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Fundação Educacional de Divinópolis - FUNEDI
Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG
Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais
A MULHER CONTEMPORÂNEA: REPRESENTADA NA OBRA
MELHORES CRÔNICAS DE AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA
Alba Valéria Durães Milagres
Divinópolis – MG
2008
Alba Valéria Durães Milagres
A MULHER CONTEMPORÂNEA: REPRESENTADA NA OBRA
MELHORES CRÔNICAS DE AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA
Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de PósGraduação Strito Sensu Educação, Cultura e
Organizações Sociais da FUNEDI-UEMG.
Área de concentração: Estudos Contemporâneos
Linha de Pesquisa: Cultura e Linguagem
Orientador : Prof. Dr. Pedro Pires Bessa
Divinópolis – MG
2008
Milagres, Alba Valéria Durães
M637m
A mulher contemporânea: representada na obra melhores crônicas
de Affonso Romano de Sant’Ana [manuscrito] / Alba Valéria Durães
Milagres. – 2008.
117 f., enc. il .
Orientador: Pedro Pires Bessa
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Minas Gerais,
Fundação Educacional de Divinópolis.
Bibliografia : f. 90-96
1. Perfis de mulher. 2. Contemporaneidade. 3. Crônica literária
l. Bessa, Pedro Pires. II. Universidade do Estado de Minas Gerais.
Fundação Educacional de Divinópolis. III. Título.
CDD: B869.3
Dissertação intitulada “A mulher contemporânea: representada na obra Melhores Crônicas
de Affonso Romano de Sant'anna”, de autoria da mestranda Alba Valéria Durães Milagres,
aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
__________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Pires Bessa (Orientador)
FUNEDI/UEMG
__________________________________________________
Profª. Drª. Helena Alvim Ameno
FUNEDI/UEMG
__________________________________________________
Prof. Dr. William Valentine Redmond
CES/JF
Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais
Fundação Educacional de Divinópolis
Universidade do Estado de Minas Gerais
Divinópolis, 4 de Novembro de 2008.
AUTORIZAÇÃO PARA A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DA
DISSERTAÇÃO
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial
desta dissertação intitulada “A mulher contemporânea: representada na obra Melhores
Crônicas de Affonso Romano de Sant'anna”, autoria de Alba Valéria Durães Milagres, por
processos de fotocopiadoras e eletrônicos. Igualmente, autorizo sua exposição integral nas
bibliotecas e no banco virtual de dissertações da FUNEDI/UEMG.
Alba Valéria Durães Milagres
Divinópolis, 4 de Novembro de 2008
A meu filho,
Alexander Douglovsk Durães Milagres,
por ser a prova maior do meu significado de mulher.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Pedro Pires Bessa, por orientar-me e indicar-me caminhos na árdua tarefa
de elaboração desta dissertação.
A todos os professores do Curso de Mestrado Educação, Cultura e Organizações Sociais da
FUNEDI-UEMG, cuja competência muito contribuiu para a realização deste trabalho.
Ao escritor Affonso Romano de Sant’Anna pela constante atenção e presteza com que me
atendeu e incentivou-me na elaboração desta pesquisa.
Ao amigo Rodrigo Alves dos Santos, por ser minha fonte de inspiração para sobreviver na forte
agitação das ondas do mar intelectualizado.
Ao amigo Ronaldo Duarte, por me acolher com sábios conselhos em momentos de angústia e
provar-me que vale a pena investir no ser humano.
Às amigas de mestrado Aparecida Maria Jerônimo Miranda e Mercedes Pérez Bertachini, por
vivenciarem comigo os conflitos da vida acadêmica.
À Dra. Cristine Strassburguer Nunes, por me ajudar a atingir o equilíbrio emocional que
ultrapassa as barreiras de gênero.
À memória da amiga Sônia Maria da Silva, por continuar sendo exemplo de que nascemos para
sermos felizes.
À grande amiga Júnia Paula Bernardes, por compartilhar comigo as dores e as alegrias de ser
mulher.
Especialmente, à minha mãe, Clélia, e às minhas irmãs, Ana, Alexandra e Édna, que me são
exemplos grandiosos de mulheres.
“O homem é águia que voa,
a mulher, o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço, cantar
É conquistar a alma.”
Victor Hugo
RESUMO
A mulher atingiu, nas últimas décadas, muitas conquistas e tornou-se um elemento significativo
de investigação. Diante disso, objetivamos apresentar uma análise sobre o comportamento da
mulher como importante referência de transformação social. Levamos em conta algumas
características sociais e científicas da contemporaneidade para podermos verificar a relação entre
cultura, identidade e sociedade. A coleta de informações se deu mediante análise de crônicas de
Affonso Romano de Sant’Anna, na obra Melhores crônicas. Fizemos uma análise das conquistas
da mulher para procurarmos estabelecer quais as conseqüências positivas e ou negativas para ela
enfrentar a realidade social e o modo como o cronista faz essa representação. Para isso,
relacionamos alguns perfis de mulher diante de algumas situações/casos – a violência; a memória
e a identidade; a identidade e o mito; mercado de trabalho; casamento; sexo; corpo – com teorias
que endossassem e ou questionassem as representações feitas pelo autor dos textos. Verificamos
ser muito o que temos a dizer sobre a mulher, pois os caminhos percorridos por ela a tornam um
elemento que ultrapassa fronteiras. Por se tratar de um objeto de muitas faces, é importante
ressaltarmos que contamos com a teoria transdisciplinar para ser possível alinhavar os caminhos
percorridos pela mulher.
Palavras-chave: mulher, conquistas, crônicas, transdisciplinaridade, contemporaneidade.
ABSTRACT
The woman achieved, in the last decades, many conquests and became a meaningful subject of
investigation. Because of this, we intend to show in this study an analysis of the woman’s
behavior as an important reference of social transformation. We consider some social and
scientific characteristics in contemporary society to be able to examine the relation between
culture, identity and society. The information was collected based on an analysis of Affonso
Romano de Sant’Anna’s chronicles, in the work Melhores crônicas. We made an analysis of the
woman’s conquests and tried to establish what are the positive and the negative elements that she
had to face in the social reality and the way the chronicler makes this representation. For this, we
related some profiles of the woman as seen in some situations and cases such as: – violence,
memory and identity; identity and e myth; the work market; marriage; sex; the body – with
theories that endorse and or question the representations made by the author’s texts. We found
that there was much that we need to say about the woman, because the path she has taken allows
her to surpass many boundaries. Since we are dealing with a multifarious object, it is important to
show that we relied on a transdisciplinary theory in order to show the paths take by the modern
woman.
Key words: woman, conquests, chronicles, transdisciplinary, contemporaneous.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ...............................................................................................
10
1.1
Justificativa ........................................................................................................
11
1.2
Objetivos ...........................................................................................................
12
1.3
Hipótese ............................................................................................................
12
2
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................................
13
3
A MULHER NA CENA CONTEMPORÂNEA:
UM SER MULTIFACETADO ......................................................................
19
3.1
A mulher e a violência ...................................................................................
19
3.1.1
Violência doméstica ........................................................................................
20
3.1.2
Violência social ...............................................................................................
28
3.2
A mulher, a memória e a identidade ...........................................................
34
3.3
A mulher, a identidade e o mito ...................................................................
42
3.4
A mulher e o mercado de trabalho ...............................................................
49
3.5
A mulher e o casamento ................................................................................
57
3.6
A mulher e o sexo ...........................................................................................
67
3.7
A mulher e o corpo .........................................................................................
80
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................
89
REFERÊNCIAS .............................................................................................
90
ANEXOS .........................................................................................................
97
1 INTRODUÇÃO
Nosso objetivo maior com este trabalho consiste em uma leitura interdisciplinar sobre o papel da
mulher na cena contemporânea. A partir do histórico social da mulher, percebemos que ela já
atingiu muitas conquistas, em variados aspectos da vida privada e pública. Por isso, um olhar
único não daria conta desse objeto tão complexo quanto se apresenta a mulher. É necessário um
conjunto de olhares para percebermos o seu significado.
Através do olhar literário das crônicas de Affonso Romano de Sant’Anna, na obra Melhores
crônicas,combinado com os olhares de teorias da psicanálise, estatísticas e questionamentos
sociais, faremos uma análise fragmentada e, ao mesmo tempo, integrada sobre o que é a mulher.
Através do entendimento sobre o que é a heterogeneidade da mulher, poderemos estabelecer uma
análise indicativa de margens a seguir para os vários perfis de mulher que as crônicas analisadas
apresentarão.
Lançaremos mão do princípio básico da transcidisplinaridade, que, como paradigma emergente,
propõe transcender o universo fechado da ciência e trazer à tona a multiplicidade fantástica dos
modos de conhecimento, assim como o reconhecimento da multiplicidade de indivíduos
produtores de novos e velhos modos de conhecimento. A partir de então, surge a necessidade de
reafirmar o valor de cada sujeito como portador e produtor legítimo de conhecimento. Ou seja, o
trabalho aqui exposto, percorre diversas linhas do conhecimento: literatura, história, psicanálise,
estatística e estudos culturais. Permite, dessa forma, a intercomunicação entre essas áreas de
conhecimento, proporcionando o surgimento de um novo saber.
A transdisciplinaridade chama a atenção para a potencialização de tendências heterogêneas, seja
no campo da subjetividade ou no da produção de conhecimento, abrindo áreas de tensão com as
tendências homogeneizantes. Sob esse aspecto, a mulher é um elemento com grande potencial
transdisciplinar, pois em cada perfil em que se encontra, há marcas dos limites ultrapassados e
outros que ainda a aprisionam.
11
1.1 Justificativa
O meu interesse1 pela literatura sempre foi grande. Por isso mesmo, cursei Letras. No período em
que estudava na Universidade Federal de Viçosa, tive contato com professores da área que
exalavam paixão por literatura através de todos os poros. É lógico concluir que a minha
intimidade com essa arte aumentou. Aconteceu de eu ser apresentada, em uma das aulas teóricas,
à obra O canibalismo amoroso de Affonso Romano de Sant’Anna. Nesse livro, o autor faz um
estudo sobre perfis de mulher – ora como estátua, ora como devoradora, ora como santa – em
algumas obras literárias, relacionando psicanálise e literatura. O estudioso considera que a obra é
o “cobrir praticamente todas as áreas em estudo [...] pela multiplicidade de significados.”
(SANT’ANNA, 1993: p. 17)
Acrescentado ao gosto pela Literatura o fato de eu ser mulher, aquela obra provocou em mim
uma necessidade de investigar as razões daquelas representações para o perfil feminino. Afinal,
ao conseguir entender as representações, seria possível um auto-conhecimento significativo.
Além disso, não poderia deixar de relacionar o comportamento das mulheres dos séculos
anteriores com todas as conquistas que elas adquiriram, no Brasil e em outros lugares do mundo,
nas últimas décadas. Por isso mesmo, esse gênero é importante objeto de estudo dentro da cena
contemporânea.
Depois de alguns estudos literários, além do meu interesse em estudar melhor o perfil da mulher
no âmbito social, fui descobrindo um outro grande interesse: conhecer melhor o crítico-cronistapoeta Affonso Romano de Sant’Anna. Surgiu-me um questionamento bastante sugestivo: “Como
será o perfil de mulher representado pelo cronista/poeta Affonso Romano de Sant’Anna?”.
Assim, estabelecer um vínculo entre os textos elaborados pelo autor e as conquistas da mulher
contemporânea pareceu-me quase inevitável.
1
O uso de primeira pessoa do singular tornou-se inevitável, devido ao meu envolvimento pessoal com o objeto desta
pesquisa.
12
1.2 Objetivos
Analisar a representação da mulher nas crônicas de Affonso Romano de Sant’Anna, na obra
Melhores crônicas, tendo como objetivos específicos: conhecer os perfis de mulher representados
pelo autor e analisar a relação desses perfis com as teorias sobre a mulher.
Pretendemos responder às seguintes indagações:
•
A mulher já atingiu todos os direitos sociais?
•
A mulher realizada na vida pública, também o é na vida privada?
•
A mulher contemporânea é feliz?
•
A mulher se realiza no casamento?
•
A mulher se realiza no sexo?
•
Quais as estratégias usadas por Affonso Romano de Sant’Anna para representar a mulher?
1.3 Hipótese
A mulher tornou-se uma guerreira ao conquistar, em partes, o espaço público, porém, ainda está
distante de ser realmente compreendida e feliz.
13
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Se antes, quando lhe davam direito apenas à vida privada, cabia à mulher somente a obediência e
o lar; agora, o mundo proporciona-lhe outros tributos e afazeres. Como é o comportamento desse
novo perfil de mulher é um questionamento que envereda por vários caminhos, por isso
percorreremos um deles, com a intenção de conseguir algumas respostas.
A luta das mulheres para conquistar seu espaço em um meio comandado e feito por homens
ganhou força com o movimento feminista do século XX (SCOTT, 1990). A conseqüência desse
movimento foi, ao longo das últimas décadas, a colheita de vários frutos esperados, a aquisição de
direitos que antes lhes eram preteridos: significativa inclusão nas atividades políticas, sociais e
econômicas, promovendo-lhes cidadania.
É certo que o caminho ainda não foi todo percorrido, pois “algumas análises argumentam que
enfatizar características supostamente femininas significa simplesmente reforçar estereótipos que
relegam as mulheres a papéis considerados inferiores” (SILVA, 1999, p. 91). Dentro desse
cenário, não nos resta dúvida de que as mulheres se tornaram evidente objeto de pesquisa.
Primeiramente, é preciso reconhecermos a conquista da mulher na derrubada de tabus e de
remodelação de sua imagem diante de um mundo fundamentalmente masculino. Porém, cabe
afirmarmos que “não existe nenhuma posição transcendental, privilegiada, a partir da qual se
possam definir certos valores ou instituições como universais. Essa posição é sempre enunciativa,
isto é, ela depende da posição de poder de quem a afirma, de quem a enuncia.” (SILVA, 1999, p.
90). Por isso o perfil da mulher, na contemporaneidade, ainda não está pronto e acabado.
Assim, para cuidarmos dessa temática tão pertinente, uma vez que se trata da cidadania e de
valores democráticos, apenas um olhar, um viés para compreender o mistério que ainda envolve o
papel da mulher no contexto social é insuficiente. Torna-se imprescindível buscarmos novas
formas de olhar este objeto – mais do que agente! Então, lançarmos mão da transdisciplinaridade
para elucidar a problemática é uma tarefa importante. Como afirma o teórico Domingues:
14
Compartilhamento de metodologias unificadoras, construídas mediante a articulação de
métodos oriundos de várias áreas do conhecimento – como o interdisciplinar – porém
numa perspectiva mais abrangente, para que haja a ocupação das zonas de indefinição e
dos domínios de ignorância de diferentes áreas do conhecimento, localizados aquém dos
recortes disciplinares. (DOMINGUES, 2005, p. 98)
É evidente que a propensão transdisciplinar precisa ser vista como uma orientação a ser seguida,
pois não apresenta método para que se configure. Assim, lançaremos mão do qualitativo para
unirmos vários olhares acerca da mulher.
Para Minayo (1995) o saber cristalizado que permeia o senso comum (o cotidiano reproduzido
nas crônicas analisadas), quando identificado e analisado em determinados grupos é
extremamente valioso, pois permite que conheçamos aspectos bio-psico-sociais. De acordo com a
autora, “as abordagens qualitativas são capazes de incorporar a questão do significado e da
intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, como construções
humanas significativas". Podemos, então, compreender os indivíduos como sujeitos coletivos,
uma vez que a voz de cada um, enquanto sujeito social, expressa a vivência e a fala de muitos.
Dessa forma, ao lermos textos sobre a mulher, verificamos estar ali um discurso subjetivo que
representa o coletivo2.
Material Alvo
A produção literária alvo do estudo foi composta por 08 crônicas do autor Affonso Romano de
Sant’Anna, inseridas na obra Melhores crônicas A temática escolhida foi a representação da
mulher contemporânea.
2
Apesar de sabermos a relevância da análise de discurso de um texto, nosso interesse é verificar como se representa
esse discurso; não, necessariamente, o que ele significa, ou o que ele projeta.
15
Material e Métodos
Utilizamos a metodologia qualitativa, por permitir maior compreensão dos significados que as
mulheres atribuíram às vivências experimentadas na esfera psicossocial em decorrência de
conquistas e, segundo Minayo "por tratar-se de fenômeno que envolve subjetividades". Dentro
desta metodologia, optamos pela utilização de crônicas focalizadas em uma única obra, por ser
uma técnica reconhecidamente eficiente na obtenção de dados, possibilitando-nos, portanto, uma
identificação de representações dos perfis de mulher.
As abordagens de corte qualitativo possibilitam melhor análise dos campos e dos sentidos neles
presentes, na medida em que indicam uma teia de significados, de difícil recuperação através de
estudo de corte quantitativo. Isto não quer dizer que não possamos recorrer, quando for
necessário, a instrumentos quantitativos, fazendo uso, portanto, como recomenda Minayo (1955),
de abordagens diversificadas para a explicação da realidade, como as estatísticas que definem
numericamente a realidade da mulher, por exemplo.
Por se constituir em uma pesquisa qualitativa que utiliza análise documental (as crônicas), é
importante observarmos o que afirmam Ludke e André:
São considerados documentos quaisquer materiais escritos que possam ser usados
como fonte de informação sobre o comportamento humano. Estes incluem desde
leis e regulamentos, normas, pareceres, cartas, memorandos, diários pessoais,
rádio e televisão até livros, estatísticas e arquivos escolares. (LUDKE e ANDRÉ:
1986, p. 38)
Nesse sentido, buscamos verificar como se realiza a representação da mulher na obra Melhores
crônicas de Affonso Romano de Sant’Anna.
A escolha do autor das crônicas que serão analisadas tem relação direta com a importância de
Affonso Romano de Sant’Anna na produção literária, no Brasil e em vários outros países, como
podemos verificar com a seguinte crítica de Wilson Martins:
16
Não pode haver nenhuma dúvida: ele é não só um poeta do nosso tempo,
integrado nos seus problemas e perplexidades, nas incertezas sucessivas em que
as certezas se resolvem, mas é também [...], e antes de mais nada, um intelectual
de alto gabarito, sem nenhuma das ingenuidades mentais a produção corrente no
nível do rasteiro das pequenas emoções domésticas e nas dimensões
microscópicas da autobiografia insignificante.3
Do ponto de vista literário, a pertinência do uso da crônica se faz pelo que ela traz de
possibilidade em enfatizar a importância desse tipo textual, (MOISÉS,
1973 e SÁ, 2005),
como
referência de multiplicidade, além de utilizar o autor Affonso Romano de Sant’Anna como
produtor dessa representação. A escolha desse autor é primordial, por ele ser um cronista-poeta
que realiza corajosas intervenções na chamada cultura contemporânea, sendo, portanto, do ponto
de vista literário, um dos cronistas que melhor trabalha o conceito de representação cultural. O
próprio autor apresenta4 “[a necessidade de o texto ser o veículo representativo de uma sociedade
onde] surgem muitos temas da chamada modernidade e pós-modernidade, como fim da arte, a
questão da transgressão e a questão do mal-estar de nossa cultura”. Também cabe salientarmos
que a escolha da obra Melhores crônicas do autor relaciona-se com as várias facetas de mulher
que podemos encontrar representadas. Assim, buscarmos a identificação de como se constrói esse
gênero na contemporaneidade é uma investigação que rende bons frutos.
A utilização das crônicas reunidas permitiu-nos, ainda, atingir um maior número de textos ao
mesmo tempo, bem como, conhecer “o processo dinâmico de inter-relações [textuais]
identificando problemas, e a forma nas quais as opiniões, sentimentos e significados das pessoas
encontram-se associados a determinados fenômenos." (WESTPHAL, 1989 p.15) – no caso, os
fenômenos em torno da mulher, sob a ótica do cronista. O emprego dessa técnica facilitou,
portanto, a obtenção de dados com um certo nível de profundidade e eficiência na identificação
de características psicossociais e culturais. A essência desse método consiste na interação entre
pesquisador e objeto, cuja intenção é colher dados a partir de identificação de tópicos específicos
e diretivos.
Depois de realizarmos um período de leituras das crônicas – 61 textos reunidos na obra Melhores
crônicas –, organizamos
3
4
sete grupos temáticos sobre o perfil de mulher. Assim sendo,
Cf. orelha da obra Melhores crônicas de Afonso Romano de Sant’Anna
Afirmação apresentada pelo autor em uma entrevista para a editora Rocco (2006), publicada na obra A cegueira e o saber.
17
procuramos destacar o uso dos perfis de mulher interpretativos associados à representação
literária e procuramos detectar elos com repertórios presentes na literatura, na referência teórica
consultada.
Resultados e discussões
Os dados qualitativos foram analisados através da Técnica de Análise de Conteúdo, uma
modalidade temática que "consiste em descobrir os núcleos de sentidos que compõem a
comunicação e cuja presença, ou freqüência de aparição, podem significar alguma coisa para o
objetivo analítico escolhido.'' (SPINK, 1999, p.44). Assim, a análise das representações,
associada à bibliografia consultada, foi o que possibilitou a compreensão sobre as versões
explicativas dos grupos frente ao papel da mulher que se apresenta como um dos elos da rede de
conhecimentos e de sentidos que foram sendo produzidos, expressos por meio de práticas sociais
em diferentes tempos e espaços.
Com a análise, discussão e ordenamento das categorias a partir das crônicas, considerando seus
pressupostos, no jogo de intertextos, podemos "identificar permanências e rupturas culturais,
assim como garantir o acesso aos múltiplos sentidos" (SPINK, 1999, p.45). Por isso, a variação
temática envolvendo a mulher nos possibilita identificar mudanças e permanências no
comportamento social acerca daquilo que caracteriza a mulher.
Bakthin (1995) trabalhou o conceito de "parole" (fala) numa perspectiva de produção coletiva,
levando em consideração três aspectos: o conceito de enunciado; a tipicidade da situação, ou seja,
do contexto imediato em que ocorre o diálogo, e a pessoa que ao formular seu enunciado,
expressa seu horizonte conceitual, intenção e visão de mundo.
As pessoas sabem sobre o que estão falando, mas o assunto sobre o qual se fala e o modo como
se fala, vão se desenvolvendo no decorrer das inter-relações. Assim, “o participante da conversa,
por estar numa relação face-a-face, tem a possibilidade de observar o impacto (expressões
verbais, corporais, silêncios, entre outros) de seu enunciado nas pessoas presentes. Neste aspecto,
estamos lidando com a dimensão histórica da produção de sentidos" (SPINK,1999, p.35). Então,
18
a partir da voz do cronista, pudemos associar linguagem e o não-dito com teorias e fazer
interpretações acerca da mulher.
A variabilidade dos temas é uma forma rica de comunicação, que além de ajudar a compreender
determinadas características, apresentadas da forma como foram expressas, é fruto de uma
construção social. Notamos, também, a existência de um processo dinâmico de “ressignificação
que possibilita a produção de sentidos singulares, e a produção de outros sentidos que possam
levar a transformações sociais" (SPINK,1999, p.35). Dessa forma, chegamos a uma análise que
permite uma releitura dos perfis de mulher na sociedade contemporânea.
19
3 A MULHER NA CENA CONTEMPORÂNEA: UM SER MULTIFACETADO
Ao levarmos em conta que a mulher aparece na contemporaneidade como forte elemento a ser
analisado, não é de difícil aceitação o fato de ela ter se tornado uma das fontes de referência para
nós. Por isso a partir de algumas vitórias – como a inclusão no mercado de trabalho, por exemplo
– e algumas situações que ainda aprisionam a mulher – como a violência doméstica, por exemplo
–, traçaremos um indicador de como se forma esse perfil de identidade cultural.
Procuramos fazer uma discussão acerca de algumas conquistas sociais da mulher – como a
inclusão no mercado de trabalho, ou a opção por não se casar – , no que se refere à vida pública e
privada. É certo que para estabelecermos tal reflexão, torna-se necessário considerarmos as
características sociais em que estamos inseridos.
3.1 A mulher e a violência
As estatísticas nos apontam números cruéis no que se refere à violência envolvendo a mulher.
Não é apenas no ambiente privado que as atrocidades acontecem. A partir de duas crônicas –
Cordel da mulher gaieira e do seu marido machão e Mônica, aquela que vai morrer – acerca
desse fato, traçamos algumas considerações significativas sobre os acontecimentos. O primeiro
expressa a realidade envolvendo casais. O outro, remete-nos aos assassinatos de mulheres em
situações vexatórias e que expõem ao mesmo tempo a fragilidade, a inocência e o preconceito em
torno das mulheres.
20
3.1.1 Violência doméstica
Partiremos da análise do texto Cordel da mulher gaieira e do seu marido machão, de Affonso
Romano de Sant’Anna, com o intuito de relacionarmos a representação literária de um
acontecimento tão injustificável como a violência contra a mulher. Nesta crônica, o autor utilizase do estilo de cordel para criticar a ação de um marido que fere a ferro quente o rosto da esposa
ao descobri-la infiel. Além disso, o cronista também nos apresenta uma crítica direta ao marido,
aludindo às estatísticas terríveis que acompanham a mulher em seus relacionamentos amorosos.
As decisões que tomamos na vida cotidiana sobre o que vestir, como nos comportar e como
gastar o nosso tempo, ajudam a nos tornar o que somos. O mundo moderno força a que
encontremos a nós mesmos. Por meio de nossa capacidade como seres humanos autoconscientes,
constantemente criamos e recriamos nossas identidades. (GIDDENS, 2005).
Temos, dentro do modelo social contemporâneo, uma multiplicidade de formas para nos moldar e
criar nossas identidades. Somos nosso melhor recurso para definir o que somos, de onde viemos e
para onde vamos. As referências tradicionais de padrão de comportamento já não são mais
caminhos únicos a serem seguidos. O mundo social confronta-nos com uma quantidade
vertiginosa de escolhas acerca de quem somos, de como devemos viver e do que devemos fazer.
Que as relações sociais mudaram e muito, principalmente no último século é uma constatação
bastante óbvia. É importante verificarmos como se caracteriza a multiplicidade de identidade que
as mudanças trouxeram para o indivíduo ao longo das décadas. Se considerarmos o papel da
mulher dentro do espaço social, verificamos que é uma temática importante na
contemporaneidade, porém as respostas não são tão claras ou definitivas. Ao notarmos que a
mulher luta para obter os direitos reconhecidos em todos os setores, concluímos que este é um
aspecto muito significativo. Moraes afirma que “As mulheres brasileiras, discriminadas e
oprimidas, como na maior parte das sociedades, constituem, entretanto, um dos segmentos que
mais se destacam na luta pela universalização dos direitos sociais, civis e políticos.” ( MORAES,
2003, p. 495).
21
Segundo Foucault (1977) “o poder se exerce, não se possui". O poder produz verdades, disciplina
e ordem, mas também está sempre ameaçado de se perder. Quem desobedece tem um campo de
possibilidades e readequação de obediência aparente, mas desobediência real de resistência,
manipulação da subordinação. Daí, então, ser comumente aceito que o lugar de controle, de poder
das mulheres, em nossas sociedades, estaria no desempenho dos papéis das mães-esposas-donasde-casa. A reprodução, o direito de se dispor do próprio corpo, a sedução, a organização da vida
doméstica, revelariam o empoderamento das mulheres. Ao mesmo tempo, o espaço particular
pode se tornar contraditório, inseguro, sempre de tensão, pois pode gerar impasses e polarização
do debate "vitimização" (violência localizada no pólo masculino) ou "cumplicidade" (jogo
relacionado à violência).
Ainda de acordo com Foucault (1977), a violência pode ser observada, no campo das relações
afetivas e sexuais, e ser compreendida enquanto jogo a ser vivido a dois. A superação do conflito
não pode ser uma guerra na qual se mata ou se morre, mas sim um espaço de negociação
permanente. Nessa dimensão a discussão sobre a violência avançou, porque as mulheres puderam
falar com outras mulheres com as quais havia um ponto de referência comum; foram então
sensibilizadas para formular perguntas, hipóteses, começar a entender e tecer a produção de
sentido existente nos discursos das outras.
A teoria de gênero, quanto ao aspecto cultural, ressalta a dimensão psíquica, presente no
imaginário, na formação da personalidade, no âmbito das relações familiares, e a repetição dos
símbolos e valores que são absorvidos pelo psiquismo que tem como referências as imagens
parentais, ou seja, o modelo dos pais (SCOTT, 1990).
Muitas mulheres relatam episódios de violência vividos por seus pais na infância e, hoje, estão
revivendo com seus maridos ou companheiros este fenômeno. Essas mulheres acabam não se
reconhecendo como sujeito; é difícil sair do papel de queixosas e passar para o papel no qual o
respeito permeie o relacionamento conjugal, a violência atua como um fator impeditivo, funciona
como bloqueio do "eu".
22
Nessas relações são negadas as diferenças, a autonomia um do outro, negando-se a "si" e depois o
"outro em prol do meu", e quando aparece a frustração e a insatisfação, recorre-se à violência,
como tentativa de resolução do conflito. Algumas mulheres falam da necessidade que sentem de
ter um espaço, onde possam falar e ser ouvidas, até para se apropriarem da condição feminina.
Assim, se analisarmos o papel da mulher como agente do social, verificamos que muito ela
conquistou, mas ainda há várias contradições que a envolvem. Porém, não há dúvida de que sua
vida melhorou visivelmente em alguns aspectos. Por um lado, ela pode se dedicar ao trabalho e
ao seu desenvolvimento profissional, ter acesso ao estudo, pode escolher se quer casar e
constituir família ou não, consegue alcançar independência financeira, tem condições de viver
sozinha, pode participar ativamente da vida política do país e as tarefas domésticas não são
consideradas sua responsabilidade exclusiva. Por outro lado, algumas circunstâncias denunciam
que ela ainda não tem total autonomia para administrar sua vida e tomar os cuidados necessários
para garantir a sua integridade física, emocional e psíquica, principalmente quando consideramos
a vida privada. O crescimento da violência doméstica é um forte sinal de que a vida privada das
mulheres não anda um mar de rosas. É importante ressaltarmos o posicionamento da pensadora
Hannah Arendt:
Uma vez que a nossa percepção da realidade depende totalmente da aparência, e portanto
da existência de uma esfera pública na qual as coisas possam emergir da treva da
existência resguardada, até mesmo a meia-luz que ilumina a nossa vida privada e íntima
deriva, em última análise, da luz muito mais intensa da esfera pública. No entanto, há
muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e crua da constante presença de
outros no mundo público: neste, só é tolerado o que é tido como relevante, digno de ser
visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente assunto privado.
(ARENDT, 1981, p. 61).
Quem diria que quem se mostra tão forte na vida pública e realiza tantas conquistas apresentaria
tal fragilidade quando o que está em jogo são as emoções, o relacionamento afetivo e sexual, a
vida a dois? Por que as mudanças sociais que proporcionam a formação de identidade não estão
também abertas nesse aspecto para a mulher?
23
Algumas pistas são bastante evidentes e podem nos ajudar a entender tal paradoxo e vale a pena
ressaltarmos uma delas. As mulheres ainda recebem uma educação absolutamente machista e é
por ela que são introduzidas na vida sócio-cultural. E essa constatação torna-se mais espantosa
quando nos damos conta de que a principal responsável pela educação familiar continua sendo a
mãe e de que a educação escolar é praticada também por uma grande maioria de mulheres. Dessa
forma, se os Estudos Culturais procuram analisar e traçar referências acerca das características
que especificam a identidade de um grupo social, confirma-se no papel da mulher o
posicionamento de Williams. Segundo este estudioso, cultura é “considerada como ‘as artes’, e ‘o
trabalho intelectual do homem.’” (WILLIAMS, 2000, p. 11).
“Será que as mulheres transmitem preconceitos de gênero aos mais novos por que se sentem
inferiores aos homens e por que não conseguiram se livrar dessa história? Pode ser.” (MORAES,
2003. p. 505-506). Parece, em um primeiro momento, que, apesar das conquistas públicas, um
dos traços marcantes de identidade enquanto gênero é o papel que a mulher exerce como esposa;
fica, assim, ligada aos trabalhos domésticos e ligada às decisões do marido. Infelizmente, muitos
deles ainda são machistas para se posicionarem diante da escolha das esposas.
Desse modo, podemos verificar que o discurso social para o papel da mulher é polifônico: são
muitas as vozes que buscam analisar e ditar as regras; e também polissêmico: a mulher não é uma
definição apenas, ela é múltipla, plural. É por isso que para cuidar dessa temática tão pertinente,
uma vez que se trata da cidadania e de valores democráticos, apenas um olhar, um viés para
compreender o mistério que ainda envolve o papel da mulher no contexto social é insuficiente.
torna-se imprescindível buscarmos novas formas de olhar este objeto.
Se sob alguns aspectos do discurso social, a mulher está sob um limite – infeliz! – de
subserviência, um outro olhar sobre esse tema pode nos ser revelador. E é aqui que lançaremos
mão de uma perspectiva literária para tratar a temática da violência contra a mulher. Com essa
finalidade, tomaremos como referência de análise alguns fragmentos da crônica Cordel da
mulher gaieira e do seu marido machão de Affonso Romano de Sant’Anna.
24
Há notícias que se lêem e parecem ficção. Achando que sua mulher o traía há um tempão,
seu José Salustiano, plantador lá do sertão, depois de muito pensar, tomou uma decisão.
Ia ensinar à mulher uma terrível lição, pra mostrar que cabra macho não suporta traição.
Mandou preparar um ferro, vermelho como um tição, com quatro letras gravadas na ponta
do vermelhão. Na ponta do ferro havia quatro letras flamejando, letras de fogo e de fúria,
queimando na escuridão. Só de ver aquelas letras – o MGSM – o rosto de dona Lúcia se
retorce todo e treme, muito chora e toda geme e pede, com horror, perdão. [...]Pegou o
ferro queimado, marcou-lhe as letras na testa, marcou-lhe do rosto os lados, enquanto
Lúcia ia urrando com aquelas letras de dor: Mulher Gaieira Só Matando. (SANT’ANNA,
2003, p. 205).
Este excerto nos aponta a reação do marido machista diante da descoberta sobre a infidelidade da
mulher. Percebemos que o caso trata de uma atitude estremada, pois o impulso de querer castigar
a esposa por uma escolha feita por ela, é marcadamente violento. Podemos considerar que
analisar a representação literária como tema universal ou atemporal é uma forma de estruturar
uma relação trans entre o interno e o externo, ou, para usarmos a expressão de Williams e
ressaltar mais uma semelhança, entre projeto e formação sócio-histórica, entre identidade e
sociedade. Desse modo estruturado, podemos nos aproximar das peculiaridades, como se inclui a
forte influência do comportamento da mulher para representar a cultura das sociedades. Sabemos
que um tema definidor da cultura se desenvolve em torno da dualidade homem/mulher, em que,
ainda, o primeiro parece prevalecer sobre o segundo.
Uma faceta do padrão machista que caracteriza as relações de gênero predominantes em todo o
país se expressa nos dados, pela primeira vez aferidos nacionalmente5, referentes à violência
conjugal contra as mulheres – um fenômeno cuja existência é conhecida, mas sobre o qual se fala
pouco, contribuindo para que se reproduza sob sigilo e em nome de uma privacidade criminosa.
(VENTURI et al, 2004, p. 24).
Em outro segmento, o cronista, além de posicionar-se diante do fato, contextualiza a grande
presença de violência contra a mulher.
5
Pesquisa realizada, em outubro de 2001, pelo Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, com
intenção de investigar “A mulher brasileira nos espaços público e privado”.
25
Meu caro Salustiano, você não só ferrou ela, você nessa se ferrou. Arregale seus ouvidos
pras coisas que eu vou dizer. Eu não quero te espantar e nem menos convencer, quero
apenas conversar, sem firulas de doutor, como um homem só conversa diante do próprio
horror. Eu sei que é muito difícil, olhando a televisão, com tanta notícia fresca de
violência de machão, fica difícil, eu dizia, governar sua emoção. Mas as coisas, seu José,
já vão noutra direção. Mulher a gente não mata e nem dá bofetão, embora haja até ricos
que caiam na tentação. (SANT’ANNA, 2003, p. 206).
É pertinente observarmos que o narrador utiliza características típicas da produção de literatura
de cordel para criticar a atitude daquele marido. As rimas evidenciam o caráter explícito de
reprovação total para tal atitude. Além disso, podemos perceber o desejo do narrador de eliminar
qualquer possibilidade de resposta, por parte do marido, para tentar justificar-se. Ao apresentar a
violência como um fato considerado pela maioria como algo banal, o autor o faz para reprovar
essa atitude. É importante também evidenciarmos o fato de o crítico mencionar os ricos – para
que não haja o pensamento de que violento é o pobre, o inculto – o cronista explicita a triste
realidade sobre as características da violência contra a mulher: não depende de classe social,
escolaridade, cor ou raça.
Segundo as estatísticas, ao se categorizar os crimes, verifica-se que são os homens, em maioria
absoluta, os agressores e as mulheres as vítimas, nas agressões domésticas. As estimativas
afirmam que um quarto de mulheres é vítima em algum momento da vida, mas todas enfrentam a
ameaça desses crimes tanto direta quanto indiretamente. (GIDDENS, 2005).
Após apresentar as conseqüências para a esposa, marcada para sempre com a terrível atitude do
marido, o narrador acrescenta a luta das mulheres para conquistar suas escolhas.
Mas você, Maria Lúcia, não pode ficar parada. Tem que seguir na vida, mesmo
estigmatizada. Ao se casar com José, tendo o nome de Maria, você achou sua cruz. Mas
quem sabe se essas letras na sua cara deixadas, são o princípio da fala, que você tinha
guardada e que agora à luz do dia pode ser anunciada? Mas se é fraca a sua voz e não está
preparada, as mulheres do país e os homens que perceberam que esse tipo de violência
está mais que ultrapassado, talvez a tomem por símbolo e no seu rosto se veja, em vez de
mulher vencida, uma mulher cuja vida foi de novo inaugurada. (SANT’ANNA, 2003, p.
207).
26
Ao dialogar com aquela esposa, o cronista apresenta a ela a fragilidade típica de mulher, além de
chamar a atenção para o fato de estar mais do que na hora de todos perceberem o quão absurda é
a agressão do homem contra a mulher.
A atitude do autor nos coloca diante do comportamento legislativo-judiciário para com essa
realidade. Durante muitos anos, esses delitos foram ignorados pelo sistema de justiça criminal; e
as vítimas tinham de persistir incansavelmente para ganhar um recurso legal contra um agressor.
Mesmo nos dias de hoje, a instauração de processo de crimes contra as mulheres ainda está longe
de ser simples. Contudo, a criminologia feminista tem feito muito para aumentar o grau de
consciência em relação aos crimes contra mulheres e para integrar esses delitos nos principais
debates sobre o crime. (GIDDENS, 2005).
Frase como “O silêncio é cúmplice da violência” é slogan conhecido, que mostra a importância
da visibilidade. As mulheres ainda silenciam sobre a violência doméstica, pois a nossa sociedade
mantém resquícios do patriarcado. Falar de uma mulher como "esposa” é colocá-la em uma
categoria com características singulares, historicamente imbricada e internalizadas com o
ordenamento completo de previsões socialmente padronizadas quanto à sua conduta e natureza. O
modelo da categoria "esposa" aceito pela sociedade é de alguém que deverá cuidar da casa, dos
filhos, receber os amigos, ser boa, deve estar sempre pronta para atender às necessidades dos
outros: marido, filhos e até mesmo dos pais.
Seguido de uma exposição crítica de um caso-exemplo envolvendo a violência contra a mulher, o
cronista-poeta finaliza o texto com grande lirismo metafórico: “Maria Lúcia, eu lhe digo: em vez
da noite e opressão, o vermelho no seu rosto tem a força da alvorada e pode ser o sinal da
libertação.” (SANT’ANNA, 2003, p. 207).
Ao afirmar “pode ser o sinal da libertação”, Sant’Anna nos remete a uma realidade significativa
para o meio social. Sobressai a idéia de que depende da atitude da mulher para se chegar a
caminhos frutíferos. Através da construção cuidadosa do cronista – um homem – que fique
evidente a luta de Maria Lúcia – uma mulher. Talvez este seja um forte indício do que fazer para
responder/solucionar a posição antagônica da mulher.
27
Talvez ela precise ser observada e cuidada com gentileza para se revelar e conquistar, não só
liricamente, o respeito do homem e do meio social. Afinal, a mulher não mudou sozinha, o
mundo também se transformou, é o que afirma Rago:
Se a receptividade atual ao feminino pode ser considerada resultante da invasão do mundo
público pelas mulheres, ou melhor, da dissolução das fronteiras simbólicas construídas
entre público e privado, das pressões do feminismo e da diminuição do medo que causava,
assim como da própria mudança da consciência de gênero das mulheres, pode-se notar que
se deve ainda, em parte, à própria falência de modos masculinos de organizar e gerir a
vida social, num mundo marcado pela violência, pela desagregação social, pela
atomização do indivíduo e por uma profunda crise nas formas da sociabilidade, incluindose as de gênero. (RAGO, 2004, p. 37).
Cabe acrescentarmos que, diante da moldura com a atitude contemporânea da mulher, o elemento
considerado como gestus, em geral, é o vínculo ou o enlace das atitudes entre si, a coordenação
de umas com as outras, mas isso só na medida em que não depende de uma história prévia, de
uma intriga preexistente ou de uma imagem-ação. Pelo contrário, o gestus é o desenvolvimento
das atitudes nelas próprias, e, nessa qualidade, efetua uma teatralização direta dos corpos,
freqüentemente bem discreta, já que se faz independentemente e qualquer papel. Desse modo,
para entendermos o comportamento da mulher, no agora, precisamos levar em conta as
características que compõem a cena contemporânea. (DELEUZE, 2005).
Um gesto importante que significa uma vitória feminista é a conquista em forma de legislação.
Com o intuito de proteger, apoiar as mulheres e punir os infratores – deixando claro que entre
briga de marido e mulher, mete-se, sim, a colher – o governo sancionou a lei 11.3406. É claro que
6
Conhecida como Lei Maria da Penha a lei número 11.340 decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo
presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva em 7 de agosto de 2006; dentre as várias mudanças promovidas pela
lei está o aumento no rigor das punições das agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico ou
familiar. A lei entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006, e já no dia seguinte o primeiro agressor foi preso, no
Rio de Janeiro, após tentar estrangular a ex-esposa.
A introdução da lei diz:
28
apenas uma lei não resolverá sozinha a problemática, mas é um passo importante para formar um
conjunto de atitudes político-sociais a fim de proporcionar à mulher uma condição de vida livre.
3.1.2
Violência social
Tomamos a crônica Mônica, aquela que vai morrer de Affonso Romano de Sant’Anna para
relacionarmos crimes contra mulheres que chocaram o país pela crueldade da ação e pela
impunidade contra os infratores, acompanhada de um preconceito acerca da ação da mulher – tida
por muitos como sendo a responsável por atrair e provocar a violência sexual e sua morte.
A violência contra a mulher é uma temática iniciada pelo movimento feminista dos anos 1980,
quando surgiram delegacias de mulheres e atendimento diferenciado para vítimas de agressões
físicas e violência psicológica. Campanhas como “quem ama não mata”, diante do assassinato de
mulheres, trouxeram o tema para o debate público. A categoria “violência contra a mulher”, hoje
de grande aceitação em todo o Brasil, passa a fazer parte do senso comum a partir de
mobilizações feministas contra o assassinato de mulheres “por amor” e “em defesa da honra” no
final dos anos 1970. Lutas que se ampliaram, no início dos anos 1980, para a denúncia do
espancamento e dos maus tratos conjugais, impulsionando a criação dos serviços de atendimento
a mulheres “vítimas de violência”, os grupos SOS Mulher e, posteriormente, pela criação, por
parte do Estado, de Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres. (GROSSI, 1998).
« Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal
e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.»
29
Quando Mônica saiu de casa naquele dia não sabia que ia morrer, jogada de cima de um
prédio por um anormal que, paradoxalmente, era modelo fotográfico. O assassino, sim,
este sabia que mais cedo ou mais tarde, se possível naquela noite, chegaria ao extremo de
si mesmo. O assassino sabe. A vítima, como uma gazela solta na floresta, mal suspeita. Se,
mesmo para o condenado à morte, a morte é uma hipótese, para uma adolescente
condenada à vida a morte é um problema alheio. (SANT’ANNA, 2003, p. 198).
Neste fragmento, o cronista nos mostra a oposição entre a inocência da jovem mulher ao
encontrar o seu futuro assassino, sem se dar conta de que encontrará a morte. Ao associar a
violência contra a jovem como sendo um problema pelo qual não nos interessamos, o escritor nos
revela o quão indiferentes estamos diante da desgraça alheia. É como se assassinatos dos outros
não pudessem nos atingir, ainda que o motivo seja torpe e a morte premeditada, como acorre com
“Mônica”.
O horror que o autor nos apresenta se encaixa perfeitamente com o número de assassinatos,
banalizados e sem punição, de mulheres que virou estatística facilmente encontrada. A partir
destas ações, que começaram a dar visibilidade às agressões que aconteciam nos espaços público
e privado, o tema da violência contra a mulher virou praticamente sinônimo de violência
doméstica. De acordo com Saffioti, “a implantação das Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs),
por mais precárias que sejam, desmistificou o caráter sagrado da família, a ela atribuído pela
sociedade, tornando visível a violência contra mulheres.” (SAFFIOTI, 2004, p. 46).
Mesmo que as estatísticas indiquem o número elevado de violência, uma pessoa não sai de casa
preparada para encontrar a morte simplesmente por ser mulher. O mundo existe, a vida precisa
ser vivida e o encontro com assassinos não é explicitamente marcado. Mesmo porque assassino
não tem feição delimitada, pode se esconder em rostos e corpos perfeitos.
Por isso, Mônica não sabe que vai morrer desesperada, acuada, livrando-se de socos e
facadas. Também seus pais não sabem que poucas horas a separam da morte.(...) Mesmo
em Auschwitz, embora já com estigma em suas roupas e corpos, os judeus ainda achavam
que a mortes seria adiada. (SANT’ANNA, 2003, p.198).
30
Na passagem acima, o autor representa o encontro violento da mulher com a morte. É certo que a
mulher assassinada – por um modelo fotográfico – não esperava encontrar seu algoz dentro da
beleza física. Obviamente também que amigos e familiares da moça ficam chocados diante do
acontecido. Ao lançar mão dos judeus em Auschwitz, o cronista nos revela a vontade do ser
humano de viver, mesmo sabendo que a morte está por perto. É assim com prisioneiros de guerra,
é assim também com as mulheres – que não são prisioneiras de guerra, mas prisioneiras de um
pensamento no qual a força e a vontade do homem prevalecem.
Folhear um jornal, assim como acompanhar notícias de rádio, TV e internet são oportunidades
para constatar a presença da violência no cotidiano das mulheres. Na grande maioria das
matérias, a mulher aparece como vítima da violência, em suas mais diversas expressões, o que
remete a antigas lutas feministas.
Que os meios de comunicação trazem estampados todos os dias casos de violência contra
mulheres, já sabemos. Recusamo-nos, somente, acreditar que a próxima vítima poderá ser eu,
uma vizinha, uma amiga. Isso também o autor explicita na crônica, deixa claro que, muitas vezes,
o simples fato de existir já é um perigo para as mulheres. “Mas a morte vem às ruas, tira uma
adolescente de casa, a faz subir num elevador e, de repente, a serve sem remorsos às notícias nos
jornais de amanhã.” (SANT’ANNA, 2003, p. 199). Mesmo assim, a vida continua, e vivê-la,
pode significar o encontro com assassinos escondidos por detrás da impunidade que reina na
sociedade.
Segundo Saffioti (2004), a violência contra mulheres sempre existiu no Brasil. Aliás, é um
fenômeno mundial, que independe da riqueza e do grau de desenvolvimento da nação, do nível de
escolaridade dos envolvidos, do tipo de cultura – ocidental ou oriental – da religião dominante.
Isso fica claro com o excerto abaixo, no qual Sant’Anna menciona fatos brasileiros e ação
chinesa acerca dos crimes masculinos contra as mulheres.
31
Não é só aqui. Também na China as mulheres caíam de cima das casas fugindo da
violência do casamento e dos amantes intempestivos. Foi isso que levou Mao Tsé-tung em
1917 a escrever vários artigos denunciando a opressão masculina. Não é só na China. Há
25 anos, em Belo Horizonte, começaram a cair mulheres de cima de todos os prédios.
(SANT’ANNA, 2003, p. 199).
No fragmento podemos verificar a preocupação do autor em deixar claro que a violência contra
mulheres é um crime presente no mundo todo, e lutar contra ele é sempre difícil. E ao citar Mao
Tse-tung em 1917, Sant’Anna nos evidencia que a luta contra esse terrível fato vem de longa
data. As ações violentas se repetem como se fosse natural simplesmente jogar a mulher de um
alto qualquer para se vingar dela e se livrar de um problema.
Se por um lado, há ações como o chefe de Estado chinês para procurar impedir a violência contra
a mulher, por outro, há posicionamentos machistas para endossarem as ações desses homens que
se colocam acima do bem e do mal. Por isso frases e discursos do tipo: "Foi ela que me excitou",
"Ela estava pedindo para apanhar”, “Ele não sabia o que estava fazendo, não regula bem da
cabeça”; “Ele sofreu privação dos sentidos; também, com tudo que ela faz" não passam de
pretextos destinados a justificar o uso de práticas violentas contra as mulheres, e a violência
acaba sendo uma armadilha para tentar explicar o inexplicável. (AZEVEDO, 1986).
De acordo com Costa "é moda tentar explicar a violência para exorcizar o terror, porque quando
ela é explicada deixa de existir como coisa primeira: é só conseqüência de uma outra, que a
provocou." (COSTA, 1992, p.45). A explicação tem essa função, ela nos garante que, nos seus
fundamentos, o mundo está em ordem e assim se explica a violência das pessoas, apontando para
suas origens sociais. Mais terrível é a sugestão de que a violência seja uma coisa que mora em
nós, ficando lá escondida, à espreita, esperando o aparecimento das condições exteriores para sua
manifestação. A violência não surge nem das condições sociais, nem da privação dos sentidos,
como se tais condições fossem apenas a ocasião para sua revelação.
Para Chauí, se o agente violento reconhecer os valores de sua sociedade como se tivessem sido
instituídos por ele, como se ele pudesse ser o autor desses valores ou das normas morais, ele será
autônomo, agindo como se tivesse dado a si mesmo sua própria lei de ação. "A ação só é ética se
realizar a natureza racional, livre e responsável do sujeito e se este respeitar racionalidade,
32
liberdade e responsabilidade dos outros agentes, de sorte que a subjetividade ética acaba por se
tornar uma intersubjetividade socialmente determinada". (CHAUÍ, 1984, p.35).
Para a mesma autora, sob esta perspectiva, ética e violência são opostas, uma vez que violência
significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnatural);
2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém; é coagir;
constranger; torturar; brutalizar; 3) todo ato de transgressão contra o que alguém ou uma
sociedade define como justo e, como direito.
Conseqüentemente, podemos dizer que a violência é um ato de brutalidade, abuso, agressão,
constrangimento, desrespeito, discriminação, impedimento, imposição, invasão, obrigação,
ofensa, proibição, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações
intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e intimidação, pelo medo e pelo terror.
Na crônica, o cronista-poeta lança mão de versos para buscar o lirismo a fim de revelar, através
do eu lírico, o horror e a impotência do “eu” diante do excesso de sangue derramado por seres
humanos, simplesmente pelo fato de serem mulheres à mercê de uma força masculina.
Quero sair e não acho,
um guarda-chuva de aço,
que me proteja do sangue,
que pinga por onde passo.
Mulheres com a carne fresca
caindo sobre nós,
enquanto lá em cima espreita
e confere a morte o algoz.
Mulheres sem pára-quedas
fizeram o vôo inaugural,
mas tanto pesavam as penas,
que o salto se fez mortal.
(SANT’ANNA, 2003, p.200).
33
Verificamos que o cronista faz uso do poeta, pois percebe que para tratar a temática é preciso ir
além da análise dos fatos, mediante uma prosa. Porém, o poeta também nos evidencia que os
versos são insuficientes para externar a crueldade do assassino, muito menos resolver a situação
de violência contra a mulher. Há marcadamente a impossibilidade de representar com palavras –
por mais líricas que sejam – o ponto final que a morte violenta provoca na vida de uma mulher, e,
conseqüentemente, em uma sociedade.
Após o poema, o cronista nos mostra a impotência da literatura diante deste terrível quadro
social. “Pelo visto os poemas não diminuem os assassinatos. Sobretudo os maus poemas, como
os meus. De Aída Curi7, nos anos de 1950, Cláudia Lessing8, nos anos de 1970, ou Mônica, hoje,
a situação não mudou.” (SANT’ANNA, 2003, p. 200). Verificamos que a colocação do cronista
nos indica uma necessidade de que a luta contra essas barbaridades, como os casos que chocaram
a sociedade brasileira – assassinatos de Aída Curi e de Cláudia Lessing – precisam ser efetivas
para que haja uma mudança nas atitudes do ser humano com o próximo e, ainda, que a punição
adequada seja exercida.
As vítimas, quando são mulheres, acabam sendo acusadas de sua própria morte. Por que isso?
Nesses casos, começa-se por discutir o comportamento da vítima para “justificar” e desculpar
suas mortes violentas. O que acontece é que mesmo sendo a lei igual para todos, no crime em
sociedade a lei e a prática ficam diferentes se o acusado é homem ou pessoa importante,
conforme ficou subentendido no caso do julgamento do assassinato de Cláudia Lessing.
7
Aída Cury, estudante de 18 anos recém-saída de um colégio de freiras (outras fontes dizem 23 anos), aceitou
convites do Sr. Ronaldo Castro para supostas aulas particulares de inglês no apartamento deste na Avenida Atlântica.
Ao chegar lá se deparou ainda com a presença de outro rapaz o Sr. Cássio Murilo Silva. Ela caiu ou foi jogada do
terraço do edifício na Avenida Atlântica, depois de resistir ao violento assédio sexual de dois rapazes moradores do
bairro. O crime revoltou a cidade e ambos foram condenados à prisão. Um deles era menor de idade, ficando recluso
até 1962 no Serviço de Assistência ao Menor. O outro passou seis anos na cadeia. Repórter Saulo Gomes
8
Os acusados eram Georges Michel Kour e Michel Albert Frank, que se achava foragido no exterior. O crime
aconteceu no Rio de Janeiro, em 24 de julho de 1977, hora não precisada, no interior do apartamento 302, à Rua
Desembargador Alfredo Russel, 70, bairro Leblon. A acusação era de que os dois teriam estrangulado com as mãos e
pancadas
na
cabeça
de
Cláudia
Lessing
Rodrigues,
causando-lhe
a
morte.
desferido
Teriam ainda, ambos, usado de recurso que impossibilitara a defesa de Cláudia, enfiando objeto em orifício de seu
corpo de tal maneira que ela não pode opor resistência aos seus agressores, que lhe eram superiores, física e
numericamente. Era um caso de homicídio triplicadamente qualificado.
34
A violência masculina em relação às mulheres e outras formas de intimidação e perseguição,
como o estupro, o espancamento e até o assassinato, são freqüentes e contém os mesmos
elementos básicos da antiga opressão masculina. Para Giddens
O impulso para subordinar e humilhar as mulheres, provavelmente, é um aspecto genérico
da psicologia masculina. Mas é passível de argumentação que o controle das mulheres nas
culturas pré-modernas não depende primariamente da prática da violência contra elas. Foi
garantido acima de tudo pelo "direito de propriedade" sobre as mulheres, que os homens
em particular detinham, associado ao princípio das esferas separadas. As mulheres eram
nessa época, freqüentemente expostas à violência masculina, em particular no ambiente
doméstico. (GIDDENS, 12005, p. 67).
Assim, sem uma efetiva mudança no comportamento dos homens e no pensamento de como lidar
com as mulheres, fica-nos a impressão de que a dor e a impunidade impostas pela violência
perdurarão.
3.2 A mulher, a memória e a identidade
Podemos dizer a respeito da memória que é uma reconstrução do passado vivido a partir de
elementos do presente, seja através da repetição dos comportamentos aprendidos ou da narração
dos fatos. Ela não é autônoma, mas relacional, se lembramos é porque a situação presente nos faz
lembrar.
Como analisou Bosi, “na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado.” (BOSI, 1983, p. 55). A
lembrança é uma construção realizada a partir de elementos do presente. A imagem que temos da
infância, por exemplo, é uma representação constituída a partir da nossa vivência, influenciada
pelo nosso contexto social.
Nesse sentido, a memória se constitui como uma categoria fluida, que carrega consigo uma série
de elementos da subjetividade, mas também é um elemento essencial da identidade, da percepção
de si e dos outros. Segundo Wehling e Wehling (2004), a memória coletiva pode ser um
35
instrumento para a afirmação de identidade, principalmente de grupos minoritários em uma
mesma sociedade.
A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da
pessoa. Mas Halbwachs (2004), nos anos 1920-30, já havia sublinhado que a memória deve ser
entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um
fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações,
mudanças
constantes.
Se destacarmos essa característica flutuante, mutável, da memória, tanto individual quanto
coletiva, devemos lembrar também que, na maioria das memórias, existem marcos ou pontos
relativamente invariantes, imutáveis. Todos os que já realizaram entrevistas de história de vida
percebem que, no decorrer de uma entrevista muito longa, em que a ordem cronológica não está
sendo necessariamente obedecida, em que os entrevistados voltam várias vezes aos mesmos
acontecimentos, há nessas voltas a determinados períodos da vida, ou a certos fatos, algo de
invariante.
É como se, em uma história de vida individual – mas isso acontece igualmente em memórias
construídas coletivamente – houvesse elementos irredutíveis, em que o trabalho de solidificação
da memória foi tão importante que impossibilitou a ocorrência de mudanças. Em certo sentido,
determinado número de elementos torna-se realidade, passa a fazer parte da própria essência da
pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos e fatos possam se modificar em função dos
interlocutores, ou em função do movimento da fala.
Encontramos muitos elementos marcantes de memória na construção de identidade da mulher na
crônica O que querem as mulheres de Affonso Romano de Sant’Anna. Neste texto, o autor
evidencia experiências individuais que refletem o coletivo de personalidade da mulher
contemporânea.
Quais são os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são
os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que podem
36
ser chamados de "vividos por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem
sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é
quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses
acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do
espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da
socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de
identificação com determinado passado tão forte que podemos falar em uma memória quase que
herdada.
Quando se trata da identidade da mulher, há muito para ser analisado e respondido. A partir de
uma retomada dos pensamentos freudianos, Sant’Anna nos envolve na atmosfera acerca da
mulher. “Freud fez uma famosa indagação, que até hoje está lhe custando caro. Disse que depois
de ter estudado tudo que podia sobre a mente humana, havia uma pergunta que não conseguia
responder: “Afinal, o que querem as mulheres?”” (SANT’ANNA, 2003, p.135).
Ao utilizar um marco na história da psicanálise, o cronista nos direciona para o caminho – parece
secreto – sobre o que identifica os desejos da mulher. Ao afirmar que Freud pagou preço caro por
esse questionamento, o autor busca caminhos para procurar responder à pergunta do psicanalista.
São várias as tentativas para responder sobre o mistério envolvendo os desejos da mulher, mas
como parece ao cronista uma solução mais viável, ele lança mão de uma lenda. “Mas existe uma
outra resposta que me parece a melhor para a questão plantada por Freud. Trata-se de uma lenda
que, a rigor, antecede ao lendário Freud, e fico pensando que se Freud a conhecesse talvez se
poupasse de se expor daquela maneira.” (SANT’ANNA, 2003, p.135).
Este fragmento nos remete a um tempo anterior à colocação de Freud. Isso nos revela a idéia de
que dúvidas sobre a vontade da mulher existem há mais longo tempo do que se possamos pensar.
Se a dúvida aparece, ela é compartilhada e se torna um pensamento coletivo que passa a abranger
uma sociedade. E como existe uma tendência de uma geração passar à outra os valores e
37
pensamentos, foi-se passando, através dos séculos, o questionamento sobre a mulher – sem
respostas convincentes o suficiente para supri-lo.
De acordo com essa hipótese, isso acontece a partir de um processo de mobilização social, ou
seja, as pessoas participam de movimentos urbanos, através dos quais são revelados e defendidos
interesses em comum. Nesse sentido, a vida passa a ser, de algum modo, compartilhada,
produzindo-se um novo significado.
Da mesma forma, Pollak revela que a memória “é um fenômeno construído coletivamente e
submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes” (POLLAK, 1992, p.201).
Contudo, devemos lembrar que existem na memória, tanto coletiva quanto individual, marcos
invariantes, imutáveis.
Desse modo, o autor elenca alguns pontos que considera como constitutivos da memória. O
primeiro se refere aos acontecimentos vividos pessoalmente ou pelo grupo ou pela coletividade à
qual a pessoa se sente pertencer. Podem ocorrer acontecimentos traumáticos que marcaram
determinada região ou grupo, o que faz com que a memória do acontecimento seja passada ao
longo do tempo com um alto grau de identificação. Mesmo que a pessoa não tenha realmente
participado de tal episódio, vivido nessa época, ela se sente parte do grupo por conhecer muito
bem aquela situação, de tal forma que fica a impressão de ter vivido realmente.
É o que a crônica em análise apresenta como sentimento de pertencimento a partir de uma
identificação com o passado.
Diz a estória, que o Artur – aquele da Távola Redonda – quando era jovem, certo dia
cometeu uma infração: foi caçar na floresta de outro rei e acabou sendo preso e levado à
presença do outro monarca para ser punido.Deveria ser condenado à morte. No entanto, o
rei que o deteve resolveu dar-lhe uma chance. Pouparia sua vida se conseguisse, dentro de
um ano, responder à pergunta pré/pós-freudiana: “O que querem as mulheres?”
(SANT’ANNA, 2003, p. 135).
Nesta passagem, a identificação da problemática envolvendo as mulheres faz uso do lendário rei
Artur vendo-se diante de uma pergunta quase esfíngica. Para se livrar da morte é preciso
38
responder a uma única pergunta. Podemos notar que o questionamento acerca do desejo da
mulher é compartilhado por uma coletividade, caso contrário, essa dúvida não estaria sendo posta
como solução para salvar a vida de um homem.
Além dos acontecimentos, a memória também é formada por personagens e lugares. Esses três
elementos de acordo com os argumentos de Pollak são os agentes constitutivos da memória.
Nesse sentido, “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade”
(CASTTELLS, 1999), pois o sentimento de identidade está relacionado ao sentimento de
continuidade e coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.
Com o intuito de nos revelar uma marcação perfeita de elementos da narrativa, o cronista nos
apresenta o cenário com personagens nos remetendo à idéia de que tudo se faz como uma
realidade.
Era uma bruxa como têm que ser as bruxas nas lendas: velha, desdentada, falando
impropérios. Artur, no entanto, fez-lhe a pergunta. Ela lhe disse que lhe daria a resposta
caso ela pudesse se casar com um cavaleiro Gawain, que era o mais belo e valoroso dos
companheiros de Artur. Este, perplexo, foi ao amigo e lhe expôs a patética situação.
Amigo que é amigo, sobretudo nas lendas, não vacila. Faria tudo para salvar o
companheiro de peripécias, até mesmo casar com uma bruxa. (SANT’ANNA, 2003, p.
136).
Vemos que a bruxa cobra um preço para responder à tão preciosa pergunta. E como prova maior
do pacto de união masculina, o bravo amigo Gawain se coloca à mercê do pedido da bruxa a fim
de salvar a vida do amigo.
Através da memória, um indivíduo, uma comunidade vai formando sua identidade. Castells nos
revela que a identidade está relacionada a significados, a experiência de um povo, é por
definição,
39
[o] processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um
conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras
fontes de significado. [É construída por meio de um processo de internalização e] ... quem
constrói a identidade coletiva, e para quê essa identidade é construída, são em grande
medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como de seu
significado para aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem. (CASTELLS,
1999, p. 2210).
A construção da identidade se dá entre outros elementos a partir da memória coletiva. Os
indivíduos ou grupos processam esses elementos e “reorganizam seu significado em função de
tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão
espaço/tempo.” (POLLAK,1992, p. 201).
Acertada a condição, então, a bruxa respondeu à pergunta fatal, dizendo: “Sabe o que
realmente quer uma mulher? Ela quer ser a senhora de sua própria vida!” Artur e os
demais, inclusive o rei que o havia condenado, ficaram todos atônitos, se dizendo, como é
que nós não pensamos nisto antes, a resposta é simples e genial. E Artur foi então
perdoado. (SANT’ANNA, 2003, p. 136).
Verificamos, nesta passagem, que a bruxa cumpriu sua promessa, realizando, assim, sua parte no
trato. A postura das pessoas com a resposta da bruxa foi de estarrecimento. É incrível como
ninguém havia pensado em afirmativa tão fácil, direta e rápida para dar conta de uma
problemática que incomodava toda uma memória coletiva. O fato é que nem sempre um
pensamento certeiro pode se solidificar e convencer as pessoas. É preciso aceitação da idéia.
Segundo Castells, embora haja uma corrente que não crê na formação de uma identidade a partir
do âmbito local, ele considera que os indivíduos resistem à individualização e se organizam em
associações comunitárias que podem gerar um sentimento de pertencer e, em longo prazo, a uma
identidade cultural.
Ele nos revela três formas e origens de construção da identidade. A primeira se refere à
identidade legitimadora, constituída a partir da dominação internalizada que legitima uma
identidade imposta, padronizadora e não-diferenciada. Essa ação é realizada pelas instituições
40
dominantes da sociedade, com objetivo de ampliar sua dominação em relação aos atores sociais,
que terminam por legitimar e internalizar essa identidade.
Como na sociedade representada na crônica, o homem cumpre com a palavra empenhada, eis que
o nosso grande cavaleiro vai cumprir a sua sina de desposar tão horrenda mulher.
Estava Gawain já preparado para o cadafalso erótico, quando surgiu-lhe uma
deslumbrante donzela à sua frente. E antes que sua perplexidade continuasse, a donzela
disse que era a bruxa, ou melhor, uma das faces da bruxa. Estava mostrando a sua outra
face, porque ele a tinha aceito como era; que de dia era a bruxa façonhenta, de noite,
aquela ninfa loira. Mas antes que consumassem a chamada união carnal, Gawain poderia
decidir com qual das duas queria viver o resto da vida. Ou a feia que comprometeria sua
imagem pública ou a perfeita, que ele, só ele, conhecia à noite. (SANT’ANNA, 2003, p.
136-7).
Neste excerto parece-nos que o jovem foi premiado por tudo que já havia vivido e feito durante
sua existência. Acaba de descobrir que a horrenda esposa é também uma linda e perfeita mulher.
Cabia a ele escolher com qual faceta de mulher ele gostaria de estar casado. Essa dupla face
indica a possibilidade de mudança que compreende a existência da mulher.
No que se refere à mulher, ela foi submetida à força do poder de uma sociedade machista que a
tornou reclusa à vida privada e pertencente sempre a um homem – primeiro, ao pai; depois, ao
marido. Era um agente completamente passivo, dependente daquilo que a sociedade lhe permitia
fazer.
Partindo do pressuposto apresentado por Santana (2000) podemos dizer que é a partir dos
objetivos de vida que uma experiência retorna, é construída e reconstruída.
Em algum momento o coletivo atribui ao seu espaço ocupado o seu sentido. O constitui e
o ocupa de forma que se identifique com ele, que se veja nele. Atribui a determinados
trechos do espaço, sentidos definidos que, se para outros podem parecer esquisitos, para o
grupo tem caráter vital, pois fala, assinala, com sua existência, a história, a trajetória, as
experiências pelas quais passou o grupo. São seu patrimônio consubstanciado em
monumentos. (SANTANA, 2000, p. 50).
41
Nesse contexto, a mulher retomando o perfil de liberdade do período clássico, proporciona-lhe a
possibilidade de reconstruir esse papel, de fazer diferente.
Pollak (1989) acrescenta que são esses pontos de referência que estruturam nossa memória e que
a inserem na memória da coletividade a que pertencemos. No caso da mulher, ela foi, ao longo
das décadas buscando seu espaço na vida pública, lutando por sua cidadania. Pollak afirma que
conclui que são as escolhas individuais que nos diferenciam uns dos outros, fundamentam e
reforçam os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais.
Na seqüência da crônica, o (des)afortunado marido demonstra que reconhece e que aprendeu o
desejo que envolve o mistério de mulher. “Gawain então disse que deixava à escolha dela, o que
ela queria realmente ser e parecer. A noiva neste momento metamorfoseou-se para sempre na
bela mulher do cavaleiro que o acompanharia noite e dia, pois ele havia respeitado nela o que ela
realmente era.” (SANT’ANNA, 2003, p.137).
Notamos que ao respeitar a mulher e permitir-lhe que escolha qual das faces ela gostaria de
apresentar, a esposa opta por algo maravilhoso. Ao se metamorfosear em uma mulher
incrivelmente perfeita, a esposa satisfaz o seu desejo e ainda premia o marido por respeitá-la e
fazê-la dona de sua vontade.
Seguindo a ênfase de Castells que afirma: “... a construção da identidade consiste em um projeto
de uma vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, porém expandindo-se no
sentido da transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de identidade”
(CASTELLS, 1999, p. 2210), podemos dizer que o perfil da mulher atual depende das escolhas
que ela fizer. Esse direito já é concedido à maioria das mulheres. Se a vida será melhor ou pior,
se o mito mulher-moderna sobreporá o mito mulher-tradicional apenas a memória das futuras
gerações contará.
Aos moldes da lenda, o cronista nos revela que também percebe a importância de respeitar a
vontade da mulher, porque afinal de contas ela sabe bem o que quer. O que a aprisionou foi a
crença masculina de acreditar que ela não sabia o que queria. “É a melhor resposta que encontrei
42
à inquietação de Freud. Mas agora gostaria de cutucar a onça com vara curta e indagar pelo outro
lado da questão: Afinal, o que querem os homens?” (SANT’ANNA, 2003, p.137).
Ao encerrar a crônica com um questionamento sobre o desejo masculino, o autor nos remete ao
longo processo de conquistas que a mulher percorreu para conseguir ser respeitada na vida e,
principalmente, em suas escolhas e desejos. Se a mulher demonstra exatamente quem ela deseja
ser, fica-nos, agora, a dúvida de quem são os homens. Essa é uma dúvida apta não para ser
investigada aqui, mas sim para um novo projeto de pesquisa.
3.3 A mulher, a identidade e o mito
Como a literatura, muitas vezes, representa várias das conquistas sociais, há um marco na
produção clássica que faz uma significativa leitura na mudança do comportamento da mulher.
Trata-se da obra “A mulher de trinta anos” de Honoré de Balzac que se tornou, a partir de então,
uma importante fonte para uma nova formação de identidade, um novo mito: a mulher
balzaquiana9.
Na crônica A mulher madura, Affonso Romano de Sant’Anna retoma esse mito para mencionar o
quão significativa é a mulher de 30 anos. As conquistas, a experiência de vida e as escolhas são
abordadas de uma forma bastante emotiva.
9
A expressão balzaquiana é aplicada às mulheres que possuem idade em torno dos 30 anos [atualmente, muitos
incluem a mulher de 40, 50...]. A expressão começou a ser usada após a publicação do livro do francês Honoré de
Balzac. Na obra A mulher de trinta anos, o autor narra a situação das jovens na primeira metade do século XIX, em
particular dentro do casamento. Coloca-se em evidência justamente as mulheres mais experientes, que sendo mais
maduras, vivem o amor com maior plenitude. É o acontece à heroína da narrativa, Júlia. Ela se casa com um oficial
do exército, mas depois descobre que a relação está longe de ser o que imaginava. Vê-se, então, presa a um
matrimônio infeliz. Sua situação só melhora quando passa dos trinta anos e então consegue encontrar o amor nos
braços de Carlos Vandenesse. Realizando, assim seus desejos amorosos.
43
O rosto da mulher madura entrou na moldura dos meus olhos. [...] A mulher madura nada
no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem
algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de
concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a
distância entre seu corpo e o mundo. (SANT’ANNA, 2003, p. 17).
Ao introduzir a crônica com o rosto da mulher madura, o cronista nos apresenta um perfil de
mulher que tem tomado conta das ruas, dos mercados de trabalho e tem buscado seu espaço na
sociedade. É uma mulher que sabe qual é o seu espaço e como ocupá-lo. Esse perfil de mulher
toma todo o espaço de visão de quem a olha.
É certo que assim como a mulher balzaquiana, a mulher moderna não é a primeira mostra de uma
mulher com autonomia em atitudes, na história da humanidade. A Antigüidade já nos havia
apresentado mulheres-mito com características de pessoa com direito de escolhas. Porém, esse
mito, durante todo o período medieval e até o início do século XX, cedeu lugar ao mito da mulher
submissa e dependente.
O movimento feminista do século XX trouxe à tona a personagem que compõe o mito da mulher
moderna; mas esta mulher já existia na Roma antiga, na Idade Média, e na Grécia; porém não era
uma personagem dominante, pois vivia escondida nos bastidores do cenário prático. Esta antiga
e atual mulher era autônoma e sabia o que desejava.Isso nos traz ao hoje, quando o mito da
mulher moderna é tornar-se independente, auto-suficiente, e ao mesmo tempo ser mãe e dona de
casa, acumulando assim muitas funções.
Nos séculos anteriores à mulher moderna, a sociedade privilegiava a beleza física e a juventude
da adolescente. À mulher madura destinavam-se o marido, os filhos e a casa; seu corpo era tão
somente um anexo do marido. A beleza distinta entre esses dois perfis de mulher está bem
descrita na passagem:
A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e
dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até
no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a
campina do leito. (SANT’ANNA, 2003, p. 18).
44
Se por um lado, a energia da juventude irradia agitação e movimento, por outro, o corpo
completamente formado da mulher madura lhe dá uma cor e um gesto compatíveis apenas com
sua experiência que lhe permite emitir uma musicalidade ímpar.
Nessa construção da identidade – faz-se necessário recorrermos à literatura da psicologia social,
e, em parte, da psicanálise – há três elementos essenciais. Há a unidade física, ou seja, o
sentimento de ter fronteiras físicas, no caso do corpo da pessoa, ou fronteiras de pertencimento ao
grupo, no caso de um coletivo; há a continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra,
mas também no sentido moral e psicológico; finalmente, há o sentimento de coerência, ou seja,
de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são efetivamente unificados. De tal
modo isso é importante que, se houver forte ruptura desse sentimento de unidade ou de
continuidade, podemos observar fenômenos patológicos. Podemos, portanto, dizer que a memória
é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletivo.
O excerto seguinte nos mostra claramente os três elementos de formação de identidade. A boca
expressa a reflexão sobre os fatos, por ser uma mulher que adquiriu experiências no decorrer da
vida. As experiências negativas, vividas através da dor, são trabalhadas pelo seu “eu”, assim, a
mulher pode vencer os tempos cinza e experimentar o delicioso colorido da primavera –
“setembro a abril”. Assim, há a união do psicológico com o moral, tornando-a um ser com
identidade social.
A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriuse em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar
invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e
repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro a abril. (SANT’ANNA,
2003, p. 18).
Seguindo esta hipótese, cabe um questionamento: por que será que atualmente assistimos a um
interesse renovado, nas ciências humanas e na história, pelo problema da forte ligação entre
memória e identidade? (BELEM, 2000).
45
Esse interesse é patente em muitas publicações, que utilizam métodos muito diferentes, tais como
a análise de a memória individual não se processar de forma independente, ela tem como
apoio as percepções provocadas pela memória coletiva. A constituição de uma memória
autobiográfica, pessoal, traz como base de apoio a convivência com vários grupos durante
toda a vida. E essas memórias ancoradas nas percepções e lembranças coletivas são
responsáveis pela constituição identitária do sujeito.
Ao alinhavar suas lembranças das experiências que vivenciou, inserindo-se como parte de
uma sociedade, o Narrador processa uma espécie de ajuntamento, colagem ou bricolagem
dos fragmentos e preenchimento de lacunas, através do imaginário, de tudo que restou das
recordações de seu passado. É uma espécie de ajuntar os cacos, no mundo moderno
marcado pela fragmentação, em que a narrativa, o rememorar, apesar do pouco espaço
que usufrui, possui grande responsabilidade no sentido de tornar o individual parte
integrada de um todo.
O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua
superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela
conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa
intimidade respeitosa. (SANT’ANNA, 2003, p. 18).
Neste fragmento, o cronista nos apresenta explicitamente o conhecimento de mundo
que a mulher madura possui. Assim, ela passa a ser um importante sujeito na
construção de identidade para fazer com que se integre com o grupo. Passa a ser um
elo importante na construção da memória coletiva. Possui muito o que contar. Certo que
será um Narrador com experiências individuais, mas também capaz de expressar os
experimentos da coletividade.
Falar das características sociais nos remete às diferenças entre homem e mulher. Mencionar o
assunto sem cair no lugar comum ou repetir o óbvio, demanda traçar um sem-fim de
considerações, uma vez que aquelas não são tão evidentes quanto se costuma imaginar ou
46
acreditar. Segundo a psicanalista Leila Fontes, é dessa diferença-proximidade que surgem muitos
mitos sobre as mulheres10.
Nos dias de hoje, à medida em que a população mundial começa a estabilizar-se, a sociedade nos
impõe novos papéis, e nos faz ir à luta. Apenas uma coisa a sociedade não pode mudar em
relação às mulheres: ainda são elas que dão à luz os filhos. Esta é a diferença fundamental, que dá
origem a todas as demais. Quanto das características femininas, na verdade, se origina da
vivência única e pessoal da geração de uma nova vida dentro de si? Toda a sensibilidade, toda
acolhida, toda a compreensão do mundo podem ter a sua origem nesse fenômeno maravilhoso
que só a mulher vivencia, e para o qual ela é preparada por outra mulher desde que nasce.
Podemos encontrar a mulher em todas as classe sociais: ela trabalha muitas horas por dia, cuida
da casa, dos filhos, do seu relacionamento com o marido ou parceiro; seja que ela more no
interior, numa favela ou numa bela casa numa grande cidade ou capital do mundo.
A mulher madura está em todas as partes, porém o cronista chama atenção para o fato de que para
a mulher pobre – distinta socialmente pelo labor mais pesado e quase sempre uma vida mais dura
– a cor para essa maturidade é diferente da apresentada pelas mulheres privilegiadas socialmente.
Se no excerto anterior o cronista nos coloca um período de primavera para a vida da mulher, aqui
ele nos remete ao marrom que tinge a vida da mulher pobre.
Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais
politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à
mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e
corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza. (SANT’ANNA, 2003, p. 18).
Ainda é importante frisar que, apesar de haver a idéia de que todas as mulheres têm os mesmos
direitos, todas devem possuir as mesmas oportunidades, não devemos nos esquecer de que é fato
que a vida das mulheres excluídas socialmente é mais sofrida e a sua maturidade chega sem o
10
Leila Fontes é terapeuta da família em Porto Alegre, RS. Integra o quadro de colaboradores do ML. Fonte:
http://www.editoraconcordia.com.br/ml/1999/ml_novembro99/ml_tema.htm retirado no dia 15/05/2008.
47
preparo adequado, por isso suas faces e seus corpos não dão conta de apresentar a leveza que
deveriam ter direito de adquirir. Isso não podemos negar, porque é fato.
O perfil da mulher moderna surgiu depois da Segunda Guerra, quando a mulher começou a
pensar em mercado de trabalho. Mesmo assim a imagem da dona de casa, que fica sempre
cuidando do seu lar, ainda existe com muita força, pois é um arquétipo, um símbolo do
inconsciente coletivo, um padrão de comportamento que se repete através dos tempos.
Esta mulher sofre muito mais do que antes, porque antes da década de 1970, ela era aceita
socialmente, porém o fato de não trabalhar acaba gerando crise no casamento, por que ela não
tem uma renda própria. Sendo assim, a primeira meta da mulher nos dias de hoje, é atingir a autoestima, por ela não se adequar àquilo que dela se espera na atualidade.
A mulher moderna está passando a seguinte mensagem: “Eu me basto, eu não preciso do outro;
Eu posso até ser casada, mas sou independente. Ele pode ir embora a qualquer momento. Ele não
irá me fazer falta. Vou continuar cuidando dos filhos, vou continuar com o meu trabalho”11. Esta
mensagem gera um grande conflito na cabeça dos homens, pois eles não podem evitar se
perguntar, qual é o seu papel diante desta mulher invulnerável e auto-suficiente, e terminam
achando que não têm função nenhuma na vida dela.
A mulher moderna passou a ser vista como a forte, a inabalável, a que consegue resolver tudo
sozinha. Essa forma de ser vista é mencionada no fragmento abaixo:
Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior.
Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo
que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de
espelhos revelador. (SANT’ANNA, 2003, p. 18).
11
Afirmativas comumente expressas por mulheres modernas.
48
Assim, a conquista da mulher é ambígua: dá-lhe oportunidades de escolhas, mas também implica
uma imagem que nem sempre é compatível com a sua essência, seus pensamentos e sua
personalidade.
A maior dificuldade que estas mulheres modernas, que passam a imagem de auto-suficientes e
invulneráveis, enfrentam hoje, é não se sentir amada, amada principalmente por um homem, e,
além disso, o fato de que elas próprias não conseguem amar. A mulher de hoje não tem mais
tempo para amar, e a maioria delas nem sabe muito bem o que é isso ou como se faz. O que causa
esta dificuldade da mulher não se sentir amada e de não saber mais como amar é que ela se
fechou, e o fez porque viveu historicamente muitos anos de massacre. O Patriarcado negou
Artemis12 durante séculos, negou a mulher independente, auto-suficiente, a reprimiu e ela ficou
escondida, mas não desapareceu.
Até que a mulher moderna re-surgiu após a Segunda Guerra; nesse momento Artemis voltou a
reaparecer com força total, em função de uma repressão advinda de séculos, retornando com a
seguinte postura: “Não quero saber de homem, quero trabalhar, atingir as minhas metas e fazer
tudo o que eu não fiz até agora”. Mas dessa forma a mulher passa como um trator por cima de
seus próprios sentimentos, pois ela pensa que se deixar que os seus sentimentos governem a sua
vida, não poderá atingir os seus objetivos.
O cronista nos apresenta uma mulher madura bem resolvida, capaz de conquistar e promover uma
harmonia entre vida pública e privada.
A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as
sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia.
Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos
12
Na Grécia, Ártemis (em gr. Άρτεµις) era uma deusa ligada inicialmente à vida selvagem e à caça. Durante os
períodos Arcaico e Clássico, era considerada filha de Zeus e de Leto, irmã gêmea de Apolo; mais tarde, associou-se
também à luz da lua e à magia. Em Roma, Diana tomava o lugar de Ártemis, frequentemente confundida com Selene
ou Hécate, também deusas lunares
49
múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro
quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes. (SANT’ANNA, 2003,
p.19).
Percebemos nesse fragmento que a mulher completa é leve como o findar do dia e suprema como
o movimento das sereias. A sua vida está plena e isso a torna especial, por isso merece um
marido também especial, como os mocinhos perfeitos e românticos dos filmes hollywoodianos.
Toda esta confusão de padrões, comportamentos e injustiças sociais seculares encontrados no
perfil da mulher histórica, faz com que ela se pergunte se vale a pena carregar todo este peso, esta
responsabilidade e procura o caminho do meio, uma fonte de equilíbrio para manter-se firme
mediante tantas indagações.
A crônica nos indica ser o caminho o entendimento do homem sobre a mulher. Ele é a chave para
tornar completa e plena a maturidade da mulher. “Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro
marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais
que nunca pronta para quem a souber amar.” (SANT’ANNA, 2003, p.19). Podemos ainda
acrescentar que para aparecer esse homem a mulher precisa saber escolhê-lo.
3.4 A mulher e o mercado de trabalho
A conquista da mulher por um espaço no mercado de trabalho, começou no início do século XIX,
quando a sociedade acreditava que o homem era o único provedor das necessidades da família,
tendo a mulher a função de mantenedora do lar e educadora dos filhos. Conforme Luca (2001), as
mulheres quando ficavam viúvas ou pertenciam a uma classe mais pobre tinham que sustentar
seus filhos com atividades que lhes dessem um retorno financeiro. Dentre as principais atividades
realizadas, destacam-se: a fabricação de doces por encomendas, o arranjo de flores, os bordados e
as aulas de piano. Além de serem pouco valorizadas essas atividades eram mal vistas pela
sociedade, o que dificultava a conquista das mulheres por um espaço no mercado de trabalho.
50
Mesmo assim, algumas conseguiram transpor as barreiras do papel de ser apenas esposa, mãe e
dona do lar.
Traçamos alguns dados históricos sobre a trajetória da mulher na conquista do mercado de
trabalho e os cruzamos com significativas referências que Affonso Romano de Sant’Anna faz
sobre a luta que se trava no meio social para se conseguir o sucesso no vestibular. Este é um
enorme passo para alçar grandes vôos profissionais. Na crônica O vestibular da vida, o autor nos
traz a luta de uma mulher para conseguir realizar as provas e provar que existe.
Embora a Constituição Federal relate sobre a "...proibição de diferenças de salários, de exercício
de funções e critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil" (Constituição
Federal, 1988, artigo 7 – xxx), na prática existem alguns questionamentos em relação ao
cumprimento da lei. Desde o século XVII, quando o movimento feminista começou a adquirir
características de ação política, as mulheres vêm tentando colocar em prática essa lei.
A conquista da mulher por um espaço no mercado de trabalho começou de fato com a I e II
Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945, respectivamente), quando os homens foram para as
frentes de batalha e as mulheres passaram a assumir os negócios da família e a posição dos
homens no mercado de trabalho. Mas a guerra acabou, e com ela a vida de muitos homens que
lutaram pelo país. Alguns dos que sobreviveram ao conflito foram mutilados e impossibilitados
de voltar ao trabalho. Foi nesse momento que as mulheres sentiram-se na obrigação de deixar a
casa e os filhos para levar adiante os projetos e o trabalho que eram realizados pelos seus maridos
(ARAÚJO, 2004).
No século XIX a consolidação do sistema capitalista proporcionou inúmeras mudanças no
processo produtivo das empresas e na organização do trabalho feminino. Com o desenvolvimento
tecnológico e o intenso crescimento industrial, boa parte da mão-de-obra feminina foi transferida
para as fábricas. Desde então, algumas leis passaram a beneficiar as mulheres. Ficou estabelecido
na Constituição de 1932 que
51
sem distinção de sexo, a todo trabalho de igual valor correspondente ao salário igual;
veda-se o trabalho feminino das 22 horas às 5 da manhã; é proibido o trabalho da mulher
grávida durante o período de quatro semanas antes do parto e quatro semanas depois; é
proibido despedir a mulher grávida pelo simples fato de gravidez (ARAÚJO, 2004, p.
142).
Mesmo com essas conquistas, o autor ainda relata que algumas formas de exploração perduraram
durante muito tempo. Como, por exemplo, jornadas de trabalho entre 14 e 18 horas e diferenças
salariais acentuadas. A justificativa para esses acontecimentos está centrada no fato da sociedade
acreditar que o homem representa o papel de chefe de família e tem o dever de trabalhar para o
sustento da casa, não havendo necessidade de a mulher buscar fora de casa uma renda para ajudar
nas despesas domiciliar. Mas, essa visão de estrutura familiar, vem sendo reconstruída com a
necessidade da mulher atuar no mercado de trabalho, no qual ela descobriu que além dos afazeres
domésticos, é capaz de conquistar um espaço.
A questão cultural de cada país faz com que as mulheres tenham uma atuação mais ativa em
países culturalmente mais desenvolvidos do que nos países que têm uma cultura mais rígida, na
qual a mulher é vista, ainda, como espécie inferior aos homens.
No Brasil, devido à luta pelo desenvolvimento social, cultural e político, ao longo dos anos, as
mulheres vêm conquistando o seu espaço no mercado de trabalho. Embora de forma lenta, esta
conquista tem sido significativa, conforme observamos através dos dados da Pesquisa Nacional
de Amostra por Domicílio – PNAD (2005): no ano de 1973, apenas 30,9% da População
Economicamente Ativa (PEA) do Brasil era do sexo feminino, em 1999, elas já representavam
41,4% do total da força de trabalho, aproximadamente 33 milhões de mulheres. Quatro anos
depois, mais 62 mil mulheres ingressaram pela primeira vez no mercado, aumentando a
participação em 1,1%.
Dessa forma, com o passar das décadas, as mulheres também foram inseridas no difícil sistema
de seleção dos vestibulares. No fragmento que se segue podemos relacionar a luta da mulher pela
conquista do trabalho com a disputa acirrada por uma vaga em vestibulares. A seleção é rigorosa
e coloca todos na expectativa de superação de obstáculos.
52
Um enduro sem moto, um rali sem carro, uma maratona onde, em vez de atletas, correm
paraplégicos, cegos, presidiários, grávidas e doentes em suas macas, esta é a imagem que
nos deixa este vestibular realizado esta semana, mobilizando centenas de milhares de
jovens em todo o país. (SANT’ANNA, 2003, p. 202).
Verificamos que a disputa coloca em igualdade todos os tipos de pessoas, sejam elas livres, em
dívida com a sociedade, de corpo perfeito ou com necessidade especial, sadios ou doentes,
mulheres.
A pesquisa "Perfil das Mulheres Responsáveis pelos Domicílios no Brasil", desenvolvida pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2005), mostrou que longo de 20 anos,
houve um acréscimo na participação das mulheres no mercado de trabalho. A mulher deixou de
ser apenas uma parte da família para se tornar a comandante, o que foi ocasionando o seu
ingresso no mercado de trabalho.
Como se fossem dar um salto sem vara. Como se fossem dar um salto na vida. Ao lado,
aparecem parentes incentivando o corredor-saltador, aparecem colegas gritando em
torcida. Correi, jovens, correi, que estreita é a porta que vos conduzirá à salvação! E ali
está, como São Pedro, um porteiro ou guarda, que vai bater a porta na cara do retardatário,
que chorará, implorará, arrancará os cabelos num ranger de dentes, enquanto, saltitantes,
os mais espertos pulam (ocultamente) um muro e penetram o paraíso (ou inferno da
múltipla escolha). (SANT’ANNA, 2003, p. 202).
A corrida pelo vestibular é tão intensa, que o cronista a compara com a disputa do salto,
perigosamente, sem vara. As atitudes são várias para conseguir adentrar e realizar as provas. Essa
corrida simboliza bem a frenética movimentação das mulheres para entrar no mercado de
trabalho e obter mão de obra qualificada.
Para as mulheres a década de 1990 foi marcada pelo fortalecimento de sua participação no
mercado de trabalho e o aumento da sua responsabilidade no comando das famílias. A mulher,
que representa a maior parcela da população, viu aumentar nesta época, o seu poder aquisitivo, o
nível de escolaridade e conseguiu reduzir a diferença salarial em relação aos homens. Dentre os
resultados dos estudos realizados pelo IBGE (2005) sobre as dificuldades enfrentadas pelas
brasileiras, cabe destacar os seguintes aspectos: A renda média das trabalhadoras passou de R$
53
281,00 para R$ 410,00. As famílias comandadas por mulheres passaram de 18% para 25%. A
média de escolaridade das mulheres, que são "chefes de família", aumentou, em um ano, de 4,4
para 5,6 anos de estudos. A média salarial passou de R$ 365 para R$ 591, em 2000.
Uma dificuldade apontada nesse estudo é a taxa de fecundidade, que teve início na década de 60,
e que atualmente, define a média de 2,3 filhos para cada mulher, o que há 40 anos estava na
média de 6,3 filhos. A redução da fecundidade ocorreu com mais intensidade nas décadas de 70 e
80. Nos anos 90 a taxa baixou de 2,6% para 2,3%. Acredita-se, assim, que com menos filhos as
mulheres possam conciliar melhor o papel de mãe e trabalhadora, desenvolvendo melhor as
novas funções que o mercado de trabalho lhes oferece.
A história da mulher no mercado de trabalho, no Brasil, está fundamentada em dois aspectos: a
queda da taxa de fecundidade e o aumento do nível de instrução. Estes fatores vêm ocasionando a
crescente inserção da mulher no mercado de trabalho e a elevação de sua renda. Para Guerra
(2004), a velocidade com que isto se dá não é o mais relevante, o que importa é a conquista por
segmentos que não empregavam mulheres, como, por exemplo, nas Forças Armadas, em que elas
estão ingressando como oficiais, cargos antes conferidos apenas ao sexo masculino.
Para consolidar sua posição no mercado de trabalho a mulher tem, cada vez mais, adiado seus
projetos pessoais, como a maternidade. Observa-se assim, que a redução do número de filhos é
um dos fatores que tem contribuído para facilitar a presença da mulher no mercado de trabalho.
Mas, de todos os casos, impressiona mais o de Maria Regina Gonçalves, uma enfermeira
de 38 anos. Vejam que história mirabolante. Lá vai a nossa Maria Regina. Mas não vai
simplesmente. Vai grávida. Vai grávida, mas não é uma grávida amparada pelo seu
marido, mas uma grávida solteira, enfrentando o mundo com, sua barriga e coragem. No
entanto, hora e meia antes do exame, em São Cristóvão, é assaltada por três marmanjos
covardes, que tomam dela os documentos, 200 mil cruzeiros, e o pior: lhe dão uma porção
de safanões, num exercício de sadismo matinal. (SANT’ANNA, 2003, p. 203).
Nesta passagem, notamos a importância que o autor atribui a uma mulher especial. Maria Regina
nos é apresentada em uma situação que nos remete diretamente à desistência e ao fracasso.
Podemos notar a representação pela luta que é essa mulher. Primeiro, que ela já não possui mais
54
os 18 anos – esperados para um jovem vestibulando –; segundo, ela não é casada e está grávida;
por último, sofre uma agressão física momentos antes de enfrentar o vestibular. O natural é
pensarmos que ela desistirá da prova.
A sociedade, atualmente, apresenta várias oportunidades de crescimento profissional, as quais
estão sendo disputadas por profissionais cada vez mais qualificados. Para se destacar, a pessoa
precisa ser cada vez melhor nas atividades que lhe são atribuídas. É preciso conhecer todos os
aspectos relacionados com o ramo da empresa que se trabalha, para poder aplicar os
conhecimentos em benefício da mesma, podendo gerar assim resultado positivos.
Conforme Shinyashiki (2006), o que faz a diferença nas organizações é o ser humano, pois as
oportunidades de aperfeiçoamento e a moderna tecnologia já estão disponíveis e acessíveis a
todos. Através das qualidades pessoais torna-se possível conseguir melhores resultados frente ao
concorrido mercado de trabalho. Então, cabe ao profissional desenvolver e aprimorar suas
habilidades de forma que desenvolvam-se suas qualidades pessoais, podendo assim conquistar
novas oportunidades de trabalho.
A seqüência da crônica nos mostra que Maria Regina é uma mulher que se encaixa perfeitamente
nas estatísticas. Ela não teve oportunidade de cursar faculdade na idade esperada pelos
indicadores educacionais do país. A necessidade de uma formação escolar mais apurada faz com
que ela encontre forças para conseguir driblar a dor da violência que sofrera e busque meios para
resolver a burocracia da questão para conseguir realizar a prova de vestibular.
Maria Regina poderia depois disto voltar chorando para casa e ficar lamuriando o resto da
vida. Fez o contrário: foi em frente, embora, ao chegar no local soubesse que uma outra
colega, também assaltada, desistira do exame.Maria Regina deu um jeito, arranjou até
cópia xerox de sua carteira de identidade, fez a prova, comprometendo-se a mostrar os
outros documentos mais tarde. (SANT’ANNA, 2003, p. 203).
Para que a mulher atinja o sucesso, Shinyashiki (2006) descreve algumas características que
devem estar presentes no ser humano, como: afetividade, sensibilidade, percepção aguçada,
versatilidade, entre outras. Até há pouco tempo estas características eram consideradas fraquezas,
mas no contexto atual passaram a ser consideradas como a essência necessária para o alcance dos
55
objetivos das organizações. Observa-se que os homens buscam não demonstrar estas
características para não parecerem frágeis, enquanto que as mulheres sempre cultivaram isso
como um dom, desenvolvendo-as em cada situação em que elas atuam.
Este conjunto de fatores ou este perfil apresentado pelas mulheres vem sendo um diferencial
quando atuam no mercado de trabalho, tornando o lugar que trabalham mais harmonioso e
desenvolvendo suas funções com um melhor desempenho, já que estas características fazem com
que elas tratem os assuntos de forma mais organizada e detalhada.
Com estas características as mulheres estão conseguindo, cada vez mais, conciliar os trabalhos da
vida pessoal com a profissional. O que antes era considerado um obstáculo, atualmente é
considerado como um grande desafio. Sua participação no mundo dos negócios e a própria
independência financeira vêm mudando a forma como os produtos e serviços são desenvolvidos e
comercializados.
A mulher, de acordo com Shinyaschiki (2006), está cada vez mais assumindo cargos estratégicos
nas organizações, além de atuar como administradora do lar e educadora dos seus filhos. O
constante crescimento da participação da mulher em altos cargos na empresas pode ser verificado
por pesquisas como a realizada pelo Catho Associados (2005), que mostra que as mulheres já
superam os resultados obtidos pelos homens no mundo dos negócios. Uma das principais
características apresentadas pelas mulheres é que possuem mais habilidade de lidar com
estruturas não hierárquicas, enquanto que os homens operam melhor com estruturas hierárquicas.
Isso ocorre devido à própria natureza da mulher, a qual ao longo dos anos vem se adaptando a
diferentes situações, nos diferentes papéis que desempenha na sociedade.
A crônica nos acrescenta mais um obstáculo a ser enfrentado pela heroína da vez. “Como
desgraça pouca é bobagem, quatro dias depois morre o pai de seu namorado, daí uns dias ela
aborta e teve que ficar mesmo internada.” (SANT’ANNA, 2003, p. 204). Fica claro, neste
excerto, que Maria Regina realmente passa por provações muito pesadas para qualquer ser
humano enfrentar. É muito problema para uma pessoa resolver sozinha. Como ela consegue,
podemos relacioná-la com a necessidade de vencer os obstáculos para atingir as metas de
conquistar o vestibular e atingir sucesso profissional.
56
Buscando explicar o porquê da insatisfação diante da remuneração financeira por parte das
mulheres, Morales (Exame, 2006) relata: "Não acredito que existam políticas discriminatórias e
que os salários sejam baixos por causa disso. O que pode explicar essa diferença é o fato das
mulheres terem entrado tardiamente no mercado de trabalho e ocuparem minoria de cargos de
chefia".
Já para Bini (Exame, 2006), presidente da Herbalife, o ambiente de trabalho ainda não contempla
todas as necessidades da mulher. Entre as prováveis mudanças, ele cita as jornadas flexíveis, a
possibilidade de trabalhar a distância e a oferta de benefícios como creches para os seus filhos.
Observa ainda (p.21): "A maior pressão sentida atualmente pela mulher não é a de provar sua
competência, mas sim o desejo de conciliar o trabalho com a família". (BINI, Exame, 2006, p.21)
Esse descontentamento por parte das mulheres pode estar ocorrendo pelo fato delas viverem
numa sociedade em que o sexo masculino ainda não aprendeu a dar o valor necessário e merecido
para as mulheres, que estão cada vez mais procurando conquistar o seu espaço e ter o seu talento
reconhecido.
O cronista finaliza o texto chamando a atenção dos jovens que são bem nascidos e possuidores de
auxílio familiar e mesmo assim desperdiçam oportunidades importantes de estudo. Em
contrapartida, está Maria Regina: uma campeã da vida, uma representante quase oficial das
estatísticas de mulher excluída que precisa superar muitas dores para atingir o sucesso. Até
mesmo quando o atinge, com a bela aprovação no vestibular, ela precisa ainda provar
burocraticamente que existe.
E vede agora, ó filhinhos e filhinhas de papai, que esbanjais vossos corpinhos sem destino
nas praias da irresponsabilidade! Maria Regina foi a primeira colocada (nota 96) no
concurso para Enfermagem e Sanitarismo. Tirou primeiro lugar e seu nome não apareceu
na lista. Ainda vai ter que provar que existe. É claro que vai ganhar. Espero.
(SANT’ANNA, 2003, p. 202).
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Infelizmente, percebemos que Maria Regina ainda endossa os números das estatísticas em muitos
critérios. Trata-se de uma mulher sem prestígio social, uma lutadora, mas que se perde na
imensidão da papelada e política que são as engrenagens movedoras do país.
Assim, nos fica claro que a mulher é realmente uma vencedora por conseguir, ao longo da
história, desenvolver estratégias favoráveis para vencer as barreiras e atingir o sucesso. É certo
que a luta ainda é muito grande e estar cada vez mais preparada para continuar na batalha implica
uma mulher que trabalha e estuda. Ela precisa, quase rotineiramente, enfrentar monstruosos
vestibulares. Isso também endossa as estatísticas.
3.5 A mulher e o casamento
O conceito de gênero envolve a construção social e cultural dos sexos e das identidades sexuais
dadas histórica e ideologicamente. Quando analisamos “a mulher e o casamento”, a questão do
gênero não deve ser entendida pelo enfoque biológico, e sim, como um ponto de vista que
permite analisar esta mulher a partir de sua posição social, retratando seu modo de relação com o
mundo e os elementos que a constituem. Assim, vamos destacar desta perspectiva, os sentidos
dados pela história, pela política, e pela ideologia que, entendemos, são constitutivos das
identidades do homem e da mulher.
Com o intuito de demonstrar fatos que remetem à realidade acerca das diferenças entre homem e
mulher, lançamos mão da crônica Uma amiga me falou... de Affonso Romano de Sant’Anna.
Nela, o autor já na introdução nos indica a visão que a mulher tem sobre o comportamento do
homem.
58
[as mulheres] Dizem, e essa é a queixa mais repetida, que os homens não querem nenhuma
relação permanente. Querem uma coisa ambígua, querem ficar e não ficar, como se
estivessem brincando de Hamlet, com aquela coisa de “ser ou não ser”. Elas acabam
aceitando ou entrando nesse jogo, mas daí se cansam, desgastadas, porque gostariam
muito de uma relação fixa, [...] Aliás, queriam mais do que isso. Algo como um
companheirismo amoroso. Mas que isso está dificílimo de se conseguir. (SANT’ANNA,
2003, p. 23).
Este fragmento deixa clara a queixa da mulher com relação ao tipo de homem que pode ser
encontrado facilmente na sociedade. Está explícita a insatisfação da mulher diante das atitudes
descomprometidas dessa marcante espécie de homens. Não há estabilidade nas ações. Eles
querem ao mesmo tempo o tudo e o nada, quando se trata de relacionamento. Resta à mulher,
então, sujeitar-se a aceitar essa postura, caso deseje um companheiro. Como essa forma de
parceria não agrada às mulheres por muito tempo, elas desistem rápido desse tipo de homem.
O mito de oprimida e traída, guardado no inconsciente da mulher, percorre a história, e o
verdadeiro significado de auto-determinação decorrente do desejo de ser desejada, confundemnos com o anseio de amar e ser amada, de ter soberania sobre nossas vidas, de ter o direito e a
responsabilidade de agir com livre-arbítrio, sem que um homem esteja dirigindo e determinando
o que devemos fazer.
A mulher sempre esteve à margem da sociedade. Segundo Strey (2001) “no passado, existiram
sociedades estratificadas por classes com economias muito diferentes da capitalista, como a
Europa feudal, as civilizações greco-romanas, baseadas no trabalho escravo, etc”. (STREY, 2001,
p. 191). Neste período, não capitalista, a mulher possuía o status de subserviência possivelmente
a sua condição biológica, em que era encarregada da criação dos filhos e também por ser
considerada um ser inferior, sem capacidade intelectual. Quando possuía título de nobreza,
adquiria um poder maior devido, justamente a sua condição biológica de reprodução, contudo,
necessariamente tinha que ter filhos. Assim, quando proletária, o valor da mulher estava na sua
capacidade de produção. Perrot (1990) diz que Platão por vezes questionava o porquê de as
mulheres serem responsáveis pela criação dos homens: “Platão indigna-se ante o paradoxo de
que a formação dos cidadãos se confie a seres com uma educação tão pobre”. (PERROT, 1990,
p. 82).
59
É certo que a mulher saiu do ambiente doméstico e saiu às ruas para conquistar o público. Isso
não lhe retirou a característica biológica de ser mãe, e em muitos casos, também não fez
desaparecer o seu desejo de ter filhos. No fragmento a seguir da crônica, o narrador faz referência
a essa característica da mulher.
Claro, queriam também ter filhos, aquelas que não os têm. E as que têm já algum filho do
primeiro casamento gostariam que seus amantes tivessem uma relação melhor com o
menino ou a menina. Mas os homens, dizem minhas amigas, vêm e somem. Parecem
caixeiros viajantes do amor e do orgasmo. Estão sempre de passagem como se estivessem
indo vender sua mercadoria noutro dia em outro arrebalde. (SANT’ANNA, 2003, p. 23).
Percebemos que ainda faz parte do imaginário da mulher o desejo de constituir família com filhos
e marido. Também fica claro, na passagem, que difícil está manter um casamento e conciliar um
novo relacionamento com um futuro namorado. Fica parecendo que os homens estão sempre de
passagem na vida dessas mulheres.
Torna-se cada vez mais necessário que os grupos de parentesco das sociedades iniciais deixem de
ser autônomos, pois necessitam providenciar produtos e serviços para o suporte da elite não
produtiva. A reprodução nesse sentido geral de comunidade, se torna cada vez mais politizada.
Nessa espécie de crise da reprodução social é que está a origem da hierarquia de gênero. A razão
pela qual as mulheres recebem extrema sujeição ideológica está relacionada com a abstração na
divisão civil do trabalho e a supressão da autonomia dos grupos de parentesco na reprodução. As
mulheres não apenas são capazes de trabalhar, mas também de produzir outros/as
trabalhadores/as. Como tal, as pertencentes à classe trabalhadora se tornam o foco principal do
controle estatal. (STREY, 2001).
Uma vez que o casamento tornou-se, ao longo das décadas, uma finalidade na vida das mulheres,
o cronista faz uma abordagem significativa acerca disso.
60
Nessas conversas a gente acaba se referindo às mulheres que estão casadas. Algumas
dessas amigas que já foram casadas, por outro lado, não querem voltar àquele tipo do seu
primeiro casamento onde tudo deu errado em poucos anos. Casaram-se com a melhor das
boas intenções com o colega da faculdade ou de escritório e, diferentemente de suas mães,
não conseguiram segurar a relação. Nem os homens, aliás, pareciam interessados em
segurá-las, muitos já estavam em outra e outras. (SANT’ANNA, 2003, p. 23-4).
Percebemos com clareza que, se antes, quando tinha apenas convívio de vida particular, agora,
com direito à vida pública a mulher rejeita a antiga fórmula de união matrimonial. Tanto homens
quanto mulheres não mais insistem em manter um compromisso desgastado. Os pais deixaram de
ser referência para conduzir os casamentos atuais.
Se, por um lado, as mulheres trabalhadoras passam a ser visadas por interesses políticos e
econômicos, por outro, as mulheres da elite, uma vez que não possuíam produtividade alguma,
acabavam-se por reduzidas ao seu valor procriativo. O valor da mulher da elite está
fundamentado em seu grau de nobreza, alianças maritais e capacidade reprodutiva. Por sua
autoridade social, “por seu considerável poder político”, por ser fortemente controlada pelo
regime social de sua classe, muitos autores confundem com “matriarcado”. Na verdade, por mais
poder que a mulher tivesse quando na elite, ela nunca estava sozinha e soberana. (STREY, 2001,
p. 194).
Abordar os sentidos que constituem a história e as determinações ideológicas que constituíram e
constituem as posições sociais ocupadas pelas mulheres na nossa sociedade, implica
necessariamente tratar dos sentidos que institui o casamento nesta mesma sociedade. Para isto, é
preciso adentrar temas referentes à virgindade, moral cristã – no valor da religião numa sociedade
como a nossa. De fato, no que diz respeito à posição da mulher na sociedade, o casamento servia
de mensurador do valor de uma mulher, já que, para poder se casar ela deveria possuir alguns
requisitos que envolviam “a boa conduta”, “uma moral reta”, tudo isso legitimado por certos
ideais religiosos que teriam como corolário a castidade e a pureza. De outro modo, a mulher que
“não é pra casar”, seria aquela que iria contra estes preceitos morais e divinos: era a concubina,
libertina, prostituta. Este sentido que relaciona casamento e virgindade à conquista do céu para os
cristãos, é apresentada por Vainfas que destaca na Bíblia, a virgindade como pré-requisito para
quem desejasse “ganhar o Reino dos Céus” (VAINFAS, 1992, p. 7).
61
Os tempos são outros e fazer parte desse momento requer mudanças de atitudes. Que a mulher
mudou, e muito, nas últimas décadas, não é novidade para mais ninguém. Porém, no que se refere
ao homem, o que dizer? O excerto a seguir faz referência a essa condição de mudanças.
O que está acontecendo com os homens? Pioraram nos últimos tempos? [...] Algumas,
orgulhosamente, dizem que as mulheres é que melhoraram, e aí desbalançou. Alegam que
não querem mais a vida de suas mães, serem apenas “rainha do lar”. Querem uma
profissão, querem uma vida erótica participante e liberdade de movimentos.
(SANT’ANNA, 2003, p. 24).
A passagem nos apresenta uma resposta bastante interessante para as mudanças nos
comportamentos sexuais. As mulheres evoluíram muito e parece que os homens pararam no
tempo. Estes mantêm uma atitude tradicional com relação ao contato com a mulher. Talvez seja
essa a razão de eles fugirem ao compromisso, pois eles não sabem como agir diante do desejo da
mulher de demonstrar – e poder demonstrar – que ela é sujeito nas suas vontades.
O casamento, significado a partir dos preceitos da moral cristã, sempre foi marcado por muita
polêmica. Para Vainfas “O casamento era visto como um elemento ameaçador para a castidade”.
(VAINFAS, 1992, p.21). Isto pelo fato de que as relações humanas restritas à carne, ao prazer
mundano, eram fortemente condenadas pela Igreja, que as considerava como atos de imundice,
de corrupção da alma. Talvez por uma interpretação equivocada dos antigos escritos religiosos,
do pecado original de Adão e Eva, ou até mesmo devido ao pouco conhecimento das questões de
higiene, saúde, sexo da época, a sexualidade humana sempre foi carregada de tabu, repreensão e
controle.
O casamento na nossa sociedade, assim, constrói-se intimamente atrelado às determinações dos
sentidos dados para a sexualidade no discurso religioso. Trata-se do mal maior que deve ser
dominado, controlado. Dentro desta questão, a sexualidade aplicada ao universo feminino era
muito mais estigmatizada. Em Vainfas temos a mulher como uma “tentação do demônio”, algo
que deveria ser evitado pelos homens que desejassem alcançar a Santidade. Não apenas o sexo,
mas o amor, a paixão também eram duramente perseguidos e proibidos pela sociedade da época.
A forma de manipulação e controle social dava-se pela teologia e interpretação dos monges, da
62
palavra de Deus. Por ser a igreja, na sua fundação, uma instituição de poder econômico e político,
era ela que ditava, além dos preceitos divinos também as regras de conduta social e moral. E
dentro desta doutrina, o prazer carnal, assim como a paixão levaria o ser humano ao pecado. Já o
“amor puro”, era algo que deveria ser devotado a Deus.
Neste sentido, o casamento era visto como um mal à sociedade. Um homem e uma mulher que se
unissem maritalmente não conseguiriam manterem-se castos. Estariam sujeitos às tentações da
carne. No entanto, assim como repudiava, a Igreja também tinha ciência de que o casamento era
um mal necessário, pois tinha a função de procriação e manutenção das posses. Com isso,
Vainfas apresenta a posição da Igreja, com relação ao casamento como sendo um “mal menor”
ou “pior dos bens”. Melhor seria que ficassem castos: “mas se não podem conter-se” diz o
Apóstolo Paulo, em sua Epístola, “casem-se”. (VAINFAS, 1992, p. 11). Porém, sendo o
casamento um sacramento cristão, uma concessão divina, remediadora para o mal das
“fornicações” (VAINFAS, 1992), a mulher e o homem que almejassem o casamento deveriam
manter-se intocados, virgens, até as núpcias.
Dessa forma, surgia o casamento, não apenas como uma solução cristã aos atos libidinosos, mas
também, dentro da moral burguesa, como um futuro digno para as mulheres da época e sobretudo
um negócio entre famílias. Vainfas afirma que, para a burguesia, “o casamento estava
profundamente ligado aos valores de linhagem, à transmissão de heranças e títulos, e à formação
de alianças políticas.” (VAINFAS, 1992, p.26).
Segundo Áries, o casamento “verdadeiro” é aquele em que era selada uma aliança, de
envolvimentos políticos. “Daí só haver casamentos reais, os quais eram reservados aos poderosos
e somente a alguns dos seus filhos.” (ÁRIES,1983, p.141). Vemos, então, que a grande maioria
das pessoas era excluída da instituição matrimonial.
Qual era a função do casamento todos os cristãos sabiam. Porém a forma de conduzir a castidade
de homens e mulheres se distinguia muito. Como a mulher era totalmente proibida de realizar
sua vontades sexuais, fica nos parecendo que para ela ficou mais claro o que buscar como
barreira a ser superada. Isso não ocorreu com os homens, como registra o excerto:
63
Desde pequeno dizem ao homem que ele tem que crescer, ser forte, macho, arranjar
emprego ou profissão para sustentar sua família. O principal objetivo na vida dele,
conforme a sociedade lhe diz, é ser um profissional e um cidadão. Com isso ele se prepara
para uma vida exterior, para conquistar o mundo. Ninguém o ajuda a lidar com sua
sentimentalidade. Com isso, o casamento e a mulher surgem no seu caminho como uma
paisagem, um cenário onde ele é o ator principal. Nenhum homem é educado para o
encontro com a mulher, mas para o encontro com as mulheres. (SANT’ANNA, 2003, p.
24).
Vemos que o homem estava moldado para ter o controle físico da situação, por isso lidar com
emoções é tão difícil. Explicitar sentimentos, então, tornou-se uma grande dificuldade para ele.
Dessa forma, nos parece aceitável a idéia de que o homem encontra-se perdido em seus
sentimentos e atitudes diante de uma mulher cada vez mais conhecedora de seus sentimentos e
portadora da vontade de realizá-los.
Na fórmula clássica de união matrimonial, não era admitido que homem e mulher tivessem amor
e paixão um pelo outro. O amor e a paixão eram coisas da alma, da divindade. Entregar-se a estes
sentimentos por outros homens ou mulheres era pecar na carne. O homem que fosse apaixonado
por sua mulher, já neste ato, estaria cometendo adultério e tornando-a pecadora. Dentro do
casamento não havia espaço para o amor. O homem deveria respeitar sua esposa e fazê-la
“santa”, ajudando-a a constituir uma posição digna na castidade. O amor deveria ser a Deus e a
seus preceitos. Não havia, em hipótese alguma, amor dentro do casamento. O casamento era uma
relação necessária que unia a preservação da honra das moças e os negócios das famílias,
portanto, uma relação estabelecida entre os pais do noivo e da noiva.
A Igreja consentia, assim, relações sexuais dentro do ambiente do matrimônio, mais precisamente
no “leito nupcial”, porém, estas relações não poderiam ser invólucros de prazer carnal. Mesmo
dentro do casamento, o casal era sujeito a uma série de restrições com relação ao tempo, posição
e quantidade de prazer envolvido no ato sexual. A Igreja delimitava algumas regras básicas que o
casal deveria seguir. Anos mais tarde, a Igreja reavaliou seus conceitos e admitiu que todo ser
humano era feito no pecado, que sem prazer, não haveria procriação. Mesmo assim, as relações
sexuais dentro do casamento eram extremamente rígidas e controladas. Havia dias e períodos do
ano em que era totalmente proibida qualquer relação carnal.
64
Esta falta de afeto dentro do casamento, assim como as inúmeras regras e imposições às relações
sexuais entre o casal tinham como conseqüência a busca pelo prazer carnal, sobretudo por parte
dos homens, que procuravam as concubinas e prostitutas. A Igreja não admitia a traição no
casamento, nem por parte do homem, nem por parte da mulher. Segundo Vainfas, o homem
também não podia repudiar sua mulher, exceto em casos de “infertilidade e adultério” de sua
esposa. Porém, Beauvoir diz que o homem poderia “trazer para seu leito escravas, concubinas,
amantes, prostitutas; mas é-lhe determinado que respeite certos privilégios da mulher legítima”.
(BEAUVOIR, 1990, p.167). Já as mulheres, no caso de traição, eram severamente punidas,
sofrendo o repúdio de seu esposo e rebaixadas à categoria de concubinas.
Diante da ordem social de atribuir a homens e mulheres tratamentos distintos com relação à
concretização do desejo carnal fora do casamento, vemos marcadamente a força do período
patriarcal. Uma das explicações era que os homens são diferentes, possuem uma necessidade
física para o sexo, ausente nas mulheres. Tal postura trouxe vários questionamentos sobre a
possível existência da distinção entre homens e mulheres.
Realmente há anos surgiu entre as feministas de última geração a idéia de que homens e
mulheres são “realmente” diferentes. Chegaram à conclusão que era uma utopia exigir
“igualdade” apenas do ponto de vista social, por exemplo, o mesmo tratamento salarial e
de oportunidades e mais espaço para si dentro de suas casas. Mas concluíram que os
machos e as fêmeas têm alguma coisa de “diferente”, o que não implica a superioridade de
um sobre o outro, senão na aceitação que têm expectativas bio-psicológicas diversas.
(SANT’ANNA, 2003, p. 25).
O fragmento acima legitima a fala do machismo patriarcal de atribuir ao homem características
físicas e biológicas inexistentes nas mulheres. No entanto, há uma argumentação muito forte
sobre a diferença entre os sexos. O que os diferencia é o que fortalece cada um deles, sem tornar
um superior ao outro. Talvez a chave para o equilíbrio das diferentes atitudes encontre-se no
entendimento dessas diferenças e, obviamente, na aceitação, de ambas as partes, que os atos se
diferem, mas podem convergir.
65
A mulher, quando em posição de esposa tinha “a liberdade apenas através da submissão a um
homem” (BEAUVOIR,1990, p. 294). Em seu dia a dia, seu comportamento deveria refletir na
sociedade o exemplo de mulher, dona do lar, esposa e mãe. Desse modo, já se observa uma
diferenciação nas posições de cada um, homem e mulher, na sociedade, com relação ao
casamento. Diferença esta, que continua perpetuando o modo de constituição dos sentidos
históricos sobre gênero em que a mulher tem menos poder que o homem. Assim, para Beauvoir,
o dever da mulher é o de “representar”. Em seu dia a dia, deveria transparecer a felicidade em
servir ao seu homem, pois essa era a vontade de Deus. Como diria Beauvoir “disseram que o
casamento diminui o homem; é muitas vezes verdade; mas aniquila sempre a mulher”.
(BEAUVOIR, 1990, p.241)
Para esta mulher, submissa dentro e fora das relações matrimoniais, a moral cristã não permitia
que demonstrasse ao seu esposo o desejo carnal. Vainfas em seus estudos, afirma que apenas o
homem podia manifestar o desejo por sua esposa. A ela cabia “eximir-se de tal solicitação,
ficando o marido obrigado a decifrar no semblante ou na sutileza gestual de sua esposa, a vontade
do ato carnal”. (VAINFAS, 1992, p.39). O homem também era responsável pela castidade e
santidade de sua esposa. Não era permitido que ele a induzisse às práticas sexuais erotizadas, com
posições “como os cães” ou atos sexuais “sodomistas” – sexo anal e oral.
Algumas mudanças sociais ocorreram, de acordo com Vainfas (1992), já ao final do Império
Romano. Ele afirma que a partir deste período “cada vez mais era respeitada a vontade da
mulher como iniciativa no casamento”. (VAINFAS, 1992, p. 26). Porém, a moral cristã
prevaleceu e, de certa forma, prevalece até hoje nas relações matrimoniais. E de qualquer forma,
sua existência era condicionada a alguém que a sustentasse, que garantisse comida, moradia, o
que lhe era garantido pelo casamento. Sem força e participação política, a mulher era um objeto a
ser conduzido pelo homem. Beauvoir afirma que, para compreender as relações atuais entre
homens e mulheres, é necessário conhecer este pré-construído, que marca o significado do
discurso destas mulheres.
Muitas jovens burguesas severamente educadas casam-se, ainda hoje, para “serem livres”.
Numerosas norte-americanas conquistaram sua liberdade sexual, mas suas experiências
66
assemelham-se às dos jovens primitivos, que gozam os prazeres sem conseqüência; espera-se
deles que se casam, e é somente então que são encarados como adultos. Uma mulher só, na
América do Norte, é um ser socialmente incompleto, ainda que ganhe sua vida, cumpre que traga
uma aliança no dedo para que conquiste a dignidade integral de uma pessoa e a plenitude de seus
direitos. (BEAUVOIR, 1976).
O certo é que o casamento passou por muitas alterações, no decorrer dos séculos, mas muitas
pessoas ainda o idealizam de tal forma que faz com que as escolhas e a vida girem em torno dessa
única conquista, mesmo sendo a vida um sem-fim de objetivos a serem alcançados.
Já na finalização da crônica, Sant’Anna exemplifica um conceito bastante interessante:
Uma amiga fez uma observação inteligentíssima: - As pessoas esperam do casamento o
que não conseguem sequer de sua profissão ou das relações com outras pessoas, ou seja,
uma realização plena. E isso é impossível, arremata ela. [...] mas [elas] acabam
concordando que o casamento é aquilo que duas pessoas decidem que o casamento vai ser.
Quer dizer: existe uma fórmula geral, mas cada casal deve acomodá-la ao seu estilo.
(SANT’ANNA, 2003, p. 25).
Verificamos, neste excerto, que faz muito sentido a idéia apresentada pela amiga do cronista. A
reflexão sobre o casamento ainda significa, para muitos, uma perfeição a ser atingida, ultrapassa a
capacidade de conquistas do ser humano. Afinal, é da essência humana a constante insatisfação
com os resultados de suas realizações. Assim, parece também coerente uma reformulação geral
da visão sobre o casamento, mesmo porque as pessoas são diferentes e a construção dos
relacionamentos não possui fórmula pronta, precisa ser elaborada com cuidado e atenção para
fazer um sentido verdadeiro. Pode ser que daí surja um modo de os casamentos durarem como os
de antigamente.
67
3.6 A mulher e o sexo
Acreditamos que o desenvolvimento de uma sexualidade saudável, precisa estar no cerne da
evolução humana. A análise das bases bio-psico-sociais é de suma importância para entendermos
o processo individual e coletivo no qual estamos inseridos. Há um corpo que traduz nossas
emoções e conta nossa história herdada geneticamente e adquirida socialmente. A expressão
corporal é a perspectiva somática da expressão emocional. Chamamos a atenção para esta
discussão do gênero e da sexualidade humana, porque estamos impondo os papéis para ambos,
numa ânsia de oferecer poder e autonomia à fragilidade feminina e fragilidade à força masculina.
(BAKER, 1980).
Esta imposição é real, porém no nível inconsciente emerge utilizando-se de perfis e imagens do
processo evolutivo do gênero; fazendo-nos encontrar com um homem encolhido e frio em relação
a si mesmo e uma mulher cindida energeticamente, confusa entre poder e feminilidade. E ambos
em busca de alguém ou de algo que preencha esta distorção. Desse modo, buscando evidenciar a
representação da temática do gozo feminino, introduzimos em nossa análise o texto Mistérios
gozosos de Affonso Romano de Sant’Anna.
O imediato – negação da mediação – é o modo de operar o gozo para o Senhor nos tempos
modernos, com a mesma velha estrutura do imperativo categórico determinante do discurso da
maestria. Representa um sujeito que ao invocar o poder de determinar a produção de um meio de
gozar, produz o saber ser de si mesmo, como uma nova modalidade de gozo. O gozo aliou-se ao
saber e requer estar sempre bem informado, informatizado.
Arranjar-se com o uso do termo gozo, como se fosse um conceito e não só uma modalização, fica
difícil ser aplicado direta e imediatamente no mundo da psicanálise. Lacan, retomando os termos
de Freud, formulou os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: o inconsciente, a repetição,
a transferência e a pulsão. Redefinindo-os atados pela topologia que os sustenta na função única
do real. Ou seja: o real da psicanálise é o ser de gozo, como o aparelho da linguagem é o estofo
68
da estrutura pulsional para abertura ou fechamento do inconsciente na transferência, por efeito do
desencontro na falha da repetição.
Tudo começa a mudar com o advento instituído por Jacques Lacan na escritura do discurso do
mestre ou do inconsciente, ao colocar os significantes da divisão do sujeito trabalharem para
produzirem algo que vem na suplência da falta de gozo oriundo da castração, que ele mesmo
nomeou como o mais de gozar. O significante mestre no lugar do senhor representando o sujeito
e do outro lado, o outro significante do saber, mais para responder pelo lugar do escravo,
trabalhando na produção do gozo. Logo, o significante produz o gozo, que rege, comanda e faz
convergir todos os outros significantes.
Esse significante de comando, como se vê, já dá uma amostra de como se concerne o gozo pelo
lado do significante original, o falo, tendo em mente os registros do Real, Imaginário e
Simbólico. Diz Lacan em "Significação do Falo", desde que a operação parta do complexo de
castração inconsciente tem a função de nó na estruturação dinâmica dos sintomas, no sentido
analítico do que é analisável nas neuroses, nas perversões e nas psicoses. Sem o qual o sujeito
não encontra o seu lugar no inconsciente, nem pode identificar-se com o tipo ideal do seu sexo e
nem mesmo poderá acolher sua cria.
A sedução abre o jogo da promessa de prazeres desconhecidos, supondo veladamente uma
resposta sobre a origem da sexualidade. Jogo em espelho onde, ao menos por um momento, cada
olhar e cada palavra reafirma que o corpo é falo, sem perceber que a própria palavra questiona
esta afirmação. Cada palavra, uma detrás da outra, assim como a carícia do olhar sobre um corpo
denuncia o encontro falho entre os significantes onde se desloca o desejo e o objeto que é sua
causa. A falta de objeto faz que o desejo não falte a sua excitação se aventure em outro desejo.
O mútuo reconhecimento estabelece a tensão possível para a luta amorosa. A libido e a
agressividade fazem que o homem ceda frente à fascinação que a mulher produz ao seu corpo
erigir-se como falo.
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A subordinação da cena amorosa ao campo imaginário, que lhe dá consistência, faz com que se
desconheça o que está implícito na preocupação do homem, que além de levar a contabilidade
dos orgasmos, pergunta-lhe: você gostou? você gozou?. Se encontra com a inquietação feminina
sob a forma de: sim mas...era só isso?, sempre e quando não se antecipe um golpe de
misericórdia: você é o melhor!, exatamente no momento em que a detumescência dá imagem à
castração.
A paixão pela decadência, tanto para o militante clandestino da castração como para a demolidora
de mestres, possivelmente encontre a sua imagem referencial na detumescência. A preocupação
do homem pelo tão esperado orgasmo da mulher dissimula que o que é esperado é “outra coisa”.
Apesar de o homem se vangloriar de que o seu pênis vale muito mais do que pesa, vale tanto
como toda a sua imagem corporal, dado que dirá: Eu a fiz gozar!. A sua relação é suspensa pelo
interrogante que lhe impõe o misterioso gozo feminino. Todo o seu corpo como contorno de um
oco, até o seu limite, goza.
O mistério envolvendo o gozo feminino fica liricamente representado na passagem que inicia a
crônica.
Uma coisa especial ocorre com a mulher depois que ama. Reparem, estou dizendo, depois
que ama. Não estou me referindo a ela enquanto está no ato do amor. Disso se pode falar
também, e a literatura a partir do romantismo e depois do cinema, modernamente, já
tentaram de várias formas simular na relação amorosa como a mulher suspira, se contorce,
desliza as mãos e entreabre a boca do corpo e da alma. (SANT’ANNA, 2003, p. 49).
O cronista nos conduz a perceber que o êxtase da mulher se revela de uma forma ímpar no
contato com o gozo – que o autor chama de amor. Essa experiência faz com que todo corpo e
alma de mulher reflitam alegria. A intensidade é tão grande que nenhuma representação, seja por
linguagem verbal, seja por linguagem cinematográfica, consegue representar com exatidão.
Lacan nos propõe que gozar de um corpo que simboliza o Outro não significa relacionar-se com
o Outro. A relação com o Outro, lugar dos significantes, se dá para qualquer ser falante a partir da
70
sua identificação ao significante. Homem e mulher são significantes. Homem e mulher estão
sujeitos ao Outro, e o Outro será o Outro sexo.
Gozar de um corpo marcado pelo significante faz com que seja possível gozar de uma parte deste
corpo, já que é impossível que um corpo abrace completamente o corpo do Outro. Neste sentido
se a linguagem é o aparelho do gozo, neste gozo há falta. O encontro sexual, condicionado desta
maneira, indica que para o inconsciente não há relação sexual. Se há alguma forma de encontro
sexual é porque há falta e a falta, é essa “coisa”, que é o objeto como causa do desejo. Esta falta
que é uma renúncia a um suposto gozo absoluto, permite dizer que o gozo do Outro é impossível,
e abre o caminho a um gozo possível que é o chamado gozo fálico. A diferença está entre o gozo
esperado, o do Outro, e o obtido, o possível que é o fálico. A Lei com seu correlato a castração,
ao pôr limite a um gozo absoluto e dar lugar a um prazer possível, permite o encontro sexual, nos
termos em que o fantasma de cada um se dirige a seu Outro.
Esta imposição é real, porém no nível inconsciente emerge utilizando-se de perfis e imagens do
processo evolutivo do gênero; fazendo-nos encontrar com um homem encolhido e frio em relação
a si mesmo e uma mulher cindida energeticamente, confusa entre poder e feminilidade. E ambos
em busca de alguém ou de algo que preencha esta distorção.
A mulher tem um “novo” perfil, criou uma outra imagem, ela é uma nova mulher, mas seu
referencial interno pouco mudou. Isto levou ao deslocamento da histeria sofrida por ausência de
afeto vivida pelas mulheres dos séculos anteriores, desencadeando nestes tempos modernos, ao
“corpo sarado e siliconado” como objeto, para manter o poder de ser desejada e não amada.
Keleman conceitua a respeito dizendo:
Quando idealizamos a imagem em lugar da experiência corporal, nos descobrimos
vivendo de imagem. Atualmente, grande parte da sociedade se organiza de maneira que se
coloca à parte de sua própria natureza. A natureza tornou-se uma fotografia, uma idéia, um
símbolo, uma imagem no cérebro – e o mesmo aconteceu com o corpo. Vivemos na
imagem do corpo, não no corpo (...). Vivemos em duas esferas: a esfera da experiência
direta e a esfera das imagens representativas. (KELEMAN, 1996, p. 10).
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Michel Foucault (1982) em passagem pela Bahia, disse que os filósofos esperaram por séculos a
chegada de Freud, para anunciar como tudo começou – posicionamento do filósofo ao ler “Totem
e Tabu" na obra de Freud, na tentativa de se acercar ao princípio do poder, referindo-se à idéia de
que a organização social primitiva do homem moderno inicia com o assassinato do Pai.
O filósofo retoma Freud, repete-o no capítulo VII no "Mal estar da civilização" para dar lugar ao
saber sobre uma verdade do sentimento de culpa, por onde o ato se desenvolve na função
precípua do superego. Um ideal ético, para Lacan, é que impele o sujeito a gozar desde o
imperativo categórico kantiano: goza! Segundo o analista, o neurótico responde à ordem: eu
ouço. Nesta primeira vertente é que procederei para chegar a modalização do gozo fálico, em
torno do qual gravita o mecanismo do recalque neurótico, do desmentido perverso e da forclusão
no psicótico.
Freud inaugura esta diferença quando define o princípio do prazer, o princípio de Nirvana, o
desejo e a pulsão. Pois bem, em relação aos diferentes tipos de gozo temos que o da mulher, o da
não-toda, vai ser indicado como o Outro gozo.
Assim, fica evidente que por ser parte do Outro gozo, a mulher efetivamente é especial. Isso fica
marcado em seu corpo, pois ela não consegue disfarçar o seu contentamento.
Mas, quando digo “depois de amar”, refiro-me ao estado de graça que a envolve após o
gozo ou gozos, e que perdura horas e horas e às vezes dias. Fica macia que nem gata aos
pés do dono. Mais que gata, uma pantera doce e íntima. Sua alma fica lisinha, sem
qualquer ruga. A vida não transcorre mais a contrapelo. Desliza. Ela tem vontade de
conversar com as flores, com os pássaros, com o vento. Sobretudo, descobre outro ritmo
em sua carne. É tempo do adágio, de calma e fruição. Nesse período, aliás, o tempo pára.
Em estado de graça ela se desinteressa do calendário. O cotidiano já não a oprime.
(SANT’ANNA, 2003, p. 49).
Nesta passagem, o cronista faz da mulher um misto de selvagem – pantera – com o domado –
gata doméstica. Essa junção representa união de corpo e alma na contemplação do prazer que o
físico pode oferecer ao psíquico (ou vice-versa!). Independentemente dos fatos da realidade, ela
simplesmente está leve.
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O homem marcado pela castração entra no jogo com a mulher relacionado com o gozo fálico.
Para o homem, provido do órgão fálico, o sexo da mulher se apresentará sob a forma de gozo do
corpo. O homem não poderá gozar esse corpo como todo, gozará de uma parte dele, abordará à
mulher como objeto a, objeto causa do desejo.
Descrever o mito moderno freudiano sobre o assassinato do pai, para se obter em seu lugar o
poder gozar de todas as mulheres ou da mulher toda. Um gozo sem limite do pai mítico para
quem não havia regra, era absoluto. A repetição desse ato é o começo da organização social, o
estabelecimento da Lei, e com isso o lugar do pai permaneceria vazio, desejável, mas nunca mais
poderia vir a ser ocupado. Óbvio que o ideal humano tentou erigir uma figura para representar
neste campo o semblante do pai. Mas o que ficou assegurado foi a presença do superego
substituto dessa instância que garante a ameaça de se repetir o ato parricida e prevaricar no
incesto. Foi para consubstanciar o complexo de Édipo dentro da universalidade do ser falante,
que Freud trouxe o mito que o opera pela castração simbólica.
O pai real é ainda quem vigia o ponto desta complexa castração simbólica, como uma dívida da
libra de carne, que não se paga por este gozo e se verificou que o gozo era furado e o objeto falo a
ser alcançado estava perdido. O pai real engendra a marca, a castração é a própria interdição e o
objeto imaginário é negativo, posto que ausente. Mais adiante, Lacan pôde estabelecer como uma
metáfora, sob a égide do NP e daí é que recebe na significação fálica imaginária de um objeto,
que falta o seu valor daquilo que para o Outro é significado como desejo, o falo simbólico
operador da castração. Se a lei do nome do pai substitui o caprichoso gozo sem lei do desejo da
mãe DM, ordenando-o, teremos o êxito do significante fálico ao extrair o gozo do sexual do falo
à fala.
A existência da Lei faz possível o surgimento de um sujeito, é possível que haja sujeito para a
Lei, ali “pára de se escrever”. Se para o inconsciente a representação mulher não existe, e a que
existe é a representação Mãe, o homem se endereçará a essa “coisa” materna que não alcançará e
gozará com o logro.
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Descobrir este caminho quando adulto pode muitas vezes ser doloroso, mas imprescindível para
descobrir o caminho do amor. Como mulher, tornar-se sujeito de seus desejos significa aceitar a
experiência desafiadora e cheia de matizes de descobrir quem nós somos, o que queremos,
mapeando as diversas camadas de nossa vida, respondendo a ela. Por um lado, descobrimos,
através desse processo, o quanto somos limitados pelas contingências e acontecimentos que estão
fora de nosso controle. Assumir um lugar de responsabilidade e comprometimento pelos próprios
desejos, auxilia descobrir dependências, enganos, estagnações e erros ao desejar ser objeto do
desejo.
Seremos sempre Sujeitos e Objetos em mutação constante. A separatividade do gênero e a falta
de respeito pelo que é singular levaram-nos a uma era de individualidade, O Outro – lembrando
que também somos o outro, dos outros – é o objetivo fenomênico que estamos tentando
compreender. Mas antes do objetivo de repensar o perfil da mulher do séc. XXI e de sua
sexualidade enquanto Sujeito do seu desejo e não Objeto do desejo masculino – é importante
dizermos que estamos obcecados pelo poder da beleza, perpetua um lugar de mulheres e homens
presos pelos desejos, sem conhecer o “amor”.
A mídia, através das músicas, do teatro, do cinema e da linguagem, define que o símbolo do
Amor está relacionado ao coração. O coração é um órgão vital, logo o sentimento ligado a ele é
vital para sobrevivência humana, nos conceitos mais avançados da evolução. Segundo Lowen
Sabe-se muito bem que a mente e o corpo influenciam um no outro. O que a pessoa pensa
pode desencadear uma resposta emocional à qual o corpo reage. Neste sentido, os fatores
da personalidade são elementos centrais a quase todas as doenças. Emoções e afetos
inexpressos, por exemplo, terminam prejudicando o corpo e seu sistema fisiológico. Na
pressão sangüínea alta, as principais emoções reprimidas são a raiva, hostilidade, ira.
Pessoas propensas a doenças coronárias além de reprimirem a raiva e a hostilidade,
também tiveram dificuldades em enfrentar seu coração partido pela perda do amor e a
dissolução subseqüente de um elo vital. A sensação de estar com o coração partido implica
em muito sofrimento, perda e angústia que, depois são manifestos nos próximos
comportamentos, em seu corpo e em seu caráter. Para mim, portanto, foi se tornando cada
vez mais claro que a doença cardíaca é um processo que não acontece simplesmente, mas
que em muitas circunstâncias, é influenciado por fatores emocionais e por conflitos
inconscientes. (LOWEN, 1990, p. 10).
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O simbólico em torno do amor gera uma idealização de que o desejo só se concretizará na
presença de sentimentos emotivos. Por isso que “O homem, animal desatento, às vezes não se dá
conta. Em geral, nunca se dá conta. Ou dá-se conta nos primeiros minutos após o ato de amor, e
depois se deixa levar pela trivialidade, deixando-a solitária em sua felicidade clandestina.”
(SANT’ANNA, 2003, p. 50). A mulher ultrapassa o corpo para atingir o clímax, o homem é mais
concreto, então, não consegue perceber a diferença entre amar primeiro para realizar o desejo
depois, e simplesmente desfrutar os prazeres carnais, sem envolvimento emotivo.
Isto nos confronta com a impossibilidade de dizer-escrever a relação sexual entre “O” homem e
“A ” mulher. “A ” como conjunto está apagado. Esta impossibilidade de escrevê-la, o que “não
pára de não se escrever”, nos remete ao mais puro real, esse real que é impossível de ser
plenamente simbolizado, lugar dessa “coisa” que escapa ao discurso.
Lacan vai argumentar que esse não-todo permitiria pensar que há exceção, reconhecendo essa
dificuldade dá uma pequena virada e propõe pensar o todo ou não-todo não em termos de
extensão (finito-infinito) senão em termos de gozo, dizendo que o da mulher, o da não-toda “é da
ordem do infinito”. O não-todo vai propor uma existência indeterminada. O não-todo diz sim à
função fálica. A mulher é não-toda como ser sexuado, o é no seu corpo, o qual define sua posição
em relação ao gozo fálico.
É a união entre ausência e presença fálica o propulsor de experiência única reservada para as
mulheres:
É quando a mulher descerra em si o que tem de visceralmente fêmea, fêmea tranqüila que,
mais que possuída, possui algo que atingiu raramente. As outras mulheres percebem isso e
a invejam. Os machos farejam e se perturbam. É como se estivessem num patamar seguro
a se contemplar. É quase parecido a quando a mulher vive a maternidade. Mas aqui é
ainda diferente, porque na maternidade existe algo concreto se movimentando dentro dela.
Contudo, nessa atmosfera que se segue a uma epifânica sessão de amor, é diverso, porque
ela está acariciando uma imponderável felicidade. (SANT’ANNA, 2003, p. 50).
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O fragmento anterior adjetiva o gozo feminino como epifânico. A emotividade do cronista se
revela e deixa claro que o corpo da mulher lhe proporciona um acontecimento sagrado. Mesmo
que ela tente esconder, seus gestos, seu olhar, a aura que a envolve a denunciam. Uma mulher
bem amada é percebida, admirada, desejada e invejada.
Em Freud encontramos que na constituição da feminilidade, a mulher deve resignar sua zona
reitora, o clitóris, por outra nova, a vagina e que a partir da conformação do órgão sexual
feminino há um incremento do narcisismo. Este incremento do narcisismo faz que se apresente
aparentemente como “toda” desde o insuportável de ser não-toda; identificando-se com um vazio
emerge um corpo que mascara o ser não-toda. Terá, já que é não-toda, um gozo suplementar
“além do falo”, esse Outro gozo que é o feminino. A mulher tem a possibilidade de um duplo
gozo, o fálico e o Outro, do qual tem a experiência e nada pode dizer.
Porém, se este recurso fracassa, ocorre um deslizamento metonímico e se consegue apenas a
metáfora delirante de um retorno no real sem a mediação da lei simbólica. Na assunção do lugar
do pai, assistimos o Dr Schreber ao querer ser o falo que falta à mãe, na impossibilidade da
significação fálica, restou-lhe ser a mulher de Deus. O empuxo a mulher, em Schreber, bem
exemplifica o Outro gozo, que iremos alcançar por outra via, a de Das Ding ou pelo lado do S(A)
– significante da falta no Outro.
Antes é necessário prosseguir um pouco mais como essa metáfora foi locada na lógica
proposicional e veio com o mito freudiano do Pai, transmudar-se no matema do todo e não-todo.
Este mito do Pai abre a vertente de se sustentar uma estrutura para apoiar a leitura do gozo fálico
correlacionado à castração. Apesar de questionado por sua exceção existencial, vale ser lembrado
até mesmo para nos permitir veicular por uma das vias em que melhor se pode chegar mais
didaticamente, quando se comenta as fórmulas lógicas proposicionais da sexuação em relação ao
falo. Estabelecendo de saída na busca do gozo sexual, no não todo, a confirmação universal do
para todos. A exceção que afirma a impossibilidade de se sustentar o registro da relação sexual,
que não há para todos os falantes.
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Na passagem a seguir, o cronista nos aponta a marcante característica masculina para atingir o
gozo.
Estou falando de uma coisa que os homens não experimentam assim. O gozo masculino é
mais pontual e parece se exaurir pouco depois do próprio ato. Só os escolhidos, os de alma
feminina, vez por outra, o sentem prolongar-se dentro de si. Mas, em geral, é diferente.
Terminado o ato, uns até rolam para o lado e dormem como se tivessem tirado um fardo
do ombro, outros acendem o cigarro, vestem suas ansiedades e voltam ao trabalho.
(SANT’ANNA, 2003, p. 51).
O homem se limita ao físico e este limite lhe é dado pelo prazer. O circuito do desejo para o
prazer é muito curto e é por isso que o sujeito é empurrado a repetir, na busca do retorno a um
estado inicial de inércia, o mais além do princípio do prazer. O princípio de realidade ou de
desprazer não sujeita por completo o empuxo ao prazer.
Se chegamos ao gozo fálico pela égide do nome do pai, a outra via para chegarmos a um outro
gozo, de acordo com a metáfora paterna, é pelo lado do DM formulado no encalço dos
fundamentos dos processos primários, na perspectiva de todo o poderoso princípio do prazer em
correlação ao princípio de realidade e o resto no mais de gozar.
Das Ding, figura desbordada da experiência do Nebemensch ou do Outro próximo, permanece
coesa como uma coisa, que não se modifica pela experiência da linguagem, fora linguagem e
para-sexuada. Foi identificada por Lacan, como o gozo do Outro sexo, o gozo feminino
inalcançável, podendo ser observado no semblante do místico e em algumas vivências psicóticas.
Pode ainda ser correlacionada ao insaciável DM, ao querer se reproduzir na ação específica, não
uma descarga de tensão para o prazer e sim a própria reprodução do prazer em recuperar a
experiência de satisfação de se reencontrar A Coisa. O Bem Supremo é Das Ding, a Mãe objeto
do incesto. O gozo real para o qual o sujeito estremece e a voz emudece.
Dois componentes fazem parte do desejo sexual: o fator agressivo que gera energia propulsora
para o movimento e o fator ligado aos sentimentos. Temos que acolher a nossa energia e a dos
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outros. Estes componentes propiciam o desejo de contato que estão ligados ao fluxo erótico e
terno do impulso de possuir, de fundirmo-nos com o parceiro, dos sentimentos agressivos.
A dualidade é parceira da evolução, nela a personalidade está dividida. E é na sua integração que
precisamos investir para conquistar nossa proximidade com a alma. A ternura está associada à
criança interior, enquanto que o impulso agressivo está ligado ao ego do adulto. Na unidade,
ambos servem ao mesmo propósito, a ternura aumenta a excitação e o impulso agressivo procura
descarregá-la, isto leva ao amor.
Se atingíssemos esta compreensão, poderíamos diminuir a quantidade de medicamentos
afrodisíacos e químicos lançados, para dar potência orgástica ao indivíduo.
Segundo Lowen
Quando os aspectos pueris dominam a personalidade, a pessoa pode mostrar-se terna,
sensível, até sensual, mas terá pouco ou nenhum impulso para chegar à descarga e a
satisfação.(...) Para essas pessoas o contato é mais importante do que a descarga. (...) O
relacionamento destes parceiros pode ser amoroso, mas é infantil e não adulto. Por outro
lado, quando os aspectos adultos dominam a personalidade e o comportamento, o impulso
de possuir o parceiro e descarregar é tão forte que deixa pouco espaço para a ternura. O
sexo passa então à condição de desempenho com pouca sensibilidade e sem nenhuma
satisfação real. A ternura é uma função da suavidade. A personalidade narcisista rígida,
que funciona exercitando sua vontade, é fisicamente incapaz de sentir qualquer ternura de
verdade. (LOWEN, 1990, p. 44).
Podemos estar repetitivos no processo evolutivo, quando percebemos quão profundos e
agressivos são os sentimentos que temos e que eles não estão sendo os investimentos atuais nas
relações e nem são a razão da nossa pulsão sexual. Estaríamos trocando o patriarcado pelo
matriarcado.
A função do pai, servir-se dele e depois poder prescindir do seu amor, é o caminho percorrido na
transferência para a travessia da fantasia. Freud descobriu um novo amor, o da transferência, mas
não descobriu uma nova perversão ou outra versão do pai. Quanto ao gozo, sua modalização - ao
que quis chamar do novo conceito - ao nível da transferência nós dissemos que estava colocado
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na experiência imaginária, onde Lacan o aproxima com a libido freudiana, no texto "Posição do
Inconsciente". Este meio de gozar produzido no discurso do inconsciente, em torno do qual faz
girar a estrutura de linguagem, que se organiza nos matemas dos discursos. Passa ao discurso
analítico como objeto a - causa de desejo. Agente que traga, aspira e alia na experiência analítica:
o gozo ao saber e irmão da verdade.
Retomando, em relação ao falo, a mulher o é sem tê-lo e o homem o tem sem sê-lo. Do lado do
homem por fazer parte do conjunto, eles aparecem como equivalentes. Talvez por isto elas dizem
“todos os homens são iguais”. A mulher poderia se relacionar a um com certa permanência, pois
este pode ser representante do Pai simbólico. O homem tomará a mulher uma a uma, uma de cada
vez e como “uma-em-menos” já que do lado da mulher, por não haver universal, ela aparece de
forma contingente.
Sobre o ter ou não um falo, Sant’Anna faz uma abordagem interessante sobre os estudos
freudianos.
Freud andou várias vezes errando sobre as mulheres e, por exemplo, colocou
equivocadamente aquela questão de que a mulher teria inveja do homem por ser este um
animal fálico etc. Convenhamos: inveja têm (e deveriam ter) os homens quando prestam
atenção no fenômeno que acorre com as mulheres, que ao serem amadas atingem o
luminoso êxtase de si mesmas, como se tivessem rompido uma escala de medição trivial
para lá da barreira dos gemidos e amorosos alaridos. (SANT’ANNA, 2003, p. 51).
O segmento explicita, ironicamente, um posicionamento diante dos estudos do psicanalista. De
fato, se é o homem o possuidor do falo, deveria ele atingir o gozo de modo mais repleto. Porém,
se é a mulher que consegue realizá-lo, cabe ao gozo masculino almejar o amor que ela demonstra
atingir.
Entre um homem e uma mulher se faz possível o encontro sexual sob a forma do amor, forma
imaginária de dar significação à não relação sexual. A demanda insatisfeita mostra a discordância
entre o amor e o que este ignora, o desejo. O amor crê na ilusão de unidade, posto que é
narcísico.
79
Mas, se o sujeito não é um, apesar do Eu querer acreditar nisso, não seria possível fazer um com
o outro. O desejo se sustenta da insatisfação cuja causa é o objeto a, objeto perdido. Esta causa
sustenta a imagem de um corpo sexuado, desde cujos sinais demanda e oferece um gozo, o gozo
do Outro, porém só dá conta da sua impossibilidade. Entre um e Outro sexo não há relação
sexual. Há inadequação. Posto em termos de órgão ou de corpo o gozo sexual é fálico. As
posições masculino e feminino são posições de discurso nas quais o macho e a fêmea, por
habitarem a linguagem, identificam-se e se inserem de um ou do outro lado.
Cabe observarmos, com atenção, que o gozo nada tem de natural e muito pouco se expressa no
exercício sexual da cópula, por seu lado fálico, e tem sido aplicado com distinção na
masturbação, denominado o gozo do idiota. Por apego a essa função imaginária não se alcança o
simbólico e nesta ausência observamos que o gozo tem uma memória, não nas marcas e sim em
sua falta, e por aí pensa, calcula e julga ao criar no vazio da castração a instância do inconsciente.
O alicerce da repetição, por onde circula a pulsão e o gozo, dá o semblante no fenômeno da
transferência.
Sem fatalismo, as mulheres avançaram muito, estão exercitando sair de um corpo objeto e uma
mente serviçal para o corpo Sujeito de seus desejos, tornando-se amorosas, intelectuais,
dinâmicas.
Não poderia ser ausente em defender as condições separatistas, que vivemos ao longo destas eras
como mulher, numa condição inferior ao homem. Ao criarmos uma nova imagem feminina,
ligada ao poder, ao desempenho, à agilidade, nos tornando a imagem do gênero masculino. Não
em poder conceitual ou prático, mas sexual. Dissociando sexo e amor, suprindo sentimentos,
tornando a satisfação sexual cada vez mais distante, infantilizada.
Um caráter masoquista – que tem sua imagem estimulada pelo sofrimento, tem-se afirmado em
boa parte das mulheres, adolescentes ou maduras, através de corpos obesos, baseando-se no
conceito de que se não ofereço a este homem a imagem certa, não me resta mais nada que ficar
só, comer muito, e sofrer de solidão ou ficar com quem não amo. Assim, nossas escolhas estão
deslocadas e distorcidas, porque a defesa do caráter, neste caso, está no narcisismo da entrega.
80
É isso: quando a mulher foi amada e bem amada, ela ingressa nessa atmosfera sagrada,
cuja descrição se aproxima daquilo que as santas estáticas descreveram. Uma aura de
mistério as envolve. E isso, por não ser muito trivial, por não ser nada profano, talvez se
assemelhe aos mistérios gozosos de que muitos místicos falaram. (SANT’ANNA, 2003, p.
51).
A partir desse fragmento podemos fazer considerações importantes sobre o epifânico gozo
feminino: o primeiro pode ser homens e mulheres olhando para si mesmos, para seus sentimentos
de rigidez, comportamentos obsoletos, refletindo sobre as emoções que causam tanta dor e
encouraçamento, em nome de uma sobrevivência mais amorosa e saudável; o segundo pode ser o
toque afetivo.
Assim, é pertinente afirmarmos que quando parceiros se permitem tornar-se “cuidadores” um do
outro, levando o relacionamento a um comprometimento, no qual as energias corporais e
psíquicas de ambos estarão envolvidas. Se a energia não pulsar na vibração da liberdade, do
afeto, um desejo de separação irá assumir o controle e isto manterá a neurose estabelecida.
3.7 A mulher e o corpo
Somos marcadamente identificados pela nossa história. Assim, nosso comportamento revela
muito mais sobre nós do que, às vezes, pretendemos demonstrar. Em nossa cultura, o corpo é
algo surpreendente. Ele é um misto de vários elementos, que compreendem desde o ato sexual até
a idealização de uma representação cultural.
Por assim pensarmos, uniremos a essas idéias alguns comentários sobre o texto Despir um corpo
a primeira vez de Affonso Romano de Sant’Anna, com o intuito de relacionar a primeira crônica,
Carta, de Pero Vaz de Caminha, feita no Brasil e outra contemporânea para endossarmos a
significância do corpo como matriz cultural em nossa sociedade.
81
Em nossas observações, através de análise do como se processa a formação cultural no Brasil,
nos é importante o conceito elaborado por Bosi:
Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã. As palavras cultura, culto e colonização
derivam do mesmo verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus e o particípio futuro
é culturus. [...] Não por acaso, sempre que se quer classificar os tipos de colonização,
distinguem-se dois processos: o que se atém ao simples povoamento e o que conduz à
exploração do solo. Colo está em ambos: eu moro; eu cultivo. [...] Como se fossem
verdadeiros universais das sociedades humanas, a produção dos meios de vida e as
relações de poder, a esfera econômica e a esfera política, reproduzem-se e potenciam-se
toda vez que se põe em marcha um ciclo de colonização. (BOSI, 1992, p. 11-12).
Uma vez que fomos colonizados pelo processo de exploração, temos uma identidade cultural que
envolve o cultivar e explorar a terra. Desde o princípio, os portugueses expuseram sua visão
eurocêntrica do mundo. Haja vista o relato de Pero Vaz de Caminha em a Carta que redigiu a D.
Manuel para descrever a nova terra.
Nela, o cronista expõe um espírito observador e uma transparente ideologia mercantilista. Ao
descrever a terra, o autor demonstra o fascínio diante de tanta beleza. Podemos dizer que o
mesmo ocorre com relação ao nativo. É importante frisarmos que o fato de os nativos andarem
nus foi motivo de detalhamento na narrativa. É certo que isso se deve ao fato de o redator ter uma
postura controlada pelos valores da época em torno dos preceitos católicos. Logo, ao descrever o
grupo assim: “A feição deles é de serem pardos, quase avermelhados, de rostos regulares e
narizes bem feitos; andam nus sem nenhuma cobertura; nem se importam de cobrir nenhuma
coisa, nem de mostrar suas vergonhas. E sobre isto são tão inocentes como em mostrar o rosto”.
(CAMINHA, 2002, p.17), o autor nos aponta uma sociedade que, por andar nua, incomoda,
chama atenção e pode mesmo provocar uma descrição erótica13 acerca do homem local .
Se ao representar a atitude do gênero masculino Caminha demonstrou o incômodo por estar
diante de um grupo com atitudes tão distintas das européias, não poupa comentários acerca da
atitude, também inocente, das mulheres. “Ali andavam, entre eles, três ou quatro moças e bem
13
Consideramos que erotismo liga-se ao sensual no que se refere à caracterização de inocência atribuída pelo
narrador à ação do nativo. Mesmo que erotismo tenha uma delimitação de sentido com essa referência.
82
gentis, com cabelos muito pretos, caídos pelas espáduas abaixo; e suas vergonhas tão altas e tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as olharmos muito bem não tínhamos nenhuma
vergonha”. (CAMINHA, 2002, p. 25). É clara a relevância do corpo neste fragmento, pois o autor
demonstra que, junto com aquela atitude sensual, o corpo nu daquelas mulheres não proibia nem
a ele, nem aos demais companheiros de admirarem aqueles corpos. O interesse pelas jovens do
local é tamanho, que o narrador não pode evitar compará-las com as mulheres de sua terra: “Uma
daquelas moças estava toda tinta, [...] era tão bem feita e tão redonda; e sua vergonha, que ela não
tinha, tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, faria vergonha,
por não terem a sua como ela”. (CAMINHA, 2002, p. 26).
A mulher, por isso, lá está, na ambigüidade de seu signo, e podemos perceber o desejo do
narrador entre o admirar e o afastar-se daquele corpo, entre a imobilidade e o movimento, entre o
distanciamento e a proximidade imaginária. Dessa relação sobressai o voyeurismo, sinal de que
os olhos passam a ser substitutos do corpo observado, mas não tocado.
Ao verificarmos que desde os primórdios do encontro entre índios e brancos instaurou-se uma
admiração com relação ao corpo, é bastante lógico afirmarmos que está lá o surgimento do culto
ao corpo como importante matriz cultural na sociedade brasileira. Cabe acrescentarmos que, mais
tarde, com a chegada dos africanos, a formação cultural do Brasil apresentou para a posteridade
um misto de ações ímpar; à nudez do indígena foi acrescida a também significativa sensualidade
do africano. Este fato reforça a idéia de que corpo e atitude formam características particulares do
erotismo no nosso país.
Podemos dizer que nossa identidade cultural é abrangente, rica e
heterogênea, em função dessa união entre três povos tão distintos. Se cada um desses povos tem
sua identidade, não podemos querer que o Brasil tenha apenas uma só cultura. Afinal, se cultura é
o resultado futuro da ação do colonizador, logo o que temos é um resultado de hibridismo
cultural, tão heterogêneo é o quadro no qual estamos inseridos. É assim que Williams nos
endossa:
83
Desse modo, nenhuma análise sociológica de formações pode substituir nem a história
geral nem esses estudos individuais mais específicos. Contudo, continua sendo um tipo de
estudo indispensável, uma vez que há normalmente uma lacuna muito ampla entre, por um
lado, a história geral e sua associação a cada uma das artes, e, por outro lado, os estudos
individuais. É, pois, aprendendo a estudar a natureza e a diversidade das formações
culturais – em estreita ligação com o estudo das formas culturais – que podemos caminhar
na direção de uma compreensão mais adequada dos processos culturais da produção
cultural”. (WILLIAMS, 2000, p. 86).
Entendemos que tal análise é a preocupação dos estudos culturais, porque nenhum relato
completo sobre uma formação pode ser feito sem atentar para as diferenças individuais em seu
interior. Podemos observar que formações dos tipos mais modernos ocorrem tipicamente – como
é o caso do Brasil – em pontos de transição e de intersecção no interior de uma história social
complexa. Porém, os indivíduos que, ao mesmo tempo constroem as formações e por elas são
construídos, têm uma série bastante complexa de posições, interesses e influências diferentes,
alguns dos quais são resolvidos pelas formações temporárias e outros que permanecem como
diferenças internas, como tensões e, muitas vezes, como os fundamentos para as divergências e
rupturas subseqüentes, e para ulteriores tentativas de novas formações. Na verdade, uma posição
ideológica comum demarca o material, em contraposição ao cultural ou, na ênfase mais comum,
o artístico ou o espiritual.
Essa variação de posições do indivíduo reforça a afirmativa de Bosi, pois segundo ele:
Estamos acostumados a falar em cultura brasileira, assim, no singular, como se existisse
uma unidade prévia que aglutinasse todas as manifestações materiais e espirituais do povo
brasileiro. Mas é claro que uma tal unidade ou uniformidade parece não existir em
sociedade alguma e, menos ainda, em uma sociedade de classes. (BOSI, 1992, p. 310).
Dentro dessa relação, podemos considerar que estudar a representação literária como temas
universais ou atemporais é uma forma de estruturar uma relação dialética entre o interno e o
externo, ou, para usarmos a expressão de Williams e ressaltar mais uma semelhança, entre projeto
e formação sócio-histórica, entre arte e sociedade. Uma das contribuições teóricas mais
produtivas da geração foi essa demonstração de que os projetos culturais são estruturados por
conteúdo histórico-social.
84
Assim, as análises de muitos estudiosos são exemplos de como essa maneira de ler amplia a
possibilidade crítica. Esse modo de apresentar a realidade sócio-histórica como estruturada na
forma de produtos culturais estabeleceu um ponto de vista a partir do qual a geração seguinte
pôde se aproximar das peculiaridades do Brasil, como se inclui a forte influência do
desnudamento na produção textual para representar a cultura em nosso país. Sabemos que um
tema definidor da cultura brasileira se desenvolve em torno da dualidade nacional/estrangeiro,
onde o nacional é sempre, para usar outra fórmula do crítico, por subtração.
Trata-se de uma visão da realidade social como formada e formadora, ela mesma, das
articulações dos produtos culturais. Com essa constatação se comprova que a beleza é deste
mundo, que não está necessariamente, como muitos críticos desejam, no inefável e no sublime,
no âmbito da alta elaboração da tradição literária. “Vemos, assim, a amplitude que um estudo de
cultura feito da ótica materialista – a ótica definidora dos estudos culturais como disciplina –
pode alcançar.” (CEVASCO, 2003, p. 173-187).
Após o texto de Pero Vaz de Caminha, gerações se passaram, e, cinco séculos depois dessa
representação que associa sensualidade, nu e ação, podemos verificar que o corpo ainda é fonte
de influência no imaginário do escritor. Vivemos, na contemporaneidade dificuldade de tratarmos
com a realidade. Por isso a proliferação das imagens relacionada com a busca do eu por uma
identidade cultural. O indivíduo busca, com essa representação uma proteção, algo que pareça
real e que impeça sua dispersão: o lar.
Nada melhor que a valorização de matrizes culturais para preencher o vazio. Por isso a
representação do real passou por estágios ao longo da história e chegou à produção
contemporânea à condição de simulação. A preocupação dos artistas, aqui, não é de representar
uma realidade, mas sim de construir imagens que simulem esta realidade. Assim, não
conseguimos, através dos artistas, ter um real, mas sim várias imagens simuladas, que procuram
estabelecer uma interação com o real. Então, podemos dizer que a nossa cultura é a cultura do
simulacro; as imagens já estão incorporadas no nosso universo e constituem de uma forma ou de
outra, a nossa realidade.
85
Dentro desse contexto, a idealização do corpo preenche o vazio para a recuperação de identidade
do homem contemporâneo. A simulação da imagem do corpo torna a cena completa, conforme
Deleuze nos indica:
Dê-me portanto um corpo: esta é a fórmula da reversão filosófica. O corpo não é mais o
obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que deve superar para conseguir
pensar. É, ao contrário, aquilo em que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o
impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, porém, obstinado, teimoso, ele força a
pensar o que escapa ao pensamento, a vida. [...] As categorias da vida são precisamente as
atitudes do corpo, suas posturas. “Não sabemos sequer o que o corpo pode” [...] O corpo
nunca está no presente, ele contém o antes e o depois, o cansaço, a espera.” (DELEUZE,
2005, p. 227).
Podemos acrescentar que essa valorização corporal somente é possível uma vez que a nossa
atitude cotidiana é o que põe o antes e o depois no corpo, o tempo no corpo, o corpo como
revelador do termo. A atitude do corpo põe o pensamento em relação com o tempo como se esse
fosse infinitamente mais longínquo que o mundo exterior.
Verificamos permanecer na criação e no imaginário dos cronistas o deslumbramento que a nudez
provoca. Muitos são os relatos explicitando ou sugerindo as atitudes e as impressões acerca do
corpo. Isso torna o texto um instrumento indicador das relações implicadas na sensualidade
corporal, ao relacionar o momento que envolve o corpo, a ação e o erotismo. É dentro desse
quadro que podemos verificar a representação do imaginário na crônica Despir um corpo a
primeira vez de Affonso Romano de Sant’Anna. Nela há uma relação do poder da imagem
sensual que o desnudamento e o toque promovem no imaginário do cronista.
Despir um corpo pela primeira vez é conhecer pela primeira vez uma cidade. E os corpos
das cidades têm portas para abrir, jardins de repousar, torres e altitudes que excitam a
visitação. Algumas cidades sitiadas caem ao som de trombetas, outras se entregam porque
não mais suportam a sede e fome de amar. As cidades têm limites e resistência. E, como o
corpo, querem alguém que as habite com intimidade solar (SANT’ANNA, 2003, p. 1489).
Ao acrescentarmos que a contemporaneidade vive uma valorização do culto ao corpo e por isso
mesmo uma revalorização do corpo humano. O contato amoroso reside no modo de tocar – e em
86
um clima de acolhida simpática – mais nada. Segundo Gaiarsa, “a nudez vai se propondo cada
vez mais inteira, nas revistas de mulheres nuas com fio dental, o topless e mulheres cada vez mais
próximas da nudez total nos anúncios e nos programas de TV”. ( GAIARSA, 2001, p. 137-140).
E isso verificamos representado no texto de Sant’Anna:
Um corpo é surpresa sempre. E o que se vê nas praias, nessa pública ostentação, nesse
exercício coletivo de nudez total negaceada, em nada tira a eufórica contenção do ato,
quando os dedos vão desatando botões e beijos e rompendo as presilhas das carícias.
Despir um corpo a primeira vez não é coisa para amador. Só se o amador for amador da
arte de amar. Porque o corpo do outro não pode ter a sensação de perda, mas a certeza de
que algo nele somou, que ele é um objeto luminoso que a outros deve iluminar.
(SANT’ANNA, 2003, p. 150).
Cabe acrescentarmos que o considerado como gestus em geral é o vínculo ou o enlace das
atitudes entre si, a coordenação de umas com as outras, mas isso só na medida em que não
depende de uma história prévia, de uma intriga preexistente ou de uma imagem-ação. Pelo
contrário, o gestus é o desenvolvimento das atitudes nelas próprias, e, nessa qualidade, efetua
uma teatralização direta dos corpos, freqüentemente bem discreta, já que se faz
independentemente de qualquer papel. Se for verdade que literatura se constitui sobre a
representação do sócio-cultural, abre espaço para essa postura. Assim encontra também espaço
para a presença da dupla postura-voyeurismo como um novo elemento que funciona melhor na
medida em que as posturas são inocentes. (DELEUZE: 2005, p. 233-7) Essa relação de idéias
está presente na seguinte passagem da crônica:
Despir um corpo a primeira vez, para usar uma imagem conhecida, é mais que ir à Europa.
Pode ser, ao contrário, desembarcar pela primeira vez na América sobre a nudez do
desconhecido. É descobrir na pele alheia mais que a pele dele, a nossa pele índia. E volto
àquela imagem: despir um corpo a primeira vez é tão marcante quanto a vez primeira que
um mineiro viu o mar. (SANT’ANNA, 2003, p. 149-150).
Ao associar o despir do corpo com a forte imagem do homem chegando à América, a nudez
máxima do desconhecido, Sant’Anna nos remete à idéia de que podemos associar várias imagens
na postura de voyeur que somos, ou nos tornamos, diante da apresentação das cenas.
87
Após retomar a imagem do despir o corpo várias vezes numa construção de repetição de imagem
para reforçar a idéia no imaginário do leitor, o cronista a associa a um forte lirismo com que a
temática é desenvolvida, conforme no fragmento abaixo:
Um corpo a primeira vez, no entanto, é frágil e pode trincar em alguma parte. E os menos
resistentes se partem quando aquele que os toca, os toca apenas com a cobiça e nunca com
a generosa mansidão de quem veio pela primeira vez, e sempre, para amar.
(SANT’ANNA, 2003, p. 150).
Consideramos esse excerto o mais sublime de todo o texto. Ele trata o corpo realmente como um
forte componente na criação poética, e o poeta, por sua vez, não foge das idéias pretendidas;
conseguimos captar o deslumbramento dele para representar o imaginário, através da seleção e
combinação de palavras. Então, o trabalho do artista é significante para nos fazer querer o contato
com esse referente cultural que nos é tão peculiar. Adicionamos, ainda, ser a visão erótica nessa
crônica um misto de ação, imagem, idealização e amor como bem apresentou o cronista-poeta.
Verificamos que entender o Brasil, portanto, é a grande meta que todos enfrentamos, e a
literatura, sintomaticamente, reflete-o e revela-o, como podemos notar nos fragmentos de textos
comentados. Construir textos requer um afinado diapasão, pois este deve estar, ao mesmo tempo,
sintonizado com as grandes orquestras de fora, para manter-se no compasso mundial, e não
perder a tonalidade da música local, que é aquela que nós, brasileiros, conhecemos melhor e
queremos ouvir e cantar. E cantar na nossa língua, uma música nossa e sem dublagens.
Deste modo, ao focalizarmos a relação erotismo e poder na ficção brasileira, preocupou-nos,
desde o início, observar qual a intenção que subjazia a esses textos, pois esta era a forma de
averiguar o que nossos escritores estão revelando através de sua ficção. Esse desejo de revelar,
de fotografar, é característica de um realismo de qualquer época, filiado à necessidade de buscar a
verdade para nela espelhar o estado em que se encontra determinado grupo, sociedade ou cultura.
Essa atitude remete ao exame minucioso das relações homem versus mulher, fazendo do texto
literário o espaço (talvez o único) onde se registram mais fielmente as inquietações de ambos na
cerrada demolição das fórmulas esclerosadas, na procura de formas novas, francas e saudáveis
88
que substituíram as viciadas. Assim, parece mais lógico que a literatura continue a concentrar-se
nos problemas sociais e particulares que afligem o brasileiro, de modo a devolver-lhe a imagem
que ficou retida num espelho quebrado e ainda perdido, para que nos ajude a ver-nos como
fomos, somos e, verdadeiramente, gostaríamos de ser. Por tudo isso é que vemos na ficção
contemporânea o ponto de chegada e partida para um caminho menos dissimulado, onde
erotismo e poder possam produzir o que têm de melhor, deixando, desse modo, para a literatura
de memória o quadro nefando das perversões. (FRANCONI, 1997).
89
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exame de alguns aspectos sobre a o papel da mulher na contemporaneidade, notamos
que não há uma definição pré-estabelecida que dê conta de suas características, uma vez que ela
expressa um conjunto heterônimo de fatores.
Ao verificarmos essa heterogeneidade, notamos que as funções múltiplas da mulher tornam-se
paradoxais e fazem dela um misto de independência e subserviência. Dessa forma, os valores
estão muito misturados e ainda arraigados no machismo.
Percebemos que entre esses valores está a incerteza de como é o comportamento diante de
múltiplas identidades. Após algumas considerações acerca do discurso que a sociedade imprime
sobre a mulher, tornou-se imprescindível a análise de alguns pontos das crônicas sobre a mulher,
de Affonso Romano de Sant’Anna para amarrarmos as pontas das idéias desenvolvidas com
teorias já elaboradas sobre a mulher.
Endossamos a importância sobre a representação literária para interagir junto ao leitor as
contradições que ainda envolvem a mulher. Podemos refinar as arestas das múltiplas funções
sociais da mulher, afirmando que somos nós o centro dos modelos culturais. O que confirma o
nosso perfil de seres movidos por influência de nossos valores culturais formados ao longo do
tempo.
Desse modo, não podemos deixar de querer que a mulher encontre os caminhos para ser inteira
dentro das representações sociais. Somente assim a mulher poderá afirmar que atingiu
plenamente a liberdade: a do espaço público e a do espaço privado.
90
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ANEXOS
Cordel da mulher gaieira e do seu marido machão
Affonso Romano de Sant’Anna
Porque gado a gente mata,
Tange, ferra, engorda e mata,
Mas com gente é diferente.
Vandré e Theo
Há notícias que se lêem e parecem ficção. Achando que sua mulher o traía há um tempão, seu
José Salustiano, plantador lá do sertão, depois de muito pensar, tomou uma decisão. Ia ensinar à
mulher uma terrível lição, pra mostrar que cabra macho não suporta traição. Mandou preparar um
ferro, vermelho como um tição, com quatro letras gravadas na ponta do vermelhão. Na ponta do
ferro havia quatro letras flamejando, letras de fogo e de fúria, queimando na escuridão. Só de ver
aquelas letras – o MGSM – o rosto de dona Lúcia se retorce todo e treme, muito chora e toda
geme e pede, com horror, perdão.
Mas José Salustiano não lhe prestou atenção. Botou-lhe a faca no ventre, ameaçando matá-la,
caso gritasse pros lados e rogasse salvação. Seu José Salustiano havia tudo pensado. Mandou pra
longe seus filhos, passou na porta cadeado. Depois, com muito cuidado, amarrou sua mulher na
sua cama de casado. Pegou o ferro queimado, marcou-lhe as letras na testa, marcou-lhe do rosto
os lados, enquanto Lúcia ia urrando com aquelas letras de dor: Mulher Gaieira Só Matando.
Como se vê, Salustiano, essa frase que inventou é verso de pé quebrado. Não cabe bem no cordel,
não cabe no coração, não cabe em nenhum papel, quanto mais no rosto sério da mulher com
quem casou. Isso é coisa que se faça, meu caro Salustiano, sair marcando na cama a mulher com
quem se casou, como se fosse uma vaca, quando no fundo ela era, apenas, Maria Lúcia, mulher
de cabra danado, mulher de trabalhador.
Meu caro Salustiano, você não só ferrou ela, você nessa se ferrou. Arregale seus ouvidos pras
coisas que eu vou dizer. Eu não quero te espantar e nem menos convencer, quero apenas
conversar, sem firulas de doutor, como um homem só conversa diante do próprio horror. Eu sei
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que é muito difícil, olhando a televisão, com tanta notícia fresca de violência de machão, fica
difícil, eu dizia, governar sua emoção. Mas as coisas, seu José, já vão noutra direção. Mulher a
gente não mata e nem dá bofetão, embora haja até ricos que caiam na tentação.
O que vai ser de Maria depois dessa danação? Ela foi ao delegado e fez a reclamação. O médico
horrorizado, diz que é tão funda a inscrição, tão funda que até parece com cratera de vulcão. E
acrescentou, todo pasmo, que não há cura possível nem se pode sobre o rosto colocar um
remendão. E o pior é que Maria chora de noite e de dia, chora de dor no rosto e chora de
humilhação. A vizinhança a incomoda, sua vida virou inferno, ela quer mudar pra longe, botar a
cara no mundo, refazer nova habitação, embora seja difícil esquecer que seu marido marcou sua
alma pra sempre e não há pele que possa refazer seu coração.
Maria Lúcia, eu lhe digo: vai ser longa a expiação. Mas eu penso que as mulheres, que viram seu
rosto inchado, exposto em fogo e paixão, nessa hora humilhadas, todas se deram a mão. Que seu
rosto, minha cara, não é rosto nordestino sem história e tradição. A marca que você mostra é a
violência de hoje e a violência de antão. Lembra aquelas mulheres, a quem lhes cortam o clitóris,
quando nascem no Sudão. Lembra as mulheres chinesas, que no lugar de sapatos, usavam fôrmas
nos pés, atadas por duros laços, pra que seus pés não crescessem e pra que andassem sempre atrás
dos homens dez passos.
Mas você, Maria Lúcia, não pode ficar parada. Tem que seguir na vida, mesmo estigmatizada. Ao
se casar com José, tendo o nome de Maria, você achou sua cruz. Mas quem sabe se essas letras na
sua cara deixadas, são o princípio da fala, que você tinha guardada e que agora à luz do dia pode
ser anunciada? Mas se é fraca a sua voz e não está preparada, as mulheres do país e os homens
que perceberam que esse tipo de violência está mais que ultrapassado, talvez a tomem por
símbolo e no seu rosto se veja, em vez de mulher vencida, uma mulher cuja vida foi de novo
inaugurada.
Maria Lúcia, eu lhe digo: em vez da noite e opressão, o vermelho no seu rosto tem a força da
alvorada e pode ser o sinal da libertação.
99
Mônica, aquela que vai morrer
Affonso Romano de Sant’Anna
Quando Mônica saiu de casa naquele dia não sabia que ia morrer, jogada de cima de um prédio
por um anormal que, paradoxalmente, era modelo fotográfico. O assassino, sim, este sabia que
mais cedo ou mais tarde, se possível naquela noite, chegaria ao extremo de si mesmo. O assassino
sabe. A vítima, como uma gazela solta na floresta, mal suspeita. Se, mesmo para o condenado à
morte, a morte é uma hipótese, para uma adolescente condenada à vida a morte é um problema
alheio.
Por isso, Mônica não sabe que vai morrer desesperada, acuada, livrando-se de socos e facadas.
Também seus pais não sabem que poucas horas a separam da morte. Quando há anos trocavam
suas fraldas ou penteavam seus cabelos, não viam nenhum sintoma. Por isso ela ia para o colégio
de carro ou de ônibus e nenhuma professora olhando seu rosto viu a inscrição de que aquela era
uma menina que ia ser assassinada. Acho que foi sempre assim. Mesmo em Auschwitz, embora
já com estigma em suas roupas e corpos, os judeus ainda achavam que a mortes seria adiada.
Portanto, era normal que seus colegas, que iam com ela à praia e com ela mergulhavam, bebiam
refrigerante, comiam sanduíche natural ou se encontravam na pizzaria, também não
desconfiassem que um dia ela subiria num certo edifício e de lá seria jogada para as manchetes
dos jornais. Se alguém lhe fez uma tatuagem no corpo, no ombro ou na bundinha, não podia
supor que estava já trazendo uma flor ao seu funeral ou que estava marcando um corpo,
antecipando-se a marcas mais fatais.
O que já experimentou da vida essa menina que vai ser assassinada hoje à noite, sem que mesmo
os vizinhos do criminoso queiram ver o sangue empoçado no playground? O que conhece ela já
da covardia, medo e traição? Morrerá sem ter conhecido o mais denso e agudo prazer da carne,
que só a maturidade traz, quando o amor é ao mesmo tempo lã e mel?
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Como proteger quem vai ser assassinado esta noite se estamos tão desatentos contando juros e
mal sentindo que milhares de células nossas acabam de morrer nesta fração de segundo? Os que
assinaram um pacto com a vida continuam achando que a morte é um filme cuja exibição só
interessa a quem não quer viver. Mas a morte vem às ruas, tira uma adolescente de casa, a faz
subir num elevador e, de repente, a serve sem remorsos às notícias nos jornais de amanhã.
Não é só aqui. Também na China as mulheres caíam de cima das casas fugindo da violência do
casamento e dos amantes intempestivos. Foi isso que levou Mao Tsé-tung em 1917 a escrever
vários artigos denunciando a opressão masculina. Não é só na China. Há 25 anos, em Belo
Horizonte, começaram a cair mulheres de cima de todos os prédios. Eu, jovem poeta, não entendo
aquela tempestade urbana de sangue, ia escrevendo:
Mulheres estão caindo
dos prédios mais elevados
com reincidência anormal.
Vocação rara e frustrada
para vôo em vertical.
Despencadas, quase nuas
fruto verde, intemporal.
Pois não bastavam as maneiras
com que caíam na gente:
com amor, unhas e dentes,
caem agora em sangue quente.
As ruas estão vermelhas,
Com as que mergulhando alto,
Enormes sobre as marquises
E espedaçam-se no asfalto.
Já me falaram de três,
que eram puras ou que tal:
uma com os seios mordidos
e uma outra de avental.
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A terceira exclamaram: virgem!
Quem não falou, pensou mal,
pois a menina ainda estava na roupa colegial.
Quero sair e não acho,
um guarda-chuva de aço,
que me proteja do sangue,
que pinga por onde passo.
Mulheres com a carne fresca
caindo sobre nós,
enquanto lá em cima espreita
e confere a morte o algoz.
Mulheres sem pára-quedas
fizeram o vôo inaugural,
mas tanto pesavam as penas,
que o salto se fez mortal.
Pelo visto os poemas não diminuem os assassinatos. Sobretudo os maus poemas, como os meus.
De Aída Curi, nos anos 50, Cláudia Lessing, nos anos 70, ou Mônica, hoje, a situação não
mudou. Acumulamos versos e tragédias nos livros e jornais, e neste momento mesmo, aqui ou
Cingapura, uma adolescente ou uma mulher casada começa a subir um prédio pensando que vai a
uma festa. Desatentos, não a reconhecemos. Por nós também na rua passa o assassino. Ele tem
olhos tão fraternais! Mas a sua face verdadeira só veremos amanhã, quando, estupefatos,
abrirmos os jornais.
102
O que querem as mulheres?
Affonso Romano de Sant’Anna
Freud fez uma famosa indagação, que até hoje está lhe custando caro. Disse que depois de ter
estudado tudo que podia sobre a mente humana, havia uma pergunta que não conseguia
responder: “Afinal, o que querem as mulheres?”
Não só as feministas, mas até os homens sensatos acharam que o companheiro estava
exagerando. E recentemente duas variantes de resposta a Freud surgiram. Uma foi o livro da
americana Erica Jong, O que querem as mulheres (Ed. Record), e agora mais recentemente esse
filme com o Mel Gibson, What women want?
Mas existe uma outra resposta que me parece a melhor para a questão plantada por Freud. Tratase de uma lenda que, a rigor, antecede ao lendário Freud, e fico pensando que se Freud a
conhecesse talvez se poupasse de se expor daquela maneira.
Diz a estória, que o Artur – aquele da Távola Redonda – quando era jovem, certo dia cometeu
uma infração: foi caçar na floresta de outro rei e acabou sendo preso e levado à presença do outro
monarca para ser punido.
Deveria ser condenado à morte. No entanto, o rei que o deteve resolveu dar-lhe uma chance.
Pouparia sua vida se conseguisse, dentro de um ano, responder à pergunta pré/pós-freudiana: “O
que querem as mulheres?”
Agradecido pela deferência, Artur saiu à cata de resposta. Perguntava daqui, perguntava dali, mas
nem os religiosos, nem os médicos, nem os inveterados conquistadores de corações femininos
conseguiam lhe responder com clareza. Estava já o prazo se exaurindo, quando lhe informaram
que havia uma bruxa que sabia a resposta. Foi procurá-la. Era uma bruxa como têm que ser as
bruxas nas lendas: velha, desdentada, falando impropérios. Artur, no entanto, fez-lhe a pergunta.
Ela lhe disse que lhe daria a resposta caso ela pudesse se casar com um cavaleiro Gawain, que era
o mais belo e valoroso dos companheiros de Artur. Este, perplexo, foi ao amigo e lhe expôs a
103
patética situação. Amigo que é amigo, sobretudo nas lendas, não vacila. Faria tudo para salvar o
companheiro de peripécias, até mesmo casar com uma bruxa.
Acertada a condição, então, a bruxa respondeu à pergunta fatal, dizendo: “Sabe o que realmente
quer uma mulher? Ela quer ser a senhora de sua própria vida!” Artur e os demais, inclusive o rei
que o havia condenado, ficaram todos atônitos, se dizendo, como é que nós não pensamos nisto
antes, a resposta é simples e genial. E Artur foi então perdoado.
Mas a estória continua, o casamento tinha que se realizar, pois Gawain não era de deixar mesmo
uma bruxa na mão. No dia das bodas, foi um vexame. A bruxa emporcalhava a mesa, ria com
seus dentes faltosos, enfim, um espavento. Mas a festa foi continuando, foi-se aproximando a
hora da chamada união carnal no branco leito nupcial. Mas aí, aconteceu algo surpreendente.
Estava Gawain já preparado para o cadafalso erótico, quando surgiu-lhe uma deslumbrante
donzela à sua frente. E antes que sua perplexidade continuasse, a donzela disse que era a bruxa,
ou melhor, uma das faces da bruxa. Estava mostrando a sua outra face, porque ele a tinha aceito
como era; que de dia era a bruxa façonhenta, de noite, aquela ninfa loira. Mas antes que
consumassem a chamada união carnal, Gawain poderia decidir com qual das duas queria viver o
resto da vida. Ou a feia que comprometeria sua imagem pública ou a perfeita, que ele, só ele,
conhecia à noite.
Gawain então disse que deixava à escolha dela, o que ela queria realmente ser e parecer. A noiva
neste momento metamorfoseou-se para sempre na bela mulher do cavaleiro que o acompanharia
noite e dia, pois ele havia respeitado nela o que ela realmente era.
Essa estória me foi dada como estando no livro Feminilidade perdida e reconquistada, de Robert
A. Johnson, livro que não encontrei. Perguntei a Antônio Furtado, que é o maior especialista
brasileiro em Rei Artur, e ele disse que conhecia essa lenda.
104
Não tem importância. É a melhor resposta que encontrei à inquietação de Freud. Mas agora
gostaria de cutucar a onça com vara curta e indagar pelo outro lado da questão: Afinal, o querem
os homens?
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A Mulher Madura
Affonso Romano de Sant’Anna (15/09/85)
O rosto da mulher madura entrou na moldura dos meus olhos.
De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras
vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma
joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem
qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.
Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam
pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai
florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água
para os lados. Enfim, desdobra.
A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de
seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula
ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a
distância entre seu corpo e o mundo.
A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é
um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.
A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos,
nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa
com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.
A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em
opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela
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dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um
aprendizado da macia paina de setembro e abril.
O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua
superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece
seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.
Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm
que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem
com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma
marrom tristeza.
Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua
aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos
confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.
Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de
juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é
preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.
A mulher madura está pronta para algo definitivo.
Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o
complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de
que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece
profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram
de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.
A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se
banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu
marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos
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gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul
Newman, quando nos seus filmes.
Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperála madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.
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O vestibular da vida
Affonso Romano de Sant’Anna
Um enduro sem moto, um rali sem carro, uma maratona onde, em vez de atletas, correm
paraplégicos,cegos,presidiários, grávidas e doentes em suas macas, esta é a imagem que nos
deixa este vestibular realizado esta semana,mobilizando centenas de milhares de jovens em todo
o país.
Várias fotos mostram jovens correndo desabalados dentro de seus jeans justos e camisetas
palavrosas em direção ao portão da universidade, como se fossem dar um salto tríplice. Como se
fossem dar um salto sem vara. Como se fossem dar um salto na vida. Ao lado, aparecem parentes
incentivando o corredor-saltador, aparecem colegas gritando em torcida. Correi, jovens, correi,
que estreita é a porta que vos conduzirá à salvação! E ali está, como São Pedro, um porteiro ou
guarda, que vai bater a porta na cara do retardatário, que chorará, implorará, arrancará os cabelos
num ranger de dentes, enquanto, saltitantes, os mais espertos pulam (ocultamente) um muro e
penetram o paraíso (ou inferno da múltipla escolha).
A Telerj declarou que teve que acordar mais de 10 mil jovens pelo despertador telefônico.
Carlinhos Gordo, o maior ladrão de carros do país, estava entre os 39 presidiários que, no Rio,
fizeram, mesmo na cadeia, o exame. Mais de trinta deficientes visuais tiveram que tatear as 51
folhas em braile.Maria Alice Nunes teve um filho e saiu da maternidade com o recém-nascido no
colo para enfrentar o unificado. Um índio cego – o guarani José Oado, 24 anos – disputa uma
vaga em História (ou na história?). Andréa Paula Machado, 17anos, teve que interromper o
exame escrito várias vezes, para o prazer oral do bebê que, entre uma mamada e outra, voltava ao
colo da avó. Dois fiscais que transportavam as provas no caminho de Petrópolis morreram num
acidente.Um estudante com rubéola fez, num posto médico, prova ao lado de outro com catapora.
Todas as idades ali estavam representadas: Márcia Cristina da Silva, 13 anos, vejam só! Já
começou a treinar para o vestibular de Medicina em 88, e neste só achou difícil a prova de
literatura. Mas lá estava também Edgar Caravalho, 73 anos, advogado, trocando as delícias da
aposentadoria pela idéia de se tornar médico e ainda ser útil aos outros. Por isso, discordo da
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jovem que o interpelou acusando-o de estar tirando a vaga de outro. Socialmente é melhor um
velho de 73 anos que qualquer dos jovens que faltaram à prova porque dormiam, que não foram
classificados porque achavam que vestibular era loto e vivem a ociosidade daninha à custa de
seus pais.
Mas, de todos os casos, impressiona mais o de Maria Regina Gonçalves, uma enfermeira de 38
anos. Vejam que história mirabolante. Lá vai a nossa Maria Regina. Mas não vai simplesmente.
Vai grávida. Vai grávida, mas não é uma grávida amparada pelo seu marido, mas uma grávida
solteira, enfrentando o mundo com, sua barriga e coragem. No entanto, hora e meia antes do
exame, em São Cristóvão, é assaltada por três marmanjos covardes,que tomam dela os
documentos, 200 mil cruzeiros,e o pior: lhe dão uma porção de safanões, num exercício de
sadismo matinal.
Maria Regina poderia depois disto voltar chorando para casa e ficar lamuriando o resto da vida.
Fez o contrário: foi em frente, embora, ao chegar no local soubesse que uma outra colega,
também assaltada, desistira do exame.Maria Regina deu um jeito, arranjou até cópia xerox de sua
carteira de identidade, fez a prova, comprometendo-se a mostrar os outros documentos mais
tarde.
Mas, de noite, teve uma hemorragia. Pena que os ladrões não pudessem ver a cena, pois ficariam
mais felizes. O médico lhe ordena “repouso absoluto”. Ela ali “repousando”, mas agoniada,
porque a burocracia lhe exigia comprovações de documentos para validar os exames. Como
desgraça pouca é bobagem, quatro dias depois morre o pai de seu namorado, daí uns dias ela
aborta e teve que ficar mesmo internada.
E vede agora, ó filhinhos e filhinhas de papai, que esbanjais vossos corpinhos sem destino nas
praias da irresponsabilidade! Maria Regina foi a primeira colocada (nota 96) no concurso para
Enfermagem e Sanitarismo. Tirou primeiro lugar e seu nome não apareceu na lista. Ainda vai ter
que provar que existe. É claro que vai ganhar. Espero.
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Uma amiga me falou...
Affonso Romano de Sant’Anna
Uma amiga me falou, aliás, várias amigas me falaram que não estão achando homem que
merecem. E as reclamações são as mais variadas. Dizem, e essa é a queixa mais repetida, que os
homens não querem nenhuma relação permanente. Querem uma coisa ambígua, querem ficar e
não ficar, como se estivessem brincando de Hamlet, com aquela coisa de “ser ou não ser”. Elas
acabam aceitando ou entrando nesse jogo, mas daí se cansam, desgastadas, porque gostariam
muito de uma relação fixa, que preenchesse não só as noites de sábado, as tardes de domingo,
mas que, durante a semana, fosse uma possibilidade de ir junto a um cinema, a um bar, a um
concerto. Aliás, queriam mais do que isso. Algo como um companheirismo amoroso. Mas que
isso está dificílimo de se conseguir.
Claro, queriam também ter filhos, aquelas que não os têm. E as que têm já algum filho do
primeiro casamento gostariam que seus amantes tivessem uma relação melhor com o menino ou a
menina. Mas os homens, dizem minhas amigas, vêm e somem. Parecem caixeiros viajantes do
amor e do orgasmo. Estão sempre de passagem como se estivessem indo vender sua mercadoria
noutro dia em outro arrebalde.
Nessas conversas a gente acaba se referindo às mulheres que estão casadas. Algumas dessas
amigas que já foram casadas, por outro lado, não querem voltar àquele tipo do seu primeiro
casamento onde tudo deu errado em poucos anos. Casaram-se com a melhor das boas intenções
com o colega da faculdade ou de escritório e, diferentemente de suas mães, não conseguiram
segurar a relação. Nem os homens, aliás, pareciam interessados em segurá-las, muitos já estavam
em outra e outras.
O que está acontecendo com os homens? Pioraram nos últimos tempos?
Minhas amigas dizem que não é bem assim. Algumas, orgulhosamente, dizem que as mulheres é
que melhoraram, e aí desbalançou. Alegam que não querem mais a vida de suas mães, serem
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apenas “rainha do lar”. Querem uma profissão, querem uma vida erótica participante e liberdade
de movimentos.
Seria exigir demais? E dizem ainda minhas amigas que os homens em geral têm medo da
concorrência da mulher e que se sentem inseguros quando elas começam a realizar suas
potencialidades.
Uma delas me disse: “O problema é que o homem e a mulher são educados diferentemente.
Desde pequeno dizem ao homem que ele tem que crescer, ser forte, macho, arranjar emprego ou
profissão para sustentar sua família. O principal objetivo na vida dele, conforme a sociedade lhe
diz, é ser um profissional e um cidadão. Com isso ele se prepara para uma vida exterior, para
conquistar o mundo. Ninguém o ajuda a lidar com sua sentimentalidade. Com isso, o casamento e
a mulher surgem no seu caminho como uma paisagem, um cenário onde ele é o ator principal.
Nenhum homem é educado para o encontro com a mulher, mas para o encontro com as mulheres.
“Já as mulheres, apesar da descoberta do anticoncepcional, apesar de as garotinhas hoje em dia
saírem de casa para os bares quase à meia-noite, apesar de borboletearem ‘ficando’ com um ou
outro, as mulheres são ainda preparadas para a idéia de que vão constituir família e que
encontrarão no afeto e na maternidade a sua grande realização.”
Realmente existe alguma verdade nisso. Alguma.
Mas uma amiga me diz: - Acho que no fundo somos diferentes não apenas quanto à educação.
Acho que tem alguma diferença biológica qualquer que faz com que nossas cabeças sejam outras.
Realmente há anos surgiu entre as feministas de última geração a idéia de que homens e mulheres
são “realmente” diferentes. Chegaram à conclusão que era uma utopia exigir “igualdade” apenas
do ponto de vista social, por exemplo, o mesmo tratamento salarial e de oportunidades e mais
espaço para si dentro de suas casas. Mas concluíram que os machos e as fêmeas têm alguma coisa
de “diferente”, o que não implica a superioridade de um sobre o outro, senão na aceitação que
têm expectativas bio-psicológicas diversas.
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Uma amiga fez uma observação inteligentíssima: - As pessoas esperam do casamento o que não
conseguem sequer de sua profissão ou das relações com outras pessoas, ou seja, uma realização
plena. E isso é impossível, arremata ela.
Outras amigas preferem localizar a questão não nos homens, mas na estrutura mesmo do
casamento. O deslocamento da questão parece, a princípio, correto, mas acabam concordando
que o casamento é aquilo que duas pessoas decidem que o casamento vai ser. Quer dizer: existe
uma fórmula geral, mas cada casal deve acomodá-la ao seu estilo.
E os homens, o que pensam os homens?
Confesso que tenho dificuldade em saber. Homem não conversa sobre seus sentimentos. Só nas
novelas de televisão ou nos consultórios dos analistas. Ou, então, quando se apaixona por outra
mulher fora do casamento e, não agüentando mais a divisão, se socorre de um amigo íntimo.
Claro, há exceções.Mas quando surge um homem assim diz-se que ele tem uma “alma feminina”.
O fato é que as mulheres estão inquietas e insatisfeitas.
Converse com uma amiga mais próxima para ver.
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Mistérios gozosos
Affonso Romano de Sant’Anna
Uma coisa especial ocorre com a mulher depois que ama. Reparem, estou dizendo, depois que
ama. Não estou me referindo a ela enquanto está no ato do amor. Disso se pode falar também, e a
literatura a partir do romantismo e depois do cinema, modernamente, já tentaram de várias
formas simular na relação amorosa como a mulher suspira, se contorce, desliza as mãos e
entreabre a boca do corpo e da alma.
Mas, quando digo “depois de amar”, refiro-me ao estado de graça que a envolve após o gozo ou
gozos, e que perdura horas e horas e às vezes dias. Fica macia que nem gata aos pés do dono.
Mais que gata, uma pantera doce e íntima. Sua alma fica lisinha, sem qualquer ruga. A vida não
transcorre mais a contrapelo. Desliza. Ela tem vontade de conversar com as flores, com os
pássaros, com o vento. Sobretudo, descobre outro ritmo em sua carne. É tempo do adágio, de
calma e fruição. Nesse período, aliás, o tempo pára. Em estado de graça ela se desinteressa do
calendário. O cotidiano já não a oprime.As tarefas da casa, pesadas em outras ocasiões, tornam-se
leves, os compromissos mais enjoados podem ser acertados, as tragédias dos jornais já não lhe
dizem tanto respeito. O trabalho no escritório torna-se leve, pode ser feito quase cantando.
Algumas desenvolvem uma súbita necessidade de tecer, outras de aninhar. Querem bordar,
costurar, arrumar coisas na casa, entram em clima de nidificação. É a hora de uma ociosidade
amorosa. Outras querem presentear o amado e o mundo com pratos sutilíssimos e saborosos. O
fato é que a mulher nessa atmosfera sai do trivial, se angeliza e, glorificada, pervaga pela casa.
O homem, animal desatento, às vezes não se dá conta. Em geral, nunca se dá conta. Ou dá-se
conta nos primeiros minutos após o ato de amor, e depois se deixa levar pela trivialidade,
deixando-a solitária em sua felicidade clandestina.
Na verdade, ela sobrepaira ao tempo, está adejando em torno do amado, que deveria suspender
tudo para sentir desenhar-se em torno de si esse balé de ternuras. Deveria o homem avisar ao
escritório: hoje não posso ir, estou assistindo à reverberação do amor naquela que amo. E como
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isso se assemelha à floração rara de certas plantas, os amados deveriam interromper tudo: seus
negócios e almoços e ficarem ali, prostrados, diante da que celebra nela o que ele ajudou a
deslanchar.
Já vi algumas mulheres assim. Era capaz de pressentir a 115 metros que elas estavam levitando
de tanto amor que seus amados nelas desataram. Há uma coisa grave na mulher que foi ao clímax
de si mesma. Que não esteja distraído o parceiro ou a parceira. Ela tem mesmo um perfume
diverso das demais. É um cio diferente. É quando a mulher descerra em si o que tem de
visceralmente fêmea, fêmea tranqüila que, mais que possuída, possui algo que atingiu raramente.
As outras mulheres percebem isso e a invejam. Os machos farejam e se perturbam. É como se
estivessem num patamar seguro a se contemplar. É quase parecido a quando a mulher vive a
maternidade. Mas aqui é ainda diferente, porque na maternidade existe algo concreto se
movimentando dentro dela. Contudo, nessa atmosfera que se segue a uma epifânica sessão de
amor, é diverso, porque ela está acariciando uma imponderável felicidade.
Estou falando de uma coisa que os homens não experimentam assim. O gozo masculino é mais
pontual e parece se exaurir pouco depois do próprio ato. Só os escolhidos, os de alma feminina,
vez por outra, o sentem prolongar-se dentro de si. Mas, em geral, é diferente. Terminado o ato,
uns até rolam para o lado e dormem como se tivessem tirado um fardo do ombro, outros acendem
o cigarro, vestem suas ansiedades e voltam ao trabalho.
É constatável, no entanto, que o homem apaixonado também transmite força, alegria, energia. Ele
oscila entre Alexandre o Grande e o artista que chegou ao sucesso. Também brilha. Mas é
diferente. E não é disto que estou falando, senão do gozo feminino que não se esgota no gozo e se
derrama em gestos e atenções por horas e dias a fio.
Freud andou várias vezes errando sobre as mulheres e, por exemplo, colocou equivocadamente
aquela questão de que a mulher teria inveja do homem por ser este um animal fálico etc.
Convenhamos: inveja têm (e deveriam ter) os homens quando prestam atenção no fenômeno que
acorre com as mulheres, que ao serem amadas atingem o luminoso êxtase de si mesmas, como se
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tivessem rompido uma escala de medição trivial para lá da barreira dos gemidos e amorosos
alaridos.
É isso: quando a mulher foi amada e bem amada, ela ingressa nessa atmosfera sagrada, cuja
descrição se aproxima daquilo que as santas estáticas descreveram. Uma aura de mistério as
envolve. E isso, por não ser muito trivial, por não ser nada profano, talvez se assemelhe aos
mistérios gozosos de que muitos místicos falaram.
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Despir um corpo a primeira vez
Affonso Romano de Sant’Anna
Despir um corpo a primeira vez é um acontecimento entre dois deuses. Não se pode profanar o
instante. E os amantes devem manter o ritmo dos altares. Porque, embora nesses rituais haja
sempre panos e trajes para agradar ao Olimpo, é para a nudez total que o céu nos quer arrebatar.
As mãos têm que ter um compasso certo. Um andante ou largo de Bach nos gestos, compondo a
alegria de homens e mulheres. As mãos, sobretudo, não podem se apressar. Com os olhos tem
que aprender e, com a ponta dos dedos contemplar os acordes que irão surgindo quando, peça por
peça, o corpo for se desvestindo ao pé do altar.
Antes de se tocar com as mãos e os lábios, na verdade, já se tocou o corpo alheio com um
distraído olhar sempre envolvente. E ninguém toca um corpo impunemente. Despir um corpo a
primeira vez não pode ser coisa de poeta desatento colhendo futilmente a flor oferta num
abundante canteiro de poesia. Nem pode ser coisa de um puro microscopista que olhe as coisas
sabiamente. Se tem que ser sábio o olhar, que seja do botânico, porque esse sabe aflorar em cada
espécie o que cada espécie tem de mais secreto ou distante, o que cada espécie sabe dar.
Despir um corpo pela primeira vez é conhecer pela primeira vez uma cidade. E os corpos das
cidades têm portas para abrir, jardins de repousar, torres e altitudes que excitam a visitação.
Algumas cidades sitiadas caem ao som de trombetas, outras se entregam porque não mais
suportam a sede e fome de amar. As cidades têm limites e resistência. E, como o corpo, querem
alguém que as habite com intimidade solar.
Gêngis Khan, Átila ou qualquer outro conquistador vulgar têm com as cidades e corpos uma
estranha relação. O objetivo é a devassa e a dominação. Conquistada a cidade, a ordem é
marchar.
Por isso, cuidado para não se acercar do outro apenas com esse olhar guerreiro ou com esse olhar
tolo de turista. O turista, embora procure os sabores típicos, é um voyeurista que só quer
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fotografar. Mas há turistas e turistas, e o pior turista é aquele que olha sem olhar. É um perdido
marinheiro que está preso em algum porto, que não se permite num outro corpo inteiramente
desembarcar.
Quando os corpos se tocam por acaso, como se estivessem indo em direções diferentes, o que
ocorre é desperdício. Não se pode tocar um corpo impunemente. E para se tocar um corpo
completa e profundamente num dado instante, os corpos têm que convergir. E convergir com
uma lua diferente. A descoberta do outro é isso, é convergência.
Despir um corpo a primeira vez é como despir um presente. Por isso não se pode desembrulhá-lo
assim às pressas, embora a gula nos precipite afoitos sobre a pele oferta. Não se pode com as
mãos infantis descompassadas ir rasgando invólucros, arrebentando cordões com a gula que as
crianças só têm nas confeitarias antes da indigestão.
Despir um corpo a primeira vez, para usar uma imagem conhecida, é mais que ir à Europa. Pode
ser, ao contrário, desembarcar pela primeira vez na América sobre a nudez do desconhecido. É
descobrir na pele alheia mais que a pele dele, a nossa pele índia. E volto àquela imagem: despir
um corpo a primeira vez é tão marcante quanto a vez primeira que um mineiro viu o mar.
Um corpo é surpresa sempre. E o que se vê nas praias, nessa pública ostentação, nesse exercício
coletivo de nudez total negaceada, em nada tira a eufórica contenção do ato, quando os dedos vão
desatando botões e beijos e rompendo as presilhas das carícias. Despir um corpo a primeira vez
não é coisa para amador. Só se o amador for amador da arte de amar. Porque o corpo do outro
não pode ter a sensação de perda, mas a certeza de que algo nele somou, que ele é um objeto
luminoso que a outros deve iluminar.
Um corpo a primeira vez, no entanto, é frágil e pode trincar em alguma parte. E os menos
resistentes se partem quando aquele que os toca, os toca apenas com a cobiça e nunca com a
generosa mansidão de quem veio pela primeira vez, e sempre, para amar.