuição de demandas concentra-se nos grandes centros e,
ainda, em poucos litigantes (como bancos, empresas de telefonia e entidades
15
Boaventura de Sousa Santos, Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, 3
ed., São Paulo: Cortez, p. 168-171.
2593
governamentais), que se utilizam da Justiça de forma estratégica16, beneficiandose, inclusive, de sua demora17.
Contudo, é preciso ampliar o espectro da análise: além dos obstáculos
territorial e financeiro, também podem ser destacados óbices de ordem política,
processual e psicológico-cultural.
Os óbices de cunho político tangem à ausência de uma correta
organização do sistema de justiça pelos Tribunais18. Muitos municípios sequer
possuem fóruns ou Defensoria Pública – órgão responsável pela assistência
judiciaria gratuita no país.
Ironicamente, o próprio processo, é um obstáculo ao acesso à justiça – em
virtude da linguagem técnica, da formalidade excessiva e dos mecanismos
processuais incompreensíveis, sobretudo ao público leigo19.
A inabilidade do Judiciário em produzir respostas adequadas aos diversos
tipos de conflitos que se apresentam (como pequenas causas e questões
coletivas) também configura um importante óbice. Ademais, graças ao
crescimento do número de demandas20 e da inabilidade em solucioná-las, além
de um modelo processual antiquado e um inchado sistema recursal, a Justiça
brasileira está cada vez mais congestionada21, lenta22 e ineficiente.
16
Relatório 100 maiores litigantes. Conselho Nacional de Justiça, Departamento de Pesquisas
Judiciárias (DPJ), Brasília: 2012, p. 08. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisasjudiciarias/Publicacoes/100_maiores_litigantes.pdf. Último acesso: 22 jun. 2013.
17
Marc Galanter, Why the ‘haves’ come out ahead: speculations on the limits of legal change. Law
and society review, v. 9, n. 1, p. 95-160, 1974.
18
Héctor Fix-Fierro. Courts, Justice and Efficiency: a socio-legal study of economic rationality in
adjudication. Oxford and Portland, Oregon: Hart Publishing, 2003, p. 211.
19
E. Johnson Jr.. Promising institutions: a synthesis essay. In: Mauro Cappelletti; J. Wesner (ed.),
Access to justice, v. 2: Promising institutions, t. 2, p. 878.
20
Em 2011, a Justiça brasileira (estadual, federal e trabalhista) recebeu 26.241.166 ações; em
2012, foram 28.215.812 – aumento de 7,5%. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números
2013:
ano-base
2012.
Brasília:
CNJ,
2013,
p.
15.
Disponível
em
http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relatorio_jn2013.pdf. Acesso: 18
dez 2013 e Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2012: ano-base 2011. Brasília:
CNJ,
2012.
Disponível
em
http://www.cnj.jus.br/images/pesquisasjudiciarias/Publicacoes/rel_completo_estadual.pdf. Acesso: 30 ago. 2013.
21
Os índices de congestionamento da Justiça brasileira são extremamente altos: 47% (Justiça do
Trabalho), 65% (Justiça Federal) e 73% (Justiça estadual). Fonte: Justiça em Números 2013:
ano-base 2012, cit, p. 314-326-331.
22
Uma demanda judicial que seja julgada por todas as instâncias pode levar mais de dez anos
para ser finalizada.
2594
Porém, o aumento do número de demandas não significa que pessoas
antes excluídas estejam acessando o sistema: como informado, no Brasil, a
distribuição de demandas concentra-se apenas em algumas instituições, como
grandes empresas e entidades governamentais23.
Quanto ao aspecto psicológico-cultural, a mera ideia de ir aos Tribunais
atemoriza muitas pessoas24. Quanto mais baixa a classe econômica de uma
pessoa, maior é o seu distanciamento do sistema de justiça – por insegurança e
medo de sofrer represálias até o desconhecimento completo do direito material ou
da forma de reclamar por ele25.
No que toca ao Brasil, esse problema é ainda mais grave, pois grande
parcela de sua população gravita à margem das prestações estatais. A
exclusão social se expressa em indiferença, por parte dos próprios
segregados, em relação ao sistema de justiça. Esse afastamento,
justificado por séculos de abandono dos “subcidadãos”, compromete a
formação da identidade da Nação: não apenas os opressores, mas as
próprias pessoas (escravos, pobres, minorias étnicas) tinham e ainda
26
têm uma visão redutora de si mesmas .
Assim, a despeito da crescente movimentação processual no Brasil, ainda
há muitos cidadãos afastados do Judiciário – por renúncia, desconhecimento do
direito ou incapacidade de lutar por ele. O sistema de Justiça não apenas
reproduz, mas também acentua, os intensos abismos sociais: os grupos
socialmente vulneráveis são, no Brasil, também os grupos legalmente fracos e
desprivilegiados27.
3 A JUSTIÇA ITINERANTE NO BRASIL: BREVE PANORAMA
As
primeiras
experiências
informais
de
itinerância
teriam
sido
desenvolvidas em 1992, em barcos, por iniciativas individuais de juízes do Amapá
e Rondônia, preocupados com o isolamento das populações ribeirinhas. Após sua
institucionalização pelo Tribunal de Justiça do Amapá, em 1996, diversos outros
23
Relatório 100 maiores litigantes, cit., p. 08.
Héctor Fix-Fierro, Courts[...], cit., p. 05.
25
Boaventura de Sousa Santos, Pela mão de Alice[...], cit., p. 168-171.
26
Orlando Villas Bôas Filho. Uma abordagem sistêmica do direito no contexto da modernidade
brasileira, 2006. Tese (Doutorado em Direito), Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, p. 332-42.
27
Mauro Cappelletti; Bryant Garth. Access to justice and the welfare state: an introduction. In:
CAPPELLETTI, Mauro (ed.). Access to justice and the welfare state. Alphen aan den Rijn:
Sijthoff; Bruxelles: Bruylant; Firenze: Le Monnier; Stuttgart: Klett-Cotta, 1981, p. 03.
24
2595
Tribunais estaduais criaram seus próprios programas, inspirados por seus bons
resultados.
Em 2004, a Emenda Constitucional n. 45 determinou que todos os
Tribunais do país criassem projetos de itinerância e a legislação ordinária ordenou
a criação de Juizados Especiais Itinerantes, no âmbito federal e estadual. Embora
as esferas federal e trabalhista não tenham observado o preceito constitucional,
praticamente todos os Tribunais estaduais do país instituíram programas de
itinerância, apresentados na tabela 01, a seguir:
Tabela 1: Modalidades de Justiça Itinerante/Justiça Estadual - Brasil
Modalidade
Características
Estados
Acre, Amapá, Acre, Alagoas,
Terrestre/ôni
bus (15)
Ônibus adaptados circulam em regiões
Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Mato
pobres, rurais e/ou distantes dos grandes
Grosso do Sul, Pará, Piauí, Rondônia,
centros
Roraima, Rio de Janeiro, Rio Grande do
Norte e São Paulo
Terrestre/van
(4)
Fluvial/barco
(4)
Vans adaptadas atendem exclusivamente
conflitos decorrentes de acidentes de
Ceará, Paraná, Sergipe e Tocantins
trânsito sem vítima.
Barcos adaptados atendem populações
isoladas, inclusive aldeias indígenas e
Amapá, Pará, Rondônia e Roraima
comunidades ribeirinhas
Aérea/avião
O avião serve para transportar equipes a
(1)
locais ermos do estado
Pará
Não há veículos: a Justiça é
Descentraliza
descentralizada (Casas de Cidadania,
Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais,
ção da
Balcão de Direitos) ou há deslocamento
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
Justiça (6)
da equipe (Justiça no Bairro, Justiça
do Sul
Comunitária)
Sem
Estados que não contam com programas
Goiás, Maranhão, Mato Grosso,
2596
Aérea
programas
ativos
Pernambuco e Paraíba
Fluvial
(5)
Fonte: Elaboração própria (Ipea, 2014).
Terrestre
O mapa 01 ilustra os dados apresentados na tabela acima, e evidencia
Van/trânsito
que, com exceção de cinco estados, todos os demais contam com programas de
itinerância. Alguns Tribunais possuem mais de um programa, buscando
maximizar seu alcance (Amapá, Bahia, Pará, Paraná, Rondônia
Justiçae Roraima).
descentralizada
Mapa 01: Modalidades de itinerância – Tribunais de Justiça estaduais
Sem programa
Laranja:
programas
de
descentralização
da Justiça (fora do
Fórum) + Justiça
Itinerante
de
Trânsito
Azul:
programas
de
descentralização
da Justiça (fora do
Fórum)
ES
também TST
Bege:
Itinerante
Justiça
de
Trânsito
Fonte: Elaboração própria, a partir de Ipea,
2014. não
Vermelho:
possui projeto de
itinerância
4 ESTUDO DE CASO: O PROGRAMA DE JUSTIÇA ITINERANTE TERRESTRE
DO COMPLEXO ALEMÃO/RIO DE JANEIRO
4.1 O complexo do Alemão
O complexo do Alemão situa-se na Zona Norte do Rio de Janeiro (a
segunda maior metrópole do país) e conta com uma população de 60.555
2597
pessoas. Composto por um conjunto de morros de urbanização precária, o bairro
tornou-se uma das áreas mais violentas da cidade, a partir de 1990. O tráfico de
drogas e o crime organizado permaneceram no comando do bairro até 2010,
quando se iniciou o processo de instalação de Unidades de Polícia Pacificadora
(UPP)28, com retomada do território pelo governo com o apoio do Exército
Nacional.
Foto 01: Visão panorâmica do Complexo do Alemão29
Ironicamente, o Complexo do Alemão, com sua urbanização descontrolada
e precária, é uma das primeiras visões dos turistas que desembarcam no
aeroporto internacional do Galeão. Sob o pretexto de funcionar como barreira
acústica para os moradores e/ou de proteger os transeuntes contra assaltos,
grande parte da comunidade é cercada por muros de acrílico com desenhos que
dificultam a visibilidade do local30.
O comando do crime organizado impossibilitou o Estado de estabelecer
sua presença no local durante décadas. Serviços como coleta de lixo e
28
UPP é uma pequena força da Polícia Militar que trabalha com princípios da polícia de
proximidade e tem sua estratégia fundamentada na parceria entre a população e as instituições
da área de segurança pública. Disponível em: http://www.upprj.com/index.php/o_que_e_upp.
Acesso: 22 maio 2014.
29
http://www.cliqueseguro.com/passeio-complexo-do-alemao-p190. Acesso: 22 maio 2014.
30
http://apatrulhadalama.blogspot.com.br/2010/03/rio-de-janeiro-barreiras-acusticas-sao.html
Acesso: 22 maio 2014.
2598
fornecimento de energia elétrica sempre foram limitados e até hoje ainda são
mais restritos do que na cidade do Rio de Janeiro.
Tabela 2 – Indicadores sociais: Complexo do alemão x Rio de Janeiro
Complexo do
Indicador
Alemão
Rio de Janeiro
População
60.555
6.320.446
Densidade demográfica
341,9
110,7
Coleta de lixo adequada
91,8%
99,3%
54,3%
92,6%
Energia elétrica de outras fontes
8,6%
1,4%
Analfabetismo entre maiores de 15 anos
7,7%
2,9%
Renda – até 1/8 salário mínimo31
1,4%
0,5%
Renda – 1/8 a 1/4 salário mínimo
7,1%
2,8%
Renda – ¼ a ½ salário mínimo
23,8%
10,8%
Renda – ½ a 1 salário mínimo
39,1%
23,6%
Renda – 1 a 2 salários mínimos
19,3%
23,7%
Renda – mais de 2 salários mínimos
2,6%
34,1%
Energia distribuída com medidor por
companhia elétrica
Fonte: Instituto Pereira Passos32
Além de pobre (quase 70% dos moradores vivem com renda inferior a um
salário mínimo) e populoso (341,9 habitantes/m2, superando em três vezes os
índices da cidade do Rio de Janeiro), o bairro conta com altos índices de
analfabetismo da população adulta (7,7% entre maiores de 15 anos) e apresenta
31
O salário mínimo nacional vigente para o ano de 2014 é de R$ 724,00, equivalente a 326,32
dólares americanos ou 239,45 euros (cotação oficial de 23/05/2014).
32
http://www.uppsocial.org/wp-content/uploads/2014/01/1-Panorama-dos-Territórios-UPPsComplexo-do-Alemão1.pdf, Acesso: 20 mai. 2014
2599
o pior IDH (índice de desenvolvimento humano) da cidade do Rio de Janeiro:
0,711 (126ª posição)33.
4.2 A Justiça Itinerante no Complexo do Alemão
A Justiça Itinerante terrestre do estado do Rio de Janeiro funciona desde
2004 com a circulação de sete ônibus, que se revezam por dezenove localidades.
Os veículos, adaptados para as atividades da Justiça, são divididos em cinco
pequenas seções: sala de espera, cartório, sala de audiência, copa e banheiro. A
periodicidade do projeto em cada localidade é, em regra, semanal (em alguns
casos, quinzenal).
Em observância à política de penetração do Estado em áreas tomadas pelo
tráfico, em 2010 foram instaladas as UPPs do Complexo do Alemão. Dando
continuidade a esta política, o programa de Justiça Itinerante passou a funcionar
em julho de 2011 – atuando todas as sextas-feiras, das 9h00m às 15h00m,
sempre no mesmo local.
Foto 02: Vista lateral do ônibus da Justiça Itinerante do Rio de
Janeiro34/Foto 03: Atendimento inicial.
Na lateral externa direita do veículo, posicionam-se mesas e cadeiras
plásticas sob um toldo retrátil, onde a Defensoria Pública do Rio de Janeiro
disponibiliza serviços de orientação pré-processual e assistência jurídica. As
audiências, presididas pelo juiz, são realizadas dentro do veículo.
33
Instituto
Pereira
Passos,
Prefeitura
do
Rio
de
Janeiro.
Disponível
em:
Armazemdedados.rio.rj.gov.br – 1172_indicededesenvolvimentohumanomunicipal_2010. Acesso
em: 10 mar. 2014.
34
http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/97204 . Acesso: 10 abr. 2014.
2600
O ônibus estaciona na Escola Tim Lopes, uma área bastante central,
acessada por linha regular de ônibus. Apesar de dispor de serviços nas
proximidades (mercados, lanchonetes), não há estrutura própria que ofereça nível
mínimo de conforto para o acolhimento dos usuários, que permanecem por horas
em pé ao redor dos ônibus, expostos ao tempo.
Com exceção de dois servidores, que atuam exclusivamente no Complexo
do Alemão, a equipe da Justiça Itinerante (inclusive o juiz) é compartilhada com o
Fórum mais próximo – o que reduz os custos do projeto35. Os juízes, que dedicam
um dia da semana à itinerância, são selecionados pela coordenação mediante
aqueles que possuem um perfil adequado e demostram interesse em participar.
O processamento das ações é feito de forma separada dos demais, no
denominado “cartório-base”.
O programa de Justiça Itinerante do Rio de Janeiro é muito bem
estruturado: existe há dez anos e vem se consolidando e expandindo; possui
coordenação e orçamento próprios; disponibiliza atendimento semanal, com datas
fixas de atendimento. O calendário anual é amplamente divulgado, por meio de
cartazes e no site da instituição. Abrange quinze localidades na capital e região
metropolitana do Rio de Janeiro e quatro no interior. Conta, ainda, com uma
sólida parceria com a Defensoria Pública, responsável pela orientação inicial e
acompanhamento de todo o processo judicial.
De outra sorte, a estrutura física disponibilizada à população é bastante
frágil. Não há garantia da privacidade no primeiro atendimento: os usuários
podem ser ouvidos por qualquer pessoa que se encontre no local. Este problema
é ainda mais grave se considerarmos que, em regra, as pessoas atendidas pelo
programa residem em uma mesma comunidade e conhecem umas às outras. Não
há estrutura mínima disponibilizada pela itinerância: as pessoas não tem abrigo,
lugar para sentar, banheiros ou água disponível.
Sobre a acessibilidade de portadores de deficiência, os veículos não
contam com qualquer tipo de adaptação. O acesso ao ônibus se dá por uma
escada com grandes degraus e as estreitas dimensões internas inviabilizam a
35
R$ 4.280.280,36, um dos maiores do país, mas que representa uma ínfima parcela do
orçamento geral do TJRJ(R$ 3.348.899.356,00): apenas 0,13%.
2601
livre circulação pelo local. Perguntados sobre como atenderiam a um cadeirante,
serventuários relataram que, em casos extremos, são os juízes ou funcionários
que se deslocam para a área externa do ônibus para prestar o atendimento.
Serviços
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro disponibiliza serviços de
informação, orientação e assistência jurídica durante toda a tramitação judicial. Os
serviços judiciais disponibilizados pela Justiça Itinerante, bem como a assistência
jurídica, são totalmente gratuitos. Neste último caso, a renda do usuário é um
fator limitante para o atendimento.
Competência material
A Justiça Itinerante do Rio de Janeiro atende aos seguintes casos:
•
Direito de família;
•
Registros civis (nascimento, casamento, óbito, etc);
•
Direito do consumidor;
•
Causas cíveis em geral;
•
Juizados Especiais Cíveis36.
São realizados, ainda, casamentos (individuais e comunitários) e fornecida
gratuidade para emissão de segunda via de documentos37.
Produtividade
Desde sua criação, o programa de Justiça Itinerante do Complexo do
Alemão teve o número de atendimentos consideravelmente ampliado: de 2012
36
Engloba demandas de menor complexidade ou valor, limitada a 40 salários-mínimos (cerca de
13.000 dólares americanos ou 9.500 euros). Os valores convertidos neste artigo tomam com
base o câmbio de 23.05.2014.
37
Também há registros de demandas de competência do Juizado Especial Criminal e violência
doméstica, mas estes casos não são propriamente processados pela JI, que apenas realiza o
atendimento/orientação e encaminha a parte para o órgão adequado.
2602
para 2013, o número de atendimentos praticamente dobrou, atingindo a marca de
6.421 – equivalente a mais de 10% da população local.
Tabela 3: Produtividade do programa de itinerância do Complexo do Alemão
Natureza da demanda
2011*
2012
2013
2ª via de documentos
894
1287
1753
Família
182
378
916
JEC
38
199
825
Registros civis
16
91
741
-
200
496
Infância
0
0
117
Cível
8
5
04
JECrim
0
0
0
Violência doméstica
-
0
0
Informações/orientações
484
1.200
1569
Atendimentos (totais)
1.622
3.360
6.421
Conversão de união estável em
casamento
Fonte: Ipea, 201438
Os serviços mais procurados tangem a emissão de segunda via de
documentos (27,3%), causas de família (14,3%) e Juizados Especiais Cíveis
(12,8%). Também é relevante o volume de registros civis39.
Gráfico 01 – Evolução das demandas – Complexo do Alemão (2011 a 2013)
38
2011: desde julho. https://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/institucional/dir-gerais/dgjur/deinp/deinp/divjus-itinerante-aces-just. Acesso em: 10 maio 2014.
39
Em 2013, merece destaque o alto número de feitos de infância e juventude, que não aparecia
nos anos anteriores. Frise-se que, embora estas demandas não sejam processadas pela Justiça
Itinerante, a Defensoria faz o devido encaminhamento dos casos aos órgãos competentes.
2603
7000
6000
5000
4000
3000
2000
1000
0
2011
2012
2013
Fonte: Elaboração própria, a partir de Ipea, 201440.
4.3 Superação dos obstáculos ao acesso à Justiça
Obstáculos territoriais
No Complexo do Alemão, o afastamento decorrente das grandes distâncias
não é um problema, já que a comunidade localiza-se na cidade do Rio de Janeiro.
O isolamento, ao contrário, decorre da dificuldade de penetração dos serviços
estatais durante duas décadas, em razão do controle da área pelo crime
organizado. Neste sentido, a instalação de programas de Justiça Itinerante desde
2011, aliada a uma política de penetração do Estado no local (UPP), é, sem
dúvida, uma ferramenta bastante eficaz para superar o isolamento da área.
Obstáculos financeiros
Como visto acima (tabela 02), a população que reside no Complexo do
Alemão possui baixa renda: cerca de 70% dos moradores vive, no máximo, com
um salário mínimo por mês (equivalente a 326 dólares americanos ou 239,45
euros), dos quais 8,5% não recebem mais de ¼ deste valor (81,58 dólares
americanos ou 59,86 euros).
40
Idem, ibidem.
2604
Concentrando
seus
escassos
rendimentos
em
itens
de
primeira
necessidade (alimentação e moradia), a população não dispõe de recursos para
arcar com orientação pré-processual, contratação de advogado ou custas
processuais. Até mesmo as despesas para acompanhamento da demanda
(transporte, alimentação, perda do dia de trabalho) representam um impedimento
ao acesso à Justiça.
Deste modo, ao disponibilizar tais serviços gratuitamente, deslocando-se
até a comunidade, o programa de Justiça Itinerante do Rio de Janeiro mostra-se
capaz de suplantar os óbices econômicos ao acesso.
Obstáculos processuais
As ações processadas na Justiça Itinerante observam as mesmas regras
do processo tradicional brasileiro, caracterizado por sua formalidade excessiva e
incontáveis recursos. As demandas de menor complexidade e valor seguem o rito
mais informal e simplificado dos Juizados Especiais Cíveis.
Embora, ocasionalmente, possam ser firmados acordos entre as partes,
não existe um núcleo especializado neste tipo de solução do litígio. Deste modo,
pode-se afirmar que a solução oferecida pela Justiça Itinerante do Rio de Janeiro
é, eminentemente, processual.
Tabela 4: Forma de solução dos litígios - programa de itinerância do Complexo do
Alemão
Ano
Novas ações
Sentenças
Acordos
2011
408
389
20
2012
659
507
39
Fonte: Ipea, 2014.
A Justiça Itinerante do Rio de Janeiro não concentra esforços em formas
alternativas de solucionar o conflito, notadamente a conciliação. Os escassos
dados coletados apontam que os acordos são uma medida excepcional: no ano
2605
de 2011, das 408 novas ações ajuizadas, apenas 20 (4,9%) foram solucionadas
por acerto; em 2012, o índice foi um pouco maior: 39 acordos (5,9%), como
demonstra o gráfico 02, abaixo.
Gráfico 02: Forma de solução dos litígios - programa de itinerância do
Complexo do
Alemão
Sentenças
Acordos
Fonte: Elaboração própria, a partir de Ipea, 2014.
De modo geral, o processo, bem como as audiências, não apresentam
grandes diferenças em relação ao rito comum encontrado no Fórum. De outra
sorte, é preciso apontar que, nas visitas de campo, pode-se observar a
preocupação, por parte dos atendentes, com a comunicação adequada ao perfil
do público atendido e, ainda, com a flexibilidade procedimental, patente nas
tentativas de adaptar ritos e práticas jurídicas às condições de cada localidade.
Obstáculos psicológicos/culturais
O Complexo do Alemão tem o pior índice de desenvolvimento humano da
cidade do Rio de Janeiro. A população, em grande parte analfabeta e
desinformada, desconhece seus direitos civis: uma pesquisa empírica realizada
na região metropolitana do Rio de Janeiro revelou que os entrevistados não
sabiam enumerar ao menos três deles. Ao lado desta constatação, apurou-se que
2606
a população marginalizada sentia falta da Justiça, mas não se utilizava dela por
desconhecimento ou pela ausência de cultura política participativa41.
No caso do Complexo do Alemão, havia um fator adicional: por medo da
violência, os oficiais de Justiça se recusavam a cumprir ordens judiciais no local e
os líderes do tráfico proibiam a população de ir até a Justiça, vigorando um
verdadeiro poder paralelo.
Assim, a presença da Justiça no local, aliada à disponibilização de serviços
de esclarecimento e orientação jurídica anterior ao ajuizamento da demanda, é
medida eficaz para ajudar no processo de empoderamento e conscientização da
população local acerca de seus direitos, bem como da forma de lutar por eles.
Quanto à dificuldade em procurar o Judiciário para solucionar seus
problemas jurídicos, a Justiça Itinerante parece ser apta a, pouco a pouco,
reverter este quadro. O crescente número de atendimentos e ajuizamento de
demandas em geral sugere o sucesso do programa. A grande procura pela
emissão de 2ª via de documentos e de registros civis revela o desejo de
regularização documental, primeiro passo para que os indivíduos se tornem
cidadãos e sejam aptos a receber os benefícios sociais do governo.
As entrevistas com os usuários apontam que o programa tem uma ótima
aceitação: a maioria deles procurou a Justiça por indicações positivas de amigos
ou parentes e a notícia corrente na comunidade é que os serviços são mais
efetivos e céleres do que a Justiça comum.
Curiosamente, um dos pontos mais sensíveis do programa – sua estrutura
precária – não incomoda os usuários, parecendo até, em certa medida, aproximálos da Justiça, despojada de suntuosos palácios, que acabam por inibir o público.
41
Dulce Chaves Pandolfi. Percepção dos direitos e participação social. In: Dulce Chaves Pandolfi
[et al]. (orgs). Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999,
p. 61-76. Disponível em: <www.cpdpc.fgv.br>. Acesso em: 10 fev. 2014, p. 45-58.
2607
5 ESTUDO DE CASO: O PROGRAMA DE JUSTIÇA ITINERANTE FLUVIAL DO
ARQUIPÉLAGO DO BAILIQUE/AMAPÁ
5.1 O arquipélago do Bailique
O arquipélago do Bailique é composto por oito ilhas e cerca de 40
comunidades. Situado no extremo norte do país, fica a 170 km da capital do
estado, Macapá, com acesso exclusivo pelo Rio Amazonas42. Os ribeirinhos
vivem, basicamente, da pesca e do cultivo do açaí e palmito. Em razão de seu
isolamento, inexistem dados apurados sobre o perfil da população; sequer se
sabe, ao certo, o número de habitantes do arquipélago, estimado entre 7.000 e
15.000 pessoas.
Fotos 04 e 05: Arquipélago do Bailique43
Durante muito tempo, as comunidades ribeirinhas do Bailique permaneceram
esquecidas, sem uma presença efetiva do Estado. Este quadro começou a mudar
em 1992, quando surgiram as primeiras experiências de Justiça Fluvial
desenvolvidas por iniciativas de juízes locais, posteriormente oficializadas pelo
Tribunal (1996). Houve, neste caso, um processo curioso: a presença do Estado
não se deu por iniciativa do Poder Executivo, mas sim do Poder Judiciário, que
firmou parcerias para disponibilizar, além da prestação jurisdicional, outros
serviços à população, como atendimento médico e odontológico.
42
43
http://pt.wikipedia.org/wiki/Arquip%C3%A9lago_do_Bailique. Acesso: 13 maio 2014.
Todas as fotos sem referência à autoria são de Leslie Ferraz.
2608
5.2 A Justiça Itinerante no arquipélago do Bailique
Com o barco “Tribuna: a Justiça vem a bordo”, doado pela Fundação
Banco do Brasil, a Justiça alcança a população ribeirinha do arquipélago do
Bailique, praticamente isolada da capital Macapá, à qual pertence. O barco
“Tribuna” – construção típica da região amazônica – tem dois andares e
capacidade para 70 pessoas. A tripulação dorme em redes que, durante o dia,
dão lugar a mesas, cadeiras, impressoras e computadores portáteis, vertendo o
barco em um Tribunal flutuante.
Foto 06: Tribuna: a Justiça vem a bordo
O barco estaciona em locais pré-determinados, sendo acessado pela
população por caminhada ou pequenas embarcações. O acesso ao veículo da
Justiça é difícil, pois é necessário pular sua lateral ou caminhar por uma tábua
estreita e instável. Interessante notar que os usuários da região, inclusive idosos e
crianças, aparentam estar acostumados com esse tipo de acesso, pois
embarcações deste tipo compõem o seu cotidiano – tanto é que não há registro
de reclamações acerca deste ponto. O espaço utilizado dentro do barco para
atendimentos aos usuários é pequeno, causando dificuldade de circulação.
Novamente, embora a acessibilidade seja um ponto crítico do projeto, os usuários
revelam não se incomodar com este fato.
De 1996 a 2005, o programa foi coordenado pela mesma juíza, Dra. Sueli
Pini, extremamente vocacionada para a função. Ela conta que foi procurada em
2609
seu gabinete por um homem cansado e faminto, que viajava a dois dias, vindo do
Bailique, em busca de Justiça. Impressionada com o fato, empenhou-se
pessoalmente na institucionalização do programa, sob a alegação de que o
magistrado não pode ficar fechado em seu gabinete.
Seu papel na consolidação do projeto é crucial. Durante o período em que
esteve na sua coordenação, foi extremamente atuante: passava horas
conversando com os ribeirinhos em suas casas, escolas, associação de
moradores, e, principalmente, nas ruas dos povoados. Conhecia praticamente
todos os habitantes não apenas por seus nomes, mas por sua história pessoal,
pois, na grande maioria dos casos, era responsável pelos registros, casamentos,
separações, pensões alimentícias, problemas com vizinhos, aposentadorias e
inventários daqueles seres humanos que, aos poucos, foram se tornando
cidadãos.
Contudo, em razão de perseguições políticas, a magistrada foi afastada
injustificadamente da função em 2005, e o projeto passou a ser coordenado por
um servidor do Tribunal. Desde então, não há mais um magistrado exclusivo para
o programa: a cada jornada, convoca-se um juiz diferente, selecionado dentre os
ingressantes na carreira.
A convocação obrigatória e rotatividade dos juízes compromete o bom
funcionamento da JI, pois desconsidera a necessidade de compatibilizar seu perfil
a esta modalidade bastante peculiar de prestação jurisdicional. Ademais, os juízes
são novatos e não tem vivência suficiente na carreira. Para enfrentar as
peculiaridades do Bailique, é preciso se despir das formalidades, das vestimentas
e do conforto dos seus gabinetes.
No programa visitado em 2013, a juíza substituta (que participava pela
primeira vez da Jornada Itinerante) demonstrou não ter interesse pela causa.
Alguns servidores reclamaram da sua atuação, pois, ao invés de proferir decisões
em audiência, optava por designá-las aos cartórios de Macapá. Com os usuários,
a magistrada frequentemente alterava a voz, como um meio de impor respeito.
Informalmente, declarou que, por vontade própria, não participaria deste tipo de
projeto. Reclamou das instalações e das condições de trabalho, demonstrando
2610
desânimo e abatimento físico nos últimos dias, o que naturalmente refletiu na
produtividade da Jornada.
Atualmente, o projeto de itinerância fluvial – que chegou a ser suspenso em
alguns períodos – encontra-se em funcionamento, mas de forma precária. O
barco está sucateado e o Tribunal aluga uma embarcação comercial, que não
conta com as adaptações necessárias.
Quanto ao processamento dos feitos, as ações derivadas das jornadas, ao
retornarem para a comarca de Macapá, são processadas juntamente com todos
os demais feitos do Tribunal, o que prejudica o andamento das causas.
Serviços
A Defensoria Pública do Amapá disponibiliza serviços gratuitos de
orientação pré-processual e, ainda, assistência completa no ajuizamento e
acompanhamento de demandas judiciais. O processamento da demanda também
é gratuito: a parte é isentada do pagamento de quaisquer custas ou ônus
processuais.
Além disso, desde sua criação, a Justiça Itinerante sempre procurou firmar
acordos com instituições parceiras, para garantir serviços adicionais à população
atendida, tais como:
•
Expedição
de
documentos
de
identidade,
regularização
de
documentos gerais e eleitorais;
•
Atendimento médico e odontológico;
•
Distribuição de medicamentos;
•
Fornecimento de kit para purificação da água coletada do rio
Amazonas;
•
Palestras sobre cuidados com a saúde e orientação para tratamento
da água consumida;
•
Projeto mala mágica, que objetiva estimular a leitura de livros
infantis.
•
Exibição de filmes (projetados em lençóis);
2611
•
Casamentos comunitários.
Com o enfraquecimento do programa após a saída da juíza Sueli Pini, os
serviços adicionais foram suspensos, sob a infundada alegação de falta de
verbas.
Foto 07: Serviços agregados – exibição de filme infantil em lençol/
Foto 08: Atendimento odontológico em consultório improvisado
Competência material
O programa de itinerância do Amapá tem competência ampla e irrestrita.
Com exceção de casos de adoção internacional, pode conciliar, processar e julgar
todas as demandas de natureza cível, criminal, infância e juventude, família e
registros públicos de competência da Justiça estadual.
Produtividade
Não há dados precisos acerca da produtividade do programa, havendo
apenas relatórios esparsos relativos a algumas jornadas, o que impede a análise
de seu comportamento histórico. No ano de 2012, as cinco jornadas realizadas
produziram os seguintes resultados:
Tabela 5: Produtividade do programa de itinerância do Bailique (principais
demandas) no ano de 2012
2612
Natureza da demanda
2012
Família
96
Cível
86
Juizado Especial Criminal
79
Certidões/2ª via de documentos
21
Registros civis
06
Inventário
02
Adoção
01
Fonte: TJAP/Ipea, 2014
A maior procura consiste, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro, ao
direito de família (pensão alimentícia, guarda de filhos, separação, etc) e
demandas cíveis, seguida por pequenos conflitos de ordem criminal, processados
pelo rito simplificado dos Juizados.
Conforme apurado em entrevistas com operadores do sistema, nos
primeiros anos de funcionamento do programa, a principal procura era pelos
serviços de registros e emissão documental, pois era grande o contingente da
população que não tinha sequer certidão de nascimento – o que inviabilizava o
exercício de qualquer outro direito e a percepção de benefícios sociais. Com a
regularização da documentação dos ribeirinhos, o perfil das demandas sofreu
uma alteração, passando a concentrar-se em pedidos de natureza familiar e cível.
5.3 Superação dos obstáculos ao acesso à Justiça
Obstáculos territoriais
O arquipélago do Bailique é um dos maiores exemplos de isolamento
decorrente das grandes distâncias territoriais: a população ribeirinha apenas
consegue acessar a capital do estado, Macapá, à qual pertence, por via fluvial. As
embarcações locais levam, em média 13 horas para fazer o trajeto de 180 km
2613
pelo Rio Amazonas. Até 2011, a localidade sequer contava com linha regular de
barco até Macapá.
Assim, a presença da Justiça no local desde 1994, por meio da itinerância,
é, sem dúvida, uma ferramenta extremamente eficaz para suplantar o isolamento
dos ribeirinhos.
Obstáculos financeiros
Embora inexistam dados acerca do perfil socioeconômico da população do
Bailique, é possível afirmar que se trata de uma população de renda
extremamente baixa, que vive, basicamente, de atividades primárias (pesca,
cultivo de açaí e palmito) e programas de transferência de renda do governo
estadual e federal.
Deste modo, as despesas com contratação de advogados e deslocamento
até Macapá ou o pagamento de custas judiciais inviabilizariam qualquer
possibilidade de solução judicial para seus conflitos.
Assim, ao disponibilizar os serviços de Justiça gratuitamente, deslocandose até a comunidade, o programa de Justiça Itinerante do Amapá é um importante
instrumental para reduzir os óbices econômicos ao acesso.
Frise-se que a comunidade sentiu fortemente o impacto da suspensão do
programa de itinerância em 2011. Dona Maria do Carmo aguardou por meses a
vinda do barco Tribuna. Como a Justiça não veio, juntou suas economias e foi a
Macapá pedir sua aposentadoria – foram R$ 70,00 gastos nos dois trechos do
barco de linha e R$ 50,00 com alimentação. Tudo em vão. O INSS exigiu que
retornasse com duas testemunhas para conceder-lhe o benefício – o que
representaria um custo de, no mínimo, R$ 360,00. Dona Maria do Carmo acabou
renunciando ao seu direito pela impossibilidade de arcar com as despesas de
deslocamento.
Obstáculos processuais
2614
Curiosamente (e em razão da ausência de legislação específica), o modelo
processual aplicado pela Justiça Itinerante no arquipélago do Bailique é
exatamente o mesmo que vigora em todas as Cortes do país.
Nota-se, contudo, uma acentuada flexibilização procedimental com o intuito
de maximizar o atendimento. Por exemplo, citações e intimações são realizadas
no mesmo dia das audiências. Tais atos são realizados por oficial de justiça ad
hoc, que se dirige ao local com um pequeno barco motorizado. Se a parte for
encontrada, é levada para a audiência e trazida de volta a sua casa. O objetivo é,
sempre que possível, solucionar as demandas no mesmo dia em que foram
ajuizadas.
Fotos 09 e 10: pessoas levadas para a audiência
Também há registros de flexibilização na análise probatória: em 2005, Seu
Manoel, de quase 70 anos, que trabalhara a vida toda na pesca e na roça, não
tinha nenhum documento. Procurou a Justiça para receber sua aposentadoria.
Com base no testemunho e na perícia (feita pelo médico que integrava a equipe),
além da análise das mãos do trabalhador, a juíza Sueli Pini proferiu
imediatamente a sentença de assento tardio, determinando a expedição dos
documentos necessários.
Atualmente, contudo, nota-se uma mudança radical no funcionamento do
programa: nas duas últimas itinerâncias visitadas (2011 e 2013), conduzidas por
juízes recém-empossados, nota-se uma restrita observância ao modelo
processual tradicional, sem espaço para flexibilização ou redução de formalidades
desnecessárias.
2615
Por fim, a despeito do perfil da população do Bailique e da natureza das
demandas, inexiste foco específico em soluções conciliatórias.
Obstáculos psicológicos/culturais
O Bailique tem passado por um intenso processo de transformação. Na
minha primeira visita, em 2005, a comunidade era extremamente carente, com
vilarejos precariamente estruturados: pequenos comércios, casas muito simples,
algumas sem móveis ou até mesmo paredes, famílias numerosas e ausência de
serviços essenciais, como energia elétrica, saneamento básico, assistência
médica e policiamento. O transporte até a capital era feito, não raro, em canoas –
pois ainda não havia a linha regular de barco.
Neste contexto de abandono, a vinda do barco Tribuna era muito
aguardada pelos moradores – que queriam exercer o seu direito de ter “um dia na
Justiça”. As demandas mais comuns envolviam regularização de documentos,
briga de vizinhos, guarda de filhos, cobrança e ações possessórias. Em virtude
das dificuldades financeiras, grande parte das ações de cobrança era extinta por
inexistência de bens dos devedores. Lembro-me de acompanhar uma diligência
em uma casa habitada por uma família com seis crianças. Havia apenas panelas
e redes. As crianças enfileiradas nos fitavam com olhos assustados e famintos.
Nada a ser penhorado.
Foto 11: Casa de família onde vivem os pais e seis filhos (2005)
Foto 12: pequeno comércio (2005)
2616
Seis anos depois, em agosto de 2011, retornei ao projeto de Justiça Fluvial
no Rio Amazonas. À primeira vista, a transformação do Bailique é surpreendente,
sobretudo na principal comunidade, a Vila Progresso, que passou a fazer jus ao
nome: pontes e píer cimentados, posto de saúde, telefone público, agência dos
correios, inúmeras lojas de roupas, farmácia, açougue, loja de móveis, grande
mercado de alimentos e eletrodomésticos e até terminal bancário (Nossa Caixa).
Foi instituída a linha de barco diária a Macapá – embora o preço da passagem, de
R$ 35,00 por trecho, ainda seja proibitivo para a maioria dos habitantes do
arquipélago.
Fotos 13 e 14: Vila Progresso (2011)
A evidente melhora financeira da Vila Progresso certamente guarda relação
com os programas de transferência de renda do governo. Mas não podemos
esquecer que, antes da Justiça Itinerante, a grande maioria população do Bailique
não tinha sequer registro de nascimento. O trabalho de mais de uma década de
promoção efetiva do acesso à Justiça, com regularização documental dos
habitantes – agora aptos a receber os benefícios – e, sobretudo, de
conscientização de seus direitos, tem importância crucial no desenvolvimento do
povoado.
Também se verificou o fortalecimento de lideranças comunitárias e uma
mudança no perfil das demandas: se, inicialmente, prevaleciam os pedidos de
regularização documental, agora são consideráveis os pedidos de ordem civil.
De outra sorte, é preocupante o alto número de ações de natureza criminal
(vide tabela 05, supra). Conforme apurado, a linha regular de barco não trouxe
2617
apenas avanços ao Bailique: o tráfico de drogas teria sido estabelecido na região,
e as brigas de gangues tornaram-se constantes. O assentamento de novos
moradores nos vilarejos também estaria ensejando mal-estar por parte dos
antigos residentes dos povoados, resultando em lutas corporais.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos de caso da Justiça Itinerante do Complexo do Alemão e do
Bailique evidenciam a potencialidade do programa na promoção do acesso à
Justiça de populações desprivilegiadas socioeconomicamente.
De fato, a análise apontou que, ao se deslocar até as populações
marginalizadas, a Justiça Itinerante é capaz de suplantar obstáculos territoriais,
financeiros e até psicológicos e culturais ao acesso. Também evidenciou, no caso
do Bailique, sua potencialidade para alavancar, aliada a outros programas sociais,
o próprio desenvolvimento econômico da região.
Contudo, o ponto mais sensível do programa parece residir na sua
incapacidade de fornecer uma resposta institucional adequada ao perfil da
população e das demandas. Com efeito, a única solução disponibilizada é o
processo tradicional – excessivamente formal e inadequado às localidades
assistidas.
Neste sentido, a Justiça Itinerante deveria proporcionar um serviço
jurisdicional
diferenciado,
mais
simples,
informal
e
célere,
calcado,
preferencialmente, na conciliação. Poderia se pensar, ademais, em outras formas
de composição menos combativas, baseadas na própria experiência local, com o
envolvimento de líderes comunitários.
Não se trataria de se criar uma justiça de segunda classe, como defendem
alguns, mas sim uma justiça especializada, adequada ao perfil da população
atendida e de suas reais necessidades.
2618
REFERÊNCIAS
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introduction. In: CAPPELLETTI, Mauro (ed.). Access to justice and the welfare
state. Alphen aan den Rijn: Sijthoff; Bruxelles: Bruylant; Firenze: Le Monnier;
Stuttgart: Klett-Cotta, 1981.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório 100 maiores litigantes.
Conselho Nacional de Justiça, Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ),
Brasília: 2012, p. 08. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisasjudiciarias/Publicacoes/100_maiores_litigantes.pdf. Último acesso: 22 jun. 2013.
FIX-FIERRO, H. Courts, Justice and Efficiency: a socio-legal study of economic
rationality in adjudication. Oxford and Portland, Oregon: Hart Publishing, 2003.
GALANTER, M. Why the ‘haves’ come out ahead: speculations on the limits of
legal change. Law and society review, v. 9, n. 1, p. 95-160, 1974.
JOHNSON JR., E. Promising institutions: a synthesis essay. In: MAURO C.;
WESNER, J. (ed.), Access to justice, v. 2: Promising institutions, t. 2.
PANDOLFI, D. C. Percepção dos direitos e participação social. In: PANDOLFI, D.
C. [et al]. (orgs). Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Ed. Fundação
Getulio Vargas, 1999, p. 61-76. Disponível em: <www.cpdpc.fgv.br>. Último
acesso: 10 fev. 2014.
SANTOS, B. S. S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, 3
ed., São Paulo: Cortez.
VILLAS BOAS FILHO, O. Uma abordagem sistêmica do direito no contexto da
modernidade brasileira, 2006. Tese (Doutorado em Direito), Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo.
2619
CENTRO JUDICIÁRIO DE SOLUÇÕES DE CONFLITOS E CIDADANIA DA
COMARCA DE CANOAS, RS (CEJUSC) – INSTRUMENTO DE ACESSO À
JUSTIÇA E INCENTIVO À PACIFICAÇÃO SOCIAL
Graziela da Cruz Fialho Bittencourt
RESUMO: O presente trabalho se propõe a demonstrar como se encontra
estruturado o CEJUSC Comarca de Canoas, RS e a forma que o mesmo
promove o direito fundamental de acesso à justiça, representando um importante
instrumento de efetivação da cidadania e da pacificação social. A finalidade
primordial é oferecer um panorama sobre a aplicabilidade da audiência de
conciliação e da sessão de mediação na Comarca de Canoas RS, ressaltando
seus conceitos, vantagens e objetivos, dentre os quais se destaca a promoção do
acesso à Justiça, na medida em que seus participantes têm a oportunidade de
resolver pacificamente seus conflitos, de acordo com seus próprios interesses.
PALAVRAS-CHAVE: acesso à justiça; cidadania; conciliação; mediação de
conflitos; pacificação social.
1 INTRODUÇÃO
Nos países ocidentais o problema do acesso à justiça tem sido alvo de
estudos, principalmente os desenvolvidos por Cappelletti e Garth. Os referidos
autores classificaram como "ondas renovatórias" do Direito as soluções criadas
para enfrentar tal problema (CAPPELLETTI e GARTH, 2002, apud AMARAL,
2009, p. 51). Como postulou Habermas, o mundo vivido é aquele em que
predomina a ação da comunicação, onde, a partir do discurso prático, irá se
questionar a legitimidade e, sobretudo, a adequação de normas postas, ao
contexto real da sociedade (SALES, 2004, p. 177).
De acordo com estudos, sabe-se que os conflitos são inevitáveis quando
se vive em sociedade. Há tempos buscam-se soluções para os embates da
sociedade, de seus conflitos, através de alternativas e inovações, sem a
necessidade do clássico Estado-Juiz para dirimir as controvérsias por meio de
2620
heterocomposição. Nesse sentido, a resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) diz:
O acesso à Justiça não se confunde com acesso ao Judiciário, tendo em
vista que não visa apenas a levar as demandas dos necessitados àquele
Poder, mas realmente incluir os jurisdicionados que estão à margem do
sistema, e, sob o prisma da autocomposição, estimular, difundir e educar
seu usuário a melhor resolver conflitos por meio de ações comunicativas.
(CNJ, Resolução nº 125/2010).
Com esta resolução do CNJ, Iniciou-se uma nova fase, a fase da
autocomposição por meio de técnicas apropriadas tais como a mediação e a
conciliação, em ambientes adequados chamados CEJUSC – Centro Judiciário de
Soluções de Conflito e Cidadania. Isso possibilitou a abertura de um pluriprocessualismo e suscitando ao Poder Judiciário, a duração razoável do processo
e o pleno exercício do acesso à justiça, acesso este consagrado no art. 5º, inciso
XXXV da Constituição Federal.
Nesse sentido, o presente artigo busca apresentar os trabalhos de
mediação e conciliação desenvolvidos no CEJUSC Comarca de Canoas, levando
em conta sua instituição e organização, os dados quantificadores e os resultados
e relatos das partes e do grupo dos efetivos trabalhos.
2 MEIOS ALTERNATIVOS DE ACESSO À JUSTIÇA: A MEDIAÇÃO E A
CONCILIAÇÃO
Segundo, Kazuo Watanabe, desembargador aposentado do TJSP, explica
no site do Tribunal de Justiça de São Paulo que:
O princípio de acesso à justiça, inscrito na Constituição Federal, não
assegura apenas acesso formal aos órgãos judiciários, e sim um acesso
qualificado que propicie aos indivíduos o acesso à ordem jurídica justa,
no sentido de que cabe a todos que tenham qualquer problema jurídico,
não necessariamente um conflito de interesses, uma atenção por parte
do Poder Público, em especial do Poder Judiciário. Assim, cabe ao
Judiciário não somente organizar os serviços que são prestados por
meio de processos judiciais como também aqueles que socorram os
cidadãos de modo mais abrangente, de solução por vezes de simples
problemas jurídicos, como a obtenção de documentos essenciais para o
exercício da cidadania e até mesmo de simples palavras de orientação
jurídica. Mas é, certamente, na solução dos conflitos de interesses que
reside a sua função primordial, e para desempenhá-la cabe-lhe organizar
não apenas os serviços processuais como também, e com grande
ênfase, os serviços de solução dos conflitos pelos mecanismos
2621
alternativos à solução adjudicada por meio de sentença, em especial dos
meios consensuais, isto é, da mediação e da conciliação”.
O conflito não se origina por uma única razão. Na verdade, é um conjunto
de mágoas que se somam ao longo do convívio e envolvem profundas emoções.
Nesse sentido, necessitam de mecanismos adequados a estas realidades,
capazes de preservar o vínculo entre as partes de forma respeitosa, não violenta.
Diante desse quadro, a mediação e a conciliação funcionam não como
substitutas, mas como instrumentos de fortalecimento do Poder Judiciário no
sentido de, com eles, formar um todo para atender o seu propósito: a Justiça.
2.1 A Mediação e o Mediador
De acordo com Lília Maia de Morais Sales, o termo mediação procede do
latim mediare, que corresponde a mediar, colocar-se ao meio. Trata-se do
emprego de procedimentos dialogais que, de forma colaborativa e amigável,
incentivam a solução de controvérsias de forma que melhor atendam aos anseios
das partes (SALES, 2004, p. 23). O acordo atingido soluciona o antagonismo, ou
seja, o problema com uma solução aceita de forma satisfatória para ambas as
partes, estruturado de modo a conservar as relações dos envolvidos no conflito. A
proposta é considerar o conflito como algo positivo, como uma oportunidade de
crescimento e ampliação de horizontes, para que da divergência brote a
convergência, fazendo com que todos saiam vencedores (SALES e CARVALHO,
2006, p. 71).
Considerando que a mediação funciona como um meio no qual uma
terceira pessoa, denominada mediador, presta auxílio aos participantes na
resolução de uma disputa, este não impõe uma solução para o conflito. Seu papel
consiste em promover o diálogo amigável, auxiliando as partes a encontrar um
acordo que a ambas satisfaça, fomentando o surgimento de uma nova realidade,
a partir da relação continuada existente entre os mediados (SALES e
CARVALHO, 2006 p. 72).
A prática da mediação, no decorrer dos últimos anos, tem alcançado uma
presença cada vez mais notável no contexto social e jurídico brasileiro. A partir da
2622
complexidade que as relações vêm apresentando, atrelada a um judiciário
sobrecarregado, pouco eficaz e quase inviável, o indivíduo passa a considerar
que, em muitos casos, a solução para os conflitos de sua vida tem como melhor
caminho, a tomada de decisões pacíficas, formadas a partir do bom senso e fora
do âmbito instrumentalizado da Justiça.
Existem
princípios
norteadores
consolidados
que
se
mostram
indispensáveis para que o procedimento da mediação se torne eficaz. Estes
compreendem: liberdade das partes, não-competitividade, poder de decisão das
partes, participação de um terceiro imparcial, competência do mediador,
informalidade processual e confidencialidade no processo.
Considerando estes princípios, temos na mediação um instrumento que
apresenta diversas vantagens tanto para os assistidos como para a sociedade de
uma maneira geral. A oportunidade é expressa aos mediandos para exporem
aquilo que pensam, sentem e o que esperam dali para frente. E pode ser a única
oportunidade de comunicação entre ambas as partes, sem imposições de
nenhuma natureza. Outras vantagens são o fato de promover a paz e incluir o
indivíduo na sociedade, ampliando sua dimensão cultural, fazendo-o conhecer
seus direitos e deveres dentro do Estado Democrático de Direito, conferindo-o
autonomia e responsabilidade, na medida em que passa a ter voz ativa no meio
social, para deliberar sobre os problemas advindos.
2.2 A Conciliação e o Conciliador
A palavra conciliação, que deriva do latim conciliatione, significa ato ou
efeito de conciliar, ajuste, acordo ou harmonização de pessoas, união,
combinação ou composição de diferenças. A conciliação é uma alternativa de
solução extrajudicial de conflitos. Na conciliação, um terceiro imparcial
interveniente buscará, em conjunto com as partes, chegar voluntariamente a um
acordo, interagindo, sugestionando junto às mesmas.
A atuação pelo Conselho Nacional de Justiça com o estabelecimento de
metas, a despeito de elevada controvérsia junto a tribunais no passado,
atualmente tem se mostrado como essencialmente positiva. No 8º Encontro
2623
Nacional do Poder Judiciário, realizado em Florianópolis, o ministro Ricardo
Lewandowski anunciou, entre sete metas para o Poder Judiciário no ano de 2015,
uma específica para a conciliação – em linhas gerais, aumentar o número de
casos solucionados por conciliação. Em termos específicos, para a Justiça
estadual, estabeleceu-se a diretriz de “impulsionar os trabalhos dos CEJUSCs e
garantir aos estados que já o possuem que, conforme previsto na Resolução
125/2010, homologuem acordos pré-processuais e conciliações em número
superior à média das sentenças homologatórias nas unidades jurisdicionais
correlatas. Aos que não o possui, a meta é a implantação de número maior do
que os já existentes” (CONJUR, 2015).
A conciliação segue o procedimento estabelecido na Lei 9.099/95 e no
CPC (artigos 125 e 331).
A intenção da conciliação é a rapidez processual, além de evitar um novo
processo judicial.
A conciliação pode ser exercida pelo próprio juiz da causa ou por um
conciliador, cuja atividade será controlada, fiscalizada e/ou orientada por um juiz.
O conciliador pode sugerir soluções para o litígio. Pensar também em resolver
hoje e não ter problemas amanhã. O papel do conciliador é incentivar, facilitar e
auxiliar as partes conflitantes a chegarem a um acordo, admitindo-se que formule
uma proposição objetiva de resolução para o conflito. O conciliador tem uma
participação mais incisiva do que o mediador, posto que manifeste a sua opinião
sobre uma solução justa para o conflito e propõe os termos do acordo. Entretanto,
o conciliador não tem poder para impor uma decisão às partes.
A princípio conciliar parece ser uma tarefa simples, mas não o é, conciliar
exige
conhecimentos
técnicos,
interesse,
empenho
e
treinamento.
O
comportamento do conciliador, na condução da audiência/sessão de conciliação,
é determinante para a criação de um ambiente favorável ao diálogo, possibilitando
assim solução do problema.
2624
3
BREVES
APONTAMENTOS
SOBRE
O
CENTRO
JUDICIÁRIO
DE
SOLUÇÕES DE CONFLITOS E CIDADANIA NO CONTEXTO DA RESOLUÇÃO
Nº 125/2010 DO CNJ
A Resolução nº 125/2010 do CNJ, atribuiu aos tribunais a implementação
dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSCs e fixou
as diretrizes dessa nova política pública, cabendo aos Tribunais implementar nas
Comarcas onde tenha mais de um Juízo, Juizado ou Vara, estes Núcleos de
Solução de Conflito e Cidadania, que são incumbidos de realizarem sessões de
conciliação e mediação.
A partir da Resolução do CNJ, é possível a conciliação ou mediação préprocessuais, sem que tenha uma demanda ajuizada no Poder Judiciário, assim
como é possível que ações ajuizadas venham para sessões de conciliação ou
mediação.
Institucionalizar esses meios alternativos de resolução dos conflitos nada
mais é do que, como explica Daniela Monteiro Gabbay:
[...] implementação, regulação e suporte conferidos pelo Poder Judiciário
quer antes do processo judicial, quer incidentalmente a ele (mediação
pré-processual e processual). Isso implica em sua instituição formal por
alguma norma (portaria, provimento, resolução, decreto ou lei) com
regras acerca de seu procedimento e funcionamento, existência de
orçamento específico, capacitação de recursos humanos e provimento
de cargos para os programas, buscando que a sua continuidade não
dependa apenas da iniciativa individual de alguns atores, como do juiz
no gerenciamento de processos e do Presidente do Tribunal no exercício
de sua gestão e mandato. (GABBAY, 2011, p. 64-65).
Com a Resolução 125 do CNJ, inicia-se uma nova história do Judiciário,
que até então sempre teve suas raízes fincadas na sentença, na resolução
imposta dos conflitos. Cria-se, a possibilidade de que o jurisdicionado se dirija até
estes Centros e, de forma gratuita e sem a exigência de representação por seus
procuradores, apresente sua reclamação, seu conflito.
Esta é uma das maiores expressões da premissa de acesso à ordem
jurídica justa e do tratamento adequado dos conflitos. Segundo Kazuo Watanabe:
[...] cabe ao Judiciário não somente organizar os serviços que são
prestados por meio de processos judiciais, como também aqueles que
socorram os cidadãos de modo mais abrangente, de solução por vezes
de simples problemas jurídicos, como a obtenção de documentos
essenciais para o exercício da cidadania, e até mesmo de simples
2625
palavras de orientação jurídica. Mas é, certamente, na solução dos
conflitos de interesses que reside a sua função primordial, e para
desempenhá-la cabe-lhe organizar não apenas os serviços de solução
dos conflitos pelos mecanismos alternativos à solução adjudicada por
meio de sentença, em especial dos meios consensuais, isto é, da
mediação e da conciliação. (WATANABE 2011, p. 04).
Observa-se que, desse modo, cabe ao Poder Judiciário analisar e
empregar meios alternativos para a solução do conflito, que possa propiciar a
pacificação dos conflitantes sem que estes já estejam estigmatizados como autor
e réu em um processo judicial onde Já se comprovou que com a sentença, uma
das partes, senão ambas, sempre ficará insatisfeita e, com isso, provavelmente
sobrecarregará ainda mais o Judiciário com a interposição de recursos. Sempre
haverá vencedores e vencidos.
A resolução do conflito por meios alternativos e consensuais possibilita que
o conflito seja pacificado em todos seus aspectos, já que o acordo pode dispor
sobre outros eventuais conflitos, ou mesmo outras facetas do conflito já posto,
que as partes desejarem nele incluir, desde que não apresentem caráter ilícito.
4 O CEJUSC COMARCA DE CANOAS
4.1 A Instituição do CEJUSC Comarca de Canoas
O CEJUSC, Centro Judicial de Solução de Conflitos de Canoas foi criado
em dezembro de 2012, conforme os oito artigos da Resolução nº 932/2012 do
COMAG, Conselho da Magistratura, ficando disponibilizado no DJE em
06/12/2012. O Centro funciona na Comarca de Canoas, com audiências
realizadas na estrutura dos Juizados Especiais, podendo ser julgado outro local
se necessário. A coordenação é exercida por Magistrado ou por Pretor indicado
pelo Corregedor Geral de Justiça.
4.1.1 As aplicações de Conciliação
De acordo com o artigo 3º da Resolução 932/2012 (COMAG), a
Conciliação se dará no tratamento dos seguintes casos:
2626
I.
II.
III.
Nas questões do superendividamento, prática institucionalizada
no art. 1.040-a da consolidação normativa judicial e outras
situações que viabilizem tratamento análogo, tais como questões
envolvendo condomínios, consumidores, negócios jurídicos
bancários, quando a parte opte pela conciliação paraprocessual;
Em projetos especiais de conciliação, mediante prévio ajuste
com as unidades jurisdicionais, bem assim em ações que
envolvam grandes litigantes ou ações de massa, onde qualquer
das partes tenha manifestado propósito objetivo de realização de
acordo;
Quando o magistrado que preside o processo envolvendo
matéria cível ou de família entenda pertinente a adoção dessa
prática. (COMAG, Resolução 932/2012, artigo 3º)
4.1.2 As aplicações de Mediação
De acordo com o 4º parágrafo da Resolução 932/2012 (COMAG), as
mediações serão oferecidas:
I.
II.
III.
Ao público que se dirige aos juizados especiais cíveis do foro de
canoas;
Ao público que se dirige à defensoria pública e a entidades
parceiras, mediante contato prévio com as instituições, de
acordo com o volume de trabalho e capacidade de atendimento
da central.
Quando o magistrado que preside um processo judicial
envolvendo matéria cível ou de família entenda pertinente a
adoção dessa prática. (COMAG, Resolução 932/2012, artigo 4º)
4.2 A Organização do CEJUSC Comarca de Canoas
O CEJUSC atua na realização de audiências de conciliação e sessões de
mediação, na área cível, e conta atualmente com 10 mediadores e 05
conciliadores.
O CEJUSC funciona na sala 330 do Fórum da Comarca de Canoas, e
dispõe de estrutura para realização de sessões de mediação e audiências de
tentativa de conciliação, nos moldes da Resolução nº 125/2010 do CNJ. É
composto por duas salas (para audiência e/ou sessão de mediação), recepção e
duas salas privadas.
O CEJUSC é abastecido pelos processos, em andamento, das cinco varas
cíveis do Fórum da Comarca de Canoas. O juiz titular da vara onde o processo
tramita verificando a possibilidade de alguma composição, ou dificuldade de
entendimento das partes, encaminha o processo para o juiz coordenador do
2627
CEJUSC que determina a designação de audiência de tentativa de conciliação ou
sessão de mediação. As intimações e demais ações são feitas pelo CEJUSC.
Após a audiência ou sessão de mediação, os autos retornam para a vara de
origem.
No caso de tentativa de conciliação, um dos objetivos do CEJUSC é
desafogar as pautas das varas cíveis e tentar pôr fim aos processos por meio de
acordo. Já na mediação o objetivo é restabelecer o diálogo entre as partes,
podendo chegar ao entendimento.
4.3 A Atuação do CEJUSC Comarca de Canoas
Durante o tempo em que o CEJUSC Comarca de Canoas está
funcionando, os processos que por ele passam ou passaram estão relacionados
ao Direito Civil, sendo a demanda voltada para execuções, cobranças, despejos,
inventários, demarcatórias, demolitórias, posses, propriedades, etc. Os dados
numéricos, os percentuais e as opiniões relatadas foram obtidos no mês de
dezembro de 2014 e tem como fonte de informações o próprio CEJUSC Comarca
de Canoas.
É interessante observar que, apesar de sua instalação ter ocorrido em
dezembro de 2012, sua participação efetiva passou a ter andamento no início de
2014. Apesar da Resolução 932/2012 prever o local e a estrutura de
funcionamento, houve dificuldade por parte da Comarca de Canoas em
estabelecer adequada condição para seu pleno funcionamento, especialmente na
modalidade mediação, onde as primeiras sessões aconteceram em setembro de
2014.
Apesar disso, no mês de junho de 2014, foi promovido um Mutirão de
Conciliação do DPVAT, onde foram pautados quase 400 processos e obteve-se
mais de 50% de acordos.
Também se observa que em novembro de 2014,
prestigiando a Semana Nacional da Conciliação, realizou-se um Mutirão de
Execuções Fiscais do Município de Canoas e Contratos Bancários, com quase
200 processos e índice de acordos superior a 50%.
2628
Por outro lado, as mediações foram iniciadas apenas no mês de setembro
de 2014, diante da falta de estrutura adequada para realização de sessões.
Todavia, observa-se que são realizadas, em média, 10 sessões mensais, com
perspectiva de crescimento para o ano de 2015.
4.4 Análise dos Dados de Pesquisa
Em observação à atuação do CEJUSC Comarca de Canoas, pode-se
verificar que os resultados esperados atingiram índices que expressam a eficácia
e a importância de seus atendimentos na solução de conflitos. Ainda que não
obstante o fator desconfiança por parte dos litigados e de seus advogados. Se
mais da metade dos casos foram resolvidos de forma pacifica e rumo à celeridade
de seus processos, então, a conduta e o esforço dos mediadores, conciliadores e
da Entidade Jurídica mostram a viabilidade dessa modalidade de solução de
conflitos. Vale lembrar as palavras expressas em texto do Guia do Mediador e do
Conciliador Para Magistrados:
[...] em satisfação do público com serviços de pacificação social
estabeleceu-se que “o acesso à Justiça não se confunde com acesso ao
Judiciário, tendo em vista que não visa apenas a levar as demandas dos
necessitados àquele Poder, mas realmente incluir os jurisdicionados que
estão à margem do sistema27” para que possam ter seus conflitos
resolvidos (por heterocomposição) ou receberem auxílio para que
resolvam suas próprias disputas (pela autocomposição). (GENRO,
2013).
Em entrevista, o Oficial Escrevente - Auxiliar de Juiz 1º Juizado da 2ª Vara
Cível - Fórum de Canoas, relata: “As pessoas estão aceitando bem a modalidade
de mediação, mas como nessa modalidade não há obrigatoriedade de
comparecimento, os resultados positivos ficam prejudicados. Os presentes
sempre elogiam a iniciativa, principalmente pela oportunidade que lhes é dada a
falar.”
Isso confirma a condição de que o conciliador e o mediador funcionam
como um facilitador da resolução dos conflitos, viabilizando a comunicação entre
as partes com o objetivo de considerar opções e conseqüências de suas posturas
e atitudes, incentivando uma solução possível e equivalente para elas.
2629
Por outro lado, a parcela que representa quase metade dos casos
assistidos pelas conciliações e mediações pode estar relacionada à falta de
informação das partes litigadas quanto às características e vantagens dessa
forma de solução de conflitos. Lembrando o que descreve Sales e Carvalho:
Por fim, a cultura beligerante existente no Brasil ainda impera, além do
que, as partes inseridas no processo de mediação devem pautar-se na
boa-fé, o que se revela difícil na totalidade dos casos, podendo tal fator
levar a um comprometimento da lisura da mediação (SALES e
CARVALHO 2006, p. 95-96).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No estudo apresentado, observa-se que a mediação é um mecanismo que
possibilita a visão do conflito a partir de um prisma diferenciado. O indivíduo é
estimulado a desenvolver habilidades de diálogo e cooperação, relegando o
belicismo e a ignorância de outrora em favor de práticas altruístas, que melhor
atendem às necessidades e expectativas dos mediados.
Os procedimentos de mediação e conciliação buscam incluir o indivíduo
socialmente, de maneira que amplie seu universo cultural e o possibilite estar ao
par de seus direitos e deveres, contornando a ignorância e a hostilidade como
forma de solução das controvérsias. O que se propõe com estes procedimentos
são o necessário fomento à paz e o incentivo às práticas de cidadania, requisitos
essenciais no contexto do Estado Democrático de Direito.
Ante um judiciário que ainda sofre com problemas estruturais e
burocráticos, os quais dificultam o acesso por parte de pessoas carentes, a
mediação e a conciliação despontam como instrumentos de justiça, cuja eficácia e
celeridade podem ser comprovadas.
Da mesma forma, também se verifica que a Comarca de Canoas, por meio
de seu CEJUSC, está atenta às novas tendências de solução de conflitos. E, que
os acadêmicos interessados e dispostos frente a inovação , participam de forma
relevante desse olhar diferenciado e restaurador da justiça, com vistas a uma
aproximação cada vez maior entre o direito e a sociedade.
2630
REFERÊNCIAS
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Lumen Juris, 2009.
AZEVEDO, A. G. Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília:
Ed. Grupos de Pesquisa, 2004. v. 3. p. 313.
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excelente ano. Retrospectiva 2014. Conjur. 04 jan 2015. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2015-jan-04/retrospectiva-2014-conciliacao-mediacaoboas-perspectivas> Acesso em 18 março 2015.
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outras providências. CPC. Disponível em:<
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm> Acesso em 23 março
2015.
CARNEIRO, D. C. A mediação de conflitos como instrumento de acesso à justiça
e incentivo à cidadania. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2673, 2010.
Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17698>. Acesso em: 18 março 2015.
Cf. YARN, D. E. Dictionary of Conflict Resolution. São Francisco: Ed. JosseyBass Inc., 1999.
COMAG. Cria a central de conciliação e mediação na comarca de canoas,
estabelecendo procedimentos e rotinas. Resolução 932/2012. Disponibilizado no
Diário da Justiça Eletrônico em 06/12/2012.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Edição atualizada em
2014. Governo do Brasil. Brasilia/DF, 2014. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em 23
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DELGADO, M. G. Arbitragem, mediação e comissão de conciliação prévia no
direito do trabalho brasileiro. Revista LTr, v. 66, n. 6, jun. 2002, São Paulo, p.
664.
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Brasília/DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento – PNUD, p. 13.
GODOY, A. E. [...] [et al.]. O papel de cada um nos conflitos familiares e
sucessórios. Porto Alegre. IBDFAM, 2014.
2631
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controvérsias: mediação, conciliação e arbitragem. Jus Navigandi, Teresina, ano
16, n. 3069, 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20517> Acesso
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Mestre em Direito. Especialista em Processo Civil. Professor Universitário. Editor
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MediaçãoxConciliaçãoxArbitragem. Material didático do curso de Direito.
Disponível em:
<http://www.direito.ufes.br/sites/direito.ufes.br/files/field/anexo/Tabela%20Compar
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%C3%A3o%20x%20Arbitragem.pdf> Acesso em 22 março 2015.
2632
LEI MENINO BERNARDO: UM ENFOQUE SÓCIO-POLÍTICO
Maria Carolina Santini Pereira da Cunha
RESUMO: O presente artigo discute a criação de leis e sua aplicação, com fulcro
no Projeto de Lei do Senado 7672/2010, intitulado Lei da Palmada e, em 2014,
rebatizado Lei Menino Bernardo. A lei sancionada insere no debate a
possibilidade de mudanças efetivas na sociedade, sua eficácia para coibir
agressões. Faz-se uma analogia ao direito à felicidade, uma comparação com a
criação de leis impraticáveis e, por isso ineficazes, bem como dispositivos
constitucionais. O ensaio oferece uma abordagem do crime sob o aspecto
sociológico e político, cuja discussão versa sobre o motivo da edição da
legislação, sua qualidade e a quantidade.
PALAVRAS-CHAVE: criação de lei; Menino Bernardo; sistema judiciário.
1 INTRODUÇÃO
A aprovação da Lei Menino bernardo traz certos questionamentos, tais
como: será que basta criar uma lei para trazer mudanças efetivas; senão, de que
adianta sua existência se não for eficaz? Eficácia é produzir os efeitos que se
espera de uma norma para ser aplicada e obedecida na sociedade. A
metodologia visa a um estudo analítico centralizado no Caso Bernardo, por meio
da reflexão proposta, ampliando o conhecimento e mostrando crimes ocorridos no
Brasil, de crianças assassinadas por seus genitores. Exemplifica-se essa
problemática por crimes nacionais e suas semelhanças com o caso designado,
fornecendo um relato dos crimes: Nardoni e Joaquim Ponte Marques, a fim de
elucidar o motivo do desamparo das vítimas diante do sistema penal. Além disso,
é discutida as falhas na administração pública, como a tragédia da boate Kiss em
que a fiscalização deixou de atuar, e do sistema judiciário no Caso Bernardo, que
o Ministério Público não atuou.
O ensaio divide-se em três seções: a primeira, trata do projeto de lei do
surgimento e sua formação, os motivos que o levaram a mudar sua denominação;
uma analogia ao direito à felicidade, traz uma comparação, no sentido de criação
2633
de leis impraticáveis e ineficazes, bem como dispositivos constitucionais. A seção
seguinte explica uma patologia mental, a qual impossibilita a eficácia da criação
de uma lei, para se obter um efeito, cuja causa diverge do foco principal.
Exemplifica-se essa problemática com casos concretos, de crimes ocorridos no
Brasil, e suas semelhanças com o caso designado no título do trabalho. Encerrase o artigo com algumas críticas, apresentadas de forma a analisar, repensar e
refletir sobre o sistema penal e toda a sociedade brasileira, a partir das falhas no
caso em pauta. Por fim, apresentam-se as conclusões obtidas.
2 A EVOLUÇÃO DESDE O PROJETO DE LEI
A deputada Teresa Surita do PMDB-RR relatou o projeto, o qual prevê que
pais que “maltratarem os filhos sejam encaminhados ao programa oficial de
proteção à família e a cursos de orientação, tratamento psicológico ou
psiquiátrico, além de receberem advertência. A criança que sofrer a agressão, por
sua vez, deverá ser encaminhada a tratamento especializado.” Está prevista na
proposta, multa de três a 20 salários mínimos “para médicos, professores e
agentes públicos que tiverem conhecimento de agressões a crianças e
adolescentes e não denunciarem às autoridades. A lei gerou polêmica e muitas
discussões desde que foi proposta, em 2003.” A lei foi aprovada pela Câmara dos
Deputados, dia 21 de maio de 2014, “após acordo com a bancada evangélica,
que aceitou a mudança do texto para especificar que os pais ou responsáveis
somente serão punidos se infligirem sofrimento físico à criança ou adolescente
até 18 anos de idade”, e; no Senado, no dia 4 de junho (WIKIPÉDIA, 2015). “O
projeto tramitou pela primeira vez na Câmara dos Deputados, em 2003, pela
redação da deputada Maria do Rosário, do PT-RS. Sob o número 2.654/2003, o
Projeto de Lei obteve pareceres pela aprovação na Comissão de Seguridade
Social e Família, Comissão de Educação e Cultura e Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania, parando sua tramitação no plenário”. A lei foi sancionada
logo em seguida, com o intuito de alterar a Lei nº 8.069/1990, que dispõe sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para estabelecer o direito da criança
e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou
2634
de tratamento cruel ou degradante, e altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996 (BRASIL, 2014).
A nova lei é subjetiva, deixa brechas para interpretações. Luiz Flávio
Gomes aponta que “a norma não prevê punições penais, mas encaminhamento
para tratamento.” Desse modo, se a lei penal não surte efeito preventivo, menos
ainda uma lei sem punição estabelecida (RODRIGUES; TOMÉ, 2014). No ECA,
há a garantia de, conforme artigo 17, inviolabilidade da integridade física, psíquica
e moral da criança ou adolescente. O dispositivo estabelece ser dever de todos
garantir a dignidade dos menores, “pondo-os a salvo de qualquer tratamento
desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”, segundo o artigo
18. Ademais, há previsão legal também no Código Civil (art.1681, I) da perda do
pátrio poder a pais cujo castigo aos filhos for imoderado. Finalmente, o Código
Penal criminaliza maus-tratos para quem “abusar dos meios de correção e
disciplina (art.136), além do crime de lesões corporais no contexto de violência
doméstica (art.129, §9º)” (ROCHA; MENDONÇA; ÁVILA, 2014). Desde 2001, “a
Global Initiative to End all Corporal Punishment of Children” recebe apoio de
“organizações multilaterais de defesa de direitos humanos, ONGs internacionais e
locais e indivíduos-chave, capazes de dar visibilidade à causa. Mundialmente, a
ONG Save the Children tem sido o principal agente a promover a elaboração de
leis específicas sobre o tema”. No Brasil, “a ONG Save the Children apoia a Rede
Não Bata, Eduque, cuja principal porta-voz desta causa no país e articuladora da
elaboração e tramitação do PL 7672/10, no Congresso Nacional, é a
apresentadora de TV Xuxa Meneghel” que tem desempenhado papel importante
nesta rede, manifestando-se em programas de televisão e em eventos
relacionados ao tema dos direitos das crianças (RIBEIRO, 2013, p.292-308). A
partir da década de 80, este projeto produzia estudos relacionados à violência
familiar, castigos físicos, encomendados pela ONU ao Laboratório de Estudos da
Criança (Lacri) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP
(RIBEIRO, 2013, p.292-308). Essa pesquisa “chamava atenção para a
normalização e a legitimação do castigo físico como prática educativa na
sociedade brasileira, sustentando que tais comportamentos replicam a violência e
a retroalimentam” (ROCHA; MENDONÇA; ÁVILA, 2014). “O PLS foi uma
2635
representação por cumprimento das recomendações da ONU e não por uma
demanda social” (RIBEIRO, 2013, p.295 apud ROCHA et al, 2014, p.6). Poucas
reuniões e audiências públicas foram realizadas da proposta apresentada,
compostas por uma comissão de deputados que pouco debateram sobre a
criação da norma, “preocupando-se os parlamentares apenas em aprovar uma lei
que fosse ao encontro dos dados trazidos pelo relatório da ONU, reivindicada
pelas ONGs influentes bem como artistas famosos” (RIBEIRO, 2013, p.299 apud
ROCHA et al. 2014, p.6). Em junho de 2014 (NÉRI; PASSARINHO. 2014) foi
aprovado o PLS 7672/2010 (BRASIL, 2010), o qual propunha a famosa e
inicialmente chamada “Lei da Palmada” – recentemente intitulada Lei Menino
Bernardo. A lei supracitada foi elaborada em 2010, cujo dispositivo tornou
perceptível que o próprio legislador demonstra estar ciente da dificuldade quanto
à sua concretização. O PLS 7672/2010, no item 17 admite que “uma coisa é
proclamar os direitos, outra é, efetivamente, gozá-los. Neste momento, envidamos
esforços no sentido de dar materialidade a reivindicações dos movimentos e
aperfeiçoar mecanismos legais” já constituídos “em conquista histórica [...] para
[...] sustentabilidade de políticas de públicas [...], garantindo todos os direitos das
crianças e adolescentes e protegendo-os de qualquer forma de sofrimento e
limitação a seu pleno desenvolvimento.”
Façamos uma analogia ao direito à felicidade, e sua cogitada
constitucionalização, inspirada Constituição do EUA. Indagamos o que seria o
direito à felicidade, como buscá-lo e, principalmente, como exigi-lo. A polêmica
proposta, com tendências demagógicas, nos remete a ideia de palavras jogadas
ao vento. A Constituição não pode ser um papel de embrulho vazio – comentaram
renomados juristas clássicos como Konrad Hesse (Conforme a obra "A Força
Normativa da Constituição", Konrad Hesse e Ferdinand La Salle), – ela tem de ser
posta em prática; afinal, de que serve estar escrito se não se pode aplicar e
cumprir? É um assunto que não cabe ao Direito, pois é intangível, subjetivo,
peculiar. Felicidade só a própria pessoa pode buscar; está dentro de si. Nesse
sentido, Shakespeare ("Hamlet", ato 2, cena 2) interpretou bem ao dizer que
poderia viver “numa casca-de-noz” e se sentir o rei do universo.
2636
3 CASE STUDY: BERNARDO BOLDRINI, ISABELLA NARDONI E JOAQUIM
PONTE MARQUES
Do mesmo modo, a lei da palmada traz um fato a ser combatido. Contudo,
não maneira de tornar-se possível determinar o limite em que a palmada seria um
corretivo educacional ao filhos, e a partir de que momento se torna agressividade
cruel. Principalmente porque a violência é escondida.
Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, desapareceu, e foi encontrado morto
em Frederico Westphalen, RS. Foram presos como suspeitos o pai, a madrasta e
sua amiga. A exemplo do Caso Bernardo a madrasta contou à vítima uma
história, afirmando que ele precisava tomar uma injeção, dizendo que iam
comprar uma televisão ou um aquário. Houve, portanto, premeditação a fim de
ludibriar um inocente, com dissimulação por parte da ofensora ao enteado. Este
foi encontrado morto, enterrado em uma cova rasa, na área rural de Frederico
Westphalen, no dia 14 de abril deste ano, a cerca de 80 quilômetros de Três Passos,
onde ele morava com a família, que alegou ter visto Bernardo pela última vez às 18h
do dia 4 de abril, “ia dormir na casa de um amigo, que ficava a duas quadras de
distância da residência da família”. Revelou-se então o sofrimento passado pelo
menino, por um histórico de violência e humilhações. “No dia 6 de abril, o pai do
menino disse que foi até a casa do amigo, mas foi comunicado que o filho não estava
lá e nem havia chegado nos dias anteriores. No início da tarde do dia 4, a madrasta
foi multada por excesso de velocidade” Trafegando a 117 km/h, Graciele “seguia em
direção a Frederico Westphalen. O Comando Rodoviário da Brigada Militar (CRBM)
disse que ela estava acompanhada do menino. O pai registrou o desaparecimento do
menino
no
dia
6,
e
a
polícia
começou
a
investigar
o
caso”
(In:
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardoboldrini/noticia/2014/05/pericia-analisa-assinatura-de-pai-de-bernardo-em-receitausada-em-crime.html).
O erro desta lei sobressai já em seu objeto: não foram palmadas a causa
mortis do menino, mas uma injeção letal. “Segundo as investigações da Polícia
Civil, Bernardo foi morto com uma superdosagem de um sedativo.” (In:
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardo-
2637
boldrini/noticia/2014/08/defesa-da-madrasta-de-bernardo-pede-veto-imprensa-emaudiencias.html). Tal crime foi cometido por um casal com características de
Transtorno de Personalidade Antissocial44 semelhante ao casal Nardoni. A
menina Isabella de Oliveira Nardoni, 5 anos, foi arremeçada do 6.º andar de um
prédio em São Paulo. Seu pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina
Jatobá, foram condenados pela morte e estão presos. Desse modo, não se pode
esperar qualquer efeito sobre o comportamento desse perfil, por não haver
tratamento para o referido transtorno. Ana Beatriz Barbosa Silva (2010, p.20)
refere, no livro “Mentes Perigosas: o psicopata mora ao lado”, que sociopatas
desprezam escolher a alternativa correta, embora tenham capacidade de discernir
entre certo e errado: “A parte racional ou cognitiva dos psicopatas é perfeita e
íntegra, por isso sabem perfeitamente o que estão fazendo”. Deve-se fazer uma
análise desses criminosos inatos, pois a preocupação com essa patologia ainda
não alcançou o Brasil. Há descrença quanto a existência dessa patologia, o que
pode ser percebida por crimes característicos, tais como: “assassinos em série,
pais que matam seus filhos, filhos que matam seus pais, estupradores, [...]
estelionatários, [...] políticos corruptos[...]” (SILVA, 2010, p.45). A violência é
universal: a cada minuto pessoas são espancadas, torturadas, violentadas, em
todo o mundo. Silva (2010, p.41) exemplifica de maneira esclarecedora que
“psicopatas são indivíduos que podem ser encontrados em qualquer raça, cultura,
sociedade, credo, sexualidade, ou nível financeiro”. Nesse sentido, vivem
“infiltrados em todos meios sociais e profissionais, camuflados de executivos bemsucedidos, líderes religiosos, trabalhadores, “pais e mães de família”, políticos,
etc.” Os fisicamente frágeis ou emocionalmente vulneráveis estão em perigo
contínuo. Milhares de pessoas são vítimas nesse exato momento – escondidos
em porões, sequestrados, maltratados inclusive por parentes: seja pelos pais,
seja pelos filhos. Eles estão por toda parte, cercando suas vítimas. “Assim como
os vampiros da ficção, os psicopatas estão sempre de tocaia”. [...] “eles estão
agindo por aí: nas ruas, em plena luz do sol, procurando suas “presas”, às mesas
44
Publicada pela OMS – Organização Mundial de Saúde, na Classificação Internacional de
Doenças CID-10, este transtorno é chamado de Transtorno de Personalidade Dissocial, Código:
F60.2. A Associação de Psiquiatria Americana (DSM-IV-TR) utiliza o termo Transtorno de
Personalidade Antissocial, como estabelece a autora Ana Beatriz Barbosa Silva, p.39.
2638
de seus escritórios envolvidos em negociações escusas ou mesmo sob o teto
acolhedor de um lar que em instantes será devastado” (SILVA, 2010, p.46).
Então, o que fazer de útil: criar uma lei “anti-psicopatas”? A questão é que
o Estado não tem como saber nem como fiscalizar, dada a extrema dificuldade de
identificar esses seres sem emoção ou empatia, manipuladores, travestidos de
pessoas normais: “Eles estão por toda parte, perfeitamente disfarçados de gente
comum, e assim que suas necessidades internas de prazer, luxúria, poder e
controle se manifestarem, eles se revelarão como realmente são: feras
predadoras.” (SILVA, 2010, p.46). Falta uma análise feita por criminologistas
especializados em violência, que pesquisem para encontrar uma forma de
combate eficiente, e alertar a população. No caso Bernardo, o inquérito policial, o
qual “apontou que Leandro Boldrini atuou no crime de homicídio e ocultação de
cadáver como mentor, juntamente com Graciele”. De acordo com a polícia, “ele
também auxiliou na compra do remédio em comprimidos, fornecendo a receita
Leandro e Graciele arquitetaram o plano, assim como a história para que tal crime
ficasse
impune”
(In:
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardo-
boldrini/noticia/2014/09/chegava-com-olheiras-e-malvestido-diz-empresaria-queacolhia-bernardo.html).
Na noite de sábado, 29 de março de 2008, a menina Isabella de Oliveira
Nardoni, de 5 anos, foi jogada da janela do prédio onde seu pai, Alexandre
Nardoni, morava com a esposa, anna Jatobá, e seus dois filhos. A princípio o
casal alegou que o crime havia sido cometido por um intruso, mas os dois foram
considerados culpados por um júri popular. Suas penas foram 31 e 26 anos,
respectivamente. O delegado Calixto Calil Filho disse que a versão de tentativa
de invasao do apartamento, apresentada por Alexandre Nardoni, não esclarecia o
caso. No dia 31 de março, ocorreu o enterro de Isabella. A incoerência da história
relatada pelo pai e pela madrasta da menina foi evidenciada após os trabalhos
dos peritos. Através de ilustrações realizadas com base na planta do
apartamento, demonstrou-se que a versão do pai era incompatível com os dados
preliminares coletados pela perícia. A polícia havia pedido a prisão temporária do
pai e da madrasta de Isabella. No dia 6 de abril, houve a reconstituição do trajeto
percorrido, de carro, pela família na noite de sábado. De acordo com a
2639
investigação, Isabella teria sido assassinada entre 23h30 e 23h50. Em seguida,
teria a morte de Isabella sido provocada por asfixia ou pela queda? Se o pai
relatou que a deixou dormindo em seu quarto, por que a menina foi jogada do
quarto dos irmãos? Se Isabella foi deixada trancada sozinha no apartamento,
quem teria entrado? E como? A perícia já havia concluído que a tela de proteção,
localizada no quarto de onde a menina havia sido jogada, fora cortada com uma
faca e uma tesoura. Uma reportagem de Cesar Galvão apresentou as três
hipóteses de causa mortis de Isabella Nardoni: estrangulamento, convulsão, ou
parada respiratória provocada pela queda de quase 20 metros de altura. Laudos
comprovavam o envolvimento direto do casal na morte da criança. Houve três
laudos, cujo conteúdo foi apresentado: “o do IML, sobre o corpo de Isabella; um
fornecido pela criminalística, sobre o horário de entrada do carro na garagem do
prédio; e um último sobre cenário do crime, feito pelo Núcleo de Crimes Contra a
Pessoa”. Por meio desses laudos, “foi possível afirmar que Alexandre Nardoni
havia jogado a filha do sexto andar, e que as marcas de esganadura no pescoço
da menina eram compatíveis com as mãos da madrasta”. Em “24 de março de
2009, o casal Nardoni iria a júri popular. O julgamento, que começou em 22 de
março de 2010, durou cinco dias. O julgamento terminaria até a meia-noite do dia
26
de
março”
(In:
http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/caso-isabellanardoni/o-julgamento.htm).
Percebe-se que as vítimas ficam à mercê da (in)segurança pública. É
questionável por que os agentes públicos esperaram o crime acontecer.
Compare-se com a conhecida tragédia ocorrida na Boate Kiss, um incêndio
durante uma festa para universitários na boate Kiss em Santa Maria (RS), o qual
terminou em tragédia na madrugada do dia 27 de janeiro. O fogo iniciado próximo
ao palco durante “o show da banda Gurizada Fandangueira provocou correria e
pânico entre os frequentadores. A única saída disponível não foi suficiente para
que todos saíssem a tempo e mais de 240 pessoas morreram, asfixiadas por
fumaça tóxica” (http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/tragedia-incendio-boatesanta-maria/platb). O Alvará do Corpo de Bombeiros da boate estava vencido
desde 10 de agosto. A Kiss alegou ter “plenas condições” de estar aberta. Para a
2640
polícia, alguns fatores contribuíram na tragédia: “material do revestimento de
espuma, em vez de isolamento acústico indicado”; “sinalizador utilizado pela
banda em local fechado, indicado para locais abertos”; “superlotação do local, que
tinha capacidade para 691 pessoas e estava com cerca de 1.300 pessoas; saída
única, com porta de tamanho reduzido” (In: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-dosul/tragedia-incendio-boate-santa-maria-entenda/platb,
2014).
Falhou
a
administração, a fiscalização e o poder de investigar do MP. O Estatuto da
Criança
e
do
Adolescente
(ECA)
estabelece,
no
capítulo
três,
(dos
procedimentos), seção II, da perda e da suspensão do poder familiar, art.155 “o
procedimento para a perda ou a suspensão do poder familiar terá início por
provocação do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse.”
No Caso Bernardo, foram feitas diversas tentativas de pedido de ajuda: a
criança procurou ajuda externa, mas ninguém acreditou. Por quê? Cabe aqui
também uma reflexão sobre todo o sistema judiciário. Deveria o Ministério Público
ter investigado, na época, as queixas da vítima; mas não agiu, enquanto o caso
se tornava mais grave, até ocorrer o crime, e ser o mesmo destinado ao júri –
quando o menino não está mais vivo. Não há lei que possa assegurar que um
funcionário público faça o seu trabalho. Apenas o artigo 37 da Constituição
Federal (BRASIL, 1988) preza pela moralidade administrativa, in verbis: "A
administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]". Sindicância
apurou que houve falha da guarnição por não ter sido feito o Boletim de
Atendimento. “A Brigada Militar de Três Passos abriu Processo Administrativo
Disciplinar (PAD) contra o policial militar que deixou de registrar ocorrência da
noite em que esteve na casa do médico Leandro Boldrini, em agosto de 2013,
para apurar uma denúncia de gritos na região”. Trata-se de atendimento ocorrido
“no dia em que o médico teve uma briga com o filho Bernardo Uglione Boldrini —
registrada em vídeo com os gritos de socorro do menino.” (In: IRION, Adriana.
http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/11/bm-abre-processo-contrapolicial-que-esteve-na-casa-de-bernardo-em-noite-de-briga-4639614.html)
2641
Joaquim Ponte Marques desapareceu da casa em que a família morava,
em Ribeirão Preto (SP), no dia 5 de novembro. O corpo foi encontrado cinco dias
depois, boiando no Rio Pardo, a cerca de 100 quilômetros do local do sumiço. Longo
e a companheira, Natália Ponte, mãe de Joaquim, foram presos no dia 10 de
novembro de 2013 em Barretos (SP). Natália passou 31 dias na Cadeia Feminina
de Franca (SP), até obter o primeiro habeas corpus. Em 4 de janeiro de 2014, voltou a
ser presa, mas conseguiu ser libertada seis dias depois. O casal responde por
homicídio
triplamente
qualificado.
(In:
http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-
franca/caso-joaquim/noticia/2015/02/stj-nega-pedido-de-habeas-corpus-padrastodo-menino-joaquim.html) Para a Polícia Civil e para o Ministério Público, o padrasto
matou Joaquim com uma alta dose de insulina - o menino era diabético e fazia
tratamento com o uso do medicamento – e jogou a criança em um córrego próximo à
residência.
(In:
http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/caso-
joaquim/noticia/2015/02/defesa-recorre-comissao-de-direitos-humanos-paralibertar-longo.html) O irmão de Natália, Alessandro Ponte, revelou à polícia que teria
recebido um telefonema anônimo com a denúncia de que Guilherme Longo, padrasto
do menino e principal acusado do crime, teria saído de casa na madrugada do dia 5
de novembro com Joaquim no colo e seguido em direção ao córrego onde o corpo do
menino foi jogado. “Os laudos mostram que o Joaquim já foi jogado no córrego sem
vida.”
(In:
http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/caso-
joaquim/noticia/2014/08/irmao-de-natalia-ponte-e-o-primeiro-depor-na-justica-sobrecaso-joaquim.html) O relatório final do inquérito policial indicia o padrasto do menino,
Guilherme Longo, pelos crimes de homicídio doloso triplamente qualificado e
ocultação de cadáver. No entanto, o trajeto feito pelos cães farejadores e a diferença
de doses de insulina encontrada em uma das canetas que eram utilizadas no menino
– que sofria de diabetes – foram determinantes para incriminar o padrasto. “A falta de
insulina na caneta em quantidade excessiva também foi um indício importante. A
substância não vaza da caneta sozinha, tem que ser feita alguma aplicação", explica.
Não havia testemunhas no dia do desaparecimento do menino. "Somente a vítima e o
autor participaram do crime. Não houve lesão, não houve violência física contra a
criança, nem marcas do crime premeditado, o que não deixou muitos vestígios.”,
relatou o delegado da dificuldade no inquérito. (In: http://g1.globo.com/sp/ribeirao-
2642
preto-franca/caso-joaquim/noticia/2013/12/caes-farejadores-e-caneta-de-insulinaincriminaram-padrasto-de-joaquim.html) Segundo a Promotoria, Natália teve um
comportamento considerado omisso por saber do comportamento agressivo de
Longo. Arthur Paes Marques, em entrevista à reportagem da EPTV, nega na relação
entre padrasto, mãe e filho, a existência de uma família feliz defendida por Natália em
seus depoimentos. Causou estranheza “as testemunhas de defesa da Natália, que
até a fase policial culpavam Guilherme, agora o trazem como um santo. Como se
nada daquilo tivesse ocorrido, como se fosse uma família feliz”, afirmou. (In:
http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/caso-joaquim/noticia/2014/09/nataliaponte-e-maior-culpada-pela-morte-de-joaquim-diz-pai-do-menino.html)
Crimes
famosos
foram
noticiados
nos
últimos
anos.
Observa-se
coincidências e procura-se saber por que há semelhanças nesses crimes
mencionados. Os tres casos relatados expõe crianças que foram mortas por
integrantes da própria família.
4 ANÁLISE CRÍTICA
O desfecho dessas histórias remete ao julgamento dos culpados. Tratandose o criminoso de um antissocial, há ambiguidade do julgamento: reconhecer é
admitir doença mental, revertendo-se em benefício dele. Por isso é melhor não
reconhecer, uma vez que a lei brasileira os privilegia como sendo “semiimputável”. No sistema penal brasileiro, a lógica reverte-se em benefício do
assassino, e não da sociedade. Enquanto na Common Law, existe o princípio de
proteção da comunidade, nosso sistema trata dos direitos individuais do acusado.
Na realidade, o equívoco interpretacional é a lógica do Direito Civil, que é Direito
Privado, dentro do Penal, que é Direito Público. O maior direito que está em
discussão, nesse caso é o interesse da sociedade. Evidentemente, o interesse do
criminoso é ser solto. Na sociedade não cabe o risco que é sua presença. Sua
soltura não está dentro do limite do aceitável e tolerável. Não há pena de morte,
nem prisão perpétua, mas medida de segurança pode ser perpétua. A referida
patologia discutida neste trabalho tem plenas condições de avaliar suas ações,
mas seus critérios são diferentes da conduta social: quando suas “necessidades”
2643
ou melhor dizendo, vontades, não forem atendidas, matam livremente. O direito
romano-germânico é tradição repetitiva de mudanças lentas. A personalidade
dissocial inverte essas concepções consideradas sólidas, arraigadas em
premissas clássicas da negação de sua existência. Nesse ideal, a racionalidade
da pena teria efeito sobre o criminoso. Com efeito, fazê-lo entender sua
“irracionalidade” de cometer crime, o que provém do ideal iluminista de que
humano é racional. Entretanto, o psicopata é 100% racional e 0% emocional,
prova de que está errada a suposta racionalidade que não determina sua
humanidade: empatia é irracional. Nesse contexto, evidencia-se que o magistrado
laborou em equívoco, ao decidir que o menor continuasse com seu familiar-algoz,
que só o queria como fonte de renda. Em contrapartida, ironicamente, alguns
advogados lucraram uma causa tão desafiadora. Um pequenino foi encontrado
morto e isso é real, mas defesas estrategistas criam fantasmas, para livrar seus
clientes, seguindo o raciocínio de que basta plantar uma dúvida e pronto: in dubio
pro reo. Com criatividade, se usa a legislação como mero artefato, podendo-se
distorcer o significado de depoimentos, documentos, etc., para encaixar no
processo, e inviabilizá-lo. Aqueles que defendem seus clientes nesses termos –
sabendo de sua culpa e, além de garantir seus direitos, criam tese absolvitória –
soam iguais a eles, por sua lógica e comportamento. Colocam-se em posição de
autoridade, como quem possui um segredo importante, e tem poder; mas, na
verdade, o “segredo” – que é a lei – não foi criado para satisfazer as evidenciadas
paixões de ganhar o “jogo” a qualquer custo. Essa falta de limites na dinâmica
processual penal causa impacto aos desconhecedores do Direito, disciplina cheia
de brechas interpretativas. Em seguida, uma lei sobre palmadas? A violência
ocorrida era moral (FREITAS, 2014), houve tortura psicológica, como revelam os
vídeos, obtidos pela perícia, do celular do acusado, divulgados pela mídia. (In: G1,
Defesa da madrasta de Bernardo pede veto à imprensa em audiências, 2014). Precisa
haver uma lei para que as pessoas, ou pelo menos os agentes públicos, ouçam
os gritos das vítimas, por socorro? Falta cidadania, solidariedade, que a
burocracia estabelecida em lei não pode amenizar. Ninguém comunica à polícia.
Nem mesmo ao Conselho Tutelar, até porque, no caso em questão,
surpreendentemente, foi uma assistente social – amiga da madrasta – que ajudou
2644
a matá-lo. A propósito, já estão previstas no E.C.A. (Estatuto da Criança e do
Adolescente) as mesmas desrespeitadas prerrogativas nas quais o Conselho
Tutelar não é atuante. A nova lei traz mudanças insignificantes. O artigo 1º
estabelece que o ECA passa a vigorar acrescido dos seguintes artigos: 18-A, 18B e 70-A: O artigo 18-A dispõe que a criança e o adolescente têm o direito de ser
“educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou
degradante, como formas de correção, disciplina, educação [...] pelos pais, [...],
agentes públicos [...] de medidas socioeducativas ou” por qualquer encarregado
de cuidá-los, “[...] educá-los ou protegê-los.”
Sob este prisma, a Constituição Federal, no capítulo VII, art.227, caput,
encarrega como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança
e ao adolescente, “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” O
parágrafo §4º diz que a “lei punirá severamente o abuso, a violência e a
exploração sexual da criança e do adolescente.” Dispositivo semelhante encontrase no ECA, em seu artigo 4º, estabelecendo como dever da família, da
comunidade, da sociedade em geral e do poder público “assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, dignidade, ao
respeito, à liberdade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.” Seu parágrafo único, alínea a dá “primazia de receber proteção e
socorro em quaisquer circunstâncias.” Nota-se que, na legislação brasileira, há
artigos que se fazem, em vez de pertinentes, meros “enfeites”. Na prática não há
maneira de tornar-se viável, praticável, tornando surreal ou até mesmo cômico ao
não fazer-se cumprir. São exemplos o art.18 do ECA, que diz ser “dever de todos
velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer
tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” Do
mesmo modo, o art.70: “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou
violação dos direitos da criança e do adolescente.” Há contradições tornando
dever de todos, da sociedade e por vezes, apenas permitindo aos órgãos públicos
2645
ou autoridades que tomem providências. Não há punição, e mesmo previsto na lei
alguma sanção, não é efetivada por ser contraditória. Nota-se um equívoco
quanto à função legislativa. A lei difere dos costumes. A lei como dever ser,
diferentemente do ser, tem sanção. A coerção punitiva é o que a torna aplicável.
Uma lei não serve para aconselhar, e sim, para punir. Orientações de conduta
devem ser feitas com programas sociais, mas não por lei. Senão, ela perde sua
função. Esta lei não aplica sanção alguma, não gera efeitos, não é eficaz, tendo
sido feita apenas a fim de gerar um debate. Há leis em demasia no ordenamento
jurídico brasileiro, o que implica no desconhecimento geral da população quanto a
seus direitos. Resultado dessa própria criação de leis desnecessárias, repetitivas
e surreais, de concretização impraticável. Isso as torna ilusórias. Daí decorre o
problema da injustiça, um sistema incoerente e contraditório. Nos países mais
desenvolvidos, as leis são ínfimas. A quantidade menor de leis acaba por tornar o
sistema mais qualitativo. Não é saudável para o sistema brasileiro a superlotação
de leis. É necessário abdicar, selecionar as mais importantes e tornar o sistema
viável, dinâmico, rotativo. Fazendo-se uma analogia, abdicar dessa lotação
legislativa seria como diminuir artefatos empoeirados em um quarto inabitado:
quanto mais objetos tiver mais difícil de identificá-los, de limpar o ambiente e de
conviver, pois não cabe, não há espaço suficiente para viver adequadamente. A
sociologia classifica parte de uma "lógica eleitoral", que inclui agir ou redigir leis
apenas para o fim de conseguir votos, para obter a reeleição do titular da
aprovação de uma eventual lei “aplaudida” na mídia, mas não com o propósito
real de resolver algum problema.Sendo assim, o projeto (PLS 7672/2010) propõe
apenas mais uma lei desnecessária, possivelmente apenas com o propósito de
promover na mídia o congressista que a propôs, e como uma manobra política:
dar aos cidadãos a errônea e falsa sensação de que há uma resposta do Estado.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todas as mortes antes referidas, poderiam ter sido evitadas, se os órgãos
competentes tivessem agido de modo mais atento, e portanto responsável. De
que serve no presente momento, criar uma lei, senão de pseudo-diligência?
2646
Entretanto, o cadáver da vítima não mente. Torna-se mais difícil solucionar um
caso ou evitar que um crime maior aconteça, quando falham os agentes públicos.
Do mesmo modo, não se espera que pais assassinem seus filhos – tal ato é
inimaginável – não se está preparado para lidar com essas situações, muitas
vezes por incredulidade, uma vez que o elemento surpresa dificulta a iniciativa. É
custoso, e por isso, resiste-se a admitir que não há limites para a perversidade de
pessoas portadoras dessa patologia mental. Por outro lado, é desconcertante
perceber que por trás de órgãos públicos, não há necessariamente cidadãos
empenhados em fazer bem o seu trabalho, mas é possível que haja descaso com
a lei, com as vítimas. Criam-se novas leis, devido ao desconhecimento geral da
população sobre seus direitos. O que já constava no ECA não foi cumprido na
prática no caso concreto. Como pseudosolução, cria-se outra lei, com as mesmas
prerrogativas: uma ilusão de que se cumpra doravante. Devido a divulgação, atua,
de certa forma como um precedente. Eis a tentativa de se fazer cumprir a lei no
Brasil. Não basta ficar inconformado com tantas vidas perdidas. Deve-se lutar
pela concretização da lei. A denominada “Lei Menino Bernardo” resta apenas
como homenagem a uma mais uma vítima de assassinato pelo próprio genitor. A
seguir como está, a lei não solucionará nada, nem impedirá que novos casos
aconteçam diariamente: crianças sendo mortas – Isabellas e Bernardos,
imperceptíveis. Ocorrem crimes hediondos a todo momento. A violência é
universal: crimes são rotineiros, enquanto a sociedade se distrai no cotidiano;
para isso, a legislação é inexitosa.
REFERÊNCIAS
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<http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=483
933>
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Planalto. Presidência da República, casa civil, subchefia para assuntos
jurídicos. Lei 13.010/2014. Acesso em 13.12.2014, disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13010.htm>.
2647
Coberturas, caso Isabella Nardoni. Acesso em 12.12.2014, disponível em:
<http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/caso-isabellanardoni/o-julgamento.htm>.
Defesa da madrasta de Bernardo pede veto à imprensa em audiências. Acesso em
12.12.2014, disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/casobernardo-boldrini/noticia/2014/08/defesa-da-madrasta-de-bernardo-pede-vetoimprensa-em-audiencias.html>
FREITAS, C. Chegava com olheiras e malvestido, diz empresária que acolhia
Bernardo. Acesso em 12.12.2014, disponível em: <http://g1.globo.com/rs/riogrande-do-sul/caso-bernardo-boldrini/noticia/2014/09/chegava-com-olheiras-emalvestido-diz-empresaria-que-acolhia-bernardo.html>
IRION, A. BM abre processo contra policial que esteve na casa de Bernardo
em noite de briga. Acesso em 12.12.2014, disponível em:
<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/11/bm-abre-processo-contrapolicial-que-esteve-na-casa-de-bernardo-em-noite-de-briga-4639614.html>.
Laudos não esclarecem causa da morte. Zero hora: 9 set.14. Acesso em
12.12.2014, disponível em
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2649
ACESSO À JUSTIÇA PENAL:
REFLEXÕES SOBRE A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO
GRANDE DO SUL
Priscila Vargas Mello45
Dani Rudnicki46
Simone Schroeder47
RESUMO: O estudo apresenta reflexões sobre o acesso à justiça penal,
especialmente no que tange à atuação da defensoria pública nos processos
criminais. Para o desenvolvimento do mesmo, partiu-se de uma abordagem
dialética, da observação de unidade prisional feminina e do atendimento prestado
pela defensoria em duas unidades jurisdicionais, bem como de entrevistas
realizadas com defensores públicos e apenadas. Embora a dogmática entenda
que o acesso à justiça penal corresponda a um núcleo mínimo imprescindível à
dignidade humana do indivíduo processado criminalmente, na prática, tais
pessoas sofrem os efeitos de defesas formais. O defensor desconhece a
realidade do assistido e o assistido desconhece o seu defensor, os seus direitos e
sequer tem condições de resistir às restrições do poder punitivo estatal, violando
a ampla defesa e o contraditório. Desta forma, o acesso à justiça penal deve ser
compreendido para além do acesso aos tribunais por meio de uma defesa formal,
trata-se do direito do assistido de ser compreendido, visto, ouvido, conhecido por
parte daqueles que compõe o cenário da justiça criminal e isso só poderá ser
construído no processo e execução penal mediante a presença efetiva de
defensores (sejam esses públicos, dativos e/ou privados) comprometidos em
45
Advogada, mestranda em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis com bolsa de
dedicação exclusiva concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), bacharel em direito pela mesma instituição e acadêmica de Filosofia
(licenciatura)
pela
Universidade
Federal
do
Rio
Grande
do
Sul
(UFRGS).
[email protected]
46
Professor titular da disciplina Direitos Humanos e Violência do Programa de Pós Graduação em
Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS). É colaborador do Ministério da Educação e da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio Grande do Sul, militante do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio
Grande do [email protected]
47
Professora adjunta do Centro Universitário Ritter dos Reis - Uniritter Laureate International
Universities, na área de Direito Penal e desempenha a atividade de Coordenadora responsável
pelo Núcleo de Extensão em Execução Penal/Uniritter com ênfase em cárcere e acesso à
justiça. Mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
[email protected]
2650
apreender as necessidades e direitos de todo e qualquer indivíduo submetido ao
sistema penal.
PALAVRAS-CHAVE: acesso à justiça; defensoria pública; atendimento; prisão.
1 INTRODUÇÃO
Nos
últimos
anos
observa-se
o
desenvolvimento
de
ferramentas
tecnológicas e alterações legislativas com o objetivo de concretizar o acesso
democrático aos tribunais. No entanto, em razão da dinamicidade da sociedade
(relações de poder, interesses em jogo, etc.), tais respostas não são suficientes
para garantir que os indivíduos demandem seus direitos de forma plena, a justiça
demanda custos para locomoção e o acesso ao atendimento da assistência
pública ainda está distante das regiões mais vulneráveis e do dia a dia das
instituições punitivas.
Assim, abordar a garantia de acesso à justiça consiste em refletir sobre a
dificuldade do cidadão de chegar até o órgão jurisdicional, ser compreendido e
compreender os seus direitos e exigir do estado o cumprimento das garantias que
lhe são asseguradas pelas normas de direitos humanos, pelos direitos
fundamentais e garantias processuais. Por isso, o debate sobre o acesso à justiça
se mostra um tema de relevância e de caráter permanente, uma vez que as
estruturas do sistema de justiça devem absorver as diferentes concepções de
limitações a fim de viabilizá-lo de forma plena.
Desta forma, o artigo tem como objetivo apresentar reflexões sobre a
atuação da defensoria pública do estado do Rio Grande do Sul, especificamente
no âmbito de atendimento dos processos criminais, a fim de verificar como se
realiza a comunicação da defensoria com os assistidos e familiares, de que forma
são realizados os atendimentos, repasse de informações e construção das
defesas processuais. Para desenvolvimento da pesquisa, parte-se de uma
abordagem dialética, da observação de unidade prisional feminina e do
atendimento prestado pela defensoria em duas unidades jurisdicionais, bem como
de entrevistas realizadas com defensores públicos e apenadas privadas da
liberdade da Penitenciária Feminina Madre Pelletier.
2651
De acordo com Oliveira (2004), trata-se de pesquisa sócio-jurídica, pois se
utiliza a sociologia para análise de um objeto do direito. Ademais, o objetivo
consiste em descrever as relações que se desenvolvem no campo a partir do
atendimento prestado pela defensoria pública, analisar a qualidade e efetividade
do atendimento disponibilizado, verificar a forma como as informações são
repassadas ao assistido ou ao terceiro que compareça no lugar daquele durante o
atendimento, ou seja, “[...] descrever um sistema de relações, mostrar como as
coisas interagem dentre o de uma rede de influência múltipla ou suportam uma
relação de interdependência ou qualquer coisa, a fim de descrever as conexões
entre as especificidades” (BECKER, 2014, p.188), portanto, apreender detalhes e
construir uma percepção sobre o acesso à justiça penal.
O estudo divide-se em cinco partes, a primeira e a segunda delimitam a
concepção do direito de acesso à justiça e sua dinâmica no processo penal; a
terceira analisa o papel da defensoria pública no processo penal; a quarta
descreve as percepções a partir da pesquisa de campo e; a quinta desenvolve o
cruzamento dos dados, ou seja, apresenta as reflexões resultantes do
tensionamento entre a concepção dogmática e normativa do acesso à justiça
penal e a realidade do atendimento prestado pela defensoria pública no ambiente
prisional.
2 O ACESSO À JUSTIÇA
Em análise ao panorama normativo, verifica-se que o acesso à justiça está
elencado como um direito humano na Declaração de Direitos Humanos de 1948
(artigo VIII), na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigos 8, 2, “e” e 25)
e como direito fundamental dos cidadãos brasileiros, conforme o disposto no
artigo 5º, inciso LXXIV da Constituição Federal de 1988. O Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos, incorporado ao ordenamento jurídico pátrio por meio do
Decreto nº 592 de 1992, ao reconhecer a dignidade humana como atributo
inerente a todo o ser humano, estabeleceu que os países membros possuem a
obrigação de promover o respeito universal e efetivo dos direitos humanos ali
elencados, mediante a criação de leis ou promoção de atividades que se façam
2652
necessárias para alcançar os objetivos traçados. O artigo 14 deste acordo
internacional estabelece toda a diretriz necessária para a garantia de um
processo humano, democrático e justo, a partir do pressuposto de que a pessoa
acusada de um crime tem o direito de ser defendida por um defensor constituído
e, não o tendo, de receber a respectiva informação, bem como, ser representada
por um defensor designado de forma gratuita pelo estado (PIOVESAN, 2011).
O relatório desenvolvido por Cappelletti e Garth, em face do Projeto
Florença, sob título “Acesso à Justiça”, embora não tenha tratado sobre as
limitações,
seletividade
e
desigualdades
inerentes
à
justiça
criminal
(SINHORETTO, 2014, p.403), possui reflexões fundamentais para o tema. Para
eles, o acesso à justiça deve ser compreendido a partir de duas perspectivas, a
primeira como acesso efetivo a um sistema que viabilize a reivindicação de
direitos e resolução de conflitos e a segunda como acesso a resultados social e
igualmente justos, ou seja: “[...] a garantia de que a conclusão final depende
apenas dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com
diferenças que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação
e reivindicação dos direitos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.15). A partir disso,
o acesso à justiça é compreendido como o mais fundamental dos direitos
humanos, pois é através dele que os indivíduos podem demandar do Estado a
efetivação de outros direitos e garantias fundamentais (CAPPELLETTI; GARTH,
1988, p.12).
Segundo Rudnicki (2001, p.2),
[...] o acesso à justiça é um conceito jurídico que engloba desde a
oportunidade da pessoa de ser assistida por um advogado até o
conhecimento de seus direitos e a garantia de efetividade dos mesmos.
Acesso à justiça é ensinar às pessoas quais são os seus direitos,
transformar o Judiciário para que os cidadãos não temam reivindicá-los,
bem como criar instrumentos para que os direitos sejam efetivados,
assegurados.
Por conseguinte, Cappelletti e Garth (1988) entendem que o acesso à
justiça pode ser compreendido a partir de três ondas políticas. A primeira se
refere à assistência judiciária para os pobres, ou seja, de políticas e modelos que
proporcionam a plena utilização dos serviços jurídicos; a segunda analisa
reformas que possibilitam o pleito de direitos coletivos e/ou de caráter difusos; por
fim, a terceira engloba políticas de facilitação do acesso, como simplificação dos
2653
procedimentos, linguagem e aspectos simbólicos, assim como medidas para
processamento de causas de menor valor.
Segundo Junqueira (1996), o movimento de estudo e pesquisa do acesso à
justiça, no contexto brasileiro, se deu a partir da década de 80 e não teve relação
com as ondas políticas elencadas por Cappelletti e Garth. Enquanto eles tinham o
enfoque central na análise das ondas de acesso à justiça, a fim de buscar
mecanismos para efetivação dos direitos prometidos pelo walfare state, no Brasil,
a preocupação relacionava-se com a promoção de direitos básicos, como acesso
à moradia e saúde. Ou seja, as ondas de acesso à justiça não se sucederam no
Brasil e o pluralismo jurídico foi o caminho para se travar o debate no contexto
brasileiro.
No entanto, embora em um contexto político e social diverso do brasileiro,
Cappelletti e Garth chamaram a atenção para obstáculos presentes até os dias
atuais: a justiça, a despeito de desenvolver procedimentos simplificados, ainda é
cara e as pessoas têm dificuldade em compreender os seus direitos. Nesse
sentido, o estudo de Santos (1999, p.147) se aproxima da realidade brasileira e
confirma a existência de barreiras econômicas, sociais e culturais que impediam
(e ainda obstam) o acesso democrático aos tribunais, concluindo que a existência
de um órgão que preste atendimento jurídico ou o desenvolvimento de reformas
processuais não são suficientes para resolver o problema de acesso aos
tribunais.
Isso porque tal fenômeno relaciona-se com numerosos fatores que devem
ser analisados de forma sistemática. Por exemplo, o fato de que pessoas com
menos recursos tendem a conhecer menos os seus direitos, ou, quando
conhecem, hesitam em pleiteá-los por medo de sofrerem alguma represália; a
distância geográfica entre o cidadão e os órgãos responsáveis pelo atendimento
jurídico e jurisdicional; a realização de atendimentos jurídicos de maneira
inadequada mediante a exposição do cidadão a situações constrangedoras e
humilhantes (ou seja, que tenham dado origem a uma experiência negativa)
tendem a contribuir para que o assistido oscile em postular seus direitos, em face
da sensação de que o atendimento jurídico prestado àqueles que possuem mais
recursos financeiros é melhor do que o prestado aos que não dispõem de uma
2654
defesa/atendimento particular. Além disso, quanto mais pobre, menos provável
que o indivíduo conheça algum advogado, ou saiba onde e quando contatar um
profissional (SANTOS, 1999, p.148).
Desta forma, abordagens sobre o acesso à justiça ensejam a reflexão
quanto às limitações sociais inerentes ao sistema de justiça. No campo do direito,
a concepção de acesso à justiça penal é analisada como elemento imprescindível
para consolidação da própria dignidade humana daquele que for submetido à
dinâmica do processo penal (SOUZA, 2011, 294-295; LOPES JUNIOR, 2007,
p.390-391; GIACOMOLLI, 2014, p.14-17; SCHROEDER, 2006, p.53). Isto é, a
garantia de acesso à justiça é compreendida como parte de um mínimo
existencial imprescindível para demanda de outras garantias, o que precisa ser
viabilizado pelo atendimento da defensoria pública na hipótese do acusado não
ter condições de arcar com os custos de uma defesa particular, pois é dever do
estado, enquanto responsável pela proteção dos direitos humanos, garantir a
existência de um atendimento público de qualidade para todos os seus
cidadãos.48
3 ACESSO À JUSTIÇA PENAL
O debate sobre acesso à justiça, em sua maioria, realiza-se no contexto do
processo civil. No âmbito do processo penal, embora algumas categorias sejam
relevantes para análise do tema, faz-se necessário o estranhamento e o
redirecionamento do debate. O estudo de Silva (2001, p.103) vincula o acesso à
justiça penal ao oferecimento de um serviço adequado de atendimento jurídico,
bem como a interpretação das normas processuais penais de acordo com os
princípios constitucionais. O autor entende que a ausência de acesso à justiça no
âmbito criminal fomenta a marginalidade e exclusão inerentes ao sistema, sendo
48
“Se é o respeito pela dignidade da pessoa humana que fundamenta uma doutrina jurídica dos
direitos humanos, esta pode, da mesma maneira, ser considerada uma doutrina das obrigações
humanas, pois cada um deles tem a obrigação de respeitar o indivíduo humano, em sua própria
pessoa bem como na das outras. Assim também o Estado, incumbido de proteger esses direitos
e de fazer que se respeitem as obrigações correlativas, não só é por sua vez obrigado a absterse de ofender esses direitos, mas tem também a obrigação positiva da manutenção da ordem.
Ele tem também a obrigação de criar as condições favoráveis ao respeito à pessoa por parte de
todos os que dependem de sua soberania” (PERELMAN, 1996, p.401).
2655
imprescindível a reformulação de procedimentos para que (I) privilegiem medidas
alternativas de resolução de conflito, (II) fomentem a educação em direito dos
cidadãos e que (III) aperfeiçoem de forma constante os operadores jurídicos, para
que tenham condições de absorver a crescente demanda e fornecer, ao mesmo
tempo, um serviço de qualidade.
De acordo com Souza (2011, p.290), a adequada compreensão do acesso
à justiça penal relaciona-se com o fato de que o acusado, ao contrário do que
acontece em outros ramos do direito, não tem intenção direta de demandar contra
o estado. Isto porque, o interesse do processo penal (liberdade) diferencia-se dos
objetivos de outros ramos do direito e é fundamental pensá-lo a partir de suas
próprias categorias e das particularidades que emergem do seu desenvolvimento
no tempo, ou seja, a teoria geral do processo (e as concepções utilizadas no
processo civil) não tem lugar neste debate (LOPES JUNIOR, 2015, p.68-70).
Portanto, o acusado precisa de um defensor que o auxilie na construção de sua
defesa técnica, atento à efetivação das garantias processuais e preocupado em
evitar a restrição ilegítima de direitos, pois “O respeito à dignidade da pessoa, no
âmbito penal passa, necessariamente, pela minimização criminal da intervenção
estatal em todas as esferas institucionais dos mecanismos intervencionistas”
(GIACOMOLLI, 2008, p.334).
Neste contexto, o acesso à justiça penal abrange o direito de uma defesa
material. Trata-se de garantir que todo o indivíduo processado (ou em
cumprimento de condenação criminal) tenha acesso a uma defesa preocupada
com o respeito às garantias processuais e constitucionais, apresentando
alegações adequadas ao se manifestar, presente nos atos solenes, produzindo
peças processuais motivadas, contraditando as acusações; uma defesa atenta à
dinâmica processual e às peculiaridades do caso concreto, pois, ao contrário
disso, estar-se-ia privilegiando uma defesa formal e não condizente com o mínimo
existencial no contexto de um estado democrático de direito (SOUZA, 2011,
p.290, 294, 301).
Desta forma, verifica-se que o debate sobre o acesso à justiça penal
vincula-se também ao exercício da defesa material. O acesso à defesa penal
material relaciona-se com a própria condição humana e de dignidade do
2656
processado, isso porque, sem a presença de um defensor, não há como resistir
às acusações apresentadas, tampouco ser ouvido e garantir o respeito às
garantias fundamentais (GIACOMOLLI, 2008, p.340).
Aliás, a mera assistência judiciária integral e gratuita (a ser prestada pela
defensoria pública para aqueles que não tiverem condições de arcar com uma
defesa particular) é insuficiente para solucionar a problemática do acesso à justiça
penal, pois a simples presença do defensor ou cumprimento de prazos
processuais resulta em efetivação formal do direito de acesso à justiça em
prejuízo do contingente marginalizado na justiça criminal (RUDNICKI, 2001, p.2).
Nesse sentido, Cappelletti e Garth (1988, p.68-69) também sustentam que a
assistência judiciária gratuita não é suficiente para efetivar o acesso à justiça, pois
a simples garantia de assistência judiciária pode ser um “[...] substitutivo simbólico
para a redistribuição de vantagem. [...] Cada vez mais se reconhece que, embora
não possamos negligenciar as virtudes da representação judicial, o movimento de
acesso à Justiça exige uma abordagem muito mais compreensiva da reforma”.
A teoria em muitos casos não corresponde à realidade. Embora a norma
jurídica estabeleça regras para um jogo universal com elementos de um processo
penal de garantias, isso, por si só, não impede que os operadores jurídicos
restrinjam direitos fundamentais dos acusados importando elementos estranhos
ao procedimento (ROSA, 2014, p.18-19). Alguns partem da premissa de que o
processo penal tem como elemento fundamental a liberdade do acusado para
evitar o exercício punitivo arbitrário (LOPES JUNIOR, 2015, p.32); outros utilizam
o mesmo processo penal como instrumento de poder e para restrição de direitos
(SANTOS,
2008,
p.13-14;
ZAFFARONI;
PIERANGELI,
2007,
p.58-62;
COUTINHO, 2001, p.45-48; LOPES JUNIOR, 2015, p.71-72; ROSA, 2014a, p.19),
razão pela qual a abordagem empírica de determinado tema é fundamental para
adequada reflexão.
4 O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NO PROCESSO PENAL
Os artigos 134º e 5º, LXXIV da Constituição Federal de 1988, elencam a
defensoria pública como instituição essencial à função jurisdicional do estado. No
2657
mesmo sentido é o exposto no artigo 1º da Lei Complementar Federal nº 80 de 12
de janeiro de 1994, ao estabelecê-la como instituição permanente. Trata-se de
ente político essencial à função jurisdicional estatal, incumbindo-lhe, como
expressão e instrumento do regime democrático, a orientação jurídica, a
promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, dos direitos
individuais e coletivos dos cidadãos, de forma integral e gratuita.
Segundo Alves e Pimenta (2004), a defensoria pública pode ser definida
como o ente responsável pelo “efetivo exercício do contraditório e da ampla
defesa, mesmo àqueles economicamente suficientes, quando a causa verse
sobre direitos indisponíveis”. Além de tudo, o defensor público também assume o
papel de transformação social em defesa da concretização da cidadania,
mediante o uso de ferramentas extrajudiciais para resolução de conflitos,
orientação jurídica e educação de direitos (ROCHA, 2007, p.14).
Sustenta Santos (2013, p.12) que o acesso democrático à justiça depende
da criação de uma nova cultura em relação à consulta e assistência jurídica, em
que a defensoria pública tem um papel de grande importância. Esta instituição
agrega a vantagem de contar com profissionais especializados para o
desempenho da defesa de interesses coletivos e difusos das classes fragilizadas,
utilizando-se, inclusive, de ferramentas extrajudiciais para resolução de conflitos e
de atividades que contribuam ao acesso à informação. Portanto, os defensores
públicos teriam melhores condições políticas de promover o atendimento àqueles
desvelados das condições necessárias para acesso aos tribunais e devem utilizar,
no seu dia a dia, a sociologia das ausências, mediante o reconhecimento e
afirmação dos direitos destes cidadãos impotentes e invisíveis em meio à busca
por justiça.
Proceder com a sociologia das ausências significa dizer que a invisibilidade
dos assistidos precisa ser apreendida de forma a tornar-se presente e conhecida
pela sociedade. Logo, a experiência assimilada através do encargo público deve
ser utilizada para demonstrar à sociedade que perder este contato, negligenciar
este atendimento e fechar os olhos para esta realidade representa o desperdício
de experiências e de viabilização de alternativas para promoção de políticas
públicas de reinserção, de igualdade, de materialização democrática e de
2658
crescimento social. O representante institucional precisa trabalhar consciente do
objetivo (e da importância) de desmitificar o estigma do assistido e desconstruí-lo,
tornando-o visível, tangível e compreensível (SANTOS, 2013, p.12-13).
A prestação de assistência judiciária por um órgão institucional
vocacionado para esta função pública, também vem ao encontro das
necessidades de um estado democrático de direito, que por sua vez, possui como
primado fundamental a igualdade substancial dos indivíduos. Ou seja, não basta
uma previsão legal que garanta, formalmente, o acesso à justiça para os mais
necessitados – até porque, conforme a crítica efetuada por Bobbio (2004, p.25), a
problemática dos direitos humanos não está atrelada ao seu fundamento, mas
sim à sua proteção e efetividade. Assim, salienta-se que a existência da
defensoria pública, por si só, não é suficiente para solucionar a problemática do
acesso à justiça, que necessita da análise de vários fatores (CAPPELLETTI;
GARTH, 1988, p.89), pois, ao contrário, corre-se o risco de incidir no equívoco da
dogmática tradicional, a qual entende que a simples garantia de assistência
judiciária gratuita, somada à criação da defensoria pública e atendimento jurídico
gratuito prestado pelas universidades e entidades não governamentais, é
suficiente para solucionar a questão (RUDNICKI, 2001, p.2).
Entretanto, nas observações efetuadas (que serão analisadas no item 4
deste estudo), observa-se que esta instituição não possui estrutura funcional
suficiente para amplo exercício de seu postulado, seja pela ausência de repasse
financeiro, inexistência de políticas públicas de apoio (GONÇALVES, 2011, p.30)
ou de paridade de armas para com os demais setores da justiça.49 Essa
circunstância
torna
a
aplicabilidade
da
lei
privilégio
dos
indivíduos
economicamente mais desenvolvidos, numa lógica neoliberal em que o processo
penal passa a ter um caráter privatizado, pois nem todos os indivíduos possuem
49
Luigi Ferrajoli sustenta, de forma crítica, a necessidade de equiparação entre acusação e
defesa no processo penal, mediante a criação do Ministério Público de Defesa, órgão que seria
instituído para fortalecer a atuação do defensor constituído pelo acusado. Ainda que esta
ponderação possa encontrar resistência quanto aos profissionais advogados, sustenta que esta
seria uma das medidas necessárias para instrumentalizar a igualdade de armas no processo e
afastar a disparidade institucional que confere caráter inquisitorial ao processo penal.
(FERRAJOLI, 2002, p.467).
2659
condições de arcar com os custos de uma defesa particular e, na grande maioria
dos casos, padecem sob uma defesa formal e atécnica.
Atualmente não dispomos de estruturas no processo penal que permitam
que um defensor seja alguém capaz de realizar essa mediação. A
Defesa é, no processo penal brasileiro, para o grosso dos que se
sujeitam a ele, algo estritamente formal e nessa lógica neoliberal, em um
processo penal quase privatizado, continuará privilegiando aqueles que
têm condições de ter defensores pagos, e a maioria da população sujeita
ao processo penal sofrerá uma nova agressão dentro dessa seletividade
econômico-social, que enfim caracteriza os Estados periféricos (PRADO,
2005, p.67).
Portanto, se a defensoria pública é o principal órgão para promoção do
acesso à justiça penal, de fato, só poderá substancializar tal postulado se estiver
estruturada e implementada de maneira eficaz (ALVES; PIMENTA, 2004, p.27),
não só nas comarcas e foros, mas também dentro do ambiente prisional. Isso é
fundamental para que se possa garantir o acesso à ordem jurídica justa e à
defesa material (SOUZA, 2011, p.294-295).
A presença de um defensor representa o próprio controle da atuação
estatal e das demais instituições punitivas durante o cumprimento da pena, pois o
defensor deve lutar pela efetivação do princípio da legalidade e dos direitos do
acusado. Se o processo precisa assimilar uma noção acusatória para assumir um
viés democrático, na qual cada sujeito processual possui sua função delineada, a
defensoria pública deve adequar-se a mesma sistemática e zelar pelo processo
evitando a ocorrência de mais ilegalidades e injustiças no caso concreto (LOPES
JUNIOR, 2007, p.371-405).
Desta forma, o papel desta instituição no processo penal vai além da
materialização da defesa processual dos apenados. A atuação da defensoria
pública deve visar à dignificação dos esquecidos, a transposição, de fato, dos
muros do acesso à justiça (SOARES, 2002, p.69), pois, ao contrário disso, estarse-ia promovendo uma atuação institucional preocupada apenas em evitar
maiores desgraças.
5 PERSPECTIVA EMPÍRICA: ACESSO À JUSTIÇA PENAL, A DEFENSORIA
PÚBLICA E O ASSISTIDO
2660
A análise crítica de determinado tema necessita do seu conhecimento
empírico. É de suma importância o contato do pesquisador com as categorias que
pretende apreender. Tais experiências têm o condão de viabilizar um debate
substancial e de fomentar discursos de mudança no contexto excludente da
justiça (e do sistema) criminal (HULSMAN, 1993, p.25, 37). Nesse sentido, Braga
(2014, p.52) ressalta a importância da pesquisa empírica para o desenvolvimento
de novas diretrizes para a política criminal do Brasil e para o estudo da
criminologia, pois “O emprisionamento isola a voz. A pesquisa de campo na
prisão é uma possibilidade de fazer com que as vozes da prisão ecoem, e que de
alguma forma a sociedade se volte para o debate em questão”.
Para atingir este objetivo, apresenta-se breve contextualização do
atendimento prestado pela defensoria pública do estado do Rio Grande do Sul no
foro central e no foro regional da Tristeza, ambos de Porto Alegre, no âmbito dos
processos criminais e de execução criminal, com base nas observações
efetuadas durante os meses de abril e maio de 2013; somando-se, ainda, as
experiências de uma das autoras durante o estágio acadêmico, entre os anos de
2011 e 2012, nas dependências da defensoria pública no foro regional da tristeza.
Ainda, utilizam-se as inquietações advindas dos encontros de extensão
universitária realizados semanalmente na Penitenciária Feminina Madre Pelletier
durante o ano de 2013,50 pois frequentemente surgiam relatos quanto à
dificuldade de compreensão da situação processual e de atendimentos jurídicos
por parte da defensoria pública. Os relatos, dúvidas e esclarecimentos serão
utilizados como dados para análise qualitativa das reflexões propostas, mediante
sigilo das informações que possam identificar os participantes.
5.1 Do local e dinâmica de atendimento
Em acompanhamento realizado no setor de Execução Penal da Defensoria
Pública, localizado no 4º andar do Foro Central de Porto Alegre, observa-se que a
50
O projeto de extensão “Balcão da cidadania: A teia de acesso à justiça entre a Universidade e o
poder público”, desenvolvido pelo Centro Universitário Ritter dos Reis, é coordenado por Simone
Schroeder, desde 2005.
2661
sala era dividida pelos defensores e estagiários, não possui janelas para
ventilação e a iluminação é elétrica. A sala é pequena e possui quatro mesas
distribuídas de maneira bem próximas para realização das atividades dos
defensores lotados na atribuição.
As fichas são distribuídas pelo estagiário até as 16h30min, diariamente. Os
assistidos, sentados nos bancos do corredor do 4º andar, aguardam a presença
dos defensores e a respectiva chamada de seus números. Normalmente o
atendimento é feito por três defensores. Eles atendem mais de 60 (sessenta)
fichas, sendo que segunda-feira é o dia mais conturbado. Via de regra, as
liberações para ingresso no regime semiaberto se dão aos sábados e nas
segundas-feiras, logo, a maior parte dos egressos do regime fechado
comparecem no atendimento para sanar dúvidas quanto à apresentação ou,
informar que não existe vaga no semiaberto e necessitam de uma autorização do
juiz para permanecer em prisão domiciliar.
Na observação dos atendimentos, presencia-se o comparecimento de
familiares e companheiras (já que o assistido está cumprindo pena no sistema
prisional). Essas pessoas buscam esclarecimentos quanto ao cumprimento da
pena, sanar dúvidas dos próprios apenados quanto à concessão de benefícios e
confirmar a presença de um defensor público nas audiências de instrução e
procedimentos administrativos.
Durante o atendimento, os defensores peticionam na presença do familiar
(ou assistido). Os requerimentos são feitos durante o atendimento, mediante os
esclarecimentos apresentados pela pessoa que se fizer presente (familiar,
companheiro ou assistido). Por exemplo, caso 1. A companheira de um assistido
com quadro de tuberculose comparece para atendimento, foi avisada pelos
agentes penitenciários do presídio central que o seu companheiro sofre de cólica
renal. Comparece no atendimento para solicitar que ele seja encaminhado com
urgência para algum hospital, uma vez que no presídio central não há estrutura
para acompanhamento médico específico. A defensora peticiona, relata a
situação, grifa com marca texto laranja a epígrafe de urgência e solicita o
protocolo do pedido à estagiária, que o faz imediatamente no balcão do cartório. A
defensora informa que o processo está concluso e pede para que a pessoa em
2662
atendimento aguarde uma resposta no corredor, pois acredita algum funcionário
ou assessor dará o retorno no mesmo dia.
Caso 2. Uma mãe em prantos, porque o filho está na fila para transplante
de fígado e a assistência hospitalar é realizada há muitos anos em uma cidade do
estado de Santa Catarina. Traz numerosos documentos, e implora para que o
defensor público possa resolver a situação, conseguir uma prisão domiciliar ou,
pelo menos, uma transferência para a mesma comarca em que o filho recebe o
tratamento há muitos anos, conforme seu relato.
O defensor público solicita que a estagiária busque o processo, enquanto
isso permanece peticionando e analisando os documentos para confeccionar o
pedido com urgência. A estagiária retorna e, de forma discreta, informa que o
cartório não consegue encontrar o processo. De qualquer forma, imprime a
petição, grifa com marca texto amarelo e pede que seja protocolado de imediato,
orientando que a mãe aguarde o retorno de algum funcionário ou assessor.
Ao final do dia, a pessoa atendida conforme relato do caso 1, bate à porta
e, muito abatida, informa que os funcionários do cartório não deram retorno e a
assessoria informa que a resposta, em princípio, não sai no mesmo dia, pois
existem numerosos pedidos de mesma natureza. A defensora frisa que o pedido
será analisado, e pede para que no próximo dia a companheira compareça ao
cartório e insista na análise do pedido, porque já tinha feito o que lhe era cabível.
Após fechar a porta, outro representante institucional presente na sala refere que
“a burocratização é a frustração de se trabalhar na execução da pena, de certa
forma, fico tranquilo pelas pessoas não conhecerem o que de fato acontece”.
Após a afirmação, questionaram-se quais seriam as principais dificuldades
enfrentadas pela defensoria no desenvolvimento das atividades. Conforme relato,
a dificuldade dos atendimentos encontra-se – além da falta de estrutura
institucional, que já melhorou muito no decorrer dos anos, principalmente, no
acesso à informação, não só pelos apenados e seus familiares, que sofrem,
diretamente, os efeitos sociais da pena, mas, também, em relação aos próprios
defensores públicos. Afirmam que não possuem acesso pleno ao portal de
execução criminal do tribunal de justiça do estado do Rio Grande do Sul e, o
pouco acesso liberado que possuem, é prejudicado pela instabilidade do sistema,
2663
uma vez que os computadores utilizados (cedidos pelo tribunal) são lentos e o
sistema “tranca” frequentemente. A lentidão do sistema e a falta de informações
no portal do judiciário são as reclamações contínuas.
Os defensores entrevistados esclarecerem que o acesso disponível no
portal de execução criminal do tribunal de justiça fornece acesso às mesmas
informações que o preso pode consultar por meio do número de seu processo de
execução criminal, ou seja, a consulta que o assistido ou familiar fazem por meio
de acesso à internet, é o mesmo disponibilizado à defensoria. No entanto, há uma
essencial diferença: o defensor possui a técnica jurídica que o assistido e seus
familiares não têm. Ademais, também se verifica que os defensores não têm
acesso aos programas (Themis e Consulta Integrada) que o Judiciário, o
Ministério Público e os órgãos policiais possuem.
5.2 Como se realiza o atendimento ao indivíduo privado da liberdade
Dentre os questionamentos estruturados para a coleta de dados, procurouse esclarecer a forma como o trabalho da defensoria pública acontece nas casas
prisionais, pois na maioria dos encontros extensionistas realizados na
penitenciária feminina Madre Pelletier, as apenadas referem que sequer
conhecem o defensor responsável pelo seu processo e pelo atendimento na
unidade prisional, pois há limitação quanto aos atendimentos, aguardando-se
meses pelo atendimento.
Conforme esclarecido pelo representante da defensoria pública, o núcleo
criminal é composto por 88 (oitenta e oito) defensores públicos, dentre eles 25
(vinte e cinco) especialistas em execução penal, que atuam no universo de
29.214 (vinte e nove mil, duzentos e quatorze) pessoas recolhidas no sistema
penitenciário do Estado do Rio Grande do Sul.51 Cada estabelecimento prisional,
51
Este dado é atualizado diariamente no controle eletrônico da SUSEPE. Em 31.05.2013,
verificou-se que a quantidade de presos no Estado atinge o número de 29.142 (vinte e nove mil
cento e quarenta e dois presos). Em nova consulta, verifica-se o aumento para o número de
30.515 (trinta mil quinhentos e quinze) RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Segurança Pública.
Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE). Mapa Carcerário. Disponível em:
<http://www.susepe.rs.gov.br/capa.php>. Acesso em 16 abr.2015.
2664
com exceção do presídio central que conta com a atuação de quatro defensores,
possui um defensor público designado para atendimento, sendo que, além desta
função, soma a atribuição de outras áreas jurídicas (cível, família ou fazenda
pública). As únicas casas prisionais que não recebem atendimento52 estão
localizadas nos municípios de Quaraí e Cacequi, interior do Estado do Rio Grande
do Sul.53
Por conseguinte, a partir do estágio realizado no foro Regional da Tristeza,
constata-se que o defensor público tem contato com o assistido preso apenas no
dia em que é realizada a audiência de instrução. Ou seja, a linha de contato entre
defensor e assistido é viabilizada pela presença dos familiares, companheiro/a ou
terceiro que se faça presente nos atendimentos semanais. O defensor público
responsável pela confecção da defesa criminal (aquele que fará as principais
peças defensivas, a audiência e recurso da sentença condenatória) não possui a
atribuição de comparecer no estabelecimento prisional. O atendimento realizado
na prisão é de atribuição de outro defensor, pois, de acordo com o princípio da
unidade, o defensor público é a própria defensoria (SOUZA, 2011).
Portanto, se o indivíduo preso preventivamente desejar conversar o
defensor que estará presente no dia da audiência de instrução precisa solicitar à
casa prisional uma ficha para atendimento, sendo que o atendimento será feito
pelo defensor designado àquela casa prisional. Esta mesma lógica é adotada em
sede de execução penal. Talvez, os defensores, que tenham peticionado na
presença das pessoas referidas nos casos anteriores, não sejam os mesmos que
estarão na casa prisional para atender os “assistidos representados”. A
impessoalidade é característica de todos, do defensor, do assistido e do processo
penal como um todo.
Caso 3. Em uma tarde de observação dos atendimentos prestados pela
defensoria no âmbito da vara de execuções criminais, no foro central de Porto
Alegre, a mãe de um apenado diz para a defensora de forma insistente que seu
52
Nem mesmo por deslocamento, pois, em alguns locais do Estado, o defensor público deve
deslocar-se de uma comarca à outra para promover o atendimento no cárcere.
53
Em consulta à página eletrônica da defensoria pública do estado do Rio Grande do Sul verificase que as comarcas de Quaraí e Cacequi não possuem sede da instituição. RIO GRANDE DO
SUL.
Defensoria
Pública.
Disponível
em:
<http://www.defensoria.rs.gov.br/atendimento/cidade/Quara%C3%AD>. Acesso em 13 abr. 2015.
2665
filho não tem motivos para ser mantido no regime fechado, segundo ela, a
defensora pública do foro em que tramita o processo criminal de origem (e outros
processos em fase de conhecimento), lhe confirmou a informação, explicando que
ela deveria comparecer no atendimento dos defensores da vara de execuções
criminais para esclarecer a situação. De fato, naquela tarde, em análise às
informações processuais que o defensor público tinha em mãos, não existia
nenhum decreto condenatório nem pena que justificasse a prisão.
Todavia, alguma informação (relevante) falta para que se compreenda a
regularidade ou não da situação. Antes de tomar outras medidas, o defensor liga
para a sede institucional, passa o nome e os números do processo de forma que
outra funcionária possa verificar a situação exposta. Após vinte minutos, retornam
informando que há prisão preventiva decretada em outro processo criminal – que
a mãe não tem conhecimento e nem o sistema do tribunal de justiça acusa –
sendo necessário encaminhá-la para novo atendimento, com outro representante
da defensoria pública e nas dependências de outro foro. Ou seja, a
incompatibilidade de informações e falta de comunicação atinge, não só o
assistido, mas também o familiar que permanece fora da instituição punitiva.
Questiona-se, como isso prejudica o acesso à informação e o acesso à
justiça? Nas palavras dos representantes institucionais entrevistados, demanda
tempo, morosidade e desigualdade. Como sinalizam Hulsman e Celis (1993,
p.59), no âmbito do processo penal, “cada órgão ou serviço trabalha isoladamente
e cada uma das pessoas que intervém no funcionamento da máquina penal
desempenha seu papel sem ter que se preocupar com o que se passou antes
dela ou com o que passará depois”. Não existe uma comunicação efetiva entre os
atores processuais que participam da execução penal.
A morosidade dos trâmites processuais atravanca o trabalho do sistema
como um todo. Informam os defensores que os requerimentos de benefícios
demoram meses para serem juntados e julgados. Em diversas oportunidades,
mostra-se mais vantajoso desistir do agravo em execução interposto contra a
decisão do magistrado (visto às novas condições e requisitos implementados pelo
assistido) do que insistir no julgamento, o qual se torna prejudicial à análise de
novo requerimento mais benéfico.
2666
O assistido, portanto, sofre com a morosidade no processo de
conhecimento e com os efeitos do tempo na execução penal. O estado penal, nas
palavras de Lopes Junior e Badaró (2008, p.5) “já tomou, ao longo da história, o
corpo e a vida, os bens e a dignidade do homem. Agora, não havendo mais nada
a retirar, apossa-se do tempo”. A burocratização representa a frieza nos
procedimentos, a impessoalidade dos papéis, abstração da dignidade humana
que existe para além das folhas amontoadas e desorganizadas no processo de
execução criminal.54
A disparidade estrutural e econômica é visível e resulta em disputa desleal
no âmbito processual penal. Além disso, as universidades, apesar de contribuírem
com o fortalecimento do acesso à justiça mediante projetos extensionistas que
contenham assistência jurídica gratuita, não podem ser as únicas responsáveis
por um múnus público, devem, apenas, constituir um dos pilares na construção do
acesso à justiça (ou seja, não podem ser um instrumento subsidiário à deficiência
material da execução penal).
Nesse sentido, Ferrajoli (2002, p.490) leciona que uma disputa processual
leal, acusatória e igualitária necessita da igualdade de armas no jogo. A defesa
precisa compartilhar das mesmas armas que os demais atores processuais.
Porém, quantas defesas foram (e são) “construídas” com base em frias
percepções, distantes do contato pessoal com o assistido, mediante breves
54
Em análise a alguns processos de execução das presas que participam do projeto
extensionista, pode ser observada a desordem dos incidentes, requerimentos e procedimentos
administrativos que compõe o processo. Por exemplo, nos autos de determinado processo de
execução criminal, a assistência judiciária do Centro Universitário Ritter dos Reis apresentou, em
22 de março de 2013, requerimento para transferência de apenada encaminhada à penitenciária
de Guaíba-RS, uma vez que ela não possuía familiares em tal localidade e porque o único
vínculo social (e afetivo) que possuía era com o projeto desenvolvido pelo Balcão da Cidadania.
Em consulta posterior aos autos, observou-se a juntada de petições anteriores ao protocolo do
pedido realizado (dos meses de janeiro e fevereiro), de procedimentos administrativos prévios ao
requerimento, novas decisões e nenhuma manifestação quanto ao requerimento formulado.
Acesso aos autos em 24 de maio de 2013, para apresentar contrarrazões à Agravo em
Execução que se refere à falta grave cometida em abril de 2012. A disparidade estrutural é
visível e resulta, indiscutivelmente, em uma disputa desleal no âmbito processual penal. Além
disso, as universidades, apesar de contribuírem com o fortalecimento do acesso à justiça
mediante projetos extensionistas que contenham assistência jurídica gratuita, não podem ser as
únicas responsáveis por um múnus público, devem, apenas, constituir um dos pilares na
construção do acesso à justiça (ou seja, não podem ser um instrumento subsidiário à deficiência
material da execução penal) (RUDNICKI; SCHROEDER, 2012, p.123).
2667
referências de uma rápida conversa na sala de espera do Foro ou no parlatório do
estabelecimento prisional? Aliás, quantas conversas se perdem entre as fichas
(não) distribuídas para atendimento de um único defensor designado para a
respectiva casa prisional?
5.3 Tensões e reflexões: o acesso à justiça penal
Conforme apontado na introdução, este estudo foi construído pelas
experiências jurídicas colhidas no decorrer de estágio acadêmico (e observação)
realizada na defensoria pública do estado do Rio Grande do Sul, assim como das
experiências advindas da extensão universitária desenvolvida na Penitenciária
Feminina Madre Pelletier. As mulheres privadas da liberdade, participantes do
grupo de extensão, confirmam a hipótese de que o processo penal, por elas
enfrentado, padece sob a incidência de uma defesa formal, pois sequer recebem
informações regulares e atualizadas acerca de seus processos.
Desta forma, verifica-se que o atendimento da defensoria pública não supre
a demanda de pedidos. Ao serem questionadas quanto à forma de contato com a
defensoria, não raras vezes descrevem que conversam com o defensor poucos
minutos antes da audiência, ou na própria solenidade; outras informam que,
mesmo cumprido o período necessário para concessão de benefícios para
progressão de regime, não recebem informações atualizadas sobre os
procedimentos. Para ilustrar isso, transcreve-se trecho de um dos bilhetes
recebidos:
Fui presa em [...] e até agora não tenho nenhum retorno sobre minha
situação. Fui presa por tráfico, não tenho advogado, só tive 1 audiência
mais continuo sem resposta sobre o meu caso. O número da minha ação
penal é [...] e a chave é [...]. Essa é minha situação atual, eu queria
encarecidamente que a sra. me ajudasse com o meu caso, a droga que
estava comigo era maconha, eu não aguento mais todo esse tempo sem
55
nenhuma resposta. [sic]
Segundo Prado (2005, p.67), os processos criminais, em sua maioria, são
administrados por advogados dativos ou defensores públicos, que desconhecem
a realidade enfrentada pelo assistido, o que impede uma comunicação efetiva
55
Recebido na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em junho de 2013.
2668
entre o processado e o julgador, inserindo-se o acusado na perspectiva de uma
defesa formal, em que os prazos são cumpridos, mas as garantias fundamentais,
em sua grande maioria, não são efetivadas (PRADO, 2005, p.67). De fato, é
inconcebível que um indivíduo privado da liberdade não tenha conhecimento dos
termos do seu processo e, ainda pior, que o advogado (e isso também se amolda
ao defensor público e/ou dativo) desconheça a realidade do seu cliente, a versão
dos fatos e as circunstâncias dos acontecimentos (RUDNICKI, 2001, p.5),
impedindo a construção da tese de defesa e o acesso à justiça penal.
Por conseguinte, realidade semelhante foi apresentada por recente
pesquisa publicada no portal Pensando o Direito do Ministério da Justiça,
intitulada “Dar à Luz na Sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o
exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão” (BRASIL, 2014)
sob coordenação das pesquisadoras Ana Gabriela Mendes Braga e Bruna
Angotti. Em análise à garantia de acesso à justiça, a pesquisa referida utiliza os
dados disponibilizados pela Associação Nacional dos Defensores Públicos
(ANADEP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2013, ao
analisar a dimensão da defensoria pública no Brasil (número de defensores,
comarcas abrangidas, dentre outras questões qualitativas). Os resultados indicam
a defasagem do número de defensores públicos no país (para cada defensor há
uma expectativa de demanda de 16.043 pessoas, que se enquadram no critério
econômico de renda de até três salários mínimos);56 além disso, as defensorias
localizadas nas capitais dos estados possuem estrutura para atendimento mais
adequado em comparação às unidades localizadas em comarcas no interior. O
estudo também chama atenção para o fato das defensorias públicas não
acompanharem (em critério estrutural) o aumento das prisões e condenações
(fluxo de encarceramento), o que prejudica muito o desenvolvimento das defesas
criminais.
56
No caso do Rio Grande do Sul, com base no relatório produzido em 2013, existem 415 cargos,
sendo que 385 foram ocupados, o que representa 92,8% de cargos providos. No Brasil, existem
8489 cargos e 5054 ocupados, representando 59,5% de cargos providos. INSTITUTO DE
PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Mapa da Defensoria no Brasil: Relatório de Pesquisa.
Brasília: Ipea, 2013. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/sites/mapadefensoria>. Acesso em
14 abr. 2015.
2669
Por um lado, no contexto brasileiro, contamos com um pequeno e
concentrado contingente de defensoras para uma população prisional
grande e dispersa e, por outro, temo um sistema de justiça que
encarcera cada vez mais mulheres, causando o consequente aumento
da necessidade de assistência jurídica. Logo, ao aumentar o contingente
prisional, muitas vezes com prisões ilegais e desnecessárias, o próprio
Estado contribui para o aumento da deficiência no acesso à justiça
prestado às presas. A cultura do encarceramento permeia as práticas e
discursos de diversas personagens do sistema de justiça, as quais são
responsáveis por manter a prisão como principal política social e de
segurança pública no Brasil. Em grande parte dos casos, a presa não
tem possibilidade de se defender frente às instituições de controle:
poucas têm contato, antes da audiência, com a defensora/defensor e,
geralmente, não há espaços de fala – para contar sua versão dos fatos,
contextualizar sua história, para além do crime eventualmente praticado.
(BRASIL, 2014).
Assim, o drama da efetividade da defesa não está atrelado apenas à falta
de informação dos direitos da processada e a inexistência de infraestrutura para
cumprimento da pena aplicada, mas, também, com o fato de que o indivíduo
privado da liberdade, via de regra, não tem condições de se comunicar e ser
compreendido. Como referido anteriormente, em muitos casos o contato com o
defensor é realizado na própria audiência ou minutos antes da solenidade, logo,
não há condições de transmitir ao julgador elementos que possam influenciar na
decisão judicial, resumindo-se o direito de defesa ao cumprimento de prazos de
maneira tempestiva, formal e mecânica.
Durante o estágio realizado na defensoria pública, precisamente no foro
regional da Tristeza, poucas foram as oportunidades em que se tiveram
condições de contrapor, efetivamente, a prova produzida pelo ministério público.
Isto porque, nem sempre os familiares e companheiros/as que comparecem no
atendimento, buscam testemunhas, sinalizam a versão dos fatos do acusado ou
comparecem para acompanhamento habitual da demanda, visto que, não raras
vezes, o valor gasto com as passagens de ônibus compromete a alimentação
para o respectivo dia; ou mostram-se revoltados com a prática delitiva do
assistido, comparecendo em um primeiro atendimento e manifestando que não
comparecerão novamente, tampouco na prisão para levar alimento, roupas ou
esclarecer fatos sobre o acontecimento. Desta forma, diversos fatores
econômicos, sociais, culturais e familiares podem interferir positiva ou
negativamente na efetivação do acesso à justiça.
2670
No que se refere ao fato do indivíduo preso se deparar com o defensor
público na própria audiência ou momentos antes da solenidade, ressalta-se que o
atendimento que é prestado desta forma, além de impedir a comunicação efetiva
com o julgador, representa o exercício de uma defesa formal. O atendimento
prestado por defensores diferentes, em momentos distintos e sem uma
comunicação efetiva entre os representantes institucionais - para fins de
estabelecerem estratégias processuais, compartilharem informações relevantes
para o caso, bem como esclarecerem outras questões que se façam importantes resultará em uma defesa frágil, na qual não há controle de informações e
sistematização para uso das mesmas. Logo, há nítida violação do devido
processo legal.
Ademais, o público atendido pela defensoria está adstrito às famílias de
baixo poder aquisitivo, que (1) comprometem gastos da renda familiar para
comparecerem às unidades da instituição (localizadas nos foros da capital e
distante da zona periférica e instituições punitivas, o que demanda gastos para
deslocamento e alimentação); (2) além disso, estes mesmos familiares
(companheiros/as, amigos/as, terceiros interessados), via de regra, são os que
precisam se deslocar semanalmente às instituições punitivas para auxiliar o
indivíduo preso e levar materiais de higiene, roupas e alimentação); e, ainda, (3)
estas mesmas pessoas vivem conflitos culturais e familiares, pois: desconhecem
seus direitos e dinâmica do processo criminal, têm medo de como os demais
agentes da justiça se relacionarão com o indivíduo preso; como possíveis
testemunhas do fato reagirão diante do pedido para que compareçam em uma
audiência criminal a fim de contribuir com o deslinde do caso; dentre outros
sentimentos de impotência que sentem ao serem violentados(as) pela realidade
marginal do sistema de justiça criminal.
Outrossim, se para o assistido preso que possui alguma pessoa disposta a
intermediar o seu contato com a defensoria a realidade é bastante dramática,
para aqueles que não possuem tal apoio, a garantia de defesa material mostra-se
inviável: porque o indivíduo está recolhido na instituição punitiva e não tem
condições de se mobilizar para recolher ou repassar as informações necessárias
ao defensor responsável pelo seu processo penal. Ainda que se possa afirmar
2671
que existem defensores direcionados para atendimento nas unidades prisionais,
não significa dizer que isso, por si só, é suficiente para garantir que seja
respeitado o devido processo legal e a garantia de acesso à justiça. Esta é a
realidade enfrentada pelo atendimento criminal prestado pela defensoria pública:
se o indivíduo não possui o apoio de algum terceiro a fim de construir essa
dinâmica de relação (defensor-acusado), sua defesa processual será formal.
Nesse
sentido,
ainda,
ressalta-se
que
significativa
parcela
dos
atendimentos da defensoria são prestados aos familiares, companheiros/as e
terceiros que buscam sanar dúvidas dos próprios apenados e atestar a presença
de um defensor público nas audiências de instrução criminal. Tal constatação
corrobora com a reflexão de que a comunicação entre defensor público e acusado
é, em grande parte, promovida (ou facilitada) pelo comprometimento de um
terceiro, que se pré-dispõe a permanecer na fila para atendimento; e, por outro
lado, indica o sentimento de insegurança de parte dos assistidos, visto que a
relação de confiança, normalmente construída quando se possui um defensor
particular, não é viável na dinâmica de atendimento do assistido preso, o qual não
tem conhecimento do rumo do seu processo, a linha de defesa, os argumentos,
etc.
Desta forma, pode-se concluir que o acesso à justiça penal deve ser
compreendido para além do acesso formal aos tribunais, tal garantia deve ser
compreendida como o direito de ser visto, ouvido, conhecido por parte daqueles
que compõe o cenário da justiça criminal (MELLO, 2013, p.69). Essa linha só
poderá ser traçada no processo penal, com a presença efetiva de defensores
(sejam esses públicos, dativos e/ou privados) comprometidos em apreender as
necessidades e direitos de todo e qualquer indivíduo submetido ao sistema penal.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito de acesso à justiça é um tema debatido de forma ampla no meio
acadêmico. O objetivo deste estudo foi contribuir com reflexões a partir de
experiências que permitissem a análise do sistema de justiça criminal,
2672
estabelecido pelas normas de direitos humanos fundamentais, a partir de tensões
com a realidade.
Pois bem, é incontroverso que o acesso à justiça é um direito humano
fundamental de toda e qualquer pessoa, assim como a defensoria tem a
responsabilidade de prestar este atendimento a todos que dela necessitar,
inclusive relativizando o critério econômico quando se tratar de direitos
indisponíveis. No entanto, embora a justificativa normativa esteja posta, na
prática, ela depara-se com a dificuldade de efetivação do acesso à justiça. Essa
garantia, no contexto do estudo proposto, deve ser apreendida como o direito de
participar efetivamente do processo criminal, para além do acesso formal aos
tribunais que se verifica com a simples nomeação de um defensor público (ou
dativo).
O acesso à justiça penal é o elemento fundamental para construção do
direito de defesa, pois viabiliza a busca e efetivação de outros direitos e garantias
que são obstados diariamente nas instituições punitivas (saúde, progressão de
regime, privação ilegítima da liberdade). Significa dizer que não basta uma
simples previsão normativa se, na prática, o defensor (e também o julgador) não
compreende o que de fato o acusado tem a manifestar ou pedir, qual a sua
versão dos fatos, quais necessidades deseja regularizar no âmbito processual ou,
ainda, se o próprio assistido for encarado como mero instrumento para o exercício
do poder punitivo e não lhe for oportunizado o pleno conhecimento dos termos do
processo, da tese que será utilizada, dos procedimentos que foram solicitados.
Assim, conclui-se que embora o direito de acesso à justiça seja um direito
humano e fundamental, ainda nos deparamos com as limitações sociais, culturais
e econômicas debatidas por Cappelletti, Garth e Santos. O atendimento prestado
pela defensoria pública é feito, em regra, nas dependências concedidas pelos
respectivos foros criminais e nas instituições punitivas, ou seja, é necessário que
o assistido ou terceiro se desloque até a defensoria pública, sendo que, muitas
vezes, o valor econômico despendido para tal movimentação afeta as
necessidades básicas e vitais das pessoas envolvidas. Aliás, há nítida dificuldade
de acesso à informação, as pessoas não compreendem a dinâmica do processo
penal e os direitos que possuem em face do estado.
2673
Verifica-se, também, a importância de existir um familiar, companheiro/a,
amigo ou terceiro interessado que tenha disponibilidade de comparecer ao
atendimento da defensoria pública no foro em que tramita o processo criminal,
pois isso auxilia na construção da defesa e também no acesso do preso à
informação. Isto porque o atendimento da defensoria pública nas unidades
prisionais é precário, não atende a demanda de pedidos, bem como porque o
defensor que faz o atendimento na instituição punitiva, via de regra, não é o
mesmo que atende na unidade do foro, ou seja, não é o mesmo representante
que atuará na defesa criminal do assistido, o que prejudica o repasse de
informações para construção da estratégia processual.
Desta forma, a existência de um terceiro que facilite o diálogo entre
defensor e assistido - esclarecendo a versão dos fatos e dúvidas, indicando as
testemunhas e acompanhando o trâmite do processo criminal - contribui de forma
relevante para o acesso à justiça penal e o devido processo legal, uma vez que a
defensoria não presta um atendimento minucioso e dinâmico.
Por conseguinte, em muitos casos, as pessoas não conseguem
comparecer e transmitir as informações necessárias para os defensores
responsáveis pela defesa no processo criminal. Situação ainda pior pode ser
verificada com aqueles que, por algum motivo, não possuem nenhum familiar ou
terceiro que possa comparecer no respectivo foro em que tramita seu processo
penal. Portanto, se para aqueles que possuem familiares, companheiros/as ou
terceiros que contribuem para a integração defensor-acusado os efeitos do
processo penal já são nefastos, imagine para aqueles que cumprem uma pena
privativa de liberdade e não tem à disposição alguém que facilite essa
comunicação? De fato, em tais casos, há considerável possibilidade de inexistir
um atendimento jurídico adequado e substancial, permanecendo a inquietação:
Como garantir que tais pessoas tenham condições de construir sua defesa no
processo penal de forma igualitária e justa?
A partir destas questões, verifica-se que embora a dogmática entenda que
o acesso à justiça penal corresponda a uma defesa material, enquanto núcleo
mínimo
imprescindível
à
dignidade
humana
do
indivíduo
processado
criminalmente, na prática, tais pessoas sofrem os efeitos de defesas formalmente
2674
construídas. Talvez, essa não seja (e em muitas situações não aparenta ser) a
intenção da defensoria pública, no entanto, é isso que acontece na maioria das
defesas criminais. O defensor desconhece a realidade do assistido e o assistido
desconhece o seu defensor, os seus direitos e sequer tem condições de resistir
às restrições do poder punitivo estatal.
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2678
ACESSO À JUSTIÇA E SAÚDE PÚBLICA: A BANALIZAÇÃO DE UMA
CONQUISTA
Suelen da Silva Webber
Leonel Severo Rocha
RESUMO: Este trabalho observa como o direito a saúde pode se tornar um bom
ponto de observação para discutir as questões que envolvem o acesso à justiça
no Brasil. Isso porque o Direito à Saúde, no cenário brasileiro, vem sendo
efetivado através do Poder Judiciário. O objetivo nesta fase da pesquisa é apontar
como a facilidade do acesso à justiça tem elevado os números da judicialização
da saúde, além de indicar as circunstâncias que envolvem os pedidos e as
decisões proferidas em termos de saúde pública. A metodologia utilizada foi a
Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, a qual possivelmente é a única capaz de
enfrentar a complexidade e os riscos que envolvem o acesso à justiça e a
efetivação do direito à saúde pública. Os resultados de nossas pesquisas vêm
demonstrando que muitas vezes os julgadores preferem determinar a tramitação
de feitos que tem demandas descabidas, a fim de não serem vistos como
dificultadores do o acesso à justiça; por outro lado, muitas pessoas aproveitam-se
desta postura para pleitear fármacos e tratamentos que não são essenciais.
Como conclusão, constatou-se que a mera observação dos dados numéricos
lançados pelas organizações pode levar a uma série de conclusões precipitadas,
bem como se pode comprovar que algumas comunidades podem ter sua
estrutura pública de saúde consideravelmente abalada em razão de certas
decisões, por menor que seja o número de demandas desta natureza, exigindo
que observações mais completas e gerenciadas sejam realizadas.
PALAVRAS-CHAVE: direito à saúde, acesso à justiça, decisão judicial.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo desse artigo é apontar como o direito ao acesso aos meios de
tratamento público da saúde tem sido facilitado através da flexibilização do
acesso à justiça.
Embora o movimento de acessibilidade facilitada ao Poder Judiciário seja
reflexo de uma evolução social, o que se percebe é que muitas vezes, ele tem
sido banalizado, como em pedidos de tratamentos de saúde que não podem ser
2679
considerados como de primeira necessidade. O tema assume relevância na
medida em que esta espécie de ação tem crescido consideravelmente nos últimos
anos no Brasil, chegando a passar dos 240 mil pedidos, segundo dados do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Assim, ingressou-se em uma nova fase, na qual é preciso encontrar uma
forma de que este acesso à justiça não seja banalizado e deturpado, como
observou-se em alguns casos de saúde levados ao Poder Judiciário. Esta
banalização foi percebida principalmente em relação aos pedidos contra o Estado,
o qual é o foco neste artigo. Embora existam diversos problemas de efetivação da
saúde na esfera privada, optou-se pelas nuances da efetivação na saúde pública,
em razão da repercussão direta que as decisões judiciais têm na vida de toda a
comunidade.
Para observar essa situação, o artigo foi dividido em duas partes. A
primeira
busca tecer considerações sobre alguns números de pesquisas
realizadas por organizações como o CNJ e pesquisadores universitários, bem
como foram elencadas algumas decisões judiciais que tiveram grande apelo dos
meios de comunicação. Com isso, será possível apontar como o acesso à justiça
tem sido efetivamente facilitado, mas também como este instrumento de
concretização democrática tem sido banalizado e vulgarizado pela própria
Sociedade.
Na segunda parte, a observação será voltada para os dados coletados por
estes pesquisadores na Comarca de Farroupilha/RS, trazendo uma série de
circunstâncias que envolvem casos locais. É assim que o presente artigo se
apresenta.
2 ACESSO À JUSTIÇA E SAÚDE PÚBLICA
Como é sabido, e foi por nós sempre frisado ao longo dos trabalhos
desenvolvidos, a constitucionalização do Direito à Saúde trouxe, sem dúvidas,
muitos benefícios à população brasileira, sendo uma conquista, em grande parte,
fruto do movimento sanitário. Contudo, observa-se que muitas são as dificuldades
impostas no momento da concretização desta garantia. Esses obstáculos são
2680
facilmente percebidos com o crescente número de ações que chegam ao Poder
Judiciário postulando a efetivação deste Direito, contra entes públicos, muitas
vezes envolvendo pedidos de medicamentos que ainda se encontram em fase de
experimentação ou que possuem um valor extremamente elevado, ou apenas
caráter estético.
Talvez o maior expoente desta legalização sanitária seja o art. 196 da
Constituição Federal: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.” Mais do que um mero
artigo de lei, este dispositivo transparece em seu texto uma série de expectativas
tanto normativas quanto cognitivas. Por expectativa entende-se a forma de
antecipação da absorção de desapontamentos. Quando cognitivas, conseguem
ser adaptadas à realidade, e sendo normativas havendo uma transgressão ou
desapontamento, elas se mantêm estruturadas. (LUHMANN, 1983, p. 56).
Dentro da própria Constituição Federal, há outros artigos que se referem ao
direito à saúde, assim como uma vasta legislação esparsa, e até mesmo acordos
internacionais. Isso representa um avanço em uma Sociedade de Complexidade
(LUHMANN, 2001), pois “as doenças não respeitam os limites territoriais. Elas se
alastram sem pedir licença.” (VIAL, 2006. P. 119). A questão problemática surge
quando, mesmo com toda esta normatização das expectativas e envolvimento de
várias organizações, não se vislumbra a efetivação do acesso a meios para
tratamento de enfermidades.
Como a administração pública não consegue suprir as pretensões e
necessidades dos enfermos, essas demandas vêm sendo satisfeitas pelo
Judiciário. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, no Brasil existem
mais de 240 mil ações judiciais relativas à saúde, sendo que o Estado do Rio
Grande do Sul possui quase metade destas ações, passando os 113.953
processos (BRASIL). Conclusão: não há como negar que há uma intervenção do
Poder Judiciário na tentativa de efetivar a saúde pública. Em outros termos, têmse a judicialização da saúde, que acaba sendo um paradoxo sistêmico.
Pois bem, quando o Poder Judiciário é provocado, esta organização é
2681
obrigada a decidir pela concessão ou denegação dos pedidos. Não há como se
furtar ao processo decisório e, como os números mostram, a instituição tem sido
provocada pela população a se manifestar sobre a situação.
Mas porque há esta obrigatoriedade de decidir? Isso não decorre apenas
da lei, mas de uma perspectiva sociológica luhmanniana, em que o Poder
Judiciário será a organização com a função de tomada de decisão jurídica na
Sociedade (ROCHA; SCHWARTZ; CLAM, 2013). Estas decisões, mesmo que
diante da indeterminação e da incerteza, são obrigatórias, e devem ser incertas
até o momento exato da decisão. Portanto, não se observam maiores problemas
em esta instituição decidir e com esta decisão proporcionar o acesso da
população a meios de efetivação da Saúde Pública. Nesse norte, a questão
primordial é observar como estas decisões vêm sendo tomadas e por que elas
têm que ser proferidas pelo Poder Judiciário, que originalmente não é o detentor
desta obrigação. Mais do que uma observação processual, necessita-se de uma
observação estrutural sobre as comunicações sociais.
Uma das indeterminações e incertezas que cercam estas questões advém
da própria expressão “a saúde é direito de todos”, diante de sua amplitude,
indeterminação de significado e vagueza semântica (WARAT; ROCHA, 1995).
Essa indeterminação é um dos elementos que possibilita que cheguem à
organização central do Sistema do Direito os mais variados tipos de pedidos
envolvendo o Direito à Saúde, entre eles pedidos que envolvem medicamentos
com elevado custo monetário e até mesmo envolvendo medicamentos que se
encontram em fase de teste – portanto, experimentais -, seja no Brasil ou no
exterior. Aqui também há uma brecha para pedidos que não se mostram tão
indispensáveis, mas que podem ser encaixados como direito à saúde.
Segundo pesquisa realizada em Florianópolis (CORDEIRO; LEITE;
PEREIRA; SILVA; NASCIMENTO JR.; VEBER, 2009), os medicamentos mais
solicitados via Poder Judiciário são os que visam tratar patologias psicológicas ou
psiquiátricas, ou seja, os medicamentos para o Sistema Nervoso. Na época da
conclusão dos estudos, eles representavam 40,99% de todos os pedidos. Em
seguida, podem ser encontrados os fármacos que
2682
atuam no Trato Alimentar ou Metabolismo e Sistema Hematopoiético
(Figura 1). Entre os medicamentos demandados por decisão judicial,
aqueles que atuam no Sistema Nervoso também representam 40%,
sendo a Carbamazepina o medicamento mais solicitado deste grupo; os
medicamentos para uso Dermatológico representam 17% da demanda,
com Pimecrolimo como medicamento mais solicitado entre todas as
classes terapêuticas, em número de produtos e em valor monetário
empregado; os medicamentos que atuam no Trato Alimentar ou
Metabolismo correspondem a 14,39% das demandas judiciais,
especialmente pelo fornecimento de Insulinas (CORDEIRO; LEITE;
PEREIRA; SILVA; NASCIMENTO JR.; VEBER, 2009).
Não são apenas estes pedidos que chegam aos Tribunais, mas demandas
de próteses estéticas de silicone, depilação estética a laser (SILVEIRA, 2012),
entre outros, todos baseados no fundamento “a saúde é direito de todos e deve
ser garantida pelo Estado”, além, é claro, da dignidade da pessoa humana
(totalmente desprovida de sentido). Ou seja, estes pedidos denotam que uma
flexibilização que deveria ser boa, vem sendo deturpada e utilizada para que
qualquer expectativa cognitiva seja levada a um julgador e, não raras vezes,
frente aos diversos contextos, não raras vezes, seja concedida. Acontece que
este cenário de uma organização do direito decidindo por uma organização da
política e da saúde, elva ao risco e pode paradoxalmente criar um meio para que
mais pessoas não tenham acesso aos tratamentos públicos para as suas
enfermidades.
O risco é entendido aqui com uma diferença substancial quanto ao perigo,
comumente enunciado pelo senso comum. O risco sempre advém de uma
decisão, e justamente por isso pode ser gerenciado para ser minimizado. Não há
possibilidade de risco zero. O perigo, por sua vez, surge de uma situação sobre a
qual não se tem controle de decisão.
Um dos temas relativos à judicialização da saúde, que mais chega aos
noticiários e envolve os dois problemas citados, tange ao valor dos
medicamentos. Mais do que especulações, estas situações são bem marcantes
em todo o Brasil. É o que ocorre, por exemplo, neste caso de um cidadão que
aufere do Estado o montante de R$ 800 mil para ter acesso a um “tratamento de
primeiro mundo” no Hospital Sírio-Libanês, onde recebe a cada 15 dias doses do
medicamento Soliris (eculizumab), com custo de R$ 70 mil por mês, em razão de
ser portador de um tipo raro de anemia. O curioso para os demais cidadãos das
2683
filas dos postos de saúde é que a doença tem possibilidade de cura através de
uma cirurgia de transplante (reconhecida pela Anvisa), que custaria aos cofres
públicos em média R$ 50 mil reais. Mais do que isso, o tratamento ao qual se
submete no momento não tem nenhuma possibilidade de curá-lo, apenas de
amenizar os efeitos da doença, sendo que a cirurgia tem probabilidades maiores
de cura e percentual gerenciado de risco menor que o consumo deste fármaco.
Para agravar a situação, geralmente o cumprimento das liminares
concedidas, não apenas neste caso, mas como regra, dá-se através do bloqueio
de valores nas contas do ente público, de forma imediata, via sistema Bacen.
Histórias como esta não são isoladas e vêm ocorrendo há alguns anos no
Brasil. Outro exemplo semelhante pode ser ilustrado através da decisão do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que tem sua ementa abaixo
colacionada:
AGRAVO
DE
INSTRUMENTO.
DIREITO
PÚBLICO
INESPECÍFICO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. CÂNCER DE
MAMA. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL E MUNICÍPIO DE PORTO
ALEGRE. BLOQUEIO DE VALORES. POSSIBILIDADE. MEDIDA QUE
MAIS SE ADEQUA ÀS NECESSIDADES DA PARTE. 1. Cumpre tanto
ao Estado quanto ao Município, modo solidário, à luz do disposto nos
artigos 196 e 23, II da Constituição Federal de 1988, o custeio da saúde
pública. 2. Em sendo dever não só do Estado, como também dos
Municípios, garantir a saúde física e mental dos indivíduos e, em
restando comprovado nos autos a necessidade da requente de fazer uso
do medicamento requerido, imperiosa a concessão da liminar. Exegese
que se faz do disposto nos artigos 196, 200 e 241, X, da Constituição
Federal, e Lei nº 9.908/93. 3. Possível a determinação de bloqueio de
dinheiro das contas do ente estatal, pois não raras vezes descumpre
decisão judicial, postergando ao máximo suas obrigações, muito embora
tal decorra de comando judicial. Recurso provido monocraticamente, art.
557, §1º-A, do CPC. (Agravo de Instrumento Nº 70027909548, Primeira
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Roberto Lofego
Canibal, Julgado em 12/12/2008).
Essa decisão proferida pela Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul teve repercussão imediata, fomentando comunicações
através da manifestação de diversos setores da Sociedade. Um exemplo dessas
declarações é encontrado no artigo intitulado “Um negócio de bilhões”(APPIO,
2012), o qual manifesta preocupação em relação à decisão prolatada,
principalmente em razão do lobby que o laboratório farmacêutico deste
medicamento faz em relação aos médicos oncologistas.
Essa é uma das declarações contidas no artigo em questão: “como juiz e
2684
cidadão brasileiro fiquei preocupado com o precedente aberto na Justiça gaúcha,
até porque a fabricante (Roche) pratica um marketing bastante agressivo junto
aos oncologistas do nosso país” (APPIO, 2012).
Este é apenas um dos casos envolvendo medicamentos experimentais que
chegam para que um Magistrado decida se uma pessoa doente deve receber do
Estado um medicamento que ainda não foi aprovado pelo Sistema da Saúde,
através de sua organização Anvisa, que é quem tem competência, conhecimento
e instrumental para dizer quando um medicamento pode ser comercializado e
consumido por um enfermo no Brasil. Observe-se que, no mesmo caso acima
exposto, apenas em primeiro grau, o julgador responsável pela tomada de
decisão observou a peculiaridade deste medicamento que, além de um valor
elevado, ainda encontra-se em fase de testes, o que faz com que o Poder
Judiciário (através do “acesso à justiça”), não seja o meio adequado para
satisfazer esta demanda.
Vistos. Concedo à autora a gratuidade judiciária. Inicialmente, a
requerente não comprova a negativa administrativa. O administrador não
está obrigado a fornecer medicamento de eficácia duvidosa ou que não
esteja aprovado em protocolos clínicos. A requerente não comprova que
o medicamento HERCEPTIM está aprovado pela Anvisa e que faz parte
dos medicamentos especiais fornecidos pelo Estado. Segundo os
documentos de fls. 42/43, a demandante está participando de tratamento
experimental. O médico que prescreveu o medicamento acima referido
não é o mesmo oncologista que vem lhe acompanhando. Além disso, no
atestado de fl. 22 nem mesmo há indicação da especialidade do
respectivo médico. Nessas circunstâncias, não é razoável obrigar o
Estado a fornecer medicação de custo elevadíssimo (R$ 132.000,00),
principalmente inexistindo segurança da eficácia da medicação. Intimese. Cite-se. Diligências legais. (Processo número 10803320527 – Porto
Alegre.)
A repercussão desta situação teve início com a seguinte matéria:
Um belo exemplo de efetividade na prestação jurisdicional. Para decidir com maior conhecimento de causa - um agravo de instrumento que
discutia questões relacionadas com o grave estado de saúde de uma
mulher, o desembargador gaúcho Carlos Roberto Lofego Caníbal, da 1ª
Câmara Cível do TJRS, fez uma ligação DDI para ouvir uma autoridade
brasileira na matéria: o oncologista Carlos Barrios, diretor do Instituto do
Câncer do Hospital Menino Deus, de Porto Alegre. O médico estava
fazendo um curso no Estado do Texas (EUA). (Espaço Vital).
Atente-se para o fato que, em que pese a diligência do Desembargador,
que consultou um especialista do Sistema da Saúde antes de decidir a questão,
informação esta que se encontra detalhada no corpo do acórdão, não se verifica
como uma simples conversa por telefone - uma comunicação entre particulares -
2685
pode trazer subsídios válidos e democráticos que fundamentem a decisão
proferida, a qual parece ferir o Direito de diversos outros cidadãos e colocar em
risco a própria postulante. Isso porque, estando o fármaco ainda em fase de
testes, não se sabe quais suas reações no organismo humano, nem se tem um
controle mínimo sobre os resultados.
Além disso, uma comunicação com os demais sistemas afetados nesta
tomada de decisão permitiria observar, por exemplo, qual a ligação de
determinado profissional da saúde com o laboratório do medicamento receitado principalmente em casos que envolvem fármacos experimentais e de elevado
custo, já que é de conhecimento notório o lobby que os laboratórios farmacêuticos
praticam junto aos médicos para introduzir um novo produto no mercado. Aliado a
isso, a comunicação permitirá observar qual a estrutura que o sistema de saúde
pública do país disponibiliza para amenizar a enfermidade da qual o postulante é
acometido.
Esse lobby da indústria farmacêutica é real (Angell, 2009), e não pode ser
ignorado pelo julgador e nem pelos administradores públicos. Não fossem
suficientes todas as peculiaridades envolvendo o nosso caso, há mais uma
informação crucial, trazida, novamente, por Eduardo Appio, dias depois da
decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que confirma as
preocupações acima expostas.
O oncologista C.H. Barrios – ouvido pelo ilustre magistrado na sua
preocupação de prestar a melhor e imediata jurisdição – é, certamente,
uma das autoridades no assunto. Todavia, suas relações com a Roche
me parecem por demais próximas. Basta ver que além de publicar
artigos na revista médica da referida indústria, o referido médico, em
datas recentes (18 a 20 de setembro de 2008) foi um dos coordenadores
de um encontro internacional sobre o tema em Gramado/RS (Hotel
Serrano), patrocinado por fabricantes de medicamentos.
Está aqui materializada a preocupação de que se falava anteriormente: a
concessão de uma medicação experimental de um custo tão elevado, que
certamente privará diversas outras pessoas de atendimento médico ou acesso a
medicamentos muito mais simples do que este, foi tomada com base em
comunicações particulares viciadas, e com muitos pontos cegos nas observações
de primeira ordem. “Enfim, R$ 132 mil, pagamento por um único medicamento
sem uma eficácia comprovada e sem aprovação da ANVISA, para atender uma
2686
única mulher, sem previsão orçamentária, pode significar a morte de muitas
outras pessoas que ficarão sem o atendimento adequado” (APPIO, 2012).
A decisão proferida pela 1º Câmara Cível do TJ/RS, demonstra claramente
o paradoxo que se vivencia. De um lado, tem-se um enfermo buscando efetivar
seu direito à saúde por meio de acesso a um medicamento extremamente novo
no mercado, que neste caso sequer havia sido avaliado pela Anvisa para
tratamento daquela moléstia, e que consegue isso através do aceso à justiça. Por
outro, tem-se que a concessão de referido medicamento pode prejudicar a
concessão de outros medicamentos, a contratação de médicos, a construção de
postos de saúde, inviabilizando o gerenciamento de hospitais, entre outros,
afetando diretamente os demais cidadãos da Sociedade. Mas o postulante
continua precisando da decisão, assim como os demais cidadãos dependem e,
em certa medida, tem parte da efetivação de seus direitos condicionada ao
conteúdo desta decisão “individual”.
É preciso frisar: o que causa preocupação não é somente o problema
orçamentário, que até seria secundário, mas sim o risco deste tipo de decisão.
Em que pese o risco ser inerente à tomada de decisão, ele precisa ser
gerenciado.
Evidentemente que a ação do Judiciário não é de todo negativa ao
determinar que o Estado forneça determinados medicamentos. Um exemplo
positivo disto é que a inclusão de medicamentos antirretrovirais nas listas
públicas, a qual deu-se apenas após sucessivas decisões desta organização
contra o ente estatal determinando o fornecimento desses medicamentos, sendo
que hoje o Programa Nacional DST/Aids é referência no mundo (SISTEMAS
AIDS). A grande diferença entre esta situação e os demais casos citados, é que
não se tratavam de medicamentos experimentais.
Um estudo atual indica que “a maioria dos beneficiários dessas demandas
são minorias privilegiadas”(CAMPINO; CYRILLO, 2010, p. 34), e não pessoas de
baixa renda como o senso comum acredita. Segundo esta pesquisa, a maioria
dos postulantes de medicamentos junto ao Poder Judiciário é atendido por
advogados particulares e por médicos do setor privado e postula medicamentos
sem eficácia comprovada. Isto é, o que se pede não é essencial, mas um plus.
2687
Entre outras conclusões desses autores destacam-se a constatação da
elevada proporção de ações judiciais contra a SES, em 2006 e 2007, ser
proveniente de serviços privados de saúde (50%), de que muitas ações
envolviam medicamentos sem evidências clínicas positivas para o
tratamento da doença objeto da ação, o que representou um gasto de
R$ 7 milhões em medicamentos sem evidência cientifica para o uso
solicitado.
É importante destacar: ser atendido por advogados particulares ou até
mesmo médicos particulares nem sempre é sinônimo de riqueza: o médico pode
ser particular porque o plano de saúde concedido pela empresa custeia a
consulta; o advogado pode ser particular por ser irmão do doente ou estar em
busca de publicidade. O que se quer dizer com isso: todos os dados devem ser
analisados em cada caso específico, e efetivamente considerados quando da
decisão. Olhar apenas números isolados leva a grandes equívocos, como dizer
que quem é atendido por médicos particulares é privilegiado financeiramente.
Portanto, é preciso um esforço considerável para se minimizar os pontos cegos,
proporcionando um gerenciamento do risco qualificado. O Direito, que tanto tem
falado de acesso à justiça nos últimos anos, precisa aprender antes de mais
nada, a lidar com estas facetas que cercam este acesso.
3 DECISÕES, COMUNICAÇÕES E RISCO
Até o momento, foram citados diversos números e decisões sobre a
concessão de tratamentos médicos no Brasil envolvendo os cidadãos e o Estado.
Todavia, nesta parte final, serão trazidos números envolvendo pesquisa de campo
realizada por esta pesquisadora, a fim de demonstrar que não são tratados
apenas casos midiáticos, e que tampouco é suficiente apenas analisar números
do Conselho Nacional de Justiça e de outras instituições quando se trava um
debate sobre saúde pública. É preciso analisar números, o conteúdo das decisões
proferidas e os contextos que cercam os pedidos. Observar apenas números leva,
muitas vezes, a grandes equívocos em discussões sociológico-jurídicas, não
apenas sobre judicialização da saúde.
Nosso ponto de contato encontra-se na cidade de Farroupilha/RS, local em
que com uma observação mais restrita, esta pesquisadora coletou (e segue
coletando) alguns elementos relacionados ao contexto social e a estrutura
2688
judiciária.
No tocante à estrutura jurídica, a cidade foi classificada no ano de 2010
como entrância intermediária. Já no ano de 2014, foi determinado pela
Corregedoria Geral de Justiça, a especialização das Varas. Assim, atualmente a
Comarca conta com duas Varas Cíveis e uma Vara Criminal. Há também três
Promotores de Justiça, dois Defensores Públicos e a OAB mantém sede própria,
possuindo em seu cadastro mais de 240 advogados registrados. Ou seja, está-se
diante de uma cidade relativamente bem organizada e estruturada juridicamente,
pois a população é de aproximadamente setenta mil habitantes. Além disso, tratase de uma cidade com um grande polo industrial, em que as empresas oferecem
planos de saúde para seus funcionários, facilitando o acesso a meios de
tratamento de saúde. Aqui está uma situação em que, na maior parte das vezes, o
atendimento por médicos particulares não significa ser detentor de grandes
posses.
No final do ano de 2011, quando conseguiu-se agrupar com eficiência os
primeiros resultados desta pesquisa, tramitava 13.323 ações cíveis nesta
Comarca. No início do ano de 2015, já eram mais de 15 mil ações cíveis. Destas,
no mínimo 116 correspondiam a ações referentes a medicamentos voltadas ao
setor público (WEBBER, 2013. p. 160). Diz-se no mínimo, porque no decorrer da
pesquisa foi possível comprovar que os números apontados nos sistemas e os
números reais de processos algumas vezes destoam, seja porque o sistema foi
precariamente alimentado pelos funcionários, seja por falta de uma orientação
clara de como alimentar este sistema ou, simplesmente porque a estrutura do
próprio sistema oferece mais pontos cegos do que deveria. Este foi um dos
primeiros fatos que demonstrou como observar apenas os números finais de uma
pesquisa é insuficiente para tratar de saúde pública no Brasil. Já em janeiro de
2013, este número era de 126 ações postulando medicamentos junto ao Poder
Judiciário local.
Por mais inexpressível que pareça esse número, o mesmo assume
relevância quando observado no contexto de uma cidade que conta com uma
estrutura regular para o atendimento das políticas sanitárias. Entretanto, esta
observação era relegada e discriminada por alguns profissionais que tomavam
2689
contato com a pesquisa, fazendo com que a situação real da saúde pública no
município frente as decisões do Poder Judiciário fosse vista de forma superficial.
Com a continuidade do estudo, um dos efeitos colaterais relacionados a estes
pedidos judiciais e ao precário gerenciamento do risco, perfectibilizou-se: a
situação do hospital local agravou-se a tal ponto que no dia 14 de janeiro de 2014
a Prefeitura Municipal lançou a seguinte nota informativa:
Tendo em vista a gravíssima crise institucional instalada no Hospital
Beneficente São Carlos, comprometendo a saúde pública do Município,
e as informações veiculadas que podem confundir a opinião pública, a
Prefeitura Municipal de Farroupilha esclarece:
O Hospital Beneficente São Carlos, instituição hospitalar privada que
recebe verbas públicas para atendimento da saúde pública, vem tendo
dificuldades para cumprir o compromisso dos serviços contratados,
como é público e notório e comprovado documentalmente.
Com a crise financeira e administrativa, o Hospital não tem honrado
compromissos com fornecedores, funcionários, médicos e outros,
aumentando a dívida, apesar de a Prefeitura ter feito em 2013 um aporte
financeiro expressivo de 12 milhões, além do repasse dos recursos
contratualizados do SUS, o que não resolveu a situação.
O Hospital Beneficente São Carlos não vem cumprindo os serviços
pactuados pelo SUS o que gera um déficit de atendimento.
O Hospital Beneficente São Carlos não vem garantindo acesso regular e
continuo aos serviços de saúde com suspensão e recusa de
atendimentos.
O Município, para solucionar a gravíssima situação, ofereceu uma
alternativa que vem sendo discutida pelo hospital. A alternativa propõe
atendimento cem por cento gratuito, por meio de uma gestão adequada
às regras do Poder Público, sendo esta a única legalmente possível para
o recebimento de recursos Estaduais e Federais, no montante financeiro
que hospital necessita.
A proposta foi apresentada para os Associados, Conselho, médicos, e
representantes dos funcionários do Hospital Beneficente São Carlos.
A Prefeitura Municipal de Farroupilha reafirma seu compromisso com a
saúde pública do Município, estando, como sempre esteve, aberta ao
diálogo para garantir que todo o cidadão farroupilhense tenha acesso a
uma saúde pública de qualidade e gratuita. (PREFEITURA MUNICIPAL
DE FARROUPILHA. ASSESSORIA DE IMPRENSA E COMUNICAÇÃO
SOCIAL).
Nos dias que se seguiram, mais um comunicado foi anunciado:
Preocupada com a situação financeira do Hospital Beneficente São
Carlos (HBSC) e atenta a todas as movimentações, a Prefeitura
Municipal de Farroupilha informa que já repassou ao longo dos 38 dias
de 2014, R$ 2.310.000,00.
Mesmo sendo uma entidade privada, na última quinta-feira, 06, foram
depositados R$ 650.000,00 para o pagamento de salários do quadro
funcional da casa de saúde e na sexta-feira, 07, mais R$ 1.000.000,00,
destinados ao pagamento dos salários do quadro médico, com objetivo
de garantir a prestação de serviços e a não paralisação por falta de
remuneração.
No mês de janeiro, o repasse chegou a R$ 660.000,00 também para a
folha de pagamento de funcionários.
2690
A Prefeitura Municipal de Farroupilha reafirma seu compromisso com a
saúde pública do Município, estando, como sempre esteve, aberta ao
diálogo para garantir que todo o cidadão farroupilhense tenha acesso a
uma saúde pública de qualidade e gratuita. (PREFEITURA MUNICIPAL
DE FARROUPILHA. ASSESSORIA DE IMPRENSA E COMUNICAÇÃO
SOCIAL).
Depois, seguiu-se o pedido de exoneração do Secretário Municipal de
Saúde, no dia 14 de fevereiro de 2014 (Pedido de exoneração, 2014), alegando,
como sempre ocorre nestes casos, motivos pessoais. Em seguida, uma nova
equipe administrativa vinculada à prefeitura assumiu os trabalhos, sendo que
entre problemas com fornecedores, greves dos médicos, e falta de repasse de
verbas públicas, no final de 2014 esta equipe também se afastou da
administração. Mais uma vez, uma nova equipe do governo municipal tomou a
administração, mas até o momento, os problemas persistem, e o atendimento a
população segue cada vez mais precário.
Frente
a
este
cenário,
algumas
ações
judiciais
de
pedidos
de
medicamentos, tratamentos e internações que tramitavam ou tramitam na
Comarca no período que culminou neste caos da saúde pública local, devem ser
observadas.
Em um dos processos, o qual foi distribuído em 05/04/2010, relata a
história de um menino de 13 anos de idade que sofre de carcinoma medular
metastático (CID C73), e que após realizar vários procedimentos médicos (e
quando do ingresso da ação encontrava-se internado em um hospital de Porto
Alegre desde o ano de 2008), através de seus médicos, afirma que sua única
esperança de tratamento encontra-se em um medicamento (Sunitinibe), o qual é
um off label.
Assim, através da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul,
seus pais buscam a concessão deste medicamento em desfavor do Estado do
Rio Grande do Sul. Para embasar seu pedido, colacionam entendimentos
jurisprudenciais que fazem menção à dignidade da pessoa humana, além de
relatórios de médicos particulares indicando como o estudo com o medicamento
vem sendo feito. De todas as informações que embasavam o pedido, duas
chamam a atenção. A primeira é que o menino está sendo atendido em um
hospital de referência em Porto Alegre, mesmo lugar onde estão sendo realizados
2691
os testes com o fármaco prescrito, que aliás foi prescrito por uma das médicas
que coordena o estudo. Como reflexão preliminar, é necessário questionar qual o
comprometimento destes profissionais quando estão supervisionando testes de
uma droga e prescrevem a mesma, para ser consumida mediante pagamento
(elevado, pois em média o fármaco custa R$ 12.000,00 mensais) por um paciente
portador de uma doença pouco comum, e não o enquadram nesta pesquisa com
fornecimento gratuito da droga? Quais as conveniências que podem estar
envoltas nesta prescrição?
Segundo, ao compulsar os autos do processo, na fl. 34, observa-se um
curioso termo de consentimento informado em que os pais do garoto, menor de
18 anos de idade, afirmam estar cientes dos riscos que seu filho corre ao
participar de um estudo, e que “foram informados que nenhum benefício direto é
prometido para nosso filho como participante do estudo.” Portanto, a conclusão é
que este autor de uma ação judicial que tem o Estado como réu é um sujeito de
pesquisa. Por outro lado, isso faz surgir uma nova pergunta: se é um sujeito de
pesquisa, por que razão o medicamento não está sendo custeado pela indústria
farmacêutica e pelos responsáveis pelo estudo, como determinam as diretrizes
para pesquisas em seres humanos? Eis que no corpo de outro documento
(Relatório Médico – fl. 31 do processo) encontra-se a resposta: os ensaios
clínicos excluem pacientes com menos de 18 anos de idade. Os motivos tornamse patentes.
Neste caso, em primeiro grau o pedido liminar foi indeferido, sendo um dos
motivos utilizados pelo Magistrado o fato de se tratar de um medicamento
experimental, de alto custo, sem o mínimo de certeza quanto aos seus efeitos. Já
em grau de recurso, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
(TJ/RS), sem observar as peculiaridades do caso em questão, proferiu uma
decisão genérica concedendo o medicamento, tendo como argumento central a
dignidade da pessoa humana, em especial, tratando-se de uma criança.
Resultado: todos os meses são bloqueados estes valores das contas do ente
público para fornecimento do medicamento, que nas primeiras doses aplicadas
causou graves reações negativas no enfermo.
Um segundo traz a situação, uma senhora com 50 anos de idade narrou
2692
ser portadora do Mal de Parkinson. Sua única opção de tratamento seria a
realização de uma cirurgia experimental para implante de Eletrodo Cerebral
Profundo Bilateral, com custo inicial de R$ 191.680,00. Em razão disto, recorreu
ao Poder Judiciário para que a prestação jurisdicional fosse-lhe alcançada, com
determinação de cumprimento da obrigação por parte do Município de
Farroupilha, evidentemente solicitando antecipação de tutela para determinação
de pagamento do ato cirúrgico, que precisava ser realizado no exterior.
Compulsando os autos, o Magistrado entendeu que, embora a previsão
dos médicos fosse promissora, a parte não havia postulado adequadamente o
pedido via Sistema Único de Saúde, motivo pelo qual a antecipação de tutela
seria indeferida. Mais uma vez, em grau de recurso, a medida foi concedida
(Agravo de instrumento n.700412227653), nos mesmos moldes da decisão que
concedeu o tratamento ao menor (caso anteriormente analisado). E então na
posse destes números, talvez seja interessante voltar a ler o comunicado da
Prefeitura Municipal sobre a situação do único hospital da cidade.
Como referido ao final do primeiro ponto, nem sempre as pessoas que vêm
postular medicamentos junto ao Poder Judiciário são pessoas de parcas
condições econômicas. Assim, como as pesquisas citadas anteriormente, a
situação da Comarca de Farroupilha não é diversa. Os números apontam que,
das 126 ações que tramitavam em janeiro de 2013 envolvendo saúde pública, 43
postulavam exclusivamente a entrega de algum medicamento, sendo que, destas,
duas ações foram interpostas pelo Ministério Público, 14 através de advogados
particulares e 27 via Defensoria Pública. No que se refere à origem das
prescrições médicas, quase a totalidade das ações interpostas via advogados
particulares foram originadas em prescrições de médicos particulares e, o
elemento mais importante, não foram precedidas de pedido administrativo. Esse
dado é fundamental para se pensar em prestação sanitária democrática.
Outro ponto precisa ser destacado: não são apenas ações individuais que
são ajuizadas, mas também ações em que mais de uma pessoa busca a
concessão de um determinado tratamento de forma gratuita. Este é o exemplo
ocorrido na cidade de Porto Alegre/RS, e que chama a atenção pelo impacto que
tem na Sociedade em geral. Mesmo ações coletivas dificultam o acesso à saúde
2693
pública para um grande número de pessoas.
No processo número 10503128663, com origem na Comarca de Porto
Alegre, um grupo de enfermos de oito pessoas postulava a concessão do
medicamento Replagal, com custo trimestral de US$ 333 mil dólares. A pretensão
foi atendida pelo juízo de primeiro grau, mesmo o medicamento estando em fase
de desenvolvimento nos Estados Unidos. Na época do pedido, sequer estava
registrado na Anvisa e tampouco no FDA ou na União Europeia.
Concedida antecipação de tutela na sentença, foi determinado o prazo
de cinco dias para fornecimento da medicação. Foi intimado o Secretário
da Saúde para imediato cumprimento da antecipação de tutela
concedida, sem qualquer manifestação. Houve a expedição de novo
mandado para intimação do Secretário da Saúde acerca do orçamento
acostado pelos autores, possibilitando a programação do pagamento, a
fim de evitar o bloqueio, devendo manifestar-se no prazo de 48 horas.
Novamente não houve qualquer manifestação, nem o depósito do valor
correspondente. Possível, nestes termos, o bloqueio de valores. Nesse
sentido decisões recentes assim ementadas: DIREITO PÚBLICO NÃO
ESPECIFICADO. BLOQUEIO DE VALORES PARA ASSEGURAR A
COMPRA DE MEDICAMENTO A PACIENTE PORTADOR DE DOENÇA
GRAVE. Há possibilidade de negar provimento ao agravo de instrumento
nos termos do art. 557 do CPC quando a fundamentação jurídica já se
encontrar sedimentada junto ao órgão fracionário. Entendimento
consagrado pelo e.Superior Tribunal de Justiça. O bloqueio de valores
para assegurar o cumprimento da tutela antecipada encontra amparo na
legislação vigente (art. 461, § 5º, do CPC). Medida excepcional que se
justifica quando comprovada a demora do ente público em fornecer o
fármaco necessário a manutenção da vida e saúde do agravado.
AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. (Agravo Nº 70011551017, Terceira
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Antônio
Monteiro Pacheco, Julgado em 23/06/2005) AGRAVO DE
INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. SAÚDE
PÚBLICA. MEDICAMENTOS. BLOQUEIO DE VALORES EM CONTA
BANCÁRIA DO ESTADO. VIABILIDADE. ART. 557,CAPUT, DO CPC.
Não sendo fornecido o medicamento requisitado ao Estado, em prazo
razoável, possível a apreensão do valor correspondente em conta
bancária do Estado, justificando-se a medida excepcional ante a
supremacia do bem jurídico que se objetiva resguardar. AGRAVO
DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70012109823, Segunda
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Arno Werlang,
Julgado em 29/06/2005) Diante do exposto, determino a expedição de
mandado de bloqueio do valor equivalente a US$ 332.880,00 (trezentos
e trinta e dois mil, oitocentos e oitenta dólares), observada a cotação
correspondente na data do bloqueio junto à instituição financeira,
correspondente a três meses de tratamento, conforme orçamentos de
fls. 401/402, em caráter de urgência, intimando-se o gerente da agência
bancária respectiva. Mandado a ser cumprido pelo Plantão. Efetivado o
bloqueio, expeça-se alvará em favor dos autores, que deverão
apresentar a prestação de contas no prazo de 10 dias. Intimem-se as
partes com urgência.
Em seguida, por meio de embargos de declaração, o Estado levantou
2694
questão de extrema importância: como conseguir um medicamento que não está
sendo vendido no Brasil, e está em fase de testes em seu país de origem, tendo
apenas valor aproximado apresentado na pesquisa? Neste momento, como a
decisão proferida corrompeu todos os códigos do Direito e demonstrou total falta
de comunicação com qualquer outro sistema, não passando de uma decisão
genérica (e um falso alívio de consciência), a Magistrada limitou-se a afirmar que
a decisão havia sido clara: ou o Estado comprava o remédio ou, na pior das
hipóteses, o valor deveria ser disponibilizado à parte. Contudo, a pergunta feita
pelo Estado (como? onde?), não foi respondida. Claro, porque a decisão foi dada
de forma precária, sem conhecimento necessário à matéria e sem acoplamentos
que possibilitassem uma resposta completa. Quando uma decisão é dada sem
fundamentação e sem análise das peculiaridades do caso, estes abismos sociais
são criados e não há como contorná-los. Inconformada, a Secretaria de Saúde do
Rio Grande do Sul recorreu da decisão, tendo conseguido em segundo grau a
reversão da medida.
Em nota, a Secretaria de Saúde informou que o valor bloqueado em liminar
era equivalente ao que se gastaria com o tratamento de mil pacientes
transplantados de rim ou fígado, que necessitam utilizar o medicamento Traclimus
1 mg. (Desembargador desobriga Estado de bloquear dólares).
Para que se evitem situações como a gerada pelas decisões proferidas no
Rio Grande do Sul e que foram acima trabalhadas, necessário que se observem
as questões sanitárias de maneira a comunicar todos os sistemas envolvidos na
questão. Os casos trazidos para análise são apenas uma pequena amostra do
que se enfrenta na atualidade: a alta complexidade do acesso à saúde, e não do
acesso à justiça, que lamentavelmente no Brasil é interpretado apenas como
acesso ao Poder Judiciário. A preocupação a partir de agora deve ser outra: como
possibilitar que os diversos setores da Sociedade comuniquem-se e passem a
efetivar o Direito à Saúde de maneira não paradoxal, em que o acesso para uma
pessoa implique na impossibilidade para outra? Certamente um dos caminhos
passa pela observação contextualizada de todas as circunstâncias que envolvem
estes números e pedidos, e um trabalho contínuo nas políticas de acesso à justiça
em todo o Brasil.
2695
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar efetivação da saúde pública na atualidade brasileira é pensar em
prestação jurisdicional. Seja porque a Administração Pública não tem cumprido
seu papel, seja porque os cidadãos buscam mais do que o acesso básico e
tradicional, o Poder Judiciário tem sido tomado por ações desta natureza. Ao
longo deste artigo, procurou-se demonstrar como essa situação tem sido tratada
no cenário jurídico contemporâneo.
Ao retratar alguns casos que envolvem medicamentos experimentais ou de
altos valores monetários, tentou-se mostrar como o acesso à justiça tem sido
flexibilizado e facilitado nos últimos anos. Com isso, tem permitido que inúmeras
demandas como as mencionadas ao longo deste trabalho, cheguem ao Poder
Judiciário.
Quanto se sustenta que houve uma banalização do acesso à justiça em
termos de saúde pública, essa afirmação parte dos diversos casos que foram
analisados no transcorrer desta pesquisa, dos quais os que foram trazidos para
este artigo mostra que há pedidos de depilação a laser, de próteses de silicone
com fins estéticos, muitos e muitos casos de tratamentos experimentais. Talvez
esse fator tenha ficado mais evidente nos dados da cidade de Farroupilha, em
que o hospital local vem enfrentando uma séria crise, mas a maior parte dos
pedidos feitos ao Poder Judiciário – e deferidos – refere-se a um moderno
tratamento para Diabetes, com custo muito superior ao tradicional oferecido de
forma gratuita, e com o mesmo princípio ativo, mas com aplicação diferente.
Ademais, no modo como os julgadores têm decidido estas questões, é
nítido que não há o estabelecimento de uma comunicação funcional com os
vários sistemas sociais envolvidos nesta problemática, gerando uma série de
dificuldades, novamente, no momento da efetivação. Logo, são geradas duas
frustrações: a primeira, quando a administração pública não cumpre as
expectativas cognitivas e normativas dos cidadãos; outra, quando a decisão
proferida pelo Poder Judiciário, por não atentar para os detalhes do caso – como
o fato de muitos pedidos serem de tratamentos experimentais –, não consegue
2696
alcançar a tutela jurisdicional prestada.
Todas estas situações surgem e são colocadas sob observação
precisamente porque há um excesso de possibilidades e, em consequência, de
riscos/perigos na sociedade contemporânea, que precisam ser gerenciados para
que se possa pensar em modificação do paradigma atual e evolução nos métodos
de efetivação de uma saúde de qualidade (nem mais e nem menos) para todos.
Também é preciso deixar claro que nossa observação não visa condenar a
concessão de medicamentos de valor elevado. Isso vai na contramão do que se
afirmou até o momento: o que é preciso é verificar o contexto.
Eis um dos problemas atuais com que o Direito tem que necessariamente
lidar: encontrar uma forma de facilitar o acesso à justiça, em especial em casos
de busca de efetivação da saúde pública, mas sem permitir que esta
acessibilidade seja banalizada. Não se pode apenas observar que as pessoas
buscam o Poder Judiciário para qualquer espécie de demanda, e não pensar em
como aperfeiçoar este mecanismo.
Em uma última palavra: é preciso uma rede de comunicações e
acoplamentos para que se produza uma decisão devidamente fundamentada e
sem corrupções, com a perspectiva de modificação do quadro atual da saúde
pública, para uma situação mais favorável a todos os cidadãos, e não apenas
para alguns. Isso sim representará a concretização do acesso à justiça e à saúde.
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